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1 Grupo RELLIBRA - "Relações Linguísticas e Literárias Brasil-Alemanha" | www.rellibra.com.br Credenciado na USP e no CNPq Coordenação Geral: Profa. Dra. Celeste Ribeiro de Sousa CHARLOTTE WOLLERMANN FISCHER 1902-1987 (Celeste Ribeiro de Sousa) 2013 RECORDAÇÕES DE ANTANHO * Charlotte Wollermann Fischer O "doutor da floresta" Isto passou-se há muitos anos, quando os médicos eram raros aqui no interior, e o "doutor da floresta“ era famoso. Por que as aspas? Meus caros, este homem exemplar, naturalmente, não era nenhum doutor; ele plantava milho e mandioca e engordava seus porcos, exatamente como todos os outros colonos. Ele era um sujeito alto e corpulento, de mãos calejadas, as unhas nem sempre limpas. Contudo, que mãos boas, confiáveis e sensíveis ele tinha! E que expressão bondosa e amiga em seus olhos cinzentos! Essas mãos boas e esses olhos sábios, juntamente com o desejo e a vontade ardentes de ajudar os sofridos, de amenizar as dores, era isso que fazia dele o "doutor da floresta". Com os anos, adquirira uma grande habilidade. Se uma parteira tinha pela frente um caso especialmente * Tradução de Celeste Ribeiro de Sousa. Fischer, Charlotte Wollermann. Erinnerungen aus alter Zeit. In: Serra-Post-Kalender, Ijuí, Ulrich Löw, 1962, p.193-209.

CHARLOTTE WOLLERMANN FISCHER 1902-1987 · 2014-04-17 · enviou ao homem da floresta uma grande e solene carta de ... Era o venerável Ford marrom da ... do país vizinho. Curioso,

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Grupo RELLIBRA - "Relações Linguísticas e Literárias Brasil-Alemanha" |

www.rellibra.com.br

Credenciado na USP e no CNPq

Coordenação Geral: Profa. Dra. Celeste Ribeiro de Sousa

CHARLOTTE WOLLERMANN FISCHER

1902-1987

(Celeste Ribeiro de Sousa) 2013

RECORDAÇÕES DE ANTANHO*

Charlotte Wollermann Fischer

O "doutor da floresta"

Isto passou-se há muitos anos, quando os médicos eram raros

aqui no interior, e o "doutor da floresta“ era famoso.

Por que as aspas?

Meus caros, este homem exemplar, naturalmente, não era

nenhum doutor; ele plantava milho e mandioca e engordava seus

porcos, exatamente como todos os outros colonos. Ele era um sujeito

alto e corpulento, de mãos calejadas, as unhas nem sempre limpas.

Contudo, que mãos boas, confiáveis e sensíveis ele tinha! E que

expressão bondosa e amiga em seus olhos cinzentos! Essas mãos

boas e esses olhos sábios, juntamente com o desejo e a vontade

ardentes de ajudar os sofridos, de amenizar as dores, era isso que

fazia dele o "doutor da floresta". Com os anos, adquirira uma grande

habilidade. Se uma parteira tinha pela frente um caso especialmente

* Tradução de Celeste Ribeiro de Sousa. Fischer, Charlotte Wollermann. Erinnerungen aus alter Zeit. In: Serra-Post-Kalender, Ijuí, Ulrich Löw, 1962, p.193-209.

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difícil, então o "doutor da floresta“ era chamado e tudo terminava

mais uma vez bem.

Quando havia pessoas doentes, elas dirigiam-se a ele, que, em

sua casa espaçosa, sempre mantinha vários cômodos e um

verdadeiro serviço hospitalar preparados para doentes. Apêndices

inflamadas eram por ele operadas com êxito absoluto e a sua mais

brilhante atuação ocorreu quando operou uma pobre mulher,

tirando-lhe do corpo um tumor de vários quilos.

A operação foi bem sucedida e a mulher recuperou a saúde. O

tumor, conservado em álcool, foi mandado pelo "doutor da floresta“,

juntamente com um detalhado relatório da operação, à Faculdade de

Medicina da Universidade da capital. Os professores devem ter

ficado espantados com o trabalho bem sucedido, com a coragem do

cirurgião autodidata, assim como também com sua ortografia. E,

como naqueles tempos, as pessoas ainda eram humanamente

generosas e muito menos burocráticas do que hoje, a Faculdade

enviou ao homem da floresta uma grande e solene carta de

reconhecimento pelo excelente desempenho. Esta carta, emoldurada

com vidro, foi pendurada na parede do "quarto do bem“ e, ali, ficou

durante toda a sua vida como o seu mais precioso tesouro.

xxXxx

Então, num belo e luminoso domingo, chegou um carro, que

parou em frente à casa espaçosa. Era o venerável Ford marrom da

Companhia de Colonização e quem de lá desceu não era outro senão

o diretor da colônia, que queria mostrar a duas visitas importantes

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da capital da República vizinha o trabalho de colonização de sua

Companhia.

O diretor, a maioria das vezes chamado de "paizinho" –

Väterchen – pelos colonos, apareceu como sempre de camisa caqui,

calças de montar, botas de cano alto e chapéu colonial na cabeça; no

lugar da gravata, um lenço de seda dobrado em triângulo, preso por

uma fivela de ouro, enfeitada com uma linda ametista. Uma das

visitas era um clérigo, um senhor já velho, corpulento, muito

animado, que, debaixo do sol abrasador, quase derretia sob a sotaina

preta. Vinha em companhia de um jovem médico alemão, trajando

terno tropical imaculadamente branco, com gravata e chapéu

colonial, extraordinariamente elegante e – um pouco estranhamente

deslocado em ambiente tão primitivo. Trabalhava há vários anos no

"Hospital Alemão", o hospital mais bem equipado da grande capital

do país vizinho.

