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Ciências & Cognição - Ciências e Cognição · Aranha Barros. Produção e Realização : Instituto de Ciências Cognitivas. Editores de Estilo : Alfred Sholl Franco e Gláucio

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  • Cincias & Cognio ISSN 1806-5821

    Vol. 3 Novembro 2004 Editor: Nome: Prof. Dr. Alfred Sholl Franco Endereo: Sala G2-032, Bloco G Centro de Cincias da Sade

    Programa de Neurobiologia - Instituto de Biofsica Carlos Chagas Filho

    Universidade Federal do Rio de Janeiro, Av. Brigadeiro Trompowiski S/N

    Cidade Universitria, Ilha do Fundo CEP 21.941-590 - Rio de Janeiro/RJ E-mail: [email protected]. Site: http://www.cienciasecognicao.org. Contedo Cien. Cogn. 3, 2004 ndice Pgina Editorial Mechler, I. L.

    01

    Fazer cincia no Brasil: entre o Palcio do Imperador e o Vale dos Leprosos. Glucio Aranha

    02

    Fatores psicofisiolgicos na terapia de reposio hormonal em homens. Psychophysiological factors in the hormonal reposition therapy in males. Molle, A. C. M.; Matheus, I. C. N.; Lucena, J. R.; Nunes, L.; Oliveira, L. S.; Sholl-Franco, A.

    04

    O imaginrio sobre o trabalho e suas representaes no cotidiano dos comerciantes do mercado pblico em Pernambuco. The imaginary about the work and their representation in the quotidian of the public market traders in Pernambuco. Lima, C. M. D.

    10

    O processo de consolidao dos jogos eletrnicos como instrumento de comunicao e de construo de conhecimento. The consolidation process of videogames as instruments of communication and knowledge construction. Aranha, G.

    21

    Psicologia clnica na sade mental. Barbosa, L. H.

    63

    Borderline no limite entre a loucura e a razo. Borderline: in the limits between madness and reason. Carneiro, L. L. F.

    66

    Cincias & Cognio 2004; Vol 03 Cincias & Cognio

  • Como os bebs aprendem a falar? How babies learn to speak? Shigetomi, M. K.

    69

    Uma viso geral sobre a teoria da cincia. An overview about science theory Aranha, M.

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    As diferentes faces da conscincia. The different faces of consciousness. Sholl-Franco, A.

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    O trajeto da leitura do texto impresso ao eletrnico. The changes of the reading from press to digital text. Mechler, I.L.

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    A revista Cincias & Cognio chega ao seu terceiro volume, encerrando o primeiro ano de sua publicao. Nesta edio, alm dos habituais artigos cientficos, de divulgao e revises crticas, passamos a publicar resenhas de livros relevantes para o campo das cincias e cognitivas, coluna de opinio e recomendaes de leituras. Este apenas o primeiro passo para uma srie de inovaes que sero apresentadas a partir do ano de 2005.

    O prximo ano prev a incluso de novos espaos, tais como: ensaios, entrevistas com importantes nomes nacionais no campo dos estudos cognitivos, discusso sobre metodologias aplicadas ao estudo das cincias, anlise de casos clnicos e trabalhos de Iniciao Cientfica, incentivando a produo de futuros pesquisadores.

    Com a publicao do quarto volume, prevista para maro de 2005, estaremos dando o ltimo passo no sentido da indexao de Cincias & Cognio junto a reconhecidos indexadores, como por exemplo, o Scielo, Qualis, Peridica e outros. O presente volume vem contribuir neste sentido, mantendo a qualidade, os parmetros de seleo e avaliao com as quais ns nos comprometemos desde a publicao do primeiro volume.

    A cooperao de nossos membros, bem como o apoio recebido, neste primeiro ano, por parte de colaboradores e incentivadores so pontos que mais e mais estimulam nosso empenho na continuidade deste trabalho de levar aos pesquisadores e estudantes interessados pelo campo dos estudos sobre o conhecimento humano acesso a um meio de divulgao, sem fins comerciais, que torna possvel a visibilidade da produo acadmica nacional.

    O Conselho Editorial

    Cincias & Cognio. Ano 1, Vol. 3, Novembro 2004. ISSN 1806-5821. Revista Eletrnica de Divulgao Cientfica. ICC - Instituto de Cincias Cognitivas. Cincias & Cognio uma publicao do Instituto de Cincias Cognitivas (ICC). Revista Cincias & Cognio: A/C Prof. Dr. Alfred Sholl Franco Universidade Federal do Rio de Janeiro - Av. Brigadeiro Tromposwiski, S/N, Centro de Cincias da Sade, Instituto de Biofsica Carlos Chagas Filho, Bloco G, sala G2-032/019, Cidade Universitria, Ilha do Fundo Rio de Janeiro RJ 21.941-590. Comisso Executiva: Editores-chefes: Alfred Sholl-Franco e Glucio Aranha Barros. Produo e Realizao: Instituto de Cincias Cognitivas. Editores de Estilo: Alfred Sholl Franco e Glucio Aranha. Editores de Design: Anderson de Oliveira Glucio Aranha Barros. Promoo e Marketing: Igor Luiz Mechler. Atendimento: [email protected]. Corpo Editorial : Prof. Dr. Adroaldo Viola Coelho (IBMR, SBPA, SP); Prof. Dr. Afonso de Albuquerque (UFF); Prof. Dr. Alfred Sholl Franco (UFRJ, SBNeC, SBPC, ICC, ISNI, SfN); Prof. Dra. Ana Lcia Marques Ventura (UFF, SBNeC, ISN); Dra. Andra Gerevini da Fonseca (UFRJ, SBNeC); Prof. Dr. Claudio Alberto Serfaty (UFF, SBNeC, SfN); Prof. Dra. Daniela Uziel (UFRJ, SBNeC, SfN); Prof. Dulcinia da Mata Ribeiro Monteiro (IBMR, UCM, AJB, IAAP, SBGG, AMEF, ICC); Prof. Dr. Francisco das Chagas Abreu da Silveira (UFF); Prof. Glucio Aranha Barros (ICC); Jlio Csar de Tavares (ASWAD, ABA); Luis Fernando Ferreira Vidal (GTTP, ICC); Lcia Helena Barbosa (DEMASP, ICC); Prof. Jainne Martins Ferreira (UFRJ, SBNeC); Prof. Dr. Maurcio Aranha (ICC, UNIPAC); Prof. Dra. Paula Campello Costa Lopes (UFF, SBNeC); Prof. Dra. Patrcia Maria Mendona (UNESA-RJ, SBNeC); Dra. Patrcia Maura Bastos Marques (Prefeitura da Cidade de Niteri, SBNeC); Prof. Dra. Simone Pereira de S (UFF); Prof. Dr. Walter Fonseca Boechat (IBMR, IAAP). Site: http://www.cienciasecognicao.org.

    Editorial

    Cincias & Cognio 2004; Vol 03: 1 Cincias & Cognio ISSN 1806-5821 - Publicado on line em 31 de Novembro de 2004

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    Fazer cincia no Brasil

    entre o Palcio do Imperador e o Vale dos Leprosos

    Glucio Aranha

    Ncleo de Estudos Humansticos Transdisciplinares, ICC, Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil

    O drama do fazer cientfico no Brasil vem sendo encenado em um palco com dois cenrios: o Palcio do Imperador e o Vale dos Leprosos. De um lado, as enriquecidas instituies de ensino de mbito privado; de outro, as cambaleantes e anmicas instituies pblicas.de ensino. No circuito alternativo, quase sem chances de serem vistas pelo grande pblico, esto algumas iniciativas no-governamentais, tentando produzir suas pequenas montagens.

    No Palcio do Imperador, o comrcio de ttulos sustenta uma nobreza ignorante e frgil. A preocupao e o comprometimento com objetivos mais elevados so desconsiderados e a pesquisa cientfica s quando til enquanto fachada, enquanto mais um elemento do discurso do marketing. Via de regra, o investimento cessa nas salas especiais e laboratrios destas instituies logo aps a feitura da fotografia publicitria. Isto, quando a imagem institucional no julga tais gastos demasiadamente desnecessrios para os cofres do Imperador, substituindo-os por um espao de lazer ou algum baile da corte.

    J no Vale dos Leprosos, a produo acadmica geme e se agoniza. A morfia econmica faz com que projetos sejam despedaados, com que esforos sejam

    abandonados como pedaos apodrecidos. A insensibilidade burocrtica faz com que o corpo acadmico seja ferido e sua chaga envolta pela imunda bandagem do descaso. A gangrena faz com que se amputem quadros funcionais, bem como o relacionamento professor/aluno, pesquisador/orientando. Muitas vezes este relacionamento se dissolve em descaso mtuo ou transformao de estagirios e orientandos em silenciosos carregadores de macas. Nos leitos podres do ambiente de trabalho que no oferece conforto ou condies apropriadas, os moribundos se instalam. H que se ressaltar, todavia, o devir de um interessante sintoma. Alijados dos grandes sales, muitos lderes do vale se enchem de orgulho por cada mancha, por cada pedao perdido, por cada pedao que resta. To orgulhosos que sorriem diante do espelho embebidos na vaidade com a prpria misria.

    Curiosamente, nas janelas do Palcio possvel flagrar, ainda, olhares pardos contemplando o vale dos leprosos, desejosos pela doena que ao menos lhes tiraria da esterilidade da corte. Enquanto isto, orgulhosos habitantes do Vale cospem e amaldioam os habitantes do palcio para a seguir mostrar suas feridas aos estrangeiros que passam suplicando a doao de moedas,

    Opinio

    Cincias & Cognio 2004; Vol 03: 02-03 Cincias & Cognio Submetido em 10 de Outubro de 2004| Aceito em 17 de Outubro de 2004 | ISSN 1806-5821 Publicado on line em 31 de Novembro de 2004

    G. Aranha Graduado em Direito (UFJF), Mestre em Comunicao, Imagem e Informao (UFF), Doutorando em Literatura Comparada (UFF), Pesquisador e Coordenador do Ncleo de Estudos Humansticos Transdisciplinares no Instituo de Cincias Cognitivas (ICC). Endereo para contato: Rua Saldanha Marinho, 37/301, Centro, Niteri, RJ 24.030-040, Brasil. Telefone: +55 (21) 2721-0101. E-mail: [email protected].

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    muletas ou outra caridade, inclusive que lhes carreguem dali.

