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CIDADE IDEAL, IMAGINAÇÃO E REALIDADE o inferno dos vivos não é algo que será: se existe, é aquele quejá está aqui, () inférno no qual vivemos lOdos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira éfácil para a maioria das pessoas: aceitar o i'?ferno e lOrnar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-Ia. A segunda é arrts~ada e exige atenção e aprendizagem contmuas: saber reconhecer q.ueme o que, no metO do Injerno, não e inferno, e preservá-Ia, e abrir espaço. De Marco Polo para Kublai Khan. In As Cidades Invisíveis de Haia Calvina. Arquiteto doutorando, professor da Faculdade e do Mestrado em Arquitetura e Urbanismo da UFBa C omo a forma urbana envolve múltiplas leituras e entendimen- tos, seu aprofundamento requer nexos e vínculos com as noções de espaço- tempo, espaço-forma. estrutura superficial e profunda da forma, níveis e escalas de tratamento, elementos e atributos básicos, etc. Tais conceitos- chave fundamentam a idéiade realidade bem como o sentido do termo cidade. inexistindo como conceitos descolados da história das coisas construídas pelos homens e sua visão do mundo ideal e real. É claro que, independente de epoca. tempo de duração como de existência e mesmo de uma dimensão (escala), qualquer cidade desempenha funções; dito de outro modo, possui um papel. Na visão de Rolnik, cidade é "centro e expressão de domínio sobre um território, sede do poder e da administração, lugar da produção de mitos e símbolos" (1988:8), quando, então, questiona: ..... nãoestariamestas características ainda presentes nas metrópoles contemporâneas? Cidades da era eletrônica, não seriam suas o artigo trata da questão da cidade ideal versus a cidade real, mapeando sinteticamente as raízes históricas da imaginação utópica no urbanismo, como uma tentativa de superação do presente defeituoso. Critica a noção do futuro perfeito imbricada nas vertentes teóricas do urbanismo moderno,seus paradoxos e dilemas na contemporaneidade, em especial pela perda do sentido social na produção material da cidade e nas posturas assentadas na ilusão e na alienação projetual como discursos legitimadores do efêmero na cidade do consumo. Postula tornar o invisível em visível, de modo a desvelar as articulações entre a imaginação e a realidade concreta.

CIDADE IDEAL, IMAGINAÇÃO E REALIDADE...culturalista (além da sem-modelo). Desde opré-urbanismo sãoinstituídas ascondições seminais deuma nova disciplina compretensões deimaginarcientificamente

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CIDADE IDEAL,IMAGINAÇÃO E REALIDADE

o inferno dos vivos não é algo queserá: se existe, é aquele quejá está aqui, ()inférno no qual vivemos lOdos os dias, queformamos estando juntos. Existem duasmaneiras de não sofrer. A primeira é fácilpara a maioria das pessoas: aceitar oi'?ferno e lOrnar-se parte deste até o pontode deixar de percebê-Ia. A segunda éarrts~ada e exige atenção e aprendizagemcontmuas: saber reconhecer q.ueme o que,no metO do Injerno, não e inferno, epreservá-Ia, e abrir espaço.

De Marco Polo para Kublai Khan. In AsCidades Invisíveis de Haia Calvina.

• Arquiteto doutorando, professor daFaculdade e do Mestrado em

Arquitetura e Urbanismo da UFBa

Como a forma urbana envolvemúltiplas leituras e entendimen-

tos, seu aprofundamento requer nexose vínculos com as noções de espaço-tempo, espaço-forma. estruturasuperficial e profunda da forma, níveis eescalas de tratamento, elementos eatributos básicos, etc. Tais conceitos-chave fundamentam a idéiade realidadebem como o sentido do termo cidade.inexistindo como conceitos descoladosda história das coisas construídas peloshomens e sua visão do mundo ideal ereal.

É claro que, independente de epoca.tempo de duração como de existência emesmo de uma dimensão (escala),qualquer cidade desempenha funções;dito de outro modo, possui um papel.Na visão de Rolnik, cidade é "centro eexpressão de domínio sobre umterritório, sede do poder e daadministração, lugar da produção demitos e símbolos" (1988:8), quando,então, questiona: .....não estariamestascaracterísticas ainda presentes nasmetrópoles contemporâneas? Cidadesda era eletrônica, não seriam suas

o artigo trata da questão da cidadeideal versus a cidade real, mapeandosinteticamente as raízes históricas daimaginação utópica no urbanismo, comouma tentativa de superação do presentedefeituoso. Critica a noção do futuroperfeito imbricada nas vertentes teóricas dourbanismo moderno,seus paradoxos edilemas na contemporaneidade, em especialpela perda do sentido social na produçãomaterial da cidade e nas posturasassentadas na ilusão e na alienaçãoprojetual como discursos legitimadores doefêmero na cidade do consumo. Postulatornar o invisível em visível, de modo adesvelar as articulações entre a imaginaçãoe a realidade concreta.

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rorres brilhantes de vidro e metal os centros de decisãodos destinos do Estado, país ou planeta? Não seriam seusoutdoors, vitrinas e telas de TV os templos dos novosdeuses? Certo, não há mais muralhas; ao contrário dacidade antiga, a metrópole contemporânea se estende aoinfinito, [...]" (Rolnik, ibidem.)

A idéia de centro de domínio sobre um territórioparece se ajustar a qualquer tipo de cidade - religiosa, militar,comercial. industrial. etc. - e perpassa as mais diversasmanifestações de época - culturais, econômicas, políticas -,sempre delimitando uma certa relação entre homem enatureza, na sua dimensão espacial, de modo a realizar o"domínio sobre um território". De Babei a Brasília, ou seja,da utopia à realidade, a cidade sempre está expressando umpapel de domínio que, em última instância, reflete umcontexto que perpassa tanto o campo real como o imaginário.

O que distingue, então, uma cidade ideal de uma cidadereal? Como surge a necessidade de se pensar uma cidadeideal? Para quê? Com que propósito?

