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Grupo RELLIBRA - "Relações Linguísticas e Literárias Brasil-Alemanha" |
www.rellibra.com.br
Credenciado na USP e no CNPq
Coordenação Geral: Profa. Dra. Celeste Ribeiro de Sousa
CHARLOTTE WOLLERMANN FISCHER
1902-1987
(Celeste Ribeiro de Sousa) 2013
RECORDAÇÕES DE ANTANHO*
Charlotte Wollermann Fischer
O "doutor da floresta"
Isto passou-se há muitos anos, quando os médicos eram raros
aqui no interior, e o "doutor da floresta“ era famoso.
Por que as aspas?
Meus caros, este homem exemplar, naturalmente, não era
nenhum doutor; ele plantava milho e mandioca e engordava seus
porcos, exatamente como todos os outros colonos. Ele era um sujeito
alto e corpulento, de mãos calejadas, as unhas nem sempre limpas.
Contudo, que mãos boas, confiáveis e sensíveis ele tinha! E que
expressão bondosa e amiga em seus olhos cinzentos! Essas mãos
boas e esses olhos sábios, juntamente com o desejo e a vontade
ardentes de ajudar os sofridos, de amenizar as dores, era isso que
fazia dele o "doutor da floresta". Com os anos, adquirira uma grande
habilidade. Se uma parteira tinha pela frente um caso especialmente
* Tradução de Celeste Ribeiro de Sousa. Fischer, Charlotte Wollermann. Erinnerungen aus alter Zeit. In: Serra-Post-Kalender, Ijuí, Ulrich Löw, 1962, p.193-209.
2
difícil, então o "doutor da floresta“ era chamado e tudo terminava
mais uma vez bem.
Quando havia pessoas doentes, elas dirigiam-se a ele, que, em
sua casa espaçosa, sempre mantinha vários cômodos e um
verdadeiro serviço hospitalar preparados para doentes. Apêndices
inflamadas eram por ele operadas com êxito absoluto e a sua mais
brilhante atuação ocorreu quando operou uma pobre mulher,
tirando-lhe do corpo um tumor de vários quilos.
A operação foi bem sucedida e a mulher recuperou a saúde. O
tumor, conservado em álcool, foi mandado pelo "doutor da floresta“,
juntamente com um detalhado relatório da operação, à Faculdade de
Medicina da Universidade da capital. Os professores devem ter
ficado espantados com o trabalho bem sucedido, com a coragem do
cirurgião autodidata, assim como também com sua ortografia. E,
como naqueles tempos, as pessoas ainda eram humanamente
generosas e muito menos burocráticas do que hoje, a Faculdade
enviou ao homem da floresta uma grande e solene carta de
reconhecimento pelo excelente desempenho. Esta carta, emoldurada
com vidro, foi pendurada na parede do "quarto do bem“ e, ali, ficou
durante toda a sua vida como o seu mais precioso tesouro.
xxXxx
Então, num belo e luminoso domingo, chegou um carro, que
parou em frente à casa espaçosa. Era o venerável Ford marrom da
Companhia de Colonização e quem de lá desceu não era outro senão
o diretor da colônia, que queria mostrar a duas visitas importantes
3
da capital da República vizinha o trabalho de colonização de sua
Companhia.
O diretor, a maioria das vezes chamado de "paizinho" –
Väterchen – pelos colonos, apareceu como sempre de camisa caqui,
calças de montar, botas de cano alto e chapéu colonial na cabeça; no
lugar da gravata, um lenço de seda dobrado em triângulo, preso por
uma fivela de ouro, enfeitada com uma linda ametista. Uma das
visitas era um clérigo, um senhor já velho, corpulento, muito
animado, que, debaixo do sol abrasador, quase derretia sob a sotaina
preta. Vinha em companhia de um jovem médico alemão, trajando
terno tropical imaculadamente branco, com gravata e chapéu
colonial, extraordinariamente elegante e – um pouco estranhamente
deslocado em ambiente tão primitivo. Trabalhava há vários anos no
"Hospital Alemão", o hospital mais bem equipado da grande capital
do país vizinho.
Curioso, o jovem doutor X não parava de olhar em torno de si.
Percebeu a aproximação do bom "doutor da floresta", vindo da parte
traseira da casa, para cumprimentar as visitas, trajando apenas
calças, camisa e botas de cano curto, as mãos sujas de terra.
O diretor da colônia divertia-se com a apresentação dos dois
"colegas". Em seguida, o "hospital" foi visitado. – Um barracão feito
de tábuas rústicas – era tudo! A "sala de operações" – meu bom
Deus! – um cômodo com uma geladeira simples encostada à parede,
onde havia toda a espécie de instrumentos cirúrgicos, facas,
tesouras, pinças, tigelas, copos, ataduras e outros materiais, tudo
simpatica e engraçadamente desarrumado.
"Como é meu caro doutor Z? O senhor vai querer realizar aqui
uma operação? " provocou o diretor da colônia.
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O jovem médico abanou a cabeça sorrindo e disse, ficando
sério:
"Nestas condições, pessoas como eu, que vêm da cidade grande
e estão habituadas a ter ao seu dispor as mais modernas conquistas
da ciência, ficariam simplesmente desamparadas - perplexas. Eu não
me atreveria a fazer aqui nem a mais simples, a menor intervenção!
