Ceticismo - Bayle

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/23/2019 Ceticismo - Bayle

    1/23

    BAYLE E O CETICISMO ANTIGO

    Plnio Junqueira Smith*

    [email protected]

    RESUMO Apresenta-se a interpretao oferecida por Bayle do ceticismo

    antigo: suas caractersticas, sua origem e a distino entre pirrnicos

    e acadmicos. Em seguida, discutem-se alguns aspectos importantes do

    ceticismo: sua concepo de cincia, sua conduta na vida prtica e sua atitude

    em face da religio.

    Palavras-Chave Ceticismo; Pirronismo; Ceticismo Acadmico;

    Suspenso do Juzo; Aparncia; Probabilidade

    ABSTRACT The topic of this paper is Bayles interpretation of

    ancient scepticism: its characteristics, its origin and the distinction between

    pyrrhonism and academic scepticism. Some important aspects of scepticism

    are also discussed: its conception of science, its conduct in practical life and

    its attitude concerning religion.

    KeywordsScepticism; Pyrrhonism; Academic Scepticism; Suspension of

    Judgement; Appearance; Probability

    KRITERION, Belo Horizonte, n 115, Jun/2007, p. 249-271.

    * Professor da Universidade So Judas Tadeu (USJT). Pesquisador do CNPq. Projeto Temtico FAPESP.

    Artigo recebido em maro de 2007 e aprovado em maio de 2007.

  • 7/23/2019 Ceticismo - Bayle

    2/23

    Plnio Junqueira Smith250

    Apresentao geral do ceticismo antigo

    Suspenso do juzo, mtodo das antinomias e racionalidade

    Bayle, no seu Dicionrio histrico e crtico,1atribui dois princpios aopirronismo: que a natureza absoluta e interior dos objetos nos escondida eque somente podemos estar seguros de como eles [os objetos] nos parecem acertos respeitos (Pirro txt, p. 734).O primeiro diz respeito parte crticado pirronismo, em que se denunciam as pretenses dogmticas, enquanto osegundo apresenta sua parte positiva. Para compreender adequadamente o ce-ticismo, preciso entender sua atitude diante da pretenso filosfica de ter umconhecimento absoluto da natureza das coisas, bem como sua doutrina sobreo que possvel dizer sobre as coisas.

    Uma caracterstica essencial do ceticismo, para Bayle, a suspenso dojuzo com relao natureza absoluta das coisas, mas no com relao a comoessas nos aparecem nas suas diversas relaes e circunstncias. Ainda queele [Pirro] no tenha sido o inventor desse mtodo de filosofar, este no deixade levar seu nome: a arte de disputar sobre todas as coisas, sem jamais tomaroutro partido seno o da suspenso do juzo, se chama pirronismo (Pirrotxt, p. 732) Desse ponto de vista, no h diferena entre cticos acadmicose pirrnicos. Bayle diz que Arcesilau se fixou na inconstncia pirrnica, slhe faltava o nome de pirrnico (Arcesilau B, p. 284b) e que Carnades

    voltava sempre epoch (Carnades B, p. 58b).O mtodo empregado para alcanar a suspenso do juzo com relao

    natureza absoluta das coisas tambm era comum a pirrnicos e acadmicos.Nos dois casos, argumenta-se dos dois lados de uma questo, exibem-se osargumentos a favor e contra os dois lados, para, estabelecendo a igualdadede fora entre ambos, suspender o juzo. Ele [Pirro] encontrava por todas aspartes razes para afirmar e razes para negar e por isso que ele retinha seuassentimento depois de ter bem examinado o a favor e o contra (Pirro txt,p. 732). Segundo Bayle, o mtodo de Arcesilau consistia em disputar contratudo o que lhe era proposto (Arcesilau E, p. 285a). Tambm a esse respeitoCarnades teria se mostrado um fiel discpulo de Arcesilau. Seus famososdiscursos em Roma, um sobre a existncia da justia, outro sobre a existnciada injustia, revelam a prtica da argumentao in utramque partem. Era o

    1 A reconstruo da viso de Bayle sobre o ceticismo antigo, examinada neste artigo, limita-se aos principaisartigos doDicionriosobre o assunto. Os artigos, ou verbetes, sero citados da seguinte forma: nome doartigo (X); corpo do texto (txt) ou observao (Y); pgina e, quando for o caso, colunas (a para a

    coluna da esquerda e b para a da direita).

  • 7/23/2019 Ceticismo - Bayle

    3/23

    251BAYLE E O CETICISMO ANTIGO

    comum dos acadmicos: sua especulao estava suspensa entre dois contr-rios (Carnades G, p. 61b).

    Segundo Bayle, esse mtodo das antinomias ou procedimento ctico fruto do exerccio pleno da racionalidade, que somente a parcialidade dogm-

    tica impediria. Crisipo, o grande filsofo estico, teria explicitado o espritogeral dos dogmticos, a saber, ele queria que aqueles que ensinam uma ver-dade falassem sobriamente apenas das razes do partido contrrio (...) ele que-ria que eles passassem rapidamente pelas razes favorveis ao outro partido ecapazes de abalar a persuaso do ouvinte ou do leitor (Crisipo G, p. 169a).Esse procedimento dogmtico distorce a situao e transforma, maneira daarte ilusionista do sofista, a causa pior em melhor. Cada um conta a coisa detal modo a seu favor que, a acreditar nele, ele no comete o menor erro; queele suprime tudo o que lhe contrrio e tudo o que favorvel a seu inimigo(Crisipo G, p. 169b). Desse ponto de vista, os dogmticos assemelham-sea advogados, que defendem uma causa e no buscam a verdade de maneiraeqitativa. Aqueles, ao provar suas opinies, escondiam tanto quanto podiamo ponto fraco de sua causa e o ponto forte de seus adversrios (Crisipo G,p. 169b).

    No procedimento dos cticos, o respeito argumentao dos lados opos-tos exigia sua exposio com fidelidade. Como veremos mais adiante, esseprocedimento dos cticos guiado pelo amor verdade, e no pela defesa de

    uma causa. Estes, a saber, os cticos ou os acadmicos, representavamfi

    el-mente e sem nenhuma parcialidade o forte e o fraco dos dois partidos opostos(Crisipo G, p. 169b). Assim, os acadmicos propunham com a mesma for-a os argumentos dos dois partidos (Crisipo G, p. 169a). Procedendo dessamaneira, os cticos se assemelhavam aos relatores de um processo (Crisi-po G, p. 169b), isto , aqueles que, sem defender nenhuma causa, somenteapresentavam o que os advogados dos dois partidos alegavam.

    Poder-se-ia interpretar essa argumentao in utramque partemcomo umaespcie de aniquilao da razo, uma vez que, por meio de uma argumentao

    racional, no se concluiria nada. O ctico seria, assim, um inimigo da razo. LaPlacette, por exemplo, sustenta que o pirronismo a extino total no somen-te da f, mas tambm da razo (Pirro C, p. 724a). Ao examinar criticamenteas opinies e os supostos conhecimentos, o que a razo deixaria em p? Seupoder corrosivo talvez seja mais difcil de controlar do que pareceria primeiravista.2Surge, assim, a idia de que a razo humana no constri nada, apenas

    2 A razo um guia que nos desencaminha e a filosofia pode ser comparada a alguns remdios em p que

    so to corrosivos que, depois que comeram a carne infectada de uma ferida, devoram, ento, a carne

  • 7/23/2019 Ceticismo - Bayle

    4/23

    Plnio Junqueira Smith252

    destri. A razo humana muito frgil para isso. um princpio de destrui-o, no de edificao (Maniquestas D), que pareceria envolver at mesmoa negao dos princpios lgicos. Na observao B do artigo Pirro, Baylemostraria como a teologia crist refora o ceticismo, questionando a existncia

    de um critrio de verdade e destruindo princpios bsicos do silogismo, comoo de que duas coisas iguais a uma terceira so iguais entre si (Pirro B, p.732b). Alm disso, Bayle atribui explicitamente a Carnades (Carnades C,p. 59ab) a negao do princpio que fundamenta o silogismo.

