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Ciência e Resistência - Haity Moussatché: um otimista inveterado Paulo Gadelha * Wanda Hamilton ** *Coordenador da Casa de Os- waldo Cruz. **Pesquisadora do projeto Massacre de Manguinhos Reintegrado aos quadros da Fundação Oswaldo Cruz, junto aos outros nove colegas cientistas cassados no "Mas- sacre de Manguinhos" na solenidade festiva do dia 15 de agosto último o professor Haity Moussatché deve, ainda este ano, preparar suas malas, despedir-se dos amigos vene- zuelanos e voltar ao Brasil para ficar. Na bagagem, a concretização do sonho de voltar definiti- vamente para o Laboratório de Fisiologia do Instituto Oswaldo Cruz que ele conheceu em 1934, ainda estu- dante de Medicina. Ali é que ele começou a se dedicar às experiências científicas que o absorvem até hoje e a ensinar a muita gente, atualmente trabalhando em diversas áreas da Ciência, até 1970 quando a cassação pelo AI-5 fez com que se retirasse. Nos últimos 15 anos, o exílio transferiu suas atividades científicas para a Venezuela onde tornou-se professor e res- ponsável pelas investigações da Universidade Centro Ociden- tal de Barquisimeto. Em 1985, fim do rigime militar, novas perspectivas. E o professor Haity Moussatché, de passagem pelo Brasil, aceita o convite para remontar o Laboratório de Fisiologia que ficou fechado por todos estes anos. Desta forma, a atual administração da Fundação Oswaldo Cruz dava os primeiros passos para atender ao seu compromisso de resgatar o patrimônio histórico da Instituição e trazer de volta os 10 cientistas cassados pela revolução de 64. cassados pela revolução de 64. Antes de voltar para a Venezuela no início de 1986, em reunião de despedida na FIOCRUZ, na presença dos colegas cassados, o cientista de 76 anos entregou à presidência do Instituto relatório sobre os projetos de pesquisa em anda- mento e as perspectivas de implantação do laboratório. A expectativa do professor Haity Moussatché é dar continui- dade a estas investigações quando chegar para ficar - o que ele pensou, em seus tempos de exílio, nunca mais fosse pos- sível acontecer. No período em que passou pelo Brasil, ano passado, o professor Moussatché conquistou a todos com quem con- viveu. Carisma é o que não falta a este humanista romântico e empreendedor. A franqueza e o espírito crítico e questio- nador convivem naturalmente neste homem, sempre gentil

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Ciência e Resistência - Haity Moussatché:um otimista inveterado

Paulo Gadelha *Wanda Hamilton **

*Coordenador da Casa de Os-waldo Cruz.

**Pesquisadora do projetoMassacre de Manguinhos

Reintegrado aos quadros da Fundação Oswaldo Cruz,junto aos outros nove colegas cientistas cassados no "Mas-sacre de Manguinhos" na solenidade festiva do dia 15 deagosto último o professor Haity Moussatché deve, aindaeste ano, preparar suas malas, despedir-se dos amigos vene-zuelanos e voltar ao Brasil para ficar.

Na bagagem, a concretização do sonho de voltar definiti-vamente para o Laboratório de Fisiologia do InstitutoOswaldo Cruz que ele conheceu em 1934, ainda estu-dante de Medic ina . A l i é que ele começou a se dedicar àsexperiências científicas que o absorvem até hoje e a ensinara muita gente, a tua lmente t r aba lhando em diversas áreas daCiência, até 1970 quando a cassação pelo AI-5 fez com quese retirasse.

Nos últimos 15 anos, o exílio transferiu suas atividadescientíficas para a Venezuela onde tornou-se professor e res-ponsável pelas investigações da Universidade Centro Ociden-tal de Barquisimeto. Em 1985, fim do rigime militar, novasperspectivas. E o professor Haity Moussatché, de passagempelo Brasil, aceita o convite para remontar o Laboratório deFisiologia que ficou fechado por todos estes anos. Destaforma, a atual administração da Fundação Oswaldo Cruzdava os primeiros passos para a tender ao seu compromissode resgatar o patr imônio his tór ico da Inst i tu ição e trazerde volta os 10 cientistas cassados pela revolução de 64.cassados pela revolução de 64.

Antes de vol tar para a Venezuela no início de 1986, emreunião de despedida na F I O C R U Z , na presença dos colegascassados, o cientista de 76 anos entregou à presidência doInstituto relatório sobre os projetos de pesquisa em anda-mento e as perspectivas de implantação do laboratório. Aexpectativa do professor Haity Moussatché é dar continui-dade a estas investigações quando chegar para ficar - o queele pensou, em seus tempos de ex í l io , nunca mais fosse pos-sível acontecer .

No período em que passou pelo Brasil , ano passado, oprofessor Moussatché conquistou a todos com quem con-viveu. Carisma é o que não falta a este humanista românticoe empreendedor. A franqueza e o espírito crítico e questio-nador convivem naturalmente neste homem, sempre gentil

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e dedicado. Entre os seus sonhos, ressalta o propósito dodentista apaixonado: utilizar a ciência e a tecnologia paraerradicar a fome e a miséria do mundo. E ele diz isso comtodas as letras: - Não sou dos que crêem que a solução domundo aconteça através da política, mas através da ciênciautilizada para o bem social da humanidade.

Na entrevista Haity Moussatché discorreu sobre os maisvariados temas: suas origens greco-judaicas e a imigraçãocom a família para o Brasil em 1912, sua formação intelec-tual desde menino até as primeiras pesquisas científicas,contando como foi sua opção pela fisiologia; a experiênciade cassado e exilado em um país latino-americano. Ele nãoescondeu seus pontos de vista políticos e falou de sua con-cepção sobre a ciência pelo que é, sem dúvida, um apaixo-nado. Haity Moussatché, segundo sua própria definição,"um otimista inveterado".

- Fale um pouco de suas origens e formação familiar.

- Sou do dia 21 de fevereiro de 1910. Tenho hoje 75anos - o que já é uma longa história. Nasci numa Aldeia dacidade de Smirna que fica numa península e que pertenceuà Grécia por muito tempo. Naquela região o povo falava ogrego, o turco pela proximidade da Turquia e o espanhol.Pertencíamos a uma colônia de judeus sefaraditas. Eu melembro mui to pouco daquela região porque vim para o Brasilcom dois anos de idade. Assim que, realmente, sou brasi-leiro. Meu pai era algo parecido com um rabino, no sentidode fazer todas as coisas ligadas à religião - a circuncisão,por exemplo . . . até que passou a ser ateu e nos educou semreligião.

Eu encont rava , na b ib l io t eca de meu pai uma porção delivros com relação à biologia, como a História da CriaçãoNatura l , de Ernest Heckel; a Origem das Espécies, deDarwin . . . Como fui educado sem religião, já comecei aquerer entender os fenômenos que se passam no mundo.Desde cedo fui uma pessoa muito dedicada aos problemasintelectuais. Nada tenho contra a religião, apenas não atenho para uma explicação do mundo. Para mim, as coisasestão dentro de um ponto de vista do que é chamado mate-r ia l is ta , mas eu acho que é tão e s p i r i t u a l quanto a crençareligiosa. Não sinto fal ta da religião para ser quem sou enada tenho contra a religião, apenas não a tenho para umaexplicação do mundo.