É plausível admitir que a cidade ideal, como umamanifestação utópica, tem raízes num traço que caracteriza ahumanidade: a decepção com o presente defeituoso, do qualemergem os impulsos de repensar o existente, o real vivido,ancorados no desejo de que algo ainda inexistente possa vir ase realizar. O presente defeituoso a ser substituído por umfuturo perfeito tem sido o mote inspirador da imaginaçãoutópica, até mesmo quando re~ressiva no sentido de umretorno a um mundo perdido (o Eden?).

Utopia vem do grego e, literalmente, significa a negaçãodo topos (lugar), ou seja, u-topia = lugar nenhum. Nestesentido a cidade ideal pode ser aqui tomada como uma utopia,no sentido empregado por Thomas Morus (1516), que criouo termo - a rigor um neologismo - para nomear a sua cidadeimaginária.

Como Morus tinha em mente uma crítica social à suaépoca, inspirado no humanismo renascentista, o que postulavamesmo era uma nova ordem baseada num projeto desociedade ideal, perfeita. Por outro lado, credita-se a Platãoa formulação mais antiga de uma pólis ideal, quando descrevea Cidade dos Homens na sua obraA República. Esta obra, aolado de outras duas, As Leis e Critias, fundamenta um idealutópico instaurador dos gennes daquilo que a modernidadevai incorporar sob a forma do Estado e da Constituição.

A visão platônica, no fundo, materializa "um dos sonhosmais antigos do homem. situado na base da imaginaçãoutópica: o de habitar uma cidade peifeita. Uma cidade. enão uma casa e, muito menos, um país ou uma nação"(Coelho, 1980:21).

Tanto Platão (século IV, a.e.) como depois Morus (séculoXVI, d.e.) imaginam uma cidade ideal, perfeita, fazendocontraponto com a realidade imperfeita que contestavam.

Como não eram revolucionários, na verdade ancoraram seuspensamentos em sentimentos morais, cuja interiorizaçãoadviriade convicções íntimas impulsionando a todos a não praticaremo mal, transformando a cidade num espaço de bons, justos efraternos cidadãos.

Da excessiva atenção à ordem, leia-se ordenamento dasociedade, derivam os germes da cidade ideal dosinstauradores do pensamento utópico - Platão e Morus - que.por certo, vão justificar depois, na modernidade. aracionalização da vida urbana, cujo ordenamento é opressuposto basilar e fonte de inspiração do que seja umacidade igualitária, justa, perfeita. Exceção, é claro, para osescravos, ainda admitidos por Morus.

A justiça na cidade ideal, utópica, é sempre algo queinteressa ao Estado e pouco diz respeito ao indivíduo, e, sejacomo discussão filosófica (Platão), obra literária (Morus) oumodelo espacial moderno (Le Corbusier), a preocupaçãocentral estará na ordem e no controle social, de modo a seevitar a conturbação, a anarquia, a revolução ("Arquiteturaou revolução", já dizia Le Corbusier).

Assim, a cidade ideal aparece historicamente comosuperação da cidade real, cheia de equívocos e erros de toda

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ordem, incorporando uma espécie de visão maniqueísta demundo, reduzindo a realidade a uma condição aualista entrealgo ideal (o bem) e algo real (o mal).

Sobre a utopia como forma de repensar a realidade,Coelho (op. cit.) observa, com base em Karl Manheim, váriostipos de mentalidade utopista, cujos programas específicostendem a se organizar em torno de algum eixo estrutural,identificando quatro tipos básicos:

a) aquele que produz os movimentos messiânicos,marcados pelo fanatismo religioso, não se propondo apromover qualquer revolução social, mas a busca deexperiências místicas e espirituais, baseadas na crença e nafé dos indivíduos;

b) aquele baseado na presença dos ideais Iiberal-humanitários. Em geral postulam um futuro indefinido elimitam-se a redefinir meros dispositivos de regulação econtrole das relações mundanas. Tal como o primeiro tipo,possui um traço conservador (a exemplo da Utopia de Morus);

c) o terceiro, caracterizado pela harmonia com a situaçãoexistente, em que prevalece a mentalidade do aqui e agoravoltada para aperfeiçoar o sistema social vigente. Aponta-seo Leviatã de Thomas Hobbes (século XVIII) como exemploparadigmático de apologia à sociedade de mercado emergentena Europa;

d) o último, aquele representado pelo programa socialista-comunista, radicalizando a utopia liberal-humanitária, nosentido de um futuro historicamente determinado pelasuperação do capitalismo.

O quadro sintético acima vai indicar que as utopias doséculo XIX de algum modo resultam de um longo processo,cuja gênese se dá a partir dos séculos XVI e XVII, quando amentalidade utopista liberal vai ser ultrapassada pela visãoutopista revolucionária instaurada no século XVIII,aprofundada depois, na prática, por revoluções propriamenteditas.

Assim como o pensamento utópico evoluiu para umaconcepção de socialismo científico, também o urbanismo,seguindo a trilha, vai pretender instaurar um urbanismocientífico, no qual o ordenamento espacial baseado numsistema de valores apoiado na razão, voltada para um homem-tipo universal, vai constituir-se um dos mitos da sociedadeindustrial emergente no século XIX.

Um novo modo de existir emerge da transformação dascidades européias, impactadas pelos meios de produção epela inovação tecnológica dos transportes, determinando aaparição de novas funções urbanas. Sua teorização, assentadaem diferentes visões de mundo, baliza aquelas duasconcepções modernas de cidade ideal denominadas porChoay (1965), em sua antologia, de vertentes progressista eculturalista (além da sem-modelo). Desde o pré-urbanismosão instituídas as condições seminais de uma nova disciplina

com pretensões de imaginar cientificamente a cidade moderna:o urbanismo.

O que os autores progressistas têm em comum é umacerta concepção de homem e de razào subjacente àssuas propostas de cidade ideal. A noção de um homemperfeito equivale à idéia de indivíduo-tipo - queindepende das contingências, dos lugares e do tempo aque pertence -, possibilitando a identificação dasnecessidades-tipo, deduzidas cientificamcnte comoverdades absolutas.

