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MARGEM, SÃO PAULO, N O 15, P. 13-36, JUN. 2002 Afinidades eletivas: cibernØtica, ciŒncias cognitivas e a biologia do conhecer CRISTINA MAGRO Resumo Numa reflexªo histórica sobre o desen- volvimento das teorias científicas contem- porâneas sobre o conhecimento, este arti- go indica peculiaridades do modo como sªo tratadas questıes atinentes a esse cam- po de reflexıes pela biologia do conhecer, de Humberto Maturana, produzindo nele soluçıes diferenciadas em todos os níveis, antecipando problemas e soluçıes hoje em pauta nesses domínios. A argumentaçªo gira em torno de dois grandes eixos, que sªo reflexos da maneira de se conceber o conhecimento em cada um dos movimen- tos teóricos examinados: os diferentes mo- dos de reunir as tradicionais Æreas do co- nhecimento e abordar os fenômenos que lhes sªo atinentes, e o ponto de partida que cada um assume como modelo para o co- nhecimento. Palavras-chave: epistemologia; lingua- gem; cogniçªo; ciŒncias cognitivas; biolo- gia do conhecer. Abstract In a historical reflection about the development of the contemporary scientific theories about knowledge, this article indicates peculiarities in the way as concerning subjects are treated to this field of reflections by the Biology of Knowing, of Humberto Maturana, that produces differentiated solutions in all of the levels, advancing problems and solutions today on the agenda in those domains. The argument rotates around two great axis, which is reflected in the way of conceiving the knowledge in each of the examined theoretical movements: the different ways

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DOSSIÊ: ENTRE NATUREZA E CULTURA — AFINIDADES ELETIVAS

Afinidades eletivas:cibernética, ciências cognitivas

e a biologia do conhecer

CRISTINA MAGRO

Resumo

Numa reflexão histórica sobre o desen-volvimento das teorias científicas contem-porâneas sobre o conhecimento, este arti-go indica peculiaridades do modo comosão tratadas questões atinentes a esse cam-po de reflexões pela biologia do conhecer,de Humberto Maturana, produzindo nelesoluções diferenciadas em todos os níveis,antecipando problemas e soluções hoje empauta nesses domínios. A argumentaçãogira em torno de dois grandes eixos, quesão reflexos da maneira de se conceber oconhecimento em cada um dos movimen-tos teóricos examinados: os diferentes mo-dos de reunir as tradicionais áreas do co-nhecimento e abordar os fenômenos quelhes são atinentes, e o ponto de partida quecada um assume como modelo para o co-nhecimento.

Palavras-chave: epistemologia; lingua-gem; cognição; ciências cognitivas; biolo-gia do conhecer.

Abstract

In a historical reflection about thedevelopment of the contemporary scientifictheories about knowledge, this articleindicates peculiarities in the way asconcerning subjects are treated to this fieldof reflections by the Biology of Knowing, ofHumberto Maturana, that producesdifferentiated solutions in all of the levels,advancing problems and solutions todayon the agenda in those domains. Theargument rotates around two great axis,which is reflected in the way of conceivingthe knowledge in each of the examinedtheoretical movements: the different ways

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to gather the traditional areas of knowledgeand to approach the concerningphenomena, and the starting point thateach one assumes as the knowledge model.

Key-words: epistemology; language;cognition; cognitive sciences; Biology ofKnowing.

Construindo uma história comum

Estando próximos de cinqüentaanos da realização do Simpósio sobrea Teoria da Informação,1 a �data con-sensual do nascimento das ciênciascognitivas�, como Gardner gosta dedizer, histórias diversas vêm sendoproduzidas rastreando os movimentosintelectuais que deram origem a essaciência da mente, que marcou indele-velmente o pensamento científico e fi-losófico da segunda metade do séculoXX.2 Essa produção histórica não serve

apenas à celebração da longa hege-monia do modelo cognitivista, que, detão impositiva e duradoura, levou aspróprias ciências cognitivas a seremfreqüentemente confundidas com essatendência teórica. Compreendê-la as-sim seria tomar tais reflexões de ma-neira superficial, impedindo-as de con-tribuir significativamente para a reava-liação do período e para a ampliaçãodos horizontes de um projeto que secaracterizou por um vigoroso progra-ma de trabalho (inter)disciplinar paratodas as áreas envolvidas. Os descon-fortos e questionamentos provenientesdo próprio envidamento de esforçosnum projeto unificado para as ciênciascognitivas � que ainda hoje angariapolpudos recursos e congrega interes-ses legítimos � ou os desconfortos equestionamentos resultantes do desen-volvimento independente das diversasáreas de conhecimento pertinentes àdiscussão despertam hipóteses de quea origem mesma das perguntas que omovimento se dispôs a responder me-rece ser revisitada, incluindo o contex-to em que elas surgiram e os eventosque selecionaram seus caminhos pre-ferenciais de resposta.

Dentre as diversas histórias re-centemente publicadas, de particularsignificação é o livro de Jean-PierreDupuy, Nas origens das ciências cog-nitivas.3 Nele o autor narra e interpre-ta as influências e conseqüências, so-bre diversos setores do pensamentointelectual e principalmente sobre oprojeto das ciências cognitivas, do

1. O Symposium on Information Theory foi reali-zado no Massachussets Institute of Technology(MIT), de 10 a 12 de setembro de 1956.2. Alguns autores, como H. Gardner, insistem nademarcação do início das ciências cognitivas que,no entanto, como veremos, é uma conseqüênciade conversações anteriores � cf. GARDNER, H.(1985), The mind�s new science � a history of thecognitive revolucion. Nova York, Basic Publishers,p. 28. Em português, além das traduções deDupuy e Gardner, temos ainda a introdução de J.F. Teixeira, que nos oferece um panorama bastan-te geral das diversas tendências das ciênciascognitivas � cf. DUPUY, J. -P. (1996), Nas origensdas ciências cognitivas. São Paulo, Unesp;GARDNER, H., op.cit.; TEIXEIRA, J. F. (1997),Mentes e máquinas � uma introdução à ciência cognitiva.Porto Alegre, Artes médicas. De interesse tam-bém para a história do período é HEIMS, S. (1991),The cybernetic group. Cambridge, MIT Press. 3. DUPUY, J. -P., op. cit.

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fervilhante movimento transdiscipli-nar, cujo principal cenário foram asConferências Macy, num total de dez,realizadas entre 1946 e 1953, sob osauspícios da fundação filantrópica ame-ricana Josiah Macy Jr. Essas conferên-cias foram concebidas e coordenadas,principalmente, pelo neurocientistaWarren McCulloch, e freqüentadas porpesquisadores do porte de GregoryBateson, Margareth Mead, RomanJackobson, Norbert Wiener, só paracitar uma pequena porção deles.4 Alémdessas, pelo menos três outras confe-rências permitiram que se levasse adi-ante o projeto intelectual ambicioso dacibernética, já que esse movimento nãodispunha de um centro acadêmico oude pesquisas no qual seus protagonis-tas se reunissem e no qual suas idéiasfossem primariamente desenvolvidas.

Dupuy analisa conceitos e teoriasemergentes daqueles calorosos deba-tes que consolidaram o movimentociberneticista, permitindo-nos compre-ender os motivos da euforia ante a imi-nente conquista da unidade entre asciências � que é como a cibernética ima-ginava seu empreendimento � e as ra-

zões da sua extensiva influência no pen-samento científico e filosófico das últi-mas décadas. Ele oferece também in-dicações do quanto o espírito de pionei-rismo e a ambição da construção deuma ciência geral do funcionamento damente, não refreada por quaisquerfronteiras ou limites disciplinares tra-dicionais, constituíram, paradoxalmen-te, entraves para o diálogo com idéiasdisponíveis na época e com pesquisa-dores que poderiam ter contribuídopara o projeto.5

Um dos interesses desse livro estáno fato de que, nele, Dupuy se propõea discutir em que medida se pode di-zer que a cibernética é a matriz da qualse originaram as ciências cognitivas6 e,ainda, procura entender por que essarelação é freqüentemente obnubilada.O projeto de tratar na ciência questõesde interesse tradicionalmente confina-do à filosofia, como o estudo da mentee do conhecimento, e, ainda, que issofosse feito numa abordagem que con-gregasse inúmeras disciplinas, que sepretendesse universal, que dependes-se da postulação de sistemas funcionaisespecializados, tomando as ciências danatureza como paradigmáticas doconhecimento científico verdadeiro �portanto o modelo a ser seguido �, sãoalguns dos elementos que nos permi-tem falar das ciências cognitivas comoaparentadas com a cibernética. No en-tanto, como afirma Dupuy, com fre-qüência os rebentos da cibernética nãose reconhecem como tendo qualquer

4. Em Dupuy encontramos a lista completa dosparticipantes dessas conferências. RomanJackobson participou da 5ª reunião, realizada em1948, inteiramente dedicada à estrutura da lin-guagem. Num total de vinte unidades temáticasdas conferências, a comunicação, o tema predile-to da cibernética, é discutida, envolvendo refle-xões sobre a linguagem, as comunicações anor-mais, a teoria dos jogos. Para a lista dos partici-pantes, ver DUPUY, J. -P, op. cit., pp. 92-93, nota32. Para comentário a respeito do interesse pelacomunicação, ver ibid., p. 97.