Sou o que sou graças a meu pai, pela sua maneira correta,séria, de levar os problemas da vida. Sendo um homem derecursos muito parcos - ele lecionava hebraico - teve queviver do comércio porque simplesmente lecionar não davapara viver. Mas ele fez questão que nenhum de nós seguissea carreira dele, de comerciante.

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Na verdade ele nem pensava vir para o Brasil e sim, paraa Argentina porque as notícias que se tinham eram de que afebre amarela matava a todos que por aqui aparecessem. NoOriente não se sabia ainda que Oswaldo Cruz tinha acabadocom a doença, mas quando meu pai chegou aqui verificouque era uma terra em que se podia viver perfeitamente.

- Seu nome, traduzido para o português, tem um signi-ficado especial?

- Meu nome era uma complicação social entre as pessoascom quem eu lidava, que não conseguiam pronunciá-lo. Nãosabiam pronunciá-lo com o 'H' aspirado e o trocavam por'R'. Haim em hebraico é vida e Haiate é uma adaptação parao turco que quer dizer água da vida. Haity é uma adaptaçãoque eu mesmo fiz. Eu achei que deveria mudá-lo um pouco."Está muito complicado, meu pai", eu disse. "Vou botarHaity porque por aqui tem uma Ilha, Haiti, e com isso estáliquidada tanta complicação".

- Em 1928 o senhor entrou para a escola de Medicina.Conte-nos como foi este período escolar, como foi sua deci-são pela Medicina?

— Se o senhor me permite, eu preferia voltar um poucoatrás. O último ano de meus preparatórios não fiz em Niterói.O ginásio que eu estudei não tinha História Natural, um dospreparatórios. Cursei no Rio , no Instituto Superior de pre-paratórios. Estudávamos Geologia, Zoologia, Botânica eMineralogia. Algumas aulas eram dadas no Museu Nacionale no Jardim Botânico. Também estudei Física e Químicanesse Instituto. Lá tive meu primeiro impacto. César Salles,o professor de História Natural. Ele era um homem incrí-vel e fez experiências simples para a gente ver. Como porexemplo, uma rã que ele abre, tira o coração, o coraçãobate espontaneamente e a gente fica admirado.

Aos domingos ele convidava os alunos para uma excur-são ao Jardim Botânico e dava aulas sobre as flores, animaise aquilo ficava gravado na memória da gente tremendamente.Isso me impressionou muito e foi daí que tomei minha pri-meira decisão: estudar História Natural e Zoologia. Mas gos-tei muito de Química e Biologia. Aí surgiu um problema.Eu queria estudar Química e queria estudar Biologia. Eunão podia ir para a Escola de Química porque era umaEscola de Química Industrial que não tinha Biologia.

Decidi fazer Vestibular para Medicina mas não gostavade Medicina. Estudava Parasitologia com grande interesse,passei com distinção. As aulas práticas eram às oito horas damanhã e nós chegávamos um pouco antes e ficávamos con-versando sobre Parasitologia até começar a aula. Um dia umcolega chamado Antônio Francisco Rodrigues de Albuquer-que, um colega e amigo de quem não poderia esquecer todo

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o nome, me disse: - Você gosta tanto de Parasitologia.Você não quer ver, além das aulas práticas que a gente teme vê correndo no microscópio, em fila indiana, um atrás dooutro . . você não quer ver as lâminas com mais detalhes?Você não quer ir ao Instituto Oswaldo Cruz?

E eu me batia, aos domingos, para o Instituto OswaldoCruz para estudar Parasitologia. Assim que eu apareci pelaprimeira vez no Instituto, no primeiro ano de Medicina. Nosegundo ano tive muita sorte. Depois de longo período forada Escola de Medicina, Álvaro Osório de Almeida voltavapara dar curso de Fisiologia. A primeira aula foi um deslum-bramento e daí pra diante minha idéia foi trabalhar comFisiologia. No terceiro ano procurei Carlos Chagas e EvandroChagas e disse que queria trabalhar no instituto. E eles acei-taram que eu viesse trabalhar no Laboratório de Análise Clí-nica. Vinha todo o pessoal da Baixada Fluminense e eramalária, anquilostomíase, etc., todo aquele pessoal na portado ambulatório do Hospital Evandro Chagas, como foidepois denominado o Hospital do Instituto. Fiquei quasedois anos trabalhando e aprendi a fazer diagnósticos demalária, verminose, exame de urina. Fui para a Escola noquarto ano ser assistente de Álvaro Osório, deixei o IOCe lá fiquei até me formar.

- O senhor residiu no IOC durante o segundo e terceiroanos de faculdade?

— Eu residi no Hospital Evandro Chagas dois anos. Ficavano Instituto o dia inteiro e somente ia às aulas práticas dealgumas cadeiras em que se exigia freqüência. Eu achavaque aprendia mais no laboratório fazendo exames e estu-dando nesta biblioteca fabulosa. Eu ia às aula do ÁlvaroOsório porque me interessava por fisiologia. No terceiro equarto anos quase não ia à Escola.

Eu não estava interessado em medicina, se bem que fuitrabalhar na assistência, aprendi um pouco de medicina parauma eventualidade. Naquela ocasião não havia postos parase trabalhar em fisiologia. Os únicos que haviam eram deassis tente da Escola que estavam tomados por dois amigosmeus. Eu era monitor e eles assistentes: o Thales Martinsque trabalhava aqui no Instituto e Couto e Silva, que depoisaté deixou a fisiologia. Então, realmente, meu interesse eraa fisiologia e investigação.

Eu queria era chegar ao fim do curso e, no sexto ano,disse a Álvaro Osório: - Olha, doutor Álvaro, eu não estouinteressado em fazer medicina, estou aqui como monitor dosenhor. Vou trabalhar em fisiologia, prefiro não me formar.E ele disse: "Não, não, não. Você tem que se formar". Efez um u l t ima to : "ou você se forma ou boto você pra fora".Não tive outra saída e terminei a medicina.

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— A maneira como o senhor se formou, assistindo àsaulas de Álvaro Osório e não indo a outros cursos me pareceque era como todo mundo fazia na época. Aquele que que-ria ser clínico ou cirurgião ficava junto de um professor eem geral freqüentava pouco a faculdade. Será que a coisamelhorou? Essa organização que se tem tentado dar noensino médico melhorou ou piorou?

- Quer saber minha opinião? Vou ter muita gente con-tra. Acho que piorou. Acho que essas exigências que se fazemhoje castram os alunos. Se um aluno não é capaz de pegarum livro e ler em inglês ou português, não é pessoa para estarem escola superior. Se ele precisa ir à aula para aprender, háuma deficiência mental nesse aluno. Eu ia pouco às aulas,estudava, fazia as provas e passava. É o mínimo que se podeexigir de um universitário

Pra que o professor? Pra estar nos hospitias. Você vai lá,discute com ele, examina os doentes, estuda. O professornão deve ficar só nos dando aula. Pode fazer seminários.Mas isso de ir lá, ter que seguir aquele cursinho, aquelasaulas, não.