Na visão progressista de mundo. a Revolução Industrial éuma força motriz e. como acontecimento histórico, deve sera propulsora do desenvolvimento humano capaz de promovero bem-estar. Tais premissas ideológicas vào alavancar opensamento utópico, assim problematizadas por Considérant:"Dado um homem. com suas necessidades. seus gostos esuas inclinações natas. determinar as condições do sistemade construção mais apropriado à sua natureza" (citado porChoay, op. cit.:21).

Na forma do espaço progressista predomina o campoaberto, cheio de "vazios" e muito verde, numa espécie deresposta higienista à cidade real, caótica, amontoada deconstruções. Do fillanstério de Fourier. da Icária de Cabet àHygéia de Richardson, o espaço verde como envoltório dasedificações marca a relação homem-natureza, em que osímbolo de progresso se expressa pelo domínio do ar, da luz eda água, depois reapropriados por Le Corbusier, Wright,Gropius e outros como "meios" que devem ser igualmentedistribuídos entre todos.

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A precisão e o detalhe revelam não apenas a importânciaestética na impressão visual (perspectivada) como tambémcena rigidez construtiva que erradica possibilidades deimprovisos ou variantes na adaptação dos modelos. Ahabitação é estandardizada, e a preocupação com tipos ideaisalcança a escola (Owen), o hospital e a lavanderia(Richardson), sendo que "a primeira coisa de que temos decuidar é a moradia" (Proudhon), instituindo o germe dapreocupação moderna com os programas sociais voltados paraa reprodução da força de trabalho na cidade industrial.

Ao contrário da cidade real antiga, compacta, o espaçoprogressista é concebido atomizado. " ...na maioria dos casos,os bairros, comuna~ ouialanges são auto-suficientes epodemser justapostos indefinidamente, sem que sua conjunçãoproduza uma entidade de natureza diferente [00'] Ume,<,paçoonde abundam zonas verdes e vazios que excluemuma atmosfera propriamente urbana. () conceito clássicode cidade se dilui, no entanto surge o de cidade-campocujo destino veremos mais adiante." (Choay, op. cit.:25.)

A noção taylorista de rendimento máximo, própria daprodução industrial, dissimula nas várias formulaçõesprogressistas um viés político autoritário, cuja terminologiademocrática não consegue esconder a noção de controlebaseado numa autoridade forte, centralizadora, garantidorada "hannonia" indispensável à coesão social.

Já os autores culturalistas possuem como traço comuma noção de grupo humano em contraposição à idéia deindivíduo-tipo, além de uma visão nostálgica quanto aodesaparecimento da unidade orgânica da cidade tradicional,destruída pela pressão desintegradora da industrialização.Ruskin e Morris vão se apoiar na tradição do pensamento.cujo viés historicista parte de uma crítica às realizações dacivilização industrial comparadas àquelas das civilizaçõesdo passado, instituindo outra visão de mundo distinta daprogressista. Possivelmente a distinção conceitual entrecultura e civilização deita raiz na oposição de conceitos comoorgânico e mecânico, qualitativo e quantitativo, participaçãoe indiferença, associados a um questionamento ideológicoem que "a proeminência das necessidades materiaisdesaparece ante a das necessidades e,spirituais" (Choay,op. cit.:29).

A cidade idealculturalista tem como pressuposto uma "belatotalidade cultural", organicamente concebida, circunscrita alimites precisos de crescimento, devendo sua forma edificadaexpressar um contraste sem ambigü idades com a natureza. Adimensão (escala) das cidades é um pressuposto à integraçãoorgânica com a natureza, que é vista não como objeto dedomínio do homem, mas como elemento mesmo de inspiraçãofonnal: a cidade se adequa à natureza, não o contrário. Aassimetria e a curva são coisas naturais; a simetria e a retasão coisas artificiais.

Tanto a estética condena o geometrismo regulador comonão se pauta na "fealdade própria da sociedade industrial",que, em última instância, resulta de uma carência de culturaque deveria se inspirar no estudo da Idade Média e sua arte.Ligado à tradição, o desenvolvimento se pautaria no artesanatoe não na indústria, logo inexistem protótipos, standards' oupadronização das partes da cidade. Cada edificação deveexpressar seu caráter próprio, conforme sua distinção e uso,num clima ou ambiente urbano organicamente constituídocomo testemunho da própria história. A idéia de comunidadese desdobra em fórmulas democráticas de gestão, cujo planopolítico em nada se parece com o centralismo autoritário domodelo progressista, e a imaginação utópica é de certo modoregressiva, na medida em que aponta o passado como fontede inspiração do modelo ideal.

Finalmente, o pré-urbanismo sem modelo diz respeitoàqueles pensadores que, sem recorrerem ao mito da desordemnem às metáforas de um "estado patológico" na cidade real,não concordam e até criticam a idéia de se proporem modelosideais de cidade. Tanto para Marx (1818-1883) como paraEngels (1820-1895) o papel histórico da cidade real. porprincípio, exclui e anula o conceito de desordem, pois que acidade capitalista é, ela própria, a expressão de uma novaordem. centrada num outro modo de produção e relaçõessociais que não mais dizem respeito à sociedade feudal, nemtampouco se estruturam numa possibilidade de acessoindiscriminado ao progresso por parte dos trabalhadores. Estes.expostos à dominação e à exploração da mais-valia, em últimainstância, são regulados pela lei do valor e seusdesdobramentos no meio urbano - transfonnando valor deuso em valor de troca (Marx & Engels, 1961).

Assim, a questão da moradia na tradição marxiana não sereduz a uma projeção espacial e deve ser vista como resultadodos desequilíbrios demográficos, das desigualdades econômicase culturais que separam os homens da cidade dos do campo.Em síntese, o desenvolvimento capitalista é, em essência,desequilibrado e não pode ser homogêneo, pois se desenvolvena base por contradições estruturais entre as relações deprodução e a provisão dos meios necessários à reprodução daforça de trabalho, impondo limites, cuja resolução independeda concepção espacial da cidade em si, enquanto modelo idealdescolado da fonnação social. Noutro viés, Kropotkin (1842-1921) vai radicalizar a noção de controle, afirmando:"regulamentar. tratar de prever e ordenar () todo seriasimplesmente criminoso" (citado por Choay, op. cit.:36).Deste modo, na sua visão anarquista de mundo, imaginar umacidade ideal torna-se, no mínimo, um exercício inútil.