5. DUPUY, J. -P., op. cit., p. 16.6. Ibid., pp. 15-16.

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grau de parentesco entre si nem comela, ciosos da relevância da definiçãoprecisa de seus conceitos e da ne-cessidade do estabelecimento claro demetas em empreendimentos de cará-ter tão geral. Assim, quaisquer diver-gências acabaram, nesse contexto, porconstituir razões suficientes para aemergência de novas linhagens teóri-cas apartadas das demais, recusandoassociações que eventualmente des-viassem das rotas de cada projeto.

Das férteis discussões que marca-ram o período ciberneticista, segun-do Dupuy, conhecemos então inúme-ros produtos, muitos dos quais rejei-tam esses laços de família. Na sua pri-meira fase, decisivamente desenca-deada pelos trabalhos de Alan Turinge Gödel, a cibernética produziu a in-teligência artificial e as ciências cog-nitivas em sua versão primeira, ocognitivismo; e, na segunda fase, prin-cipalmente graças à influência deHeinz von Foerster, produziu a ciber-nética de segunda ordem ou segundacibernética, e, com ela, as teorias docaos, da complexidade, da auto-orga-nização, da autopoiese � esse último,o nome da hipótese explicativa da or-ganização dos seres vivos com o quala biologia do conhecer e suas diver-sas utilizações, em campos variados,ficaram conhecidas.

A obra de Humberto Maturana, decerto modo, não escapa da crítica for-mulada por Dupuy ao insulamento pro-posital dos descendentes da cibernéti-ca. De uma elegância minimalista, o tra-balho de Maturana é assinalado poruma irremovível preocupação com a

precisão conceitual, por uma surpreen-dente recursividade, por sua recusa deassociações intelectuais pontuais, depressupostos tradicionais, do vocabu-lário desgastado, das proposições li-nearmente encadeadas e sintéticas, dasubmissão à morfologia e à sintaxe cor-rentes quando essas não parecem ser-vir para expressar adequada e concisa-mente seu pensamento.7 Sua hetero-doxia, sua recusa dos pilares centraisdo pensamento ocidental, seu compro-misso de pôr permanentemente em fun-cionamento o mecanismo explicativoda teoria gerando as explicações neces-sárias de forma consistente são marcasde seu pensamento.

Os efeitos colaterais dessa atitudeadmirável, no entanto, fazem-se sen-tir: mesmo quando os leitores deMaturana se identificam com suasidéias, especialmente pela possibilida-de que elas nos oferecem de tematizara experiência e pela argumentação con-sistente e diversa daquela a queestamos habituados, costumeiramentetêm dificuldade de inserir suas discus-sões em contextos mais amplos. Isso,por vezes, resulta tanto em compor-tamentos dogmáticos, indesejáveis emesmo incompatíveis com a própriateoria � que o autor explicitamenteafirma ser um domínio explicativo aolado de outros, cuja validade depen-de de as respostas que ele engendrasatisfazerem ou não às perguntas que

7. Ver, a esse respeito, MAGRO, C. (1997), �Apre-sentação�. In: MAGRO, C.; GRACIANO, M. eVAZ, N. (eds.). A ontologia da realidade. Belo Ho-rizonte, Ed. UFMG, pp. 9-13.

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venhamos a formular8 �, quanto eminterpretações superficiais ou sim-plistas, que deslizam exatamente nadireção dos cânones que o autor recu-sa. Além disso, é comum a sensação deimpotência dos leitores ante tão amploe consistente discurso, resultando emque, hoje, seu desenvolvimento tem sedado basicamente pelo trabalho do pró-prio autor. Isso não quer dizer que abiologia do conhecer não tenha produ-zido interessantes reflexões e aplica-ções, sobretudo nos estudos da cogni-ção, da linguagem, na imunologia, naneurobiologia, nas ciências sociais, napsicologia das organizações, na tera-pia familiar, por exemplo. Estou expres-sando aqui algumas das dificuldadesque tenho percebido, tanto ensinandoa biologia do conhecer, quanto lendo ediscutindo essas leituras com outraspessoas.

Se aceitamos a argumentação deDupuy podemos dizer, então, que asciências cognitivas, que tão significati-vamente marcaram o cenário intelec-tual nas últimas décadas, e a biologiado conhecer originaram-se do mesmocontexto de discussões, embora em fa-ses distintas. Mais jovem que as ciên-cias cognitivas, a biologia do conhecer,�essa outra jóia da segunda cibernéti-ca�, no dizer de Dupuy,9 estava sendocriada pelo neurobiólogo chileno

Humberto Maturana no final da déca-da de 1960, e ganhando impulso e di-fusão através da colaboração de Fran-cisco Varela nas décadas de 1970 e1980. A segunda cibernética tinha in-troduzido nas discussões em curso afigura do observador como partícipeindelével de nossas observações, denossas explicações, científicas ou não.Com a biologia do conhecer, o obser-vador ganhou especificação biológica,ganhou vida, ganhou uma caracteriza-ção que permite tanto aparentá-lo aosdemais seres vivos que conhecemosquanto distingui-lo daqueles. Nossasexplicações puderam ser entendidascomo reformulações de nossa expe-riência em termos aceitos pela comuni-dade dos observadores que propõemperguntas e requerem para elas deter-minados tipos de resposta. Pudemosainda compreender que a história deinterações recorrentes e recursivas queo observador mantém no meio em quedesenvolve sua ontogenia é uma his-tória de mudanças estruturais no do-mínio de sua fisiologia, congruente comas mudanças estruturais do meio, e,portanto, com tais interações. Assim,esse nascimento tardio, essa descendên-cia da segunda geração da cibernética� e não da primeira � fez toda a dife-rença, em relação à tradição desses es-tudos, para o modo como Maturana for-mulou e propôs soluções para as ques-tões relativas ao conhecimento e à lin-guagem.

O corte feito na nascente do movi-mento ciberneticista, apontando essecontexto comum de discussões entre abiologia do conhecer e as ciências cog-

8. Essa discussão encontra-se, por exemplo, emMATURANA, H. (1997), �Realidade: a busca daobjetividade, ou a procura de um argumento coer-civo�. In: MAGRO, C.; GRACIANO, M. e VAZ,N. (eds.). A ontologia da realidade � HumbertoMaturana, op. cit.9. Ibid. p. 138.

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nitivas, parece-me bastante satisfatóriopara orientar a presente discussão, in-clusive porque me agrada a ousadia eo entusiasmo daquele projeto coletivo,da produção desenfreada de idéias, damistura das fórmulas matemáticas elógicas com o puro lirismo de poesiase histórias pessoais, da admiração pe-los colegas de empreendimento, quecaracterizaram esse período ímpar dopensamento intelectual do século XX.10

É evidente que essa história poderiaser rastreada por outra trilha, indo lon-ge até as raízes do pensamento racio-nalista grego, mostrando sua influên-cia em cada uma das diversas áreas quese reuniram no projeto da cibernéticae, posteriormente, no das ciências cog-nitivas, fosse a neurobiologia, a lingüís-tica, a filosofia, a economia, a psicolo-gia, e evidenciando a ruptura propor-cionada pela biologia do conhecer...Textos de Norbert Wiener, de WarrenMcCulloch, bem como de líderes inte-lectuais das ciências cognitivas, comoNoam Chomsky, mostram-nos , em suaenorme erudição, que a direção privi-legiada por suas idéias tem uma histó-ria que data de muitos séculos atrás.Isso não quer dizer, de modo algum,que esses pesquisadores não tenhamcontribuído significativa e produtiva-mente para o desenvolvimento dessahistória, pois eles ocuparam flancrosnão preenchidos pela tradição. Uma talincursão certamente nos deixaria en-trever que o sucesso da aventura cien-

tífica da cibernética, além de ser devi-do às circunstâncias sociais e políticas,pode ser compreendido também comofruto da genialidade daqueles que sou-beram reformular problemas tradicio-nais de maneira inovadora, colaboran-do para seu crescimento. O reconheci-mento dessa história comum quer, noentanto, apontar que essas pesquisasmantiveram-se fiéis a diversos pressu-postos tradicionais que têm se mostra-do indesejáveis no próprio curso dodesenvolvimento das áreas associadasa esse domínio de discussões.11

Pela narrativa de Dupuy, vemostambém que a cibernética nunca foi,nem no seu início, um bloco de idéiashomogêneo e distensionado, e que re-formulações conceituais foram sendopermanentemente promovidas ao lon-go de sua história. Alguns de seusmembros eram mais teóricos que ou-tros, alguns privilegiavam a modeli-zação matemática mais que outros. Al-guns não se conformavam com a mo-delização identificadora de seres vi-vos em termos de máquinas ou com autilização de categorias da física paraa compreensão de fenômenos bioló-gicos. Além disso, havia um contin-gente enorme de psicólogos partici-pando das reuniões, um ativo contra-ponto para o antipsicologismo domi-nante. Essa diversidade de posiçõespermite-nos postular que naquele pe-ríodo estão as sementes das principaisalternativas que as ciências cognitivasconhecem hoje.

10. Ver, em especial, os textos de MCCULLOCH,W. (1998), reunidos no livro Embodiements of mind.2ª ed. Cambridge, MIT Press.

