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 O ato de colonizar está na mente março 8, 2014 16:05 Tambores vibram no palco da maior universidade privada de Moçambique. Sentada entre os sete músicos, Paulina Chiziane entoa um cântico evocando os espíritos dos ex- presidentes Eduardo Mondlane e Samora Machel. A música tem a intenção de convocar o passado para convencer os governantes atuais a firmar a paz no presente. Em um país extremamente formal, batucar dentro de uma instituição é uma quebra de tabu. Na verdade, lançar o livro “Por que vibram os tambores do além”, que conta a história do curandeiro Rasta Pita, dá sequência a uma série de rompimentos de paradigmas que Paulina acumula. Ela é a primeira mulher a lançar um romance em Moçambique (Balada de amor ao vento, publicado em 1990); na juventude foi militante do Partido Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique, partido de esquerda que lutou pela independência do país); é atuante no movimento feminista do país; e possui uma espiritualidade marcante. Por alguns, é chamada de radical. “As pessoas não estão habituadas a questionar. Quando alguém questiona, dizem logo que é radical”, rebate ela, sem fazer muito caso.  Em uma tarde quente de novembro, Aldino Languana, pintor moçambicano e documentarista, nos guiou de carro até o subúrbio da capital, Maputo, onde fica a casa de Paulina. Conseguimos marcar a entrevista após conhecer Aldino no lançamento do novo livro de Paulina e aceitarmos a contraproposta de nosso encontro ser filmado   ele está preparando o primeiro documentário sobre a escritora. Em pouco mais de uma hora, em um cômodo improvisado na sua sala, Paulina expôs sua visão sobre o colonialismo ocidental em Moçambique, criticou o ingresso de Igrejas estrangeiras e de novelas brasileiras no país e expressou a importância de dar voz à quem normalmen te não possui. Tudo de forma serena e sem o peso das obrigações. “Só os indivíduos eleitos ou nomeados que podem di zer que têm papéis ou deveres. Eu faço aquilo que posso fazer”.  

CHIZIANE, Paulina - Entrevista

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CHIZIANE, Paulina - Entrevista

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  • O ato de colonizar est na

    mente

    maro 8, 2014 16:05

    Tambores vibram no palco da maior universidade privada de Moambique. Sentada entre

    os sete msicos, Paulina Chiziane entoa um cntico evocando os espritos dos ex-

    presidentes Eduardo Mondlane e Samora Machel. A msica tem a inteno de convocar o

    passado para convencer os governantes atuais a firmar a paz no presente.

    Em um pas extremamente formal, batucar dentro de uma instituio uma quebra de

    tabu. Na verdade, lanar o livro Por que vibram os tambores do alm, que conta a

    histria do curandeiro Rasta Pita, d sequncia a uma srie de rompimentos de

    paradigmas que Paulina acumula.

    Ela a primeira mulher a lanar um romance em Moambique (Balada de amor ao vento,

    publicado em 1990); na juventude foi militante do Partido Frelimo (Frente de Libertao de

    Moambique, partido de esquerda que lutou pela independncia do pas); atuante no

    movimento feminista do pas; e possui uma espiritualidade marcante. Por alguns,

    chamada de radical. As pessoas no esto habituadas a questionar. Quando algum

    questiona, dizem logo que radical, rebate ela, sem fazer muito caso.

    Em uma tarde quente de novembro, Aldino Languana, pintor moambicano e

    documentarista, nos guiou de carro at o subrbio da capital, Maputo, onde fica a casa de

    Paulina. Conseguimos marcar a entrevista aps conhecer Aldino no lanamento do novo

    livro de Paulina e aceitarmos a contraproposta de nosso encontro ser filmado ele est

    preparando o primeiro documentrio sobre a escritora. Em pouco mais de uma hora, em

    um cmodo improvisado na sua sala, Paulina exps sua viso sobre o colonialismo

    ocidental em Moambique, criticou o ingresso de Igrejas estrangeiras e de novelas

    brasileiras no pas e expressou a importncia de dar voz quem normalmente no possui.

    Tudo de forma serena e sem o peso das obrigaes. S os indivduos eleitos ou

    nomeados que podem dizer que tm papis ou deveres. Eu fao aquilo que posso fazer.

  • Para quem tu escreve, Paulina?

    No princpio pois eu j estou na literatura h quase 25 anos , eu escrevia pra mim.