- Existe a polêmica sobre a inexistência de um Depar-tamento de Fisiologia em Manguinhos na gestão OswaldoCruz. O primeiro laboratório do país, o dos irmãos Osório,surgiu com o apoio da iniciativa privada e, segundo Olímpioda Fonseca, não se tomou esta iniciativa no maior centro demedicina experimental naquele período porque não haviafisiologistas no Brasil. O senhor tem alguma explicaçãosobre a questão?

- Eu creio que polêmica não há. Quer uma prova deque já existiam flsiologistas e já começavam a ser conheci-dos até no exterior? Em 1917 morre o Oswaldo Cruz e olaboratório da Rua Machado de Assis, dos irmãos Osório,já estava organizado, com muitos trabalhos publicados ealguns de repercussão internacional. O que não é raro éque muita gente do Brasil é mais conhecida no exterior.Naquela ocasião Álvaro e Miguel Osório já eram bastanteconhecidos.

Em 1910 Miguel Osório fez um estudo e mostrou quea perna de um paciente, que estava paralisada por um aci-dente cerebral, tinha um sinal clássico dessa doença - oSinal de Babinsky. Esse sinal mudava suas características sese fazia anemia na perna referida. O dedo grande do pé, aoinvés de ir para trás, quando se fazia uma fricção na plantado pé, flexionava-se. É um sinal muito objetivo, de grandevalor diagnóstico. Isso agradou muito ao próprio Babinskyque estava vivo e se referiu a esta experiência.

Os dois já eram muito conhecidos por causa do labora-tório que Álvaro Osório organizou. Foi o primeiro labora-

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tório de Fisiologia do Brasil, montado na Rua Machado deAssis e sustentado pelo Cândido Gaffrée, um dos donos dasDocas do Porto de Santos e muito amigo do pai de Álvaroe Miguel Osório, um engenheiro e Diretor da Central doBrasil. Aliás, quando se fala nos irmãos Osório é precisolembrar da Dona Branca Osório de Almeida, depois BrancaFialho pois casou-se com o Dr. Fialho. Muitas vezes seesquecem de se referir a D. Branca quando falam do labora-tório ou da própria Fisiologia. Ela foi partícipe de algunsdos trabalhos e era quem se encarregava de fazer muito dasmedidas técnicas.

Álvaro montou o laboratório porque a Escola de Medi-cina fechava e não se permitia fazer pesquisa lá. Por volta de1910 ele tentou fazer investigações no laboratório da Escolae foi ao Diretor. O diretor simplesmente disse que investiga-ção lá na Escola de medicina, não. Que ele procurasse outrolugar. Álvaro tinha voltado pouco antes do Instituto Pasteure inclusive procurou por Oswaldo Cruz propondo a criaçãodo Instituto em Manguinhos, mas o tempo foi passando eele achou melhor montar um laboratório na casa dele.

Se o Olimpio da Fonseca não sabia e, se sabia, não davaa importância que havia, não é por falta de fisiologistas jáconhecidos. Não sei por que Oswaldo Cruz não aceitou avinda de Álvaro ou Miguel Osório para o Instituto logo . . .várias vezes ele se encontrou com Álvaro Osório e disse:"Olha, aquela tua proposta, estou pensando ainda". Issoestá em um discurso que Álvaro Osório fez e se refere à suaten ta t iva de vir para o Inst i tuto. O que importa e que, em1919, Carlos Chagas convida e Miguel vem formar o Depar-tamento de Fisiologia em Manguinhos.

- Vamos retomar a questão da implantação do Labora-tório de Fisiologia no IOC porque ela tem duas etapas, nãoé? Há a presença de Miguel Osório no início, depois ThalesMartins e Osório voltam em etapa posterior. Como foi adinâmica desta implantação?

— O laboratório era somente uma sala. Miguel Osóriolevou uma tesoura e uma pinça e Carlos Chagas mandoucomprar o material todo na Europa. Miguel Osório entrouno laboratório pensando nas coisas que sabia fazer e lheveio a idéia de uma experiência com a sensibilidade cutâneada rã. Isso foi contado por ele mesmo: "Eu fiquei pensandoo que se podia fazer uma vez que já estou no Instituto . . ."E ele se lembrou dos casos relatados num livro de Patologiade pessoas surdas, cegas de um olho, com problemas de sen-sibilidade cutânea. Eram crianças que nasceram com ano-malias.

A única porta para o exterior era o único olho que acriança tinha. As outras percepções sensoriais eram inexis-

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tentes ou tão elementares que não funcionavam. Ao sefechar o olho da criança, ela entrava num verdadeiro estadode torpor ou coma. E Miguel Osório se lembrou e disse:— O que acontece com um animal se sua pele for retirada?E ele retirou a pele de uma rã e verificou que o animal entrouem estado de torpor ou coma. Quer dizer, pelo menos paraa rã é muito importante a sensibilidade cutânea para semanter o estado de vigília.

Muito crítico, Miguel Osório pensou: "Devo estar come-tendo algum erro nessa minha interpretação". Na ocasião,um psicólogo francês muito conhecido, Henry Pieron,estevevisitando — como o fizeram Einstein, Madame Cury — olaboratório da Rua Machado de Assis. E Miguel lhe falouda experiência. Ele disse: "mas isso é muito interessante.Deixa eu ver".

Miguel Osório lhe mostrou a experiência no InstitutoOswaldo Cruz e ela foi publicada em nome dele e de HenryPieron. E assim começa o Departamento de Fisiologia: comuma verificação muito importante. Em 1921 Miguel Osóriodeixou o Instituto não sei por que e quando voltou, em1972, atendendo a outro chamado de Chagas, já encontrouThales Martins no Departamento. Então esse Departamentoera de primeira linha, muito vivo, com gente do primeiroplano trabalhando.

- Doutor Moussatché, vamos falar mais da capacidadede criação dos irmãos Osório. Carlos Chagas fala dessa capa-cidade de inovação experimental criando um pensamentobiológico muito próprio. O senhor falou dessa capacidadede inovação na instalação do laboratório - que só tinhauma tesoura e uma pinça. Existem outros exemplos quepodem marcar essa especificidade, inovação e criatividadedos irmãos Osório?

- Eles se caracterizaram sempre como pessoas que, tra-balhando num laboratório relativamente pobre, colhiam eencontravam resultados muito interessantes.

O Miguel Osório tinha um valor excepcional. Pode-sedizer que foi o primeiro biólogo, no Brasil, que utilizou amatemática mais amplamente em seus estudos. Estava sem-pre procurando uma equação que representasse o fenômenoda excitabilidade dos nervos, um dos assuntos que mereceumuito de sua atenção. A equação que ele fez para repre-sentar o fenômeno da excitabilidade foi utilizada por muitotempo.

- Thales Martins pode ser considerado um pioneiro naquestão de comportamento animal especialmente nas rela-ções entre comportamento e glândulas endocrinas. Falesobre a importância do trabalho de Thales Martins.