11. Ver, a esse respeito, também DUPUY, J.-P.,op. cit., p. 15.

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Vou então tomar a divertida nar-rativa de Jean-Pierre Dupuy dessa �his-tória de um fracasso � ainda que umfracasso grandioso�12 �, da trajetóriadessa ciência geral a que ele se referecomo �a parente mal amada� de inú-meros descendentes, alguns mais e ou-tros menos famosos, como um pontode partida providencial para indicaralgumas peculiaridades do modo peloqual são tratadas, na biologia do co-nhecer, as questões de que se ocupa-vam aqueles pesquisadores e poste-riormente os cientistas da cognição,produzindo para elas uma alternativaradical. Não se trata de fazer aqui umamera genealogia e impor aos descen-dentes heranças indigestas de ances-trais comuns, nem de repetir o inimi-tável feito de Dupuy, inclusive porquesua história pára no momento mesmoem que a minha está pronta para co-meçar. A aceitação das relações apon-tadas por Dupuy irá me permitir espe-cificar, por contraste, que a biologia doconhecer também dirigiu sua atençãopara a questão do conhecimento, da lin-guagem e suas relações propondo paraelas um tratamento científico, do mes-mo modo que as ciências cognitivas,mas que, compreendendo de uma ma-neira completamente distinta dessas osseres vivos, sua fenomenologia, o co-nhecimento e a linguagem, a biologiado conhecer traz para o problema so-luções diferenciadas em todos os ní-veis, antecipando muitas das questõese soluções que hoje estão em pauta nes-ses domínios.

Vou procurar desenvolver as refle-xões que julgo necessárias em torno dedois grandes eixos, que são reflexos domodo de conceber o conhecimento emcada um dos movimentos teóricos emquestão: os diferentes modos de reu-nir as tradicionais áreas do conhecimen-to e abordar os fenômenos que lhe sãoatinentes, e o ponto de partida que cadaum assume como modelo para o conhe-cimento. Com isso espero oferecer con-dições de avaliarmos a precisão e anovidade da biologia do conhecer numcontexto que nos é bastante familiar emais amplo de conversações. Hoje, abiologia do conhecer pode ser aponta-da como uma teoria suficientementeforte, consoante com inúmeras vozesque já se fazem ouvir e que são contrá-rias às estratégias representacionais ecomputacionais das ciências cognitivasortodoxas e dos estudos tradicionaisdo conhecimento e da linguagem. Elaé, desta forma, reconhecida como ca-paz de contribuir de maneira relevan-te para o desenvolvimento da área.

O problema � e esse não é um pro-blema menor � é que pressupostos,estratégias e soluções que colaborarampara que o cognitivismo das ciênciascognitivas fosse tomado entusiastica-mente como o apogeu do conhecimen-to científico e filosófico no Ocidente sãofrontalmente recusados pela biologiado conhecer, o que é em parte respon-sável pela dificuldade de sua compre-ensão, avaliação e absorção. Como ve-remos, o contraste entre a biologia doconhecer e as soluções canônicas noâmbito dessas conversações, tantosanos após o início do domínio do cog-12. Ibid. p. 17.

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nitivismo e da própria elaboração dateoria por Maturana, só tende a evi-denciar as particularidades que fazemdela um conjunto arrojado e atual deidéias.

As diferentes estratégiasda multidisciplinaridade

A construção de uma ciência geraldo funcionamento da mente, não de-limitada pelas fronteiras disciplinarestradicionais e, ainda, inserida numprojeto ético e político de promoçãogeneralizada de saúde mental e pazmundial,13 era o que reunia ao mesmotempo, no movimento ciberneticista,matemáticos, engenheiros, neuro-biólogos, economistas, antropólogos,sociólogos, lingüistas, ecologistas, psi-cólogos e psicanalistas, alguns comassento permanente nas reuniões, ou-tros com participação eventual. A de-terminação de romper com os limitesdas disciplinas era tal que se pedia, àépoca, que cada um dos participantes

abrisse mão de sua formação originalpara participar das conversações. Ouseja, sugeria-se que os biólogos nãoouvissem com ouvidos de biólogos,que os psicólogos não ouvissem comouvidos de psicólogos, e assim pordiante. Expressão disso é a recomen-dação de cautela que aparece noCybernetics of Cybernetics com relação atermos como biocibernética, neuro-cibernética ou cibernética das organizações,que poderiam, dependendo do uso,ser mais uma manifestação das forçasacadêmicas reducionistas que insistemem classificar tudo em termos das dis-ciplinas tradicionais, minando assim aunidade transdisciplinar da ciênciaque a cibernética procurava promo-ver.14

Não foram poucos os fatores quecontribuíram decisivamente paraacender as esperanças no sucesso doprojeto das ciências cognitivas e paragarantir que vultuosos aportes de re-cursos fossem destinados à área. Mas,certamente, dentre esses está tambéma defesa de uma ciência unificada comoa sonhada pela cibernética, significan-do que o progresso das ciências comoum todo estaria culminando nesseprojeto coletivo, no qual, portanto, es-forços irrestritos deveriam ser inves-tidos. Para alguns, esse era um em-preendimento em nome da verdadeúnica, como a propaganda institucionalde muitas áreas preconizava � e ain-

13. É preciso ressaltar que nem todos os partici-pantes daquele projeto estavam envolvidos coma elaboração de artefatos pacifistas, como NorbertWiener, empenhado em conceber, por exemplo,aparelhos para deficientes auditivos e para ou-tros distúrbios funcionais. Outros, como Johnvon Neumann, também um dos pioneiros do mo-vimento, trabalhava no desenvolvimento da bom-ba de hidrogênio. Um livro sobre esses dois per-sonagens, tão cruciais na cibernética, é John vonNeuman and Norbert Wiener. From mathematics totechnologies of life and death, de Steve Heims, pu-blicado em 1980 pela MIT Press, enfatizando ocontexto socioeconômico, político e ideológico daAmérica do pós-guerra (DUPUY, J. -P., op. cit.,p. 13 e 15).

14. FOERSTER, H. V. (1995), Cibernetics ofcybernetics: the control of control and thecommunication of communication. 2ª ed. Mirneapolis,Future Systems, Inc., p. 3.

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da preconiza.15 Para outros, e talvezprincipalmente para as agências fi-nanciadoras, mas também para osamantes de uma boa tecnologia, aaposta no desenvolvimento da tec-nologia de comunicação e controle �como os ancestrais das ciências cog-nitivas já haviam anunciado ser possí-vel e promissor � justificava o em-preendimento.

Nas ciências cognitivas, no entan-to, o modo de desenvolver o projetode uma ciência unificada é distinto da-quele proposto pela cibernética. Comoo episódio a que vou me referir é re-cente, deve estar bem fresca na me-mória de cada um de nós a definiçãoestrita que, por exemplo, a lingüísticaganhou, dos anos 1960 para cá, no quediz respeito ao objeto de estudo rele-vante para a área, ao marco teórico aser seguido, aos pressupostos a seremadotados, ao que passou a ser consi-derado tema pertinente de pesquisa,à formação adequada do lingüista pro-fissional. Esse foi um panorama cu-rioso, ao menos retrospectivamente,quando já parecem dissipadas as ma-nifestações ressentidas de repúdio aoregime disciplinar imposto naquela

época.16 Ao mesmo tempo que os lin-güistas se sabiam (ou suspeitavam queestivessem) envolvidos em um proje-to amplo para o qual sua contribuiçãoera crucial � na medida em que a aná-lise da linguagem deveria ser parte in-tegrante da busca da compreensão defunções mentais diversas �, os pro-blemas, as soluções, as reflexões teó-ricas desse projeto global raramenteserviram, de maneira explícita, comopano de fundo para o conjunto dos lin-güistas, exceto, e de modo significati-vo, para o mentor daquela tendência.

Assim, as evoluções do modelo queacompanharam as modificações intro-duzidas com a idéia de processamentoparalelo, por exemplo, os ajustes teóri-cos em função da plausibilidade da de-terminação genética nos termos pro-postos pelo modelo inicial e da com-preensão da relevância dos processosde desenvolvimento, as adequações àsinvenções e os desdobramentos da pes-quisa em neurofisiologia não se consti-tuíram, em geral, como passíveis deformulação enquanto tais pela grandemaioria dos lingüistas, dedicados queestavam em construir análises formaispara pontos gramaticais específicos.Não é à toa que coube basicamente aChomsky produzir a unidade teóricacom as demais ciências envolvidas noprojeto do qual ele foi um dos arautosou abençoar diferentes versões de mo-delos que a ela se ajustassem, sufocan-

15. Essa atitude está expressa em CHOMSKY,N. (1995), �Language and nature�. Mind, vol.104, nº 413, pp. 1-61; DILLINGER, M. e PALÁ-CIO, A. (1997), �Lingüística gerativa: desenvol-vimento e perspectivas. Uma entrevista comNoam Chomsky�. D.E.L.T.A., v. 13, nº especial,pp. 195-229; para uma crítica da políticainstitucional ver, por exemplo, TAYLOR, T.(1990), Review of �The politics of linguistics�,by Frederic Newmeyer. Language, v. 66, nº 1, pp.159-162.