    H, ainda, que se falar dos Prias. Daqueles persistentes utpicos que vagam pelas ruas do mercado, associando-se em guildas no intuito de construir uma aliana, atravs da qual nobres e leprosos possam cooperar. Associaes no-governamentais que longe do mercantilismo de muitas instituies privadas e do isolamento egico dos vales pblicos se esforam no sentido de estabelecer um espao de cooperao. Contra seus esforos, h a inquisio imperial buscando assumir o controle das possveis parcerias, transformando-as em possesses, em novas terras para serem agregadas ao imprio. Atitude similar vem dos lderes do Vale que como Constantinos tentam encher os espaos oferecidos com seus doentes, adoecendo todos os envolvidos ou, ento, percebendo que determinada iniciativa vai beneficiar mais um do que outro lder,

    acabam impondo entraves e se digladiando at que apenas mais chagas restem naqueles que tentavam cooperar.

    Infelizmente, ainda no atingimos a maturidade social e acadmica para o desempenho de aes em parceria. A comunidade acadmica brasileira, via de regra, reproduz ainda o ambiente dos ptios de colgio, onde disputas infantis entre pequenos grupos impedem a percepo do significado de palavras como coletividade e bem comum. Enquanto isto, resta apenas manter os esforos e a esperana de que nossa comunidade cientfica se d conta de que moradores do Palcio ou do Vale, teriam apenas a ganhar com a associao e o cooperativismo entre diferentes instncias, com a formao de parcerias saudveis e maduras. Enquanto isto no acontece em nossa comunidade acadmica resta aos utpicos somente a certeza de que preciso persistir.

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    Cincias & Cognio 2004; Vol 03 Cincias & Cognio

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    Fatores psicofisiolgicos na terapia de reposio hormonal em homens

    Psychophysiological factors in the hormonal reposition therapy in males

    Ana Carolina M. Mollea, , Ivna C. N. Matheusa, Jeane R. Lucenaa, Lianna Nunesa, Lvia S. Oliveiraa, Alfred Sholl-Francob, c,

    a Instituto de Psicologia, Centro de Filosofia e Cincias Humanas, UFRJ, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil; bPrograma de Neurobiologia, Instituto de Biofsica Carlos Chagas Filho, Centro de

    Cincias da Sade, UFRJ, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil; cNcleo de Neurocincias e Cincias da Sade, ICC, Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil

    Resumo O presente estudo buscou revisar alguns aspectos relacionados com a andropausa e com a reposio hormonal masculina. Entretanto, a literatura existente ainda no conseguiu estabelecer certezas devido variabilidade de expresso da andropausa e falta de sintomas especficos, alm das correlaes encontradas entre os nveis de testosterona e os sintomas serem ainda pouco significativas. Entre tais sintomas, pode-se dar nfase disfuno sexual, aumento da proporo de gordura corporal, diminuio de massa muscular, depresso, entre outros. A terapia de reposio hormonal um tratamento que leva a uma melhora na ocorrncia de alguns destes sintomas, porm no indicada a todo paciente, j que recomendvel estabelecer um balano individual entre benefcios e possveis efeitos colaterais. Cincias & Cognio 2004; Vol. 03: 04-09. Palavras-chave: andropausa; testosterona; terapia de reposio hormonal; cognio. Abstract This study aimed to explain some aspects related to andropause and to male hormonal reposition therapy. However, the current scientific literature does not establish definitive concepts due to andropause expression variability and to absence of specific symptoms, as well as to considered yet non-relevant correlation between testosterone levels and symptoms. Among the symptoms can be emphasize the sexual dysfunction, increase of corporal fat proportion, decrease of muscle mass, depression, and others. Hormonal reposition therapy treatment may improve significantly the simptons, but it is not recommended to all patients since it is recommended to establish a case by case balance between benefits and possible non expected adverse effects. Cincias & Cognio 2004; Vol. 03: 04-09. Key Words: andropause; testosterone; hormonal reposition therapy; cognition.

    Reviso

    A. C. Molle Graduanda do Curso de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Endereo para contato: Praia de Botafogo, 96/409, Botafogo, Rio de Janeiro, RJ 22250-040, Brasil. Telefone: +55 (21) 2237-5177. E-mail: [email protected]; A. Sholl-Franco Bilogo (FAMATh), Especialista em Neurobiologia (UFF), Mestre e Doutor em Cincias (UFRJ). Atua como Professor no Instituto de Biofsica Carlos Chagas Filho (IBCCF UFRJ) e Coordenador do Ncleo de Neurocincias e Cincias da Sade do Instituto de Cincias Cognitivas (ICC) e Orientou este trabalho. Endereo para contato: Sala G2-032, Bloco G CCS, Programa de Neurobiologia IBCCF- UFRJ, Av. Brigadeiro Trompowiski S/N Cidade Universitria, Ilha do Fundo, Rio de Janeiro, RJ 21.941-590, Brasil. Telefone: +55 (21) 2562-6562. E-mail: [email protected].

    Cincias & Cognio 2004; Vol 03: 04-09 Cincias & Cognio Submetido em 20 de Julho de 2004| Aceito em 05 de Setembro de 2004 | ISSN 1806-5821 Publicado on line em 31 de Novembro de 2004

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    1. Introduo O climatrio masculino, ou

    andropausa caracterizada por um hipogonadismo, foi descrito pela primeira vez em 1939, como o declnio da testosterona plasmtica em homens acima de 50 anos. A partir dos anos 60, trabalhos cientficos confirmaram estas descobertas e identificaram uma reduo no fluxo sangneo nos testculos, com reduo significativa na sntese da testosterona (Seidman et al., 2001).

    A validade do termo andropausa vem sendo discutida devido sua aparente equivalncia ao fenmeno da menopausa (Novk et al., 2002), relativo queda nos nveis de hormnios sexuais em mulheres, contudo, na mulher essa condio implica na falncia dos ovrios e no repentino fim de seu ciclo reprodutivo, enquanto no homem a fertilidade mantida (Vermeulen, 2000). A fim de evitar falsas relaes de equivalncia, foi sugerido, no Congresso da Sociedade Austraca de Andrologia, o uso do termo insuficincia andrognica parcial do homem, ou PADAM, do ingls parcial androgen deficiency of the aging male, em 1994.

    Com o avanar da idade, o homem diminui a produo de vrios hormnios, principalmente a dos chamados esterides sexuais. A reduo dos nveis de testosterona natural aps os 40 anos de idade, diminuindo cerca de 1% ao ano (Ballone, 2002) e torna-se mais aparente depois dos 50 anos. Essa queda hormonal pode ou no levar a um quadro de andropausa. Nos casos em que acontece, no h uma faixa de idade determinada para o incio dos sintomas, embora eles apaream freqentemente entre os 60 e 70 anos de idade. Uma possvel precocidade neste processo pode ser explicada atravs de fatores como estilo de vida, dieta, tabagismo, drogas, lcool e estresse fsico ou psquico (Gomes, 2002), alm de doenas crnicas como diabetes, artrite reumatide, ateromatose, insuficincia heptica, renal ou pulmonar e o uso de medicamentos como antihipertensivos, neurolpticos, cetoconazol e corticides (Vermeulen, 2000).

    Os sintomas relacionados a esse quadro clnico incluem o aumento da proporo de gordura corporal, alteraes no perfil lipdico no sangue, diminuio da massa muscular, tendncia osteoporose, sudorese, diminuio da libido, dificuldade de ereo, dificuldade de concentrao, problemas de memria, fadiga, apatia, desencorajamento, ansiedade, depresso, queda de plos, irritabilidade, insnia e diminuio da sensao de bem-estar (Heinemann et al., 2003)

    No se sabe exatamente se os sintomas da andropausa so acarretados pela diminuio de testosterona, ou se so decorrentes de outras alteraes no complexo mecanismo de controle hormonal do organismo. Mais ainda, no se sabe se so uma adaptao fisiolgica ao envelhecimento ou um evento patolgico (Vance, 2003).

    2. Mecanismo de controle dos hormnios sexuais

    O eixo HPG (hipotalmico-hipofisrio-gonadal) o responsvel pela regulao da produo dos hormnios sexuais, o que ir ocorrer atravs de interaes entre o hipotlamo, a hipfise (pituitria) e as gnadas. O GnRH (hormnio liberador de gonadotrofinas) do hipotlamo regula a liberao de LH e FSH pela hipfise anterior e os testculos produzem, atravs das clulas de Leydig, e secretam a testosterona comandados por estas gonadotrofinas. Os hormnios sexuais tm diversos efeitos no corpo e tambm retro-alimental o sistema por atuarem ao nvel da hipfise e do hipotlamo (Novk et al., 2002). O hipogonadismo, alm de resultar em baixos nveis de testosterona e a elevados nveis de hormnio luteinizante (LH), pode ser, algumas vezes, resultante de alteraes neste eixo (Bulco et al., 2004, para reviso).

    Os testculos so os principais responsveis pela produo de andrognios, ainda que pequenas quantidades sejam secretadas pelas glndulas supra-renais e em outros locais. A testosterona o andrognio mais abundante e responsvel pela maioria

    Cincias & Cognio 2004; Vol 03 Cincias & Cognio

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    dos efeitos hormonais masculinizantes (Blair et al., 2002). Entretanto, outros hormnios, como os DHEAs, representados pela dehidroepiandrosterona (DHEA) e pelo dehidroepiandrosteronasulfato (DHEAS), apresentam importantes papis. Estes ltimos so andrognios liberados pelo crtex das glndulas supra-renais, que tm seus nveis plasmticos diminudos com o avano da idade (Vermeulen, 2000). Assim, suspeita-se que estes esterides tambm possam estar envolvidos no processo fisiolgico de envelhecimento. Isto tem sido confirmado pelo fato de muitos estudos demonstrarem um aumento no bem-estar fsico e psicolgico em homens idosos quando submetidos administrao exgena de DHEA (Baulieu, 2003). 3. Manifestaes bioqumicas da andropausa

    A maior parte da testosterona em

    circulao a testosterona ligada a uma globulina, a SHBG (globulina de ligao de hormnio sexual), sem efeitos biolgicos muito claros. Outra frao que no est destinada a esta ligao a testosterona livre ou biodisponvel, responsvel pelos efeitos conhecidos dos andrgenos (Vance, 2003). Com o envelhecimento, a testosterona que antes circulava livremente, tende a ligar-se s globulinas, aumentando os nveis de SHBG e conseqentemente diminuindo os nveis de testosterona livre numa proporo em torno de 50% em relao dos homens mais jovens (Heinemann et al., 2003).