Eu nunca teria a coragem de assumir uma tão grande
responsabilidade sem uma equipe de colaboradores, assistentes,
anestesistas, enfermeiras, etc. E vou-lhe confessar honestamente,
caro "colega" e, com isso, voltou-se amigavel e amavelmente para o
"doutor da floresta", "que admiro de todo coração a sua coragem,
sua responsabilidade benfazeja e, não menos, seu grande sucesso."
"Não, senhor, oh não", respondeu o "doutor da floresta", seco,
"as coisas não são exatamente assim!" Coragem e responsabilidade e
tudo o mais, - é bom e bonito. Basta não pensar muito nisso!"
"Mas o que fazer, quando aqui chega um pobretão, lívido de
dor e sofrimento e não há ninguém, ninguém, por estas redondezas
que possa ajudar? E, então, o sujeito geme „ajude-me, ajude-me‟! –
como é que eu poderia dizer „não‟, se eu sei que, aqui, só eu posso
ajudar, porque não há mais ninguém. E, então, eu ajudo mesmo, da
melhor maneira que posso."
"Claro, claro", disse o diretor da colônia, se nós não tivéssemos
o nosso „doutor da floresta‟, - estaríamos perdidos... "
E, quando o uniforme caqui verde acinzentado, a sotaina preta
e o elegante terno tropical imaculadamente branco novamente se
acomodaram no velho Ford, prevaleceu entre eles um longo silêncio
durante alguns quilômetros. A certa altura, ouviu-se a sotaina preta:
"Como faz bem voltar a encontrar um ser humano..."
5
xxXxx
Mas eu gostaria de contar a história do amor ao próximo. Foi
assim:
Um certo dia, apareceu um jovem, querendo levar o “Doutor
da floresta” para examinar sua esposa, gravemente enferma. O
homem era um imigrante recente, que tinha chegado ao Brasil há
muito pouco tempo junto com um grupo de patrícios. A
nacionalidade dessa gente não vem ao caso, o mais importante para
uma melhor compreensão da história é saber que esses colonos
ainda não se tinham adaptado bem às suas novas circunstâncias.
Eles ainda não sabiam que, aqui na região, de acordo com uma lei
não escrita, em casos de doença, um ajuda o outro na medida do
possível. Eles eram econômicos além da medida, quer dizer, para os
parâmetros sul-americanos, eles eram mesmo avaros. Pensavam que
tinham ótimas relações com o senhor Deus; mas sua humanidade
não era lá dessas coisas.
Depois de ter trocado as pantufas cômodas pelas botas de
montar, o “Doutor da floresta” arreou seu cavalo, encheu os alforjes
com várias coisas, sacou o grande chapéu de feltro e o chicote pesado
e seguiu a cavalo o jovem, que o precedia a pé. O colono estava, sim,
como foi dito, há pouco tempo na terra, e ainda não tinha
conseguido arrumar um cavalo. Depois de uma boa meia hora de
caminho, chegaram à cabana do camponês. Lá dentro estava a jovem
deitada na grande cama de casal e o “Doutor da floresta” percebeu,
logo à primeira vista, que a coisa era grave. Era preciso providenciar
determinados medicamentos tão rápido quanto possível, injeções
para o coração e isto e aquilo, e tudo isso só havia na farmácia da
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cidadezinha, e a cidadezinha ficava a vários quilômetros de
distância.
“Vá até a casa de seu irmão, aqui perto, peça-lhe um cavalo
emprestado e corra o mais rápido que puder até a farmácia; galope,
não poupe o cavalo, pois tenho pressa, você entende?”
O jovem até tropeçou ao dirigir-se imediatamente para a porta.
Mas nem bem tinham passado cinco minutos e ele já estava de volta
alvoroçado, quase chorando.
“Meu irmão recusa-se a me emprestar o cavalo, porque eu não
posso pagar. Aonde é que eu vou arranjar agora vinte mil réis para
pagar o cavalo!”
“O que você está dizendo? O seu irmão não lhe cede o cavalo
sem pagamento? Aguarde-me aqui!”
Num pulo, apanhou o chapéu e o chicote, e abalou dali. Na
porta ainda se virou.
“Você fica aqui com sua mulher até eu voltar!”
E, antes que o rapaz pudesse dizer ou perguntar alguma coisa,
já estava longe.
Na casa vizinha, o outro camponês estava sozinho na cozinha.
A esposa tinha saído com as crianças para o campo, para cortar
forragem; já era tardinha, logo era preciso dar comida aos animais e
ordenhar.
Uma sombra enorme invadiu o cômodo, assim que a figura
maciça do “Doutor da floresta” apareceu na porta. O camponês teve
um sobressalto, alarmou-se e, rápido, largou a cuia do mate.
“O que é que quer?” perguntou com voz rouca.
O invasor não disse absolutamente nada, apenas moveu
significativamente os olhos do pesado chicote em sua mão para o
morador assustado.
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“Vai me bater? O sr. não pode me bater! E por quê, afinal? – o
cavalo custa vinte mil réis, se o Michael o quiser levar emprestado. –
O que o sr. tem com isso? Eu sou tão pobre quanto o meu irmão e,
além disso, ainda tenho três crianças pequenas para criar! – Cada
um por si e Deus por todos nós! – Se o Michael tivesse comprado um
cavalo logo que chegou, em vez de arrumar isto e aquilo, - agora não
precisaria de pedir nenhum emprestado: ajuda-te a ti mesmo e Deus
te ajudará!”
