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Cid Seixas DA INVENÇÃO À LITERATURA Textos de filosofia da linguagem coleção oficina do livro / 4 https://issuu.com/e-book.br/docs/invencao

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Quero desde o início deixar paten-te minha admiração por várias altasqualidades manifestas, dentre as quaisrealço a sequência nas idéias, a ma-dureza do pensamento, o espectrorico da informação e erudição, o in-teligente aproveitamento das fontese bibliografia, e a elegância da expo-sição.

Nutro a esperança de que CidSeixas não abandone a direção de es-tudos que tomou e a prossiga, apro-fundando pontos que parecem mere-cer indagação mais acurada de sua par-te. Afloro, a seguir, alguns com o sófim de espicaçá-lo, mas sem intuitospolêmicos ou, muito menos,professorais ou magistrais: será, an-tes, um diálogo entre pares de angús-tias e buscas (malgrado – ah! a dife-rença de nossas idades).”

Antonio Houaiss

Poeta e crítico, Cid Seixas dá omelhor de si quando se dedica ao en-saio, gênero que lhe permite unir asensibilidade do escritor à agudeza doestudioso. Penso, mesmo, que os mo-mentos da sua poesia que mais falamao outro estão presentes nos seus tex-tos teóricos, nos seus ensaios, escritosnuma linguagem exemplarmente cri-ativa.

Ao tomar como pretexto a criaçãode outros escritores, Cid Seixas dia-loga com seus modelos, dando umacontribuição personalíssima à litera-tura e firmando-se com uma escritu-ra que traz o condão de seduzir e bemformar. Ele é dos poucos,pouquíssimos, que sabem transmitiro saber com sabor.

MÁRIO KRAUSE

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DA INVENÇÃO À LITERATURA

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Composto em OriginalGaramond corpo 12Formato 13 x 20,5 cm.

Publicado em 2017

Endereços digitais deste livro:https://issuu.com/e-book.br/docs/invencaohttps://issuu.com/cidseixas/docs/invencao

http: //www.e-book.uefs.brhttp://www.linguagens.ufba.br

Ilustrações:Detalhes de obras do Musée du Louvre

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DA INVENÇÃOÀ LITERATURA

Cid Seixas

Textos de filosofia da linguagem

e-book.brEDITORA UNIVERSITÁRIA

DO L IV RO DIGITAL

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CONSELHO EDITORIAL:Adriano Eysen (UNEB)

Cid Seixas (UFBA/UEFS)Dante Lucchesi (UFF)

Denise Coutinho (UFBA)Flávia Aninger Rocha (UEFS)

Gilca Seidinger (UFSB)Maria Luiza Nora (UESC)

Moanna Brito S. Fraga (CEDAP)

Ficha Catolográfica

S464i Seixas, CidDa invenção à literatura: textos de filosofia da

linguagem / Cid Seixas. – e-book.br |Salvador, Edi-ções Rio do Engenho, 2017

128 p.: il.

Modo de acesso: https://issuu.com/e-book.br/docs/invencao

ISBN: 978-85-7395-265-0

I. Literatura - Crítica e interpretação. 2. Lin-guagem. I. Título.

CDU: 8281

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SUMÁRIO

A quem ler ......................................................... 9

Criação e crítica:sobre o conto e o poema ................................... 13

Sobre a crítica literária ....................................... 23

Texto literário e textocientífico: distinções fundamentais ..................... 29

O mito como realidade do homem ................... 35

Sua neurose é uma obra de arte?Ou sua obra de arte é uma neurose? ................. 41

Fernando Pessoa e a neurosecomo fonte da arte ........................................... 47

A arte como construçãodo real ....................... 63

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Poetas, meninos e malucos .............................. 71

A poesia como críitica ..................................... 78

Cabral e a estética da modernidade ................ 85

O surdo caos das coisas:Pasolini, cinema e literatura ........................... 91

A sustentável leveza do texto(Italo Calvino, criação e teoria) ...................... 101

Obras do Autor .............................................. 121

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A QUEM LER

Este livro é uma seleção de artigos da coluna “Lei-tura Crítica”, publicada durante cinco anos no jor-nal A Tarde, de Salvador. Em 2003, foram reunidoscinquenta e três textos para compor o volume Osriscos da cabra cega: recortes de crítica ligeira, lança-do pela coleção Literatura e Diversidade Cultural,da UEFS. Para esta nova publicação retomei escri-tos que tratam de questões teóricas e críticas, for-mando o núcleo temático linguagem, invenção, lite-ratura, destinado a ser lido em edição eletrônica eimpressa. São simples resenhas, algumas, casualmen-te, com extensão, corpo e aparência de artigos.

Desde o início do meu trabalho acadêmico dividio tempo entre a pesquisa universitária e outra ativi-dade que os estudiosos das ciências da cultura cha-

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mavam, de forma despreziva e um tanto arrogante,de “vulgarização do conhecimento”. O oscilar dopêndulo entre os dois polos tem a ver com o fato daminha vinda para a universidade ter se dado pelaspáginas do jornal. Dediquei-me ao ensino de Lite-ratura e de Semiótica porque, como jornalista, já es-colhera a arte da palavra como objeto de trabalho,comentando livros, discutindo obras e publicandotextos de criação ou de informação.

Por outro lado, sempre achei sem sentido a pro-dução acadêmica no campo das linguagens ser des-tinada basicamente a formulários e relatórios, escri-tos em dialeto burocrático para justificar os finan-ciamentos das agências públicas. Não tive o privilé-gio de participar dessa prestigiosa atividade que cons-titui a maior parte das pesquisas na nossa área deconhecimento. Assim, não sou o que se chama dePesquisador Universitário; sou apenas um curiosoem questões julgadas essenciais.

A propósito, lembre-se que a investigação cien-tífica, em algumas áreas, contribui decisivamentepara melhorar a vida do ser humano, enquanto emoutras o estudo sistemático serve para ampliar acompreensão e o saber crítico das pessoas. Nas dis-ciplinas em que não há uma utilidade prática imedi-ata, se os resultados ficarem limitados aos arquivosda academia, irão proporcionar benefícios pratica-

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mente nulos à sociedade. É o que ocorre com muito“papel pintado com tinta” que há por aí. A expres-são irreverente e irônica é de uma incerta Pessoa, denome Fernando.

Como são os impostos do cidadão que pagam osnossos salários na universidade pública, preferi, des-de há muito, prestar contas da minha especulaçãoteórica, através de breves artigos de jornal que dis-cutem os temas estudados na academia. Por contadisso, a lista de tais intervenções públicas é bemmaior do que a de livros, ensaios e estudos em revis-tas especializadas, chegando, a centenas de títulos,que, diga-se, não têm nenhuma importância nas ava-liações de produtividade acadêmica. Servem, apenas,para levar um dos resultados das reflexões e traba-lhos cotidianos ao nosso legítimo patrão e empre-gador do serviço público – o cidadão anônimo.

Os possíveis interessados neste livro poderãoconstatar facilmente a origem dos textos e seus ob-jetivos na própria natureza da escrita: de estilo sim-ples e comprometido com a leveza na transmissãodo conhecimento. Espero ainda que possa servir deestímulo àqueles que procuram construir um alicer-ce para a compreensão do artesanato literário.

Muitos textos nasceram como exposição em salade aula, sendo depois escritos para publicações des-tinadas ao público não especializado.

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Antes de ensinar literatura, busquei os estudosda linguagem, como meio de compreender a cons-trução psíquica do mundo real. Veja-se, a propósi-to, no site linguagens.ufba.br o número expressivode e-books tratando de questões linguísticas e dateoria do conhecimento. Por tais caminhos chega-se à concepção da verdade como coerência das pro-posições verbais.

No mais, a arte é vista aqui, não apenas comocircunspecta forma de conhecimento, mas como ob-jeto de deleite e prazer. Os puristas e os posudos,ideólogos do utilitarismo, que me perdoem. Se pu-derem.

Conforme o grito do grande Goethe, seja breve,no dia do juízo, isso não vale um peido.

[email protected]

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CRIAÇÃO E CRÍTICA:Sobre o Conto e o Poema

Embora a tradição de base teórica insista em es-tabelecer limites e diferenças entre os modernos gê-neros literários, a prática, insubmissa, recusa todosos rótulos e modelos prévios. Quando a poética clás-sica impunha a constituição de três grandes gêneros– o lírico, o épico e o dramático –, a modernidadepropôs novas divisões, deslocando fronteiras. Pararestabelecê-las adiante. O que foi um fator de rup-tura, uma força de propulsão, se transforma numarede de acomodação. Os núcleos dinâmicos, respon-sáveis pelas mudanças, quando se estabelecem, de-pois de exaurir o seu próprio potencial renovador,se cristalizam como normas apriorísticas; a exemplodos homens, outrora rebeldes, nos anos há muitoesquecidos, e depois conservadores. O destino de

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toda forma revolucionária, ao ser incorporada peloespaço de aceitação pacífica, é se transformar emfôrma, assumindo o papel contra o qual se fez for-ma e se fez revolucionária.

O bicho-homem não está muito longe do bicho-caramujo que, para viver, preserva o seu casulo, oseu búzio, ou a sua concha. Temos medo do bichoque seremos quando mais não somos.

Por outro lado, tudo que é novo, que é desco-nhecido, para ser conhecido precisa se parecer como velho, com o visto. Por isto o homem identifica,iguala e classifica.

Não por acaso, ainda hoje, somos obrigados aenquadrar a criação em módulos: um texto deve seruma crônica, um poema, um conto, uma novela ouum romance. Deve ser qualquer coisa. Porque nãolhe basta ser, apenas, texto.

O escritor é, provavelmente, aquele que menossabe dos limites que separam os domínios da Litera-tura em gêneros, subgêneros e congêneres. A polí-tica de fronteiras, com suas contendas de demarca-ções e tratados, é reservada à burocracia abstrata, àdiplomacia da crítica universitária.

Porque todo crítico é muito cioso. Sempre ocu-pado em inventar o trabalho a fazer: classificações,periodizações, demarcações de fronteiras, enfim. Ocrítico é o verdadeiro antifuncionário público: nãonegligencia, nunca, durante o expediente. Está sem-

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pre alerta, atento, para ver se descobre, se inventa,novas tarefas por fazer – remexendo gavetas e ar-quivos empoeirados.

Entre as várias funções da crítica, deste nossoofício parasita, vampiresco, como diria Ducasse-Lautréamont-Maldoror, desta gigolotria de litera-to, como diria Amado-Berro­d’Água-Vadinho, umase destaca das demais: dar emprego aos críticos naUniversidade. Esta é talvez a função responsável pelamaior parte dos estudos e tratados que conhecemos,e dos que não queremos conhecer.

Convém não esquecer as descobertas de Freud.Dissimulada em blague, há uma vera verdade na afir-mativa chistosa.

É preciso, sempre, descobrir novas propostas,novos problemas, para que se justifique a existênciados críticos de hoje e, principalmente, de amanhã.Mas o grave é que esses funcionários da Literatura(Oh grande sinecura! Até quando duras, doçura?),mas o mais grave entrave é que esses funcionáriosda Literatura se atribuem o papel de legisladores,disseminando suas normas e mandamentos, comoprincípios áureos dos otários. Vários. No ABC daLiteratura, Ezra Pound – que além de poeta e lou-co, juízo também tinha um pouco – monta um di-agnóstico do processo de canonização das formaspela “tradição”.

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É ele quem fala:

“De modo geral, pode-se dizer que a deliques-cência do ensino em qualquer arte ocorre da se-guinte maneira:

I - Um mestre inventa uma bossa, ou proces-so para realizar uma função particular, ou umasérie limitada de funções.

Os alunos adotam a bossa. Muitos deles usam-na com menos talento que o mestre. O próximogênio pode aperfeiçoá-la ou trocá-la por algo maisapropriado aos seus objetivos.

II - Aí aparece o pedagogo ou o teórico engo-mado e proclama aquela bossa como uma lei ounorma.

III - Então a burocracia se forma e um secre-tariado de cabeças-de-alfinete ataca todo novogênio ou toda nova forma de inventividade pornão obedecer à lei e por perceber algo que o se-cretariado não percebe.

Os grandes sábios, quase sempre, não tomamconhecimento das tolices da classe professoral.”

Evidentemente, estas (im)prudentes reflexões dePound não invalidam a contribuição dos estudio-sos funcionários das letras, ranhetas; mas alertampara o papel que lhes cabe. O crítico é o construtor

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da teoria viva, é aquele a quem cabe explicitar ametalinguagem que está pressuposta em todo textode criação. Seu trabalho é desentranhar da obra osmateriais da teoria, construída implícita e inconsci-entemente pelo artista.

Qualquer sistema teórico que não venha do tra-balho de arquiteto do artista e do trabalho de enge-nheiro do crítico é ilegítimo, porque assim como nãocabe ao crítico reescrever o significado intrínsecoda obra, não lhe cabe também reescrever a metalin-guagem implícita no discurso do escritor.

Embora nos anos setenta alguns acreditassem queesse conceito de crítica estivesse superado pela prá-tica de uma crítica-escritura, ou por uma crítica cri-ativa que ganhava foros de autonomia com relaçãoà obra lida, o distanciamento de décadas depois per-mitiu corrigir o viés do deslumbre causado pelas pri-meiras cintilações do pensamento teórico pós-mo-derno. É verdade que ainda hoje a moda impõe ex-travagâncias aos corifeus da novidade feérica, masum pedaço de século é muito tempo... e aqueles quesão fiéis ao seu próprio momento histórico, mesmosem trejeitos pós-modernos, podem prescindir deescrever outras pauliceias desvairadas. Mário radi-calizou e abriu largas veredas. O caminho de roçariscado por cada pé que vem depois é mera redun-dância.

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Por isso repito: não cabe ao crítico reescrever osignificado intrínseco da obra nem a poética pre-sente como camada do palimpsesto. Cabe, sim, ilu-minar as veredas do não consciente, tarefa das maisnobres, que exige, antes de mais nada, que se tenhanos olhos o fogo. Que ilumina e atrai.

De certa forma, a rigidez dos limites entre deter-minadas modalidades de textos literários foi estabe-lecida, ao longo da história, mais pelos críticos le-gisladores do que pelos próprios artistas criadores.Não se pode negar a influência das classificaçõesimpostas pela crítica às gerações seguintes, das quaissurgem os novos escritores. Daí a responsabilidadedo crítico, do professor, deste preclaro protozoárioque Pound chamou de pedagogo engomado. Nossotrabalho pode contribuir tanto para melhorar a li-teratura – ou a arte – de um povo quanto para re-duzi-la a uma cumpridora de tarefas e normas.

Dentro desse quadro, paralela à distinção dosgêneros e subgêneros literários, subsiste, viva, ainteração dessas modalidades de escrita. Tão impor-tante quanto a compreensão dos limites entre asformas, é o reconhecimento da sua transgressão;porque a Literatura transforma as fronteiras emisoglossas móveis, sem limites das terras do sem-fim.

Já se disse, em muito lugar, e se não se lembram,digo aqui, com jeito de quem não diz, que a epopeiae o romance estão ligados por uma linha de tempo e

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de tempero. Como o pai está ligado ao filho. Ambasas narrativas encerram uma visão de mundo, umaestruturação da realidade, uma espécie de constru-ção de um mundo paralelo, que se revela a cada pas-so da leitura, aos poucos, como o próprio mundoexterior se revela ao homem. Mas não sei se já sedisse que o conto e o poema estão próximos. Comodois irmãos distantes.

Todo conto é um recorte da realidade, uma sele-ção de aspectos que, sendo particulares, abrem asportas do geral, valendo como símbolos de algumacoisa bem maior.

A reestruturação do real no conto não se dá numaordem ontológica, como pretende representá-la amedição cronológica, mas segundo uma sequênciaonírica, metonímica, onde o refazer da parte repre-senta a mudança do todo. A constituição de um sig-nificado novo, embora parcial, contém a percepçãode um significado não dito.

Sob este aspecto, o conto seria uma antinarrativa,porque seu verdadeiro sentido, sua essência, éinenarrável. Ou ainda, é uma meta narrativa. O queestá além da narrativa. E o que não narra a narrativa.

Um conto que se esgota nos limites da históriaque conta, não é um conto, mas um episódio des-garrado de uma ficção mais ampla, que não se reali-zou na escrita, não se escreveu, nem nunca se escre-verá. Porque todo texto de criação, não importam

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suas dimensões, é um mundo em si, microcosmo,com suas leis, seus seres, sua própria organização.Se a obra não destrói o mundo para construir umoutro mundo sobre os destroços cotidianos – querefaz a realidade estabelecida nos sem-limites do es-paço de transgressão –, ela não é uma obra de arte.É um exercício formal, uma maneira de estilo, umdiscurso conceitual, ou outra coisa qualquer nosdomínios da retórica. Toda arte é radical. E ser radi-cal, segundo Marx (fora da moda e do muro deBerlim, mas bem melhor de se ler, sem os figurinosou catecismos da burocracia ditatorial do Partido),é tomar as coisas pela raiz. Por isso, ela subverte aorganização do universo, sublinha sua crise, comocaminho para superá-la.

Um conto não vale pelo que conta. Mas pelo quenão conta. Pelo que se projeta no silêncio da narra-tiva e fica. É precisamente aquilo que se instala ehabita para sempre a sensibilidade, ou a inteligênciado leitor, que é a essência do conto. E essa essêncianunca é dita, porque não cabe nos limites de umaspoucas folhas de papel, embora, paradoxalmente,caiba, comprimida – ou melhor, adormecida, oumesmo encantada – nos parcos signos poéticos con-tidos nessas folhas.

Se no romance, pouco a pouco, o autor constróia essência do texto, no conto, ela germina no leitodo leitor, rompe: brusca, como somente sabe rom-

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per uma semente no óvulo fértil, depois do encon-tro e do encanto. Se o romance, lento, se tece naeloquência do verbo ou no desenrolar gradual datrama, o conto, ágil, se projeta numa outra elo-quência – a do silêncio.

O silêncio de depois do ato desentranha o senti-do desse ato de leitura.

E tudo isso não faz o poema? Não é o verso asíntese da sentença?

O poema não ordena e aflora apenas o que foidito, mas também o que nunca se dirá, o indizível –que precisa ser dito. O poema fala por si, pelo au-tor, e pelo Outro, pelo leitor. Eles encontram, reve-lado, nas insinuações do texto, o segredo defendi-do. O poema sabe, e diz o segredo sem que esse sejaviolado. Por isso o poema é segredo, claro enigma.

E tudo isso não faz o conto? Não é seu encantoa síntese da sentença?

Distante da velha anedota ou da crônica doastuciado, seu berço primitivo, o conto quer para sio condão do poema.