Curioso, o jovem doutor X não parava de olhar em torno de si.

Percebeu a aproximação do bom "doutor da floresta", vindo da parte

traseira da casa, para cumprimentar as visitas, trajando apenas

calças, camisa e botas de cano curto, as mãos sujas de terra.

O diretor da colônia divertia-se com a apresentação dos dois

"colegas". Em seguida, o "hospital" foi visitado. – Um barracão feito

de tábuas rústicas – era tudo! A "sala de operações" – meu bom

Deus! – um cômodo com uma geladeira simples encostada à parede,

onde havia toda a espécie de instrumentos cirúrgicos, facas,

tesouras, pinças, tigelas, copos, ataduras e outros materiais, tudo

simpatica e engraçadamente desarrumado.

"Como é meu caro doutor Z? O senhor vai querer realizar aqui

uma operação? " provocou o diretor da colônia.

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O jovem médico abanou a cabeça sorrindo e disse, ficando

sério:

"Nestas condições, pessoas como eu, que vêm da cidade grande

e estão habituadas a ter ao seu dispor as mais modernas conquistas

da ciência, ficariam simplesmente desamparadas - perplexas. Eu não

me atreveria a fazer aqui nem a mais simples, a menor intervenção!

Eu nunca teria a coragem de assumir uma tão grande

responsabilidade sem uma equipe de colaboradores, assistentes,

anestesistas, enfermeiras, etc. E vou-lhe confessar honestamente,

caro "colega" e, com isso, voltou-se amigavel e amavelmente para o

"doutor da floresta", "que admiro de todo coração a sua coragem,

sua responsabilidade benfazeja e, não menos, seu grande sucesso."

"Não, senhor, oh não", respondeu o "doutor da floresta", seco,

"as coisas não são exatamente assim!" Coragem e responsabilidade e

tudo o mais, - é bom e bonito. Basta não pensar muito nisso!"

"Mas o que fazer, quando aqui chega um pobretão, lívido de

dor e sofrimento e não há ninguém, ninguém, por estas redondezas

que possa ajudar? E, então, o sujeito geme „ajude-me, ajude-me‟! –

como é que eu poderia dizer „não‟, se eu sei que, aqui, só eu posso

ajudar, porque não há mais ninguém. E, então, eu ajudo mesmo, da

melhor maneira que posso."

"Claro, claro", disse o diretor da colônia, se nós não tivéssemos

o nosso „doutor da floresta‟, - estaríamos perdidos... "

E, quando o uniforme caqui verde acinzentado, a sotaina preta

e o elegante terno tropical imaculadamente branco novamente se

acomodaram no velho Ford, prevaleceu entre eles um longo silêncio

durante alguns quilômetros. A certa altura, ouviu-se a sotaina preta:

"Como faz bem voltar a encontrar um ser humano..."

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xxXxx

Mas eu gostaria de contar a história do amor ao próximo. Foi

assim:

Um certo dia, apareceu um jovem, querendo levar o “Doutor

da floresta” para examinar sua esposa, gravemente enferma. O

homem era um imigrante recente, que tinha chegado ao Brasil há

muito pouco tempo junto com um grupo de patrícios. A

nacionalidade dessa gente não vem ao caso, o mais importante para

uma melhor compreensão da história é saber que esses colonos

ainda não se tinham adaptado bem às suas novas circunstâncias.

Eles ainda não sabiam que, aqui na região, de acordo com uma lei

não escrita, em casos de doença, um ajuda o outro na medida do

possível. Eles eram econômicos além da medida, quer dizer, para os

parâmetros sul-americanos, eles eram mesmo avaros. Pensavam que

tinham ótimas relações com o senhor Deus; mas sua humanidade

não era lá dessas coisas.

Depois de ter trocado as pantufas cômodas pelas botas de

montar, o “Doutor da floresta” arreou seu cavalo, encheu os alforjes

com várias coisas, sacou o grande chapéu de feltro e o chicote pesado

e seguiu a cavalo o jovem, que o precedia a pé. O colono estava, sim,

como foi dito, há pouco tempo na terra, e ainda não tinha

conseguido arrumar um cavalo. Depois de uma boa meia hora de

caminho, chegaram à cabana do camponês. Lá dentro estava a jovem

deitada na grande cama de casal e o “Doutor da floresta” percebeu,

logo à primeira vista, que a coisa era grave. Era preciso providenciar

determinados medicamentos tão rápido quanto possível, injeções

para o coração e isto e aquilo, e tudo isso só havia na farmácia da

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cidadezinha, e a cidadezinha ficava a vários quilômetros de

distância.

“Vá até a casa de seu irmão, aqui perto, peça-lhe um cavalo

emprestado e corra o mais rápido que puder até a farmácia; galope,

não poupe o cavalo, pois tenho pressa, você entende?”

O jovem até tropeçou ao dirigir-se imediatamente para a porta.

Mas nem bem tinham passado cinco minutos e ele já estava de volta

alvoroçado, quase chorando.

“Meu irmão recusa-se a me emprestar o cavalo, porque eu não

posso pagar. Aonde é que eu vou arranjar agora vinte mil réis para

pagar o cavalo!”