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- Thales era pessoa muito calada, mas homem extrema-mente inteligente. Ele foi realmente pioneiro nas pesquisasde endocrinologia. Uma reação que todo mundo faz, inje-tar urina em coelho para fazer diagnóstico de prenhês foifeita por Thales e, mais ou menos ao mesmo tempo, poroutro físiologista, Friedman, em uma Revista estrangeiraque alcançou maior divulgação e por isso é que tem o nomede Reação de Friedman. Ele tinha uma cultura literáriaenorme e seu livro sobre hipófise e glândulas é maravilhoso,muito bem escrito.

Thales Martins também é precursor, no Brasil, de estu-dos experimentais da psicologia do comportamento. Uma desuas experiências de especial importância é a seguinte: elecastrou cães machos muito pouco tempo depois de nascere, ao tornarem-se adultos, urinavam como fêmeas. Isso mos-trava uma interação hormonal na fixação de um comporta-mento na vida diária de um animal. O que não lhe faltavameram boas idéias para trabalhar. O Thales era realmente umhomem de grandes qualidades intelectuais.

Talvez a Fisiologia, a Farmacologia ou mesmo a Bioquí-mica não conseguiram se integrar aos objetivos fundamen-tais para os quais o Instituto foi, em princípio, criado visandomuitas vezes mais aplicações práticas. De modo que não senegava ao Thales a possibilidade de fazer suas experiênciassobre psicologia animal, comportamento animal — como aexperiência sobre micção dos cães que, aliás, foram emgrande parte feitas no Inst i tuto Butantã, quando esteve látrabalhando. Mas não lhe davam as condições de que preci-sava para seus estudos. E lamentavelmente, por isso não foiaqui no Ins t i tu to em que se começou seriamente o primeirolaboratório de comportamento. E poderia ter sido.

- Professor, observando seu currículo, percebe-se queo senhor entra como agregado interno ao Departamento deFisiologia e ao longo de sua trajetória em Manguinhos passapela área de biologia sendo professor de bioquímica, hema-tologia e mais tarde vai ser chefe da seção de farmacodinâ-mica. Como é que se dava essa titulação e como isso refletiadefinições e especialidades na área biomédica?

- As coisas se passavam de uma forma muito natural.Entrei para o laboratório em 1934, trabalhei dois ou trêsanos de graça e já graduado, quase aos 27 anos, continuavasem emprego. Falei com o Doutor Miguel sobre a possibili-dade de t raba lhar em Fisiologia e Henrique Aragão me per-guntou se eu não queria t r aba lha r em febre amarela. Eudisse: "eu não sei nada de febre amarela". - Ah, mas é quevão fazer uma cultura do vírus de febre amarela aqui, quemsabe você não quer trabalhar um tempo, até que saia o seucontrato no Inst i tuto." Eu achei interessante o fato de tra-

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balhar com cultura de células e fiquei dois anos nisso.Quando entrei não sabia nada, mas acabei fazendo doistrabalhos científicos sobre febre amarela.

Depois me deram um contrato para cá que eles chama-vam de extranumerário. E nessa posição, em 1937, fui até1943, quando abriram concurso para o Instituto. Passei naárea de fisiologia e fui indicado para biologista do Insti-tuto Oswaldo Cruz no nível . . . já não sei mais o nível,mas acho que era o nível J. Fui o primeiro colocado, íamostomar posse no Ministério da Educação mas adoeci. Fui oúltimo a tomar posse e por isso, o último na classificação.Só fui promovido 10 ou 12 anos depois para a letra de cima.Depois me indicaram para ser chefe da seção de Farmacodi-nâmica, que pertencia à Bioquímica. Foi o Gilberto Villelaque me indicou. Quando deixei o cargo fui chefe da seçãode Fisiologia. Sempre naquele posto, de letra, J, acho quea mesma letra que estou hoje.

- Costaríamos que o senhor falasse mais sobre sua tra-jetória no campo da ciência.

- O laboratório de Fisiologia do Instituto foi crescendo,tínhamos umas 14 ou 15 pessoas trabalhando e era o centrode atração pra muita gente que estava interessada em inves-tigação. Não havia pesquisa na Universidade até 1937,quando Carlos Chagas Filho fundou o Ins t i t u to de Biofísica.Muitos professores que não tinham onde fazer suas expe-riências vinham trabalhar conosco. Portanto, o laboratóriojá contribuía para a formação de pessoas e também parapermitir que professores da Universidade se dirigissem a nós,já que aqui poderiam fazer suas teses de docente ou catedrá-tico. O laboratório prestava um serviço à Universidade.

Entre os que por aqui passaram, posso citar Mauro Pena,um otorr inolar ingologis ta famoso, que queria t reinar a téc-nica de uma cirurgia no ouvido médio de macacos, visando acura da surdez. E ele tornou-se um docente livre com tesefeita aqui no Instituto. Couto e Silva, clínico, quis estudaro efeito protetor do urucum aos raios solares. Fez sua tesecom este estudo experimental e apresentou-se para con-curso na Escola de Medicina para professor de Higiene.Deolindo do Couto e Paulo Niemeyer fizeram experiênciaspor aqui, como também Clementino Fraga, que fez sua teseno Instituto, prestou concurso e passou.

- Quer dizer que não eram só Fisiologistas profissionaisque vinham, mas também pessoas que, de alguma maneira,estavam interessadas em uma base fisiológica e que procu-ravam desenvolver um trabalho nesse sentido.

— Exatamente, nosso laboratório era muito vivo, os tra-balhos eram publicados continuamente, apresentados nas

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reuniões científicas.

— Essa colaboração entre pesquisadores que freqüenta-vam a universidade e vinham para o Instituto era sem con-vênio, a nível pessoal?

— Era praticamente a nível pessoal. A direção do Insti-tuto estava informada, claro. Muitas vezes, quando eramclínicos, vinham trabalhar aos sábados, domingos e feria-dos, durante o ano todo.

- Essa coisa de convênio, estágio, assinar papel, é re-cente, não?

- É. Eu acho que a decisão deveria ser tomada nos pró-prios laboratórios. E o melhor material para treinar no labo-ratório é o estudante, não é o formado. Este já vem comuma segunda intenção: quer o lugar. O estudante não, tra-balha voluntariamente, não tem exigências a fazer e vemespontaneamente.

- Na década de 30 teria havido um certo deslocamentocultural e científico do Rio de Janeiro para São Paulo.Baixos salários, pouco investimento em pesquisas básicase outros fatores são apontados por historiadores comocausa de uma decadência em Manguinhos, a partir destaépoca. O Sr. concorda com essa afirmação?

- Não, eu já fiz referências a isso numerosas vezes. Eunão sei por que chamam decadência de Manguinhos. Por quenão se descobriu uma nova doença de Chagas? Carlos Chagasfez uma descoberta muito importante como também oGaspar Viana, o Aragão, com o ciclo do Hematodium. Nãosei se, do ponto de vista estritamente intelectual e não pelassuas projeções no campo da Saúde Pública, se a descobertada Doença de Chagas é muito mais importante do que aobservação do Miguel Osório sobre a rã sem pele e suas con-seqüências. Eu acho que não. Eu sempre achei que o IOC eraum Ins t i tu to onde você tinha um Miguel Osório, homenscomo Costa Cruz, a quem quase ninguém se refere. Ele, quefoi um pioneiro no estudo da imunidade e, a inda, umCarneiro Felipe, de inteligência excepcional.