16. Sobre a tensão vivida no interior da disciplinano período, ver HARRIS, Randy Allen (1993), Thelinguistics wars. Nova York, Oxford UniversityPress.

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do sumariamente alternativas que, em-bora muitas vezes perspicazes, eramcontrárias aos dogmas que ele haviaabraçado ou que abraçava a cada mu-dança na rota do projeto maior.17

Nesse contexto é notável o traba-lho de Steven Pinker, como o LanguageInstinct,18 reunindo desenvolvimentosteóricos e experimentais de diversasáreas, da genética à neurofisiologia, dodesenvolvimento à patologia de fala,que procura restabelecer a atualidadedo programa e reconstruir a ponte,ruída, entre os fenômenos modeliza-dos e o modelo. Embora Pinker afir-me, em seu trabalho, uma discordânciacom Chomsky, a evidente concordân-cia entre eles é muito maior que as di-vergências, se compararmos, por exem-plo, com a tendência conexionista ouas atuais versões não representacionaise não computacionais das ciências cog-nitivas, ainda que a estratégia de sal-vamento do projeto global pretenda ocontrário. Isso não nega � mas confir-ma � minha afirmação anterior, de queo criador da sinfonia permanece sen-do o seu principal maestro.

Além disso, todas as disciplinasenvolvidas no projeto das ciências cog-nitivas deviam ser fiéis a alguns câ-nones básicos, como a aceitação dasciências da natureza como parâmetropara a definição da cientificidade docampo e a incorporação da metáforacomputacional no tratamento de fenô-

menos descritíveis em termos cogni-tivos e lingüísticos. Isso inclui tanto atese dos sistemas funcionais especiali-zados, teleonômicos, quanto a postu-lação das unidades de controle nasquais a computação formal e abstrataresponsável pelo cerne dos fenômenosa serem explicados deveria se dar.

Um dos efeitos colaterais da ten-dência aberta por essa interdiscipli-naridade disciplinar é o empréstimovocabular e conceitual de uma áreapara outra, nem sempre colaborandopara o refinamento conceitual dessasáreas. Nas ciências cognitivas, a noçãode cognição foi formulada em termosde �resolução de problema�, da cons-tituição e manipulação de modelos derepresentação de uma realidade exte-rior a partir de um aparato formal abs-trato de acordo com regras lógicas bemdefinidas. O modelo de cognição foi,então, construído em termos represen-tacionais e computacionais, em termosteleonômicos, sendo que esses mesmostermos deveriam ser preservadosquando da atribuição de habilidadecognitiva a domínios outros que não oconhecimento �macro� do mundo �como a atividade do sistema imuno-lógico, do sistema nervoso, do sistemavisual, etc. Ainda, atendendo a umaconceituação bastante tradicional dalinguagem, o que se definiu como seucerne foi explorado em termos de umcódigo abstrato, formal e autônomo,que haveria de responder pela essên-cia dessa faculdade humana. A idéiade uma gramática formulada nessestermos foi também estendida ao fun-cionamento do sistema imunológico, do

17. HARRIS, R. A., op. cit.18. PINKER, S. (1994), The language instinct �how the mind creats language. 1ª ed. Nova York,William Morrow.

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sistema nervoso, do código genético,por exemplo.19 Um outro exemplo domesmo tipo é a aplicação do conceitode informação em áreas diversas, daengenharia à lingüística e à biologia,permitindo transformar fenômenosbiológicos, fenômenos sociais e histó-ricos em unidades da física � quanti-ficáveis, mensuráveis. Com freqüênciaessa atitude não me pareceu saudávelpara uma visão complexa e apropriadados fenômenos de interesse: no maisdas vezes, teve como resultados um re-ducionismo conceitual e modelizaçõesnem sempre adequadas para a compre-ensão desses fenômenos in vivo, em-bora com palpáveis aplicações tecno-lógicas.20

Um dos motivos para essa inter-disciplinaridade restrita talvez possaser encontrado no comentário deDupuy, de que os ciberneticistas maisse envolveram com a colocação ade-quada dos problemas, com a refor-

mulação de questões tradicionais à luzdo aparato produzido por Turing eGödel no interior da lógica, pelos no-vos conhecimentos da física e da neu-rofisiologia, do que com sua resoluçãomesma.21 Aquele foi, portanto, um pe-ríodo em que problemas eram formu-lados de tal modo que pudessem tersoluções plausíveis dentro do quadrocientífico e tecnológico nascente. Aocontrário, tanto a inteligência artificialquanto as ciências cognitivas, rebentostemporões desse movimento, pauta-ram-se por focalizar a implementaçãodos aparatos concebidos para a conse-cução de determinadas funções, pelodesejo de realizar, de solucionar os pro-blemas formulados na instauração mes-ma dessas áreas e perseguir seus des-dobramentos, ciosos de que seu proje-to coroava o desenvolvimento do pen-samento ocidental e que, portanto, ha-veria de contar com amplo respaldo.

No entanto, e isto é o que importaaqui ressaltar, não era apenas o desejode unificação disciplinar que guiavaessa prática. Era sobretudo uma deter-minada concepção de conhecimento, in-cluindo o conhecimento científico, queestava aí em jogo. Em consonância coma tradição ocidental, as ciências cog-nitivas concebiam o mundo como sen-do externo à, independente de e pré-vio ao conhecimento, mente, e compos-to por building blocks � entidades atô-micas, absolutas, objetivas. Por sua vez,a mente também foi concebida comosendo construída de componentes me-nores, com símbolos atômicos, ele-

19. Aqui é clássico o artigo em JERNE, N. (1985),�The generative grammar of the immune system�.EMBO Journal, v. 4, pp. 847-852.20. Ver, a esse respeito, STEWART, J. E. e AN-DREEWSKY, E. (1992), �From information toautonomy: analogies between biology and thelanguage sciences.� Kybernetes � The InternationalJournal of Systems & Cybernetics, v. 21, nº 5, pp. 15-32; STEWART, J, E.; ANDREEWSKY, E. eROSENTHAL, V. (1988), �Du culte de l�in-formation en biologie et en sciences du language�.Révue Internationale de Systemique, v. 2, nº 1, pp.15-28. Ver também REDDY, M. (1979), �Thecondiut metaphor: a case of frema conflict in ourlanguage about language�. In: ORTONY, A. (ed.).Metaphor and thought. 4ª ed. Cambridge,Cambridge University Press, pp. 164-201. Pararepercussão do termo na compreensão do fenô-meno da comunicação e da linguagem. 21. DUPUY, J.-P., op. cit., p. 110.

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mentares, que deveriam compor estru-turas representacionais maiores, refle-tindo a postura ontológica anterior deque o mundo é composto de elemen-tos atômicos que se combinam em es-truturas cada vez maiores.22 Essas en-tidades, portanto, precediam quais-quer tipos de combinações, de rela-ções e de processos.

Assim, a esperança alimentada poressa tendência era a de que, resolvi-dos os problemas específicos de cadaum dos blocos disciplinares, atomís-ticos, o conjunto total haveria de cons-tituir um modelo, verdadeiro em si, damente humana. A relação entre cadauma dessas partes não deveria ser com-plicada de se estabelecer, pois cada umadelas havia sido explorada segundo osmesmos cânones. Com isso podemoscompreender que o envolvimento dediferentes profissionais participantesdesses projetos em trabalhos técnicose altamente especializados em seusdomínios particulares era um passoestratégico para o desenvolvimento dasciências cognitivas como um modelocientífico unificado da mente humanae do conhecimento assim compreendidos.

Na biologia do conhecer, essa ques-tão aparece com características bastan-te distintas e inusitadas. Essa é umateoria produzida por um biólogo, emcuja nascente encontramos uma refle-xão prolongada sobre seu trabalho ex-perimental em neurofisiologia da visão

e sobre fenômenos da biologia mo-lecular. Nessas reflexões HumbertoMaturana permanentemente exibiu umpensamento processual e sistêmico, ar-ticulando complexas relações de domí-nios distintos mas mutuamente mo-duláveis. Dessa maneira, em seus expe-rimentos em neurofisiologia, por exem-plo, Maturana pôs em correlação osprocessos neurofisiológicos e os pro-cessos perceptuais/experienciais, queocorrem no domínio do comportamen-to, sem reduzi-los um ao outro. A par-tir daí, ele postulou como característi-cas fundamentais dos seres vivos, queuma teoria do viver e do conhecer de-veria explicitar sua autonomia e sua iden-tidade, compreendendo que o mundoconhecido e experienciado emerge nopróprio processo do viver, que, por suavez, é determinado pela estrutura bio-lógica particular, dinâmica, histórica econtingencial do ser que conhece. Aquiele recusa o procedimento das ciênciascognitivas, afinado com a tradição dopensamento racionalista ocidental, deplantar dentro dos indivíduos depen-dências de um suposto mundo externopara explicar seu comportamento ade-quado nele, pois esse comportamentoadequado � a cognição � é fruto deuma história ontogênica de congruência(acoplamento estrutural) com o meio,do qual participam também outros se-res vivos, e da qual participa efetiva-mente, no caso dos seres humanos, alinguagem.

Na biologia do conhecer, então, apostulação de entidades, a possibilida-de de fazermos referência a entidadessubstantivas é, ela própria, uma conse-

22. Ver, por exemplo, DUPUY, J. -P., op. cit., eSHANON, B. (1993), The representational and thepresentational � an essay on cognition and the studyof mind. Nova York, Harvester Wheatsheaf, p. 244.