    Alm desse declnio nas fraes de testosterona, o envelhecimento associado a mudanas em outros sistemas hormonais, incluindo quedas nos nveis de GH (hormnio do crescimento), IGF-1 (fator de crescimento semelhante a insulina do tipo I), melatonina e DHEA (Novk et al.,2002).

    3.1. Diagnstico

    O critrio de diagnstico para a

    andropausa objeto de debate para os mdicos especialistas. Uma Conferncia de

    Consenso em Andropausa, realizada em abril de 2000 e patrocinada pela Sociedade de Endocrinologia, estabeleceu padres para a avaliao de possvel hipogonadismo em homens adultos. O mtodo utilizado para o diagnstico inclui a dosagem srica de testosterona pela manh, nveis de LH e de prolactina. O quadro de andropausa pode ser considerado se o nvel srico de testosterona estiver abaixo de 150ng/dl e os nveis de LH e prolactina estiverem normais (Vance, 2003). Vance (2003) ainda sugere que a determinao desse valor para os nveis sricos de testosterona de alguma forma arbitrria e no pode excluir definitivamente a presena de uma leso hipofisria; neste caso, recomendada a ressonncia magntica da hipfise. Doenas concomitantes, como depresso clnica, transtornos de personalidade, deficincia cognitiva leve, hipotiroidismo e fibromilagia tambm podem confundir o diagnstico, assim como doenas crnicas, estresse, ritmo circadiano e o uso de medicaes (Tan e Culberson, 2003).

    O complexo conjunto de sintomas derivados do hipogonadismo associado as anormalidades laboratoriais pode ser um forte indicativo da necessidade de terapia de reposio de testosterona.

    4. Reposio hormonal

    Nicholls (2003) afirma que o

    fisiologista francs Charles Edouard Brown-Squard foi a primeira pessoa a relatar, em 1889, os supostos benefcios da reposio hormonal, ao se sentir rejuvenescido aps injetar extratos de testculos de cachorro em si mesmo. Outras tentativas, com o mesmo propsito, foram feitas nas primeiras dcadas do sculo XX. Serge Voronoff comeou a transplantar testculos de macaco ou glndulas de macaco, e Eugen Steinach argumentou que testculos produtores de esperma seriam convertidos em testculos produtores de hormnios sexuais aps ser feita vasectomia.

    Essas terapias populares foram mais tarde elucidadas e hoje se sabe que seu sucesso foi devido ao que chamamos de efeito

    Cincias & Cognio 2004; Vol 03 Cincias & Cognio

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    placebo. A quantidade de testosterona nos preparados de Brown-Squard era quatro vezes menor que a dose necessria para a obteno de efeitos biolgicos; as complexidades de transplantes tornam mais que provvel que as glndulas implantadas de Voronoff teriam sido rapidamente rejeitadas e pensa-se que a vasectomia nada tem com a produo de hormnios sexuais. Entretanto, apesar destes tratamentos no funcionarem efetivamente, havia uma verdade por trs destas tentativas. Recentemente, diversas pesquisas sobre o tema tm sido realizadas e os benefcios da reposio hormonal j podem ser sentidos.

    A terapia de testosterona recomendada somente na presena de um ou mais sintomas atribuveis ao baixo nvel hormonal, dosagens de testosterona mostrando nveis baixos e alteraes compatveis de outros hormnios responsveis pela regulao dos testculos (SBU, 2004).

    Anteriormente, esta reposio hormonal se dava atravs do uso de steres de testosterona de longa durao que demandavam injees intramusculares. No entanto, novas formulaes permitem que a testosterona seja inserida de forma menos dolorosa e mais fisiolgica (Vance, 2003), utilizando-se aplicao transdrmica com gel, cremes ou adesivos cutneos, alm da possibilidade de ingesto de tabletes de testosterona por via oral.

    Os resultados do tratamento devem ser percebidos pelo paciente atravs de uma melhora do bem-estar geral, estado de alerta, vigor e humor, assim como da libido e da atividade sexual, aumento da massa e fora musculares, da densidade mineral ssea e da melhora no perfil metablico do paciente. Alm da terapia de reposio hormonal, recomendvel uma suplementao com vitaminas, sais minerais e oligoelementos para melhorar a atividade mental; de antioxidantes e aminocidos para ajudar na liberao de neurotransmissores cerebrais melhorando o interesse sexual e o prazer em geral pela vida (Ballone, 2002).

    A deciso final em se utilizar o tratamento de reposio ou no vai depender, no final, do balano entre os benefcios esperados e eventuais efeitos colaterais, como eritrocitose, edema, ginecomastia (Tan e Culberson, 2003), policitemia, supresso da produo de esperma, piora da apnia do sono, na alta densidade de lipoprotenas e na concentrao de colesterol (Vance, 2003).

    Antes de se comear qualquer terapia substitutiva, o paciente deve, com cuidado, ser examinado para certificar-se da ausncia de contra-indicaes, como problemas hepticos, j que a testosterona sinttica metabolizada pelo fgado e pode causar danos a este rgo; pessoas com fatores de risco para problemas cardacos podem ter seu quadro agravado; e indivduos com cncer de prstata podem sofrer com o crescimento do tumor (SBU, 2004).

    Ainda necessrio um estudo a longo prazo para que possamos nos tornar confiantes de que a reposio de andrognios segura em pacientes com andropausa. Apesar da segurana a longo prazo ainda no ser determinada, em geral, existe confiana de que pelo menos 3 ou 4 anos de terapia seja seguro (Tan e Culberson, 2003). Antes que mdicos possam prescrever terapia de reposio de andrognio para uma grande frao da populao de homens idosos, seria ideal que um teste de longo prazo, controlado por placebo (Hoffman, 2001), de terapia de testosterona fosse iniciado. Esses testes nos permitiriam aprender mais sobre a histria natural da andropausa, e determinar se essa terapia possui efeitos em fatores como densidade ssea, fora muscular e qualidade de vida.

    4.1. Efeitos da testosterona na cognio

    Tan e Culberson (2003) mostraram que a testosterona aumenta a comunicao intercelular entre neurnios atravs de diferentes tipos de receptores para andrognios presentes em clulas neuronais. A testosterona pode ter efeitos no genmicos na serotonina, dopamina, acetilcolina, assim como na sinalizao por clcio.

    Cincias & Cognio 2004; Vol 03 Cincias & Cognio

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    Estudos foram elaborados para verificar se a testosterona possui papel de manuteno no comportamento sob os aspectos de memria. Nicholls (2001), ao tratar destes aspectos, remete-se ao estudo de Robert S. Tan (2001) no qual a perda de memria aparece como terceiro mais freqente sintoma ligado andropausa. H fortes evidncias de que estrgenos e andrgenos teriam um papel protetor contra a neurodegenerao (Bulco et al., 2004, para reviso).

    Outros fatores pesquisados foram velocidade motora, flexibilidade cognitiva, e humor. Os resultados sugeriram que a suplementao de testosterona pode modificar a cognio em homens mais velhos, porm provvel que isso ocorra devido influncia da testosterona sobre o estrognio.

    4.2. A testosterona e a libido

    Foi demonstrado que a perda da libido e a disfuno ertil so dois processos co-dependentes, porm separados. De forma abrangente, libido tende a ser um evento central e depende de funes cerebrais. Em contraste, a disfuno ertil tende a ser um evento local, comumente causada por uma insuficincia vascular, mas pode tambm resultar de questes psicolgicas incluindo estresse, o que lhe confere alguns componentes centrais. Acredita-se que a testosterona pode, em parte, ajudar na disfuno ertil atravs de seus efeitos vasodilatadores.

    O efeito da testosterona na libido pode ser resultado de sua ao em receptores cerebrais assim como em receptores no pnis. A libido melhorada na presena de testosterona se comparada a estudos com placebo. Os efeitos na libido so geralmente aceitos, mas os efeitos nas funes erteis so mnimos. Corroborando isso, Vermeulen (2000) diz que nveis de testosterona esto proporcionalmente relacionados com a freqncia no intercurso sexual, ou seja, homens com maiores quantidades de testosterona desejam relaes sexuais mais

    vezes do que aqueles com nveis menores do mesmo hormnio.

    4.3. Aspectos psicolgicos associados: depresso e ansiedade

    Seidman e colaboradores (2001) sugerem que o hipogonadismo no-tratado pode estar associado ao desenvolvimento de depresso. Neste mesmo caminho, Delhez e colaboradores avaliaram se havia um quadro depressivo em homens que apresentavam sintomas de andropausa, segundo a escala de Carroll. Os resultados encontrados apontaram para uma correlao significativa entre a escala Carroll e a testosterona livre, indicando que seu declnio provavelmente estaria associado aos sintomas depressivos, porm, sintomas de depresso menor, j que no refletiam nveis patolgicos. No mesmo estudo (Delhez et al., 2003), a ansiedade foi medida pelo Questionrio Geral de Sade atravs da dimenso de ansiedade-insnia. Os resultados no mostraram diferenas nos nveis de ansiedade entre sujeitos hipo e eugonadais. Sabe-se que este sintoma faz parte do quadro da andropausa, porm no foi ainda possvel comprov-lo atravs de pesquisa em humanos.

    Alm disso, a qualidade de vida de indivduos, durante a andropausa, foi medida atravs do Questionrio Mundial de Qualidade de Vida, da Organizao Mundial de Sade. Apesar de no terem sido encontradas relaes entre a qualidade de vida e a deficincia de testosterona, parece que a condio normalmente tem um impacto negativo na qualidade de vida. Por tal motivo, foi sugerida a medio deste item especificamente orientada em fatores vasomotores, sexuais e psicossociais (Delhez et al., 2003).

    5. Concluses

    A andropausa ainda uma condio

    muito controversa e pouco conhecida. Diversos estudos procuram por dados contundentes na busca de uma base slida para a discusso de cada vez mais questes

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    relacionadas. Infelizmente, ainda no se conseguiu tais comprovaes apesar de diversas tentativas, porm um caminho j comea a ser traado.

    Como se pde observar atravs deste estudo, conseqncias da deficincia de testosterona parecem ser mais salientes ao nvel fsico que ao nvel psicolgico, quando testadas cientificamente. Ao tratar especificamente da terapia de reposio hormonal, ainda se procura o andrognio ideal, especfico para rgos e alvos, e sem efeitos direcionados a outras funes metablicas ou fisiolgicas.