O “Doutor da floresta” mantinha-se tão tranquilo quanto antes
e só se percebia que estava furioso pela pequena ruga entre as
sobrancelhas.
“Cale a boca, senão...” murmurou ele baixinho por entre os
dentes, levantando um pouco chicote.
“Está me ameaçando? Está me ameaçando na minha própria
casa? Eu vou denunciá-lo, eu vou acusá-lo...” a voz do camponês fica
ofegante de comoção e de raiva.
“E onde você tem as testemunhas? Que eu saiba, estamos os
dois completamente sozinhos...”
“Deus é minha testemunha...”
“Cale a boca, já disse”, ouviu-se da porta a voz cortante. Deixe
o bom Deus fora do jogo, grande porco“. Aqui, a coisa é entre
pessoas e, agora, você vai ter que aprender na prática o amor ao
próximo!”
Nisso, largou o chicote, que balançava no pulso preso pela
enlaçadura. Mexeu no largo cinto de couro, afastou-o, e, de repente,
o camponês vê um cano de pistola apontado para ele.
A raiva desaparece, dando lugar apenas ao medo desamparado
nu e cru, que quase lhe estrangula a garganta.
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„Levante-se!“ouviu-se baixinho a ordem perigosa vinda da
porta.
De joelhos moles, o rosto lívido e esverdeado, o homem
levanta-se. E, querendo ou não, é obrigado a ir buscar o cavalo, a
montá-lo sem sela e sem freio, só com o cabresto; ele mesmo em
cabelo e descalço. Mas como o “Doutor da floresta” diz que há
urgência, os dois saem a galope ao cair da noite em direção à
farmácia, o camponês na frente com uma sensação gelada entre as
omoplatas, o “Doutor da floresta” colado nele com a pistola
engatilhada.
Retornam da mesma maneira e, se algumas pessoas não os
tivessem visto passar, certamente ninguém teria percebido este
singular aprendizado.
Os medicamentos ainda chegaram a tempo, a jovem esposa
pode ser salva. Mas quantos dias o aluno involuntário levou para
esfriar o traseiro flagelado nunca se soube e, claro, também nunca
ninguém perguntou.
O filósofo
Quem teria sido aquele estranho velho, que decidiu passar a
vida totalmente isolado no meio da floresta? Qual seria era o seu
nome? Que destino atroz o teria lavado àquela solidão? Ninguém o
sabe e ninguém o saberá, agora, que já está morto há tantos anos.
Eu nunca teria ouvido falar dele, não tivesse o acaso
arquitetado que, um dia, eu haveria de precisar mudar nossos livros;
nós tínhamos aumentado a nossa casinha branca em mais um
quarto e, por isso, a biblioteca teria de ser acomodada em outro
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cômodo. Zelosamente, arrastamos montes de livros de cá para lá
com a ajuda de nossa empregada.
A moça, Eva, era uma pessoa extraordinariamente boa,
prestimosa, dedicada, com senso de humor e grande inteligência.
Era filha de um dirigente da colônia, um colono muito capaz, e de
uma brasileira-alemã, oriunda das assim chamadas “antigas
colônias” no sul de nosso Estado. A família tinha vivido durante
muitos anos nas antigas colônias, antes de decidir, um dia, vender
todos os haveres e estabelecer-se no norte do Estado, na floresta, na
zona recentemente demarcada. Foi assim que compraram terras na
nossa região, às margens do rio grande, arroteando a floresta e
criando para si uma bela e boa propriedade rural. Eva ainda era
pequena, quando a família deixou as terras antigas, mal tinha
aprendido o ABC na escola. Mas isso também era tudo o que ela
podia aprender na escola. Pois durante os primeiros anos na nova
colônia ainda não havia escola nas proximidades alcançáveis e,
quando, por fim, a primeira escola foi inaugurada, Eva já era adulta
e, naturalmente, grande demais para começar tudo de novo. Por
isso, teve de se contentar com o pouco, com o ABC da infância. Mas,
como já disse, Eva era viva e esperta. E, onde quer que encontrasse
um pedaço de papel impresso ou escrito, um anuário velho, um livro
escolar dos irmãos menores, ela começava a soletrar e a ler com
grande persistência, até desvendar tudo. E foi assim que ela
aprendeu não só a falar português e alemão com fluência, mas
também a ler os dois idiomas quase fluentemente.
Eu tinha acabado de chegar ao cômodo com uma pilha alta de
livros no braço e, querendo depositar minha carga sobre a mesa, a
resma balançou um pouco e dois volumes caíram no chão. Enquanto
procurava equilibrar com rapidez e segurança os restantes, Eva
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chegou e amparou os livros e, como era seu costume, foi lendo os
títulos e os nomes dos autores. Havia um volume de Kant e um
volume de Schopenhauer.
“Estes nomes eu já li”, disse ela, enquanto me passava os
livros.
“Muito bem, Eva, isso é deveras interessante!