    Lembro-me de ter escrito pequenos poemas em cadernos de escola, etc. Depois de certa

    evoluo, publico um romance, que tem muito de ntimo, fruto da minha observao do

    mundo. E fui evoluindo at hoje. Chegado esse tempo, achei que chegava de me sufocar,

    de estar a pensar em criar, pois em qualquer esquina, em cada lugar, existem pessoas

    que tm algo para dar, algo para contar, mas no tm o domnio da leitura e da escrita,

    que o caso do curandeiro Rasta Pita. Ele tem uma histria magnfica para contar, mas

    um indivduo que aprendeu mais da tradio africana do que propriamente na escola

    formal. claro que ele sabe ler ou escrever o bsico, mas no para produzir um livro. Para

    mim, muito mais fcil pegar um gravador, ouvir a histria desse homem e transformar

    isso em um livro. Foi exatamente essa a tarefa que eu fiz. Mas tambm no foi s por isso.

    Eu sou uma pessoa que percebe um pouco das razes, da identidade e, portanto,

    acompanho esse conflito que existe entre o pensamento ocidental e o pensamento

    africano. Gosto de comparar os dois universos e acabei descobrindo que h muitos

    valores nossos, africanos, que esto a desaparecer, pois as pessoas que detm esse

    conhecimento no tem o domnio da leitura/escrita. E ento decidi, sobretudo com esse

    curandeiro, emprestar a minha escrita para algum contar a sua histria. Se for olhar para

    o livro, da maneira que est formado, uma biografia dele, a sua viso de mundo, mas

    escrito por mim. uma experincia. E mesmo no lanamento, tive a oportunidade de

    conversar com alguns curandeiros que se surpreenderam, porque a maior parte das

    pessoas que fazem o doutorado, o mestrado, a licenciatura em reas como antropologia,

    para conseguir o seu diploma, vo buscar os conhecimentos nessas pessoas. So

    perguntas, so questionrios muito leves, muito superficial, mas a partir do conhecimento

    dado pelo curandeiro, o indivduo da academia europeia consegue o seu diploma. E essa

    a primeira vez, segundo eles, que um escritor coloca um curandeiro em um patamar de

    visibilidade. E isso foi muito importante para eles.

    Expor estas histrias tradicionais uma maneira de combater essa imposio do

    saber colonialista?

    Sim, porque, repara bem, as pessoas de Moambique no conhecem o curandeiro. O que

    se sabe, se l sobre eles, foi escrito por antroplogos e socilogos no tempo colonial. a

    viso eurocntrica falando sobre um africano. Depois surgiu alguns outros livros um pouco

    melhores sobre esse tema, mas ainda so textos de academias ocidentais, com uma srie

    de esteretipos para descrever esses indivduos. Nessa experincia que eu tive, o

    curandeiro fala por si, em primeira pessoa. O tipo de mensagem que ele transmite est

    livre dos preconceitos ocidentais. , claro, eu de vez em quando sugeri melhores formas

    de expor as ideias dele. Mas eu deixei que espelhasse o seu mundo interior. O livro

    comeou a circular h trs semanas, j tem pessoas que leram e se surpreenderam.

    Segundo eles, esse livro ajuda a olharmos para essa classe de profissionais, h uma

    contribuio para a mudana de viso de algumas pessoas sobre a figura do curandeiro.

    Portanto, quanto mais livros houver volta desses indivduos, feito por eles ou por

    algum que lhes ajude a expressar, lhes d voz e lhes d lugar , a viso do mundo vai

    melhorar. No mnimo, a forma que sero tratados ser outra.

    impressionante como muitos moambicanos frequentam o curandeiro, usufruem

    do seu saber, mas escondem ou renegam. Por que a senhora acha que importante

    colocar em pauta esses tabus?

    Pois vai ajudar as pessoas a terem segurana em si mesmas. Para mim, quase todos so

    a favor. Todos os africanos frequentam o curandeiro pelo menos uma vez na vida. A razo

    bastante simples: existem solues que a medicina ocidental no tem. Ao meu ver, a

  • medicina ocidental quase mecnica, vai tratar do corao, do p, do olho. Enquanto que

    a medicina tradicional vai muito mais longe. Portanto, quero at usar as palavras desse

    curandeiro. Para se tratar um doente, preciso ter trs nveis: o nvel do indivduo, o da

    sociedade e o de deus. Primeiro, ele faz o diagnstico, lanando conchas ou pedras e