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qüência dos processos cognitivos, ex-perienciais, e do dar-lhes nomes na lin-guagem, não sua condição prévia. Paraestabelecermos um contraste explícitocom o que foi anteriormente dito a res-peito das ciências cognitivas, aqui,epistemologia e ontologia são indis-sociáveis: viver é conhecer e conheceré viver. Ainda, e o que é relevante paraa discussão do conhecimento e da lin-guagem, bem como de sua articulação,com a biologia do conhecer compreen-demos que os mundos vividos não sãoexternos nem independentes do ser queconhece: eles existem enquanto taiscomo resultado do próprio fluir da his-tória de mudanças estruturais do servivo em congruência com as interaçõesque mantém no ambiente. São, portan-to, a congruência estrutural dinâmica,a recursividade dos processos cogni-tivos e lingüísticos, sua imbricada emutuamente constitutiva atividade nasquais estamos imersos, que trazem àmão mundos experienciados e nos per-mitem postulá-los em termos de obje-tos independentes de nosso ato de dis-tingui-los e nomeá-los no fluir do lin-guajar. Desnecessário dizer que isso éo que conhecemos nos estudos conven-cionais.

Na biologia do conhecer, toda a fe-nomenologia observada no âmbito daontogenia dos seres vivos é explicadaa partir do mecanismo gerativo, do quala organização autopoiética é a hipóte-se explicativa, e a conservação dessemodo de organização e do acoplamen-to estrutural, as duas condições de ma-nutenção da autopoiese. O mecanismoexplicativo é simples, e a explicação não

é reducionista: Maturana não colapsao domínio explicativo da fisiologia e odo comportamento � das interações,dos fenômenos lingüísticos, sociais, psí-quicos �, mas argumenta como, pos-tulando a organização circular opera-cionalmente fechada e a estrutura di-nâmica e congruente dos seres vivos, épossível o aparecimento dos fenôme-nos que caracteristicamente observa-mos no seu encontro no meio. Ainda,argumenta como esses domínios semodulam mutuamente e como a iden-tidade do ser que conhece é determi-nante, a cada instante, daquilo que elepode conhecer: se muda o domínio dafisiologia, muda o domínio das intera-ções, do comportamento, muda o en-contro do ser vivo no meio.

Não seria exagero então destacar abiologia do conhecer como tendo pro-duzido uma transdisciplinaridade ra-dical, dando-se ampla liberdade na re-conceitualização dos campos, de seuspressupostos básicos, de seus objetos,de suas inter-relações, redefinindo atémesmo a expressão fenômeno biológico,que aqui quer dizer �que ocorre no âm-bito da ontogenia dos seres vivos�, enão �que é redutível a processos fisio-lógicos�. É esse o sentido de falarmos,aqui, do conhecer e do linguajar comofenômenos biológicos.

Uma das marcas típicas da biolo-gia do conhecer, então, é a reconcei-tualização e o rompimento com dico-tomias tradicionais várias que presidi-ram o desenvolvimento intelectual doOcidente, tais como: biológico/cultu-ral, individual/coletivo, subjetivo/ob-jetivo, percepção/ilusão, emoção/ra-

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zão, mente/corpo, interno/externo,trazendo, em seu bojo, o apagamentodas fronteiras disciplinares que sobreelas se fundam. No seio do movimen-to ciberneticista, o chamado movimento�personalidade e cultura�, protago-nizado por Franz Boas, Edward Sapir,John Dewey, Margareth Mead, dentreoutros, havia preconizado uma cau-sação circular entre a personalidade doindivíduo e o meio social em que vi-vem, subsidiando as discussões da ci-bernética em que alguns de seus parti-cipantes se mostravam confiantes nocaráter libertador e pacificador dasciências do homem.23 Mas a falência des-sas dicotomias, sonhada por Lévi-Strauss, refletida por Jacques Derridaem toda sua obra, e sistematicamenteapontada por Richard Rorty como ne-cessária para eliminarmos também umadicotomia mais básica e perniciosa den-tre essas, que é a de essência/aparên-cia, só vem a ser de fato produzida, naciência, no interior da biologia do co-nhecer, por um mecanismo explicativoconsistente e heurístico.

Algumas das primeiras aplicaçõesda teoria se fizeram ao sabor da inter-disciplinaridade dos primeiros anosdas ciências cognitivas, ou seja, toman-do emprestado modelos, conceitos evocabulário de uma área para outra. Éassim que vejo a utilização que NiklasLuhmann faz da noção de autopoiese,transferindo-a de seu contexto de apa-recimento � caracterização da organi-zação típica dos seres vivos como uma

organização molecular fechada que seproduz � para a sociedade e o siste-ma jurídico, tendo constituído umaampla escola nessa linha. Dentre seusseguidores, um dos mais ativos é G.Teubner.24 Aplicação análoga do con-ceito é feita por Schooneveld na lingua-gem, bastante diferente do que AltonBecker, Barbara Smith, Julie Andresene eu mesma fazemos.25 Uma revisãorazoavelmente abrangente de estudos

23. DUPUY, J. �P., op. cit., pp. 102-103.

24. LUHMANN, N. (1986), �The autoiesis of so-cial systems�. In: GEYER, F. e ZOUWEN, J. V. D.(eds.). Sociocybernetic paradoxes. Londres, SagePublications; idem (1987), �Closure and openness:on reality in the world of law�. In: TEUBER, G.(ed.). Autopiesis and the law. Berlim, Gruyter, pp.335-348; e TEUBENER, G. (1987), �Introductionto autopoietic law�. In: _____. (ed.) Autopiesis andthe law. Berlim, Gruyter, pp. 1-11.25. Ver SCHOONEVELD, C. H. V. (1983),�Contribution to the systematic comparision ofmorphological and lexical semantic structures inthe slavic language�. In: American Contributions tothe Ninth International Congress of Slavists. Kiev,September, pp. 321-347; idem. (1983b), �Pro-gramatic sketch of a theory of lexical meaning�.Quaderni di Semantica, v. IV, nº 1, pp. 159-170, quecontrasta com as abordagens de ANDRESEN, J.T. (1997), �Language and patterning�. In: MA-GRO, C. (ed.). Biology, cognition, language andsociety � International Simposium of Autopoiesis.Belo Horizonte, UFMG. Workbook, november 18-21; BECKER, A. (1997), �On The Razor�s Edge�.In: MAGRO, C. (ed.). Biology, cognition, languageand society�, op. cit.; ide. (1991), �Language andlanguaging�. Language and Communication, v. 11,nº 1/2, pp. 33-35; MAGRO, C. (1996), �Languaginglanguage�. Communication Anti-Communication.Washington D. C., American Society forCybernetics; SMITH, B. H. (1993), �Doing Withoutmeaning�. In: Belief and resistence: dynamics ofcontemporany theoretical controversy. Cambridge,Harvard; idem (1997), �Getting language into theloop: contemporary reconceptions of cognition and

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que aplicaram ou usaram as implicaçõesdo conceito de autopoiese em diferen-tes áreas é o livro de Mingers, que noentanto não traz as aplicações no domí-nio dos estudos lingüísticos, uma au-sência sintomática de que tanto o pesoda tradição sobre a própria conceitua-lização da linguagem quanto a defini-ção estrita da disciplina dificultam aabsorção de abordagens alternativas.26

Esse é, sem dúvida, um assuntocontroverso. Na revisão que Maturanae Varela fazem do período desde a con-cepção da teoria, sob a forma de pre-fácios à segunda edição do De maqui-nas y seres vivos, Maturana recomendacautela ao se recusar a extensão do con-ceito, enquanto Varela é categórico aopreferir mantê-lo dentro da sua con-cepção original, que se refere a proces-sos moleculares. No meu próprio tra-balho adoto a noção de autopoiese comocaracterizadora da organização pecu-liar aos seres vivos, assumindo portan-to uma postura mais semelhante à re-comendada por Varela, embora estejaaberta à argumentação em favor de queaplicações do termo podem oferecerinteressantes insights, guardadas asdevidas peculiaridades dos domíniosaos quais é aplicado. No entanto, o quetenho visto até então é que as simplesextensões do termo não acrescentam

nada às áreas pretendidas que uma boaformulação sistêmica e complexa nãopudesse explicitar. Além disso, achoque tais extensões podem obscurecer acomplexidade que resulta quando aaplicação recursiva do mecanismo ex-plicativo da biologia do conhecer gerafenômenos em outros domínios, entre-laçados entre si e com o organismo. Tal-vez estejamos com falta de boas for-mulações sistêmicas, radicalmente sis-têmicas� e os conceitos mais funda-mentais da biologia do conhecer e suaimplementação sob a forma de um me-canismo explicativo recursivo certa-mente preenchem, com refinamentoincomparável, esse espaço.