Está claro, os sem-modelo demonstram sempre ainviabilidade de se estabelecer uma sociedade perfeita pordecreto. E, mais, de antemão, a cidade real sendo fruto doprocesso social, não é algo cujo futuro possa ser rigorosamente

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previsto, esgotando-se no campo das fantasias as bem-intencionadas concepções dos socialistas utópicos. A vontadede transformação estrutural, revolucionária, preenche a noçãode projeto.

A materialização da utopia - embora enfraquecida nacontemporaneidade - tem exercido historicamente umamotivação que estimula a imaginação de propostas visandotransformar a realidade, não como uma falsidade ou algoirrealizável e em contradição com a realidade, mas comouma hipótese apontando um deslocamento de sua tônica, ouseja, a "passagem da Utopia na direção da Eutopia"(Coelho, op. cit.:94). Aí não é o modelo o que importa, mas,sim, entender que a realidade não é homogênea, equilibradae harmônica; muito pelo contrário, é plural e multiforme,sendo o próprio projeto originário da tradição utópica tambémimperfeito, carecendo de outro que o corrija, e outro, e maisoutro, mesmo quando as distopias proliferam por todos oslados. O princípio, já assinalado por Freud "é o do prazerque domina o aparelho psíquico desde o momento inicialdo indivíduo" (Coelho, op. cito:97), e sequer é preciso elaborar"um cálculo do prazer" (Fourier) para a admissão de quenão se trata de um vício o desejo das coisas.

Neste viés o projeto - enquanto desejo - é sempre umacoisa que adquire diferentes estatutos face à intencional idadehumana e, tal como a realidade, assume diversas formas,conforme a consciência do sujeito frente aos objetos. A rigornão se pode falar de uma realidade, mas de realidades, cujapluralidade decorre de ser o homem um ser não passivo, postoque é ele o próprio construtor do mundo, edificador da suarealidade. Através das ciências, filosofia, arte e religião, quetambém possuem suas verdades e estatutos legitimadores, ohomem comunica-se, relaciona-se com o mundo. Portanto aidéia de homem uno, indivisível, é uma representação, não éreal.

De certo modo, não existe um mundo em si, mas simuma multiplicidade de mundos criados a partir da condiçãohumana, conforme os pontos de vista dos sujeitos. Logo, averdade é algo relativo à construção de cada saber específico,intermediada pelo meio simbólico criado pela linguagem,através da palavra na construção dos conceitos.

Então desvelar a cidade real implica uma consciência sóalcançável quando se vai além da visão primeira, imediatista,circunscrita a um universo de significação mediatizado pelapré-noção, pelo preconceito - ou seja, aquilo que antecede osconceitos propriamente ditos. O real é sempre produto deum jogo entre a material idade do mundo e os limites designificação (da linguagem) utilizados para referenciá-10, tanto envolve a consciência (social) como oinconsciente (do indivíduo).

Tal condição, inerente a qualquer área do saber, demarcaa impossibilidade de as ciências humanas serem exatas e

previsíveis, sobretudo quando se sabe que os cientistas vàoconstruindoa realidade científica em visões compartimentadaspor áreas ou campos de atuação, cuja totalidade não dependeda soma ou justaposição das partes. A tendência tem sidoacreditar na impossibilidade de construção de uma ciência queabranja todas as realidades, como um todo uno e indivisível,baseada em leis férreas e teorias que abriguem tudo aquiloque existe. O real é, portanto, um conceito humano mais afeitoà filosofia; não é tarefa para ciências específicas ou artesparticularizadas, como acreditavam os primeiros utopistas ealguns adeptos da Teoria Geral dos Sistemas (Bertalanffi. 1970).

A esta altura pode-se inferir como inadequado separar - anão ser para fins didáticos, tal como se faz com a forma eseus elementos - as noções de sujeito, método e objeto, noprocesso de apreensão, análise crítica e projetação da cidade.Ademais os métodos gerais disponíveis - axiomáticos,hipotético-dedutivos, indutivos, dialéticos, análise-síntese.experimentais ou hermenêuticos - não inviabilizam por si aspossibilidades heurísticas de um método aberto às descobertasao longo de um trabalho intelectual qualquer.

Feyerabend (1974) tem sido um dos críticos implacáveisno que se refere ao papel tradicional do método na fonnulaçãodas técnicas científicas, na medida em que a ciência descaltaa intuição e a ocorrência do acaso como fatores importantese quiçá preponderantes no surgimento de novas teorias. Aseu ver, a descoberta das teorias é um processo criativo, emque somente a posteriori se dá, de fi:no,uma formalização/explicitação do método. visando à sistematização efundamentação da teoria. O que dizer do projeto?

Como decorrência, a metodologia enquanto o estudo dosmétodos apenas mobiliza, a rigor, nos diversos campos dosaber, os fundamentos e a validade do corpo teórico que ajudaa descrever e/ou explicar um objeto. É óbvio que, nas etapasde análise, é substancialmente mais clara a recorrência amétodos já experimentados; entretanto, no campo daproposição, do ato projetual propriamente dito, como exercícioda imaginação criadora, é sempre dúbia a passagem entre ateoria que explica o objeto e a construção imaginária de umaforma urbana expressa num vir-a-ser. Esta condição admiteparadoxos entre sujeito, método e objeto, que transcendem ocampo racional e tangenciam outras dimensões do processocriativo, antes restrito aos procedimentos nas artes e,contemporaneamente, tido como afeito a qualquer tipo desaber. Criatividade é algo indispensável à reconstruçào dasleituras e olhares, ampliando a crítica da visão de mundo deuma época, seja centrada naquilo que Marx chamouconsciência - não alienada -, seja naquilo que Foucault (1981)vai denominar episteme - que permeia os vários saberes.