Aquilo que o indivíduo escande e esconde paraalém do consciente é revelado pelo poema. Revela-do ao leitor, decifrador, e a quem cifra e, às vezes,decifra, o autor. Mas a revelação do poema não dói,simula a dor. O dito permanece entre o não dito.Não se trata de uma revelação que trai o segredodefendido pela consciência, mas de uma esfinge que

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vela, ou que finge, quando revela. Um claro-escuro.Uma verdade em vigília, que se mostra apenas o su-ficiente para a intuição. Que não se exibe. Por isso,o canto e o conto podem aflorar e ordenar não ape-nas o que foi dito, mas, principalmente, o que nãose pode nem se permite dizer.

Espelho de encantado, duende ou bruxo, quereflete não só o que se esconde por trás da face doinventor, como de todos que nele se miram: eis otexto.

CRIAÇÃO E CRÍTICA: SOBRE O CONTO E O POEMA. Artigo crítico-teórico sobre o fenômeno literário. Minas Gerais SuplementoLiterário. Belo Horizonte, 11 out. 80. Republicado na coluna“Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 11 mai. 98, p.7. (Título original do artigo: Sobre o conto e o poema)

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SOBRE A CRÍTICALITERÁRIA

A experiência de manter semanalmente neste es-paço, ao longo dos últimos quatro anos consecuti-vos, o enfoque crítico de obras recém publicadas tempropiciado a manifestação de leitores que, em for-ma de cartas e outras observações escritas, estabele-cem um produtivo diálogo. Algumas vezes, suge-rem a abordagem de temas ou apresentam questio-namentos. Uma sugestão interessante, agora segui-da, acena para a necessidade de intercalar o examede obras com discussões em torno desta atividade.Imagina o leitor que uma reflexão em torno do exer-cício da crítica pode “conferir maior credibilidadeao trabalho”, além de dividir com o público interes-sado as preocupações e pressupostos que norteiamtais especulações.

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Comecemos então pelo princípio, fazendo umhistórico incompleto da atividade chamada críticaliterária (como fazemos na sala de aula). Esta pala-vra, em nossa língua, está vinculada aos vocábulosgregos krínein (julgar), krités, (juiz) e kriticós, (cen-sor de obras escritas). Tendo chegado até nós atra-vés da forma latina, os dicionários registram o subs-tantivo criticus, com o significado de crítico ou decensor de obras escritas, conforme usado por Cícerona obra Cartas familiares. No âmbito dessa tradi-ção, o termo criticus se aproximava de gramaticus,sem que se fizesse distinção entre a análise da obraescrita de natureza informativa ou técnico-científi-ca e a da obra de arte literária propriamente dita.Observe-se que, ainda hoje, é comum se chamar deliterária a toda obra de erudição escrita, ficando aLiteratura sem uma designação própria. Tal aconte-ce também com a expressão letras que, em muitospaíses, designa o labor intelectual através da escrita,ou mesmo, as ciências humanas. Daí as academiasde letras reunirem não somente romancistas, poe-tas e outros criadores, mas todo escritor de livros,tratem eles do verdadeiro ou do verossímil. A dis-tinção de Aristóteles entre a poética e a escrita eru-dita, científica (como a História, tomada por elecomo exemplo), não foi suficiente para demarcar asfronteiras.

O crítico, o gramático e o lógico, conforme sedepreende de um correr de vistas por textos filo-

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sóficos antigos, medievais e neoclássicos, eram umsó estudioso, versado na “arte de pensar” ou de es-crever. Observe-se que o Renascimento e o Ilumi-nismo deram continuidade a essa correlação. Noséculo XVIII, Condillac desenvolveu a sua lógicaimbricada com a gramática; no início do século XIX,Degérando publicou Dos signos e da arte de pensar.Essa mesma identificação era encontrada nas obrasde Lock (1632-1704) e de Leibniz, seu contempo-râneo e opositor crítico do empirismo inglês.

Na Inglaterra do século XVII é que aparece omoderno vocábulo criticism, forjado para distinguirentre a atividade crítica e a pessoa que faz a crítica –critric.

Usado não somente para designar a leitura valorativade obras literárias, o termo foi tomado na Alemanhapor Kant (1725-1805) para caracterizar seu métodode investigação filosófica, em livros como Críticada razão prática, Crítica da razão pura e Crítica dojuízo. É possível que o idealismo kantiano tenha con-tribuído para destacar o aspecto subjetivo da críti-ca; ou para demonstrar que quando o espírito se de-bruça sobre os objetos do mundo exterior, projetasobre eles formas apriorísticas ditadas pela inteligên-cia e pela sensibilidade do sujeito cognoscente.

As ideias do filósofo reforçaram os argumentosem favor da crítica literária de natureza subjetiva,assim como para a posterior fixação, um século de-pois, da chamada crítica impressionista.

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Convém destacar que a história da crítica tomacomo tal todo esforço teórico voltado para a com-preensão e fixação do objeto literário, incluindo aías famigeradas poéticas, que se multiplicaram noRenascimento, com a redescoberta de Aristóteles edos clássicos. Mas, muito do material referido comocrítica literária pode ser visto como conjunto de re-gras e determinações ou mesmo como teoria e his-tória da literatura.

Se a atividade crítica pressupõe a constituição deum cânone, ou de um conjunto de obras que ser-vem de modelo e fornecem as normas para o julga-mento de novas obras, o Renascimento instaurou acrítica neoclássica baseada na autoridade exemplardos gregos e latinos.

Na França, a Arte Poética de Boileau serviu dereinvenção do pensamento estético clássico e deponto de partida para uma postura crítica com rela-ção às práticas greco-latinas. Se, de um lado, teóri-cos e eruditos propunham os modelos antigos comoreferencial único para a construção artística, do ou-tro lado, leitores e apreciadores dos escritores coe-tâneos julgavam o novo fazer literário como sendoconsequência do progresso filosófico e científico daespécie humana.

Samuel Johnson, na Inglaterra, ao empreender asua respeitada edição crítica da obra de Shakespeare,firmou-se concomitantemente como filólogo e

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como crítico literário. O trabalho de editor críticono Iluminismo impunha-se não somente aos textosantigos mas a partir de então aos textos modernos,como os do grande poeta e dramaturgo inglês. Crí-tica textual e crítica literária fundiam-se no traba-lho de Johnson que, não apenas, interpretava a es-crita shakespeariana como também julgava os pon-tos que considerava mais ou menos expressivos.Johnson não se furtava a apontar os erros e os acer-tos do autor criticado.

Surgia, assim, nas últimas décadas do século XVII,a partir de discussões travadas na Inglaterra, na Fran-ça e em outros países europeus, a Querelle des ancienset des modernes, que animou o Iluminismo e ganhou,ainda, novas dimensões no Romantismo. O pensa-mento romântico se sustentou na afirmação de no-vos valores, não mais baseados nos clássicos e simno gosto e na prática dos povos europeus da IdadeMédia.

A construção de um novo cânone foi a conse-quente novidade, entre outras ocasionadas pelo pen-samento romântico, que propiciou o surgimento deuma crítica viva e atuante. Os alemães e os inglesestiveram um importante papel na afirmação de umjuízo de valores fundado no gosto originalmentepopular e historicamente resgatado, onde a emoçãoe a imaginação desencadeada pela fluidez dos senti-mentos ganharam o estatuto de elementos consti-

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tuintes do fazer artístico. Com a valorização dosantigos elementos identitários da nacionalidade, es-ses povos conseguiram elevar as tradições popula-res da sua cultura ao nível do apreço com que sem-pre foram distinguidos os clássicos da cultura de basegreco-latina.

Uma tendência similar de reposição da culturapopular no centro de gravitação da atividade cria-dora reaparece na contemporaneidade, notadamentea partir do influxo trazido pelos Estudos Culturaisiniciados, igualmente, na Inglaterra, o mesmo paísque serviu de berço do cânone moderno e do ro-mântico, com suas raízes cultivadas na diversidadede padrões e gostos. Ironicamente, no Brasil, adesconstrução do cânone erudito, em favor de cul-turas alternativas, propicia a crise da crítica literária(sem apontar para a sua refundação), pelo menosno âmbito acadêmico, hoje representado pelos con-gressos da mais expressiva sociedade universitária deliteratura, a ABRALIC.

SOBRE A CRÍTICA LITERÁRIA. Artigo introdutório sobre o exercí-cio da crítica literária. Coluna “Leitura Crítica” do jornal ATarde, Salvador, 27 set. 97, p. 7.

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TEXTO LITERÁRIO E TEXTOCIENTÍFICO: DISTINÇÕES

– O que distingue o texto literário do texto cien-tífico? O que permite a alguém reconhecer que estádiante de uma obra de arte verbal e não de uma obrade informação do conhecimento?

São perguntas que geralmente o leitor se faz comoponto de partida para a compreensão de obras lite-rárias, como um romance, um conto ou um poema.

Mas, antes de se responder, esse leitor precisa terem mente o que entende por literário e por literatu-ra. Como se sabe, a expressão vem de littera, letra,modo de escrever, ou mesmo, carta. A partir daí, li-

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teratura seria tudo que é escrito, como bula de re-médio, bibliografia sobre doenças, anúncio de car-tomante e até livro de autoajuda. Com uma sutildiferença – a inicial maiúscula –, Literatura seria, paraalguns estudiosos, a arte da escrita criativa. Ou oconjunto de obras artísticas de natureza verbal.

Mas, nem sempre, os estudiosos estiveram deacordo entre si, quanto à observação desse critériodefinidor. Na idade média, por exemplo, quando aescrita era uma arte dominada por poucos, quasetudo que era escrito se confundia com literatura.

Ainda hoje, a Literatura Brasileira inclui no seuacervo textos como a Carta de Pero Vaz de Cami-nha ou os vários tratados e impressões de viajantesdo século XVI sobre a terra descoberta. O leitorpoderia concluir que escritor, escrivão, escriturárioou escrevente é todo indivíduo que escreve, não im-porta o quê, se tratados de botânica, manuais deética ou histórias de ficção.

Supondo que o leitor considere literatura, mes-mo escrita com inicial minúscula, como apenas aobra de arte verbal, podemos estabelecer algumasdistinções básicas entre a linguagem literária, de na-tureza estética, e a linguagem científica, de nature-za pragmática. Tais distinções valem ainda para ou-tras modalidades de discurso, como o informativo,o emotivo, o coloquial etc.

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O texto literário é antes de tudo um jogo de lin-guagem, no qual esta pode aparecer tanto quanto opróprio conteúdo veiculado. Como essa linguagemartística é opaca, isto é, retém o olhar sobre si, antesde conduzi-lo ao objeto retratado, ela aparece comoparte do objeto. Já o texto destinado a ensinar, acomunicar o saber da ciência, é uma modalidade dediscurso informativo onde a linguagem é transpa-rente, permitindo que a atenção do leitor atravesseas palavras e frases e veja de forma clara aquilo que éinformado. Como o objetivo é mostrar algo, é ex-plicar um conjunto de saberes, a linguagem científi-ca é transparente – invisível aos olhos que buscamum objeto definido.

Nesse ponto, o texto literário se opõe a diversasmodalidades de texto, quer sejam elas científicas,informativas ou pragmáticas. Estaria um tanto pró-ximo do texto coloquial, como a fala do dia-a-dia,bem mais complexa do que as outras, porque con-tém em si a semente e a soma de todos os registrosdo falante. Ela, a linguagem do dia-a-dia, é um pou-co científica, informativa, e um pouco inventiva,artística. É pragmática e também emotiva, especu-lativa – lúdica. É da sua riqueza esquecida por entreas frases cotidianas que se constroem os primeirosjogos de sentido da arte verbal. É no saber arcaicoda linguagem coloquial que se procuram as pedrasque servem de base para as torres da dicção artística.

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No texto literário a linguagem é opaca; ela nãoapenas refrata, distorce ou redimensiona o objeto,como retém o olhar sobre si mesma, compartilhan-do a atenção do leitor com o objeto que constitui oplano do conteúdo da obra. A tessitura do textonão permite de pronto visualizar o objeto focado,assumindo o lugar de extensão complementar. Re-tomando a divisa de McLuhan, pode-se dizer queno texto literário o meio é a mensagem. O veículo damensagem transmitida, isto é, a linguagem, já trazem si mesma muito daquilo que se diz. Se no discur-so objetivo a fidelidade ao objeto da mensagem evi-ta a dispersão do olhar; no discurso literário, que étambém uma modalidade de discurso subjetivo, oolhar passeia por entre as dobras da linguagem, re-tirando dela sentidos subsidiários que enriquecem amensagem original. Daí, o meio tornar-se mensagem.

Não esqueçamos que o texto científico utilizauma linguagem denotativa, isto é, que propõe umadireção única de significados, conduzindo o leitor aum só feixe de interpretação. O que importa aí nãoé a linguagem e suas revelações subsidiárias, mas oobjeto ao qual ela se refere de modo direto, trans-parente e objetivo. Já o texto literário utiliza umalinguagem conotativa, isto é, que sugere um lequede possibilidades interpretativas, onde a textura dasfrases resvala em sentidos outros, em restos de sa-beres antigos e novos escondidos por entre as fres-

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tas da frase. As múltiplas interpretações abertas pelotexto literário convidam à participação ativa do lei-tor: sua experiência de vida, sua sensibilidade e suabagagem afetiva e intelectual constituem cadeias derelações dos seus conhecimentos com as projeçõesda obra lida.

Como a linguagem literária é conotativa, ela con-segue traduzir um universo de possibilidades bas-tante amplo e, ao fazê-lo, atribui novos sentidos,constrói novos objetos, formados pelo redimensio-namento dos objetos dados. Ao renovar expressõesgastas pelo uso, a linguagem literária também reno-va ou reforma seus conteúdos – os objetos referi-dos pelas expressões. Naturalmente, a linguagemnão renova o objeto do mundo natural em si, mas acompreensão que o homem tem desse objeto. Nãoesqueçamos que essa compreensão, que essa imagem,é que se torna o verdadeiro objeto do mundo soci-al, do mundo dos homens e das mulheres, enquan-to espécie de animal simbólico.

Se o texto científico quer explicar, informar eenformar o mundo conhecido, dando a ele uma for-ma transmissível ao leitor, o texto literário quer des-cobrir o desconhecido. O texto científico é infor-mativo: dá conta de algo que se sabe e que se trans-mite a alguém. O texto literário registra uma via-gem exploratória: ao mesmo tempo em que tenta

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descobrir, permite ao leitor acompanhar o processode descoberta, redescobrindo.

Nesse sentido ele é primitivo, como o mito.O mito é um discurso que descobre e, ao mesmo

tempo, tenta compreender os mistérios do mundo.O texto literário seria então uma espécie de mitoindividual que o homem moderno continua culti-vando como modo de retomar as coisas pela ori-gem, pelo princípio.

TEXTO LITERÁRIO E TEXTO CIENTÍFICO: DISTINÇÕES FUNDAMEN-TAIS. Artigo teórico sobre a natureza do texto literário, emoposição ao texto científico. A Tarde Cultural. Suplementoliterário do jornal A Tarde. Salvador, 17 jan. 98. Original-mente escrito como apostila para uso em sala de aula, naUFBA, durante o segundo semestre de 1997. (Título origi-nal: A natureza do texto.)

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O MITO COMO REALIDADEDO HOMEM

Habitante de um mundo de prodígios, o homemse vale de narrativas fabulosas para explicar as coi-sas e fenômenos que o rodeiam. Todos encantados.As formas ancestrais da nossa desencantada ciênciacompreendiam o universo através de um discursotão insólito quanto o nosso próprio mundo.

É por isso que o saber mais sensato não rejeita asvárias formas que a consciência utiliza para ter ciên-cia do mundo. Todas as formas de conhecimento,das mais ancestrais e primitivas às derivadas, maiselaboradas que as anteriores, portanto, são igualmen-te eficientes na sua tarefa de traçar os contornos doreal. Estranhamente, a coceira do bicho de pé poli-ticamente correto de alguns exorciza o uso de ex-pressões como “primitiva”, supondo que o precon-

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ceito das mentalidades desaparece num passe mági-co, com a supressão totêmica de uma simples pala-vra, cujo sentido nos é dado transformar, inverter eredimensionar ao sabor da fala. Pobre animal hu-mano...

A ciência não mais ignora que a mitologia de umpovo é um fato decisivo como marco fundador darealidade; mesmo quando, através de construçõesfabulosas, os mitos remetem o observador à perple-xidade. É aí, talvez, que surge a oposição entre asformas conscientes e as formas inconscientes doconhecimento.

Os rituais míticos dão conta de um conjunto desaberes difuso, ainda não fixado pela consciência,mas decisivo nas intervenções destinadas à consti-tuição da realidade – um conhecimento inconscien-te, portanto. Já o saber da ciência é a sistematizaçãodo que o homem foi capaz de captar através da cons-ciência. (Curiosa coincidência a convergência de some sentido das palavras ciência e consciência, doispassos próximos.)

As construções do espírito desempenham umpapel mais ativo e basilar, no que diz respeito aomundo de homens e mulheres, do que as obras ma-teriais ou os poderosos fenômenos da natureza.

A semiótica, herdeira da tradição que identifica ateoria do conhecimento com a teoria da linguagem,mostra o quanto somos falados pela nossa língua,

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isto é, o quanto somos levados a dizer e a pensarnão aquilo que queremos mas aquilo que somos obri-gados a pensar, pela forma do nosso discurso e peloseu comprometimento com as circunstâncias que aproduziram. Ou ainda, evidencia o quanto as nos-sas ações e a nossa ideologia estão determinadas pe-los idola ou pelos signos da constelação humana.

Um autor do século XVI, o filósofo FrancisBacon, formulou o conceito de idola como filtrosmodificadores da realidade oferecida pela natureza.A sua preocupação com a objetividade do conheci-mento teve como consequência radical a formula-ção da dúvida da validade de todo saber. A designa-ção proposta para os condicionamentos impostosao espírito pelas concepções científicas e filosóficas(idola theatri) parte do seguinte pressuposto: asverdades dos sábios são como as verdades apresen-tadas pelos poetas trágicos ou cômicos no teatro;isto é, são todas fictícias.

Esboçava-se a dicotomia anti-sofística destinadaa opor o mundo da cultura, da linguagem, portan-to, ao da natureza, predicando o atributo de falsi-dade ao primeiro e de verdade ao segundo.