    pergunta aos espritos o que diz o olho dessa pessoa a si prpria, o que diz o olho do

    mundo e o que diz o olho de deus. O curandeiro, para tratar do doente, tem a dimenso

    individual, vai para a social e tambm tem a espiritual. A relao doente-curandeiro

    diferente da relao doente-mdico. O mdico est ali, faz o seu trabalho perfeito, mas

    olha apenas pelo lado do indivduo que est doente e, de vez em quando, da sociedade

    que o rodeia. A outra dimenso espiritual no faz parte do mundo ocidental. Todo o ser

    humano tem um qu de religiosidade, porque h momentos na vida em que tudo que nos

    rodeia falha, a necessitamos acreditar em uma fora suprema para poder resistir.

    Conheo casos de indivduos que foram diagnosticados com cancro, por exemplo. Uma

    doena fatal. Essa pessoa sabe, de antemo, que a medicina no tem uma soluo para

    ele; que a sociedade no tem uma soluo para ele. Mas, se esse indivduo tem f, numa

    dimenso maior, consegue resistir melhor, pois tem algo de transcende que o segura. E a

    entra a figura do curandeiro, que muito forte. No mundo ocidental, depois do mdico, as

    pessoas vo buscar o padre. Aqui no, quando a pessoa entra nessa fase, busca-se o

    curandeiro, que faz o indivduo circular nesse mundo alm da matria.

    Mas por que ainda h averso, por que um tabu? devido a influncia estrangeira,

    a influncia direta de um saber ocidental?

    Para mim, comeou com a influncia do ocidente. E essa presso continua! E continua em

    um pas independente, atravs daqueles que se julgam conhecedores do saber cientfico.

    Ento, quem faz maior presso hoje so os prprios moambicanos, e no o colonialismo

    que j foi. O colonialismo j se foi h quase 40 anos, mas ainda no tivemos tempo para

    termos uma conversa um pouco mais aberta sobre a nossa prpria identidade. Nesse

    momento, as grandes presses partem das Igrejas, que, para mim, so centros de

    superstio, mas tambm so centros de tabus, porque so elas que trazem com muita

    fora essa ideia do diablico, do satnico. Claro que nas nossas tradies tambm temos

    o medo do feitio, dos feiticeiros. Ns j possumos essas supersties nefastas, por que

    as igrejas tm que trazer mais?

    Voc cr que a Igreja Universal, to presente aqui em Moambique, tem influncia

    nessa marginalizao do curandeiro?

    No s, porque a Universal no a nica. Para mim tudo que so igrejas de fora, como

    Assembleia de Deus, Igreja dos Doze Apstolos, entre outras, trazem dentro de si uma

    ideologia colonizante. S que no so to agressivas como a Igreja Universal. Mas todas

    as igrejas defendem que tudo que esprito, toda a espiritualidade africana, tudo que

    cultura africana diablica. Todas pensam isso.

    Tu acha que a Igreja impede que a sociedade avance, no que diz respeito, por

    exemplo, valorizao da mulher e causa homossexual?

    Para mim, a Igreja tem coisas boas. No h dvida. Eu fao crticas s igrejas em apenas

    determinados aspectos. Na histria da frica, na histria de Moambique, ns

    encontramos igrejas que do formao, do educao, que amparam os rfos, que

    fazem uma srie de aes sociais importantes. Mas, ao mesmo tempo, trazem uma

    mentalidade colonizante. Portanto, eles do, mas fazem com que as pessoas que se

    beneficiam e as comunidades em volta deem os seus prprios valores em troca, para olhar

    apenas para aquilo que o pensamento ocidental. Ento isso no muito bom!

  • Paulina Chiziane (Foto: Bastio)

    H um colonialismo do saber entre os prprios moambicanos?

    Eu acho que sim. Um dos casos mais recentes de colonialismo que eu vi e que me

    deixou extremamente chocada foi quando estive em Chai, em Cabo Delgado. Chai o

    distrito onde comeou a luta armada pela libertao nacional. Portanto, um distrito dos

    heris, dos guerreiros, dos bravos, daqueles que lutam contra a instituio. Foi ali que

    comeou a guerra que culminou com a independncia do pas. Fui assistir ao funeral de

    um homem. Estava l trabalhando, um homem morre, todo mundo vai ao funeral. Como eu

    estava l, logicamente tambm fui. Logo depois de acabar o funeral, a famlia do morto