    Fica claro que o papel dos nveis de testosterona primordialmente importante na caracterizao do quadro de andropausa, porm os sinais e sintomas de envelhecimento em homens so, sem dvida, de origem multifatorial. 6. Referncias bibliogrficas

    Ballore, G.J. (2002). Andropausa. Retirado em 15/05/2004, World Wide Web: http://www.gballone.sites.uol.com.br/geriat/andropausa.html. Baulieu, E. (2003). Androgens and aging men. Mol. Cel. Endocrinol., 198, 41-49. Blair, M. F., Connors, B. W. e Paradiso, M. A. (2002). Neurocincias desvendando o sistema nervoso. ArtMed: Porto Alegre. Bulco, C. B.; Carange, E.; Carvalho, H. P.; Ferreira-Frana, J. B.; Kligerman-Antunes, J.; Backes, J.; Landi, L. C. M.; Lopes, M. C.; Santos, R. B. M. e Sholl-Franco, A. (2004). Aspectos fisiolgicos, cognitivos e psicossociais da senescncia sexual. Cincias e Cognio, 1, 54-75. Retirado em 10/06/2004, World Wide Web: http://geocities.yahoo.com.br/cienciasecognicao/. Delhez, M.; Hansenne, M. e Legros, J. (2003). Andropause and psychopathology: minor symptoms rather than pathological ones. Psychoneuroendocrinology, 28, 863-874. Gomes, M. C. O. (2002). Andropausa, a menopausa do homem. Retirado em 18/06/2004, World Wide Web:

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    O imaginrio sobre o trabalho e suas representaes no cotidiano dos comerciantes do mercado pblico em Pernambuco

    The imaginary about the work and their representation in the quotidian of the public market traders

    in Pernambuco

    Conceio Maria Dias de Lima

    Fundao Universidade Estadual de Alagoas, Pernambuco, Alagoas, Brasil

    Resumo O presente estudo objetivou conhecer as representaes do trabalho desenvolvidas pelos comerciantes do Mercado Pblico de Casa Amarela Recife PE. A metodologia empregada foi a de um estudo de caso, baseado em levantamentos de dados, entrevistas, observaes participantes e na feitura de um dirio de campo. Inicialmente foi abordado o conceito de cotidiano, compreendendo que em torno desse se estabelece o espao do estudo. Em seguida, foram investigados os diferentes significados do trabalho ao longo da histria e sua representao na contemporaneidade. Ao final foram analisadas as informaes obtidas atravs das entrevistas com os comerciantes do Mercado no tocante s suas representaes sobre o trabalho no contexto popular. Cincias & Cognio 2004; Vol. 03: 10-20. Palavras-chave: imaginrio; cotidiano; trabalho; representaes. Abstract The present work aimed to study the representations of the work developed by the traders of the Public Market of Casa Amarela Recife PE. The employed methodology was a study of case, based on data search, interviews, and local observations, as well as on the confection of field notes. Initially we studied the concept of the quotidian, to establish this question as the major object of this study. By the way, the different aspects of the work during the history were also investigated their representation in the contemporary. Finally, the information obtained by interviews with de trades of Public Marked was analyzed under a popular context of theirs representations about the work. Cincias & Cognio 2004; Vol. 03: 10-20. Keywords: imaginary; quotidian; work; representations.

    1. Introduo

    O cotidiano revela diversas atividades exercidas sobre um territrio, onde se desenvolvem as diferentes prticas sociais e

    suas respectivas socialidades atravs dos tempos. A vida cotidiana, segundo Agnes Heller (1972) a vida cotidiana do homem inteiro, no se pode dissociar o cotidiano da histria da sociedade, pois os fatos histricos

    C. M. D. de Lima Mestre em Administrao Rural e Comunicao Rural, Membro da Comisso de Pesquisa e Extenso da Fundao Universidade Estadual de Alagoas (FUNESA). Endereo para contato: Rua Marqus de Baipendi, 82, Hipdromo, Recife, PE 52.041-660, Brasil. Telefone: +55 (81) 32416157, Fax: +55 (81) 91238479. E-mail: [email protected].

    Artigo Cientfico

    Cincias & Cognio 2004; Vol 03: 10-20 Cincias & Cognio Submetido em 11 de Novembro de 2004| Aceito em 20 de Novembro de 2004 | ISSN 1806-5821 Publicado on line em 31 de Novembro de 2004

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    nascem no cotidiano remetem idia de repetio, contudo, esse espao no s de reproduo, mas de produo de sentidos.

    Outra caracterstica do cotidiano para Heller (1972:18) a espontaneidade, no querendo dizer com isto que todas as atividades do cotidiano o sejam no mesmo nvel, mas que existe uma tendncia marcante do cotidiano para a espontaneidade. Tanto as atividades de motivaes particulares quanto as atividades de motivaes humano-genricas. Segundo essa autora, a vida cotidiana heterognea e hierrquica. heterognea no que diz respeito ao contedo e significao ou importncia de nossos tipos de atividades, a saber: organizao do trabalho, da vida privada, do lazer, do descanso, da atividade social, dentre outros. hierrquica quando se modifica de modo especfico em funo das diferentes estruturas econmico-sociais. Para uma melhor compreenso desses aspectos, a autora parte do trabalho como categoria de anlise. Nos tempos pr-histricos o trabalho ocupou um lugar dominante na hierarquia; e, para os servos, essa mesma hierarquia se manteve durante ainda muito tempo; toda a vida cotidiana se constitua em torno da organizao do trabalho, qual se subordinavam todas as demais formas de atividades. Por outro lado, a populao livre da tica do sculo V, antes da nossa era, ocupava o lugar central da vida cotidiana atividade social, a contemplao, o divertimento (cultivo das faculdades fsicas e mentais) e as demais formas de atividades agrupavam-se em torno destas numa gradao hierrquica.

    Dessa forma, Heller (1972) afirma que a heterogeneidade e a ordem hierrquica (que condio de organicidade) da vida cotidiana coincidem no sentido de possibilitar uma explicitao normal da cotidianidade; e esse funcionamento rotineiro da hierarquia espontnea igualmente necessrio para que as esferas heterogneas se mantenham em movimento simultneo. Sob esse enfoque, o cotidiano vem representando o espao de estudo para diversos tericos de vrias reas do conhecimento, o pesquisador da

    comunicao um exemplo disso. A partir dos estudos de Antonio Gramsci que considera a comunicao enquanto fenmeno indissociado da cultura e dos estudos que envolvem culturas populares, Martn-Barbero (1991: 222-223) chama de mediaes culturais a presena e influncia das diversas instituies, organizaes, matrizes culturais, que atuam na produo do sentido. So essas instncias que ajudam o homem a elaborar e representar sua realidade.

    Para Martn-Barbero (1991), o importante saber o que as pessoas fazem da informao (acata, rejeita, refuncionaliza?) no seu cotidiano, a partir das vrias instncias de negociao do sentido (mediaes culturais). Assim, segundo esse autor, a estrutura da comunicao vista como:

    (...) partindo no de puros conceitos comunicativos, mas de modo de viver, fazer, modos de perceber na realidade os diferentes impugnadores, questionadores, ainda que essa impugnao e esse questionamento (...) no sejam claros, difanos e estejam atravessados pela ambigidade, pelo conflito (...).

    Tal afirmativa introduz a compreenso

    de Mauro Wilton Souza (1995:35), quanto esfera das prticas sociais cotidianas no apenas procura das significaes e usos sociais atribudos s coisas, mas uma nova postura: a comunicao vista com base nessas prticas, ou seja, nessa viso de cultura. nessa direo que entendemos o cotidiano como espao de estudo das representaes sociais, dentre elas o trabalho, como assinala Nestor Garcia Canclini:

    (...) El repertorio de bienes y mensajes ofrecidos por la cultura hegemnica condiciona las opciones de los sectores subalternos, pero stos seleccionam y combinan los materiales recibidos en la percepcin, en la memoria y en el uso y construyen com ellos otros sistemas que nunca son el eco

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    automtico de la oferta hegemnica (1988:24).

    Associado a isso, Jos de Souza

    Martins (2000:60) afirma que os significados que mediatizam os relacionamentos entre as pessoas esto sujeitos a um complexo mecanismo de deciframento (...) no h apenas negociao e interpretao de significados, mas tambm critrios para seu uso(...). Assim, o conhecimento do cotidiano no constitudo apenas de significados.

    Portanto, na sociedade atual com a reformulao da estrutura scio-econmica, consideramos relevante discutir as representaes que as pessoas tm sobre o trabalho no mbito da vida cotidiana, visto que a partir dessas pessoas que se estabelecem s prticas sociais. Em seguida, far-se- uma conexo a partir das entrevistas realizadas junto aos comerciantes do Mercado Pblico de Casa Amarela, considerando o imaginrio e suas especificidades enquanto culturas populares em contextos urbanos. 2. Cotidiano: o espao de estudo

    Para compreender o cotidiano como

    espao de estudo, partimos da releitura da teoria de Gramsci sobre culturas populares, na qual Canclini (1996:103) assinala que as especificidades das culturas populares derivam do fato de que o povo produz no trabalho e na vida formas especficas de representao, reproduo e reelaborao simblica das suas relaes sociais.

    Nesse sentido, contemplam-se aspectos fundamentais das populaes como o uso do espao e do tempo, as formas de organizaes para o trabalho, o consumo de bens materiais e simblicos, as formas e os meios de comunicao adotados por essas populaes em sua realidade cotidiana, enfim, contempla essas e outras mediaes culturais que so importantes para a compreenso das culturas populares.

    A concepo de Canclini (1988:48) parte da teoria da reproduo, mas vai alm desta, pois inclui os aspectos culturais e da

    vida cotidiana, para ele toda a formao social para subsistir deve reproduzir seus condicionantes de produo, ou seja, deve reproduzir a fora de trabalho mediante o salrio, a qualificao dessa fora de trabalho mediante a educao e a adaptao dos diferentes grupos ordem social atravs de uma poltica que, ao programar o consumo, organiza sua vida cotidiana de acordo com as necessidades do sistema e com as possibilidades que este oferece a cada setor.