Uma das grandes lições trazidas, neste campo,para o pensamento do século XX foi a evidência,demonstrada por Freud, de que os fatos pertencen-tes à esfera da realidade psíquica são mais tirânicospara o homem do que os fatos que se originam na

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realidade material. Isto porque os fatos materiais,concretos, só se transformam em fatos humanosquando perpassam a esfera da realidade psíquica. Decerto modo, essa evidência já foi teorizada por Baconno Novum Organum, mas com Freud desapareceinteiramente a doutrina valorativa. A cultura nãoestá obrigada a ajustar as suas verdades à verdade danatureza, como queria o filósofo seiscentista. Tran-sitando dos mitos culturais aos individuais, Freudfaz com que um dos resultados da sua descobertaleve o homem do século vinte a equiparar a realida-de psíquica à realidade material.

O centro é deslocado, copernicamente, dos fe-nômenos naturais para os fenômenos humanos pro-priamente ditos. Assim como o analista freudianonão se interessa pelo que fatualmente aconteceu, maspelo que o discurso do analisante constitui; não sãoos fatos efetivamente ocorridos que constroem e de-terminam a vida psíquica do gênero humano, masaquilo que a mente faz desses fatos ou da ausênciados mesmos. Não é um fato objetivo, ou melhor,um fato real, que é o responsável pelo trauma; masum fato imaginário, que redimensiona e reescreve arealidade.

As disciplinas e ciências mais diversas são obriga-das a repensar continuamente o conceito de real,abandonando a ideia de uma realidade absoluta dadaao homem, pronta e imutável, em favor da concep-

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ção da realidade como fruto de um acordo capaz deconferir tal estatuto a um conjunto de fenômenoseleitos como balizadores do real.

Podemos chamar a esse conjunto de ações e pon-tos de vista, instituídos e aceitos pela cultura, ou aessa realidade socialmente construída, de espaço deconvenção. Assim, procuramos sublinhar que se tratade uma eleição, de um contrato social, que conven-ciona o que devemos entender por realidade e o quedevemos expulsar dos seus limites para garantir acondição de “normalidade” à nossa percepção domundo.

Fechando o círculo, mesmo falando de outrosfatos, retornamos à estrutura do mito. Objeto emi-nentemente cultural, o mito interpreta e constrói arealidade necessária às práticas e aos anseios de umgrupo cultural.

O MITO COMO REALIDADE DO HOMEM. Artigo teórico sobre o mitocomo fato da cultura. Coluna “Leitura Crítica” do jornal ATarde, Salvador, 23 set. 96.

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SUA NEUROSEÉ UMA OBRA DE ARTE?

(Ou sua obra de arte é uma neurose?)

O artista é um autista. Embora a analogia do sig-nificante, ou a lacanagem, seja gasta e, por isso mes-mo, pouco carregada de significado, não deixa denos levar a intuir uma verdade.

Mas a recíproca nada tem de aceitável: a ordemdos fatores altera o produto. Aqui, a matemática nãofala. O autista nunca será artista. As posições sãoinconciliáveis: ou ele abandona a casa, a casca decaramujo, para sujar-se de areia e ser invadido pelomar, ou permanece autista. Fonte que se abastece asi mesma. Rio circular. Sede que se sacia na uretra.Prisioneiro do deserto que vive dos próprios dejetos.

Vamos substituir a mistificação da irresponsabili-dade, a celebração do desatino pela da metanóia. Meta

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que nos monta no seu cavalo para ganhar a guerrade Tróia. Rubro corcel de crinas em chamas.

O termo metanóia é aqui utilizado para designartão somente a viagem através da loucura com retor-no, ou a transformação do desatino em força pro-dutiva: a volta.

A arte é um momento de vertigem lúcida, vora-gem lúdica. Processo que vai da ferida à cicatriz.

Explico a aparente contradição: ser autista podeser o ponto de partida do artista, mas não o de che-gada. O texto é sempre a superação de si mesmo.Aquele que investe demasiadamente na sua própriapatologia de estimação se afasta da arte. É precisodividi-la, doá-la, encontrando no outro o seu espe-lho. Só assim se desfaz enquanto forma patológicae se refaz em forma de arte, preservando o ser, anti-go e renascido.

A obra é um espelho, onde o leitor ou o críticose reflete. É também uma postura analítica, onde sepermite ou pede ao leitor que fale suas fantasias: ametáfora é o divã.

No outro, o poeta se perde, se encanta, se en-contra. Só no outro. Dentro de si habita o vácuo,que se chama a si mesmo.

A máscara de um é a face do outro.Quando Freud vê em Hamlet o édipo, ele não

descobre o édipo de Shakespeare, mas o dele mes-mo, sob o pretexto do texto. A obra de arte é um

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objeto estranho, que não se parece com nada co-nhecido. Por isso, precisamos declará-la parecida comalguma coisa. Classificá-la para compreendê-la. Écomo o objeto enfeitiçado caído da tempestade nomeio da floresta de símbolos. Um coelho contouaos outros coelhos que parecia uma cenoura. Umaabelha, às outras abelhas que parecia uma flor. Ummacaco, que parecia uma banana. Um psicanalista,que parecia um falo. Narciso, que parecia um espe-lho.

Mas é na flor e no espelho, na cenoura e na bana-na, no falo e no falso que o artista se encontra. Averdade é a mentira no espelho.

O movimento dialético da criação estética exor-ciza os onze mil demônios e vai em busca do outrocomo fonte onde se mira e sacia a sede do criar. Nemmesmo um movimento de desespero e recolhimen-to como o Romantismo Artístico pôde se alimentarda subjetividade pura que recusa a transfusão desaudabilidade do encontro com o outro. Os român-ticos que persistiram no cultivo da desconfiança pelomundo circundante, se supondo perseguidos, in-compreendidos e predestinadamente superiores aoseu meio, emigram, cada vez mais dos ensaios e com-pêndios que tratam de questões estéticas para os queanalisam a síndrome da paranoia.

A obra de arte não nasce de uma reação autoplás-tica, onde o indivíduo se volta para dentro, concen-

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trando as influências em si mesmo, como numa con-versão histérica – que se entorta na impotência deexplodir o mundo.

Autoplástico e aloplástico são termos que qualifi-cam dois tipos polares de reação ou de adaptação. Oprimeiro dá conta de uma modificação interior, oudo organismo, e o segundo de uma modificação domeio circundante. Segundo Laplanche, J. & Pontalis,no seu Vocabulário da psicanálise, Ferenczi fala deadaptação autoplástica como um mecanismo primi-tivo, em que o organismo só tem influência sobre simesmo e não realiza mais do que mudanças corpo-rais, relacionando-o à conversão histérica.

A arte é uma conversão estética que entorta edesentorta o mundo coxo – e se mantém intacta. Oautoerotismo, ao masturbar o saber, destrói a arte,que nasce e vive de um processo de interação ondeo artista projeta sua influência, de dentro para fora,e introjeta o patrimônio cultural comum, de forapara dentro. A ação do homem sobre o contextoexterior é um modo de manter seu próprio equilí-brio, reduzindo a exaustão da distância entre o sig-no selvagem da arte e a fala civilizada. 

Se aceitarmos que a arte se exerce a partir de umaoposição à fala civilizada, isto é, que ela não se en-cerra nos limites de um momento histórico, cristali-zado na linguagem de uma época, teremos para asemiótica poética um signo selvagem, conforme nos-sa proposição no livro O signo selvagem, traduzido

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e publicado nos Estados Unidos por Hugh Fox, em1983. Argumento correlato tivemos oportunidadede defender na proposição “O Significando: supe-ração da dicotomia do signo linguístico na semióticapoética”, apresentado em 1977 ao XV Congrès Inter-national de Linguistique et de Philologie Romane.

Não por acaso, em muitos, a “obra de arte” éuma neurose, uma ilusão enganosa e consolatóriadestinada a manter intocados os núcleos do silên-cio. Em alguns, poucos, a neurose é uma obra dearte, ela se supera na produtividade dita texto e trans-forma esse silêncio no significado que fala. Mas issosó é dado àqueles que voam nas asas da metanóia ouusam sua expressão como forma de fazer o forteexplodir (sob os olhos dos fracos): que ao invés deimplodirem, se destruindo, denunciam e destroema distância entre sua sensibilidade e as eternas teiasonde se tece a civilização.

A impotência de reagir, ou a submissão dos ven-cidos, se encerra na esterilidade das confissões e con-fidências. A obra de criação não se ergue no desaba-fo, bufa mental, nem nos lamentos, dementes, maispróprios para os diários íntimos e os cadernos deconfidências dos adolescentes antigos. Brejeiros ál-buns de recordações, hoje condenados ao museu dodesuso, e substituídos por arrogantes ejaculações“artísticas”. Cada queixa, cada dor de cotovelo, con-verte-se num pretenso e péssimo poema.

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Autoinfecção, autolatria, autogamia – autor. Paramuitos artistas, mais autistas que artistas, a sequênciaé um diagnóstico – que, às vezes, ah!, resulta emconcorridas vernissages e tardes de autógrafos.

O termo autogamia é empregado no sentido cor-rente em biologia, como fecundação do óvulo peloespermatozoide proveniente do mesmo animal, oucomo fertilização de uma planta pelo seu própriopólen.

Quase sempre a racionalização mascara as neu-roses de estimação sob a fantasia do talento. Os gar-bosos gênios incompreendidos, sob os aplausos de-lirantes das tias e dos amigos e comensais da família,tomam a sua falta de habilitação para transitar nomundo exterior como um sintoma da arte. Mas aarte não tem sintoma, ela é um sintoma. Social, su-pra individual.

A arte é a manifestação simbólica de um conflitoque se equilibra sobre o fio de uma navalha. Semcorte.

SUA NEUROSE É UMA OBRA DE ARTE? OU SUA OBRA DE ARTE ÉUMA NEUROSE? Artigo sobre a interrecorrência dos fenô-menos artísticos e psicopatológicos. Minas Gerais Suple-mento Literário. Belo Horizonte, 10 jan. 81. Nova versãona Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador,21 abr. 97, p. 7.

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FERNANDO PESSOAe a neurose como fonte da arte

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A neurose fornece substância ao material poéti-co, eis uma verdade. Mas a neurose em si e esse ma-terial não são suficientes para assegurar a existênciada obra de arte. Fernando Pessoa percebe isso ecompreende como o Romantismo toma apenas umaparte dessa verdade, negligenciando a mais impor-tante: Não basta a alguém ter a substância do mate-rial poético fornecida pelas suas encenações patoló-gicas; é preciso dar a esse material uma forma co-mum ao arcabouço da realidade humana – social ecomunicável. Não é, portanto, a experiência vivida,em si, que faz o poeta, mas o que ele faz dessa expe-riência.

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O Romantismo, afirma Pessoa em suas Obras emProsa, admite princípios que possibilitam a qualquerindivíduo conferir a si mesmo a coroa de artista:“Tomar a ânsia de uma felicidade inatingível, a an-gústia dos sonhos irrealizados, a inapetência ante aação e a vida, como critério definidor do gênio oudo talento, imediatamente facilita a todo indivíduoque sente aquela ânsia, sofre daquela angústia, e épresa daquela inapetência, o convencimento de queé uma individualidade interessante, que o Destino,fadando-a para aqueles sofrimentos, e aquelas im-possibilidades, implicitamente fadou para a grande-za intelectual.”

Lembra o poeta que, de acordo com a teoria clás-sica, é a capacidade de construção e de coordena-ção, ou a disciplina interior, que origina a produçãoestética, onde a razão é capaz de ordenar e compre-ender as explosões desordenadas da emoção vulcâ-nica. A poética romântica permite a aceitação doequívoco segundo o qual alguém pode se presumirartista porque “as qualidades fundamentais exigidassão um sentimento de vácuo nos desejos, um sofri-mento sem causa, e uma falta de vontade para tra-balhar – características que mais ou menos todospossuem, e que nos degenerados e nos doentes doespírito assumem um relevo especial.” Pessoa acres-centa que o perigo trazido por tais concepções ro-mânticas consiste no estímulo dado por elas ao que

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ele chama de “falso individualismo”. No seu modode pensar, o individualismo não é necessariamentefalso, podendo ser compreendido como uma teoriamoral e política.

Mas, segundo o mesmo Fernando Pessoa, há umaforma do individualismo, como também acontececom o classicismo, que é falsa: “É a que permite queo primeiro histérico ou o mais reles dos neurastênicosse arrogue o direito de ser poeta pelas razões que,de per si, só lhe dão o direito de se considerar histé-rico ou neurastênico.”

Observe-se que Pessoa explicava a gênese da suacriação poética heteronímica a partir do fato de serele histérico e neurastênico, como são vistos por elecomo histéricos, gênios como Shakespeare ou comoGoethe. O histérico tende à despersonalização, àidentificação com personalidades outras, o que pos-sibilitaria a criação dramática dos personagens sha-kespearianos e goetheanos e a criação, igualmentedramática, realizada através de discursos líricos, dasobras poéticas de heterônimos como Alberto Caei-ro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis. Todos os ou-tros eus são, ao lado de Fernando Pessoa, ele mes-mo, personagens de um grande drama que tem porepígrafe a máxima: “Fingir é conhecer-se”, onde amáscara é a face verdadeira.

O trabalho de construção poética seria sempreprecedido por um trabalho de autointerpretação,

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de análise dos conteúdos formados a partir dos des-locamentos impostos pela individualidade. Dessemodo, a emoção puramente pessoal do artista seriasubmetida à ordenação impessoal e intelectual parase transformar em experiência comunicável. Os sen-timentos particulares não formam por si mesmosmatéria poética, mas podem vir a formar, caso, semperder a natureza particular, consigam adquirir ex-pressão universal. A experiência individual de umamulher ou de um homem diz respeito apenas a elese a outros que, como eles, tenham vivido uma situ-ação semelhante; mas essa mesma experiência trans-formada em material poético, sem perder a sua for-ma individual, encontra ressonância na vivência detodos os homens. Isso porque a prática poética, aotempo em que interpreta a sua própria formação,reflete a experiência de quem sobre ela se debruça.

O mesmo Pessoa – que anuncia a arte enquantonotação de uma impressão em desacordo com anorma social – propõe ir além do mito individualdo neurótico, seguindo em busca de um compro-misso maior.

Para ele, o sentimento que aparece na obra de artenão representa, necessariamente, as emoções do ar-tista, mas resulta de uma busca de identidade entreo pessoal e o impessoal, entre aquilo que emana dasubjetividade do poeta ou do pintor identificadacom a coletividade. A criação da arte expressa as

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emoções do sujeito que são comuns aos outros in-divíduos. São suas palavras:

“Falando paradoxalmente, exprime apenas aque-las suas emoções que são dos outros. Com as emo-ções que lhe são próprias a humanidade não temnada. Se um erro da minha visão me faz ver azul acor das folhas, que interesse há em comunicar issoaos outros? Para que eles vejam azul a cor das fo-lhas? Não é possível, porque é falso.”

E acrescenta a essas colocações que o princípiocentral da arte é a generalização, a comunhão entreo olhar do artista e o alcance da vista dos homens.

Se a gênese do gênio lírico é a histeria, esse em-brião só se desenvolve quando depositado na terracomum. As potencialidades só se transformam emato quando o grito da fera acuada é substituído pelaação eficaz. Em outras palavras: quando o mito in-dividual do neurótico (já referido por Lévi-Strausse retomado por Lacan) encontra no seu ritual pon-tos de identificação com o mito coletivo é que eleganha a eficácia simbólica necessária ao seu poderde transformação da realidade.

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Compartilhando, de um lado, as descobertas deFreud a respeito da natureza estrutural dos fatos

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psíquicos, que seguem processos similares em sujei-tos diversos, e, do outro lado, avant la letre, as pre-ocupações paradigmáticas da antropologia estrutu-ral, Pessoa não se deixa dominar pelo sentimento deoriginalidade do ‘gênio solitário’. Para ele, tudo quese passa na mente humana de algum modo análogojá se passou em outra mente. “O que compete, pois,ao artista que quer exprimir determinado sentimen-to, por exemplo, é extrair desse sentimento aquiloque ele tenha de comum com os sentimentos análo-gos dos outros homens, e não o que tenha de pes-soal, de particular”. O artista pessoano não é o des-vairado cantor selvagem, mas aquele que tem fôlegosuficiente para mergulhar pelas regiões primitivas daalma, tendo assegurado a integridade do caminhode volta. A descida aos infernos não significa para oartista um pacto com satanás, mas a descoberta defontes de energia retiradas da tensão entre forçasinconciliáveis.

Se o artista encontra no material produzido pelaneurose a fonte profunda da sua criação, é porqueele consegue estruturar o processo criador atravésdos mecanismos de superação da fonte original. Ocaminho em busca do outro, enquanto força coleti-va, cultural, portanto, consiste no acesso às articu-lações do real pertencentes ao tesouro comum atodos os indivíduos. A inserção do discurso da arteno sistema conceitual do discurso da cultura repre-

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senta a superação do desordenamento semiótico doindivíduo, o que equivale a dizer: a superação dosmecanismos estruturais do discurso neurótico poroutros mecanismos de livre trânsito entre os maiscomuns dos mortais.

“Acima de tudo, a arte é um fenômeno social”,afirma Fernando Pessoa, ao constatar que há, no serhumano, duas qualidades diretamente sociais quedizem respeito à sua vida com os outros indivíduos:“o espírito gregário, que o faz sentir-se igual aos ou-tros homens, ou parecido com eles, e portanto, apro-ximar-se deles; e o espírito individual ou separativo,que o faz afastar-se deles, colocar-se em oposição aeles, ser seu concorrente, seu inimigo, ou seu meioinimigo. Qualquer indivíduo é ao mesmo tempo in-divíduo e humano: difere de todos os outros e pa-rece-se com todos os outros. Uma vida social sã noindivíduo resulta do equilíbrio destes dois sentimen-tos: uma fraternidade agressiva define o homemsocial e são.”

Nos mesmos “Apontamentos para uma estéticanão aristotélica”, de onde foram retiradas as passa-gens aqui citadas, Pessoa caracteriza o isolamento eo domínio como resultantes do espírito antigregárioque se manifesta no seio da arte. Como a arte é umfenômeno social, mesmo o espírito separativo, ouantigregário, se manifesta de forma social, isto é, sob

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a forma de domínio: “A arte, portanto, é antes detudo, um esforço para dominar os outros”.

Pergunta-se, então: se aceito como verdadeiro oponto de vista pessoano de que a arte é uma formade atuar e participar ativamente da vida social, nãoserá necessário questionar a doutrina freudiana dasublimação das fantasias como vértice polar à atua-ção do artista na cultura?