    Longe de ver, no ceticismo, uma atitude francamente contrria razo,Bayle v, no mtodo das antinomias, o pleno exerccio da razo, j que ne-nhuma doutrina ser excluda do seu exame. Percebe-se que essa argumen-tao ctica dos dois lados extrada do prprio dogmatismo, mas ampliadae estendida. Quando o ctico relata o forte e o fraco dos dois partidos, elefreqentemente apenas retoma aquilo que os prprios dogmticos, atuandocomo advogados, alegaram em favor de suas causas e contra os demais, semisentar qualquer teoria.

    O artigo Zeno mostra claramente uma forma de procedimento dogm-tico e como o ctico corrige a parcialidade dogmtica. Existiriam somente trsteorias para explicar a realidade da extenso: ou a extenso infinitamentedivisvel (teoria 1) ou a diviso termina num ponto; esse ponto pode no ternenhuma dimenso e ser matemtico (teoria 2) ou pode ter alguma dimenso

    e ser fsico (teoria 3). Os dogmticos raciocinam empregando um silogismodisjuntivo: ou T1 ou T2 ou T3; ora, nem T1, nem T2; portanto, T3. Assim,atacando-se as demais teorias, -se levado a aceitar uma delas.

    Mas possvel usar os argumentos de uma teoria contra as demais, semexceo, de forma que nenhuma teoria ficaria excluda dos ataques das de-mais. A teoria que se aceita, entretanto, excluda de um exame crtico e osataques adversrios so ignorados ou desconsiderados por algum motivo. Octico poderia empregar um silogismo hipottico: se A (a extenso real),ento B (ou T1 ou T2 ou T3); ora, no-B (nem T1, nem T2, nem T3); por-

    tanto no-A (a extenso no real). da generalizao desse procedimentodogmtico, incluindo a prpria doutrina nesse exame crtico a que os filsofosdogmticos submetem as demais filosofias, que o ceticismo emerge como apostura mais racional. Somente motivos no racionais conduziriam os dogm-ticos a rechaar os ataques dos demais dogmticos.

    viva, apodrecem o osso e penetram at a medula. Primeiro, a filosofia refuta o erro. Mas, se no pranesse ponto, prossegue e ataca as verdades. E, quando deixada sozinha, vai to longe que no mais

    sabe onde est e no encontra um lugar de repouso (Acosta G, p. 69a).

  • 7/23/2019 Ceticismo - Bayle

    5/23

    253BAYLE E O CETICISMO ANTIGO

    Mas, em segundo lugar, o ceticismo nega os princpios racionais? Ora,uma leitura atenta da observao B do artigo Pirro revela que quem deverianegar os princpios lgicos (e morais) o cristo, no o ctico, pois os pres-supostos da argumentao que destri a evidncia e o critrio de verdade so

    dogmas cristos. No a suspenso do juzo que implica o fim da argumen-tao racional, mas a aceitao, pela f, de certos dogmas incompreensveispara a razo. Para evitar as conseqncias desastrosas, o cristo obrigado arecorrer distino entre a razo humana e a divina. Voc me dir que osdeveres do criador no devem ser medidos com a vara de nossos deveres(Pirro B, p. 733a). Essa a concesso que o ctico esperava do cristo, pois nesse preciso momento que o ctico triunfa, j que o cristo introduz umadistino filosfica crucial e admite que no conhecemos o absoluto. Mas sevoc faz isso, voc cai na rede dos seus adversrios. a onde eles o querem,seu grande objetivo provar que a natureza absoluta das coisas nos desco-nhecida e que somente conhecemos certas relaes (Pirro B, p. 733a). Ora,os cticos no tm interesse em negar os princpios lgicos, como o de no-contradio, nem questionar as formas vlidas de silogismo,3mas somenteem mostrar que a natureza absoluta das coisas escapa nossa compreenso esomente podemos relatar como as coisas aparecem relativamente. Esses so,afinal, os princpios do pirronismo.4

    Finalmente, Bayle entende que o ctico poder usar sua razo em sua vida

    cotidiana. Todos ns, em nossa vida cotidiana, estamos sujeitos s circunstn-cias e reagimos a estas de modos muito diversos. Nossa razo nos auxilia a li-dar com as inconstncias da vida, pois raciocinamos cada vez de uma maneira,em funo de nossa prpria convenincia, conforme as mudanas da vida nosobrigam a faz-lo. Os cticos no so exceo. Seria preciso no usurpar seusdireitos e deixar-lhes o privilgio de raciocinar dia-a-dia (Pirro F, p. 735a).Assim, o ctico, como qualquer homem, poder raciocinar e mudar de opi-nio de acordo com o que lhe parecer correto ou razovel naquele momentoou circunstncia. Pirro citava com freqncia uma bela metfora de Homero,

    segundo a qual os homens so inconstantes como as folhas ao vento, mudandosua opinio e sendo levados ao sabor dos ventos ou de nossas paixes. Isso

    3 Como observa Lennon (2002, p. 261), ao chegar falta de confiabilidade da evidncia, contudo, Bayleno parece atacar a razo na medida em que Popkin pensa. O argumento modus tollensque desfaz aconfiabilidade da evidncia no parece desafiado, de modo que a razo presumivelmente preservadapelo menos nessa medida.

    4 verdade que Bayle atribui a Carnades a negao do princpio de no-contradio, mas no exploraesse ponto, limitando-se a relat-lo. Certamente, no se trata de um aspecto essencial do ceticismo, mas

    talvez somente um exemplo do esprito polmico de Carnades.

  • 7/23/2019 Ceticismo - Bayle

    6/23

    Plnio Junqueira Smith254

    encaixa-se maravilhosamente na hiptese pirrnica: eles investigam sempre,no se fixavam em nada e, a todo momento, sentiam-se prontos para racioci-nar de uma nova maneira, segundo a variao das ocorrncias (Pirro F, p.735a).5

    A origem do ceticismo

    Para Bayle, percorrendo os mais diversos caminhos, a reflexo filosficaparece desembocar com freqncia no ceticismo.6Mas possvel identificar,na interpretao de Bayle, ao menos dois compromissos filosficos queestariam na origem do ceticismo. De um lado, o ceticismo parece resultar demaneira quase inevitvel de uma distino crucial que a filosofia traou, desdeo seu comeo, entre o ser e o aparecer, que nos condenaria a estarmos parasempre confinados ao reino do aparecer em oposio ao inalcanvel reino doser.7De outro, a clssica distino epistemolgica entre conhecimento ecrena, com a correspondente idia de que o filsofo ou sbio no cr ouopina, mas somente sabe ou conhece, parece implicar inexoravelmente que ofilsofo ou sbio est condenado a suspender o juzo.

    O dogmatismo eleata traou, pela primeira vez, a distino entre o ser e oaparecer, posteriormente incorporada e elaborada por Plato, e por este legada demodo definitivo, embora recebida com diferentes comentrios e interpretaes,

    para toda a filosofia subseqente. Parmnides e seus discpulos, Melisso,Xenphanes e Zeno, teriam forjado, assim, a forma em que toda a filosofia sedesenvolveria e, sem o saber, aberto as portas para o ceticismo. Xenphanes,em particular, ao sustentar a unidade de todas as coisas, encaminhou-sedecididamente em direo acatalepsia e incompreensibilidade8de todasas coisas, ainda que no tenha tirado explicitamente essa concluso. Bayleafirma, a respeito da unidade de todas as coisas, que esse dogma que meparece ser o grande caminho da incompreensibilidade (Xenphanes L,p. 524a). Dessa forma, as duas vertentes do ceticismo antigo, a seita dos

    acatalpticos [cticos acadmicos] e a dos pirrnicos tiveram o seu bero no

    5 Essa interpretao de Bayle no consensual entre seus comentadores. Por exemplo, Popkin (1959)afirma que Bayle nega o princpio de no-contradio, e Brahami (2002), que o ceticismo de Bayledestri a razo. Maia Neto (2005, p. 22-26 e 2006, p. 286-289) est de acordo com a interpretao aquioferecida.

    6 Para outras possveis origens do ceticismo, ver Paganini (2005, p. 35).7 Paganini (2005, p. 27) refere-se origem eletica do pirronismo.8 Bayle emprega a palavra incompreensibilidade para inapreensibilidade. Esse uso foi mantido ao longo

    do artigo.