Pelo exposto, cidade ideal, imaginação e realidade de certomodo são conceitos indissociáveis no pensamento do arquiteto-urbanista, tal como diz Argan: .'Todavia sempre existe uma

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cidade ideal dentro ou sob a cidade real, distinta destacomo o mundo do pensamento o é do mundo dos fatos.[...]A idéia de cidade ideal está profundamente arraigadaem todos os períodos históricos. sendo inerente ao carátersacro anexo à instituição e corifirmado pela contraposiçãorecorrente entre cidade metafísica ou celeste e cidadeterrena ou humana". (Argan, 1969:73.)

Do ponto de vista da forma, e como isto se processa naimaginação, a imagem da cidade modelo aparece semprerelacionada com aquelas culturas nas quais representação!imitação foi ou é modo predominante de operação artística,sempre concebida como imitação de um modelo, que tantopode ter como paradigma a natureza, as formas do passadoou de um futuro imaginário, mesmo que remoto (nastecnotopias. p. ex.).

Neste viés. a forma urbana da cidade ideal aparecesempre como expressão representativa de valores,conceitos, atributos qualitativos. de uma ordem urbanísticaque reflete uma ordemsocial que se contrapõe àcidade real, explícita ouimplicitamente criticada erecodificada. Por outrolado, a forma urbana dacidade real é também umaexpressão de valores.conceitos, atributos, etc.,só que, dialeticamente, asrelações entre qualidadee quantidade, muito maisproporcionais e ajustadasno passado, são hoje,contemporaneamente.uma situação antitética.na qual está a base detoda a problemáticaurbanística ocidental(Argan, op. cit.:74).

Deste modo, amudança das quantidades(espaços, pessoas, fluxos)altera qualitativamente osatributos da forma noespaço-tempo, coisa queevidentemente os mode-los de cidade ideal nãoconseguem superar, pois.na prática,sempre é possíveldesenhare repetiro mesmo esquemanuma maior ou menor dimensão, transformando o modelonummódulo que se repete, sejaeleuma trama em xadrez, um esquemaradioconcêntrico, uma estrutura fisica linear, estrelar, etc.

Certamente por isto, por se desconhecer a lógica entremúltiplos e submúltiplos formais, em que mudanças nasdimensões (escala) alteram a essência, é que proliferam váriosparadoxos entre qualidades e quantidades, imaginadas sem seatinar para seus graves desdobramentos no mundo real.Ademais a cidade real reflete as circunstâncias contraditóriasde um mundo não unitário e fragmentado. comum às grandescidades, enquanto a cidade ideal é imaginada em modelos emódulos, cuja compartimentação é o que permite controlar assituações - tipo laboratório in vitro -, afastando as perturbaçõesoriundas do imprevisto, da aleatoriedade, da complexidade dosfatos em sua concretude mundana.

Então pode-se acordar com Argan ao sintetizar: "Dizemos.portanto, que a farma é o resultado de um processo. cujoponto de partida não é a própria/arma. A cidade não éGESTALT mas GESTALTUNG. No entanto. sendoóbvio que a cidade é uma construção e que o pontode partida de toda construção é a construtibilidade.

antes de considerar acidade em relação acategorias estéticas, épreciso considerá-Iaem relação às técnicasque a tornam nãoapenas concebível.mas projetada, e.portanto, logicamente,em relação aos procedi-mentos e às técnicas doprojeto. " (Argan. op.cit.:75.)

Sem nunca esquecer,é claro, que uma cidadenão se reduz a ser apenaso produto das técnicas deconstrução e que o projetonão pode tudo controlar.

Em síntese, a formaurbana se expressatambém pela açãointencional do desenho.do desígnio, do projeto.mas é apenas campointermédio entre oidealizado (ideal) e orealizável (real), onde oato criativo, para não ser

alienado, não pode erradicar a razão em nome da imaginaçãoe vlce-versa.

Ora, mas a noção de forma urbana no processocomunicativo é sempre algo indissociável de um modo de

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representação da cidade. Isto implica, para o estudo da forma,que a iconografia apenas simboliza e fixa momentos de umarealidade, que, no fundo, representa imagens de um projetosobre a cidade, mesmo quando se refere a um passado remotoou recente. Pois do passado, tal como do futuro, e mesmo dopresente, o que se retém na representação é uma supostainstantaneização de realidade, imaginada, reproduzida porimagens estratificadas como momentos de um processo maior.

Sabe-se do papel da perspectiva como instrumento derepresentação da organização espacial e do congelamento daforma tridimensional comoflashes estabilizados de ângulosvisuais adredemente selecionados da suposta realidade. Sabe-se do papel do cinema (e do vídeo) na incorporação domovimento e do tempo na quadrimensionalidade do espaço.Sabe-se mais contemporaneamente dos recursos dacomputação gráfica na geração de imagens dinâmicas, cujasrotações sugerem movimentos do observador no espaçovirtual. Mas, desde Zevi (1963), sabe-se que a realidade doobjeto não se esgota nas três dimensões da perspectiva, e,para representá-Io integralmente, ter-se-ia de produzir umnúmero sem fim de perspectivas de infinitos pontos de vista.

Entretanto a conquista da quarta dimensão, ou seja, apossibilidade de introduzir o tempo na representação doespaço-forma, no século XX, não tem sido suficiente paradesfazer a crença dos artistas do século XV, que imaginavamter o domínio sobre as dimensões da arquitetura na medidaem que possuíam um método (a perspectiva) de representá-

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Ias, sendo equívoco dominante na projetação reduzir tudo àrepresentação da fonna urbana. Do edifício à cidade, da utopiaà realidade construída de fato (vide Brasília e trechosmodernos das grandes cidades), a representação congela aimaginação.

Se, de acordo com Zevi, (op. cit.:22) "a história daarquitetura é a história àas concepções e!'Jpaciais". nãorestritas à caixa do edifício em si e seus espaços internos, masrelacionando-o com o ambiente - "a cena na qual sedesenvolve nossa vida" -, o que se coloca claramente emevidência é a relação edifíciolcidade em seus vários níveisde entendimento, abrangência, significados, ou seja, fala-sede contexto, de modo amplo, genérico, e não só do físico triou quadridimensionai.