Aliado ainda a essa transdiscipli-naridade transversal, o procedimentoobstinadamente sistêmico e recursivodas explicações de Maturana têm lhevalido os rótulos de holístico, ecoló-gico ou ainda a interpretação de suateoria como uma cosmologia. Esta úl-tima é, do meu ponto de vista, uma máassociação. Do mecanismo explicativoda biologia do conhecer emergem múl-tiplos domínios de realidade, emergemmultiversa (em oposição ao universo con-vencional). Pensá-la em termos de umacosmologia totalizante � associaçãoimediata que o termo me inspira � pa-rece-me um retrocesso nas conquistasconceituais que o artigo �Realidade...�tão bem sintetiza.27

Podia-se objetar que, sendo essauma teoria biológica, uma ciência do

communication�. In: Biologia, Cognição, Lingua-gem e Sociedade � Simpósio Internacional deAutopoiese. Belo Horizonte, Minas Gerais.Worbook, 18-21 de novembro.26. MINGERS, J. (1995), Self-producing systems.Implications and applications of autopoiesis. NovaYork e Londres, Plenum Press.

27. MATURANA, H. (1997), �Realidade: a buscada objetividade��, op. cit., pp. 243-326.

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viver, fosse flagrante a imposição dabiologia como uma disciplina funda-cional, ancorando e reafirmando emdefinitivo os dualismos da tradição oci-dental e, portanto, ao mesmo tempo,mantendo os limites disciplinares. Ou,ainda, como uma tentativa de unifica-ção das ciências, nos moldes preten-didos nas ciências cognitivas. Isso nãome parece uma boa compreensão des-sas idéias como um todo. A propostada biologia do conhecer é explicar osfenômenos que observamos no am-biente dos seres vivos em geral e dosseres humanos em particular � in-cluindo a cognição, a linguagem, a au-toconsciência, os fenômenos sociais,estéticos, espirituais, éticos �, levan-do sistematicamente em conta aqueleque observa, pergunta, explica e acei-ta uma explicação como tal, e que é,ele mesmo, um ser vivo, somos cadaum de nós. A transdisciplinaridadepromovida pela biologia do conhecerpermite um tratamento extensivo dosfenômenos associados aos seres vi-vos a partir de seu mecanismo ex-plicativo, mas não recusa a legitimi-dade de outros tipos de explicaçõesdadas a partir de outros domíniosexplicativos. Ou seja, a idéia de umaverdade única, de um modelo únicode racionalidade, defendido e perse-guido por detrás da idéia de uma ci-ência unificada, aqui não encontra lu-gar. No entanto, ao mesmo tempoque admite e engendra a multi-plicidade de explicações possíveis, abiologia do conhecer nos leva a nosdar conta da responsabilidade denossas escolhas, teóricas ou não.

Entre as ciências da naturezae do vivente

Originalmente, o termo cibernéticasignificava �a ciência do controle e dacomunicação no animal e na máquina�.Nessa definição estava embutida aidéia de que o estado do controle in-terno de um sistema (seu funcionamen-to) dependia do fluxo de informaçãoque ele recebe (suas relações), e que asleis que governam esse funcionamentosão universais, ou seja, que elas são in-dependentes da dicotomia clássica en-tre sistemas orgânicos e inorgânicos,dos sistemas considerados como orga-nismos ou máquinas.

No clássico artigo �Cybernetics�,Norbert Wiener traçou as diretrizesdesse campo da ciência, afirmando queela deveria reunir sob uma única ca-beça aquilo que no contexto humanocostuma ser �frouxamente� descritocomo �pensamento�, e que em enge-nharia é conhecido como �controle ecomunicação�. Wiener manifestou suacrença de que haveria, entre as com-plexas atividades humanas e as opera-ções de uma simples calculadora, umaampla área em que cérebro humano emáquina se sobrepõem. Ele afirmouainda que as máquinas modernas têm,assim como o cérebro, as �capacida-des de memória, associação, escolha�,e que a construção de mecanismos ca-da vez mais complexos deveria nosmostrar que o cérebro humano se com-porta como uma máquina, o que ha-veria de nos levar bem perto de com-preender adequadamente seu funcio-namento28.

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Wiener estava interessado em dé-ficits funcionais, como o ocasionado poruma patologia cerebelar que resulta nocomprometimento de movimentos in-tencionais, impedindo um indivíduo derealizar movimentos simples como osenvolvidos em pegar um lápis sobreuma mesa, por exemplo. Ao mesmotempo, ele estava comprometido coma construção de artefatos como um apa-rato de controle de incêndio de arti-lharia antiaérea, no qual, imaginava, ocálculo da trajetória do projétil deve-ria ser igual ao cálculo envolvido naapreensão de um objeto por um movi-mento humano.

O que vemos desde os primeirostempos da cibernética, então, é umaatenção para as diferentes habilidadesexecutadas pelos humanos, compondoum quadro diversificado do conheci-mento em termos de um conjunto desistemas especializados na realização dedeterminadas funções, de sistemas so-lucionadores de problemas, teleonô-micos, nos quais a construção, mani-pulação e conservação de representa-ções ocupariam papel central. As diver-sas faculdades da mente eram assimtratadas em termos de suas proprie-dades enquanto sistemas especialistasde processamento de informações.29

Ainda, e talvez mais importante pa-ra compreendermos a parceria estreitaque posteriormente as ciências cogni-

tivas estabeleceram com a inteligênciaartificial, há a idéia de que conhecer éproduzir um modelo de um fenômenoe efetuar sobre ele manipulações or-denadas. Dito de outra maneira, em-bora concebida pelos ciberneticistasapenas de modo abstrato, foi a própriapossibilidade de formular a antiga pro-blemática do conhecimento através douso de cálculos matemáticos e lógicos,e implementá-los sob a forma de apa-ratos tecnológicos funcionais, confor-me Alan Turing, Gödel e Church ha-viam anunciado nos anos 1930, o quedefinitivamente fez deslancharem osmovimentos que deram origem às ciên-cias cognitivas e que, posteriormente,contribuiu para consolidar o prestígiode que essas gozaram. Para dizer o mí-nimo, essa opção atendeu à enorme res-peitabilidade das ciências exatas e danatureza em nosso tempo, tidas na tra-dição cultural que cultua o mito da ob-jetividade como modelo mesmo da �re-presentação mais acurada da realida-de objetiva�, portanto, o caso paradig-mático do �conhecimento perfeito�, aessência mesma da racionalidade hu-mana. Tradicionalmente, o único modode conhecimento que faz com que todosistema cognitivo se relacione com omundo como o cientista com seu obje-to é o modelo do conhecimento por mo-delos e representações: a representa-ção elementar e a representação da ca-pacidade de representação, dois níveislogicamente encaixados nos quais ofuncionalismo da ciência da cogniçãose situa. Postulando esse segundo ní-vel, as ciências da cognição puderamao mesmo tempo declarar-se materia-

28. WIENER, N. (1995), �Cybernetics�. In:FOERSTES, H. V. (ed.). Cybernetics of Cybernetics:the control and the communication of communication.2ª ed. Minneapolis, Future Systems, pp. 7-17.29. Ver DUPUY, J. �P., op. cit., pp. 26-27.

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listas ou fisicalistas e reivindicar auto-nomia com relação às ciências da vida.

Assim, tanto a perspectiva de sis-temas especializados, teleonômicos,quanto a da universalidade desses pro-cessos se impuseram nas ciências cog-nitivas, refletiram e reforçaram o mo-do científico de conhecimento como oúnico válido e merecedor de investiga-ção, e a modelização como espelho doque é conhecer ou do que a mente faz.Uma das vantagens preconizadas dautilização de modelos era a de que elespermitem controle explicativo e predi-tivo, além de possibilitarem a abstra-ção do sistema de relações funcionais� as únicas consideradas pertinentes �da realidade fenomenal, pondo entreparênteses o que acreditava-se que nãodependia do sistema em questão. As-sim, é possível dizer que o próprio fun-cionalismo característico desses perío-dos tem origem na prática da modeli-zação. De qualquer modo, destacaDupuy, a metáfora computacional, queposteriormente configurou todo o cam-po das ciências cognitivas, não era ne-cessária, uma vez que a prática mo-delizadora começou bem antes do com-putador existir: embora esse existissecomo objeto material técnico, ainda nãohavia uma teoria funcionalista do mes-mo. Uma das conseqüências dessa pos-tura foi o colapso entre objeto de estu-do e teoria, como bem apontou Dupuyno livro que estou aqui considerando.

No movimento ciberneticista, eraentão clara a tendência de se aplicarmodelos lógico-matemáticos em todosos domínios, de absorver os princípiosda física tornando-os superordenados

em relação aos princípios da biologia eda psicologia. Embora naquelas discus-sões um físico profissional nunca tenhatido assento permanente, o conheci-mento de ponta da física constituía ummarco a ser seguido em todas as ins-tâncias. Mais do que isso, uma verda-deira batalha era travada em seu nome,ultrapassando a problemática do viven-te para analisar características da men-te humana, definida abstrata e formal-mente, numa tensão observável em inú-meras discussões ocorridas nas Confe-rências Macy, bem como na própriaobra de Warren McCullock.