Onde é que há aqui, num raio de cinquenta quilômetros, um
alemão que leia os filósofos e, mais ainda, que possua suas obras?” -
Foi o que me passou pela cabeça. Além de alguns anuários antigos,
do imprescindível e conhecido livro de medicina, e da Bíblia, assim
como de um montão de velhas revistas ilustradas lidas e relidas, eu
mal tinha visto livros em casas alemãs. Curiosa, perguntei:
“Em que casa, com quem você os viu?”
Um sorriso travesso estendeu-se pelo rosto da moça.
“No meio da floresta, numa árvore oca!” disse ela.
“O que você está dizendo, garota! Desde quando há árvores
assim na floresta?”
Ela riu e, depois, contou.
Quando tinham viajado da antiga colônia no sul do Estado à
procura das terras novas rumo ao norte, assim começou ela sua
história, não haviam encontrado de imediato o local, onde sua
família hoje mora. Primeiro tinham se estabelecido durante um
tempo, talvez um ano ou mais, às margens de um afluente do grande
rio, onde tinham morado numa casinha minúscula num terreno
alugado e descansado da longa e penosa jornada.
Sim, a viagem fora longa e custosa, pois haviam sido
obrigados a percorrer a maior parte do caminho a pé, já que o carro
estava totalmente carregado com utensílios domésticos, camas,
caixas e caixotes. Os cavalos já estavam exaustos de puxar através de
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estradas ruins. A mãe com o bebê e os dois irmãos menores tinham
que ir de qualquer modo no carro, mas o pai com as crianças
maiores vieram a pé.
Pois bem, a partir da casinha alugada, onde a família, assim
como os cavalos e cães, por fim puderam, de fato, descansar da
fadiga da longa jornada, o pai pode procurar com toda a
tranquilidade terras boas. Mas demorou quase um ano, até ter
conseguido um terreno conveniente e até ter construído a primeira
choupana, abrigo de primeira necessidade, para a família. Durante
esse tempo, enquanto o pai ficava muito tempo fora, procurando
terras na companhia do irmão mais velho, e enquanto a mãe, com a
ajuda da filha mais velha, tomava conta da casa primitivíssima e
provisória, as crianças menores gozavam de inteira liberdade,
levando uma vida fantástica. Eram uma verdadeira horda, contava
Eva, pois as crianças da vizinhança tinham aparecido e feito amizade
rapidamente. Seus passeios de aventuras estendiam-se pelas
margens da correnteza, para cima e para baixo, dizia ela, chegando
mesmo até a desembocadura no rio grande.
Mas havia um lugar na floresta, que as crianças consideravam
misterioso. A gurizada da vizinhança havia mesmo contado que
aquele local, em tempos remotos, abrigara um acampamento
indígena e, assim, nos dias de hoje, nem era mais realmente
perigoso. Deveria haver ainda alguém por ali, pensava ela, por que,
então, em dias sem vento, numa determinada curva do rio, se via
subir de lá uma fumaça branca e espessa? Talvez fosse – e, nesse
momento, ouviam-se palavras murmuradas de modo alvoroçado,
que Eva e seus irmãos não entendiam, mas que, nem por isso, lhes
causavam menos medo e susto.
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„Lobisomem“1 murmuravam as crianças.
„Boitatá!“2 cochichavam elas.
Desta forma, por muito tempo, todas elas teriam evitado
aquele lugar misterioso da floresta.
Mas, como eram crianças – ou será que só as crianças são
assim? - , um dia, a curiosidade e a sede de saber venceram o medo e
a superstição. As crianças irromperam pelo matagal até a clareira
mal afamada. E isso nem foi difícil, pois encontraram uma vereda
estreita que, saindo da margem do rio, terminava lá.
O que elas acharam? Eva disse que todas ficaram pasmas de
assombro e que nenhuma delas sequer pensou em fugir. Depararam-
se com uma árvore gigantesca e grossa, cujo tronco, embaixo, era
oco devido à muita antiguidade. Blocos rochosos amontoavam-se
por detrás, oferecendo seguramente algum abrigo contra as
intempéries. Com estas coisas, fornecidas pela natureza, e mais
alguns galhos e pedras havia surgido uma habitação primitiva, mais
caverna do que cabana. O morador também estava lá: um homem
velho, velho, de cabelo e barba emaranhados. Por entre as pedras
ardia um fogozinho e, em cima, havia uma chaleira de ferro. O velho
estava sentado perto do fogo sobre um troco de árvore derrubado e
lia um livro.
“Oh! Eva”, interrompi, “ele viu vocês, crianças? Ele falou com
vocês?”
- Sim, ele havia acenado para as crianças, que ali
permaneciam num pasmo absoluto, convidando-as a entrar, e
conversou com elas de modo muito cordial: falou em alemão.
1 A palavra, no original alemão, aparece em português e é traduzida em nota de rodapé por
“Werwolf”. 2 A palavra, no original alemão, aparece em português e é traduzida e explicada em nota de rodapé por “Schlange mit Feuer-Augen, Personifizierung des Irrlichts”.
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- “Você ainda se lembra, Eva”, perguntei, “como soava a
sua fala, que espécie de alemão ele falava?”
De novo, a moça sorriu-me com olhar travesso, enquanto
respondia:
“Ele falava – como a senhora.”
Bom, isso significa: alto alemão.
“E você é capaz de se recordar ainda, Eva, daquilo que ele disse
a vocês, crianças?”