“O que você está dizendo? O seu irmão não lhe cede o cavalo

sem pagamento? Aguarde-me aqui!”

Num pulo, apanhou o chapéu e o chicote, e abalou dali. Na

porta ainda se virou.

“Você fica aqui com sua mulher até eu voltar!”

E, antes que o rapaz pudesse dizer ou perguntar alguma coisa,

já estava longe.

Na casa vizinha, o outro camponês estava sozinho na cozinha.

A esposa tinha saído com as crianças para o campo, para cortar

forragem; já era tardinha, logo era preciso dar comida aos animais e

ordenhar.

Uma sombra enorme invadiu o cômodo, assim que a figura

maciça do “Doutor da floresta” apareceu na porta. O camponês teve

um sobressalto, alarmou-se e, rápido, largou a cuia do mate.

“O que é que quer?” perguntou com voz rouca.

O invasor não disse absolutamente nada, apenas moveu

significativamente os olhos do pesado chicote em sua mão para o

morador assustado.

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“Vai me bater? O sr. não pode me bater! E por quê, afinal? – o

cavalo custa vinte mil réis, se o Michael o quiser levar emprestado. –

O que o sr. tem com isso? Eu sou tão pobre quanto o meu irmão e,

além disso, ainda tenho três crianças pequenas para criar! – Cada

um por si e Deus por todos nós! – Se o Michael tivesse comprado um

cavalo logo que chegou, em vez de arrumar isto e aquilo, - agora não

precisaria de pedir nenhum emprestado: ajuda-te a ti mesmo e Deus

te ajudará!”

O “Doutor da floresta” mantinha-se tão tranquilo quanto antes

e só se percebia que estava furioso pela pequena ruga entre as

sobrancelhas.

“Cale a boca, senão...” murmurou ele baixinho por entre os

dentes, levantando um pouco chicote.

“Está me ameaçando? Está me ameaçando na minha própria

casa? Eu vou denunciá-lo, eu vou acusá-lo...” a voz do camponês fica

ofegante de comoção e de raiva.

“E onde você tem as testemunhas? Que eu saiba, estamos os

dois completamente sozinhos...”

“Deus é minha testemunha...”

“Cale a boca, já disse”, ouviu-se da porta a voz cortante. Deixe

o bom Deus fora do jogo, grande porco“. Aqui, a coisa é entre

pessoas e, agora, você vai ter que aprender na prática o amor ao

próximo!”

Nisso, largou o chicote, que balançava no pulso preso pela

enlaçadura. Mexeu no largo cinto de couro, afastou-o, e, de repente,

o camponês vê um cano de pistola apontado para ele.

A raiva desaparece, dando lugar apenas ao medo desamparado

nu e cru, que quase lhe estrangula a garganta.

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„Levante-se!“ouviu-se baixinho a ordem perigosa vinda da

porta.

De joelhos moles, o rosto lívido e esverdeado, o homem

levanta-se. E, querendo ou não, é obrigado a ir buscar o cavalo, a

montá-lo sem sela e sem freio, só com o cabresto; ele mesmo em

cabelo e descalço. Mas como o “Doutor da floresta” diz que há

urgência, os dois saem a galope ao cair da noite em direção à

farmácia, o camponês na frente com uma sensação gelada entre as

omoplatas, o “Doutor da floresta” colado nele com a pistola

engatilhada.

Retornam da mesma maneira e, se algumas pessoas não os

tivessem visto passar, certamente ninguém teria percebido este

singular aprendizado.

Os medicamentos ainda chegaram a tempo, a jovem esposa

pode ser salva. Mas quantos dias o aluno involuntário levou para

esfriar o traseiro flagelado nunca se soube e, claro, também nunca

ninguém perguntou.

O filósofo

Quem teria sido aquele estranho velho, que decidiu passar a

vida totalmente isolado no meio da floresta? Qual seria era o seu

nome? Que destino atroz o teria lavado àquela solidão? Ninguém o

sabe e ninguém o saberá, agora, que já está morto há tantos anos.

Eu nunca teria ouvido falar dele, não tivesse o acaso

arquitetado que, um dia, eu haveria de precisar mudar nossos livros;

nós tínhamos aumentado a nossa casinha branca em mais um

quarto e, por isso, a biblioteca teria de ser acomodada em outro

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cômodo. Zelosamente, arrastamos montes de livros de cá para lá

com a ajuda de nossa empregada.

A moça, Eva, era uma pessoa extraordinariamente boa,

prestimosa, dedicada, com senso de humor e grande inteligência.

Era filha de um dirigente da colônia, um colono muito capaz, e de

uma brasileira-alemã, oriunda das assim chamadas “antigas

colônias” no sul de nosso Estado. A família tinha vivido durante

muitos anos nas antigas colônias, antes de decidir, um dia, vender

todos os haveres e estabelecer-se no norte do Estado, na floresta, na

zona recentemente demarcada. Foi assim que compraram terras na

nossa região, às margens do rio grande, arroteando a floresta e

criando para si uma bela e boa propriedade rural. Eva ainda era

pequena, quando a família deixou as terras antigas, mal tinha

aprendido o ABC na escola. Mas isso também era tudo o que ela

podia aprender na escola. Pois durante os primeiros anos na nova

colônia ainda não havia escola nas proximidades alcançáveis e,

quando, por fim, a primeira escola foi inaugurada, Eva já era adulta

e, naturalmente, grande demais para começar tudo de novo. Por

isso, teve de se contentar com o pouco, com o ABC da infância. Mas,

como já disse, Eva era viva e esperta. E, onde quer que encontrasse

um pedaço de papel impresso ou escrito, um anuário velho, um livro

escolar dos irmãos menores, ela começava a soletrar e a ler com

grande persistência, até desvendar tudo. E foi assim que ela

aprendeu não só a falar português e alemão com fluência, mas

também a ler os dois idiomas quase fluentemente.