    Dessa forma, as culturas populares tm a capacidade de reconverter espontaneamente ou intencionalmente os seus cdigos para participar de uma ordem hegemnica, desde que isso venha ao encontro de suas necessidades materiais e simblicas cotidianas imediatas. Segundo Canclini (1996:3), as estratgias de reconverso mostram que a hibridizao interessa tanto as culturas hegemnicas como as culturas populares que querem apropriar-se dos benefcios da modernidade.

    Aproximando essas consideraes do nosso objeto de estudo observamos que para participarem da ordem hegemnica/massiva de modernizao os comerciantes do Mercado Pblico de Casa Amarela reconvertem intencionalmente os seus cdigos, ou seja, reconvertem as formas de desenvolver os seus trabalhos, assimilando novos hbitos em suas vidas que se refletem no seu lazer, no seu vesturio, na sua alimentao, etc.

    As reconverses se apresentam como uma possibilidade de se integrar a essa ordem massiva/hegemnica, mas essa integrao no se estabelece obrigatoriamente no plano concreto, ela tambm se estabelece no plano de suas aspiraes e desejos. , nesse sentido, que luz da preocupao terica de Martn-Barbero e Canclini que consideramos o espao do cotidiano como sendo fundamental para a anlise das representaes do trabalho pelos comerciantes do Mercado Pblico de Casa Amarela, na medida em que nesse espao que as mediaes se explicitam, ou seja, os usos e apropriaes realizadas das mensagens dos meios esto diretamente ligados s prticas cotidianas.

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    Para Martn-Barbero, as mediaes se revelam atravs de prticas concretas do cotidiano, a ritualidade (rotina) e a tecnicidade (tecnologias da informao), que so apresentadas por Guilhermo Orozco Gmez da seguinte maneira:

    La socialidad, que tiene que ver com las prcticas cotidianas de todos los sujeitos sociales para negociar el poder de qualquer autoridad, negociacon del espacio de unos com los otros (...). La ritualidad, que est relacionada com las rutinas repeticin de ciertas prctas, que por definicin envuelven una cierta rutina, si no seran prctas: seran actividades aisladas, espontneas, assistemticas que se dan alguna vez. Rutinidad que es un elemento de la prcta donde se manifesta una mediacin. Esto se puede ver cmo se passa el tiempo libre: se tiende a caer en lo mismo. Esa rutina, dice Barbero, est determinando la produccin de sentido y la produccin cultural que se da atravs de ella (...) (1997:53).

    Adequado, portanto, como aporte

    terico para a compreenso das relaes entre culturas populares e cultura hegemnica, possibilitando observar o popular quando impugna ou quando aceita no por submisso, e sim, por entender que os interesses hegemnicos tambm so teis de alguma forma para suas necessidades. Tal afirmativa nos ajuda, tambm, a compreender a realidade cotidiana e o uso do espao e do tempo, as formas de organizaes para o trabalho, as relaes de consumo de bens materiais e simblicos das culturas hegemnicas pelas culturas populares.

    Para Lopes (1997:127-129), em termos tericos, considerar o cotidiano como uma dimenso fundamental para a anlise significa fazer uma aproximao com a Antropologia, disciplina para a qual a cultura pensada como modo de vida.

    A respeito do cotidiano, Sousa afirma:

    O cotidiano hoje redescoberto como momento de anlise do dado social na complexidade que esse mesmo social envolve, a perspectiva de que o cotidiano possa ser o espao onde os processos simblicos so elaborados e reelaborados em si mesmo e a partir das relaes que tem com outros processos simblicos, faz do cotidiano como tal o espao mesmo de compreenso do processo simblico e das relaes de poder que a se imbricam (1986:96).

    A vida cotidiana pode ser compreendida como a vida de todo dia, dos mesmos gestos e ritmos, ir escola, ao trabalho, igreja, ler o jornal, assistir televiso, etc. No pensamento de Heller (1972:18) a vida cotidiana a vida do homem inteiro, no existindo homem sem cotidiano e cotidianidade, segundo essa autora, (...) o homem participa da vida cotidiana com todos os aspectos de sua individualidade, de sua personalidade. Entretanto, segundo Martins (2000:93-94) a vida cotidiana no se reduz a usos e costumes e nem a casa e quarto ou ao rotineiro e repetitivo. Para esse autor a histria vivida e, em primeira instncia, decifrada no cotidiano. (...) de modo algum o cotidiano pode ser confundido com as rotinas e banalidades de todos os dias (...) (Martins, 2000:142). Afirma ainda que os momentos da vida cotidiana e os espaos so no pblico e no privado. Em casa, mas tambm na rua e no local de trabalho: nos lugares em que o homem est desencontrado em relao a si mesmo. Na casa sim, mas na intimidade no. Para esse autor, o cotidiano (...) se define a si mesmo como momento histrico qualitativamente nico e diferente. O cotidiano no tem sentido divorciado do processo histrico que o reproduz Para Martins (2000:101-102).

    Nilda Jacks (1996:198) revela que existem quatro cotidianidades: a domstica, a do trabalho, a da cidadania e a da mundialidade, e cada um desses contextos se converte num espao com especificidades prprias. Contextos esses que se

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    intercambiam e se interpenetram, determinando outros contextos.

    Sobre a investigao das representaes do trabalho no cotidiano dos comerciantes do Mercado Pblico de Casa Amarela, h um rompimento com a viso reprodutivista da vida cotidiana. Para tanto, o aporte fundamental seria ver a vida cotidiana como espao em que se produz a sociedade e no s onde ela se reproduz. A idia implcita nessa concepo de cotidiano a do indivduo como sujeito ativo produtor de sentidos. Como nos informa Martn-Barbero (1991:59), a sociedade est sendo produzida pela e para a maioria das pessoas, pensamento esse que segundo o autor remete a outra dimenso da sociedade, qual seja, a sociabilidade:

    Com isso, h que se repensar o conceito de hegemonia, no em termos da hegemonia ideolgica do grupo que dirige a sociedade, mas de uma sociedade muito mais fragmentada, uma sociedade que no tem um s centro, como dizem os ps-modernos, e na qual a vida cotidiana tem um papel muito mais importante na produo incessante do tecido social. Ou seja, a vida cotidiana o lugar em que os atores sociais se fazem visveis do trabalho ao sonho, da cincia ao jogo.

    Martn-Barbero (1991:59) se refere

    necessidade de mudana no conceito de hegemonia, ou seja, sobre a descentralizao das relaes sociais e de poder e d nfase ao cotidiano para a produo de conhecimentos na sociedade.

    Assim, tomamos emprestado de Heller (1972) sua reflexo sobre a estrutura da cotidianidade, a noo da heterogeneidade das partes orgnicas que integram o cotidiano, priorizando o trabalho na estrutura do cotidiano.

    Portanto, entendemos que no cotidiano as representaes nascem e para esse cotidiano elas voltam na forma de ao. Portanto, a investigao do cotidiano dos comerciantes do Mercado Pblico de Casa Amarela se constitui num local de ao tendo

    como foco de anlise o mbito do trabalho. Isto posto, apresentaremos algumas definies em torno do que seja trabalho, bem como o aspecto histrico relacionado a atualizao desse conceito, buscando compreend-lo na contemporaneidade. 3. Trabalho: diversos significados

    Na nossa lngua, a palavra trabalho se originou do latim tripalium(1). Na linguagem cotidiana a palavra trabalho tem vrios significados. Trabalho pode lembrar dor, tortura, suor do rosto, fadiga, esforo, fabricao, labor, obra, tarefa, cansao. Ou ainda, operao humana de transformao de matria natural em objeto de cultura; realizao de uma obra que se expresse, que d reconhecimento social e permanea alm de sua vida; e a de esforo rotineiro e repetitivo, sem liberdade, de resultado consumvel e incmodo inevitvel.

    No dicionrio, a definio de trabalho aparece como: aplicao das foras e faculdades humanas para alcanar determinado fim; atividade coordenada de carter fsico ou intelectual, necessria a qualquer tarefa, servio ou empreendimento; exerccio dessa atividade como ocupao permanente, ofcio, profisso. Trabalho ainda pode significar: esforo aplicado produo de obras de utilidades ou obras de arte, mesmo dissertao ou discurso; o conjunto das discusses e deliberaes de uma sociedade ou assemblia convocada para tratar de interesse pblico, coletivo ou particular; servio de uma repartio burocrtica; deveres escolares dos alunos a serem verificados pelos professores. Alm de atividade e exerccio, trabalho pode significar o processo de nascimento da criana, dificuldade, incmodo, preocupaes, desgostos, aflies.

    O conceito de trabalho tambm varia

    (1) Significa instrumento feito de trs paus aguados, algumas vezes ainda munidos de pontas de ferro, no qual os agricultores bateriam o trigo, as espigas de milho, o linho, para rasg-los e esfiap-los. Outro registro de tripalium nos dicionrios um instrumento de tortura, o qual se liga ao verbo do latim vulgar tripaliare, que significa justamente torturar.

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    historicamente. Nos primrdios, a humanidade passou do nmadismo para permanecer num determinado lugar a fim de plantar, donde surgiu o trabalho agrcola. Em seguida, com a fixao do homem na terra, despontaram-se as idias de propriedade (posse), troca de bens e troca de moeda por bens, se consolidando na mediao da moeda. Assim, emergia uma classe que vivia da fora de trabalho dos outros, denominada burguesia.

    Com a revoluo industrial, passa-se da fase em que o produtor fazia todo o produto (forma artesanal) para produzir apenas parte do produto (forma industrial). Isso ocasionou vrias mudanas: o distanciamento do produtor do seu produto, a alienao do trabalhador da escolha da matria-prima, do processo de produo e de comercializao, deslocando-o de sua residncia para trabalhar em outro local. O que ocasionou vrios impactos na representao do trabalho para a sociedade, na medida em que se deu o parcelamento da produo e a alienao do produtor sobre o produto (perda de controle). Como conseqncia disso, o trabalho alienado do trabalhador porque, segundo Suzana Albornoz (1998), o produtor no detm, no possui e nem domina os meios de produo; porque produtor e produto esto separados e h um corte entre produtor e consumidor.

    A revoluo industrial coincidiu com a consolidao do modo de produo capitalista. Nesse sentido, a alienao objetiva do homem do produto e do processo de seu trabalho uma conseqncia da organizao legal do capitalismo moderno e desta diviso social do trabalho. Assim, a organizao do processo de trabalho fabril, emergente no final do sculo XVIII na Inglaterra, constitui a referncia histrica na elaborao da noo de trabalho, criada e imaginada na modernidade.