Freud apresenta tanto a brincadeira quanto a fan-tasia, e, consequentemente, a imaginação poética,como formas sublimatórias da ação – ou de fuga daação – no mundo social. O adulto não pode substi-tuir a realidade pela encenação do desejo: dele seespera que não continue a brincar ou a fantasiar, masque atue no mundo real, diz Freud. A arte, em ge-ral, e a literatura, em particular, serão mesmo for-mas de fuga da ação; mecanismos de compensaçãosublimatórios? Em outras palavras: o trabalho doartista seria enganar o desejo e manter intocadas asformas estabelecidas da realidade, como sugere aconcepção sublimatória do fenômeno artístico se-gundo Freud?

Se assim pensarmos, teremos que admitir a arteou a literatura como “o sorriso da sociedade” – umasimples forma de divertimento, e não de conheci-mento. Se essa visão autorizada por Freud, for ver-dadeira, então Pessoa não será poeta, nem o que elefaz será arte. A arte continuará sendo uma forma

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consolatória de deleite e o projeto pessoano umainútil viagem pelo espaço de transgressão.

Segundo a teoria do fundador da psicanálise, aarte promove a conciliação entre o princípio do pra-zer, através do qual o sujeito tem como fim único asatisfação dos seus desejos, e o princípio da realida-de, destinado a submeter os projetos individuais àsexigências do mundo objetivo. A neurose tem comocaracterística, ou como resultado, arrancar o sujei-to da vida real, assim como o artista é visto comoalguém que se afasta da realidade, por não quererou não poder renunciar à satisfação pulsional queela exige. Todavia, diz Freud, “encontra o caminhode volta deste mundo de fantasia para a realidade,fazendo uso de dons especiais que transformam suasfantasias em verdades de um novo tipo, que são va-lorizadas pelos homens como reflexos preciosos darealidade.” Assim, em vários momentos da sua obra,Freud fica ambivalentemente dividido entre reco-nhecer o real da ficção ou proclamar a natureza enga-nosa da realidade poética. Recorremos aqui à expres-são de Wendel Santos no livro Os três reais da ficção.

A conceituação tradicional da realidade pareceexigir do analista vienense que repita o gesto funda-dor da República de Platão, expulsando o poeta dosdomínios de uma realidade exemplar. Do mesmomodo que o filósofo grego imputava ao artista acondição de imitador de segunda ordem, o psicana-

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lista descrevia as verdades articuladas pelo poetacomo “reflexos preciosos da realidade”, e não comooutras configurações do real.

Estamos, portanto, diante da velha teoria do re-flexo que tantos danos tem causado à compreensãoda natureza da arte. Observe-se que Fernando Pes-soa não considera a arte como sonho ou utopia, mascomo uma outra forma de construir o universo so-cial.

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Mantendo de pé o muro que demarca a fronteiraentre os dois mundos, o mundo da realidade e omundo da arte, Freud descreve a errante caminhadade Orfeu pela floresta do alheamento.

Se a transformação operada pelo poeta não é sen-sível e imediata, como aquela de uma revolução esuas guilhotinas; mas se instaura, lenta e gradativa-mente, através da consciência humana, conquistan-do regiões desconhecidas, temos a impressão de quenada mudou. Supõe-se que o poeta continua estérile a cultura ostenta sua petrificação incólume, só lherestando lamentar a impotência de transformar acidade dos homens.

Embora reconheça a força da palavra, ou das re-presentações verbais, como suficiente para equipa-

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rar a realidade do pensamento com a realidade ex-terna, Freud, contraditoriamente, em alguns momen-tos da sua teoria (quando fala da arte), rejeita o domdo verbo de se fazer carne, pedra ou lei, e de habitara morada dos animais simbólicos. Segundo esse pon-to de vista, o poeta, apenas, finge; nega. Fingir nãoé conhecer. Negar não é afirmar. Freud explicita:“Assim, de certa maneira, ele na verdade se torna oherói, o rei, o criador ou o favorito que desejava ser,sem seguir o longo caminho sinuoso de efetuar al-terações reais no mundo externo.”

No entanto, rejeitando o que Freud explica, opoeta replica:

“É hoje que sintoAquilo que fui.Minha vida flui,Feita do que minto.”

É evidente que o século vinte e a contribuiçãotrazida pelos poetas da modernidade alteram subs-tancialmente as perspectivas. Pessoa, síntese e sin-toma do século que preparou, é um sólido argumen-to em favor de uma outra concepção da arte.

Numa carta a Luís de Montalvor, o poeta anun-cia o condão: “Como nos tinham tirado as coisasonde púnhamos os nossos sonhos, pusemo-nos afalar delas para as ficarmos tendo outra vez. E assim

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tornaram a nós, em sua plena e esplêndida realida-de”. Sabendo que o real é uma construção da lin-guagem, o poeta não desdenha do seu instrumentocomo forma de atuação. Atento ao poder da suaarma, dispara: “Mas assim é toda a vida; assim, pelomenos, é aquele sistema de vida particular a que nogeral se chama civilização. A civilização consiste emdar a qualquer coisa um nome que lhe não compete,e depois sonhar sobre o resultado. E realmente onome falso e o sonho verdadeiro criam uma novarealidade. O objeto torna-se realmente outro, por-que o tornamos outro. Manufaturamos realidades.A matéria prima continua sendo a mesma, mas aforma que a arte lhe deu, afasta-a efetivamente decontinuar sendo a mesma.”

O sonho e a linguagem são erigidos à categoriade matéria do real, não a partir de uma idealizaçãoromântica, mas como melancólica constatação dosprecários materiais que sustentam o difuso edifíciodo homem: a cultura.

Não esqueçamos que Freud costumava buscaralém dos limites da ciência, na arte, na transgressãodo poeta, o material da sua descoberta. Para expli-car o trabalho dos artistas, propõe: “Estão bem adi-ante de nós, gente comum, no conhecimento damente, já que se nutrem em fontes que ainda nãotornamos acessíveis à ciência.”

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Se, por um lado, Freud reduz a arte à mera formaconsolatória dos desejos irrealizados, ou a um me-canismo de sublimação destinado a substituir a in-tervenção do sujeito na realidade social, por outrolado, ele destaca as possibilidades do discurso da arteinterferir na direção dos processos psíquicos respon-sáveis pela construção do real. Tal contradição, verifi-cada em textos de diversos momentos de redefiniçãoda teoria freudiana, ou ao longo de um mesmo tex-to, pode deixar de ser compreendida como contra-dição, se estivermos diante de dois objetos distin-tos, isto é, se Freud estiver falando, num momento,do objeto da psicanálise e, no outro, do objeto daarte.

Quando tentamos compreender o universo doautor da obra de arte, nosso objeto é o sujeito; eestamos, portanto, no campo da psicanálise ou mes-mo da psicologia. Quando analisamos o texto emsi, ou o circuito constituído pelo texto e por tudo omais que venha a gravitar em torno dele – mesmoque aí se incluam o emissor e o receptor do discursopoético, a cultura, portanto – o objeto é a arte.

O problema crítico das abordagens psicanalíti-cas da obra literária – e da arte em geral – é que, emlugar de analisar o texto, os estudiosos procuramum divã de metáforas para deitar o artista. O desejode ser analista se manifesta em quase toda crítica deinfluência freudiana, ao contrário do que fez Freud

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quando, por sugestão de Jung, tomou um textoficcional como um dos seus primeiros objetos deanálise arqueológica do discurso criativo. Em “Delí-rios e sonhos na Gradiva, de Jensen”, o criador dapsicanálise não esqueceu a natureza do objeto ana-lisado. Ainda bem, porque se a sua análise tomasseo velho autor como objeto, poderia provocar estra-nheza a quem acredita que esta obra ficcional assi-nada com o nome de Wilhelm Jensen (1837-1911),teria sido escrita pela sua filha, Katharina Jensen.

A discussão sobre o papel da arte como sublima-ção ou como forma de atuar sobre a realidade develevar em conta que, para o sujeito escrevente, a cons-trução de um outro real mais satisfatório pode subs-tituir a ação sobre a realidade circundante, enquan-to para o fruidor da obra e para a cultura, o traba-lho do texto pode representar uma intervenção so-bre o espaço de convenção chamado vida social. Acontravenção do real operada pela arte atua sobreas formas estabelecidas, abrindo passagens ondehavia interdição.

A verdadeira arte engajada não é aquela que de-fende a filosofia de um partido, mas aquela que emvez de aceitar passivamente as velhas construçõescristalizadas, inaugura o espaço de transgressão.

Se a arte é um fato social, um ato cultural, e nãoum simples sintoma do sujeito, o autor é um instru-

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mento executor da transgressão imposta pelo rigorda convenção.

“Não sou eu quem descrevo, eu sou a tela”

– anuncia o poeta do século da despersonalização,um incerto Pessoa.

FERNANDO PESSOA E A NEUROSE COMO FONTE DA ARTE. Artigopublicado em três partes, e escrito a partir do texto “Suaneurose é uma obra de arte? Ou sua obra de arte é umaneurose?” Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Sal-vador, p. 7. Parte 1: 21 abr. 97. Parte 2: 28 abr. 97. Parte 3:5 mai. 97.

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A ARTE COMO CONSTRUÇÃO DO REAL

O conceito de transgressão aplicado à literaturaperde o sentido quando a tradição moderna e a pós-modernidade reduzem o alcance da ruptura opera-da pela arte às formas da expressão. Isso porque asvanguardas formalistas só consideravam um lado damoeda, o plano da expressão. Perde-se de vista ofato essencial de que a literatura e toda forma dearte transgridem os limites do mundo estabelecidopara construir nuances alternativas da realidade.

Na segunda metade do século XX, com o bemsucedido resultado do pensamento estruturalistaque conferiu às ciências da cultura um rigor equiva-lente aos estudos das áreas tecnológicas e da natu-reza, verificou-se uma hipertrofia na valorização dosaspectos considerados “formais” nas artes, descuran-

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do-se do seu conteúdo. Enquanto se procurava com-preender como as formas da expressão construíamnovas abordagens artísticas, esquecia-se que são asformas do conteúdo as responsáveis pela ampliaçãodos limites do nosso mundo. Se as ciências ampliamos horizontes do homem pelas suas descobertas, asartes empreendem rupturas extraordinárias no modode ver e compreender a realidade. Como a realidadehumana se opõe à animal pela intervenção do sim-bólico, compreendendo aí todas as instituições abs-tratas da cultura, a linguagem não apenas expressa arealidade, mas fundamentalmente determina e cons-titui essa mesma realidade.

Observe-se que, do mesmo modo que as formu-lações abstratas das artes, às vezes consideradas in-sólitas, interferem no mundo concreto, com as ci-ências ocorre um processo análogo. Veja-se o casoda física; mesmo as proposições teóricas de Einstein– que podemos considerar pressupostos da filoso-fia da ciência –, foram capazes de mudar a realidadeaceita pelos estudiosos antes que fossem tornadas“verdades” pela confirmação da ciência experimen-tal. Assim, o mundo subjetivo atua sobre o objeti-vo, fazendo ruir as crenças do materialismo orto-doxo e abrindo espaço para um materialismodialético, no qual a realidade, ou a verdade factual, éum processo contínuo.

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As vanguardas literárias que transitaram da mo-dernidade para a contemporaneidade se caracteri-zam pela subversão dos códigos expressivos da obrade arte, onde a renovação não se processa para me-lhor captar, ou construir, o mundo, mais para me-lhor impressioná-lo. Interessadas numa expressãonova, a qualquer custo, elas correm o risco de es-quecer que a expressão é expressão de alguma coisa.Foi o que o século XX assistiu, um empenho no sen-tido de buscar novos caminhos expressivos para umaarte que não se revigorou na sua essência, no seumodo de afrontar o mundo.

Se esse empenho, por um lado, é positivo, se anova dicção é a única forma de captar as novas for-mações impostas pelo admirável mundo novo, oexercício mecânico da busca desse arsenal de novi-dades quase sempre está atrelado a uma fácil e cô-moda posição estética, onde a riqueza do guarda-roupa e a atualidade do traje tentam ocultar o enve-lhecimento do corpo.

Há alguma coisa nova que justifique o conceitode pós-modernidade? Ou o que se diz a respeito jáfoi dito sobre a modernidade?

Não pensando nada de novo, a indigência inte-lectual pensa uma nova forma de pensar o pensa-mento. Ironicamente é possível definir a pósmoder-nidade como tal: como um maneirismo da moder-nidade; uma potencialização de traços na cultura

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moderna. Deslocaríamos a ênfase da procura de te-mas e questões para uma espécie de tautologia oupara um conjunto de caixas vazias que conteriamoutras caixas vazias: o pensamento pensando-se –redundante – a si mesmo.

Assim florescem, em canteiros de acrílico, as ve-lhas vanguardas, que ostentam uma aparente revo-lução estética mas, sob o arranjo feérico dos signifi-cantes, não trazem nenhuma forma revolucionáriapara o plano das significações.

O discurso enfeitado com o qual alguns caudaisda arte pretendem impressionar um público caren-te de receber as mesmas ideias e os mesmos concei-tos com um novo rótulo colorido, é um exemplodessa compreensão da literatura.

Esse tipo de produção artística está a serviço deum singular mecanismo que permite ao público querejeita uma determinada articulação do mundo, res-ponsável pelo seu descontentamento, a reconcilia-ção com os padrões adversos, mediante uma sim-ples circulação de significantes. O que quer dizer quea mudança das aparências ajuda a manter o satatusquo.

Rompendo com o significante, não mais precisoromper com aquilo que ele oculta e recalca: o signi-ficado. Compreendida a partir desses padrões, a arteseria uma forma de sublimação, e não de atuaçãodestinada a modificar o mundo.

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A questão dos preconceitos raciais e sexistas nosdias de hoje oferece um significativo exemplo decomo as pessoas preferem interditar expressões,palavras e formas de dizer, deixando intocado ocerne da questão: os velhos modos de constituir osvalores do mundo. Observe-se que a palavra “niger”para designar os indivíduos da raça negra já foi con-siderada ofensiva, preferindo-se utilizar a palavra“black”, que contraditoriamente teria a mesma raizda palavra “branco”, em português.

Aqui tocamos num ponto crítico: a verdadeiraarte engajada não é aquela que abraça o discursopartidário e funciona segundo os mecanismo acimadescritos, mas aquela capaz de reescrever a consci-ência do sujeito e de rearticular a realidade. Enfim, aarte engajada com o homem é aquela que se inscreveno espaço de transgressão. Desse modo, a narrativade Guimarães Rosa, que era visto pela esquerda es-cravizada como um reacionário, é muito mais revo-lucionária do que os panfletos em forma de roman-ces, produzidos pelos escritores obedientes aos ta-bus do velho Partido Comunista. Que Stalin os te-nha à sua mão direita, lá no colorido e esfuziantecéu do Kremlin. Amém!

Não se insiste com a necessária ênfase que a lite-ratura (bem como a invenção artísica em todas assuas expressões) não é uma forma de representaçãoda realidade, mas uma forma de conhecimento e

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construção da realidade. A maioria dos críticos e doshistoriadores literários continua tratando a obra dearte em geral, e a literária em particular, como umasimples forma de representação de alguma coisapreexistente.

Vista como mera representação, é evidente que aarte não tem nenhum outro compromisso com asociedade, senão o de retratá-la fielmente, como que-ria o realismo crítico dos poderosos de plantão.

Contrária ao papel que já lhe atribuíram de en-feitar o mundo com seus recursos graciosos (e doqual a chamada “ciência do belo” é uma defensorainocente), a arte pretende conquistar para a espéciehumana uma nova dimensão do mundo. Do mes-mo modo que a língua é uma forma de conhecimen-to – uma forma que não se limita a reproduzir omundo para o espírito, mas se caracteriza principal-mente por captar, perceber e construir o mundodentro de uma dimensão humana – a arte em geral ea literatura em particular são também formas de co-nhecimento. Se o conhecimento através da línguaestá atrelado e comprometido com as circunstânci-as, pela própria condição de contrato social que fun-da a língua, a arte pode conhecer o universo semrespeitar essas limitações.

O papel da língua seria comparável ao atribuídopelos portugueses no processo de posse do territó-rio brasileiro, às entradas, enquanto o papel da arte

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mantém analogia com a função das bandeiras. Asprimeiras, enquanto expedições exploratórias ofici-ais, limitadas às fronteiras estabelecidas, e as segun-das enquanto investidas clandestinas e consentidas,necessárias à manutenção da ordem e do sistema vi-gentes; que só assim se transformam e se ampliamcom evidente benefício para o ser humano.

As obras de arte destinadas a uma maior perma-nência são aquelas que não se deixam aprisionar pelavisão consagrada e estabelecida das relações predo-minantes no momento histórico em que são produ-zidas; são aquelas que entram em choque com oscritérios petreamente universais, sublinhando a con-dição parcial, não-absoluta, do fazer humano. Se amaior parte das instituições sociais se sustenta naconservação dos valores, a arte encontra sua utili-dade no questionamento e na desestabilização des-ses valores, sobre os quais se edifica. Aí está a suafunção prática e a sua tarefa política: ir além do pro-vincianismo que se crê universal.

A cultura – de um lado, como sistema de tensãoentre forças dinâmicas e, do outro lado, entre redesde estagnação e repouso – confere à arte o privilé-gio de desestabilizar os seus alicerces (tanto as basesda cultura, quanto as bases da própria arte, que seconfundem), como mecanismo de construção esté-tica. Nessa perspectiva, longe de ser a ciência do belo,a estética seria a ciência que estuda o conhecimento

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necessário para a reconstrução das relações do su-jeito com o mundo: a ciência da transgressão.

A arte se constrói a partir da desagregação dasformas estabelecidas, impondo a sua arquiteturaimaginária como novo modelo do real.

A ARTE COMO CONSTRUÇÃO DO REAL. Artigo teórico sobre aarte enquanto forma de conhecimento. Coluna “Leitura Crí-tica” do jornal A Tarde, Salvador, 31 mar. 97, p. 7.

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POETAS, MENINOS E MALUCOS

Fiel cidadão de Atenas, da cultura, Platão ideali-zou uma República e de lá expulsou os poetas. Va-mos então nos vingar da razão casmurra, inventandoa república dos poetas, meninos e malucos, onde o chãonão seja o deste mundo, mas a terra que se pisa seconfunda com as mãos e o corpo de um poderoso eimenso gênio das lâmpadas maravilhosas, aindaencontráveis no desconhecido oriente interior. Aí,talvez, os nossos desejos mais fundos e defendidosda luz possam se materializar, brotando da terra –mãe boa, ou gênio amigo – o objeto cobiçado.

Mas essa república impossível já existe. Explore-mos suas veredas, levados pelas mãos de Freud, quan-do escreveu o ensaio “O poeta e suas fantasias” [DerDichter und das Phantasieren], originalmente lido

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como conferência nos salões do editor austríacoHugo Heller, também membro da Sociedade Psica-nalítica de Viena.