Eu tinha acabado de chegar ao cômodo com uma pilha alta de

livros no braço e, querendo depositar minha carga sobre a mesa, a

resma balançou um pouco e dois volumes caíram no chão. Enquanto

procurava equilibrar com rapidez e segurança os restantes, Eva

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chegou e amparou os livros e, como era seu costume, foi lendo os

títulos e os nomes dos autores. Havia um volume de Kant e um

volume de Schopenhauer.

“Estes nomes eu já li”, disse ela, enquanto me passava os

livros.

“Muito bem, Eva, isso é deveras interessante!

Onde é que há aqui, num raio de cinquenta quilômetros, um

alemão que leia os filósofos e, mais ainda, que possua suas obras?” -

Foi o que me passou pela cabeça. Além de alguns anuários antigos,

do imprescindível e conhecido livro de medicina, e da Bíblia, assim

como de um montão de velhas revistas ilustradas lidas e relidas, eu

mal tinha visto livros em casas alemãs. Curiosa, perguntei:

“Em que casa, com quem você os viu?”

Um sorriso travesso estendeu-se pelo rosto da moça.

“No meio da floresta, numa árvore oca!” disse ela.

“O que você está dizendo, garota! Desde quando há árvores

assim na floresta?”

Ela riu e, depois, contou.

Quando tinham viajado da antiga colônia no sul do Estado à

procura das terras novas rumo ao norte, assim começou ela sua

história, não haviam encontrado de imediato o local, onde sua

família hoje mora. Primeiro tinham se estabelecido durante um

tempo, talvez um ano ou mais, às margens de um afluente do grande

rio, onde tinham morado numa casinha minúscula num terreno

alugado e descansado da longa e penosa jornada.

Sim, a viagem fora longa e custosa, pois haviam sido

obrigados a percorrer a maior parte do caminho a pé, já que o carro

estava totalmente carregado com utensílios domésticos, camas,

caixas e caixotes. Os cavalos já estavam exaustos de puxar através de

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estradas ruins. A mãe com o bebê e os dois irmãos menores tinham

que ir de qualquer modo no carro, mas o pai com as crianças

maiores vieram a pé.

Pois bem, a partir da casinha alugada, onde a família, assim

como os cavalos e cães, por fim puderam, de fato, descansar da

fadiga da longa jornada, o pai pode procurar com toda a

tranquilidade terras boas. Mas demorou quase um ano, até ter

conseguido um terreno conveniente e até ter construído a primeira

choupana, abrigo de primeira necessidade, para a família. Durante

esse tempo, enquanto o pai ficava muito tempo fora, procurando

terras na companhia do irmão mais velho, e enquanto a mãe, com a

ajuda da filha mais velha, tomava conta da casa primitivíssima e

provisória, as crianças menores gozavam de inteira liberdade,

levando uma vida fantástica. Eram uma verdadeira horda, contava

Eva, pois as crianças da vizinhança tinham aparecido e feito amizade

rapidamente. Seus passeios de aventuras estendiam-se pelas

margens da correnteza, para cima e para baixo, dizia ela, chegando

mesmo até a desembocadura no rio grande.

Mas havia um lugar na floresta, que as crianças consideravam

misterioso. A gurizada da vizinhança havia mesmo contado que

aquele local, em tempos remotos, abrigara um acampamento

indígena e, assim, nos dias de hoje, nem era mais realmente

perigoso. Deveria haver ainda alguém por ali, pensava ela, por que,

então, em dias sem vento, numa determinada curva do rio, se via

subir de lá uma fumaça branca e espessa? Talvez fosse – e, nesse

momento, ouviam-se palavras murmuradas de modo alvoroçado,

que Eva e seus irmãos não entendiam, mas que, nem por isso, lhes

causavam menos medo e susto.

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„Lobisomem“1 murmuravam as crianças.

„Boitatá!“2 cochichavam elas.

Desta forma, por muito tempo, todas elas teriam evitado

aquele lugar misterioso da floresta.

Mas, como eram crianças – ou será que só as crianças são

assim? - , um dia, a curiosidade e a sede de saber venceram o medo e

a superstição. As crianças irromperam pelo matagal até a clareira

mal afamada. E isso nem foi difícil, pois encontraram uma vereda

estreita que, saindo da margem do rio, terminava lá.

O que elas acharam? Eva disse que todas ficaram pasmas de

assombro e que nenhuma delas sequer pensou em fugir. Depararam-

se com uma árvore gigantesca e grossa, cujo tronco, embaixo, era

oco devido à muita antiguidade. Blocos rochosos amontoavam-se

por detrás, oferecendo seguramente algum abrigo contra as

intempéries. Com estas coisas, fornecidas pela natureza, e mais

alguns galhos e pedras havia surgido uma habitação primitiva, mais

caverna do que cabana. O morador também estava lá: um homem

velho, velho, de cabelo e barba emaranhados. Por entre as pedras

ardia um fogozinho e, em cima, havia uma chaleira de ferro. O velho

estava sentado perto do fogo sobre um troco de árvore derrubado e

lia um livro.

“Oh! Eva”, interrompi, “ele viu vocês, crianças? Ele falou com

vocês?”