    comea a insultar a viva. Porque ela matou aquele homem, porque ela no poderia voltar

    mais para casa dela. Ela tinha que ir embora para a casa dos pais dela a partir naquele

    momento. Ora, a senhora tinha quatro filhos, no lhe deram sequer direito de ficar com os

    filhos, no lhe deram sequer o direito de voltar casa e buscar a roupa que era dela. Saiu

    do funeral expulsa, sem nada, para ir recomear a vida na casa dos pais. Isso

    tradicional. No a lei, a tradio. Ento, esse um distrito modelo, que luta contra a

    injustia. Eles fizeram a luta contra o colonialismo que vem do outro, mas o colonialismo

    domstico, aquele que vem da tradio, que cria marcas profundas nas pessoas,

    aplaudido porque tradio. Ento, mesmo no nvel da famlia, esse colonialismo existe, e

    se expande pela sociedade e assim por diante. Colonialismo no mais que relaes de

    poder de uns sobre os outros. E nesse caso concreto das mulheres maconde (grupo tnico

    que vive no nordeste do pas) chocante. Nunca esperei ver uma coisa dessas na vida.

    Como que essas crianas vo crescer longe da me? E aquele tipo morreu porque ele

    bebia muita cachaa. Ainda por cima isso. E, no fim, aquela mulher tem que ser expulsa,

    sem direito aos filhos gerados pelo prprio ventre.

    E por vezes a famlia materna a rejeita tambm.

    A rejeita. E para onde vai essa mulher? J h leis que resguardam a mulher viva, mas

    ainda pouco aplicada fora do centro urbano. Talvez por medo das prprias mulheres de

    irem atrs dos seus direitos Nas zonas rurais a tradio muito mais poderosa.

    impressionante viajar para o campo e descobrir que o meu pas tem um outro pas dentro

    dele. At parece que uma legislao para as cidades e outra para o campo. claro que

    a questo das guerras, a questo da pobreza influenciam bastante porque os servios

    pblicos no conseguem chegar a essas localidades. As pessoas vivem de acordo com as

    regras dos seus ancestrais, que uma coisa horrvel.

    A senhora viu algum avano da luta feminista no rompimento de algumas dessas

    tradies?

    As coisas esto a melhorar, no posso negar. E falando da minha experincia, quando eu

    tinha 18 anos, o sonho de uma mulher era casar e ter filhos; ter um empregozinho, casar e

  • ter filhos; fazer um enxoval e noivar. Ficar sentada espera que aparea um noivo. Esse

    foi o meu tempo de 18 anos. Passados cerca de 40 anos, a situao mudou muito. As

    mulheres j partem para uma situao melhor, para um profisso melhor. Lutam pela sua

    prpria autonomia. Mesmo nas zonas rurais, em que a tradio muito forte, se hoje se

    pergunta a uma me o que sonha para a sua filha, ela vai dizer que queria que fosse

    escola para ter um emprego amanh. O que diferente de 20 anos atrs, que a me dizia

    que agora que a filha cresceu tem que iniciar os rituais para achar marido e arrumar a vida.

    Hoje a viso mudou. Portanto, lento, mas h mudanas.

    Me impressionou muito o racismo interno de Moambique, essa supervalorizao do

    branco.

    Isso uma questo econmica, que tem a ver com toda a estrutura de vida que foi

    deixada pelo sistema colonial. Portanto, vai levar-se um tempo para se apagar, por isso

    mesmo necessrio continuar a dialogar a volta desses assuntos. Aqui no se v isso. Eu

    trabalhei na Zambzia (provncia a 1600 km da capital), onde a realidade bem mais crua.

    Os melhores postos de trabalho, as melhores posies, casas, so de mestios e dos

    negros. E eu escrevi um livro, O alegre canto da perdiz, que fala muito sobre isso, que me

    chocou profundamente. Porque a questo do racismo, muitas vezes ns olhamos como

    alguma coisa que vem do branco. No verdade. O livro que escrevi fala de uma mulher

    negra que teve dois maridos: o primeiro negro, com quem teve dois filhos, e o segundo,

    branco, com quem teve dois filhos. Portanto, ela tem 4 filhos: dois negros e dois mulatos. E

    o que ela faz? Transforma os dois filhos negros em subalternos dos mestios. E ela dizia:

    Os filhos mestios so especiais, os negros no. Porque o pai branco oferece rendas e

    sedas, po e queijo, enquanto que o pai negro s oferece bananas e cocos. uma

    questo econmica. E isso no fantasia, eu encontrei uma famlia assim. Os filhos

    mulatos so proprietrios de bombas de combustveis, de empresas, so pessoas ricas,

    enquanto os negros so serventes dos mulatos. E quem faz a gesto da vida a me

    negra, que mais escura que os prprios filhos. Ento a atitude dos prprios filhos no

    tem a ver com o individuo, uma questo de poder. Se ns recebssemos por igual

    pretos e brancos no haveria isso que vocs viram. Claro, o moo que est a trabalhar

    sabe que ao servir um branco vai receber uma gorjeta, e ao servir um negro no recebe

    nada. s por isso.

    Na dcada de 1980, voc foi uma grande militante jovem e feminista da Frelimo. Qual

    a sua avaliao da conjuntura atual do partido?

    No sei, eu s vezes no me dou ao tempo de analisar. como uma recusa de fazer esse

    tipo de anlise, por causa do desencanto que eu sinto. Eu fiz parte dos grupos, das

    confuses revolucionrias da poca, do tipo colar cartazes nas ruas, organizar greves. Eu

    fiz isso. Tinha um grande sonho, que era ver um pas melhor, um pas justo, etc. Mas o

    andar do tempo demonstrou novas realidades. Muitas pessoas que esto no poder hoje

    fizeram parte deste movimento contra o colonialismo, contra o capitalismo, contra a

    corrupo. E hoje so os mesmos que praticam aquilo que ontem combatiam. Ento isso

    d um desencanto. Tanta gente que sofreu, tanta gente que morreu Falando dos que

    esto no poder: estamos hoje em meio a um conflito armado. H todo um discurso da

    oposio, que diz que trouxe a democracia a Moambique, h toda uma fala de um desejo

    de paz. Queremos a paz. Mas, contrariamente, vo para o mato e comeam a guerrear

    com os militares. Ento isso tambm outro desencanto. O movimento da oposio foi

    aquele que trouxe a maior instabilidade do pas. Quando tudo parecia estar bem, eis que

    voltam para o mato. No sei porque razes e nem sei se estou interessada em conhecer

    as razes deles. A nica coisa que me interessa que h um povo que sofre, h um povo

    que morre. Ento esses indivduos, tanto do lado da oposio, quanto pelo lado dos que

  • esto no poder, esto a trair os seus prprios ideais. Enquanto uns lutavam contra o

    capitalismo, para criar uma sociedade igual para todos, tornavam-se eles os capitalistas.

    Os outros dizem que so os pais da democracia so os mesmos que violam a paz e criam

    distrbios pelo pas.

    Como voc v a organizao da sociedade civil em Moambique?

    Como em qualquer parte do mundo, eu acho que a atuao da sociedade civil muito

    importante, de extrema importncia, mas eu tenho as minhas crticas em relao a

    sociedade civil moambicana. Eu j trabalhei muito com movimentos da sociedade civil.

    Uma sociedade civil, para ser forte, tem de ser autnoma, financeira e politicamente, mas

    o que acontece com a maior parte das organizaes no governamentais (ONGs) em

    Moambique no isso. As nossas ONGs dependem do financiamento estrangeiro,

    portanto, qualquer posicionamento de um indivduo dependente vai sempre tender para

    agradar quele que paga. Por isso que digo: no existe sociedade civil em Moambique.

    Ainda no existe. Existir. O que temos so grupos de pessoas que so financiadas por

    organizaes estrangeiras. Que, de certa maneira, fazem diferena, porque conseguem

    trazer uma nova viso e conseguem dinamizar um pouco aquilo que o pas. A atuao

    da maior parte das ONGs em Moambique em relao ao governo uma atuao quase

    de concorrncia. como se as ONGs pudessem suprimir o governo. Ora, isso no pode

    acontecer, no pode. Ento so vrias questes que se podem levantar na volta desse

    assunto. A minha apreciao que, de fato, o trabalho das ONGS bom, mas a

    sociedade civil moambicana ainda precisa de muitos anos para se afirmar. uma

    sociedade dependente. Uma pessoa dependente nunca pode ter um bom desempenho.

    Tanto o investimento estrangeiro quanto a interveno cultural so muito fortes aqui

    em Moambique. A senhora acha que isso acaba influenciando muito nos rumos

    que o pas toma?

    Exatamente. Eu no acredito muito nos doadores. Se eles do, para tirar alguma coisa.