Para Freud, as primeiras manifestações da ativi-dade poética, enquanto exercício inventivo ou cria-ção fantasiosa, podem ser procuradas na criança:todo menino ao brincar se conduz como um artis-ta, criando um mundo próprio e situando as coisasdo seu universo psíquico numa nova ordem, que lheseja mais favorável.

Outro ponto de contato entre o jogo da fantasiainfantil e a atividade poética é que o menino levamuito a sério sua brincadeira; daí, a antítese do brin-car não ser a gravidade, mas o que os outros enten-dem por realidade.

Apesar da carga de afeto do brincar, toda criançadistingue muito bem a realidade adulta e as ficçõesda sua brincadeira, apoiando os objetos e circuns-tâncias que inventa nas coisas possíveis e tangíveisdo mundo objetivo criado por outro demiurgo. Omenino mistura a areia da sua fantasia com o cimen-to da realidade social, para que o vento não leve asmontanhas inventadas; agindo, portanto, com amalícia ingênua e eficaz que antecipa a intenciona-lidade do poeta, enquanto engenheiro cujo projetoultrapassa o concreto. Daí a aproximação proposta,com engenho e arte, pelo criador da psicanálise entrea estrutura do jogo infantil e a da criação poética:

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“Ao crescer, as pessoas param de brincar e pa-recem renunciar ao prazer que obtinham do brin-car. Contudo, quem compreende a mente huma-na sabe que nada é tão difícil para o homem quan-to abdicar de um prazer que já experimentou. Narealidade, nunca renunciamos a nada; apenas tro-camos uma coisa por outra. O que parece ser umarenúncia é, na verdade, a formação de um substi-tuto”.

Essas palavras foram escritas no ensaio “Der Dichterund das Phantasieren”, traduzido na Standard Editi-on como “The relation of the poet to day-dreaming”e também citado, entre nós, como “O poeta e ossonhos diurnos”. Compreendemos com Freud quea arte é uma forma de prazer substitutivo, tanto parao criador quanto para o fruidor do seu jogo, onde odesrespeito às regras não causa danos reclamadospela cultura.

Mas será que a arte aceita assumir apenas essepapel de protagonista substituto, ou procura cons-truir o seu próprio espaço? A literatura já foi apon-tada como o sorriso da sociedade, com o reforço daconcepção romântica, surgindo daí a reação realis-ta, posteriormente fundida com a contribuição mar-xista. Sem ficar no reducionismo de ambas as posi-ções, Roland Barthes retoma Freud, em 1973, fa-zendo-se voyer do prazer do texto:

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“Texto de prazer: aquele que contenta, enche,dá euforia; aquele que vem da cultura, não rom-pe com ela, está ligado a uma prática confortávelda leitura. Texto de fruição: aquele que coloca emsituação de perda, aquele que desconforta (tal-vez até chegar a um certo aborrecimento), fazvacilar as bases históricas, culturais, psicológicas,do leitor, a consciência dos seus gostos, dos seusvalores e das suas recordações, faz entrar em cri-se a sua relação com a linguagem.”

Na página seguinte de O prazer do Texto, Barthescomplementa o raciocínio:

“Talvez venha daí um meio de avaliar as obrasda modernidade: o seu valor proviria da suaduplicidade. E necessário entender por isto queelas têm sempre duas margens.”

Desde o início do século, com a obra pioneira deFreud, ou, mais precisamente, desde há quatro sé-culos antes da Era Cristã, especialmente com Platãoe Aristóteles, sabe-se que a fantasia é uma satisfaçãode desejos ou uma retificação da realidade nãosatisfatória. A noção aristotélica de catarse torna-seo fundamento do método clínico utilizado porBreuer e Freud: a cura pela fala, “método de trata-mento, a que inicialmente Breuer chamou de

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«catártico», mas que prefiro denominar de «psica-nalítico»”.

Na passagem acima do ensaio “Delírios e sonhosna Gradiva de Jensen” FreudÍndice de Autores eObras nos mostra que os processos presentes na nar-rativa de Jensen são idênticos aos adotados pela psi-canálise. Aliás, desde A interpretação de sonhos, eleliga o seu método às sugestões das obras literárias,especialmente às da obra de Goethe.

Não nos afastemos, porém, das fantasias e deva-neios, dos brinquedos do desejo, inesgotáveis fon-tes da matéria bruta processada no engenho da arte.Compreender as propriedades desse material possi-bilita desvendar um pouco o conteúdo do discursoda arte e a especificidade da sua expressão, já queambos os planos – o plano do conteúdo e o planoda expressão, tal como propostos na teoria da lin-guagem de Hjelmslev –, germinam, na relação amo-rosa da criação poética, o nascimento do texto.

Como as pulsões insatisfeitas são as forças pro-pulsoras da fantasia, Freud conjecturou que só ohomem inteiramente feliz deixaria de fantasiar.Como há sempre uma fenda, uma ausência, umafalta, ele compara as fantasias do adulto, seus deva-neios e seus sonhos diurnos, com as brincadeiras ejogos infantis. De modo contrastivo, observa quese o transgredir a realidade socialmente comparti-lhada é motivo de vergonha para o indivíduo adul-

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to – tanto que prefere confessar suas culpas que re-velar suas fantasias –, a criança não se envergonhado seu distanciamento do real nem da subversão doscódigos da realidade adulta.

É por isso que, ao tratar de um tema como “Es-critores criativos e devaneio”, Freud sentencia:

“As fantasias das pessoas são menos fáceis deobservar do que o brincar das crianças. A crian-ça, é verdade, brinca sozinha ou estabelece umsistema psíquico fechado com outras crianças,com vistas a um jogo, mas mesmo que não brin-que em frente dos adultos, não lhes oculta seubrinquedo. O adulto, ao contrário, envergonha-se de suas fantasias, escondendo-as das outraspessoas. Acalenta suas fantasias como seu bemmais íntimo, e em geral prefere confessar suasfaltas do que confiar a outro suas fantasias. Podeacontecer, consequentemente, que acredite ser aúnica pessoa a inventar tais fantasias, ignorandoque criações desse tipo são bem comuns nas ou-tras pessoas. A diferença entre o comportamen-to da pessoa que brinca e da fantasia é explicadapelos motivos dessas duas atividades, que, entre-tanto, são subordinadas uma à outra.”

Como a realidade percebida pelo indivíduo hu-mano não é construída pela natureza, mas pelas cir-

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cunstâncias de cada cultura, acredito que nada obri-garia a uma hipotética criatura em estado puro, ori-ginal ou selvagem, a se identificar com as máscaras epersonagens que cada pessoa veste e encena no es-paço de convenção: a cultura. Quando o pano deboca se abre e inaugura para os indivíduos o palcoiluminado da civilização, as pobres e divididas mari-onetes gaguejam seu difícil papel. Somente depois,familiarizados com a presença e os aplausos daplateia, ou resignados com suas vaias ou com suaindiferença, deixam a máscara grudar à face e esque-cem as engrenagens dos escuros bastidores.

Mas se o papel desempenhado não é bem aceitopela plateia, o ator da cultura questiona seu texto eoscila entre uma máscara e outra. Procura construirum novo personagem, emissor de uma fala que lhepermita maior ressonância junto aos discursos dacultura. Ou restará ao personagem a alternativa derasgar os papéis e dar a palavra ao Outro, que falarápor si mesmo, pelo ser humano.

Diferentemente do personagem do teatro, o per-sonagem da cultura não pode, impunemente, ence-nar o desejo, guardando as fantasias insatisfeitas emcofres de atos falhos, ou sepultando o desejo,acorrentado, sob as pedras do sintoma.

Se o menino que brinca consegue transpor as gra-des e muros da realidade, o artista reinstaura, na ida-de adulta, a linguagem esquecida dos tempos da in-

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fância, recuperando a vitalidade e a liberdade capa-zes de refazer o real, desta vez corrigido, estrutu-rado, de uma forma mais adequada e acessível à feli-cidade clandestina a que todos aspiram.

POETAS, MENINOS E MALUCOS. Artigo sobre a criação artística,originalmente publicado com o título: “Fantasia e Literatu-ra segundo Freud”. Coluna “Leitura Crítica” do jornal ATarde, Salvador, 27 abr. 98, p. 7.

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A POESIA COMO CRÍTICA

O leitor brasileiro passou a ter um contato maisestreito com o crítico norte-americano HaroldBloom a partir dos artigos publicados pela Folha deSão Paulo, embora nos últimos anos seus livros tam-bém passassem a frequentar a bibliografia brasileira.A Imago já traduziu A angústia da influência, Ca-bala e crítica, O Livro de J e Poesia e Repressão.

Um mapa da desleitura dá continuidade à cons-trução do panorama crítico engendrado por Bloompara rever a formação do cânone poético de línguainglesa a partir de escritores eleitos pela tradição. Ele chama esses autores de poetas fortes, privilegian-do o adjetivo forte como elemento de caracteriza-ção das mais densas manifestações intelectuais, tan-to por parte de um leitor fruidor quanto por partede um leitor criador.

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O ato de leitura, no âmbito da sua teoria crítica,é o eixo central da obra literária: é a partir dele queuma obra ou um autor adquirem permanência etransmigram para outras obras e para outros auto-res. Ainda de acordo com Harold Bloom, não exis-tem textos mas relações entre textos. A partir de umaleitura ou de um ato crítico é que se dá o que elechama de desleitura, ou desapropriação. A criaçãode um poeta é retomada por outro poeta que tem aambição de corrigi-lo e ampliá-lo.

A propósito, Bloom começa o quinto capítulodo livro, “O mapa da desapropriação”, afirmandoque o Novo testamento é uma espécie de tentativade complementar o antigo, a partir dos pressupos-tos e crenças daqueles que compõem as novas escri-turas. O fato verificado no texto sagrado não dife-re muito daquele que se dá no texto profano. A lutapelo poder sobre os precursores reafirma esses mes-mos precursores assim como possibilita a apariçãode um novo poeta.

É o que acontece com John Milton, tomado peloautor de Um mapa da desleitura como centro doseu foco crítico. Visto como um épico terciário, cujoambicioso projeto foi concorrer com a tradição gre-ga, representada por Homero, e com a latina, deVirgílio e Ovídio, Milton insere a língua inglesa nes-ta forte tradição. “Seu tratamento da alusão é suadefesa altamente individual e original”, coroada com

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as ambições derradeiras do Paraíso perdido que olevam à tentativa de expansão das Escrituras – se-gundo Bloom – “sem distorcer a palavra de Deus”.

Um mapa de desleitura contém alguns núcleosideativos, ora voltados para Freud, ora embebidosna Cabala, tudo isso fortemente vincado à históriada inteligência do povo judeu. Mas o núcleo centralé o estudo da influência. Um poeta não vê direta-mente, mas através da mediação do precursor, con-forme demonstra exaustivamente o livro, acompa-nhando a trajetória da poesia inglesa até os autoresnorte-americanos atuais.

Entre suas formulações, ele insiste que poemasnão são sobre “sujeitos” nem sobre “si mesmos”, sãosobre outros poemas, “do mesmo modo que umpoeta é uma resposta a outro poeta”.

Observe-se a proposta teórica de Harold Bloomde ver a poesia como um grande diálogo através dosséculos. Um diálogo através do qual um poeta seconstitui como tal quando enfrenta os grandes poe-tas que o antecederam. É a leitura criativa transfor-mada em desleitura, isto é, na constituição de umnovo objeto de leitura, que transporta e alimenta apoesia.

A partir daí, Bloom conclui que, através do cur-so da história literária, “toda poesia se torna neces-sariamente crítica em verso, bem como toda críticase torna poesia em prosa.” Todos sabemos que com

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a consolidação de uma tradição literária, de umcânone, o ato criativo da poesia deixa, cada vez mais,de ser um olhar inaugural, ou um ato absoluto(como o gesto de Deus de criar o universo a partirdo nada), para ser um ato crítico que toma por ob-jeto aquilo que o precede. O escritor é o leitor datradição, o crítico capaz de refazer a obra sobre aqual incide seu julgamento.

Desse modo, a condição de leitor exemplar e decrítico perspicaz é apenas o ponto de partida, o de-grau primeiro e mínimo do artista que não foi tra-gado pelo tempo. A criação ingênua, acrítica e des-provida de poder reflexivo sobre a anterioridade doseu ato distancia-se cada vez mais da poesia.

O Renascimento foi um forte instante de afir-mação dessa consciência do artista. Lembre-se queaí a intertextualidade, o diálogo com os antepassa-dos, adquire uma importância basilar.

As formulações de Harold Bloom são, de certaforma, uma alternativa de redesignação para os es-tudos da intertextualidade que ocupam grande par-te da teoria literária mais recente. Com isto não que-ro dizer que a sua contribuição à crítica e à consti-tuição de uma teoria viva e original não seja rele-vante. Quero apenas situar este crítico no âmbitode uma tendência geral do fim de século.

A busca de originalidade como modo de afirma-ção é uma exigência não só para o artista ou para o

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criador, como também para o estudioso. É isto quefaz Harold Bloom, ao passar ao largo das formula-ções mais constantes e comuns, dando à sua críticauma roupagem diferenciada.

A primeira epígrafe do livro é esclarecedora a talpropósito: “Como o vinho é conservado dentro deum jarro, também a Torá está contida em uma rou-pagem exterior. Tal roupagem é feita de muitas his-tórias; mas é exigido de nós que rasguemos a roupa-gem.”

É verdade que esta epígrafe tem outro sentido,muito mais apropriado, mas permita o leitor que,com inocente malícia, ela seja estendida à nomen-clatura crítica de Bloom.

A POESIA COMO CRÍTICA. Artigo sobre o ensaio Um mapa dadesleitura, de Harold Bloom. Rio de Janeiro, Imago, 1995.Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 9 set.96, p. 7.

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CABRAL E A ESTÉTICADA MODERNIDADE

As ideias estéticas de João Cabral de Melo Netosão reunidas num instigante livro de teoria e crítica.Depois de publicar a obra poética do modernistapernambucano da segunda geração em dois volu-mes – o primeiro intitulado Serial e antes; o segun-do, A educação pela pedra e depois – a editora NovaFronteira reúne os textos cabralinos de teoria e crí-tica num volume de 140 páginas vagamente intitu-lado Prosa. 

Pela imprecisão do título o leitor imagina estardiante de contos, novelas ou o que quer que seja.Trata-se, porém, de uma pequena, mas densa reu-nião de artigos sobre poesia e outros temas.

A importância do livro começa pelo fato de con-ter o essencial do pensamento estético do maior

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poeta vivo da língua portuguesa. Mas não cessa aí:tanto os primeiros ensaios do autor, datados da dé-cada de 40, quanto os mais recentes, trazem explíci-ta e inequivocamente aquilo que podemos ler na suapoesia.

Se a poesia de Cabral reúne na economia e naprecisão da arquitetura poética muito de metalin-guagem ou de discussão implícita do ato criador, aprosa conceitual confirma as hipóteses dos críticosmais argutos.

A partir desse livro organizado por Marly deOliveira, é possível se falar da poética de João Cabralde Melo Neto não apenas como resultado da análi-se da sua poesia, mas também como edifício crítico-teórico.

São, ao todo, dez textos de JCMN. Um de críti-ca de artes plásticas, intitulado “Joan Miró”, trêssobre temas culturais diversos e os demais sobrepoesia. Desses seis artigos, merecem destaque: “Po-esia e composição”, resultante da conferência pro-nunciada na Biblioteca de São Paulo, em 1952; “Dafunção moderna da poesia”, comunicação ao Con-gresso de Poesia de São Paulo, em 1954; além dodiscurso de “Agradecimento pelo Prêmio Neustadt”,conferido pela primeira vez a um escritor de línguaportuguesa, em 1992.

Questões essenciais da modernidade são pensa-das pelo criador; visando, talvez, atenuar o impasse

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criado pela incomunicabilidade do poeta moderno.Tais reflexões nos remetem aos atuais debates sobrea pós-modernidade, marcados, de um lado, pelo re-conhecimento pacífico da sua natureza autônomae, do outro lado, pela recusa da existência de umafratura entre modernidade e pós-modernidade.

As grandes manifestações ou estilos de época al-cançam o ápice, simultaneamente, ao processo dehipertrofia e de hipóstase dos seus traços radicais,surgindo então um novo maneirismo. Daí a indaga-ção colocada como passo metódico: o que se chamade pós-modernidade seria então um redundantemaneirismo da modernidade?

Teóricos e personagens da modernidade, comoHaroldo de Campos, por exemplo, só aceitariam aideia de pós-modernidade, admitindo Mallarmécomo pós-moderno, em oposição à modernidade deBaudelaire.

Mas, como estas discussões extrapolam o textode Cabral, voltemos ao ponto de partida.

Comparando, implicitamente, a estética moder-na com a estética do Renascimento, JCMN admiteque o poeta moderno cria sua mitologia, sua lingua-gem pessoal e suas leis de composição.

Lembremos que o valor dos poetas clássicos resi-de na identificação do seu trabalho com os grandesmodelos, enquanto o poeta moderno é avaliado pelaoriginalidade. “Sua autenticidade será reconhecida

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na medida em que não se identifique com nenhumaexpressão já conhecida. Não é preciso lembrar que,para atingir essa expressão pessoal, todos os direi-tos lhe são concedidos de boa vontade”, acrescentaCabral.

Vemos então que os pressupostos e concessõesda modernidade forçam a incomunicabilidade, trans-formando as relações entre o escritor e o públiconum fértil diálogo de surdos. Os gestos e intençõesde entendimento contam mais que as palavras. Aselucubrações resultantes de estímulos vagos eplurívocos substituem a certeza do entendimentorecíproco.

No texto intitulado “Da função moderna dapoesia”, JCMN constata que o poeta moderno “sa-crifica ao bem da expressão a intenção de se comu-nicar. Por sua vez, o bem da expressão já não precisaser ratificado pela possibilidade de comunicação.Escrever deixou de ser para tal poeta atividade tran-sitiva de dizer determinadas coisas a determinadasclasses de pessoas; escrever é agora atividade intran-sitiva”.

Penso que, desse modo, Cabral identifica na es-crita moderna uma retomada da histeria românticaem que o objetivo maior não é dialogar com o ou-tro, mas dialogar com o seu próprio ego, “dar-se emespetáculo”. Quando este indivíduo diz alguma coi-

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sa, não o faz para alguém, determinado, mas paraquem puder e estiver interessado em entender.

“O alvo desse caçador não é o animal que ele vêpassar correndo”, ressalva João Cabral de MeloNeto: “Ele atira a flecha de seu poema sem direçãodefinida, com a obscura esperança de que uma caçaqualquer aconteça achar-se na sua trajetória.”