Ele tinha perguntado pelos seus nomes, pelos nomes de seus
pais, de onde elas eram e onde moravam. E com as crianças
menores, que eram vizinhas brasileiras, ele falou em português.
No começo, o velho magro de barbas grandes e desgrenhadas
ainda lhes fora estranho. Mas isso elas logo esqueceriam, quando ele
principiou a lhes contar belas histórias. A partir daí, o bando todo
das crianças começara a fazer, quase diariamente, peregrinação ao
velho da floresta, para ouvir suas histórias, levando-lhe pequenos
frutos e fruta em geral, bananas, laranjas, o que havia. Com o
instinto infalível, que as crianças compartilham com os animais,
haviam descoberto, de forma grotesca num mundo bizarro, o ser
humano bom, amistoso, cortês. Às vezes, entre elas, com certeza,
chamavam-no ainda de “lobisomem”, mas isso agora não passava de
brincadeira e de piada. De fato, gostavam dele e mostravam-lhe de
modo desajeitado seu afeto infantil.
“Mas o seu nome, Eva? Como se chamava o pobre sujeito?
Quem era ele?” Elas não sabiam. Ele nunca o dissera. Para as
crianças, ele ficou sendo “o velho do mato” – “der Alte aus dem
Wald”, e quando a ele se dirigiam, elas chamavam-no de “vovô” –
“Grossväterchen”.
14
Esta amizade, contou Eva, durou uma parte do verão e todo o
outono. Porém, quando o inverno chegou e o gelado Minuano, o
vento do sul, foi enviado da Antártida, o velho adoeceu. Ficou
prostrado, febril e deplorável na sua mísera habitação e, se as
crianças não lhe tivessem levado diariamente comida boa e quente,
ele teria morrido miseravelmente. Ainda se arrastou durante todo o
inverno, a doença, a febre e a tosse não mais o deixaram. Uma
família ou outra, os pais de seus pequenos amigos, quiseram acolhê-
lo em casa, para melhor poder cuidar dele, mas o velho não aceitou
essa amabilidade. Tornar-se uma carga para estranhos de bom
coração? Ter de receber esmolas? Não, nunca. Preferível permanecer
sozinho na floresta...
Assim passou o inverno e veio a primavera. E, então, num dia
esplendoroso de risonho sol dourado e quente no azul profundo do
céu, o fogo apagou-se entre as pedras e os pequenos encontraram
seu velho amigo morto e frio na caverna, envolto por enxames de
moscas, que zuniam em torno dele.
Correram para casa o mais rápido que os pequenos pés
permitiam e os pais vieram, e fizeram um caixão com tábuas velhas e
enterraram o velho na clareira à sombra da árvore.
“E no buraco da árvore encontraram um caixote cheio de
livros. Alguns deles ainda ficaram durante muito tempo conosco, em
casa, numa prateleira sob o sótão, - eu podia ler seus nomes com
facilidade. Porém, não sei mais onde foram parar com o tempo”,
disse Eva.
„Mas não havia outros papéis, documentos? O homem não
tinha família, parentes, amigos, que pudessem ser avisados?”
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Nada, tinha sido a opinião do pai de Eva; parecia que ele tinha
destruído tudo propositalmente, para apagar todos os vestígios de
sua existência.
Fiquei tocada com a história de Eva. Tudo isso já tinha passado
há uns bons quarenta anos, mas que espécie de segredo teria levado
esse patrício alemão para o túmulo?
Será que ele era um desiludido, um desesperado, querendo
esconder uma vida fracassada?
Será que ele tinha sido abandonado por todos e ocultava sua
amargura na solidão da floresta?
Ou será que era um sábio?
Um filósofo, restituído ao último degrau da simplicidade, um
asceta, recolhido ao silêncio de seu âmago? Será que, à sua maneira,
havia sido feliz, refletindo, sem ser perturbado, sobre escritos
filosóficos, guardados em seu esconderijo fantástico? Será que era
uma espécie de Diógenes do século XX, numa árvore oca do Brasil?
Nós não sabemos, nem nunca saberemos. Com certeza, hoje,
ninguém mais atinaria com a clareira ou com o túmulo. E mesmo a
árvore oca deve ter sido abatida há muito tempo.
Todavia, meu defunto patrício alemão, tu não estás esquecido,
apesar de tudo: uma jovem dedicada, um dia, arrancou de sua
memória tua imagem empalidecida e, em sua história, deu-lhe nova
vida. E eu, agora, com minha pena tentei tecer um pequeno, um
modesto raminho de pervinca em volta de tua imagem desbotada.
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Cavaleiro de Raawen, dos ...não sei quantos hussardos
É bom e útil ter um “hobby”, meus queridos.
Dizer isso é uma trivialidade, eu sei, e também não é nada de
novo. Desde que me conheço por gente, as pessoas sempre tiveram
suas predileções, quer criando canários, ou cuidando de coloridos
peixes exóticos num aquário, ou fazendo coleções de selos, de
primeiras edições, de fotos de estrelas de cinema ou de xícaras de
café. De qualquer modo, é um divertimento, por assim dizer, fazer
aprovisionamentos, manter uma boa distância da monotonia
cotidiana, cultivar diligente e carinhosamente uma área de interesse,
que desvia nossos pensamentos do trivial para algo belo, agradável.