  • 7/23/2019 Ceticismo - Bayle

    7/23

    255BAYLE E O CETICISMO ANTIGO

    princpio da unidade imutvel de todas as coisas sustentado por Xenphanes(Xenphanes L, p. 523b)9.

    De que modo esse dogma implica o ceticismo, ainda que seus defensoresno tenham extrado dele suas concluses necessrias? Uma vez aceito que

    o Ser uno, imutvel e infinito e Xenphanes parece ter usado os mesmosargumentos de Parmnides e Melisso para chegar a essa concluso , levanta-se uma objeo bvia: a experincia e os sentidos nos mostram que o universono um nico ser, nem que no h mudana. A essa objeo, Xenphanesrespondeu que os sentidos nos enganam e no nos conduzem verdade. Masessa resposta no resolve a questo, j que, contra Xenphanes, poder-se-ia dizer que, se as aparncias dos sentidos mudam, ento nossa alma mudae no a mesma, ao menos a parte passiva da alma por meio da qual estarecebe as falsas aparncias dos sentidos. Se h falsas aparncias dos sentidos,ento mesmo a alma muda, j que ao menos uma parte da alma mutvel, eXenphanes estaria errado ao sustentar que nada muda.

    Segundo Bayle, a essa segunda objeo, Xenphanes no poderiaseno dizer que nossa Razo to enganosa quanto nossos sentidos, tudolhe incompreensvel (Xenphanes L, p. 523b). Se a razo se apia emprincpios evidentes e no extrai concluses verdadeiras, ento a verdade uma coisa incompreensvel e impenetrvel (Xenphanes L, p. 523b). Ora,a razo, apoiando-se na noo evidente de que do nada nada se cria, conclui

    a imobilidade e a imutabilidade de todas as coisas. Logo, deveria ser verdadeque todas as coisas so imutveis e imveis. Mas essa concluso falsa,pois a experincia dos sentidos e das paixes mostra que a alma mutvel.Logo, a razo no capaz de destrinchar a verdade e a acatalepsia se impe.Xenphanes tinha princpios que o levavam necessariamente, como acabo deprovar, a sustentar a incompreensibilidade (Xenphanes L, p. 523b).

    A segunda distino traada pelos filsofos, que est na base do ceticismo, entre crena e conhecimento. Vimos, mais acima, que a motivao parao comportamento de Arcesilau, que consistia em argumentar dos dois lados

    de uma questo, era o ideal do sbio, que no deveria jamais assentir, excetoquando tivesse conhecimento do assunto, e no mera opinio. Esta, com efeito,no era digna do assentimento do sbio (Arcesilau E, p. 286a). Essa idia

    9 Leite (1996, p. 97): H, assim, uma mesma raiz comum ao ceticismo e ao idealismo, fundada na negaoda dupla existncia dos objetos: uma existncia no esprito, outra existncia fora do esprito. O pirronismode Bayle, refletido nas notas do verbete sobre Zeno, tem como ponto de partida a impossibilidadede distino entre as qualidades primrias, reais e objetivas, e as qualidades secundrias, aparentese subjetivas. Para Bayle, a nova filosofia, com a distino entre qualidades primrias e secundrias,

    aprofunda o ceticismo, mas no seu ponto de partida.

  • 7/23/2019 Ceticismo - Bayle

    8/23

    Plnio Junqueira Smith256

    estica e acadmica retomada na filosofia moderna, na forma de um preceitocartesiano. Para fazer um bom uso de nossa razo, no devemos aderir a umpartido, enquanto a evidncia das provas no estabelecer de maneira definitivaa verdade de um dos lados da questo. Quando a questo permanece aberta,

    esse bom uso consiste em suspender o juzo, at que a evidncia das provasse apresente (Nicolle C, p. 503b). Aqueles que assentem apressadamente,sem argumentos incontestveis e sem ter examinado cuidadosamente todas asalegaes de ambas as partes, so pejorativamente chamados de opinadores.Assim, no basta ao sbio, ou filsofo, dar o assentimento a uma verdade, mas preciso que ele disponha tambm de uma razo conclusiva para fazer de suaopinio um conhecimento digno desse nome. Bayle cita uma passagem deNicole, em que este expe, com todas as letras, a postura epistemolgica dodogmatismo: No somente os filsofos, mas todo o mundo em geral, deveconvir com essa mxima: no basta dizer a verdade, para no ser temerrio: preciso ainda saber que se diz a verdade (Nicolle C, p. 503b). Na ausnciade uma prova convincente de que estamos de posse da verdade, deve-sesuspender o juzo.

    Ora, o ceticismo mostra precisamente que no temos demonstrao denada, que jamais atingimos uma certeza completa em nossos raciocnios,que sempre possvel descobrir pontos fracos nos sistemas filosficos. Noh, assim, conhecimento, mas to-somente opinio. Entretanto, os prpriosfi

    lsofos se probem de opinar ou meramente crer. Seguindo o preceitocartesiano, que nada mais do que a pretenso dos filsofos dogmticos emgeral, deve-se reter o juzo e no assentir a nenhuma proposio filosfica,para no correr o risco de afirmar alguma coisa meramente provvel epossivelmente errada.10

    O ceticismo , assim, uma conseqncia das prprias pressuposiese procedimentos filosficos. O ceticismo no inventa nada (o domnio doSer, em oposio ao domnio do Aparecer uma inveno dogmtica), nemfaz exigncias desmesuradas, j que so os dogmticos que exigem um

    conhecimento absolutamente certo e rejeitam a crena e opinio. Nesse sentido,os acadmicos preservam o ideal do sbio e a integridade intelectual, semjamais opinar, enquanto os esticos (e demais dogmticos), ainda que tenhampromovido as exigncias de uma estrita racionalidade e de um conhecimentoabsolutamente certo, no cumprem suas prprias exigncias. O ceticismo

    10 Parece-nos, portanto, um equvoco de Labrousse (1966, cap. 1) ver, na adeso de Bayle a essa regra, umaprova de seu cartesianismo. O preceito no somente cartesiano. Mori (1999, p. 236, nota 216) observa,

    com razo, que essa uma distino tradicional.

  • 7/23/2019 Ceticismo - Bayle

    9/23

    257BAYLE E O CETICISMO ANTIGO

    o reconhecimento de que estamos confinados, no linguajar dogmtico, saparncias e s opinies provveis sobre as coisas, sem atingirmos a naturezaabsoluta das coisas ou uma verdade absolutamente certa.

    Aparncia e representao

    O que so, entretanto, a aparncia pirrnica e a probabilidade acad-mica? Uma interpretao seria vincular o ceticismo antigo ao moderno, j quea aparncia, ou a existncia ideal da extenso e movimento, seria entendida luz da nova filosofia, isto , maneira cartesiana, como uma modificaoda alma ou uma representao mental. A soluo dos paradoxos de Zeno edaqueles que Bayle avana em nome de Zeno clara: movimento e extensono podem ser propriedades objetivas das coisas, mas somente podem existirna mente (Zeno G). Do mesmo modo, a nova filosofia mostra que as qua-lidades secundrias existem apenas na mente; por razes similares, devemosdizer, ento, que tambm as qualidades primrias existem apenas na mente(Pirro B, p. 732ab). Assim, Bayle estaria claramente se encaminhando parauma filosofia idealista, em que o mundo material seria incognoscvel para ns.Tudo o que poderamos conhecer so as aparncias, entendidas como modi-ficaes de nossa mente.11H razes, entretanto, para desconfiar dessa inter-pretao.

    Uma conseqncia da interpretao bayleana da origem do ceticismo acontinuidade entre o ceticismo antigo e o ceticismo moderno. Embora longede ver uma identidade entre ambos, Bayle percebe que a seita dos cticospode florescer novamente aps as grandes mudanas introduzidas pela novafilosofia. Por isso, faz a suposio de que se Arcesilau voltasse a este mun-do... (Pirro B, p. 732a) ou se Zeno conhecesse o que aceitam os novosmatemticos (Newton e Huygens) (...) o ceticismo antigo seria ainda maisformidvel (Zeno G). Os aportes da nova filosofia somente reforam asobjees antigas contra o conhecimento da natureza absoluta das coisas ou o

    conhecimento das coisas em si mesmas, aprofundando o ceticismo, mais doque o gerando.