Assim, as plantas, as fachadas, as fotografias, as maquetes,os vídeos, etc., como meios de representação, trazem em si,cada um, uma compreensão específica necessária, sempreaprofundável, mas insuficiente para uma representaçãocompleta, integral, de todas as dimensões do espaço-forma.Equivale dizer: nunca substituem "a experiência direta doespaço", que só pode acontecer no espaço material concreto,e, nem mesmo a condição do espaço virtual cibernética,computadorizado, substitui a experiência do espaço vivido.

Tal recorrência ao discurso de Zevi é necessária para fixara noção de que "0 conceito de arquitetura como arTeatemporal já está superado". A noção de espaço-tempo, jáadquirida pela ciência moderna, substitui a concepção espacial

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da arquitetura como algo estático, no viés do espaço absolutonewtoniano, em que o ordenamento vem da idéiade não tensão,harmonia e equilíbrio na ordem das coisas. Esta noção éhabitada pela estética tradicional, idealista, ainda centrada nasvárias manifestações culturais oriundas das artes plásticas oubelas-artes, e de pouca significação na contemporaneidade.

A volumetria isolada e perspectivada do Renascimentode certo modo está presente nos modernos (Ville Radieuse,Brasília) quando e rompida a narração contínua do barrocoentre espaço do edifIcio. da rua ou da praça, que criava umaidentidade entre urbanismo e arquitetura. Sobretudo nasconcepções (modernas) de cidade ideal, desdobradas nacidade real, os espaços externos aos edifícios na verdade sãoos espaços internos da própria cidade. Entretanto, ao seremvistos como "coisas" descoladas da realidade do edifício,mostram uma outra concepção de espaço urbano: um "vazio"onde se dispõem os edificios como objetos isolados, masordenados numa disposição tal que, em tudo e por tudo,favorecem os ângulos e perspectivas projetuais (renascentistas)que os valorizam, não pelo uso ou apropriação, mas pelacondição de representação estética supostamente significante.

Neste sentido, a lógica da cidade real enquanto produçãosubmerge na lógica da cidade ideal imaginária a partir darepresentação perspectivada, que congela a forma de umespaço absoluto e não alcança o espaço-tempo relacional. Aía cidade ideal moderna. sobretudo naquela vertenteprogressista, tida como hegemânica e que prevaleceu noocidente como linguagem e expressão da modernidade, emverdade não incorporou um caráter de material idadeadequado aos avanços do domínio do conhecimento sobre arealidade, posto que se limitou em demasia a um tipo derepresentação da forma geométrica, sabidamente umarepresentação abstrata, em detrimento de um maior dom íniosobre a(s) lógica(s) que preside(m) a construção do espaçoconcreto da cidade como produto coletivo.

Limitando-se ao aperfeiçoamento da representação doespaço-forma, mesmo quando dominando e incorporando otempo e os movimentos, as concepções de cidade ideal comoespaço virtual são insuficientes para superar a noção platônicade espaço como extensão, como vazio, como continuum, emcontraposição à noção aristotélica - igualmente antiga - deespaço como lugar, cuja significação deriva não apenas darepresentação, mas da interpretação, da teoria crítica,realimentada na prática da cidade produzida materialmentepelo corpo social, no domínio do território-natureza comoespaço adaptado relacionado à cultura-natureza.

É plausível acordar que a interpretação espacial não éuma interpretação específica - política, social, científica, técnica,fisiopsicológica, musical, geométrica ou formalista, tal comoclassificadas por Zevi (op. cit.) -, mas é um tipo deinterpretação teórica que não exclui qualquer uma delas, pois

na verdade necessita de todas elas na condição de críticacomplementar, indispensável. E, mesmo concordando-se que,em arquitetura e urbanismo, os efeitos psicológicos e os valoresformais são, de fato, inerentes à material idade do espaço,não é demais repetir: toda interpretação teórica do espaço-forma que não pretenda ser apenas fenomênica, limitada àsrelações de identidade ou de diferenciação provenientes dosefeitos e dos valores, deve incluir criticamente o sentido doconteúdo social intrínseco à forma urbana, em qualquer escalaou nível de abrangência, do edifício à rua, do bairro àmetrópole, da cidade à região.

Não se trata de um prolongamento mecânico do tipo:dada uma formação social, reproduz-se linearmente umaforma urbana, mas de se entender que arquitetos e urbanistas,como criadores de formas, objetos, espaços, se constituemeles mesmos "uma pane de seu tempo, de sua sociedade:provenientes de um sistema de formação" (Roncayolo.1988:44), podendo-se mesmo distinguir a forma material daforma conteúdo.

Da forma material. correspondente a uma organizaçãosocial, pode-se encontrar uma variedade infinita oumodalidades de existência concreta de objetos; mas formaconteúdo se expressa pelas dimensões culturais, quepossibilitam a comunicação (formas-signos, formas-esquemas,formas-obras, formas-símbolos, etc.), émpiricamentearticuladas aos fatores de produção e à reprodução da forçade trabalho.

Tudo isto remete a uma complexidade na interpretaçãodo sentido do conteúdo social, pois deriva, em últimainstância, de uma reflexão mais empírica da forma urbanacomo forma materializada e como forma meio, que perpassatanto as noções de forma versus valor de uso, quanto de forma,versus valor de troca, indissociáveis, no domínio doconhecimento do espaço, do conceito operacional de produção,circulação, gestão e consumo, no meio urbano.

Por isto, afirma Genestier: "aproblemática de seu estudoem essência é extremamente complexa, caso ela impliqueo pensar. ao mesmo tempo o abstrato e o material. ofísicoe o conceitua!, inexorave!mente intrincados" (Genestier,1988:9). Logo, a amplitude de tais conceitos não se podedistanciar da história, nem da filosofia, como se a forma fossealgo inerte e imóvel, sem rupturas conceituais e empíricas como mundo real, fazendo tábula rasa - na imaginação - dasespecificidades culturais na pluridimensionalidade da vidasocial e individual.