    No sei o que lhes encoraja a dar, porque no h ningum que d para nada. Esse pas

    conhecido h muitos anos e sempre se soube o potencial que Moambique tem. A partir

    dos anos 1940, dos anos 1950, sabe-se que o nosso pas rico em petrleo. Sabe-se.

    verdade que os estudos anteriores no eram to desenvolvidos como os estudos que hoje

    se fazem. Ento, os indivduos ou as instituies que doam porque sabem que amanh

    podero tirar benefcios. Esto a comprar o pas.

    Bem, seguindo nesse ponto. Hoje se fala muito sobre as ricas reservas de petrleo

    de Moambique, que vo ser intensamente exploradas em breve e que vo fazer o

    pas crescer muito. A senhora acredita que, apesar de entrar muito dinheiro no pas,

    essa riqueza seguir indo para as mos dos mesmos?

    Eu no sei o que posso dizer sobre isso. O que eu estou a dizer que aqueles que esto a

    dar esto a comprar alguma coisa. Eu no olho paras as ditas doaes feliz. Quem d,

    quer tirar alguma coisa. Ento, esto a comprar o pas. E, sobre a histria dos recursos

    naturais, confesso que percebo muito pouco sobre esse assunto. No entendo nem a

    minerao, nem nada disso. Mas o que eu j vi acontecer em outras partes do mundo me

    faz creer que isso vai a se replicar aqui. Conflitos, os conflitos amardos que vo continuar,

    a desestabilizao que vai continuar. Ns no temos capacidade tcnica nem mo de obra

    para controlar petrleo, nem gs, nem ouro, nem nada. No temos nada disso. E os que

    vm explorar, vm, extraem e vo-se embora. A gente no sabe o que tiram, o que fazem.

    Ento, no sei.

    Como voc v a aproximao do Brasil e de Moambique assim como com outros

    pases da frica?

  • Eu acho uma aproximao essencial. O Brasil no seria Brasil se a frica no existisse.

    Ah, isso est claro. Ns estamos ligados. Eu no estou a falar das questes polticas, pois

    entendo muito pouco desse mundo. Ou melhor, tambm no estou l muito interessada.

    Mas essa uma aproximao essencial, porque o negro que foi ao Brasil, que hoje talvez

    se calhar j no seja negro, devido a miscegenao, veio da frica. Ento muito

    importante essa relao. H um cordo umbilical entre o Brasil e a frica, e aqui no falo

    s de Moambique. Eu acho que essa parceria tinha que ser para sempre. Quanto s

    empresas brasileiras, eu no conheo muito as atuaes delas, ento no vou dizer muito,

    mas s vezes bom fazer essas crticas, que para prevenir os problemas que podem vir

    no futuro. Ora, o Brasil uma potncia, o Brasil forte e quando chega a um pas como o

    nosso pode haver tendncias para colonizar, pois a colonizao no est restrita Europa,

    uma questo humana. O indivduo tem tendncias de suprimir o outro. E isso algo que

    se tem que prevenir.

    Como as novelas brasileiras chegam em Moambique e como elas influenciam na

    criao de um imaginrio da sociedade, principalmente dos jovens?

    Acho que vocs esto aqui h algum tempo e devem ter observado as novelas que aqui

    passam. O gerente da empresa, na novela, o milionrio, o cientista so brancos. O

    carregador, o matador so pretos. H uma mudana nos ltimos tempos, no sei a partir

    de que ano, mas agora, por exemplo, h uma novela em que uma branca tem uma amiga

    mestia. E passeiam juntas, vo a festas, vo a lugares pblicos juntos. Isso no se via

    nas primeiras novelas que apareciam aqui. A negra ou a mulata faziam as limpezas. Era

    bem isso, a mulata na prostituio, nas drogas. A negra a varrer, o negro a carregar, a

    cozinhar, a servir. E o branco em um status muito mais alto. H uma tendncia para a

    mudana, h um pincelamento nas ltimas novelas, mas muito pouco mesmo. Portanto, a

    imagem que se passa realmente a de um Brasil branco e poderoso. Isso cria um

    esteretipo de um Brasil diferente. E achei muito interessante essa abertura com o Brasil

    que permite que ns, com muito mais facilidade do que antes, nos desloquemos at l e

    nos comuniquemos com os brasileiros, porque ns conseguimos captar a imagem do

    verdadeiro Brasil. Antes no era possvel, ns crivamos a imagem de um Brasil parecido

    com a Europa. Quando, afinal, as coisas no so assim.