    No se deve, portanto, interpretar a existncia idealdo movimento e daextenso como se fosse uma idia na mente, segundo o dualismo cartesiano.Ao contrrio, a distino cartesiana entre representao mental e mundo exterior somente mais uma das diversas maneiras filosficas de entender a oposio

    11 Ver Popkin (1993), Paganini (2005, p. 33, nota 19, e p. 34), Mori (1999, p. 124) e Leite (1996, p. 95-101).

  • 7/23/2019 Ceticismo - Bayle

    10/23

    Plnio Junqueira Smith258

    bsica da filosofia entre aparecer e ser. Bayle, embora reconhea a grandenovidade e os mritos da nova filosofia, no parece atribuir-lhe uma guinadadecisiva na filosofia, mas apenas inscrev-la como outra hiptese para expli-cao do mundo, em p de igualdade com muitas outras. Assim, ele se permite

    discutir o problema da existncia do mundo exterior no interior de discussesminuciosas sobre doutrinas antigas, como as de Zeno e Pirro. O problema domundo exterior seria somente mais um captulo, com novas feies, no vetus-to problema do mundo. possvel duvidar da existncia do mundo como umtodo, sem precisar, necessariamente, entend-lo como um mundo exterior.

    A observao K do artigo Zeno esclarece de maneira decisiva sobreo carter no cartesiano da expresso tem existncia apenas na mente, poisBayle atribui aos filsofos eleatas essa doutrina. Assim, era seriamente epor doutrina de sistema, e no por jogo de esprito, que eles [Parmnides,Melisso, Xenphanes e Zeno] negavam o movimento e sustentavam que suaexistncia era somente mental (Zeno G). Como atribuir aos eleatas umaconcepo cartesiana do mental? O idealismo eleata, se que se pode falarassim, teria caractersticas muito diferentes do idealismo moderno. Bayle, noraro, identifica ou v continuidades entre as filosofias antigas e modernas,nesse caso a filosofia moderna aprofundaria o ceticismo antigo.

    A continuao da observao confirma essa interpretao. Citando apassagem de Sexto Emprico sobre o sofista Diodoro, que, por ter deslocado o

    ombro, foi se consultar com o mdico Herphilo, Bayle traa a distino entreo movimento aparente e o movimento real. Ora, esse movimento aparente no um movimento mental, no sentido de um movimento subjetivo, pois ummovimento do ombro. O movimento aparente o deslocamento de uma partedo corpo, e no uma modificao meramente mental.

    Uma ltima observao de Bayle encerra a discusso. No final daobservao G desse artigo, diz que, mesmo sendo incapaz de resolver asdificuldades levantadas por Zeno, no deixa de seguir a opinio comum.Essa era a posio dos cticos antigos. Suspendendo o juzo sobre questes

    filosficas sobre a natureza absoluta das coisas, pirrnicos e acadmicosseguiam a opinio comum dos homens. Ora, a opinio comum a de que oscorpos se movimentam. Assim, nem Bayle, nem os cticos antigos aceitam atese filosfica, muito especfica e controversa, de que o movimento mentale subjetivo.

    A aparncia no se reduz, pois, a modificaes na mente. O que ela,ento? No devemos pensar a aparncia como um tipo de coisa, como se oque a definisse fosse seu estatuto ontolgico. Conseqentemente, tampoucodevemos pens-la como iluso, em oposio Realidade do Ser, como fazem

  • 7/23/2019 Ceticismo - Bayle

    11/23

    259BAYLE E O CETICISMO ANTIGO

    os dogmticos. O que caracteriza a aparncia o seu carter epistemolgico:as coisas aparecem relativas a ns e s suas circunstncias. Por essa razo,Bayle lembra que, no pirronismo, o modo da relao aquele que o maisgeral e do qual os demais so espcies (Pirro B, p. 733a, nota 19).

    Uma ltima observao sobre a noo de aparecer. Esse aparecer no selimita s aparncias sensveis, aos objetos que se manifestam para os sentidos,mas tambm se pode falar de um aparecer inteligvel, isto , de concepese idias que aparecem e se manifestam para a razo. Essa interpretao confirmada pelo que Bayle diz a propsito de sua interpretao de Xenphanes,j que este filsofo obrigado a reconhecer que no somente os sentidosnos enganam, mas tambm a razo, de forma que tambm se pode falar dasaparncias inteligveis (Xenphanes L). O aparecer no se restringe aosensvel, porque no somente nessa esfera que as coisas aparecem para ns.Ver-se-, mais adiante, que leis, costumes e, mesmo, hipteses cientficastambm aparecem para ns.

    Acatalepsia e busca permanente da verdade

    tradicional a disputa para saber se o ceticismo acadmico e o pirronismoconsistem em duas formas de ceticismo ou se, no fundo, so uma s. H, noentender de Bayle, somente uma pequena diferena entre ambos. De um lado,

    vimos que Bayle diz que Arcesilau era um pirrnico, faltando-lhe somenteessa denominao (Arcesilau B, p. 284b), e que foi instrudo no pirronismopor Scrates e Plato (Arcesilau E, p. 285a), o que sugere que os laos entreessas duas vertentes so muito estreitos. Alm disso, deve-se notar que, nosartigos consagrados ao ceticismo antigo, Bayle passa dos acadmicos para ospirrnicos, e vice-versa, sem nenhuma cerimnia. Assim, por exemplo, aodiscutir a moral de Arcesilau, Bayle nota que os pirrnicos tinham uma teoriafavorvel virtude (Arcesilau K, p. 288a), ao afirmar que a vida civil nadatem a temer dos pirrnicos, mistura a regra de conduta dos pirrnicos (seguir

    os costumes do pas) e a probabilidade de Carnades (Pirro B, p. 732a); e,no famoso discurso em defesa do pirronismo, o abade supe que, se Arcesilaurevivesse, estaria em condies ainda mais favorveis (Pirro B, p. 732a).

    De outro lado, Bayle examina as possveis diferenas entre as duasvertentes e diz que prefere deixar entre eles alguma diferena (Pirro A,p. 731a). Mas aquela apontada por Sexto Emprico no lhe parece satisfatria(Pirro A, p. 731b). Sexto disse que, para Arcesilau, a suspenso do juzo naturalmente boa e a afirmao, naturalmente m, enquanto os pirrnicosno se teriam pronunciado dogmaticamente sobre o valor da suspenso e da

  • 7/23/2019 Ceticismo - Bayle

    12/23

    Plnio Junqueira Smith260

    afirmao. Mas fcil mostrar que ambos tm uma posio similar, pois se,de um lado, o pirrnico tambm sustenta que a suspenso aparentementeboa, e aparece-lhe que a afirmao m, de outro, o acadmico no faziaafirmaes dogmticas sobre a suspenso e a afirmao. Tudo isso testemunha

    que Bayle entendia que a nova academia era uma forma de ceticismo, e no dedogmatismo, como supunha Sexto Emprico.

    Percebe-se uma real distino entre as duas formas de ceticismo quandoconcentramos nossa ateno na acatalepsia. Pode parecer que Pirro teriasustentado, como Arcesilau, a acatalepsia, pois seus sentimentos quase nodiferiam das opinies de Arcesilau, pois lhe faltava bem pouco para que,como este, ensinasse a incompreensibilidade de todas as coisas (Pirro txt,p. 731). Mas, segundo Bayle, o esprito pirrnico no supe formalmentea incompreensibilidade (Pirro A, p. 731a). Diferentemente do ceticismoacadmico, que, por julgar que tudo incompreensvel, no mais investiga averdade, o pirrnico entende que possvel encontrar a verdade e, por isso,continua a investig-la. Por isso, os pirrnicos definem-se como examinadorese investigadores, diferenciando-se dos acadmicos. Para Bayle, essa a nicadiferena entre acadmicos e pirrnicos. Em tudo o mais, eles se assemelhamperfeitamente (Pirro A, p. 731b).