    Se compararmos o trabalho na indstria com o modelo artesanal, fcil perceber tambm a perda do aspecto ldico, onde no deveria se separar o trabalho e o divertimento, trabalho e cultura, no deveria haver necessidade de lazer como evaso. No

    mundo industrial falta esse vnculo entre o trabalho e o resto da vida.

    Nessa direo, Taylor prestou uma grande contribuio. Ele acreditava que quando todo o trabalho executivo estivesse descarregado sobre as mquinas e a organizao, sobrariam para o homem apenas os hobbies e atividade intelectual criativa. Para Ford, o resultado claro da aplicao de seus princpios a reduo para o operrio da necessidade de pensar e a reduo ao mnimo dos seus movimentos. Portanto, para esses estudiosos, o trabalho ideal aquele em que o instinto criativo no se deve exprimir.

    Por outro lado, Alexis Tocqueville defende que quando o trabalho fica a cada dia mais hbil e menos laborioso, pode-se dizer que, nele, o homem se degrada medida que o operrio se aperfeioa. O resultado uma progressiva distino entre empresrio e trabalhador, onde o empresrio alarga a cada dia o seu olhar e o trabalhador limita-se ao estudo de um s detalhe.

    Outro impacto da revoluo industrial foi inverso do trabalho, no qual eu me relaciono com as coisas no pelo valor de uso, mas pelo valor de troca que representa. Ou seja, surge do desejo de fazer parte da lgica hegemnica, de se inserir nesse contexto, de se sentir incluso, de pertencimento. Da, a sociedade levada a inverter seus valores, isto , o conjunto de mediaes de primeira ordem (valor de uso) foi secundarizado para as mediaes de segunda ordem (valor de troca). As pessoas trabalham antes para poder consumir do que propriamente para produzir alguma coisa.

    Segundo Dowbor e colaboradores (1997:150), a idia de trabalho no Ocidente construda, por exemplo, em oposio ao lazer e cio. Por isso, trabalho associa-se, freqentemente, obrigao e mobiliza os sentimentos de castigo, sofrimento, pena, cruz que se carrega, ao passo que o no trabalho se vincula ao iderio da recompensa, descanso, prmio, etc. Por outro lado, a autora diz que no Oriente, a idia de trabalho funda-se na oposio entre trabalho intelectual e manual. Nesse sentido, o trabalho dignifica a vida, se possibilitar o desenvolvimento da

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    criatividade, inventividade e da capacidade cognitiva humana em suas mltiplas dimenses.

    No contexto do mundo industrial e na era da automao, o trabalho um esforo planejado e coletivo. O capitalismo monopolista do sculo vinte e um invadiu as regies aparentemente marginais do Terceiro Mundo. O colonialismo cedeu lugar a um imperialismo econmico indisfarvel. Vivemos a poca das organizaes multinacionais. Associa-se a isso, alta taxa de desemprego, pssimas condies de habitao, de sade pblica e de lazer, alm do xodo rural irmo gmeo contemporneo da exploso demogrfica.

    Nesse contexto, as metamorfoses do trabalho podem ser percebidas nas mudanas no mercado de trabalho, nos paradigmas produtivos, no lugar e sentido atribudos ao trabalho, na formao da sociabilidade e da identidade. O mundo do trabalho que, tendo sido historicamente separado da casa, da famlia, do local de moradia, torna-se cada vez mais autnomo e independente das relaes sociais e das prticas polticas, religiosas, culturais e educacionais. Um conjunto de atividades sociais antes integradas no cotidiano de vida comporia o mundo do no trabalho.

    O conceito de trabalho, segundo Gorz (1991) deve ser redefinido diante da diversidade e da pluralidade de prticas emergentes de trabalho nas sociedades contemporneas. Elas envolvem mulheres, idosos, menores, desenrola-se no mbito da chamada economia informal e do mundo do no trabalho. Nesse sentido, o trabalho recobre um campo mais amplo do que o de emprego ou do trabalho assalariado(2), se constituindo numa atividade social presente em todas as sociedades, apesar das diferentes definies do que seja trabalho. O trabalho no est, portanto, separado da vida. Qualquer

    distino entre as atividades de trabalho e de no trabalho torna-se impossvel.

    O debate contemporneo sobre a crise da sociedade do trabalho e suas metamorfoses remete ainda polmica sobre o lugar e o sentido que o trabalho pago, independente de sua racionalidade e organizao, ocuparia na subjetividade de quem o exerce. Assim, afirma Dowbor e colaboradores (1997:152), a descontinuidade da biografia de trabalho e a reduo do tempo de trabalho no tempo de vida tendem a tornar o trabalho um assunto entre outros, relativizado em sua funo enquanto ponto de referncia para a construo da identidade pessoal e social.

    nessa direo que pretendemos compreender as representaes do trabalho pelos comerciantes do Mercado Pblico de Casa Amarela, estudando seus discursos por meio da verbalizao em entrevistas e da observao participante. 4. Metodologia

    Para esse trabalho foram entrevistados 08 (oito) comerciantes, com faixa etria entre 35 e 70 anos. Esses comerciantes trabalham com miudezas, roupas, carnes, artigos de Umbanda, bares e gros. Eles sempre venderam as mesmas mercadorias.

    Quando questionados sobre como conseguiram o box, alguns responderam que foi por herana, outros atravs da inscrio na Prefeitura e outros atravs de repasse de amigos.

    Os comerciantes moram nos bairros circunvizinhos como os de Alto Santa Isabel e Praa do Trabalho, em Recife, e apenas um mora em outro municpio Olinda. Isso demonstra que a moradia no organiza o cotidiano dessas pessoas, mas o trabalho que simboliza os acontecimentos em comuns entre elas, ou seja, o cotidiano no est fundamentalmente na casa, mas na rua.

    Para coleta de informaes foram aplicadas entrevistas semi-estruturadas junto aos comerciantes do Mercado, alm da observao participante e consulta de documentos na Companhia de Servios Urbanos do Recife CSURB, ligada a

    (2) Paul Singer, conhecido economista brasileiro, distingue entre os setores de emprego: o setor de mercado, do emprego na produo capitalista propriamente dita; o setor autnomo, da produo simples de mercadorias, por artesanato ou em pequenas manufaturas; o setor de subsistncia, do trabalho na produo de alimentos predominantemente para a subsistncia do trabalhador e de sua famlia; e o setor de emprego nas atividades governamentais.

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    Secretaria de Servios Pblicos, rgo responsvel pela administrao dos mercados pblicos de Recife Pernambuco.

    O Mercado de Casa Amarela foi inaugurado em 09 de novembro de 1930, na gesto de Pereira Borges na Prefeitura. As estruturas que sustentam a construo foram trazidas de bonde pela empresa Borrione, em 1928. Presume-se que o terreno onde o mercado foi erguido tenha sido doado pelo proprietrio, Sr Allain Teixeira, naquele mesmo ano. A rea originalmente construda de 817 metros quadrados e, atualmente, abriga 100 boxes sendo que 99 esto em funcionamento. O Mercado se localiza na Estrada do Arraial, 1930 Casa Amarela, Recife PE.

    Na parte interna tem-se uma oferta de produtos diversificada: carnes, frios, peixes, crustceos, armarinhos, artigos do Candombl, ervas, flores e artesanatos. Alm desses, destaca-se o Grando do Queijo como ponto tradicional de venda de charque e queijo de coalho diretamente do serto pernambucano.

    O Anexo I do Mercado foi construdo em terreno pblico e inaugurado no dia 17 de abril de 1982. O prefeito era Jorge Cavalcante. No local funcionava um sanitrio pblico e parte da Feira de Casa Amarela. A rea construda de 640 metros quadrados, inicialmente com 29 compartimentos; hoje so 34 boxes ocupados basicamente por bares.

    Inicialmente, ali se instalaram os locatrios desalojados do Mercado, que ocupavam compartimentos adaptados s paredes das fachadas principais e posterior. Com a construo do anexo, eles foram transferidos e os compartimentos demolidos, devolvendo-se ao velho mercado sua arquitetura original.

    Nas entrevistas realizadas os comerciantes falaram da reforma no Mercado, sendo preservada a estrutura original, mas essa reforma no agradou alguns comerciantes, devido ao aumento da temperatura nos boxes da lateral poente. O Anexo I construdo para comportar mais

    comerciante conhecido entre eles como Mercado Novo.

    H, ainda, o Anexo II do Mercado a Cobal, que abriga 14 boxes para venda de cereais e alimentos no perecveis; e o Sempre Viva, na rua de mesmo nome, que vende confeces, calados e acessrios.

    5. Resultados: imaginrio e representaes sobre o trabalho pelos comerciantes

    A atividade de comercializao desenvolvida por esses comerciantes ocupa uma jornada que varia de 08 horas a 24 horas de trabalho de segunda a sbado e, s vezes, de seis horas aos domingos, expressando a importncia que o trabalho ocupa no cotidiano dessas pessoas.

    O dia de sbado de alguns trabalhadores do Mercado Pblico de Casa Amarela comea ao nascer do Sol s 4:00 da manh. S escapam desse horrio nos outros dias da semana, bem como os comerciantes de armarinhos, artesanatos e roupas. Os demais, principalmente os que trabalham na comercializao de carnes, peixes e bares iniciam sua jornada de trabalho nesse horrio, jornada essa que s acaba ao anoitecer.

    Na descrio sobre a rotina os comerciantes disseram que chegam no box e esperam os clientes chegarem para vender. Todos tm clientes tradicionais, eles dizem que: apesar da concorrncia que grande, tem espao para todos trabalharem.

    Quanto ao lucro apurado, o valor varia entre R$ 40,00/dia (bares), R$ 100,00/semana (miudezas) e R$ 500,00/ms (carnes), os outros no responderam. Os comerciantes gastam com aluguel do box em torno de R$ 40,00 fora as despesas com gua e luz.

    Todos os entrevistados disseram que a venda antigamente era melhor que hoje, uma vez que atualmente o movimento est muito fraco. Isso se deve ao fato, na opinio deles, de que antigamente no tinha muita concorrncia para carne, gros, sapatos, roupas e miudezas; hoje a concorrncia maior porque o comrcio aumentou com a abertura de novas lojas.