    O que voc acha que mais difcil da sociedade Moambicana: se libertar desse

    colonialismo estrangeiro ou de questes ligadas tradio, como o patriarcado?

    Eu referi que havia colonialismo dos dois lados, tanto na tradio quanto no mundo

    europeu. O mais difcil de mudar a mentalidade, seja ela tradicional, seja ela da

    supremacia ocidental. Porque tudo trata-se sempre de mentalidade. muito difcil fazer a

    mudana. At as mudanas acontecerem, , meu deus eu ainda me lembro, foi, talvez,

    h uns dez anos: eu tinha minha vida tranquila, econmica e financeira minimamente

    estabilizada na altura e houve uma reunio de familia em que os mais velhos queriam

    tomar decises em relao a aspectos familiares. Ento estava o av, o tio-av e os outros

    tios-avs a volta, e eles que eram os dirigentes do encontro. De acordo com as normas

    patriarcais, as mulheres corriam por fora, no podem entrar, porque as decises so

    masculinas. Tomaram as decises, que incluam o pagamento de determinadas despesas,

    ento saem os homens da reunio e chamam a todos para dizer que tem que pagar. Eu

    disse no, eu no vou pagar por uma coisa que eu no sei do que se trata. Ah, no!

    Tens que pagar porque os mais velhos decidiram. Foi quando eu comecei a perceber que

    ali no se tratava de imposio, mas o sistema que estava a ser usado, sistema familiar e

    patriarcal que no reconhecia a mulher com direito palavra. Deu uma confuso muito

    grande, porque ns todas dissemos: Ok, os homens decidiram sozinhos fazer das suas,

  • ento eles que paguem. Pra ver o quo difcil a mudana e isso s acontece ao longo

    das geraes.

    Voc acha que tem um papel influenciador frente juventude moambicana?

    Eu no diria que tenho um papel, porque essa histria de papis est ligada s

    instituies. S os indivduos eleitos ou nomeados que podem dizer que tm o seu papel

    ou a minha responsabilidade. Eu fao aquilo que posso fazer. Eu dou a minha contribuio

    de acordo com as minhas capacidades. Voluntria, desinteressada E a minha idade, o

    meu percurso me dizem que devo, de vez em quando, transmitir algum legado a algum.

    por isso que eu fao determinadas coisas. No porque eu sinta que eu tenha um dever,

    um papel, uma responsabilidade. Socialmente eu no tenho responsabilidade nenhuma.

    Hoje eu no estou a trabalhar em instituio nenhuma, decidi ficar em casa por um tempo

    para escrever as coisas que me agradam, no estou ligada nem s ONGs, nem ao

    governo, nem poltica, sou a cidad mais independente do mundo. Portanto, no tenho

    papel nenhum, fao aquilo que eu posso. Pronto!

    Como foi ser a primeira mulher a lanar um romance aqui em Moambique? A

    senhora sofreu muito rechao? Foi muito difcil lanar o livro?

    Havia outras mulheres escritoras com seus livros recordo-me agora de uma portuguesa,

    Glria de SantAnna, ela lanou contos; Clotilde Silva, que fazia poesia; Lilia Momp, que

    fazia contos; Lina Magaia, que fazia crnicas. Ento eu apareo a lancar um romance. Pra

    mim foi acidental, no tinha a menor ideia, nem sabia o que era isso. Fui escrevendo e a

    coisa ganhou volume. Publiquei. Muito longe de imaginar que estava a ser a primeira

    mulher a publicar um romance. Anos mais tarde, quando me aproximei disso, achei

    engraado at, porque entre mim e as outras mulheres que j tinham feito suas

    publicaes, eu no via a menor diferena. Hoje eu reconheo que, afinal, eu dei um

    passo especial. Agora, as lutas sempre houve, e as minhas lutas esto relacionadas com a

    raa e com o sexo. Vou explicar: Glria de SantAnna era branca, mais velha ela foi pra

    Portugal no sei muito bem. Clotilde Silva era branca. Portanto, fazem parte das pessoas

    que tinham direito educao. Depois surge a Lilia Momp, que mestia e, portanto,

    tambm faz parte das pessoas que tinham acesso educao depois dos brancos. Depois

    surge a Lina Magaia, que estava ligada revoluo e vinha de um status social mais

    elevado que o meu. Ela era negra. A primeira negra que publicou depois das mulheres que

    eu mencionei foi a Lina Magaia. Depois vem eu, que vem de lugar nenhum. Quando eu

    chego com a minha proposta de trabalho, junto daqueles que j escreviam, acharam isso

    muito estranho e olharam pra mim querendo saber quem ela e donde que ela vem.