    A marca caracterstica do pirronismo, que o diferencia do ceticismoacadmico, a investigao permanente da verdade, uma vez que a suspenso

    do juzo no implicava a interrupo da busca da verdade. Pirro reduzia todasas suas paradas a um non liquet,seja mais amplamente investigado (Pirrotxt, p. 732, grifos no original). Os prprios nomes ctico e zettico, queos pirrnicos se atribuam a si mesmos, significam que so examinadorese investigadores (Pirro A, p. 731a). Justamente porque a suspenso dojuzo resumia-se a uma exortao a mais investigaes, e no o trmino dainvestigao, Pirro, de maneira coerente, buscou, portanto, por toda a suavida, a verdade (Pirro txt, p. 732). No entanto, essa busca pirrnica daverdade como uma investigao constante, segundo Bayle, adquiriu umacaracterstica peculiar. Pirro cuidava de que a verdade nunca seria encontradae de que a investigao permanente nunca se encerrasse. Assim, a busca daverdade, entendida como uma investigao permanente, acabava por ser umainvestigao que, paradoxalmente, evita descobrir a verdade. Mas ele [Pirro]sempre preparava para si recursos para no concordar que a tinha encontrado(Pirro txt, p. 732). A argumentao de ambos os lados acabou por se tornaruma arte de disputar sobre todas as coisas, sem jamais tomar partido outroseno o da suspenso do juzo (Pirro txt, p. 732).

    Os acadmicos, por sua vez, parecem ter preservado melhor o ideal de

    sbio e a integridade intelectual na busca da verdade. Arcesilau argumentava de

  • 7/23/2019 Ceticismo - Bayle

    13/23

    261BAYLE E O CETICISMO ANTIGO

    um lado e de outro porque buscava a verdade. Note que um dos interlocutoresde Ccero sustentou que Arcesilau aderiu ao partido da epoch, no paracontradizer Zeno, mas pelo desejo de encontrar a verdade (Arcesilau E,p. 286a). Desempenha um papel fundamental, nessa adeso suspenso e

    argumentao dos dois lados de uma questo, o ideal do sbio, j que este nodever opinar, mas somente afirmar, apoiado em razes concludentes, aquiloque sabe ser verdade. Ele [esse interlocutor] pretende que Arcesilau foi oprimeiro que descobriu e aprovou essa proposio: possvel que um homemno afirme, nem negue nada sobre os assuntos incertos, e esse o dever dohomem sbio (Arcesilau E, p. 286a). Assim, em relao aos pirrnicos, aatitude dos cticos acadmicos ou acatalpticos parece ter preservado melhoro esprito de busca da verdade.12

    Os acadmicos, entretanto, no teriam comprometido seu ceticismocom a acatalepsia e a conseqente interrupo da busca da verdade? Ora, aacatalepsia parece efetivamente um dogma (Xenphanes L, p. 524a), poisconsiste numa afirmao sobre a natureza das coisas, ao dizer que essa natureza incompreensvel. Bayle atribui a Arcesilau o dogma da incompreensibilidadede todas as coisas sem rodeios e nessa forma claramente afirmativa: tudo incerto. Bayle entende que o dogma da acatalepsia no transforma afilosofiaacadmica numa forma de dogmatismo, mas que esta permanece estritamentectica quando sustenta que tudo incompreensvel. Por que o dogma da

    incompreensibilidade de todas as coisas no trai a suspenso do juzo?Em primeiro lugar, note-se que Arcesilau fazia essa frmula aplicar-sea si mesma, de forma que sequer certo que tudo incerto. Ele [Arcesilau]no quis mesmo confessar, como Scrates, que ele sabia que no sabia nada(Arcesilau E, p. 286a). Ainda assim, Arcesilau teria formulado a acatalepsiade maneira excessiva, indo alm dos seus predecessores. Ele [Arcesilau] foiquem ensinou a acatalepsia, ou incompreensibilidade, mais formalmente do quejamais se tinha feito (...) certo que Arcesilau somente estendeu e desenvolveuo que tinha sido dito pelos maiores mestres (Arcesilau E, p. 286a-b). O

    prprio Carnades tambm fazia a expresso voltar-se contra si mesma.

    Voc v que ele [Carnades] ensinava que aqueles que dizem que no se podecompreender nada e que no h nada certo devem dizer por uma conseqncianecessria que essa mesma proposio nada certo, no podemos compreender

    12 Explica-se, assim, a interpretao de Maia Neto, para quem a integridade intelectual consiste nacaracterstica essencial do ceticismo acadmico. Deve-se ressaltar que a integridade intelectual umadiferena especfica com o pirronismo e que o ceticismo acadmico tem inmeras outras caractersticas.

    Para uma discusso crtica da interpretao de Maia Neto, ver Lennon (2002, p. 274-279).

  • 7/23/2019 Ceticismo - Bayle

    14/23

    Plnio Junqueira Smith262

    nada incerta, incompreensvel. Ora, ele era um dos que diziam que no se podecompreender nada; logo, ele ia to longe quanto Arcesilau (Carnades B, p. 58a).

    Embora a formulao dada por Arcesilau acatalepsia tenha ares

    dogmticos, o contedo da expresso tudo incompreensvel no dogmtico, como deixa claro a aplicao da frmula a si mesma. Mas issono foi suficiente para retirar-lhe a aparncia de dogmatismo. Como Arcesilauno foi capaz de dar-lhe uma formulao satisfatria, Carnades, que teriapodido sustent-la melhor que ele, viu-se obrigado a conferir-lhe algumamodificao (Arcesilau E, p. 286a). Assim, Carnades foi obrigado a buscaruma formulao menos afirmativa para a acatalepsia, uma vez que Arcesilautinha se excedido, tendo negado a existncia de verdades. Carnades teriaintroduzido uma inovao ao defender, a respeito das verdades, no a sua

    inexistncia, mas nossa incapacidade em descobri-la. Ele [Carnades] nonegava, como Arcesilau, que no existiriam verdades, mas sustentava que nopodemos discerni-la com certeza (Carnades B, p. 58b). Essa inovao,longe de constituir um abandono da acatalepsia, representou uma melhoriano interior mesmo dessa seita, pois, preservando-a, deu-lhe contornos maisprecisos. Tudo bem considerado, a mesma coisa dizer no h verdadese dizer existem, mas no temos regras para discerni-las da falsidade(Carnades B, p. 59a).

    No bvio que essas duas proposies sejam equivalentes, e a idiade Bayle que a segunda explicite adequadamente o contedo da primeira,quando esta corretamente entendida, uma vez que sua formulao esconde osentido que Arcesilau lhe atribua de fato.

    Se Arcesilau sustentou a primeira dessas duas proposies, dever-se-ia compar-loaos cavalos fogosos que seguem sua impetuosidade at o fundo dos precipcios. Mastenho dificuldade em crer que ele tenha negado absolutamente a existncia de verdades.Ele se contentava, parece-me, com sustentar que essas eram impenetrveis ao espritodos homens. O calor da disputa impediu-lhe de se expressar to prudentementequanto se fez depois na Academia de Carnades (Carnades B, p. 59a).

    Assim, Carnades teria sidofiel a Arcesilau, pois, preservando a acatalepsia,interpretou-a de maneira mais rigorosa, extraindo-lhe seu significado preciso,que teria escapado a seu mestre, visto que este, num arroubo momentneo,deu-lhe uma formulao imprudente.13

    13 Para caracterizar o ceticismo de Bayle, Lennon (2002, p. 258-259) lana mo de trs significados do termoceticismo: o pirronismo humeano, segundo o qual seria racional renunciar razo em favor de outro

    meio de formao de crena; o ceticismo religioso, que negaria que a f possa ser esse meio de formao

  • 7/23/2019 Ceticismo - Bayle

    15/23

    263BAYLE E O CETICISMO ANTIGO

    Aspectos do ceticismo

    Tendo dito que fcil pr acadmicos e pirrnicos de acordo em quasetudo, exceto na questo da acatalepsia e da investigao permanente, Bayle

    combinar as doutrinas acadmicas e pirrnicas nos demais assuntos, semse preocupar excessivamente com a fidelidade histrica. No artigo Pirro(B), Bayle afirma que com relao a essa divina cincia [a teologia] queo pirronismo perigoso, pois no se v que ele guerreia, nem com relao fsica, nem com relao ao Estado. Tratemos, pois, desses trs assuntos.

    Cincia

    Normalmente, o ceticismo visto como um inimigo do conhecimentocientfico, porque combate o dogmatismo e, ao traar os estreitos limites do

    entendimento humano, mostra que no podemos descobrir as verdades naturais.Mas isso, diz Bayle, importa pouco (Pirro B, p. 732a), sustentando que acincia moderna , em grande parte, ctica.