Conceitualmente, deve-se falar não de um mundo, masde visões de mundo; não de cultura, mas de culturas; não deuma verdade absoluta, mas de verdades no sentido de relativizaros termos face à evolução do conhecimento, bem comoestimular a imaginação, como faculdade criativa do pensamentoque produz representações ou imagens, sejam provenientes

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da imaginação reprodutiva - a partir daquilo que sepercebe -, sejam decorrentes da imaginação criadora - semse limitar a uma função cognitiva a partir de objetos existentes.A questão, portanto, da racional idade na práxis não é eliminara imaginação no processo de análise e projetação da cidadereal, mas evitar confundir imaginação com ilusão (kantiana)ou alienação (marxiana).

No caso da ilusão, a rejeição é por ser a mesma resultadode um falso entendimento da realidade - tomando comoverdadeiras formas a priori da intuição, sem o domínioconsciente que estrutura o conhecimento (disponível) darealidade. Assim, a percepção primeira, direta, deve sercomplementada por outras apreensões que alcancem níveisda estrutura profunda da forma urbana, sem se limitar àestrutura superficial, reduzindo a cidade a uma paisagemou cenário de objetos justapostos, que não interagem entre si,nem com o território próximo e distante. Isolando-a, comona utopia, de Platão ou T. Morus, provavelmente se chega alugar nenhum.

No caso da alienação. a rejeição advém do imperativode circunscrever a imaginação no rol das possibilidades deestímulo à criatividade no uso da intuição; daí ser necessárioo crivo da análise crítica (o ratio) de modo a não se ocultar,banalizar e esterilizar a própria visão de mundo. Não se tratasó da alienação observada na técnica pela técnica no atoprojetual, mas da alienação do ego em relação ao própriomundo, em que o sujeito se perde na sua produção (Marx sefixou mais no trabalho) como arte de construir a cidade, que,como já se viu, é um produto coletivo e não obra isolada.

Logo, a imaginação não se confunde - ou não deve seconfundir - com ilusão e alienação, e suas representações,para serem justificadas, passam pela crítica, vista como juízoapreciativo em vários níveis: filosófico, científico, artístico,etc. Sua legitimação ética face à realidade é uma derivaçãodo campo racional, cujo rigor analítico crítico não devesubmergir na ideologia (Chauí, 1991) como representaçãode certos valores, concepções e práticas sociais quereproduzem uma espécie de mundo invertido, servindo ainteresses localizados como se refletissem os interesses dasociedadecomo umtodo - fatocomum na sociedadede consumo.

Como se vê, uma maior aproximação do projeto com arealidade plural e multifacetada da cidade real implicadesomogeneizar o pensamento dominante, atrelado a ideologiasque legitimam os a priori do senso comum, perpassandocrenças, preconceitos e significações embutidas no cotidianodas pessoas - que afetam a imaginação, propiciando ilusões ealienações - mediatizadas no processo comunicativo geral(mídia, educação, política) visando manter a coesão social e oexercício da dominação (Webber, 1989).

Tais questões, se vistas historicamente desde a ótica deum Alberti (1966), certamente reabrem a discussão de quais

Karl Marx (1818-1883)

seriam as reais condições preliminares, na sua gênese, capazesde explicitar os modos como se organiza e realiza a vontadede construir do ser humano.

"Ora, a idéia da qual decorre a exigência de construir.a dimensão em que se enquadra a atividade do arquitero,é a cidade: e esta, para um humanista como Alberti. nãoera apenas uma construção de pedras e tijolos, mas umaentidade histórico-política. " (Argan, op. cit.: 106.)

Nisto, Alberti não só se distingue de Vitruvio e seus Dezlivros de Arquitetura, como, com seu De Re Aed(ficatoria(op. cit.), institui o primeiro tratado de urbanismo, não restritoà arquitetura isolada, mas abrangendo a cidade real (Choay,1985).

Se o Estado para Vitruvio resumia-se ao império deAugusto, para Alberti funda-se o Estado na própria cidade.E a cidade albertiana resulta de uma reflexão sobre osignificado de Roma e Florença - a primeira como a urbemais antiga, a segunda como a mais moderna das cidadesitalianas. Nisto, sua teorização parte do existente, do mundoreal, onde a história é um conjunto de relações espaço-temporais, em que espaço não é um vazio ocupado por objetosou corpos sólidos, mas é algo construído, resulta de decisõese atos e insere-se como um fator que modifica a natureza deforma intencional, cultural.

É evidente que o método albertiano sofreu mutações etem variantes na condição moderna, na medida em que sedescolou a cidade ideal- via modelos ideais imaginados combase num espaço abstrato como um a priori - daquelasregras historicamente fundadas nas relações sociais, em que

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a pragmática do espaço construído se dá sob a égide deuma gestão política, autoritária ou democrática.

De resto, a fragmentação contemporânea do pen-samento urbanístico em vertentes as mais díspares eparadoxais possível aponta a necessidade de revisitar agênese dos conceitos, das regras e dos modelos espaciais,como forma de não se repensar o já pensado e imaginar ojá imaginado, como utopia alienada, cuja única novidadeé revelar, de novo, algo sem sentido ou de sentido social oupolítico duvidoso.

A noção de domínio sobre um território, extraídade Rolnik (op. cit.) no início deste percurso nacompreensão de cidade, possui, evidentemente, váriosdesdobramentos teóricos. Entretanto, ao revisar osinstauradores do pensamentoutópico sobre a cidade, vê-se que a imaginação decidade ideal parte de umcontexto temporal (época)que, na contemporaneidade,não pode ser problematizadono mesmo sentido: social, po-lítico e mesmo físico-espacial.

Contudo algumas questõespostas por Alberti continuamatuais:

a) não descolar cidade idealdo contexto histórico dacidade real;

b) teorizar a cidade a partirde categorias metodicamenteimbricadas na estruturaurbana;

c) não privilegiar osmodelos em detrimento doprocesso de construção dacidade real, naquilo que sedefiniria hoje por regras ouprincípios;

d) politizar a gestão daurbe apoiada num sólidoaparelho executivo;

e) não deslocar a concep-ção imaginada da possibilidade material de concretizaro projeto.