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    Em alguns casos, todos os membros da famlia se envolvem com tarefas ligadas comercializao no Mercado. Os mais jovens conciliam essas tarefas com os estudos. As mulheres, por sua vez, submetem-se jornada dupla de trabalho: ocupam-se do comrcio auxiliando os homens, s vezes assumindo o negcio, bem como todas as tarefas domsticas, uma vez que para os entrevistados, esse universo pertence s mulheres.

    Em outros casos, os familiares do comerciante (como irmo e filha) possuem tambm um box prprio para a comercializao de seus produtos. Esses comerciantes comearam a trabalhar no mercado h muito tempo, cerca de 20 a 40 anos atrs. A maioria herdou o ponto dos pais ou dos maridos, quando casou. O espao de trabalho no mercado significa tudo, como demonstra Dona Mri:

    O trabalho no Mercado para mim tudo, pois antes eu trabalhava como empregada domstica. Ento, a gente tem o maior carinho e cuidado porque esse trabalho representa praticamente tudo.

    Para a maioria, o mercado a

    atividade principal. Apenas os mais velhos tm outra fonte de rendimento, qual seja a aposentadoria, como o caso do Sr. Drio (o vendedor mais antigo):

    Aqui ns discutimos tudo, sobre vida e morte, amor e dio, vida real e fantasia, notcias do jornal e da televiso, sobre poltica, famlia, problemas, sonhos, crenas, religio, desejos e decepes.

    perceptvel o tom de orgulho com

    que se refere ao seu trabalho e isso se apresenta proporcionalmente precariedade das condies de vida, ou seja, a intensidade da luta vivida cotidianamente. Pode-se observar nessas falas, uma herana de seus bisavs, tendo como conceito de trabalho algo avassalador que est acima de todas as coisas e do qual quase tudo depende. Nessa direo,

    concordamos com Martins (2000:13) quando afirma que na vida cotidiana que a histria se desvenda ou se oculta.

    Entretanto, vale salientar que antes da indstria poucas pessoas trabalhavam e por pouco tempo. O espao preferencial de socializao era a casa, a praa, a loja, os campos, a parquia, a taberna, a escola. Pretender hoje que o trabalho seja a fonte principal de socializao e de identidade significa limitar este processo de socializao e de formao identitria aos cinco sextos da populao mundial, a saber: as crianas, os estudantes, as donas de casa, os ancios, os nmades, os desempregados, todos aqueles que no Terceiro Mundo no tm familiaridade alguma com a categoria trabalho, assim como entendido no Primeiro Mundo. Significa, ainda, esconder que no trabalho excessivo no se encontram identidade e socializao, mas embrutecimento, marginalizao, conflito e isolamento.

    Sobre o imaginrio dos entrevistados, no que diz respeito ao trabalho no Mercado, alegaram o seguinte: gostamos de trabalhar no Mercado porque tranqilo, no tem perturbao, trabalha-se vontade, todos so amigos. Nessa resposta, chama a ateno o ativismo do trabalho e, conseqentemente, sua alienao. Isso reflete o sentido do trabalho como uma escravido velada.

    Os bares e restaurantes populares, localizados na parte externa do Mercado, so a principal atrao. Alguns deles so porta aberta, no fecham nunca, para alegria dos bomios. Servem comida regional no caf da manh, almoo e jantar, sendo freqentados por motoristas de txis e comerciantes do prprio Mercado, dos anexos e da feira vizinha. As sextas e sbados, pode-se degustar uma deliciosa galinha de capoeira preparada por Dona Nri.

    Para os que trabalham todos os dias, segundo os entrevistados, o Mercado tanto serve para o sustento, como serve para distrair e ocupar a mente, passar o tempo.

    A partir dessa fala, faz-se necessrio uma reflexo a respeito da tarefa de educao dos jovens e de reeducao dos adultos para que aprendam como dar sentido e valor ao

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    tempo livre, enriquecendo-o de introspeco, criatividade e convivncia.

    S assim as populaes tm o direito de cultivar necessidades mais propriamente humanas, como a segurana, a longevidade, a liberao da dor fsica, o conhecimento racional, o bem-estar, a auto-realizao. Portanto, preciso reprojetar a famlia, a escola, a vida, em funo no s do trabalho, mas tambm, do tempo livre, de modo que ele no degenere em dissipao e agressividade, mas se resolva em convivncia pacfica e cio criativo. preciso criar uma nova condio existencial em que estudo, trabalho, tempo livre e atividades voluntrias cada vez mais se entrelacem e se potencializem reciprocamente. Isso requer um ambicioso plano de reeducao e um amplo pacto social que objetive a redistribuio mais justa do trabalho, da riqueza, do saber e do poder.

    Isso posto, concordamos com Martins (2000:11-12) no que diz respeito preocupao de realizar na vida cotidiana a libertao do homem das misrias que o faz pobre de tudo: de condies adequadas de vida, de tempo para si e para os seus, de liberdade, de imaginao, de prazer no trabalho, de criatividade, de alegria e de festa, de compreenso ativa de seu lugar na construo social da realidade.

    Quando questionado sobre se no tivesse o mercado de qu viveriam, alguns responderam que iria trabalhar com outras atividades que sabem fazer como: costura, vendas e trabalho domstico; j outros responderam que no saberia o que fazer.

    O Mercado representa o ganha-po para a maioria, para outros no representa nada, alguns dizem que lazer e outros que gostam de trabalhar com o comrcio, como afirma Sr. Drio. Na maioria dos casos, os comerciantes almoam no prprio lugar de trabalho, revelando um cotidiano onde no se tem um horrio sagrado para fazer as refeies com a famlia. Ou seja, o espao de trabalho se mistura com o da casa.

    Quanto questo de violncia, nenhum dos entrevistados reclamou de desentendimentos, confuses, conflitos, brigas, etc. Todavia, fizeram um adendo com

    relao falta de segurana, pois no mercado novo, os comerciantes colocaram grades devido aos assaltos e furtos ocorridos. 6. Discusso

    Muitas pessoas se desesperam por estarem excludas do exerccio de alguma atividade da qual no gostam, que s vezes at detestam, que muitas vezes so aviltantes por sua inutilidade, mas que as estatsticas oficiais consideram como trabalho. Ou seja, o direito a viver de um modo decente e independente, ter uma casa e filhos, ser bem aceito no convvio social.

    Segundo muitos socilogos, apenas quem trabalha consegue socializar-se, amadurecer, realizar-se. Segundo algumas religies, s quem trabalha consegue se redimir do pecado original e alcanar o paraso.

    Entretanto, por milhares de anos, at o advento da indstria, os que ocupavam o alto da pirmide social os aristocratas, os proprietrios de terras, os intelectuais na verdade no trabalhavam. No era do trabalho que obtinham riqueza e prestgio, mas do nome de famlia, da proteo s artes e letras e de rendas. Hoje, entretanto, um empresrio, administrador ou diretor geral trabalha muito mais horas do que um operrio ou empregado.

    Em suma, antigamente, quanto mais rica menos a pessoa trabalhava, podendo dedicar-se a si, famlia e aos amigos. Hoje, no entanto, quanto mais rico mais o homem trabalha, descuidando de si e dos outros. O trabalho passou de castigo a privilgio.

    No final do sculo XVIII, com a chegada das indstrias milhes de camponeses e artesos se transformaram em trabalhadores subordinados. Os tempos e os lugares de trabalho passaram a no depender mais da natureza, mas das regras empresariais e dos ritmos da mquina, dos quais o operrio no passava de uma engrenagem. O trabalho que podia durar at quinze horas por dia passou a ser um esforo cruel para o corpo do operrio e preocupao estressante para a mente do empregado. Quando existia, deformava os msculos e o crebro Quando

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    no existia, reduzia os trabalhadores a desocupados e os desocupados a subproletariado: trapos ao vento, como diz Marx.

    No sculo XX, tm-se dois grandes modelos que se confrontaram: o comunismo que demonstrou saber distribuir a riqueza, mas no produzi-la e o capitalismo que demonstrou saber produzir a riqueza, mas no distribu-la nem distribuir eqitativamente o trabalho, o poder e o saber.

    E para o futuro, quais so as perspectivas? Os comerciantes entrevistados expressaram que no tem o que se melhorar, pois chegou a um ponto de no ter mais sada. Apesar dessa falta de perspectiva concordamos com Martins quando defende que mesmo na rotina alienadora (...) h momentos de iluminao e criao, de invaso do cotidiano e do senso comum pela realidade e pelo conhecimento que revolucionam o cotidiano. Entretanto, Martins lembra que:

    S quem tem necessidades radicais pode querer e fazer a transformao da vida. Essas necessidades ganham sentido na falta de sentido da vida cotidiana. S pode desejar o impossvel aquele para quem a vida cotidiana se tornou insuportvel, justamente porque essa vida j no pode ser manipulada (...) (2000:62-64).

    Dessa forma, no instante das rupturas

    do cotidiano pelos comerciantes do Mercado Pblico de Casa Amarela, nos instantes da inviabilidade da reproduo, que se instaura o momento da inveno, da ousadia, do atrevimento e at da transgresso. E a a desordem outra, como outra a criao. J no se trata de remendar as fraturas do mundo dessas pessoas para recri-lo, mas de dar voz ao seu silncio, de dar vida sua histria.

    7. Referncias bibliogrficas Albornoz, S. (1998). O que trabalho. So Paulo: Brasiliense.

    Canclini, N. G. ; Roncagliolo, R. (1988). (Ed.). Cultura Transnacional y Culturas Populares. Lima: Instituto para a Amrica Latina. Canclini, N. G. (1996). Culturas hbridas y estrategias comunicacionales. Em: Seminrio Fronteiras Culturales: Identidad y Comunicacin na Amrica Latina. 16-18, Anais. Stirling. Universidade de Stirling. Dowbor, L.; Ianni, O. e Resende, P.-E. A. (orgs.). Desafios da globalizao. Petrpolis: Vozes, 1997. Fausto, A. N. e Pinto, J. M. (Orgs.). (1996). O indivduo e as mdias. Rio de Janeiro: Diadorim. Gmez, G. O. (1997). La investigacin en comunicacin desde la perspectiva qualitativa. Mxico: IMDEC. Gorz, A. (1991). Quem no tiver trabalho, tambm ter o que comer. So Paulo: Estudos Avanados (10). Heller, A. (1972). O Cotidiano e a Histria. Rio de Janeiro: Paz e Terra. Jacks, N. A. (1996). Tempo e espao e recepo. Em: Fausto, A. N. e Pinto, J. M. (Orgs.). O indivduo e as mdias. Rio de Janeiro: Diadorim. Lopes, M. I. V. (1997). Explorao metodolgica num estudo de recepo de telenovela. Em: Temas contemporneos em comunicao. So Paulo: EDICOM: INTERCOM. Martn-Barbero, J. (1991). De los medios a las mediaciones: comunicacin, cultura y hegemona. Mxico: Gustavo Gilli. Martins, J. S. (2000). A sociabilidade do homem simples: cotidiano e histria na modernidade anmala. So Paulo: Hucitec. Sousa, M. W. (1986). A rosa prpura de cada dia: trajetria de vida e cotidiano de receptores de telenovela. So Paulo. Tese (Doutorado em Cincia da Comunicao) Universidade de So Paulo, Escola de Comunicao e Artes. Sousa, M. W. (org). (1995). Sujeito, o lado oculto do receptor. So Paulo: Brasiliense.