    Estou bastante seguro de que h muito poucos bons fsicos em nosso sculo que noesto convencidos que a natureza um abismo impenetrvel e que suas molas soconhecidas somente por quem as fez e as dirige. Assim, todos esses filsofos so, aesse respeito, acadmicos e pirrnicos (Pirro B, p. 732a).

    Bayle fornecer uma interpretao ctica da cincia moderna e est de

    acordo com o que pensam os prprios cientistas sobre a natureza de suasinvestigaes.

    A cincia moderna, no entender de Bayle, no busca verdades e, porisso, a argumentao ctica contra a descoberta de verdades no atingiria oconhecimento cientfico. Os cticos, por outro lado, admitem que se poderecorrer a probabilidades e experincia para nos orientarmos em nossas vidas.Ora, precisamente isso que faz a cincia moderna: recorrendo experincia,formula hipteses explicativas com maior ou menor grau de probabilidade.14Deve bastar-nos que nos esforcemos em buscar hipteses provveis e recolherexperincias (Pirro B, p. 732a). Assim, o tipo de conhecimento admitidopelos cticos precisamente aquele que os bons fsicos praticam, o ceticismo

    de crena; o ceticismo acadmico, que se caracteriza por uma prescrio metodolgica. patente ainadequao de tal terminologia, por no corresponder ao que Bayle pensava sobre ceticismo pirrnico eacadmico.

    14 Mori (1999, p. 40-41) e Maia Neto (1996, p. 85) atribuem a Bayle uma epistemologia probabilista.

  • 7/23/2019 Ceticismo - Bayle

    16/23

    Plnio Junqueira Smith264

    configurando-se, portanto, numa boa chave para a interpretao da cinciamoderna.15

    Carnades foi quem introduziu, no ceticismo acadmico, a teoria daprobabilidade. Pretende-se tambm que Arcesilau teria negado que existam

    coisas provveis. Carnades no o negou e quis mesmo que a verossimilhananos determina a agir, desde que no se pronuncie sobre nada de maneiraabsoluta (Carnades B, p. 58b). Com base na probabilidade, um sbiopoderia opinar. Ele tinha ainda mais indulgncia e permitia ao sbio opinarem algumas circunstncias (Carnades B, p. 58b). O fato de que o cticosuspende o juzo sobre a natureza absoluta das coisas no o impede de lanarhipteses provveis, apoiadas em raciocnios, sobre como as coisas nosparecem. A razo desempenha um papel fundamental na cincia, formulandohipteses e propondo as mais provveis.

    Encontramos em Bayle uma referncia idia de que os pirrnicos seguemas aparncias e vivem de acordo com elas. O artigo Zeno insiste na idiade que no conhecemos as propriedades reais das coisas e que, se supusermosque a matria tem realmente as propriedades da extenso, do movimento, daimpenetrabilidade e da continuidade, ento camos nos paradoxos de Zeno.Para evit-los, devemos supor que essas so propriedades aparentes das coisas.Nesse caso, podemos conhec-las e ter uma fsica tal como nos propem osnovos matemticos, isto , Newton e Huygens, ainda que essas hipteses

    enfrentem difi

    culdades metafsicas e, mesmo, fsicas. A cincia estuda, no anatureza absoluta das coisas, mas como essas nos aparecem.H, ainda, uma caracterstica do ceticismo que Bayle julga ser-lhe

    indispensvel: a honestidade intelectual e a busca da verdade. Bayle extrai,dessa caracterstica, uma tarefa essencialmente descritiva das filosofias comosistemas articulados, baseada numa obrigao de tolerncia e pacincia nainterpretao dos pensamentos alheios. Em primeiro lugar, o ctico umapessoa que no emite juzos, nem toma partido, mas somente relata o estado daarte, por assim dizer. Ora, essa a tarefa que Bayle assume diante da filosofia,

    a tarefa do historiador.16A idia de que o ctico somente relata o que os outrospensam acerca de uma questo, sem julgar, parece conduzir naturalmente concepo de que o ctico, diferentemente do filsofo, adota a perspectiva deum historiador. A histria, como um campo de conhecimento, est aberta s

    15 Leite (1996, p. 101) defende que Bayle teria adotado uma perspectiva instrumentalista na abordagem dasteorias cientficas.

    16 Cf. Maia Neto (1996, p. 84-88): Refiro-me concepo do ctico como essencialmente um historiador.

    (p. 86)

  • 7/23/2019 Ceticismo - Bayle

    17/23

    265BAYLE E O CETICISMO ANTIGO

    investigaes cticas. Neste campo, como atesta o Projeto, possvel umconhecimento provvel e, mesmo, s vezes, certo.

    Com efeito, Bayle emprega, inmeras vezes, a expresso relatar paradescrever sua atividade noDicionrio histrico e crtico. Por exemplo, Bayle

    relata a conversa entre os dois abades sobre o pirronismo (Pirro txt, p. 732)e, pouco adiante, relata o que Pirro teria dito sobre a morte (Pirro E, p.734b). Ao expor a doutrina de Carnades, que a muitos teria causado desgosto,Bayle afirma que ele preferiu fazer-se copista, para a utilidade daqueles que,sem sair de seu lugar, esto bem vontade para se esclarecer historicamentedas opinies dos antigos e para ver os originais das provas, quero dizer, osprprios termos dos testemunhos. Eis o meu princpio em mil outras ocasies(Carnades B, p. 59a). Esse esclarecimento histrico deve ser fiel na medidado possvel, e nossa opinio no deve distorcer deliberadamente a exposioda opinio dos demais. Talvez no por acaso, Sexto Emprico seja fonteimportante para as filosofias antigas, j que, como um ctico, relatava-asfielmente.

    Vida pblica

    Acusou-se o ceticismo de comprometer a distino entre virtude e vcio.Com relao a Arcesilau, Bayle admite que seus dogmas invertem todos ospreceitos da moral (Arcesilau txt, p. 288). Ccero, por exemplo, achavaque Carnades destrua a existncia de um direito natural (Carnades H, p.61b), e poder-se-ia sustentar que o triunfo do pirronismo a aniquilao dosprincpios morais (Pirro B). Assim, tanto o ceticismo acadmico, como opirrnico, aboliriam a distino entre virtude e vcio.

    Bayle pensava exatamente o contrrio, reconhecendo o exemplarcomportamento moral dos cticos antigos. Em primeiro lugar, observa-se,contudo, que ele [Arcesilau] os observava [os preceitos morais] (Arcesilautxt, p. 288). Vrias so as caractersticas que Bayle atribui a Arcesilau: bondade(Arcesilau txt, p. 287), ternura boa e honesta pelos discpulos, docilidade,

    respeito e gnio (Arcesilau B, p. 284a), amante da verdade (Arcesilau E,p. 286a), liberalidade (Arcesilau I, p. 287b), modstia e ausncia de inveja(Arcesilau txt, p. 288). Tambm Lacides, seu discpulo, ser elogiado comoalgum que conduzia sua vida de maneira justa (Lacides). Referindo-se auma observao de Quintiliano, Bayle diz que Carnades no deixava de seconduzir de acordo com a justia, ainda que raciocinasse a favor da injustia.Era comum dos acadmicos: sua especulao estava suspensa entre doiscontrrios, mas sua prtica se fixava em um dos dois (Carnades G, p.61b). Tambm Pirro fora um homem virtuoso, e a tal ponto que sua cidade

  • 7/23/2019 Ceticismo - Bayle

    18/23

    Plnio Junqueira Smith266

    o isentou de pagar impostos. Com ironia, Bayle chega mesmo a dizer que aconduta dos cticos antigos estava de acordo com os preceitos cristos.17

    Poder-se-ia dizer que essa era somente a prtica dos cticos, mas no suadoutrina, e que, entre a teoria e a prtica, abre-se um abismo insondvel.18

    Nas passagens anteriormente citadas, vimos que os dogmas de Arcesilauconduziam inverso dos preceitos morais, embora sua conduta fosse correta;que Carnades argumentava a favor da injustia e mantinha-se teoricamenteentre a justia e a injustia, embora praticasse a justia; e que Pirro nopreferia nada, sendo aparentemente insensvel justia e aos deveres morais. comum, em Bayle, apontar esse descompasso entre o que se pensa e o quese faz. Todo o mundo mora a: no vivemos segundo nossos princpios(Carnades G, p. 61b).