– No que me diz respeito, na minha antiga pátria, eu tinha o
costume de manter sempre as janelas do meu quarto cheias de
cactos, que retribuíam meus cuidados, oferecendo-me flores
magníficas e luminosas. E, aqui, no Brasil, - como poderia ser
diferente? – logo me deixei conquistar por orquídeas. Aqui, elas não
são um luxo, quando nos contentamos com as espécies nativas das
nossas florestas. E, nelas, há espécies fascinantes!
Assim que o carpinteiro terminou nossa casa de madeira, as
paredes foram caiadas de branco, as guarnições e as portadas das
janelas foram pintadas de verde e o telhado de zinco colorido de
vermelho, e logo também se providenciou o jardim em torno da casa,
que ficou a cargo do Sr. Schmidt, o velho jardineiro. Quando o
jardim ficou pronto, com uma sebe de madressilva cobrindo toda a
cerca, com alguns alegretes de flores e agrupamentos de arbustos e
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plantas de folhas muito decorativas espalhados pelo gramado recém-
plantado, o carpinteiro montou bem junto da nogueira um
caramanchão, e este caramanchão foi destinado às minhas
orquídeas. Não havia telhado, mas logo as gavinhas e as folhas do
maracujá se espraiaram verde escuras e viçosas, formando a mais
linda sombra que se poderia desejar. E, então, o Sr. Schmidt deu
início à coleta e à plantação de minhas orquídeas.
O velho jardineiro fez pequenos cestos com galhos de árvores e
um pouco de arame, recobertos de musgo e recheados com um
pouco de carvão vegetal e pedaços de madeira apodrecida. E, ali,
enterrou as orquídeas e as bromélias, que colhera na floresta para
mim.
E lá estavam os cestinhos todos enfileirados um ao lado do
outro como se estivessem numa parada. E, enquanto o dono da casa
pintava números em plaquetas de zinco com um pincel e tinta a óleo
preta, e o jardineiro as afixava uma a uma em cada cestinho, eu
permanecia sentada à mesa, de pena em punho, em frente a uma
grande folha de papel, escrevendo os nomes das orquídeas para cada
um dos cestinhos. O Sr. Schmidt ditava.
Todos nós estávamos afundados e compenetrados no nosso
trabalho. É justamente aqui que reside o belo num “hobby”, ou seja,
a possibilidade de se aprender um monte de coisas interessantes,
para além da grande satisfação desfrutada.
Minha lista era longa e parecia magnífica com todos aqueles
nomes latinos. Eu estava imensamente orgulhosa de tanta sabedoria
botânica, que eu ia colocando em prática, ao pendurar os cestinhos
no caramanchão das orquídeas, enquanto devorava com os olhos
sequiosos a teoria da minha interessante lista.
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A “Oncidium von Raaven” estava lá. Também a “Maxilaria
Oscaria” e a “Laelia Raawenia” e a “Cattleya Bertana”. Com o tempo
também haveria de aprender os nomes, em especial, das favoritas
recém plantadas, quando já as tratasse por tu, e elas me oferecessem
suas flores bizarras de presente. Com um suspiro, deixei a lista de
lado.
Eva acabara de chamar para o almoço, os empregados
chegavam da plantação e o Sr. Schmidt ia com eles até o riacho para
se lavarem. E, então, o grupo inteiro acomodava-se sentado à
sombra da laranjeira-lima, enquanto o dono da casa, no meio deles,
amistosa e muito democraticamente, passava o chimarrão de mão
em mão. Ao levar aos homens a cuia e a chaleira com água fervente,
pude pegar aqui e ali alguns pedaços de conversa, que me fizeram
refletir.
“Bom, como soldados que foram, devem conhecer”, dizia uma
voz familiar.
“Claro, Sr. Doutor, isso eu conheço muito bem”, murmurou o
Sr. Schmidt.
“Onde é que serviu? Em que regimento?”
“Eu estive nos ....não sei quantos hussardos, Sr. Doutor.”
“Mas o regimento dos ....não sei quantos hussardos ficava
„patatipatatá‟, não é verdade? Portanto, serviu „patatipatatá‟?”
“Com certeza, Sr. Doutor, absolutamente correto, „patatipatatá‟
estive lá.”
Estado-servido, servido-estado. Filigranas da nossa língua.
Jargão militar é o que é. Um soldado „serve‟, mas um oficial „está‟
num regimento, todos sabem. Sim, mas o Sr. Schmidt, - por que será
que este gnomo de barba rala e olhos azuis claros, que atravessa os
dias de trabalho, arrastando os tamancos e que, acima de tudo,
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adora cachaça, - por que será que esse aí também „esteve‟ nos ....não
sei quantos hussardos? Será que também foi oficial? É certo que fala
um alemão sem erros, um alemão seleto, algo afetado. Sabe um
montão de nomes latinos da botânica e faz seu trabalho com esmero,
habilidade e bom gosto. De fato, - mas as tenebrosas nuvens de
álcool que o envolvem sempre ... oficial? Bom: Wer weiss? Quem
sabe?”