- Sim, ele havia acenado para as crianças, que ali

permaneciam num pasmo absoluto, convidando-as a entrar, e

conversou com elas de modo muito cordial: falou em alemão.

1 A palavra, no original alemão, aparece em português e é traduzida em nota de rodapé por

“Werwolf”. 2 A palavra, no original alemão, aparece em português e é traduzida e explicada em nota de rodapé por “Schlange mit Feuer-Augen, Personifizierung des Irrlichts”.

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- “Você ainda se lembra, Eva”, perguntei, “como soava a

sua fala, que espécie de alemão ele falava?”

De novo, a moça sorriu-me com olhar travesso, enquanto

respondia:

“Ele falava – como a senhora.”

Bom, isso significa: alto alemão.

“E você é capaz de se recordar ainda, Eva, daquilo que ele disse

a vocês, crianças?”

Ele tinha perguntado pelos seus nomes, pelos nomes de seus

pais, de onde elas eram e onde moravam. E com as crianças

menores, que eram vizinhas brasileiras, ele falou em português.

No começo, o velho magro de barbas grandes e desgrenhadas

ainda lhes fora estranho. Mas isso elas logo esqueceriam, quando ele

principiou a lhes contar belas histórias. A partir daí, o bando todo

das crianças começara a fazer, quase diariamente, peregrinação ao

velho da floresta, para ouvir suas histórias, levando-lhe pequenos

frutos e fruta em geral, bananas, laranjas, o que havia. Com o

instinto infalível, que as crianças compartilham com os animais,

haviam descoberto, de forma grotesca num mundo bizarro, o ser

humano bom, amistoso, cortês. Às vezes, entre elas, com certeza,

chamavam-no ainda de “lobisomem”, mas isso agora não passava de

brincadeira e de piada. De fato, gostavam dele e mostravam-lhe de

modo desajeitado seu afeto infantil.

“Mas o seu nome, Eva? Como se chamava o pobre sujeito?

Quem era ele?” Elas não sabiam. Ele nunca o dissera. Para as

crianças, ele ficou sendo “o velho do mato” – “der Alte aus dem

Wald”, e quando a ele se dirigiam, elas chamavam-no de “vovô” –

“Grossväterchen”.

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Esta amizade, contou Eva, durou uma parte do verão e todo o

outono. Porém, quando o inverno chegou e o gelado Minuano, o

vento do sul, foi enviado da Antártida, o velho adoeceu. Ficou

prostrado, febril e deplorável na sua mísera habitação e, se as

crianças não lhe tivessem levado diariamente comida boa e quente,

ele teria morrido miseravelmente. Ainda se arrastou durante todo o

inverno, a doença, a febre e a tosse não mais o deixaram. Uma

família ou outra, os pais de seus pequenos amigos, quiseram acolhê-

lo em casa, para melhor poder cuidar dele, mas o velho não aceitou

essa amabilidade. Tornar-se uma carga para estranhos de bom

coração? Ter de receber esmolas? Não, nunca. Preferível permanecer

sozinho na floresta...

Assim passou o inverno e veio a primavera. E, então, num dia

esplendoroso de risonho sol dourado e quente no azul profundo do

céu, o fogo apagou-se entre as pedras e os pequenos encontraram

seu velho amigo morto e frio na caverna, envolto por enxames de

moscas, que zuniam em torno dele.

Correram para casa o mais rápido que os pequenos pés

permitiam e os pais vieram, e fizeram um caixão com tábuas velhas e

enterraram o velho na clareira à sombra da árvore.

“E no buraco da árvore encontraram um caixote cheio de

livros. Alguns deles ainda ficaram durante muito tempo conosco, em

casa, numa prateleira sob o sótão, - eu podia ler seus nomes com

facilidade. Porém, não sei mais onde foram parar com o tempo”,

disse Eva.

„Mas não havia outros papéis, documentos? O homem não

tinha família, parentes, amigos, que pudessem ser avisados?”

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Nada, tinha sido a opinião do pai de Eva; parecia que ele tinha

destruído tudo propositalmente, para apagar todos os vestígios de

sua existência.

Fiquei tocada com a história de Eva. Tudo isso já tinha passado

há uns bons quarenta anos, mas que espécie de segredo teria levado

esse patrício alemão para o túmulo?

Será que ele era um desiludido, um desesperado, querendo

esconder uma vida fracassada?

Será que ele tinha sido abandonado por todos e ocultava sua

amargura na solidão da floresta?

Ou será que era um sábio?

Um filósofo, restituído ao último degrau da simplicidade, um

asceta, recolhido ao silêncio de seu âmago? Será que, à sua maneira,

havia sido feliz, refletindo, sem ser perturbado, sobre escritos

filosóficos, guardados em seu esconderijo fantástico? Será que era

uma espécie de Diógenes do século XX, numa árvore oca do Brasil?

Nós não sabemos, nem nunca saberemos. Com certeza, hoje,

ninguém mais atinaria com a clareira ou com o túmulo. E mesmo a

árvore oca deve ter sido abatida há muito tempo.

Todavia, meu defunto patrício alemão, tu não estás esquecido,

apesar de tudo: uma jovem dedicada, um dia, arrancou de sua

memória tua imagem empalidecida e, em sua história, deu-lhe nova

vida. E eu, agora, com minha pena tentei tecer um pequeno, um

modesto raminho de pervinca em volta de tua imagem desbotada.