Evidentemente, o contexto albertiano em suas determi-nações, condicionantes e representações materializadas nãopode ser transposto Iinearmente para a contemporaneidade.Hoje, a industrialização maciça da produção e a globalizaçãoda economia tematizam o processo de urbanização e as

relações cidade/cidade numa escala jamais conhecida,sendo provável a necessidade de se redefinirem conceitose se ampliar metodologicamente o escopo inicial.

A cidade capitalista contemporânea possui traços eregulações próprias que a distinguem da cidade renascentista.A renda fundiária, a especulação imobiliária, a segregaçãoespacial, a intervenção do Estado, a luta pela ocupação doespaço, a influência dos meios de comunicação na formaçãode opinião e disseminação de ideologias, os avançostecnológicos em geral - transportes, infra-estruturas,comunicações - a massificação da(s) cultura(s), adiversificação das manifestações localizadas regionais, asnovas regulações entre capital e trabalho resultam de umprocesso muito mais complexo e heterogêneo que o contexto

antes aludido. A quantidadee diversidade de coisas(objetos) produzidas alte-ram significativamente ospróprios limites da ima-ginação, na medida em queos avanços tecnológicossuscitam crescentementepossibilidades antes indis-poníveis para um repensaro meio urbano.

Por outro lado, a grandecidade "passa a ter umacaracterística que era atéentão peculiar aos portos- a de se constituir sobre-tudo por uma populaçãoestrangeira, quando muitode passagem" (Rolnik, op.cito:79) que, complementadapela mobilidade interna dosmoradores. desterritorializa,em parte, o antigo sentidogre-gário do morador vinculadoa um lócus. Isto nãodescarta a persistência debairros tradicionais, commenor rotatividade doshabitantes, situação domi-nada por uma realidade

muito mais dinâmica e complexa.Uma cidade ideal, na contemporaneidade, teria de agregar

questões outras, cujo desígnios são diversidade, pluralidade eincertezas, como desdobramentos advindos da cidade real quepossui uma estrutura material esgarçada, num domínio territorialmultifacetado, onde a arquitetura do espetáculo reflete aquiloque Baudrillard (1968) denomina de simulação e simulacro,

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e o sentido da conduta social webberiana se dilui na açãoreativa do eremero.

Mas a cidade real é ainda meio privilegiado de circulaçãoe consumo, que, ao lado da informatização das comunicações,vai superar as antigas noções de espaço-tempo, cujacompreensão sugere novas relações de distância,enfraquecendo a percepção direta do espaço-forma comoparadigma da imaginação criadora, afetando nossa atenção esensibilidade, agora desestabilizadas pela compressão doespaço-tempo (Harvey, 1993), sugerindo o ilusório como oreal, banalizando as formas dos objetos e seus conteúdos.

A dispersão no território dominado não mais aconteceapenas pela expansão ilimitada da cidade real, mas pelainformatização dos processos comunicativos, cujos bancosde dados podem estar em qualquer lugar - na cidade ou nocampo - rompendo a lógica tradicional das teorias locacionaisassentadas na produção e no consumo. A aceleração dos meiosde circulação de bens e pessoas não encontra correspondêncianos padrões ainda vigentes de gestão, atrasados e arcaicos.

Claro, tudo isto exacerba a heterogeneidade e osparadoxos, particularmente visíveis sob a forma de guetos,organizados ou não, em lócus tipo favelas, cortiços, invasões,conjuntos habitacionais, etc. Esta situação em muito seaproxima daquela que Rouanet (1993) qualifica como de riscode um retorno à barbárie, caso as questões não sejamproblematizadas na busca de se dar sentido social substantivoàs coisas.

Óbvio, então, que definir se a essência do urbanismo éarte ou ciência já não faz sentido, nem interessa pelo

esquematismo cultural embutido na questão. Contudo ainda éuma disciplina assentada naqueles componentes vistos porArgan (op. cit.) como: a) componente científico, na análiserigorosa sobre a realidade; b) componente sociológico, ligadoàs estruturas sociais e seus desenvolvimentos; c) componentepolítico, porque influi sobre estes desenvolvimentos; d)componente histórico, considerando os processos materiaisnuma dimensão temporal; e) componente estético, vinculadoàdeterminação das estruturas formais. Da inter-relação entretais componentes o que se espera é uma resultante, cujarepresentação sintética (filosófica) desvele uma situaçãosocial de fato, da qual se possa extrair o sentido do projetode mudança, inclusive nos limites a que fatalmente estarásubmetido no mundo real.

Isto posto, retoma-se uma questão fundamental jácolocada por Argan (op. cit.): seria possível um projeto urbanosem orientação ideológica? Ou seja, um projeto sem finalidadeou sentido outro que não se reduza à realização do efêmero?

Outra questão derivada da anterior seria: com a crise dasideologias hegemônicas oriundas do século XIX - desdobra-das daquelas visões de mundo centradas no capitalismo eno socialismo -, qual seria o viés da contemporaneidade najustificação do sentido social do espaço-forma da cidadeatual?

E, finalmente, da descrença nas vanguardas como mitosde vertentes culturais de validade universal, pergunta-se: queteorias sobre cidade e urbanismo seriam capazes dedesestabilizar as práticas, ainda assentadas num referencialde desenvolvimento humano que não se concretizou, bem como

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enfraquecer as manifestações formalistas cooptadas pelaeconomia de consumo?

Tais questões não estão aqui resolvidas e carecem dedesdobramentos, servindo apenas de mote ou pretexto para-à guisa de conclusão - se polemizar: o mercado não tem sidocanal adequado de intermediação entre a imaginação criadora,comprometida com o sentido social da cidade (ideal ou real),e a transformação dos indivíduos e seu habitat. E o Estado, oque fazer dele? Eisoutídquestão, tãoantigacomoacídade ideal.

Talvez, aqui, o mais indicado seja voltar ao diálogo deMarco Polo com Kublai Khan, citado no início do texto,quando, referindo-se a uma segunda opção - como recusa aaceitar o inferno tornando-se parte dele -, diz: saberreconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno,e preservá-Io, e abrir espaço, Dito de outro modo, tornar oinvisível em algo visível, material, palpável, desvelando-o etransformando-o.

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