Em que essa gente era inferior ao Carlos Chagas? Ou osque falam na decadência do Instituto queriam que o Brasiltivesse umas 50 Doenças de Chagas e mais algumas leishima-nioses e outras coisas? Aí o Instituto viveria sempre umaépoca heróica, sempre descobrindo doenças que seriam umadesgraça para o Brasil? É isso que eles querem dizer que édecadência do Instituto? Não, acho que é o contrário.Então eu chamo a atenção e digo: aí estão homens da mesmaqualidade intelectual do Carlos Chagas. Quase não se fala doArthur Neiva, uma das pessoas mais brilhantes que passaramaqui pelo Instituto. Ele é o homem que orientou o Herman

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para estudar os barbeiros. Nao acredito que tenha faltado qua-lidade intelectual aos pesquisadores que por aqui passaram.

O Oswaldo Cruz conseguiu que o Aragão trabalhasse nohemopoteus e o Chagas na Doença de Chagas simultanea-mente. O que se fez foi deixar o pessoal trabalhar. No início,a Saúde Pública e as pesquisas básicas estão na mesma casae são as mesmas pessoas. Eu creio que no tempo do Oswaldoe mesmo do Chagas essas duas coisas se faziam simultanea-mente, até porque diferenciar pesquisa básica e pesquisaaplicada é pura invenção de gente que não sabe o que éCiência - eu diria que não há diferença nenhuma. Querdizer, uma coisa hoje é básica, amanhã é aplicada e vice-versa. A metodologia é a mesma, podem conviver ou melhor,existir simultaneamente.

O Instituto começou a trabalhar numa época científica,a pasteuriana, onde determinadas descobertas científicasmostraram-se de uma importância enorme, já que se refle-tiam de imediato na saúde do povo, de modo geral. Porexemplo, o combate a doenças infecciosas.

Na área de Fisiologia muda bastante porque os resulta-dos podem aparecer de repente, como na descoberta deBanting, que rapidamente demonstrou que a diabetes depen-dia de um hormônio, a insulina. E a insulina resolveu o pro-blema de uma doença grave do metabolismo. Mas grandeparte das doenças metabólicas ainda estão sendo estudadascom enormes dificuldades e a gente vê que algumas aindavão esperar algum tempo para encontrar técnicas adequa-das. Portanto, seus resultados não são espetaculares nemdespertam atenção.

O Instituto, depois de grandes descobertas entrou numperíodo de trabalho de coisas que não têm repercussão ime-diata. Continuou-se trabalhando em áreas cujos resultadosdependem de técnicas que exigem uma aparelhagem bemmais sofisticada e cara, em temas que apenas estavam come-çando a ser investigados.

- Mas não houve uma degeneração de salários?

- Oswaldo Cruz deve ter conseguido salários razoáveispara aquela época porque passou a ter um prestígio enormedepois que saneou a cidade do Rio de Janeiro. Um invest i -gador do IOC tinha salário quase equiparado ao de um Desem-bargador. Por isso é que se diz que o Ins t i tu to Oswaldo Cruzfoi uma exceção, que teve depois de se adaptar á realidadedo Brasil, e que a Ciência estava aqui acampada mas nãotinha significado nenhum. Nós dizíamos: se um dia se fechas-sem todas as instituições científicas do Brasil, ninguém sedava conta.

Mas isso era o Brasil, não era o Ins t i tu to . E a degenera-ção de salários não representou a decadência do I n s t i t u t o ,

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mas do próprio Brasil, já que não se entendia o significadoda Ciência. Talvez ainda hoje não se entenda muito bem eespero que vá melhorar com a criação do Ministério daCiência e Tecnologia. Quando falo que não houve decadên-cia no Insti tuto, me refiro à gente que estava aqui, de muitaqualidade. E não creio que houve esvaziamento do Rio deJaneiro em relação a São Paulo, na década de 30. Apenassouberam aproveitar, melhor, determinadas situações.

Como exemplo, Armando Salles Oliveira e TheodoroRamos aproveitaram a crise do pré-guerra na Europa e fun-daram uma Escola de Ciência muito boa em São Paulo. Jáno Rio, a Escola de Ciências nasceu fraca. Claro que a situa-ção econômica de uma região se reflete em seu crescimentocientífico.

É verdade que aqui no I n s t i t u t o , ainda não havia umaconsciência da importância da Ciência para o desenvolvi-mento social e econômico dos países. Isso foi uma coisatardia pra mu i t a gente. Nós do I n s t i t u t o - e me ref i ro aWalter Oswaldo Cruz, Herman Lent, eu e alguns mais jovens— talvez já víamos na Ciência uma coisa fundamenta l parao desenvolvimento sócio-econômico de que o Brasil preci-sava e ainda precisa. Nós começamos, então, a bata lha paraa retirada do Ins t i tu to e da Saúde Pública do Minis tér io daSaúde.

Por quê? Porque estávamos olhando o mundo por umoutro prisma que não era o dos nossos mestres, com quemhavíamos formado nossa aprendizagem c ien t í f ica , a inda quepudessem ter qualidades in t e l ec tua i s até maior do que asnossas.

Queríamos que o I n s t i t u t o saísse de uma situação, a indaexistente, em que se precisássemos comprar determinadosaparelhos, ou mater ia l para a pesquisa de ou t r a na tu reza ,para c o n t i n u a r os t rabalhos , cujos resultados não eram detal importância que se impunham de imedia to , tivesse aa d m i n i s t r a ç ã o que j u s t i f i c a r o emprego da v e r b a , a legandoque era para compra de animais (boi) ou mate r ia l a ser usadona produção de vacinas ou soros. Achávamos que a impor-t â n c i a da C i ê n c i a , n o m u n d o , já e s l ava s u f i c i e n t e m e n t e j u s t i -f icada, que não precisávamos de ment i ras j u n t o aos poderespúblicos para que pudéssemos c o n t i n u a r nossas a t i v i d a d e s ,nossa existência no I n s t i t u t o .

Era essa a nossa discordância com alguns diretores oucolegas: c o n t i n u a r o desenvolvimento científico propria-mente dito na Ins t i tu ição , acompanhando o que ocorria emmuitos outros países. Não estávamos inven tando nada;sabíamos que o fu tu ro do Brasi l , como o de outros paísespertencentes aos povos subdesenvolvidos, ao Terceiro Mundo,dependeria, fundamentalmente, de seu progresso científico,da capacidade de formar pesquisadores e técnicos de alto

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nível e dispor de instituições científicas adequadas. A comu-nidade científica de todos os países e, em especial, a dospaíses subdesenvolvidos, assim como todos os que dispun-nham de algum poder político, social ou econômico, pode-riam ler o livro de John Bernal "A Função Social da Ciên-cia", publicado em 1939, antes do início da 2a Guerra Mun-dial. O livro é fundamental e mostra o poder da atividdecientífica nas transformações sociais atuais e no passado.Mostra, mais tragicamente, que já se havia utilizado a bombaatômica, a nosso ver criminosamente, lançando-a sobre ascidades de Hiroshima e Nagasaqui. Uma conseqüência tecno-lógica da má aplicação de conhecimentos científicos querepresentaria um marco essencial para uma tomada de cons-ciência da maior importância.