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Cavaleiro de Raawen, dos ...não sei quantos hussardos

É bom e útil ter um “hobby”, meus queridos.

Dizer isso é uma trivialidade, eu sei, e também não é nada de

novo. Desde que me conheço por gente, as pessoas sempre tiveram

suas predileções, quer criando canários, ou cuidando de coloridos

peixes exóticos num aquário, ou fazendo coleções de selos, de

primeiras edições, de fotos de estrelas de cinema ou de xícaras de

café. De qualquer modo, é um divertimento, por assim dizer, fazer

aprovisionamentos, manter uma boa distância da monotonia

cotidiana, cultivar diligente e carinhosamente uma área de interesse,

que desvia nossos pensamentos do trivial para algo belo, agradável.

– No que me diz respeito, na minha antiga pátria, eu tinha o

costume de manter sempre as janelas do meu quarto cheias de

cactos, que retribuíam meus cuidados, oferecendo-me flores

magníficas e luminosas. E, aqui, no Brasil, - como poderia ser

diferente? – logo me deixei conquistar por orquídeas. Aqui, elas não

são um luxo, quando nos contentamos com as espécies nativas das

nossas florestas. E, nelas, há espécies fascinantes!

Assim que o carpinteiro terminou nossa casa de madeira, as

paredes foram caiadas de branco, as guarnições e as portadas das

janelas foram pintadas de verde e o telhado de zinco colorido de

vermelho, e logo também se providenciou o jardim em torno da casa,

que ficou a cargo do Sr. Schmidt, o velho jardineiro. Quando o

jardim ficou pronto, com uma sebe de madressilva cobrindo toda a

cerca, com alguns alegretes de flores e agrupamentos de arbustos e

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plantas de folhas muito decorativas espalhados pelo gramado recém-

plantado, o carpinteiro montou bem junto da nogueira um

caramanchão, e este caramanchão foi destinado às minhas

orquídeas. Não havia telhado, mas logo as gavinhas e as folhas do

maracujá se espraiaram verde escuras e viçosas, formando a mais

linda sombra que se poderia desejar. E, então, o Sr. Schmidt deu

início à coleta e à plantação de minhas orquídeas.

O velho jardineiro fez pequenos cestos com galhos de árvores e

um pouco de arame, recobertos de musgo e recheados com um

pouco de carvão vegetal e pedaços de madeira apodrecida. E, ali,

enterrou as orquídeas e as bromélias, que colhera na floresta para

mim.

E lá estavam os cestinhos todos enfileirados um ao lado do

outro como se estivessem numa parada. E, enquanto o dono da casa

pintava números em plaquetas de zinco com um pincel e tinta a óleo

preta, e o jardineiro as afixava uma a uma em cada cestinho, eu

permanecia sentada à mesa, de pena em punho, em frente a uma

grande folha de papel, escrevendo os nomes das orquídeas para cada

um dos cestinhos. O Sr. Schmidt ditava.

Todos nós estávamos afundados e compenetrados no nosso

trabalho. É justamente aqui que reside o belo num “hobby”, ou seja,

a possibilidade de se aprender um monte de coisas interessantes,

para além da grande satisfação desfrutada.

Minha lista era longa e parecia magnífica com todos aqueles

nomes latinos. Eu estava imensamente orgulhosa de tanta sabedoria

botânica, que eu ia colocando em prática, ao pendurar os cestinhos

no caramanchão das orquídeas, enquanto devorava com os olhos

sequiosos a teoria da minha interessante lista.

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A “Oncidium von Raaven” estava lá. Também a “Maxilaria

Oscaria” e a “Laelia Raawenia” e a “Cattleya Bertana”. Com o tempo

também haveria de aprender os nomes, em especial, das favoritas

recém plantadas, quando já as tratasse por tu, e elas me oferecessem

suas flores bizarras de presente. Com um suspiro, deixei a lista de

lado.

Eva acabara de chamar para o almoço, os empregados

chegavam da plantação e o Sr. Schmidt ia com eles até o riacho para

se lavarem. E, então, o grupo inteiro acomodava-se sentado à

sombra da laranjeira-lima, enquanto o dono da casa, no meio deles,

amistosa e muito democraticamente, passava o chimarrão de mão

em mão. Ao levar aos homens a cuia e a chaleira com água fervente,

pude pegar aqui e ali alguns pedaços de conversa, que me fizeram

refletir.

“Bom, como soldados que foram, devem conhecer”, dizia uma

voz familiar.

“Claro, Sr. Doutor, isso eu conheço muito bem”, murmurou o

Sr. Schmidt.

“Onde é que serviu? Em que regimento?”

“Eu estive nos ....não sei quantos hussardos, Sr. Doutor.”

“Mas o regimento dos ....não sei quantos hussardos ficava

„patatipatatá‟, não é verdade? Portanto, serviu „patatipatatá‟?”

“Com certeza, Sr. Doutor, absolutamente correto, „patatipatatá‟

estive lá.”

Estado-servido, servido-estado. Filigranas da nossa língua.

Jargão militar é o que é. Um soldado „serve‟, mas um oficial „está‟

num regimento, todos sabem. Sim, mas o Sr. Schmidt, - por que será

que este gnomo de barba rala e olhos azuis claros, que atravessa os

dias de trabalho, arrastando os tamancos e que, acima de tudo,

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adora cachaça, - por que será que esse aí também „esteve‟ nos ....não

sei quantos hussardos? Será que também foi oficial? É certo que fala

um alemão sem erros, um alemão seleto, algo afetado. Sabe um

montão de nomes latinos da botânica e faz seu trabalho com esmero,

habilidade e bom gosto. De fato, - mas as tenebrosas nuvens de

álcool que o envolvem sempre ... oficial? Bom: Wer weiss? Quem

sabe?”