Mas os pontos de discussão levantados pelo po-eta não são apenas estes. Sua escrita severina traz ovigor e a fecundidade de terra seca que se amplia emvegetação a partir da primeira chuva. Cada passa-gem dos seus textos pode ser discutida exaustiva-mente, gerando reflexões já presentes na semente –estrita – da palavra estrita.

Em outra ocasião, voltaremos a este volume daobra de João Cabral de Melo Neto, singelamenteintitulado Prosa; não mais pelo simples interesse emresenhá-lo no calor da hora, que agora esfria; e maisainda pela certeza de que a sua discussão propiciaráa oportunidade de rever pressupostos críticos e te-óricos indispensáveis ao diálogo com os interlocu-tores de qualquer leitura crítica.

CABRAL E A ESTÉTICA DA MODERNIDADE. Artigo sobre o volumeProsa, de João Cabral de Melo Neto. Rio de Janeiro, NovaFronteira, 1998. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tar-de, Salvador, 24 ago. 98, p. 7.

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O SURDO CAOS DAS COISAS:Pasolini, cinema e literatura

Na Primeira Mostra Internacional do Novo Ci-nema, realizada em Péssaro (Itália), em 1965, o ci-neasta Pier Paolo Pasolini foi relator de uma mesaredonda sobre Crítica e Novo Cinema, quando apre-sentou um trabalho no qual estabelecia paralelosentre a linguagem cinematográfica e a linguagem li-terária.

Ao proclamar a excelência do cinema e a sua na-tureza predominantemente artística, comparada ànatureza da literatura, o crítico-criador atribuía aotexto literário uma tênue feição artística. Ele afir-mava que a linguagem literária sustenta seu proces-so inventivo sobre uma base já estabelecida, enquan-to a linguagem do cinema parece não se apoiar emnada. Isto porque, a comunicação verbal, que for-

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nece seus signos à comunicação literária, já está ela-borada como sistema historicamente complexo eamadurecido. Por outro lado, a comunicação visualque serve de base à linguagem cinematográfica é,segundo suas palavras, extremamente rude e irraci-onal.

Na sua perspectiva, cada um de nós domina umdicionário, lexicalmente incompleto, mas satisfatóriopara os fins do grupo social ou da nação a que per-tence. O trabalho do escritor seria tomar as pala-vras do dicionário comum, como objetos guardadosnum cofre, e utilizá-las de modo particular.

Pasolini vê a criação do escritor como uma adi-ção de historicidade, ou de realidade, à linguagemda cultura. O ato poético é descrito como uma sim-ples reelaboração do significado que estava à mão,no dicionário mental do falante, pronto para serusado. Já o criador cinematográfico não tem à suadisposição o estoque de conceitos preestabelecidos,mas se defronta com uma possibilidade infinita,porque não apanha seus signos “do cofre, da custó-dia, da bagagem, mas do caos, onde só existem me-ras possibilidades ou vislumbres de comunicaçãomecânica e onírica.”

A literatura, aí implicitamente considerada umaarrumadeira dos materiais existentes, perde o esta-tuto de discurso da arte. Não dispondo de signospróprios, ela não teria como ordenar o contínuo

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amorfo de que nos fala Saussure, nem como ouvir avoz do verbo no surdo caos das coisas, vislumbradopor Pasolini.

Tal perspectiva, centrada no ponto de vista dequem olha o mundo pelos limites da sua aldeia(reducionista, portanto), ignora a indagação deSchiller, atribuída a Goethe: Se escreves numa línguaque pensa e versifica por ti, imaginas ser poeta?

Já os românticos alemães do Sturm und Drangtinham consciência de que a poesia se realiza paraalém dos limites da língua estabelecida pela cultura.

O conceito de poesia como fingimento, insisten-temente difundido por Fernando Pessoa, denota acompreensão da literatura como forma de constru-ção de um outro real – paralelo – pondo em prática,no texto, a consciência já revelada por Schiller.

As relações do escritor com a língua histórica,seus limites e normas, são anotadas no manuscritode Bernardo Soares O livro do desassossego, ondeFernando Pessoa revela que teve, “como muitos têmtido, a vontade pervertida de ter um sistema e umanorma.” Curiosamente, os termos usados por Pes-soa coincidem com aqueles propostos pelo linguistaromeno Eugenio Coseriu, em 1952, no livro Siste-ma, norma e fala. A divisão tripartida, inspirada emHjelmslev, superava as limitações da dicotomiasaussuriana – langue / parole – e repunha no domí-nio da língua fenômenos como a norma, que a clás-

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sica oposição de Saussure (língua e fala) deixava defora.

A escrita, quando assumida por um criador eerigida à condição de discurso poético, não é, comosupõe Pasolini, uma mera utilização dos recursoscatalogados pela tradição. O território da literaturaé um vasto reino, aberto à aventura da conquista.Aquilo que ele afirma a respeito do cinema cabe àliteratura e a toda arte, enquanto a sua visão da lin-guagem literária refere-se apenas ao kitsch, à cate-goria do pastiche, ou da obra destinada ao sucessojunto ao consumidor da cultura de massa: ao best-seller feito sob encomenda de empresas comercia-lizadoras de livros. Mesmo diante do estrepitosoprestígio dessas obras, junto ao grande público, nãose pode tomá-las como arquétipos ou modelos dacriação literária.

Diante da analogia possível, conviria mais identi-ficar a tipologia da obra “literária” que se enquadrana formulação de Pasolini como uma gerigonçadiscursiva. Esse modelo de texto ficcional está paraa criação dos escritores mais representativos assimcomo o kitsch, o bibelô, ou o pinguim de geladeira,está para as esculturas ou as pinturas que constitu-em o acervo das artes plásticas. Se o artesão das tin-tas, dos sons e das palavras é uma pessoa que se ini-cia na fatura de obras, realizando algumas vezes commaestria o trabalho de reprodução de objetos, o ar-

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tista é mais do que um artesão: além de saber comofazer bem feito, ele inventa o que ainda não foi fei-to: faz bem feito o que não se podia nem se sabiafazer.

Tomando como ponto de partida os materiaisexistentes, isto é, valendo-se do dicionário comum,o escritor utiliza este material como matéria-prima,ou sucata, para invenção dos seus próprios materi-ais, extraídos do surdo caos das coisas – já agora,graças ao facho de luz projetado pelo seu trabalho– ruidoso de vozes e sentidos.

O que diferencia o artesanato verbal da arte lite-rária é a transgressão, é a contravenção das formasestabelecidas, operada pela arte. Ou o rompimento,simultâneo, com as construções habituais do real ecom o modo usual de expressá-lo.

Pasolini adiciona uma observação que merece serdiscutida: o autor cinematográfico, na sua procurade um dicionário, não recolhe termos abstratos. Aconstrução semiótica do criador de cinema é cons-tituída de imagens. E como as imagens plásticas ouvisuais são objetos concretos, ele infere: “Eis por-que, por ora, o cinema é uma linguagem artística não-filosófica. Pode ser parábola, jamais expressãoconceitual direta.”

Aí residiria, na opinião de Pasolini, a diferençaprincipal entre o cinema e a literatura; o que é umaforma de afirmar a predominante artisticidade da arte

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cinematográfica, ou o que ele denomina sua violên-cia expressiva, ou ainda: sua fisicidade onírica.

Mas essa diferença existe mesmo?Os traços criativos apontados como próprios do

cinema são os mesmos que asseguram a naturezaartística do discurso literário – da poesia. É por issoque, contrariando suas próprias inferências, Pasolinié levado a admitir que a linguagem do cinema é fun-damentalmente uma linguagem de poesia. Quer di-zer, uma linguagem similar à literária.

Decorrente de uma enviesada compreensão daobra de arte literária, a contradição do criador-críti-co se evidencia na afirmação da não artisticidade dodiscurso literário; seguida da comparação do discur-so cinematográfico com um dos gêneros do literá-rio, para ressaltar a natureza eminentemente artísti-ca do cinema. Ora, se a literatura, ao utilizar a lin-guagem verbal, encontra o mundo já constituído eassume esta constituição com o objetivo de torná-la apenas mais graciosa, como então dizer que umaarte transgressiva e criativa como o cinema dePasolini se sustenta numa linguagem de poesia?

Só se ele estiver distinguindo, implicitamente, aliteratura de consumo, a indústria da escrita, da arteda escrita: a literatura propriamente dita; que é umaforma de poesia, quer seja em verso ou em prosa. Aexpressão “literatura” assumiu uma insolúvelambiguidade na história da cultura ocidental, por

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se referir, às vezes, à obra de arte verbal e, em outrasocasiões, a qualquer tipo de escrita ou à técnica deprodução de textos.*

Convém lembrar que a predileção do cinema pelaimaginação fundada no concreto – “as imagens sãosempre concretas, jamais abstratas”, conforme afir-ma, – segue a deriva da literatura; ou da cultura hu-mana, como os antropólogos têm verificado atra-vés do estudo de povos em estágio dito primitivo.Toda cultura parte sempre do concreto, do palpávele tangível para captar o que lhe parece intangível,abstrato. Assim, o novo é sempre captado em ana-logia à concretude do já conhecido. Para nós, afei-tos à leitura, e marcados pela cultura da escrita, tor-na-se mais fácil observar tal ocorrência no pensa-mento selvagem, ou nas culturas não submetidas àautomação mecânica.

Os índios norte-americanos, conforme o clichêdos filmes de cow-boy, dispõem de um rico sistemaanalógico de denominação, incorporando objetosnovos ao seu universo de conhecimento, a partir dacontiguidade da sua função com a função de obje-tos utilizados pela cultura nativa. O trem, como evi-dencia o exemplo conhecido, é compreendido pe-

* A propósito dos sentidos do termo literatura ver, neste mesmovolume, o artigo “Texto literário e texto científico: distinçõesfundamentais”, p. 27.

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los guerreiros montados, que o veem pela primeiravez como um cavalo-de-ferro. Ou, para evocarmosuma denominação analógica comum à cultura bra-sileira, a espingarda e a pistola, são vistas como pau-de-fogo. Os índios da Bahia, antigos habitantes dafloresta que é hoje o bairro do Rio Vermelho, deno-minaram o náufrago português Diogo Álvares Cor-reia de Caramuru, o rei do trovão; respeito infun-dido pelo disparo do seu desconhecido pau-de-fogo.

Guimarães Rosa, estudando a língua dos índiosterena, fica fascinado com os nomes das cores entreos remanescentes dessa nação indígena. Como apercepção da cor é alguma coisa um tanto abstrata,os falantes da língua terena buscam concretudenuma construção, para nós, poética: o vermelho édenominado a-ra-ra-i’ti, anota Rosa, e quer dizer“sangue-da-arara”. E assim imagina: o azul, “sangue-do-céu”, o verde, “sangue-da-folha”.

A artisticidade do cinema apontada por Pasolini– assim como de qualquer outra arte, sem privilegiaruma em detrimento das outras – é, na verdade, umamanifestação da natureza criativa do próprio ho-mem, quer nas atividades simbólicas consideradasformas de arte, quer nas atividades simbólicas de finsexclusivamente pragmáticos. A ocorrência dessasmanifestações em alto grau é que caracteriza a lin-guagem da arte (conforme a lição de Jakobson).

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Desse modo, a conclusão a que chega Pasolini, se-gundo a qual o cinema é uma “linguagem artísticanão-filosófica, que pode ser parábola, jamais expres-são conceitual direta”, é igualmente válida para odiscurso da arte em geral e, portanto, para o discur-so literário.

O recurso utilizado por muitos criadores de res-saltar a excelência da sua arte, em detrimento dasdemais, decorre de uma visão paroquial, ou mesmo,do grau de desinteresse pelas outras atividades ar-tísticas, que infelizmente pode ocorrer com os ar-tistas mais admiráveis, como o signore Pier PaoloPasolini.

O SURDO CAOS DAS COISAS: PASOLINI, CINEMA E LITERATURA. Artigocrítico publicado com o título original de “Pasolini: Cinemae Literatura”. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde,Salvador, 13 jan. 97, p. 7.

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A SUSTENTÁVELLEVEZA DO TEXTO

(Italo Calvino, criação e teoria)

Ezra Pound e T. S Eliot, com suas ideias gêmeas,com suas (usemos a expressão de Goethe) afinida-des eletivas, sugeriam que para ser crítico de poesiaseria necessário ser poeta. Daí se deduziria tambémque para ser professor de literatura seria necessárioser escritor. Mas já se disse que, em matéria de lite-ratura e outras artes, quem sabe faz; quem não sabeensina.  Analogamente, quem não pode criar, outransmudar em palavras a magia do invento, faz crí-tica.

Ponhamos a questão: O bom crítico será, neces-sariamente, o bom poeta? Ou invertamos a pergun-ta, sutilmente adulterada: o bom poeta será, funda-mentalmente, um bom crítico?

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Se coubesse a mim responder a estas perguntas,eu responderia não, a todas elas. O bom crítico nãoserá, necessariamente, um bom poeta. O bom poe-ta não será, consequentemente, um bom crítico.Pound, Eliot ou qualquer outro criador e pensadorda literatura, por mais competente e respeitado queseja, pode estar equivocado ao assegurar que a boacrítica é um atributo do bom criador.

Diante do ponto de vista radical de dois expoen-tes consagrados, ambos poetas e críticos, conviriaque propuséssimos, mesmo sem qualquer autorida-de, o contrário. O que se vê é que o bom poeta é,quase sempre, um crítico parcial. Sua obra é erigida àcondição de exemplar definidor do cânone. Todo pro-cesso criativo que contrarie essa vertente será necessa-riamente desacreditada pela perspectiva do autor.

Se deixarmos de lado o delírio cientificista domundo acadêmico (ao qual pertenço e com o qualdeliro) veremos que a crítica não é, nem poderá ser,nunca, uma ciência. É, antes, uma arte, assim comoo seu objeto – a Literatura.

Longe de mim negar a chamada Ciência da Lite-ratura, que se constitui como teoria, como saber ri-goroso e sistematicamente ordenado sobre a arte li-terária. Por outro lado, é evidente que há uma dife-rença entre a Ciência ou a Teoria da Literatura e aCrítica Literária, esse jogo de subjetividades, esse ar-riscar leituras de imprevisíveis juízos e desatinos. A

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crítica, esse desvairado ordenamento de palpites, sus-tentado numa ciência, ou num saber interdisciplinar,por mais objetiva que tente ser, nasce de um atribu-to do sujeito: o juízo. O ato de julgar.

Quando se trata de crítica, Kant sempre será lem-brado. O nome do filósofo está estreitamente liga-do a conceitos e doutrinas como sujeito e idealismo,ambos presentes no imperativo categórico kantiano:proceda sempre de tal forma que o princípio da suaação possa ser erigido à categoria de lei – ou de juízo– universal.

Nessa perspectiva seria dispensável a existência,fora do sujeito e do seu arbítrio, de uma instânciaprática capaz de conduzir o juízo. Existiriamparâmetros, com objetivos mais ou menos claros,escolhidos e recolhidos pelo sujeito.

Voltemos, então, à relação incestuosa da criaçãocom a crítica. Embora próximas, nascidas de ummesmo ovo – que é a literatura –, criação e críticasão atividades diferentes, irmãs de gêneros diversos.Seu concubinato poderá gerar frutos defeituosos.A subjetividade inflada do poeta-crítico interfere noseu julgamento. O grande escritor está condenadoa ser um pequeno crítico.

No horizonte da modernidade, o poeta portu-guês Fernando Pessoa, uma das mais completas sín-teses de toda uma geração de artistas do século XX,no dizer do mestre russo Roman Jakobson, foi um

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crítico medíocre como ousou afirmar, com bemposta propriedade, o estudioso alemão GeorgRudolf Lind, admirador do poeta plural.

Pessoa julgaria todo texto literário a partir de umexemplar canônico: a sua obra, construção verda-deiramente modelar para a leitura das demais obras.

Observe-se que, em sentido inverso ao caso Fer-nando Pessoa, a modernidade é pródiga na produ-ção de críticos engenhosos e poetas pequenos. Es-critores de voo rasteiro, incapazes de construir colô-nias além do espaço da razão estabelecida, são bonscríticos, quando conseguem rastrear as pegadas dacriação que eles mesmos não puderam dar vida – acriação dos artistas essenciais.

As vanguardas do século XX produziram maismanifestos inovadores e revolucionários do queobras de natureza criativa. Os panfletos estéticos,quase sempre, resultam de um talento críticoprospectivo, tentando substituir a ausência de obrasde criação capazes de falar por si mesmas.

A AUSÊNCIA

Até agora, o nome de Italo Calvino – objeto daintervenção aqui proposta – não foi mencionado nodesenvolvimento de todo o raciocínio. Mas, crei-am, eu estava tentando falar de Italo Calvino. Esta-

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va pensando em Italo Calvino. Ou melhor, estavatentando fazer que todos revíssemos as seis propostasque o escritor italiano quis transformar em legadoda modernidade para o novo milênio, como traçosda sua própria obra ficcional. Ao falar em leveza parachegar à densidade, as conferências americanas doromancista nos outorgaram o legado da sua obra.

É disso que acabei de falar, ou melhor, que come-cei a tratar sem pronunciar o nome do autor da su-íte Os nossos antepassados. Constituída de três ro-mances, O visconde partido ao meio, O barão nasárvores e O cavaleiro inexistente, a obra chegou aténós de modo fragmentário, editada em três volu-mes. O volume completo foi publicado somente em1998, pela Companhia das Letras.

A tradução brasileira de O visconde partido aomeio, primeira composição da suíte, chegou até nóstrinta e nove anos depois da edição original italianade 1951. O fato é explicável porque somente hápouco tempo o autor alcançou renome internacio-nal e consequente audiência no Brasil. Nosso gostocom relação à arte decorre mais dos reflexos daqui-lo que tem prestígio nos países ditos centrais doimpério mundial da intelligentsia mais privilegiada,do que de uma escolha ou de uma preferência inte-lectual caracteristicamente brasileira.

Apesar de até então desconhecida do públicobrasileiro, essa novela é um dos melhores e mais bem

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construídos textos do autor, que tem lugar de des-taque na literatura do fim do século XX por um fatosingular: é uma obra comprometida com o prazerda leitura. O intuito de divertir prepondera sobre oético e o social, sem abrir mão desses outros objeti-vos porventura reunidos numa obra de arte.

A questão é velha: muitos escritores e alguns lei-tores sisudos insistem no caráter pragmático da arte,como se ela tivesse de cumprir uma função socialaltamente elevada, que transcendesse às outras prá-ticas. Como se o artista devesse se investir das atri-buições de pontífice e proclamar verdades perma-nentes.