    Bayle, entretanto, no parece ver um descompasso entre a prtica e ateoria cticas. Ao contrrio, a conduta moralmente correta dos cticos estfundamentada numa doutrina ctica. A suspenso do juzo no implica aindiferena entre o bem e o mal, mas somente em seguir as aparncias e asprobabilidades. Note que, na doutrina dos maiores pirrnicos, havia umateoria favorvel virtude, pois, qualquer que fosse segundo eles a essnciamesma das coisas, ensinavam que para a prtica da vida era necessrio seconformar s aparncias (Arcesilau K, p. 288a). Pirro no negava adistino entre virtude e vcio, mas apenas discutia sobre sua origem, pois

    no se deve duvidar que ele ensinava que a honra e a infmia das aes, suajustia e sua injustia, dependiam unicamente das leis humanas e do costume(Pirro txt, p. 734). Portanto, o ctico pode viver segundo seus princpios elevar uma vida virtuosa. No sabemos se essa ao honesta em si mesmaou por sua natureza, somente cremos que a respeito de um tal, com relao acertas circunstncias, ela tem o exterior de honestidade (Pirro B, p. 733a).Assim, a aparncia suficiente para nos indicar que curso de ao tomar equal a vida correta. No preciso aceitar valores absolutos para adotarmosuma conduta virtuosa.

    Tambm a doutrina da probabilidade de Carnades invocada para explicarsua conduta virtuosa. Trata-se, como vimos, de uma inovao importante nointerior da academia ctica, mas que no o afasta da suspenso do juzo. Se, deum lado, a incompreensibilidade seu princpio favorito (Carnades G, p.

    17 Ver Arcesilau I, p. 287b e Carnades K, p. 62a.18 Bayle realmente sustentou que, na maioria dos casos, h uma separao entre a doutrina e a vida do

    filsofo. A seu ver, Espinosa levou uma vida exemplar, embora sua filosofia negasse toda moral e religio.Bayle extrai, dessas consideraes, um argumento a favor da tolerncia, j que uma pessoa pode ter

    crenas erradas e no ser uma ameaa paz pblica.

  • 7/23/2019 Ceticismo - Bayle

    19/23

    267BAYLE E O CETICISMO ANTIGO

    61a), de outro seu grande princpio que somente existem probabilidadesou verossimilhanas no esprito do homem, o que faz com que, entre duascoisas opostas, pode-se escolher indiferentemente esta ou aquela, comoassunto de um discurso ora negativo, ora afirmativo (Carnades G, p.

    61a). Discutindo essa inovao de Carnades, Bayle conclui que ele retinhao fundo do dogma de Arcesilau, mas que por poltica e para tirar dos seusadversrios os pretextos mais especiosos de declamar e torn-lo ridculo, eleaceitava graus de verossimilhana que deviam determinar o homem sbioa escolher tal ou tal partido na prtica da vida civil (Carnades B, p.59a). Assim, embora ele argumentasse dos dois lados, sua prtica o fixavanum dos dois (Carnades G, p. 61b), de acordo com a probabilidade ouverossimilhana.19

    Bayle distinguia uma tendncia naturalista, por assim dizer, na moralctica acadmica. Arcesilau seguia demais a inclinao da natureza, e issoat o excesso vergonhoso (Arcesilau txt, p. 288). Na observao a essecomentrio, Bayle afirma que os vcios e as virtudes conhecem a arte de sealiar e que Arcesilau no era exceo, j que em sua pessoa as boas qualidadesse encontram reunidas com as ms (Arcesilau L, p. 288a). TambmCarnades, em sua moral, ressaltava a dimenso natural do homem. O fimltimo do homem, ele dizia, fruir os princpios naturais (Carnades K,p. 62a). Correspondentemente, ele limitava a felicidade fruio do bem

    natural (Carnades K, p. 62b).Fidesmo

    Uma das questes mais controversas sobre Bayle a questo do fidesmo.De um lado, inmeras so as passagens em que Bayle parece afirmar que oceticismo um caminho para a f,20e, de outro, tambm no so poucas aspassagens em que o ceticismo apresentado como o inimigo da religio e daf.21Como conciliar essas passagens? Talvez a conciliao seja possvel sedistinguirmos dois pontos de vista diferentes.22

    Do ponto de vista filosfico, que o ponto de vista do ctico, o ceticismo um dos grandes inimigos da religio, isto , se consideramos o ceticismo

    19 A negao dos princpios morais, em Pirro B, uma decorrncia dos dogmas cristos, no da suspensodo juzo.

    20 Ver Labrousse (1996, p. 293-316).21 Ver Mori (1999, p. 189-271).22 O III Esclarecimento (item I, p. 641) distingue claramente entre os pontos de vista filosfico e

    teolgico: Disso se segue necessariamente a incompetncia do Tribunal da Filosofia para o julgamentodas controvrsias dos cristos, visto que essas devem ser conduzidas somente para o Tribunal da

    Revelao.

  • 7/23/2019 Ceticismo - Bayle

    20/23

    Plnio Junqueira Smith268

    em sua inteno e no seu significado filosfico, vemos que o ceticismo visa,entre outras coisas, destruio da religio e da f. com razo que ele [oceticismo] detestado nas Escolas de Teologia (Pirro txt, p. 732). Pirro Bse dedica a mostrar essa oposio entre o ceticismo e a f religiosa. Portanto,

    somente a religio deve temer o pirronismo; ela deve estar apoiada na certeza,seu fim, seus efeitos, seus usos, caem assim que a firme persuaso de suasverdades apagada da alma (Pirro B, p. 732a).

    Pode-se, entretanto, pensar o ceticismo de um ponto de vista que lhe externo, conferindo-lhe um sentido que originalmente no tem. Assim, de umponto de vista teolgico, pode-se afirmar que o ceticismo um caminho paraa f, entre outros caminhos possveis. Mas ele [o ceticismo] pode ter seususos para obrigar o homem pela sensao das trevas a implorar o socorro doalto e se submeter autoridade da F (Pirro txt, p. 733). Haveria, assim,um uso possvel do ceticismo, que no faz parte do ceticismo, nem com esteconsistente, sendo mesmo contrrio ao que o ctico prope.

    Tendo distinguido entre esses dois pontos de vista, pode-se entendermelhor o pensamento de Bayle sobre o ceticismo. Se esse uso do ceticismocomo uma preparao para a recepo da f feito por um telogo, ento,certamente, Bayle no endossa esse uso, porque a perspectiva teolgica no a perspectiva de Bayle. No h, pois, razo para dizer que Bayle aceita umaespcie de fidesmo ctico. A suposta concluso fidesta da observao B do

    artigo Pirro, que anuncia a observao C, explicitamente atribuda a umsbio telogo (Pirro B, p. 733b).Parece-me que Bayle aplica, na crucial observao C do artigo Pirro,

    o princpio ctico de argumentar de ambos os lados de uma questo a fim desuspender o juzo, somente relatando o que dogmticos propuseram. Bayle,assim, abstm-se de emitir um juzo, guardando-se cuidadosamente de daruma opinio. Em nenhum momento, Bayle fala em nome prprio, mas somentecede a palavra a outros filsofos. Em primeiro lugar, ele cede a palavra quelesfilsofos que defendem que o ceticismo um caminho para a f, citando La

    Mothe Le Vayer, Pascal e, finalmente, Calvino. Aps essa sucesso de citaesem favor de um fidesmo ctico, Bayle imediatamente comea um discurso emsentido contrrio. Seja como for, existem pessoas hbeis que sustentam quenada mais oposto religio que o pirronismo (Pirro C, p. 734a). Bayle,ento, cita La Placette, Vossius e, talvez no sem ironia, novamente o prprioLe Vayer. H um perfeito equilbrio entre os dois lados, que contam, cada um,com trs autoridades. Se Bayle no adota uma posio ctica, patente que apratica de maneira fiel, suspendendo o juzo, dada a igualdade de foras dos

  • 7/23/2019 Ceticismo - Bayle

    21/23

    269BAYLE E O CETICISMO ANTIGO

    dois lados da questo. Conclui-se, dessa maneira, que Bayle no endossa umfidesmo ctico, mas apenas o relata como uma posio possvel.