    A gente veio conversando sobre o documentrio que esto fazendo sobre a

    senhora. Poderia comentar sobre a segunda parte do filme, que vai retratar o

    momento mais espiritual, em que a senhora estava doente?

    Ah, eu acho que no tem nada de outro mundo. Isso , os escritores so sempre aqueles

    indivduos que buscam a evaso e a abstrao. No sei o que aconteceu comigo, porque

    eu estava a trabalhar. Naquele momento de maior concentrao em que eu buscava essa

    evaso, essa abstrao, a busca de uma ideia brilhante, a minha cabea viajou (risos). Fui

    e no voltei (risos). Deu uma crise terrvel! Porque crise mesmo tive a primeira e no se

    sabia exatamente o que era, depois a assistncia que eu tive no foi das melhores, o

    diagnstico no era claro. Depois fiquei hospitalizada durante uma semana e de l para c

    eu fiquei em tratamento. Ento as explicaes que podem ser dadas Como escritora eu

    sei alis, os escritores e a maior parte dos artistas de vez em quando tm umas viagens

    ao desconhecido (risos) e durante a viagem para o desconhecido eu me encontro com

    entidades que fazem parte de mim mesma. Eu encontro com meu pai falecido ou com

  • meus tios ou com minha me. Eram pessoas que eu via e com elas convivia normalmente.

    O que me levou psiquiatria foi exatamente isso: meu pai vinha e conversava comigo e eu

    ficava a conversar com ele animadamente e toda gente dizia: A Paulina t a falar

    sozinha, e eu no falava sozinha, tava a falar com ele. claro que com o tempo e com o

    tratamento que eu fui tendo, essas imagens, manifestaes, foram se apagando. A

    medicina deu uma explicao ao meu estado, que esta que estou a dar agora. A tradio

    d outra explicao sobre o assunto. As religies do outra. Vou ser muito clara: as

    religies dizem que isso diablico, como se meu pai fosse um diabo alguma vez esse

    o grande insulto que eles podem dar a dignidade de um ser humano. Os mdicos tm l as

    suas razes lgicas, pois atuam de acordo com a lgica. E a tradio muito clara: diz

    que tive um momento de encontro com meus antepassados, com os espritos deles.

    A senhora acredita em alguma?

    Acredito em duas, menos numa. Acredito nos mdicos, naquilo que a medicina diz, porque

    lgico e coerente, e acredito na minha tradio. Agora na Igreja Deus me livre!

    Este momento ajudou a senhora a produzir?

    O que posso dizer que ajudou-me a ter uma nova viso, isso sim. De acordo com aquilo

    que eu pude ver e o que posso dizer sobre este momento isso. A morte no existe,

    existe, sim, uma mudana de mundo. Ento, a partir do momento em que eu vivi aquela

    situao a morte uma mudana de mundo. Ento a vida ficou mais prtica e mais

    tranquila.

    J que a senhora acha que a morte s uma passagem de mundo, o que acha que

    deve deixar aqui se que precisa deixar algo aqui?

    (Risos) Acho que a esperana de vida em Moambique so uns 35 anos [de fato, segundo

    o Banco Mundial, a expectativa de vida de 49,5 anos (2011)], eu tenho 58 ento j estou

    fora do prazo (risos). Estou no lucro, ento acho que fiz o que pude fazer. O que eu deixo

    no sei. No sei se aquilo que andei a fazer tem algum valor. Mas tenho essa

    preocupao de deixar alguma coisa.

    Algumas pessoas aqui em Moambique te taxam de radical. O que voc acha disso?

    Ah, deixa-os. (risos) As pessoas esto muito acomodadas e aceitam tudo que dado a

    elas, sem questionar. Isso acontece na maior parte das academias, das instituies

    pblicas ou privadas. As pessoas no esto habituadas a questionar. Ento, quando veem

    algum que questiona, dizem logo que radical.

    Fora escrever e pensar novos projetos, o que voc gosta de fazer?

    Sentar na minha varanda, olhar o vazio e tomar o meu copo de cerveja. (risos)