Achávamos que o homem de ciência,especialmente,tinhaa obrigação de ter uma consciência clara do significadosocial da pesquisa científica e o Instituto deveria deixar deser uma simples fábrica de soros e vacinas, e de má qualidade.

Não estávamos sós. Com a criação da Sociedade Brasileirapara o Progresso da Ciência, esses e outros problemas passa-ram a ser discutidos em suas reuniões anuais, nos simpósiosorganizados para assuntos específicos, em conferências, etc.Fizemos reuniões no Rio de Janeiro para discutir o pro-blema de energia nuclear no Brasil, a estrutura arcaica denossas universidades e institutos de pesquisa, etc. Nessasreuniões, tomaram parte muitos dos nossos pesquisadoresem plena atividade como Leite Lopes, Mário Schenberg,Jayme Tiomno, Marcelo Damy, Herman Lent, Goldemberg,Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes, Jacques Danon,Maurício Rocha e Silva; Wa l t e r Oswaldo C r u z , e tc . O pes-soal que promovia essas reuniões, esses debates, era consi-derado de esquerda. Pessoalmente, isso não me importavaporque sem ser político, ou pertencer a algum partido polí-tico, era socialista, e achava que a organização social epolítica capitalista tinha contradições que não lhe permit i -ria solucionar os problemas existentes e os que viriam. Essanossa posição e de outros era, aqui no I n s t i t u t o , criticada ecombatida.

Nossos ideiais sociais não interfer iam em nossas ativida-des de pesquisa e o Departamento de Fisiologia e Farmaco-dinâmica mantinham-se t rabalhando em uma muito boaatmosfera de colaboração com seniors e juniors procurandonovos achados.

Muito se fala nos cassados. Sem dúvida os cassados, avelha guarda, são os mais conhecidos, os chefes dos labora-tórios, mas talvez muito mais importante foi o pessoaljovem que saiu. Agora, já está maduro, na casa dos quarentaou um pouco mais, e o Instituto perdeu. Acho mais impor-tante esse fato do que nossa ausência, porque eles estariam

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ativamente trabalhando e eu aos 61 anos, quando foi cas-sado, já poderia ter morrido . . .

- O Senhor poderia citar algumas das pessoas que fica-ram no laboratório depois das cassações e que acabaramtransferidas?

— O Fontana, Ivan Caldas Marins, Júnia Peixoto, LopesQuadra, Marisa Jurberg, como os que foram deixando oDepartamento com o início das dificuldades, além dos jácitados: Bráulio de Magalhães Castro, Paulo Ramos, MariaQueiroz, Maria da Guia Silva Lima, Nuno Álvares Pereira,etc. Isso em nosso laboratório. Já me referi parcialmente ajovens de outros laboratórios.

- O senhor poderia nos contar um pouco da históriados auxiliares de laboratório que ficaram aqui depois da cas-sação e que conservaram equipamentos, reagentes?

— Quando cheguei, várias pessoas das que trabalharamcomigo, como o Francisco Gomes, o "Chico Trombone'',me devolveu substâncias químicas que havia guardado emgeladeiras na Escola Fluminense de Medicina e que valemalguns milhões de cruzeiros. O Mário Viana Dias c o Ivan meentregaram o fisiógrafo,o cilindro registrador; a Júnia trouxeo microscópio de contraste de fase. Esse grupo não foi cas-sado mas teve que ir embora e levou o que pôde quando viuque tudo seria destruído. Durante quatorze anos eles guarda-ram esse mater ial para devolver quando voltássemos a refa-zer o laboratório. O Chico Trombone chegou um dia aquiem Manguinhos e me disse: "Dr. Moussatché, o Sr. não vaiacredi tar , mas eu estou trazendo aqueles reagentes que oSr. deixou na geladeira quando saiu daqui em 1970". Foiemocionante. Mui ta coisa foi vendida como sucata e outraseu encontrei nos depósitos de ma te r i a l velho.

- A Universidade de Brasília sofreu muito com o Golpede 64. O senhor poderia falar um pouco da experiência departicipar do projeto de sua criarão e instalação?

- Quando Juscelino foi eleito Presidente havia críticasde que ele estava indus t r i a l i zando o país e não fazia nadapela cu l tu ra . Então o Juscelino disse: - Vamos criar umauniversidade. E propôs ao Ciro dos Anjos, chefe da CasaCivil , para que estudasse um programa e ele falou com oDarcy Ribeiro que t rabalhava na Casa Civil e que era amigomeu. Nessa época, d u r a n t e reunião da SBPC, chamei oDarcy. Então o Darcy que t inha que formar um grupo paraestudar uma proposta para a universidade de Brasília cha-mou o Leite Lopes, o Danon, O Herman Lent. Bem, as ori-gens da UNB são espúrias para o Governo de 64.

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Quer dizer, o Governo não quis imaginar que, pela pri-meira vez no Brasil, se criava uma universidade, porque nãohavia outra. Havia um conjunto de escolas mas, universidadeainda não. Nós trabalhamos por mais de um ano até chegarao conceito do que seria essa universidade. A criação deinstitutos básicos que depois deu a eles um caráter de depar-tamento. Eu era o secretário regional da SBPC na ocasião epromovi várias reuniões da própria Sociedade para discutir acriação da universidade e colaborava gente de São Paulo evários outros lugares. Pedro Calmon fez parte das comissões,Anísio Teixeira foi chamado para ser Reitor. E a universi-dade foi organizada. Começou-se a contratar uma porçãode gente ligada a este grupo inicial, quer dizer, uma gentesuspeita . . .

Quando veio o Golpe, a Universidade de Brasília e muitosdos professores que faziam parte dela eram suspeitos pelassuas origens. Uma série de medidas do Governo e aconteci-mentos na Universidade obrigaram muitos professores, dosmais categorizados, como Jayme Tiomno, Roberto Salmeron,etc ... (cerca de 200), a pedir demissão porque se via quelogo iriam começar as perseguições.

Nenhuma universidade resiste à renúncia de tantos pro-fessores de seus quadros. E esse pessoal de primeira classeda pesquisa no Brasil foi substituído por gente que ninguémsabia para que veio. De uns anos para cá, a Univers idade deBrasília vem se equilibrando, convidando professores de boacategoria. Agora que saiu o Rei tor , um Capitão de Fragataresponsável por esses muito longos anos, esperamos que aUniversidade retome os caminhos que seus primeiros pro-motores ideal izaram.

- Após o Golpe de 64 Rocha Lagoa é diretor do Insti-tuto. Como repercutiu esse fato?