Aos sábados, o Sr. Schmidt costumava ir para casa. Quer dizer,
ele falava que, no final do sábado, queria ir para casa, pegava o seu
salário e zarpava. Todavia, o pobre diabo, é claro, não conseguia
chegar lá. Como tinha dinheiro no bolso, só atingia o primeiro
boteco da rua, ali ficava a beber cachaça até gastar e deixar correr
pela goela o último tostão. Então, curtia a bebedeira e, na segunda-
feira de manhãzinha lá estava ele; invariavelmente, chegava com
pontualidade ao trabalho.
Mas o Sr. Schmidt tinha uma família que, naturalmente,
contava com o salário do chefe de família. E a família tomou suas
medidas. Lá pelo fim da semana, na quinta ou na sexta-feira, um
jovem esbelto apareceu a cavalo, pedindo para falar com seu pai. –
“É claro, meu rapaz, desça, vou levá-lo até ele.” -
Enquanto caminhávamos em direção ao jardim, fui
observando o jovem a meu lado. Era de estatura mediana, elegante,
cabelos louros e encaracolados, os olhos azuis claros, exatamente
como os do pai. Tinha um rosto bem desenhado, um sorriso sedutor
e cheio de charme. Era notável como se parecia extraordinariamente
com o pai! Ainda agora, mesmo com o semblante do velho devastado
pelo álcool, era bem possível imaginar que, na sua juventude, tenha
tido a aparência exata do filho.
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Mostrei ao jovem onde seu pai trabalhava e retirei-me. Depois
de algum tempo, vi-os conversando com o dono da casa, viu-os
acompanhá-lo ao escritório e, depois de algum pouco tempo, o
jovem foi-se a cavalo e o velho retornou a seu trabalho.
“O que o moço queria?” perguntei.
“Dinheiro, é claro. Tu vês, a família garante-se como pode.
Agora, só sobrou ao velho apenas um único dia de trabalho, para
comprar a bebedeira de domingo. Mas isso também já deveria ser
suficiente.”
“Mas, afinal, o que disse o rapaz? No fim das contas, trata-se
de um assunto delicado, quando o filho é enviado a receber
antecipadamente o salário do pai!”
“Oh, ele disse que queria ir até o moinho buscar farinha e que,
no caminho, lembrou-se que tinha esquecido o dinheiro para pagar
ao moleiro. Então, tinha-se dirigido ao trabalho do pai, para pegar
alguns cobres.”
Rimos os dois. Este “dirigir-se-ao-pai” significava um desvio
de alguns 6 quilômetros do caminho entre a sua casa e o moinho!
A partir daí, a visita do filho à sexta-feira tornou-se um
acontecimento permanente e todos nós nos acostumamos e ficamos
contentes com ele.
Naquela primeira sexta-feira ao entardecer, o nosso vizinho
mais próximo, um alemão-brasileiro veio visitar-nos. Foi recebido,
conforme os costumes aqui da terra, com um chimarrão. Neste
passo, preciso inserir a observação de que uma das características
mais salientes de muitos de nossos vizinhos locais era a curiosidade
indomável, que tudo invadia. Todos sabiam tudo sobre todos e o que
não se sabia com exatidão era perguntado ou também inventado,
conforme o caso.
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Ora, isto deve acontecer igualzinho em todos os cantos da
terra, no sul do Brasil, na Sibéria, no norte da Argentina, na Baviera,
na selva africana, no Canadá e na Austrália. Não demora muito e lá
vem a pergunta esperada.
“O rapaz, que costuma passar a cavalo por aqui e, depois, os
visita, hoje – pareceu-me tão conhecido; não era o rapaz...”
“Certíssimo, vizinho, era o filho do velho.” Esta resposta
prenhe de significados sai assim afável, absolutamente franca,
inocente.
O vizinho contorce-se. Apesar da resposta notável, ele não é
capaz de decidir-se a parar com as perguntas. Ele não consegue, não
consegue! A curiosidade simplesmente não permite.
“O filho de – quem? pergunta ele, como se não tivesse
entendido bem.
E, quando enfim a compreensão se faz, aliviado, abre as
comportas de sua eloquência e despeja tudo o que sabe!
“O velho, um bom trabalhador? É, talvez seja. Mas que velho
beberrão, vizinho! Passa dia e noite lá no boteco perto do barco, sem
sequer ir a casa, o salário da semana, que ganha aqui em sua
residência, torra-o todinho, sem pensar! Vocês não sabiam disso?
Naturalmente, nós sabíamos disso, pois nossos empregados,
sobretudo o Luiz, o capataz, homem bom e honesto, já nos tinham
comunicado o fato há muito tempo.
“Vizinho, o que o Sr. acha que a mulher diz a isso? O Sr.
gostaria de saber o que a mulher dele acha disso, a „Polaca‟, ela é
igual a ele: ele bebe e ela bebe mais ainda! - Isso o Sr. também não
sabia? – Não, contra os filhos não há nada a dizer, realmente, nada.
Sim, exatamente, cinco filhos. São guris trabalhadores. O mais velho,
Oscar é seu nome, é um bom ferreiro, aprendeu o ofício com o nosso
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vizinho lá da outra margem. É verdade, homem capaz! E o segundo
ainda está casado com a não-sei-como-se-chama. Os mais novos só
os vi quando crianças, mas também devem ter crescido com
educação. Em contrapartida, a filha, que se chama Berta, é a cara da
mãe. Há pouco tempo caiu num poço de tão borracha que estava,
dizem por aí! Mas não havia muita água lá dentro, por sorte, e foi
possível tirá-la de lá a tempo! Sim, sim, vizinho, tem razão: como é
que as pessoas podem se arruinar assim! O velho esteve primeiro na
América do Norte, dizem, foi lá que também aprendeu jardinagem.