Aos sábados, o Sr. Schmidt costumava ir para casa. Quer dizer,

ele falava que, no final do sábado, queria ir para casa, pegava o seu

salário e zarpava. Todavia, o pobre diabo, é claro, não conseguia

chegar lá. Como tinha dinheiro no bolso, só atingia o primeiro

boteco da rua, ali ficava a beber cachaça até gastar e deixar correr

pela goela o último tostão. Então, curtia a bebedeira e, na segunda-

feira de manhãzinha lá estava ele; invariavelmente, chegava com

pontualidade ao trabalho.

Mas o Sr. Schmidt tinha uma família que, naturalmente,

contava com o salário do chefe de família. E a família tomou suas

medidas. Lá pelo fim da semana, na quinta ou na sexta-feira, um

jovem esbelto apareceu a cavalo, pedindo para falar com seu pai. –

“É claro, meu rapaz, desça, vou levá-lo até ele.” -

Enquanto caminhávamos em direção ao jardim, fui

observando o jovem a meu lado. Era de estatura mediana, elegante,

cabelos louros e encaracolados, os olhos azuis claros, exatamente

como os do pai. Tinha um rosto bem desenhado, um sorriso sedutor

e cheio de charme. Era notável como se parecia extraordinariamente

com o pai! Ainda agora, mesmo com o semblante do velho devastado

pelo álcool, era bem possível imaginar que, na sua juventude, tenha

tido a aparência exata do filho.

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Mostrei ao jovem onde seu pai trabalhava e retirei-me. Depois

de algum tempo, vi-os conversando com o dono da casa, viu-os

acompanhá-lo ao escritório e, depois de algum pouco tempo, o

jovem foi-se a cavalo e o velho retornou a seu trabalho.

“O que o moço queria?” perguntei.

“Dinheiro, é claro. Tu vês, a família garante-se como pode.

Agora, só sobrou ao velho apenas um único dia de trabalho, para

comprar a bebedeira de domingo. Mas isso também já deveria ser

suficiente.”

“Mas, afinal, o que disse o rapaz? No fim das contas, trata-se

de um assunto delicado, quando o filho é enviado a receber

antecipadamente o salário do pai!”

“Oh, ele disse que queria ir até o moinho buscar farinha e que,

no caminho, lembrou-se que tinha esquecido o dinheiro para pagar

ao moleiro. Então, tinha-se dirigido ao trabalho do pai, para pegar

alguns cobres.”

Rimos os dois. Este “dirigir-se-ao-pai” significava um desvio

de alguns 6 quilômetros do caminho entre a sua casa e o moinho!

A partir daí, a visita do filho à sexta-feira tornou-se um

acontecimento permanente e todos nós nos acostumamos e ficamos

contentes com ele.

Naquela primeira sexta-feira ao entardecer, o nosso vizinho

mais próximo, um alemão-brasileiro veio visitar-nos. Foi recebido,

conforme os costumes aqui da terra, com um chimarrão. Neste

passo, preciso inserir a observação de que uma das características

mais salientes de muitos de nossos vizinhos locais era a curiosidade

indomável, que tudo invadia. Todos sabiam tudo sobre todos e o que

não se sabia com exatidão era perguntado ou também inventado,

conforme o caso.

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Ora, isto deve acontecer igualzinho em todos os cantos da

terra, no sul do Brasil, na Sibéria, no norte da Argentina, na Baviera,

na selva africana, no Canadá e na Austrália. Não demora muito e lá

vem a pergunta esperada.

“O rapaz, que costuma passar a cavalo por aqui e, depois, os

visita, hoje – pareceu-me tão conhecido; não era o rapaz...”

“Certíssimo, vizinho, era o filho do velho.” Esta resposta

prenhe de significados sai assim afável, absolutamente franca,

inocente.

O vizinho contorce-se. Apesar da resposta notável, ele não é

capaz de decidir-se a parar com as perguntas. Ele não consegue, não

consegue! A curiosidade simplesmente não permite.

“O filho de – quem? pergunta ele, como se não tivesse

entendido bem.

E, quando enfim a compreensão se faz, aliviado, abre as

comportas de sua eloquência e despeja tudo o que sabe!

“O velho, um bom trabalhador? É, talvez seja. Mas que velho

beberrão, vizinho! Passa dia e noite lá no boteco perto do barco, sem

sequer ir a casa, o salário da semana, que ganha aqui em sua

residência, torra-o todinho, sem pensar! Vocês não sabiam disso?

Naturalmente, nós sabíamos disso, pois nossos empregados,

sobretudo o Luiz, o capataz, homem bom e honesto, já nos tinham

comunicado o fato há muito tempo.

“Vizinho, o que o Sr. acha que a mulher diz a isso? O Sr.

gostaria de saber o que a mulher dele acha disso, a „Polaca‟, ela é

igual a ele: ele bebe e ela bebe mais ainda! - Isso o Sr. também não

sabia? – Não, contra os filhos não há nada a dizer, realmente, nada.