— Havia dois grupos no Ins t i tu to : o nosso que queriaque os diretores dos inst i tutos levassem nossos problemascomo coisa de Ciência mesmo e não alegando que t ínhamosque fazer umas tantas coisas para o público, como soro evacinas, que nós sabíamos que eram de má qualidade ouo que seja. Achávamos que não era necessário ut i l izar essamentira para justificar nosso trabalho aqui. O outro grupo,que ficou contente com a vinda do Rocha Lagoa, achavaque o IOC deveria continuar no Ministério da Saúde.

- O Herman Lent afirma que desde a época do OswaldoCruz existiam dois grupos de conflito no Instituto por dissi-dências e brigas internas. Como foi isso?

- São duas linhas de pol í t ica c ien t í f i ca tota lmente diver-sas; são at i tudes diferentes frente a problemas, os mais var ia-dos. Isso não aconteceu só no Instituto, entre os que defen-diam a prioridade para o investimento em Ciência Aplicada

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e os outros que não aceitavam que a Ciência Básica fosserelegada a um segundo plano.

- Com o Golpe de 64 qual foi a política do novo Go-verno em relação à Ciência?

- A única coisa que se pode dizer é que não se fez polí-tica especial ou nova política para a Ciência.

- Mas os cientistas estavam se mobilizando pela criaçãodo Ministério da Ciência e Tecnologia.

- Nós já nos mobilizávamos para a criação do Ministérioda Ciência e Tecnologia em 1958, 59. Isso nasceu de con-versações do pessoal ligado à Sociedade Brasileira para oProgresso da Ciência e da Academia de Ciências. Na época,o Conselho Nacional de Pesquisas perdia prestígio e, comisso, a Ciência estava ficando cada vez mais incapaz de atin-gir altos postos políticos, os cientistas com mais dificulda-des de dizer o que pensam e o que têm a fazer. Nós acháva-mos que era importante ter um Ministro que defendessenossos interesses, levantasse nossos problemas na hora derepartir o bolo orçamentário . . . Com a Nova República,vamos ver se a Ciência passa a ter significado nos altosníveis da administração do país.

- Falávamos do massacre. Foram vários inquéritos eIPMs. E 16 cientistas foram chamados para depor, dos quaissó 10 foram cassados, O senhor lembra quem foram essescientistas?

— Não me lembro e creio que não foram só 16. A pri-meira comissão de inquérito ficou por aqui dois meses einterrogou de cientistas a bedéis. Era uma comissão militare uma civil. Na militar veio o General Aluíso Falcão, se nãome engano. Eu fui o primeiro a ser chamado e fui falar como General Falcão que, como os outros militares, foi muitoamável. A primeira pergunta que ele me fez, ao lado deoutros dois militares e uma pessoa que batia à máquina, foise eu era comunista. Então eu disse ao general Falcão."Em primeiro lugar quero agradecer essa distinção de ser oprimeiro a ser chamado por ter uma projeção muito especialaqui no Insti tuto, como diz o senhor. Acho muito difícilresponder a estas questões assim — eu sou comunista ou nãosou comunista porque isso tudo é motivo de discussão.Nunca pertenci a partido comunista, a nenhum partidopolítico, porque não sou dos que crêem que a solução domundo seja através da política, mas através da Ciência utili-zada para o bem social da humanidade. Mas tenho minhasidéias políticas.

Sou socialista e acho que o capitalismo entrou numa con-tradição que certamente não resolverá os problemas sociaisdo mundo. De modo que se tenho ou não, razão, não quero

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discutir. Penso que as ideologias políticas perderam suacapacidade de resolver os problemas do mundo atual. OBrasil está metido num complexo, como todas as nações domundo, de maneira que a solução dos seus problemas sociaisestá estritamente ligada à solução dos problemas sociais dosoutros países, particularmente os do Terceiro Mundo. Con-tinuo achando que o socialismo, pela distribuição mais equi-tativa da riqueza, é uma solução. Mas o problema transcendea isso porque tenho dúvidas se, mesmo que se queira fazerum regime socialista para distribuir as riquezas do mundode forma equitativa, seja possível. Será que somos capazesde alimentar toda essa gente e dar a ela melhor condiçãode vida como desejamos para nós? Pode ser possível, masnão tenho certeza."

- Quais são então os caminhos para se chegar lá?

— Não estaremos contaminando a atmosfera, o meioambiente, ao querer dar, para todos, melhores condições devida. Uma das providências que os governos deveriam tomaré a redução da natalidade a um nível que se permitirá dar atodos uma vida humana, decente, utilizando a tecnologiaconhecida. Isto reduziria o número de crianças que estãomorrendo diariamente de fome em todos os países do Ter-ceiro Mundo. Sei que nos países socialistas não se aceita aproposta de redução da natalidade, mas acho que isso é pro-blema de países capitalistas. Por que? Porque em todos oslugares os homens devem ter o direito a uma vida digna,com liberdade de escolher, de dizer o que pensa, de fazer oque quer e gosta.

- O senhor falou isso tudo para o General? E o que eleachou?

- No final de cinco horas, com alguns intervalos, eu fuiembora. Eu sei que ele informou a algumas pessoas que nóstínhamos aqui um grupo de idealistas e que nenhum delesera perigoso.

- Os senhores sabiam que seriam cassados ou foi umasurpresa?

— Não foi surpresa . . . era morte anunciada. Quandosubiu o Rocha Lagoa sabíamos que seríamos cassados. Erasó uma questão de tempo.

- Havia base legal para a cassação? Houve justificativaa cada um ou nenhuma explicação?

- Nós nunca conseguimos ler o que eles atribuíram,fomos cassados e aposentados mas nunca tivemos acesso àsrazões disso. Os processos correram durante seis anos, aí éque nos cassaram. A decisão não foi imediata.

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- A possibilidade de cassação era dada por uma linha deGoverno. . .

- O senhor imagina, por exemplo, que o Rocha Lagoatenha dito ao Médici: "Olha, isso é gente que quer tirar oInstituto Oswaldo Cruz do Ministério da Saúde . . . e oMinistério precisa do Instituto porque é lá que se faz vaci-nas importantes para a população, pesquisas para resolverproblemas imediatos do Brasil. Essa gente só faz Ciênciaque a gente não sabe o que significa, novas experiênciasque não se sabe para que valem e a verba é pequena". Eentão o Médici deve ter dito: "Então essa gente tem quesair imediatamente, não há dúvida que não serve . . ." Oque quero dizer é que se conseguiu cassar pessoas quedavam problemas para o Governo. Venceu um dos gruposligados ao Instituto, uma orientação diferente da nossa.Eu, por exemplo, assinei documentos contra a guerra, pro-testei contra explosões atômicas. Devem ter lido meu depoi-mento e dito: "Este marreco aqui é da esquerda . . .".

- O senhor foi cassado em 1970 e no ano seguinte jáestava trabalhando na Venezuela. Como foram os contatospara ir viver lá? Demorados?