    Se houver opinio de Bayle a esse respeito, deveremos encontr-lanuma comparao dos dois lados da questo. Nas frases que introduzem as

    observaes B e C h uma oposio, introduzida por um mas: de um lado,afirma-se que o pirronismo contrrio religio, mas, de outro, pode serusado a favor da f. Ora, o texto deixa bem clara a preferncia de Bayle pelacontrariedade entre pirronismo e religio, pois com razo que o pirronismo detestado pelas escolas de teologia, mas, quanto ao seu uso pela teologia,Bayle somente se limita a dizer que esse uso possvel.

    O ponto controverso e importante, merecendo uma digresso maislonga. Numa passagem aparentemente fidesta, Bayle diz que

    Os telogos no devem ter vergonha de confessar que no podem descer arena comesses contendores [os pirrnicos] e que eles no querem expor a um tal confronto asverdades evanglicas (...) Agradou ao Pai, ao Filho e ao Esprito Santo, devem dizeros cristos, nos conduzir pelo caminho da F, e no pelo caminho da cincia ou dadisputa. Eles so nossos doutores e diretores, no poderamos nos desencaminharsobre esses guias, e a razo mesma nos ordena a preferi-los sua direo (item II,p. 642).

    A prpria razo sugeriria que devemos abandon-la em favor da f. Mastodo esse discurso feito em nome dos telogos e dos cristos, isto , daqueles

    que se submetem ao Tribunal da Revelao, e no ao Tribunal da Filosofia.Em suma, todo o esclarecimento no tem outra finalidade seno a de mostrarque, para quem j aderiu ao cristianismo, o pirronismo no deve ser temido.

    Aps discutir a via da autoridade e a via do exame, rejeitando ambas eafirmando que o sr. Nicolle somente fomentou a irresoluo dos espritosindiferentes e deu novos pretextos aos cticos sobre religio (Nicolle C, p.504a), Bayle parece apelar para uma concluso fidesta.

    Mas, como as coisas tm duas faces, h alguma esperana que os espritos bem

    formados (bien tournez) aproveitaro de uma controvrsia to deplorvel. Elesaprendero a conter nos limites a mxima de Descartes com relao suspensodo juzo. Eles aprendero a desconfiar das luzes naturais e a recorrer conduta doEsprito de Deus, visto que nossa razo to imperfeita. Eles aprendero quanto necessrio agarrar-se doutrina da graa e quanto nossa humildade agrada a Deus,visto que ele nos quis mortificar at na posse de suas verdades, no tendo permitidoque as discernssemos pelas vias de um exame filosfico, pelas quais chegamos cincia de certas coisas (Nicolle C, p. 504a).

  • 7/23/2019 Ceticismo - Bayle

    22/23

    Plnio Junqueira Smith270

    Salta aos olhos, nessa formulao, que Bayle atribui o fidesmo aos esp-ritos bem formados e que eles aprendero uma srie de coisas. Em nenhummomento Bayle se inclui entre esses espritos bem formados.

    A passagem que se encontra no artigo Zeno parece comprometer Bay-

    le com o fidesmo, j que ele fala em primeira pessoa. Estou mesmo persua-dido de que a exposio desses argumentos pode ter grandes usos com relao religio, e digo a respeito das dificuldades do movimento o que disse o sr.Nicole sobre aquelas da divisibilidade infinita (Zeno G, fim). Aps citarum trecho de Nicole, Bayle remete o leitor observao C do artigo Pirro.Bayle, portanto, se compromete somente com o que se diz em Pirro C: queo ceticismopode ter um uso religioso. Uma comparao mais minuciosa dosdois textos pode revelar um resultado surpreendente. Nicole diz que con-trrio razo se recusar a crer nos efeitos maravilhosos da potncia infinita deDeus, que de si mesma incompreensvel, por essa razo que nosso espritono os pode conhecer (Zeno G, fim). Assim, Nicole traa a distino en-tre um absoluto incompreensvel e a razo humana, falvel e limitada. Ora, precisamente a concesso dessa distino por parte do telogo que reforavao ceticismo num contexto cristo, tornando-o ainda mais fabuloso do que naantiguidade. Portanto, Bayle sustenta precisamente a idia oposta: em vez de oceticismo conduzir religio, era a religio que conduzia ao ceticismo! Longede constituir uma defesa contra o ceticismo, a resposta de Nicole o passo

    decisivo para dar a vitria ao ctico.Assim, podemos ver que, em diferentes contextos, Bayle recorre a di-ferentes expedientes para afastar-se do fidesmo e de um uso teolgico doceticismo. Um deles o de restringir o fidesmo a uma perspectiva teolgica,que claramente no a de Bayle. Pode-se ainda dizer que, do ponto de vistafilosfico, Bayle afirma categoricamente que o ceticismo um dos piores ini-migos da religio. Outro expediente o de equilibrar as opinies sobre a rela-o entre ceticismo e religio sem tomar nenhum partido. Essa interpretao,para ter uma validade mais ampla, deveria passar pelo crivo de muitas outras

    passagens aparentemente fidestas, pois me limitei aos artigos do Dicionrioque lidam direta e extensamente com o ceticismo antigo.23

    23 Agradeo a Jos Raimundo de Maia Neto, Paulo Jonas de Lima Piva e Ceclia Almeida.

  • 7/23/2019 Ceticismo - Bayle

    23/23

    271BAYLE E O CETICISMO ANTIGO

    Referncias Bibliogrficas

    BAYLE, P.Pierre Bayle:tmoin et conscience de son temps. Paris: Honor Cham-pion, 2001.______.Pour une histoire critique de la philosophie:choix darticles philosophiques

    duDictionnaire historique et critique. Paris: Honor Champion, 2001.______. Dictionnaire historique et critique. 5e ed. Amsterdam, Leyde, La Haye,Utrecht: [s.n.], 1740. 4 v. (Disponvel em: .)BRAHAMI, F. Le travail du scepticisme. Montaigne, Bayle et Hume. Paris: PUF,2002.DELPLA, I.; ROBERT, Ph. De.La raison corrosive: tudes sur la pense critique dePierre Bayle. Paris: Honor Champion, 2003.DELPLA, I. Le projet dun dictionnaire: Bayle et le principe de charit. In: BOST,

    H; ROBERT, Ph. De. (Ed.).Pierre Bayle, citoyen du monde: de lenfant du Carla lauteur duDictionnaire. Paris: Honor Champion, 1999.LABROUSSE, E.Pierre Bayle: htrodoxie et rigorisme. Paris: Albin Michel, 1996.LEITE, P. K. Ceticismo e idealismo em Pierre Bayle. Kriterion, Belo Horizonte, n.93, p. 89-105, jan./jun. 1996.LENNON, Th. What kind of a skeptic was Bayle? Midwest Studies in Philosophy, v.26, p. 258-279, 2002.MAIA NETO, J. R. O ceticismo de Bayle.Kriterion, Belo Horizonte, n. 93, p. 77-88,

    jan./ jun. 1996.______. Ceticismo e crena no sculo XVII.Manuscrito, v. 28, n.1, p. 9-36, 2005.______. O silncio dos cticos. In: NOVAES, A. (Ed.). O silncio dos intelectuais.So Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 273-292.MORI, G.Bayle philosophe. Paris: Honor Champion, 1999.______. Scepticisme ancien et moderne chez Bayle. Libertinage et Philosophie au

    XVIIe Sicle, Saint-tienne, n. 7, p. 271-290, 2003.PAGANINI, G. Scepticisme, vracit et omnipotence divine laube des lumires.In: BERNIER, M.-A.; CHARLES, S. (Org.). Scepticisme et modernit. Saint-tienne:Universit de Saint-tienne, 2005. p. 25-64.POPKIN, R. Pierre Bayles place in the 17thcentury Scepticism. In: DIBON, P. (Ed.).

    Pierre Bayle, le philosophe de Rotterdam. Amsterdam: Elsevier, 1959.______. Berkeley and pyrrhonism. In: WATSON, R. A.; FORCE, J. E. (Ed.). Thehigh road to pyrrhonism. Indianapolis: Hackett, 1993.