Como será que veio parar aqui no sul do Brasil? Isso eu não sei, não.
Mas, vizinho, não sabe, não, o que o homem sempre conta, quando
está bêbado? Diz ele que não se chama Schmidt, Karl Schmidt, mas
que é, na verdade, um cavaleiro de Raawen, de um distinto
regimento de cavalaria na Alemanha. Vizinho, realmente: cavaleiro
de Raawen, também não sabia disso?“
Como, entretanto, a água na chaleira havia esfriado, fui até a
cozinha para buscar água quente. A minha cabeça fervilhava de
ideias, a fofoca do nosso respeitável vizinho juntava-se agora de
maneira singular à imagem do bom Schmidt. Então, “Cavaleiro de
Raawen”, não é? E ele tinha „estado‟ nos ....não sei quantos
hussardos, dissera ele. Com certeza, seguramente, ele tinha „estado‟
ali e acolá. E ali e acolá ficavam os ....não sei quantos hussardos,
batia. Mas, meu Deus, o olhinho cachacento, lacrimejante, a
barbicha, o cabelo ralo e desgrenhado, as botas nos pés, o pobre
sujeito miseravelmente degradado... cavaleiro de Raawen. Não,
impossível! Não! E não!
Mas, estando eu de joelhos em frente ao fogão, assoprando as
brasas para fazer o fogo pegar depressa na madeira recém colocada,
de repente, a bela cabeça de seu filho, cheia de caracóis, desenhou-se
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diante de minha mente. E se, em vez de olharmos este mancebo
enfiado em roupas de algodão surradas e remendadas, o
contemplarmos com botas lustrosas, o dólmã por cima dos ombros,
o gorro de pele de urso, adornado com o distintivo, um pouco
inclinado por sobre a cabeça loura, um sorriso nas feições delicadas
e todo o seu charme... É claro que, assim, bem assim, com certeza, o
velho deve ter sido na juventude, - e, também, por que não? Tudo
neste mundo é possível, e, na América do Sul, é preciso parar de se
ficar espantado com trajetórias humanas e destinos excêntricos.
“Cavaleiro de Raawen, dos ... não sei quantos hussardos!”
Como minha fogueira estala e crepita alegremente, nela eu
ouço muito claramente uma pequena melodia. Como era mesmo?
Uma cançãozinha de opereta? Uma dessas canções da moda?
“tenente, tu estiveste nos ...não sei quantos hussardos” soa trocista e
um pouco malicioso. – Pobre criatura, será que fostes isso mesmo?
Bem, o trabalho consciencioso, o bom gosto de jardineiro, o
alemão correto e, ainda por cima, os conhecimentos de botânica – e
estou pensando, com todo o respeito, na minha lista de orquídeas
com os nomes latinos, - por que não poderia se esconder atrás de
todas essas coisas um homem culto, bem educado, ainda que
desviado e afastado do seu caminho?
A água na chaleira começa a gemer, logo estará no ponto.
Dirijo-me ao meu quarto e pego, pensativamente, a famosa lista com
os nomes botânicos, - mas... mas.... o que eu vejo ali? “Oncidium von
Raawen”, “Maxillaria Oscaria”, “Laelia Raawenia”, “Cattleya
Bertana”...
Hum, só agora minha cabeça começa a funcionar direito:
cavaleiro de Raawen, não é? E o mais velho, o ferreiro habilidoso,
chama-se Oscar, e a filha inútil, Berta! Onde está, afinal, a sabedoria
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botânica? Mas... não é que isto quase se parece com uma atrevida
molecagem hussarda, na trilha “não te espantes com nada”? Quando
as pessoas, pretensamente cultas, querem nomes botânicos, nomes
latinos, para suas orquídeas, podem obtê-los, - “mas com certeza, Sr.
Doutor, por que não Sr. Doutor?” – e quando o nosso Latim acaba,
logo passamos a criar rapidamente novos termos “Laelia Raawenia”,
“Cattleya Bertana”. Não é que soam imponentes e realmente
genuínos?
Que outra coisa se poderia fazer a não ser rir às gargalhadas!
Quando retirei a chaleira com a água quente do fogo, para
levá-la à varanda, deixei atrás de mim o fogo crepitando e sorrindo
perversamente, com toda a clareza, eu ouvia a pequena e idiota
melodia: “tenente, tu estiveste nos ...não sei quantos hussardos...”
E o final da canção? O meu hobby com orquídeas permanece
até hoje uma total obra imperfeita. Elas florescem a cada ano nos
seus cestinhos, essas pequenas, misteriosas e fascinantes
inflorescências maravilhosas do Criador. Mas eu não conheço seus
nomes e também não mais me preocupo com isso, depois que joguei
no fogo aquela primeira lista.
E o velho jardineiro já morreu há anos. Faleceu em delirium,
foi o que nos contaram. Não sabíamos de sua morte, e como
poderíamos sabê-lo, se nem o Consulado, nem a Igreja e muito
menos a imprensa dá notícias de gente assim.