Desde a década de 1940, essa ten-são se fazia sentir no meio científico:físicos como Niels Bohr estavam preo-cupados em distinguir fenômenos danatureza de fenômenos biológicos. Con-ta Dupuy que um dos orientandos deBohr, Max Delbrück, participou da 5ªConferência Macy, uma vez que VonNeumann estava interessado em suaspesquisas sobre bacteriófagos e desa-fiava Norbert Wiener a lhe provar quemodelizar o cérebro era matematica-mente mais importante do que mode-lizar um bacteriófago, organismo pri-mitivíssimo capaz de se reproduzir.Consta que Delbrück se indispôs coma cibernética logo no primeiro encon-tro de que participou, nunca mais retor-nando, por ter achado completamenteinsanas as discussões que aí se davam,presididas pela física. Dupuy justificaessa indisposição dizendo que, travan-do um ferrenho debate com as ciênciasda mente � e não da vida � em nomeda física, os ciberneticistas passarampor cima do vivente para chegar dire-

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tamente à lógica e à mente, coisa queum físico estrito como Max Delbrücknão admitiu.30

O relativo insucesso da compreen-são das funções mentais humanas ob-tida através da mecanização de proces-sos peculiares dos seres vivos seguin-do modelos lógico-matemáticos abstra-tos e da produção de máquinas à ima-gem e semelhança do homem assimconcebido, que se mostraram restritasno que poderiam realizar, já vem háalgum tempo sugerindo pontos de par-tida distintos para a investigação doconhecimento, no interior mesmo dasciências cognitivas. Penso ser esse o ca-so do conexionismo, que aponta para anecessidade de se ter uma maior aten-ção para a biologia dos seres vivos, e ofaz através da modelização do fortale-cimento de conexões nas chamadas re-des neurais como fruto do aprendizadoe da experiência, resultando no surgi-mento dos fenômenos que são produ-to dessas interações históricas. Alémdisso, nesse período foi também enor-me o desenvolvimento das neurociên-cias, do pensamento evolutivo, desen-volvimentista e da genética, o que su-geriu rapidamente a reavaliação dasquestões que guiaram o projeto inicialdas ciências cognitivas, até mesmo emnome da unidade da ciência.

A permanente tensão entre o men-tal e o vivo, que disse estar presentetanto na cibernética quanto nas ciên-cias cognitivas, as preocupações com omental em termos abstratos sendoproeminentes, dada a concepção de co-

nhecimento como a capacidade de rea-lização de determinadas tarefas quepodem ser independentes da base ma-terial que as leve a cabo, simplesmentenão existe na biologia do conhecer. Essaé uma teoria daquilo que é vivo. Seresvivos têm nela uma definição precisa �que dispensa a infinita lista de proprie-dades com que em geral são descritos�, que, ao mesmo tempo, define o tipode interações que eles têm e podem tercom o ambiente � o qual passa imedi-atamente a ser especificado de acordocom essas interações. Com isso ela é,ao mesmo tempo, uma teoria do co-nhecer, conforme Maturana explicita noaforismo: viver é conhecer, conhecer éviver.31

Isso não significa que Maturanadespreze as leis da física em suas for-mulações. Ao contrário, referências àentropia, à inércia são comuns em seustextos, uma vez que, existindo no meiofísico, os sistemas biológicos tambémestão sujeitos a elas.32 Significa, no en-tanto, que ele está empenhado em des-tacar e compreender a especificidadeda fenomenologia dos viventes, emdistingui-la da fenomenologia domundo natural, físico. Significa tam-

30. Ibid., pp. 94-96.

31. Ver, por exemplo, MATURANA, H. eVARELA, F. (1984), El arbol del conocimiento. Lasbases biológicas del entendimiento humano. Santiagodo Chile, Editorial Universitaria; idem (1980),Autopoiesis and cognition. Dordrecht, D. Reidel.32. A título de exemplificação, ver MATURANA,H. (1970), �Neurophysiology os cognition�. In:GARVIN, P. (ed.). Cognition: a multiple view. NewYork, Spartan Books, pp. 3-23; MATURANA, H.e VARELA, F. (1980), Autopoiesis and cognition,op. cit.

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bém que a biologia do conhecer tam-pouco está subordinada às formali-zações da lógica, que Maturana consi-dera um recurso para se formular demaneira alternativa aquilo que já sesabe, não lhe dando a importância ca-racterizadora de cientificidade quetem em nossa tradição. Ainda, signi-fica também que, para ele, se dispo-mos de uma explicação adequada dosprocessos constitutivos dos seres vi-vos, devemos derivar dela uma expli-cação dos diversos fenômenos a elesassociados, inclusive uma explicaçãopara o que chamamos de funções men-tais. Assim, o que é pré-requisito nasteorias tradicionais do conhecimento,filosóficas ou científicas, na biologiado conhecer é produto dos processoscognitivos e comunicacionais nos quaisestamos imersos ao longo de nossaontogenia.

Em �Neurophisiology of Cogni-tion�, Maturana especificou pela pri-meira vez o observador como um servivo, introduziu a idéia de fechamen-to operacional do organismo e do sis-tema nervoso em particular, e formu-lou seu conhecido �Tudo é dito porum observador, a outro observador,que pode ser ele mesmo�. Nesse arti-go, Maturana já aludiu à impertinên-cia da noção de informação ao se tratarda fenomenologia biológica, e descre-veu a morfologia, a arquitetura e o fun-cionamento do sistema nervoso asso-ciado à evolução e ao desenvolvimen-to dos seres vivos acoplados estrutu-ralmente ao ambiente em que vivem,e não em termos representacionais e

computacionais.33

Pouco tempo depois, escreveu comFrancisco Varela De maquinas y seres vi-vos, onde estabeleceram uma diferen-ciação sistemática entre o que chama-ram de máquinas alopoiéticas, feitas pelohomem com objetivos específicos paraa execução de tarefas, e máquinas auto-poiéticas, como designaram então os se-res vivos, cujo mecanismo de funcio-namento é caracteristicamente distin-to das primeiras: uma rede de relaçõesmoleculares que, ao se produzir, pro-duz os componentes e as próprias re-lações que o constituem.34 A ousadiadessas idéias no início da década de1970 é enorme: os autores questiona-ram aí as relações causais típicas doraciocínio tradicional ocidental, ateleonomia, a dependência plantada nointerior dos indivíduos por meio demecanismos animísticos diversos (asrepresentações inatas, os mecanismoscomputacionais, os controles centrais)e ressaltaram a autonomia e a indivi-dualidade como características para asquais seria necessário atentarmos naexplicação do fenômeno da vida. Res-saltaram ainda a estrutura dinâmica econtingente desses seres, determinante,a cada instante, daquilo que eles po-

33. Esse texto pioneiro foi expandido, transfor-mando-se no �Biology of cognition�, publicadoem MATURANA, H. e VARELA, F. (1980),Autopoiesis and cognition, op. cit. A versão originalestá em MATURANA, H. (1970), �Neurophy-siology of cognition�, op. cit.

34. Esse texto foi publicado em inglês como�Autopoiesis: the organization of the living�, nasegunda parte da obra de MATURANA, H. eVARELA, F. (1980), Autopoiesis and cognition,op. cit.

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dem fazer, dizer, conhecer, descreven-do a fenomenologia do vivente em ter-mos recursivos e processuais.

Na biologia do conhecer, então, oconhecimento não é entendido comouma propriedade �mental� no sentidotradicional de habilidades promovidaspor um conjunto de faculdades inter-nas, individuais, substantivas. É ex-pressão do próprio viver. A cogniçãonão é um conjunto de instrumentos quetêm a finalidade de construir e mani-pular modelos da realidade externaindependente do ser vivo, mas é a ex-pressão da congruência de um ser vivoem diferentes domínios de sua existên-cia, fruto do processo histórico de mu-danças estruturais em interações recor-rentes com o meio � sua ontogenia.Os termos finalistas com que são des-critos os sistemas funcionais das ciên-cias cognitivas ortodoxas são tomadosaqui como amplamente insuficientes einadequados para explicar a complexi-dade, a estabilidade e a variabilidadeda fenomenologia do vivente.

Ao propôr uma visão do conheci-mento e da linguagem dependentes daorganização e da estrutura dos seresvivos, Maturana estava também imersona pergunta pelo próprio conhecimen-to científico. Ele então propôs umaexplicação do que seja uma explicaçãocientífica. Afirmou que, quando reco-nhecemos como legítima a perguntapelo observador, entendemos quequalquer explicação depende de que acomunidade daqueles que especificamo fenômeno a ser explicado, que for-mulam a pergunta e que ouvem a ex-plicação a aceite enquanto tal. A explica-

ção científica, então, é um mecanismogerador de fenômenos num domíniodistinto daquele em que eles se dão,que deve ter suas etapas seguidas, ob-tendo concordância da comunidade acada uma delas. A predição é apenasuma dessas etapas e não constitui aprópria explicação científica como umtodo.

É esse processo que Maturana ob-serva para gerar cada fenômeno ao qualdeseja se dirigir, pondo em funciona-mento o mecanismo explicativo quetem a autopoiese como sua hipótese. Éassim que, com uma consistência incom-parável, ele propõe explicações cientí-ficas para a cognição, a linguagem, osfenômenos sociais, os fenômenos psí-quicos, estéticos, espirituais, a autocons-ciência, respondendo às críticas iniciais,de que sua equação �viver é conhecere conhecer é viver�, não serviria paraexplicar funções mentais chamadas tra-dicionalmente de �superiores�.