Quase todo artista tende a supervalorizar a na-tureza da sua arte, como se ela fosse a atividade maisimportante já concebida pela espécie humana; e al-guns insistem nessa paranoia de grandeza a pontode se julgarem responsáveis pela condução ética detodo o povo.

Outros artistas são mais humildes, como o brasi-leiríssimo Jorge Amado ou como Gil Vicente, porexemplo, no caso da cultura portuguesa. Vivendo omomento de inquietação intelectual que construiuo Renascimento, ou a transição do mundo medie-val para o mundo moderno, Gil Vicente, tanto quan-to o nosso Amado, sabia que o seu teatro deveriaprimeiramente agradar ao público, isso é, divertir anobreza. Conseguido esse objetivo, ele poderia ten-

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tar voos mais audaciosos – ridendo castigat mores. Aambição de castigar, ou de corrigir, os hábitos, issoé, a moral, estava disfarçada na alegoria – rindo cor-rige os costumes. Daí a sua eficácia.

A propósito do livro O visconde partido ao meio,Calvino escreveu uma profissão de fé que convémrepetir e lembrar sempre que possível: “Penso que odivertimento seja uma coisa séria.” Esse princípioessencial, mas pouco prestigioso, os compenetradosestudiosos da arte sempre esquecem.

A partir das lutas entre cristãos e turcos, no sé-culo XVII, o autor italiano constrói a trama do li-vro, centrada na figura de um nobre senhor de ter-ras e gentes. O visconde Medrado Di Terralba, im-provisado cavaleiro, arremete contra as forças ini-migas e é quase estilhaçado por um balaço de ca-nhão. Uma parte do visconde é recolhida ao hospi-tal da tropa e, por conta do fantástico ou do mara-vilhoso, consegue sobreviver com um só braço, umasó perna, meia boca e um único olho. “Os médicos,todos contentes: que maravilha de caso.”

PARTES E PROPOSTAS

Para os moradores de Terralba, a mutilação dosenhor foi um fato desastroso. O lado ruim do vis-conde é que ficou vivo e voltou aos seus domínios.

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O visconde partido cavalgava espalhando pânico eterror pelos vales e penhascos, até que os campone-ses se viram confusos com as contradições de Me-drado. Ora se divertia com crueldades, ora fazia obem de modo surpreendentemente generoso. Seriaa outra parte do visconde – a boa – que estava devolta?

As peripécias dos dois senhores de Terralba divi-dem os moradores do lugar e divertem o leitor. Di-vertem, a partir de considerações éticas, políticas epráticas, que necessariamente precedem o riso pro-vocado.

Se a nossa cultura, a cultura da sociedade ociden-tal cristã, se sustenta numa forma de maniqueísmoonde só um lado do homem prevalece, na históriacontada por Calvino, o cavaleiro cristão volta daguerra aos turcos literalmente partido ao meio. Como artifício, com essa visibilidade concreta do abstra-to, nosso mundo fragmentário é exposto de formaexemplar. Nossa crença que o homem é a imagem esemelhança de Deus, com suas virtudes e qualida-des, exige a construção de uma nova espécie de ho-mens onde caibam os vícios e defeitos – são os maus,à semelhança do Diabo.

Assim, repartida e escondida a parte negada, ohomem desconhece a si mesmo (não precisa se re-conhecer) e, para ter paz, deixa de ver a face obscu-ra do seu ser.

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Ignorada, ela é mais livre para fluir. Sem remor-sos.

Nossa cultura religiosa e moral divide os demiur-gos e os homens em divinos e diabólicos, em bons emaus; enquanto a natureza nos faz e constitui a par-tir do conflito de forças opostas. É desse conflito eda sua consciência social que nasce a escolha, a fixa-ção em uma das margens do rio. A fábula de Calvinocria uma bipartição mais insólita ainda do que essa,assegurando a dicotomia maniqueísta através da di-visão física do personagem e expondo aos nossosolhos as insólitas construções que chamamos de “re-alidade”.

A propósito do maniquismo, que constitui a vir-tude aos olhos da nossa formação, podemos ver aclara percepção da dualidade humana no mundopagão através da fábula grega de Esopo, conhecidaatravés dos versos latinos de Fedro, cuja sentidoguardo na memória:

“Júpiter colocou sobre nós dois alforjes:um, em nossas costas, com os próprios defeitose outro, em frente ao peito, com os alheios.Por isso não vemos os nossos errosEnquanto censuramos os outros.”

A novela O visconde partido ao meio responde aalgumas das qualidades que, no entender desse mo-

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derno escritor italiano, a literatura deveria fazer tran-sitar da modernidade para a pós-modernidade, ultra-passando os umbrais do milênio que viu nascer o obje-to livro e assistiu à sua crise de resistência para não sersubstituído por outros meios (=media) mais facilita-dores. Ou “outras mídias”, conforme a grafia e a mu-dança de gênero impostas pela mídia brasileira.

No livro Seis propostas para o próximo milênio,resultante das cinco conferências escritas para a Uni-versidade de Havard, Italo Calvino ressalta a leveza,a rapidez, a exatidão, a visibilidade e a multiplicidade,não tendo chegado a desenvolver o sexto tema: aconsistência.

A primeira característica parece concentrar to-das as outras. Um texto leve tem suficiente agilida-de para dizer com precisão cada nuance do pensa-mento; sendo possível projetar imagens, através depalavras, fazendo com que múltiplas ideias se har-monizem, dando consistência ao texto.

Veja-se que na frase acima estão reunidas, numsó conjunto, as seis características do texto: A pri-meira (a leveza) parece concentrar todas as outras.Um texto leve tem suficiente agilidade (ou rapidez)para dizer com precisão (ou com exatidão) cadanuance do pensamento; sendo possível projetar ima-gens (ou dar visibilidade), através de palavras, fa-zendo com que múltiplas ideias se harmonizem (eisa multiplicidade), dando consistência ao texto.

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Calvino define o primeiro conceito, responsávelpelo desencadeamento das demais característicastextuais: “A leveza para mim está associada à preci-são e à determinação, nunca ao que é vago ou alea-tório.” Paul Valéry foi quem disse: “Il faut être légercomme l’oiseau, et nom comme la plume”.

Ele disse, seguramente, sem usar o francês estro-piado da minha fala de tabaréu da Bahia. Por issoconvém que eu repita com minhas palavras, com umaparáfrase: O pássaro, embora leve e ágil para flutuarno espaço, cumpre o trajeto pretendido; ao contrá-rio da pluma que vaga aleatoriamente.

PERSEU E MEDUSA

Para ilustrar o seu conceito de leveza de formaalegórica, dando visibilidade às imagens verbais, ItaloCalvino recorre, simultaneamente, à mitologia e àliteratura clássica. Nas Metamorfoses, de Ovídio, elevai buscar as relações entre a agilidade (ou a rapi-dez) de Perseu e a pesada condenação da Medusa.Todo aquele que mirasse o rosto monstruoso daMedusa, com seus cabelos de serpentes, seria trans-formado em estátua de si mesmo, imagem de grani-to. Estaria condenado ao peso eterno da pedra.

Para vencer o peso da Medusa foi necessária aleveza de Perseu, com suas sandálias aladas. Leve e

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rápido, astucioso também, ele evita olhar a cabeçado monstro, na hora de cortá-la, orientando-se pelaimagem espelhada no seu escudo de bronze.

Como o mundo é constituído de coisas leves epesadas também, o mito ensina como é possível re-tirar leveza do que é pesado. Da Medusa nasce opeso das estátuas de pedra em que se transformamaqueles que se voltam para olhar o monstro. Mas dosangue da Medusa, decepada pelo herói, tambémnasceu a leveza de Pégaso, o cavalo alado. As sandá-lias aladas de Perseu também provieram da estirpeda Medusa, das suas irmãs, as Graias de um olho só.

Calvino nos lembra que “o peso da pedra podereverter em seu contrário” (a expressão é dele). Afonte na qual as Musas irão beber jorra de uma pa-tada de Pégaso na pedra. Mais uma vez, a levezasurge do peso: a água macia em lugar da pedra dura.

Outra imagem retirada da tradição literária paraque possamos visualizar a leveza é a do poetaflorentino Guido Cavalcanti, transformado em he-rói de uma das narrativas de Boccaccio, no Deca-meron. O poeta passeava entre as lápides do cemi-tério, quando foi acossado por uma brigada dajeunesse dorée de Florença:

“O senhor Beto e sua brigada de cavaleiros, que,vendo Guido ali entre os túmulos, assim disseram:«Vamos provocá-lo»; e, esporeando os cavalos, comose partissem para um assalto de brincadeira, caíram-

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lhe em cima, quase antes mesmo que ele se desseconta.

“Ao que Guido, vendo-se cercado por eles,prestamente respondeu: «Senhores, podeis dizer-meem vossa casa o que bem vos aprouver»; e, apoian-do-se sobre um daqueles túmulos, que eram bemaltos, levíssimo que era, deu um salto arrojando-separa o outro lado.”

Nessa passagem do Decameron, Boccaccio exaltaa leveza e também a astúcia do poeta, que identificaseus opositores com o peso dos túmulos: “Senho-res, podeis dizer-me em vossa casa o que bem vosaprouver”.

E Calvino nos lembra que Guido Cavalcanti, aquem chama de o poeta da leveza, assim escreveu:

“Va tu, leggera e piana,dritt’ a la donna mia”.[Vai, leve e ligeira,direto a minha dama].

Com base nesses exemplos, penso que, para ItaloCalvino, a leveza é um modo de ver o mundo. É atransposição desse modo de ver o mundo que faz asustentável leveza das coisas; é a transposição dopensamento ágil e leve para o texto literário queconstrói o encanto da obra.

Na página 22 das Seis propostas para o próximomilênio podemos ler: “a leveza é algo que se cria noprocesso de escrever”.

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Sintetizando a concepção de Calvino, penso quea leveza seria despojar a linguagem por meio de “umtecido verbal quase imponderável”, onde as palavraslevitam em “rarefeita consistência”. Ela (a leveza),alada, habitaria o texto através de “elementos sutise imperceptíveis”.

Já vimos que a leveza não se opõe à precisão, àdeterminação ou à exatidão, termos correlatos. Vi-mos também que o pássaro, embora leve e ágil paraflutuar no espaço, cumpre o trajeto pretendido; aocontrário da pluma que vaga aleatoriamente.

A imagem do pássaro e da pluma representa arealização de um objetivo cumprido pela moderni-dade, abolindo a complexidade aparente, em favorde uma verticalização sustentada na simplicidade dodizer como forma de gradativa compreensão de es-truturas mais complexas.

Assim compreendida, a primeira característica daliteratura que Calvino legou ao milênio que não maisveria – a leveza – parece concentrar todas as outras.Um texto leve tem suficiente agilidade para dizercom precisão cada nuance do pensamento; sendopossível projetar imagens, através de palavras, fa-zendo com que múltiplas ideias se harmonizem, dan-do consistência ao texto.

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UM CAVALEIRO NA CONTRAMÃO

Convém lembrar que as propostas de Calvinoentram em choque com os primeiros raios damodernidade, que riscavam o incompreensível nocristal do sentido. Os poetas franceses do fim doséculo XIX tentaram compensar a obviedade dodiscurso de um romantismo de massa pelo descom-promisso com a comunicabilidade do texto. A eliti-zação dos símbolos expressivos como passaporte àconstelação poética tornou-se moeda corrente dalírica europeia. Antes disso, Baudelaire admitiu aglória de não ser compreendido, abrindo caminhopara a apologia da incomunicabilidade.

Se, por um lado, a lírica fin-de-siècle supera os as-pectos do romantismo mais assimilados pelo gran-de público; por outro lado, o culto à personalidadedo poeta não é exposto à luz da razão crítica. Pro-tegido pela obscuridade, ele continua forte. O aces-so à mensagem do texto é travado pela subjetivida-de, quando as figuras construídas pelo poeta sãovalorizadas pela originalidade.

A literatura moderna rompe com a estética doRenascimento – fundador do mundo também cha-mado de moderno, mas pertencente a uma outramodernidade, não a estilística, mas a histórica, quequebrou os limites do mundo medieval recolhendoheranças antigas –, a literatura moderna rompe com

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a estética do Renascimento quando abandona o cul-to dos antigos em favor do culto do sujeito. Segun-do a concepção clássica da literatura, o engenhopessoal deve ter suas bases fincadas na tradição, oumelhor, no bem sucedido engenho coletivo aperfei-çoado pelos mestres da construção artística. Com oadvento do Renascimento, o desafio a ser vencidopelo escritor é seguir os modelos, ser capaz de re-construir o edifício dos antigos e, se possível, superá-los na construção. Com a exigência da originalidade,instaurada ou, quando menos, valorizada pelos român-ticos, os primeiros modernos se fizeram obscuros.

Convém lembrar ainda que, transitando da poe-sia para o romance moderno, a inacessibilidade damensagem continua sendo o primeiro vislumbre deobras como Ulysses ou Finnegans Wake, de Joyce.Desse modo, a literatura moderna teria como umdos seus fios de tensão o oscilar entre o claro e oobscuro, sem que o pêndulo pare em um dos pólosde sombra ou de luz.

Observe-se que Calvino pretendeu transpor parao milênio seguinte traços da literatura moderna quemuitos cacheiros-viajantes da pós-modernidade lo-graram banir dos seus textos. A intempestiva ex-pressão lembra o passado recente, quando as liga-ções entre as fontes produtivas e o comércio doslugares mais afastados ainda eram remotas, ao pas-so que os cacheiros-viajantes se faziam arautos das

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novidades. Seu palavrório mal assimilado encantavaa uns e espantava a outros. Na inconstante floradada contemporaneidade, a fratura do stablishmentuniversitário está situada entre os escreventes queproduzem e os que repetem o discurso de marketingdo produto.

Cavaleiro com seu corcel na contramão da Quin-ta Avenida, Calvino insistia em preservar caracterís-ticas que correm o risco de se perder. Leveza e pre-cisão – ao dizer alguma coisa – podem se tornarmarcas de um passado que guarda na redundâncialaivos de exatidão e de visibilidade. Nessa perspec-tiva, o texto pós-moderno reflete a estrutura domomento histórico vivido, cuja compreensão é ci-frada por um labirinto de sentidos ainda em percur-so de constituição.

Os textos de maior prestígio no âmbito fetichis-ta de uma teorização do pós-moderno encontramna imprecisão do dito uma saída para que se tentedizer o que ainda está em curso e, por isso mesmo,não se deixa capturar pelo dito. A crítica, enquantonotação do impreciso através de uma escrita preci-sa, torna-se útil ao leitor à medida que articula ideiasdifusas, conectando sentidos e ajudando a compre-ender o vago espaço de transgressão. Daí a sua atro-fia em meio às várias ilhas de pós-modernidade, nummundo articulado por fraturas. Um mundo que, pormanter intocados os redutos medievais impostos

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pelo desequilíbrio social, ainda não pôde absorveras conquistas da modernidade e já reflete sobre umapós-modernidade mal vivida – porque racionaliza-da quando ainda viva. A experiência mostra que aracionalização é a necropsia das coisas vividas.

Por fim, cabe a indagação: haveria incompatibili-dade conformativa entre a crítica literária que nosfoi legada pelas gerações precedentes e as práticasda pós-modernidade?

A crítica acadêmica vem mudando de objeto e demira ao longo da sua história. No apogeu da banali-zação universitária do método estrutural, cientifi-cista ou neopositivista, ela deslocou o foco da obrapara si mesma, erigindo o deslocamento à condiçãode marco identitário. É esse objeto autorreflexivo,ou esse saber sobre si mesmo, que chegou à con-temporaneidade com o estatuto de ciência.

Projetar clarões sobre o obscuro objeto do dese-jo do outro não tem sido sua tarefa. Parte significa-tiva da crítica universitária tem sabido construir seuspróprios e impróprios objetos, passando muito bemsem a obra literária. O trabalho secundário de acom-panhar o percurso cotidiano da obra alheia tem ca-bido a uma outra crítica, tida como menor ou defi-nida como mera resenha: a crítica ligeira – cotidianae valorativa, jornalística e leve – porque quase tãoperecível quanto as palavras no jornal diário. O re-torno às salas de aula de tal prática, em baixa na

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bolsa, depende de hábitos cotidianos de leitura de-sinteressada e prazerosa; hábitos contraditoriamentenão generalizados entre estudantes e até mesmoprofessores brasileiros de letras. Desde os anos se-tenta, alguns estudiosos que se consideram leitores,antes de qualquer outra coisa, objetam que a exi-gência constante de novas visões e revisões – e derenovados fundamentos teóricos – toma parte subs-tancial do tempo que poderia ser dedicado à leiturade obras literárias. Inclusive as não-canônicas, nãocontempladas com o epíteto de clássicas: aquelas nãopresentes no currículo das classes.

É desse tipo de leitura não-sistemática que se ori-gina a liberdade de pensamento judicativo favorá-vel à construção e reconstrução permanente de umaespécie de cânone mutável e provisório, concebidopara orientação prática. É com a leitura peregrinado prazer que surge uma crítica viva, menos identifi-cada com a ciência e mais com a arte. A arte de deci-frar os desenhos das nuvens e os desejos dos ho-mens e das mulheres, escondidos no texto.

A incompatibilidade acima aventada seria portan-to entre os princípios e práticas da contemporanei-dade com a crítica artística, judicativa, ou mesmocom a sua versão jornalística ou de rodapé – a briga-da ligeira, conforme velha designação de AntonioCandido. Daí a crise e a ameaça de desaparecimentoda crítica literária em tais moldes (em arquétipos

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concebidos pela modernidade) coincidir com os ins-tantes de eclosão do pensamento pós-moderno. Estacrítica se sustenta na leveza e na agilidade como elosou formas de conexão com o leitor comum. Trata-se de uma crítica que joga, que arrisca se perder. Quenão quer proferir verdades permanentes, mas buscaexplicações e verdades provisórias, aplicáveis aomomento.

Quando meninos, brincávamos de cabra-cega,um jogo no qual, de olhos vendados, procurávamoso que não víamos. Em adultos, encontramos na telade Goya La gallina ciega (ver p. 98) uma imagemirônica, mas de construtivo apelo, da tarefa crítica.Sabendo-se de olhos vendados para o que pretendealcançar, a crítica saberá voltar atrás, tentar de novo,procurar do outro lado, e – quem sabe? – até mes-mo acertar.