Sim, exatamente, cinco filhos. São guris trabalhadores. O mais velho,

Oscar é seu nome, é um bom ferreiro, aprendeu o ofício com o nosso

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vizinho lá da outra margem. É verdade, homem capaz! E o segundo

ainda está casado com a não-sei-como-se-chama. Os mais novos só

os vi quando crianças, mas também devem ter crescido com

educação. Em contrapartida, a filha, que se chama Berta, é a cara da

mãe. Há pouco tempo caiu num poço de tão borracha que estava,

dizem por aí! Mas não havia muita água lá dentro, por sorte, e foi

possível tirá-la de lá a tempo! Sim, sim, vizinho, tem razão: como é

que as pessoas podem se arruinar assim! O velho esteve primeiro na

América do Norte, dizem, foi lá que também aprendeu jardinagem.

Como será que veio parar aqui no sul do Brasil? Isso eu não sei, não.

Mas, vizinho, não sabe, não, o que o homem sempre conta, quando

está bêbado? Diz ele que não se chama Schmidt, Karl Schmidt, mas

que é, na verdade, um cavaleiro de Raawen, de um distinto

regimento de cavalaria na Alemanha. Vizinho, realmente: cavaleiro

de Raawen, também não sabia disso?“

Como, entretanto, a água na chaleira havia esfriado, fui até a

cozinha para buscar água quente. A minha cabeça fervilhava de

ideias, a fofoca do nosso respeitável vizinho juntava-se agora de

maneira singular à imagem do bom Schmidt. Então, “Cavaleiro de

Raawen”, não é? E ele tinha „estado‟ nos ....não sei quantos

hussardos, dissera ele. Com certeza, seguramente, ele tinha „estado‟

ali e acolá. E ali e acolá ficavam os ....não sei quantos hussardos,

batia. Mas, meu Deus, o olhinho cachacento, lacrimejante, a

barbicha, o cabelo ralo e desgrenhado, as botas nos pés, o pobre

sujeito miseravelmente degradado... cavaleiro de Raawen. Não,

impossível! Não! E não!

Mas, estando eu de joelhos em frente ao fogão, assoprando as

brasas para fazer o fogo pegar depressa na madeira recém colocada,

de repente, a bela cabeça de seu filho, cheia de caracóis, desenhou-se

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diante de minha mente. E se, em vez de olharmos este mancebo

enfiado em roupas de algodão surradas e remendadas, o

contemplarmos com botas lustrosas, o dólmã por cima dos ombros,

o gorro de pele de urso, adornado com o distintivo, um pouco

inclinado por sobre a cabeça loura, um sorriso nas feições delicadas

e todo o seu charme... É claro que, assim, bem assim, com certeza, o

velho deve ter sido na juventude, - e, também, por que não? Tudo

neste mundo é possível, e, na América do Sul, é preciso parar de se

ficar espantado com trajetórias humanas e destinos excêntricos.

“Cavaleiro de Raawen, dos ... não sei quantos hussardos!”

Como minha fogueira estala e crepita alegremente, nela eu

ouço muito claramente uma pequena melodia. Como era mesmo?

Uma cançãozinha de opereta? Uma dessas canções da moda?

“tenente, tu estiveste nos ...não sei quantos hussardos” soa trocista e

um pouco malicioso. – Pobre criatura, será que fostes isso mesmo?

Bem, o trabalho consciencioso, o bom gosto de jardineiro, o

alemão correto e, ainda por cima, os conhecimentos de botânica – e

estou pensando, com todo o respeito, na minha lista de orquídeas

com os nomes latinos, - por que não poderia se esconder atrás de

todas essas coisas um homem culto, bem educado, ainda que

desviado e afastado do seu caminho?

A água na chaleira começa a gemer, logo estará no ponto.

Dirijo-me ao meu quarto e pego, pensativamente, a famosa lista com

os nomes botânicos, - mas... mas.... o que eu vejo ali? “Oncidium von

Raawen”, “Maxillaria Oscaria”, “Laelia Raawenia”, “Cattleya

Bertana”...

Hum, só agora minha cabeça começa a funcionar direito:

cavaleiro de Raawen, não é? E o mais velho, o ferreiro habilidoso,

chama-se Oscar, e a filha inútil, Berta! Onde está, afinal, a sabedoria

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botânica? Mas... não é que isto quase se parece com uma atrevida

molecagem hussarda, na trilha “não te espantes com nada”? Quando

as pessoas, pretensamente cultas, querem nomes botânicos, nomes

latinos, para suas orquídeas, podem obtê-los, - “mas com certeza, Sr.

Doutor, por que não Sr. Doutor?” – e quando o nosso Latim acaba,

logo passamos a criar rapidamente novos termos “Laelia Raawenia”,

“Cattleya Bertana”. Não é que soam imponentes e realmente

genuínos?

Que outra coisa se poderia fazer a não ser rir às gargalhadas!

Quando retirei a chaleira com a água quente do fogo, para

levá-la à varanda, deixei atrás de mim o fogo crepitando e sorrindo

perversamente, com toda a clareza, eu ouvia a pequena e idiota

melodia: “tenente, tu estiveste nos ...não sei quantos hussardos...”

E o final da canção? O meu hobby com orquídeas permanece

até hoje uma total obra imperfeita. Elas florescem a cada ano nos

seus cestinhos, essas pequenas, misteriosas e fascinantes

inflorescências maravilhosas do Criador. Mas eu não conheço seus

nomes e também não mais me preocupo com isso, depois que joguei

no fogo aquela primeira lista.

E o velho jardineiro já morreu há anos. Faleceu em delirium,

foi o que nos contaram. Não sabíamos de sua morte, e como

poderíamos sabê-lo, se nem o Consulado, nem a Igreja e muito

menos a imprensa dá notícias de gente assim.