Já disse anteriormente que essesfenômenos são reconceitualizados nabiologia do conhecer de uma forma talque não encontram paralelo com asdefinições encontradas nas análisestradicionais, em quaisquer domínios.Uma das chaves para compreender-mos o que está sendo proposto é en-tender que Maturana está empenha-do na compreensão de processos, derelações. Essa postura está claramen-te expressa em sua recusa dos subs-tantivos linguagem, cognição, conheci-mento, vida , substituindo-os porlinguajar, conhecer, viver, etc. Os fenô-menos tradicionalmente compreendi-dos como mentais, ou próprios da men-

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te, em termos de entidades substanti-vas, ele explica em termos de processospsíquicos, que se dão no espaço de rela-ções dos indivíduos no meio. Essesprocessos são, portanto, relacionais einteracionais, determinados pelo ins-tante estrutural da dinâmica fisiológi-ca dos indivíduos envolvidos numainteração no meio. Entendemos aquique o domínio da fisiologia e das inte-rações (comportamento), embora nãointersectantes, modulam-se mutuamen-te, de maneira ininterrupta.

Assim, a problemática mente-corpo,que permanece subjacente às principaiscontrovérsias intelectuais da atuali-dade, tem em Maturana uma soluçãoque não é de fato comparável às alter-nativas comumente oferecidas nessedomínio: ele não é reducionista,eliminacionista nem dualista � nemno sentido cartesiano nem no sentidoadotado por Chomsky e Fodor. Nemme parece ser exatamente o mesmoque o monismo anômalo de Davidson,interpretado no sentido de Quinecomo dualismo conceitual ou lin-güístico. Em seu �Non-reductivephysicalism�, Rorty propõe uma inter-pretação do monismo anômalo deDavidson que me parece paralelo aode Maturana: os fenômenos psíquicossão fenômenos relacionais, interacio-nais, e não podem, sob pena de prejuí-zo conceitual, ser reduzidos a quais-quer processos fisiológicos, emboradependam fundamentalmente da fisio-logia dos indivíduos para exibiremas características que exibem a cadainstante.35

O pensamento racionalista ociden-

tal tem tido inúmeras dificuldades delidar com as emoções e seu papel efeti-vo no nosso viver cotidiano. Para Matu-rana, a interpretação de que as emo-ções têm papel negativo sobre a racio-nalidade é um contra-senso. Qualquerescolha racional é, ela mesma, funda-da numa emoção. As emoções especi-ficam o domínio relacional em que noscolocamos a cada instante, sendo por-tanto seu reconhecimento crucial paracompreendermos o fluir de nossos pro-cessos cognitivos e comunicacionais.36

Essa preocupação ocupa hoje espaçosinusitados, como, por exemplo, a pró-pria inteligência artificial, no qual secomeça a postular que, sem compreen-dermos o papel das emoções, jamaisestaremos prontos para compreendera cognição humana.37

Com a biologia do conhecer temoscondições adequadas, no meu enten-der, de responder às preocupaçõesatualmente crescentes com os proces-sos interpretativos e cognitivos, que

35. QUINE, W. V. (1987), �Mind versus Body�.In: Quiddities: and intermittenthy philosophicaldictionary. Cambridge, Belknap Press of HarvardUniversity Press; RORTY, R. (1987), �Non-reductive physicalism�. In: Objetivity, relativism,and truth. Philosophical Papers � volume 1.Cambridge, Cambridge University Press, pp. 113-125.36. Ver especialmente MATURANA, H. (1997),�Ontologia do conversar�. In: MAGRO. C.;GRACIANO, M. e VAZ, N. (eds.). A ontología darealidade � Humberto Maturana, op. cit., pp. 167-181; idem. (1997), �Realidade: a busca da objeti-vidade...�, op. cit., pp. 243-326.37. BODEN, M. A. (ed.) (1994), Filosofía de lainteligencia artificial. Sección de obras de Ciencia yTecnología. 1ª ed. México, Fondo de CulturaEconómica.

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não são homogêneos para todos os se-res vivos nem para os indivíduos deuma mesma espécie a todo instante. So-bretudo, ela nos permite entender queessa diversidade não é decorrente dedéficits do emprego de mecanismoscognitivos ou lingüísticos gerais, masé constitutiva dos processos do viver.Suas conseqüências para o ensino, nor-mal ou especial, para as relações inter-pessoais, e mesmo para a modelagemde robôs são flagrantes.

Afirmei no início que Maturana an-tecipava perguntas e soluções hoje per-seguidas no âmbito das ciências dacognição, da inteligência artificial, nosestudos da linguagem, entre outros, eacredito que tenha oferecido uma di-versidade de indicações de que isso éassim. No entanto, como a inteligênciaartificial parecia ser dependente dospressupostos tradicionais que alimen-tavam também as ciências cognitivas,tais como o representacionalismo e ocomputacionalismo que Maturana re-jeita, estimo precioso o trabalho desen-volvido no Laboratório de Inteligên-cia Artificial do MIT, especialmente porRodney Brooks, que é congruente como pensamento de Maturana, e livre dospreceitos subscritos pela inteligênciaartificial, seja ela cognitivista ou cone-xionista.38 Esse pesquisador é um doscientistas envolvidos no projeto do ce-lebrado robô COG, que, com um míni-mo de computação interna, é posto a

interagir com pessoas em ambientesnão laboratoriais. Brooks produziu tam-bém, e principalmente, pequenos robôsque, dispensando um módulo centralde controle e computação, interagemno meio �em seus próprios termos�,reflete Brooks. O que me parece rele-vante nesse contexto é que ele estápreocupado em observar diferentesseres vivos interagindo em seu meio, eestá procurando entender a cognição apartir de uma reflexão biológica � ouetológica, se quisermos especificar me-lhor o tipo de fenômeno que Brooksestá preocupado em compreender emprimeiro lugar.

Em �Biologia da autoconsciên-cia�,39 Maturana sugere como devemser projetados sistemas artificiais queparticipem da linguagem e possam serditos como exibindo conhecimento. Oque se requer, nesse caso, é a constru-ção de sistemas que, sendo plásticos,flexíveis, possam participar de inte-rações e que tenham, como conse-qüência delas, modificações recursivasem seu mecanismo interno. Não cabeespecificar aqui em detalhes suas su-gestões, mas cumpre ressaltar que o queele propõe já vem hoje sendo experi-mentado num centro de tecnologia queabrigou, por tanto tempo, exatamenteas pesquisas para as quais a biologiado conhecer vem, há cerca de trinta

38. Ver, especialmente, BROOKS, R. (1997), Thedeep question � a talk with Rodney Brooks.http://www.edge.org/3rd_culture/brooks/brooks_.html. Culture, T.T.; idem. (1991),

�Intelligence witnout representation�. ArtificialIntelligence, vol. 47, pp. 139-159.39. MATURANA, H. (1997), �Biologia daautoconsciência�. In: MAGRO, C.; GRACIANO,M. e VAZ, N. (eds.). A ontología da relidade �Humberto Maturana, op. cit., pp. 211-242.

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anos, se construindo como uma poten-te alternativa.

Conclusão

Uma das articulações que, emboraexiba incomparável fertilidade, nemsempre é evidente ou igualmente visí-vel para todos os pesquisadores, e quedecorre de uma amistosa familiarida-de com as ciências cognitivas, é o estí-mulo à reflexão sobre a própria práticacientífica na qual esses mesmos pesqui-sadores estão imersos. Ora, no caso dasdiferentes teorias que aqui pus em con-tato, sendo o próprio objeto de conhe-cimento o conhecimento, indagar sobrecomo está se dando o processo de de-senvolvimento da investigação (ou co-nhecimento científico) é, para dizer omínimo, uma tarefa instigante e neces-sária. Assim é que desenvolvi meu ar-gumento ao longo deste texto em tor-no de dois eixos que dizem respeito àprática científica das correntes teóricaspara as quais estive tratando de narraruma história comum. Esses temas, quaissejam, a questão da (inter)disciplina-ridade e a medida de cientificidade, sejaela oriunda das ciências exatas ou bio-lógicas, foram aqui tomadas como re-flexos da compreensão que cada um dosmovimentos teóricos tratados tem doconhecimento na própria prática cientí-fica, nesse modo particular de práticasocial que é a ciência.

Assim, ao mesmo tempo que pro-curei exibir esse exercício que cabe anós primordial e permanentementerealizar, tratei de produzir um contex-to para a compreensão da biologia do

conhecer no bojo das controvérsias in-telectuais com as quais os pesquisado-res de nosso tempo estão familiariza-dos e de dinamizar a leitura dos textosde Maturana, carentes de referênciasque guiem o leitor na complexa pro-blemática a que sua obra se dirige.Fiz isto distinguindo essas idéias ondeé preciso distinguir, e aproximando-asde outros trabalhos onde me pareceupossível e desejável aproximar. Espe-ro ter deixado clara a sugestão de queuma colaboração frutífera com a biolo-gia do conhecer é possível e surpreen-dente, desde que se esteja disposto auma higienização do olhar, a abrir mãode alguns dos princípios tradicionaismais arraigados em nosso pensamentocientífico e filosófico.

Recebido em 15/4/2002Aprovado em 30/6/2002

Cristina Magro, professora do Departamento deLingüística da Faculdade de Letras-UFMG.E-mail: [email protected]