A SUSTENTÁVEL LEVEZA DO TEXTO. Apresentado ao CICLO ÍTALO

CALVINO. Centro Cultural Grandes Autores, Salvador, 10-24 nov. 1998. Apesar da natureza oral deste texto, destina-do a uma discussão pública, retoma e amplia duas resenhaspublicadas. (1) “Maniqueísmo ou partido”; texto sobre Ovisconde partido ao meio, de Italo Calvino. Coluna “LeituraCrítica” do jornal A Tarde, Salvador, 24 fev. 97, p. 7. (2)“Escritas indecifráveis”; resenha crítica do livro Seis propos-tas para o próximo milênio, de Italo Calvino. Coluna “LeituraCrítica” do jornal A Tarde, Salvador, 19 out. 98, p. 7.

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POESIA

Temporário; poesia. Salvador, Cimape, 1970 (Coleção AutoresBaianos, 3).

Paralelo entre homem e rio: Fluviário; poesia. Salvador, Impren-sa Oficial da Bahia, 1972.

O signo selvagem; metapoema. Salvador, Margem / Departa-mento de Assuntos Culturais da Secretaria Municipal deEducação e Cultura, 1978.

Fonte das pedras; poesia. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira;Brasília, Instituto Nacional do Livro, 1979.

Fragmentos do diário de naufrágio; poesia. Salvador, Oficina doLivro, 1992.

O espelho infiel; poesia. Rio de Janeiro, Diadorim, 1996.

ENSAIO E CRÍTICA

O espelho de Narciso. Livro I: Linguagem, cultura e ideologia noidealismo e no marxismo; ensaio. Rio de Janeiro, CivilizaçãoBrasileira; Brasília, Instituto Nacional do Livro, 1981.

A poética pessoana: uma prática sem teoria; ensaio. Salvador,CEDAP; Centro de Editoração e Apoio à Pesquisa, 1992.

Godofredo Filho, irmão poesia; ensaio. Salvador, Oficina do Li-vro, 1992.

OBRAS DO AUTOR

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Poetas, meninos e malucos; ensaios. Salvador, Universidade Fede-ral da Bahia, 1993. (Cadernos Literatura & Linguística, 1.)

Jorge Amado: Da guerra dos santos à demolição do eurocentrismo;ensaio crítico. Salvador, CEDAP, 1993.

Literatura e intertextualidade; ensaio. Salvador, CEDAP, 1994.Herberto Sales. Ensaios sobre o escritor. Salvador, Oficina do Li-

vro, 1995.O viajante de papel. Perspectiva crítica da literatura portuguesa.

Salvador, Oficina do Livro, 1996.Triste Bahia, oh! quão dessemelhante. Notas sobre a literatura na

Bahia. Salvador, Egba; Secretaria da Cultura, 1996.O lugar da linguagem na teoria freudiana; ensaio. Salvador, Fun-

dação Casa de Jorge Amado, 1997. (Col. Casa de Palavras)O silêncio do Orfeu Rebelde e outros escritos sobre Miguel Torga;

ensaios. Salvador, Oficina do Livro, 1999.O trovadorismo galaico-português; ensaio crítico e antologia. Feira

de Santana, UEFS, 2000.Três temas dos anos trinta; textos de crítica literária. Feira de Santana,

UEFS, 2003. (Cadernos de sala de aula, 1)Os riscos da cabra-cega. Recortes de crítica ligeira. Org., intr. e

notas Rubens Alves Pereira e Elvya Ribeiro Pereira. Feira deSantana, UEFS, 2003. (Col. Literatura e diversidade Cultu-ral, 10)

Desatino romântico e consciência crítica. Uma leitura de Amor dePerdição, de Camilo Castelo Branco. 2a ed. Salvador, Rio doEngenho, 2016.

Da invenção à literatura. Ensaios de filosofia da linguagem. Sal-vador, Rio do Engenho, 2017.

NO EXTERIOR

The savage sign / O signo selvagem; poesia; trad. Hugh Fox.Lansing, Ghost Dance, 1983. (Edição bilingue norte-ameri-cana.)

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da invenção à literatura

E-BOOKS

Desatino romântico e consciência crítica. Uma leitura de Amor dePerdição, de Camilo Castelo Branco. Copenhagen, Issuu, E-Book.Br, 2014. Disponibilizado em <https://issuu.com/e-book.br/docs/camilo>

O silêncio do Orfeu Rebelde e outros escritos sobre Miguel Torga, 2ed. Copenhagen, Issuu, E-Book.Br, 2015. Disponibilizadoem <https://issuu.com/e-book.br/docs/torga>

Literatura e intertextualidade. Copenhagen, Issuu, E-Book.Br,2015. Disponibilizado em <https://issuu.com/e-book.br/docs/intertextualidade>

Noventa anos do modernismo na Feira de Santana de GodofredoFilho. Copenhagen, Issuu, E-Book.Br, 2015. Disponibilizadoem <https://issuu. com/e-book. br/docs/godofredofilho>

Os riscos da cabra-cega. Recortes de crítica ligeira. 2 ed.,Copenhagen, Issuu, E-Book.Br, 2015. Disponibilizado em<https://issuu.com/cidseixas1/docs/cabra cega>

Da invenção à literatura. Textos de teoria e crítica. Copenhagen,Issuu, E-Book.Br, 2015. Disponibilizado em <https://issuu.com/e-book.br/docs/invencao>

Orpheu em Pessoa. Org. Cid Seixas e Adriano Eysen. Co-penhagen, Issuu, E-Book.Br, 2015. Disponibilizado em<https://issuu.com/e-book.br/docs/orpheu>

Do inconsciente à linguagem. Uma teoria da linguagem na desco-berta de Freud. Copenhagen, Issuu, E-Book.Br, 2016.Disponibilizado em <https://issuu.com/e-book.br/docs/inconsciente>

A Literatura na Bahia. Livro 1: Tradição e Modernidade.Copenhagen, Issuu, E-Book.Br, 2016. Disponibilizado em<https://issuu.com/e-book.br/docs/tradicaomodernidade>

1928: Modernismo e Maturidade. Livro 2 de A Literatura naBahia. Copenhagen, Issuu, E-Book.Br, 2016. Disponibi-lizado em <https://issuu.com/e-book.br/docs/1928>

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Três Temas dos Anos 30. Livro 3 de A Literatura na Bahia.Copenhagen, Issuu, E-Book.Br, 2016. Disponibilizado em<https://issuu.com/e-book.br/docs/anos30>

Final do século XX. Livro 4 de A Literatura na Bahia. Cope-nhagen, Issuu, E-Book.Br, 2016. Disponibilizado em<https://issuu.com/e-book.br/docs/seculo20>

A essência ideológica da linguagem. Livro I de: Linguagem, cultu-ra e ideologia. Copenhagen, Issuu, E-Book.Br, 2016. Disponi-bilizado em <https://issuu.com/e-book.br/docs/lingua-gem1>

Linguagem e conhecimento. Livro II de: Linguagem, cultura e ide-ologia. Copenhagen, Issuu, E-Book.Br, 2016. Disponibilizadoem <https://issuu.com/e-book.br/docs/linguagem2>

Sob o signo do estruturalismo. Livro III de: Linguagem, cultura eideologia. Copenhagen, Issuu, E-Book.Br, 2016. Disponibi-lizado em <https://issuu.com/e-book.br/docs/linguagem3>

O contrato social da linguagem. Livro IV de: Linguagem, culturae ideologia. Copenhagen, Issuu, E-Book.Br, 2016. Disponibi-lizado em <https://issuu.com/e-book.br/docs/linguagem4>

A Linguagem: do idealismo ao marxismo. Livro V de: Linguagem,cultura e ideologia. Copenhagen, Issuu, E-Book.Br, 2016.Disponibilizado em <https://issuu.com/e-book.br/docs/lin-guagem5>

Stravinsky: uma poética dos sentidos. Ou a música como linguagemdas emoções. Copenhagen, Issuu, E-Book. Br, 2016. Disponi-bilizado em <https://issuu.com/e-book.br/docs/stravinsky>

Castro Alves e o reino de eros. Copenhagen, Issuu, E-Book.Br,2016. Disponibilizado em <https://issuu. com/e-book.br/docs/eros>

Espaço de convenção e espaço de transgressão. Livro I de O real emPessoa. Copenhagen, Issuu, E-Book.Br, 2016. Disponibilizadoem <https://issuu.com/e-book.br/docs/1.espaco>

A construção do real como papel da cultura. Livro II de O real emPessoa. Copenhagen, Issuu, E-Book.Br, 2016. Disponibili-zado em <https://issuu.com/e-book.br/docs/2.construcao>

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da invenção à literatura

PARTICIPAÇÃO /ORGANIZAÇÃO

CUNHA, Carlos; SEIXAS, Cid. (Org.). Breve romanceiro donatal; antologia poética. Salvador, Beneditina, 1972.(Coautoria)

CUNHA, Carlos; SEIXAS, Cid. (Org.). Sete cantares de amigo;antologia poética. Salvador, Arpoador; Fundação Culturaldo Estado da Bahia, 1975. (Coautoria)

CUNHA, Carlos; SEIXAS, Cid. (Org.). Lira de bolso; poesia.Salvador, Arpoador/Fundação Cultural do Estado da Bahia,1975. (Coautoria)

VV.AA.: Antologia de Poetas da Bahia em Alfabeto Braille;poesia. Salvador, Fundação Cultural do Estado da Bahia,1976. (Coautoria)

TAVARES, Luis Henrique Dias et alii: Jorge Amado. Ensaiossobre o escritor. Salvador, Universidade Federal da Bahia, 1983.(Participação com o poema “Bahia de Todos os Santos”,dialogando com a obra amadiana.)

TORGA, Miguel: Novos contos da montanha. Rio de Janeiro,Nova Fronteira, 1996. (“Apresentação à edição brasileira”,p. 1-8.)

A poesia como metáfora do conhecimento. Livro III de O real emPessoa. Copenhagen, Issuu, E-Book.Br, 2016. Disponibilizadoem <https://issuu.com/e-book.br/docs/3.poesia>

O signo poético, ficção e realidade. Livro IV de Conhecer Pessoa.Copenhagen, Issuu, E-Book.Br, 2017. Disponibilizado em<https://issuu.com/e-book.br/docs/4.signo>

Do sentido linear à constelação de sentidos. Livro V de ConhecerPessoa. Copenhagen, Issuu, E-Book.Br, 2017. Disponibilizadoem <https://issuu.com/e-book.br/docs/5.sentido>

O Eco da interdição ou O signo arisco. Livro VI de ConhecerPessoa. Copenhagen, Issuu, e-book.br, 2017. Disponibilizadoem <https://issuu.com/e-book.br/docs/6.eco>

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GUERRA, Guido: Vila Nova da Rainha Doida; contos. Rio deJaneiro, Record, 1998. (“Os contos de Guido Guerra”, abas1-2.)

DAMULAKIS, Gerana: O rio e a ponte; à margem de leiturasescolhidas. Salvador, Secretaria da Cultura e Turismo, 1999.(“A obra e o leitor: uma ponte necessária”, abas 1 -2.)

TORGA, Miguel: Contos da montanha. Rio de Janeiro, NovaFronteira, 1999. (Artigo: “Os Sonhos do Sujeito e suaConstrução Social”, p. 1-10.)

BRASIL, Assis: A Poesia Baiana no Século XX. Antologia. Riode Janeiro, Imago, 1999. (Participação com dois poemas:“Pasto das águas” e “Tebas revisitada: Cidade da Bahia”, p.213-215.)

CASTRO, Renato Berbert de. As candidaturas de AlmachioDiniz e Wanderley Pinho à Academia Brasileira. Salvador,Academia de Letras da Bahia; Assembléia Legislativa, 1999.(Artigo: “Renato Berbert de Castro: o viajante de papel”, p.7-12.)

AZEVEDO et alii. Um grapiúna no país do Carnaval. Org. erevisão Vera Rollemberg. Salvador, Fundação Casa de JorgeAmado; Edufba, 2000. (Artigo: “O sumiço da santa: Umpainel colorido da cultura mestiça”, p. 333-340.)

BRASILEIRO, Antonio. A estética da sinceridade & outros ensaios.Feira de Santana, UEFS, 2000. (“Estética brasileira eidentidade pessoal”, abas 1-2.)

GUERRA, Emília Leitão: Poemas escolhidos.  Salvador, EdiçõesCidade da Bahia, 2000. (“A poesia ‘familiar’ de Emília LeitãoGuerra”, p. 7- 17.)

PEREIR, Roberval. A unidade primordial da lírica moderna. Feirade Santana, UEFS, 2000. (“Unidade do moderno e docontemporâneo”, abas 1-2.)

CUNHA, Carlos. A flauta onírica e novos poemas. Salvador,Edições Cidade da Bahia; Fundação Gregório de Mattos,

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da invenção à literatura

2001. (Artigo: “Do velho preciosismo ao non sense pós-moderno”, p. 151-159.)

PÓLVORA, Hélio, org.  A Sosígenes, com afeto.  Salvador,Edições Cidade da Bahia; Fundação Gregório de Mattos,2001. (Artigo: “Sosígenes Costa, epopéia cabocla do moder-nismo na Bahia”, p. 75-84.)

RIBEIRO, Carlos, org. Com a Palavra o Escritor. Salvador,Casa de Palavras; Fundação Casa de Jorge Amado, 2002.(Artigo: “Com a palavra Guido Guerra”, p. 64-73.)

BARROS, José Carlos. (Org.). Bahia: Poetas e Poemas Con-temporâneos. Salvador, Módulo, 2003. (Poemas escolhidos,p. 67-76.)

CANIATO, B. Justo; GUIMARÃES, Elisa, org. Linhas eentrelinhas: Homenagem a Nelly Novaes Coelho. São Paulo:Editora Casemiro, 2003. (Artigo: “Academia dos Rebeldes:Revisitando uma proposta não esboçada”, p. 71-76.)

GUERRA, Guido. Auto-Retrato. Salvador, Fundação Gregóriode Mattos, 2003. (Artigo: “Auto-Retrato do Escritor GuidoGuerra”, p. 285-291.)

MATTOS, Cyro; FONSECA, Aleilton, org. O triunfo deSosígenes Costa. Ilhéus, Editus, 2005. (Artigo: “Iararana, umdocumento dos anos 30”, p. 143-156.)

LEITE, Gildeci de Oliveira. (Org.). Vertentes culturais daliteratura na Bahia. Salvador, Quarteto, 2006. (Artigo: “Jor-ge Amado e o canto épico da mestiçagem”, p. 39-50. )

HOISEL, Evelina; RIBEIRO, M. de Fátima. (Org.) Viagens:Vitorino Nemésio e intelectuais portugueses no Brasil .Salvador, UFBA, 2007. (Artigo: “Hélio Simões e as relaçõesluso-brasileiras”, p. 49-56.)

GILFRANCISCO. (Org.). Musa capenga (obra esquecida deEdson Carneiro). Salvador, Fundação Cultural do Estadoda Bahia, 2007. (Artigo: “A poesia de Édison Carneiroredescoberta por Gilfrancisco”, p. 11-19.)

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GUERRA, Guido. Imortal irreverência: depoimentos e entre-vistas. Salvador, Ponte da Memória; Assembléia Legislativado Estado da Bahia, 2009. (Artigo: “Guido Guerra: dojornalismo à criação literária”, p. 15-22.)

GUERRA, Guido. Imortal irreverência: depoimentos e entre-vistas. Salvador, Ponte da Memória; Assembléia Legislativado Estado da Bahia, 2009. (Depoimento: “A timidezescondida”, p. 119-138.)

HOISEL, Evelina; LOPES, Cássia. Poesia e Memória: A poéticade Myriam Fraga. Salvador, Edufba, 2011. (Artigo “Palavrade mulher, coisa fecunda”, p. 291-294.)

MATTOS, Cyro de. Berro de fogo e outras histórias. Ilhéus,Editos, 2013. (Artigo de introdução ao livro: “A forçaselvagem”, p. 9-12.)

SEIXAS, Cid; EYSEN, Adriano, org. Orpheu em Pessoa. Cedap,Coleção Oficina do Livro, E-book.br, v. 6, 2015. Disponibili-zado em <httpps://issuu.com/e-book.br/docs/orpheu>(Artigo: “Fernando Pessoa, centro constelar do grupoOrpheu”, p. 161-180.)

EUCLIDES NETO. A última caçada; contos. Seleção, introdu-ção e notas de Cid Seixas. Coleção Oficina do Livro, E-book.br, 2017. Disponibilizado em <https://issuu.com/euclides-neto/docs/1> (Artigo: “O Contista EuclidesNeto”, p. 9-12.)

EUCLIDES NETO. O advogado e o burro ladrão; conto. Sele-ção, introdução e notas de Cid Seixas. Coleção Oficina doLivro, E-book.br, 2017. Disponibilizado em <https://issuu.com/euclides-neto/docs/2> (Artigo: “Uma PequenaGrande Obra”, p. 11-16.)

QUEIRÓS, Eça de. Singularidades de uma rapariga loira; con-to. Seleção, introdução e notas de Cid Seixas. Coleção Ofi-cina do Livro, E-book.br, 2017. Disponibilizado em <https://issuu.com/e-book.br/docs/singularidades> (Artigo: “Sin-gularidades de uma narrativa realista”, p. 8-13.)

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Cid Seixas é jornalista e escritor. An-tes de se tornar professor universitá-rio, atuou como repórter, copy desk eeditor, trabalhando em rádio, jornal etelevisão. Fundou e dirigiu um dosmais qualificados suplementos literári-os, o Jornal de Cultura, publicado naBahia pelos Diários Associados. Gradu-ado pela UCSAL, Mestre pela UFBAe Doutor em Literatura pela USP.

Além de ter colaborado com jornaise revistas, entre os quais O Estado deS. Paulo e a Colóquio, de Lisboa, assi-nou, durante cinco anos, a coluna “Lei-tura Crítica”, no jornal A Tarde, da Sal-vador. Na área de editoração, dedica-sea planejamento e projeto de livros e ou-tras publicações.

É Professor Titular aposentado daUniversidade Federal da Bahia e ensi-na na UEFS, onde atuou nos projetosde criação do Mestrado em Literaturae Diversidade Cultural, bem como daUEFS Editora.

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DA INVENÇÃOÀ LITERATURA

Quando meninos, brincávamos de cabra-cega,um jogo no qual, de olhos vendados, procurá-vamos o que não víamos. Em adultos, encontra-mos na tela de Goya La gallina ciega uma ima-gem irônica, mas de construtivo apelo, da pen-samento crítico. Sabendo-se de olhos vendadospara o que pretende alcançar, o estudioso sabe-rá voltar atrás, tentar de novo, procurar do outrolado, e – quem sabe? – até mesmo acertar.

ISBN 978-85-7395-265-0

9 788573 952650

Textos de filosofia da linguagem

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