- Quando fomos cassados pessoas amigas escreveramperguntando se nós queríamos ir para os lugares. Eu ia paraa Inglaterra, mas o processo foi mais demorado e eu teriaproblemas porque já tinha 61 anos e lá, aos 65 as pessoasdevem ser aposentadas. Além disso, não poderia ser contra-tado para um cargo inicial já que tinha um certo prestígioe como a Inglaterra estava passando por uma crise econô-mica, ficava difícil contratar num nível mais elevado. Nestemeio tempo, o Fernando Ubatuba, que já estava na Univer-dade Centro Ocidental, em Barquisimeto, na Venezuela,me chamou, dizendo que lá estavam fazendo uma coisainteressante, em uma escola recém-criada. Fui para a Uni-versidade Centro Ocidental, pude treinar vários jovens napesquisa científica, organizei o Conselho Científico daUniversidade em colaboração com outros professores e láfiquei 14 anos.

- E como foi sua experiência de exilado? Como foi atentativa de manter esse grupo que ficou disperso?

— O que se manteve foi uma relação de amizade pura esimples. Eu sabia que o Rabinovich estava na Universidadede Nova Iorque e mantínhamos uma correspondência, fuiaté lá encontrá-lo. Mas sabíamos que estávamos exiladose que a volta ao Brasil era uma incógnita total. Pensavaque fosse passar o resto de minha vida na Venezuela ou sóvoltaria quando estivesse doente. Mas seria o final.

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- Como é a experiência de um exilado num país latino-americano?

- É um negócio muito sério. Fui com minha senhora e aúnica pessoa que conhecia era o Ubatuba. Mas só posso fazerelogios ao tratamento que me deram.

- A Fundação tem atualmente um ramo de controle dequalidade, o de produção de vacinas, o ensino na EscolaNacional de Saúde Pública e no IOC a pesquisa básica.Como o senhor analisa o quadro atualmente, as coisas estãoequilibradas? Qual é o seu diagnóstico para as tendênciasda FIOCRUZ?

- Não há diferença da metodologia científica entre aciência básica e a aplicada. Uma procura um resultado maisimediato, outra analisa o problema e busca resultados maisa longo prazo. O que importa é ter gente de qualidade aquiinvestigando e tendo apoio tanto do Ministério da Saúdecomo do Ministério da Ciência e Tecnologia.

- Como o senhor vê o panorama atual da política cien-tífico-tecnológica brasileira e os reflexos dela na FIOCRUZ.

- O Ministério da Ciência e Tecnologia ainda está seestruturando, mais cedo ou mais tarde vai se definir a polí-tica científica nacional. Fizemos uma carta que será entre-gue ao Ministro Archer em que fizemos sugestões especial-mente sobre os institutos de investigação. Mostramos quea Universidade não vem cumprindo, há algum tempo, suaprincipal função que é a de investigar e que os pesquisado-res das universidades estão sempre marginalizados. Achamosuma alternativa: a criação de institutos fundamentalmentedestinados à investigação para o desenvolvimento da pes-quisa básica e tecnológica. Eu creio que a Fundação podecontinuar como está e colaborar estreitamente com o novoMinistério — tudo isso é assunto a ser debatido.

- O senhor tem uma avaliação sobre o que acontecehoje na política geral do país?

— É muito cedo para dizer o que esse Governo podefazer, não é? Os problemas criados neste período de regimemilitar são inúmeros — se bem que eles não fizeram só bes-teiras. Há coisas boas que estão aí e vão ficar, muitas parase corrigir. Não aceito a idéia de que estamos derrotados,sou otimista. Acho que o Brasil precisa se independizar.

- Na busca de relações com outros países, saindo darelação de dependência dos Estados Unidos, o senhor vêpossibilidades de desenvolvimento na área científica?

- Sempre há algo a acrescentar quando a gente buscarelações científicas com outros países. Se há alguma coisaextremamente impessoal, que pertence a todos, é a ativi-

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dade científica que se realiza em todos os países que sãocapazes de contribuir para a evolução da Ciência. A relaçãodo Brasil com estes países é necessária, deve ser incentivadae mantida. Temos que manter relações científicas maisestreitas com a União Soviética - e não se mantém hojeporque estamos sob o domínio dos americanos que real-mente têm uma atividade científica extraordinária. Masseria muito útil que se mantivesse também com outraspotências.

- O senhor está aqui há três ou quatro meses elaborandoprojetos de trabalho, mas sua reincorporação definitiva con-tinua em suspenso, assim como a de outros cassados namesma época. Como o senhor vê e sente isso em termosprofissionais e afetivos?

— Se a direção do Instituto me sugere a criação de umnovo departamento é porque está interessada. Não acreditoque tenha feito isso por uma atenção especial porque fuicassado. Agora, o que o Instituto tem que fazer é contra-tar o pessoal, aumentar o laboratório, trabalhar.

- Mesmo que sua reintegração não se concretize a curtoprazo, este trabalho aqui já lhe é suficientemente atrativo?

- Claro, mas não pensamos ficar trabalhando, tantoTito como eu, por amor à arte, ficar trabalhando de graça.Estamos fazendo agora como uma contribuição a esse Insti-tuto que tanto representa prá nós em toda essa já longa vida,fazendo tudo que é e será necessário para dar início às ativi-dades do Departamento, às experiências que fazem parte denossos projetos de pesquisa.

- O senhor volta, passa uns meses lá. . . como o senhorpensa em manter essa ponte?

- Já falei com o Arouca sobre a possibilidade de fazerum convênio com a Universidade de Barquisimeto. Eupenso em ir, voltar . . .

- Professor, o que fica dessa experiência toda, dessatrajetória dos seus últimos anos?

— Acho que há sempre uma esperança quando as coisasestão ruins. Sei que o Brasil passa por uma fase de transfor-mação séria e a gente não pode ficar angustiado com isso,mas estar sempre alerta. Olha, sou um otimista inveterado.

Esta entrevista foi concedida nos dias 28 de novembrode 1985 e 17 de janeiro de 1986, no Laboratório de Fisio-logia da FIOCRUZ, antes, portanto, da reintegração dos10 cientistas cassados no "Massacre de Manguinhos." Areintegração foi possível através da excepcionalidade para

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contratação de pessoal aprovada pelo Presidente da Repú-blica, José Sarney, e ocorreu no dia 15 de agosto de 1986.

Esta publicação é uma versão reduzida e editada da entre-vista concedida pelo Professor Haity Moussatché à Casa deOswaldo Cruz. O depoimento integra dois projetos em exe-cução: "O Massacre de Manguinhos" e "Acervo de Depoi-mentos Orais sobre a História da Fundação Oswaldo Cruze das Práticas de Saúde Pública." A versão final foi revistae aprovada pelo Professor Haity Moussatché.

Entrevista concedida a Paulo Gadelha — Coordenador daCasa de Oswaldo Cruz e Wanda Hamilton - Pesquisadora daCasa de Oswaldo Cruz.

Revisão, edição e texto final - Ruth Martins, Jornalista,revisora e redatora da Casa de Oswaldo Cruz e Paulo Gadelha.

Participaram também desta entrevista em diversos mo-mentos:

- Luiz Fernando Ferreira da Silva - Vice-Presidente derecursos Humanos da FIOCRUZ;

- Arlindo Fábio Gómez de Sousa - Vice-Presidente deDesenvolvimento da FIOCRUZ.

- Tereza Cristina de Aguiar Tavares - Assessora deImprensa da Presidência da FIOCRUZ.