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    O processo de consolidao dos jogos eletrnicos como instrumento de comunicao e de construo de conhecimento

    The consolidation process of videogames as instruments of communication and knowledge

    construction

    Glucio Aranha

    Ncleo de Estudos Humansticos Transdisciplinares, ICC, Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil Resumo: Novas tecnologias de comunicao e de informao tm sido desenvolvidas em acentuada velocidade, abrindo um farto leque de objetos que merecem ser observados com maior acuidade tanto no que tange ao seu aspecto comunicativo, quanto em relao sua configurao enquanto espao de produo de sentido. O micro-computador, o CD-ROM, o aparelho de fax, redes de videoconferncia, a Internet, os jogos eletrnicos, dentre outros dispositivos reinventam prticas e modos de troca de contedos, constituindo novos modos de mediao e apagando cada vez mais as fronteiras que separavam os formatos tradicionais (impresso, televiso, rdio, etc.). Recorto, aqui, um desses formatos, a saber: os Jogos Eletrnicos. Desenvolvidos inicialmente como um projeto de redefinio da televiso, estes objetos foram ganhando contornos prprios ao incorporar a si outras tecnologias e projetos, tais como: o de formao de um modelo de cinema interativo e de computador pessoal. Estabeleo um mapeamento histrico do processo de formao e consolidao deste formato at a sua configurao atual, apontando genealogicamente o devir desta tecnologia e as tenses que pesam sobre ela no sentido da consolidao de um espao de produo de sentidos. Cincias & Cognio 2004; Vol. 03: 21-62.

    Palavras-chave: jogos eletrnicos; games; computador; cognio; sentido; comunicao. Abstract: New technologies of communication and information have been developed in high speed, opening a great variety of object that must be profoundly analyzed under both its communicative aspects and its configuration while space of production of sense. The microcomputer, the CD-ROM, the fax machine, videoconference nets, internet, electronic games, among other recreate ways of exchange of contents, constituting new manners of mediation for the traditional formats (printed matter, television, radio, etc). In this work it was analyzed one of these formats, to know: the Electronic Games. Developed initially as a project of television redefinition, these objects had been gaining proper contours when incorporate itself other technologies and projects, such as: the formation of a new model of "interactive cinema" and of "personal computer". A historical mapping of the formation and consolidation processes of this format was established here, pointing genealogically the questions of this technology and the tensions that act on it for the consolidation of a space of sense production. Cincias & Cognio 2004; Vol. 03: 04-09.

    Cincias & Cognio 2004; Vol 03: 21-62 Cincias & Cognio Submetido em 15 de Setembro de 2004| Aceito em 02 de Outubro de 2004 | ISSN 1806-5821 Publicado on line em 31 de Novembro de 2004

    Artigo Cientfico

    G. Aranha Graduado em Direito (UFJF), Mestre em Comunicao, Imagem e Informao (UFF), Doutorando em Literatura Comparada (UFF), Pesquisador e Coordenador do Ncleo de Estudos Humansticos Transdisciplinares no Instituo de Cincias Cognitivas (ICC). Endereo para contato: Rua Saldanha Marinho, 37/301, Centro, Niteri, RJ 24.030-040, Brasil. Telefone: +55 (21) 2721-0101. E-mail: [email protected].

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    Key-words: eletronic games; computer; cognition; sense; communication. 1. Introduo

    A partir do sculo XIX,

    principalmente em decorrncia do crescente domnio do uso da eletricidade, as experimentaes tecnolgicas voltadas para a mediao dos processos de comunicao humana revolucionaram os sistemas de transmisso de saber e das relaes humanas, rompendo violentamente - em termos histricos com os paradigmas espao-temporais at ento vigentes (McLuhan, 1995). A digitalizao do alfabeto no Cdigo Morse (1837) e o telgrafo lanavam a capacidade humana de expresso verbal para espaos muito alm do presencial em um lapso de tempo incomparvel em relao s tecnologias anteriores. Alis, no que tange aos sistemas de expresso do conhecimento humano, as noes de espacialidade e temporalidade iriam sofrer considerveis reformulaes neste perodo. O daguerretipo, por exemplo, possibilitou a fixao da imagem no tempo (Villar, 2001)(1), enquanto o fongrafo fixava os sons atemporalizando, respectivamente, cenas e sonoridades do mundo real, tornando possvel sua difuso por mltiplos espaos. O telefone uniria a reproduo dos sons e a transmisso distncia de forma mpar. O rdio viabilizaria a comunicao de longa distncia entre mais de dois agentes simultaneamente. Grosso modo, estes exemplos deixam entrever a furiosa velocidade com que as tecnologias eltricas foram rompendo com os modelos anteriores e colaborando para a construo do paradigma tecnolgico contemporneo.

    Obviamente, tais avanos e sofisticaes no esto ligados por uma linha evolucionria atravs da qual um avano causa do passo seguinte. No se trata de pensar a questo por um vis evolucionista, mas sim de flagrar uma tendncia busca do aprimoramento de tecnologias anteriores por meio da hibridao e incremento dos potenciais de uso. Uns se somando aos outros, se justapondo, reeditando, acelerando, ampliando e transcendendo seus alcances. Imiscui-se neste processo, um impulso de ampliao dos sentidos humanos, projetando a conscincia para fora do espao vivido.

    Interessa, neste enfoque, pensar o

    nascimento dos novos dispositivos e a construo de novos formatos que culminaro em uma afetao sobre o contedo, gerando por sua vez a reconfigurao dos contedos, remetendo-nos perspectiva de McLuhan (1995) no sentido de que o meio a mensagem. imprescindvel ter em mente, nestas consideraes preliminares, que ao tratar da tecnologia dos Jogos Eletrnicos (arcades, consoles, etc) como espao de produo de sentidos, no estamos lidando com outra coisa seno com dispositivos computacionais, portanto no h que se pressupor um distanciamento radical, por exemplo, entre computador e jogos eletrnicos. Ocorre que a amplitude da expresso computador impe um recorte, visto que encerra em si uma variedade incontvel de formatos. A partir desta percepo avanaremos na direo do mapeamento da formao e consolidao dos jogos eletrnicos, segundo os referenciais supra citados.

    2. O processo de formao da tecnologia do computador

    Em 1944, no jornal ingls London

    Times, deu-se pela primeira vez a aplicao do termo computador em acepo mais prxima do dispositivo como o conhecemos hoje. Publicava-se na poca uma matria

    (1) O daguerretipo era uma espcie de aparelho de fotografia, criados pelo pintor e fsico francs Daguere (1787-1851). Diferente de outras tecnologias como a pintura e o desenho, surgia um dispositivo capaz de fixar atravs da imagem no uma expresso subjetiva do visto, mas uma apreenso tcnica da realidade vista, tal como se faz aparecer no mundo, portanto no se trata de pensar a imagem agora registrada como uma expresso artstica, mas sim como registro tcnico que ao disparo de um boto capta uma frao da realidade visvel do mundo.

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    ento considerada delirante sobre equipamentos inteligentes com potencial capacidade de substituio do esforo humano. A esta hipottica mquina foi atribudo o termo computer (Gehringer e London, 2001).

    A contempornea percepo que se tem dos computadores tem como forte referencial de incio na somadora(2) desenvolvida por Blaise Pascal, em 1642 (Carnnigia, 2001), cujo funcionamento se pautava na movimentao de seis rodas dentadas, cada uma das quais contendo algarismos de zero a nove. Este dispositivo representava um estupendo avano ao permitir que fossem realizadas somas de at trs parcelas de cada vez, subentendendo que o valor mximo no superasse 999.999. A somatria de Pascal teve uma vida til de aproximadamente duzentos anos ao longo dos quais sucessivas tentativas de cpias e melhorias culminaram na sua substituio pela mquina registradora.

    Passando por numerosos avanos, dentre os quais os cartes perfurados de Jaquard, surge o projeto do aparelho analtico, de Charles Babbage, que constituiu a base de funcionamento do computador, face um sistema de armazenagem de dados reutilizveis e reciclveis em uma unidade de memria, os quais seriam gerenciados por um programa seqencial de operaes denominado sistema operacional. Cumpre, ainda, ressaltar que o projeto de Babbage no chegou a ser efetivamente testado naquele momento por falta de patrocnio para sua realizao.

    O terceiro grande passo pode ser considerado o desenvolvimento, por Hermam Hollerith, em 1911, da idia de ativao de contadores mecnicos dentro de uma mquina, entendendo que para tanto seria necessrio transferir dados numricos para um carto duro, o qual deveria ser perfurado em campos pr-determinados. Em seguida, seria necessrio transformar estas marcaes (furos) em impulsos - atravs da energia eltrica que passava por eles -, ativando os

    contadores. Para tanto, Hollerith somou a Jacquar e Babbage o conceito de impulsos eltricos como meio de transmisso de dados, desenvolvido, em 1844, por Samuel Morse. Comeava o flerte da mquina de computar (com restritas funes de produo de clculos) com um meio de comunicao: o telgrafo. O aparelho de Hollerith ganhou notoriedade internacional, principalmente, ao ser utilizado na apurao de uma eleio norte-americana (U.S. Census Bureau, 2001).

    Alis, a Era das Mquinas (comeo do sculo XX) seria marcada, dentre outros aspectos, pelo incio de um intenso desenvolvimento tecnolgico e a acelerao dos processos produtivos. Todavia, as novas tecnologias computacionais deste perodo ainda no podiam ser caracterizadas como meios de comunicao. Embora j fosse possvel afirmar que j se tratava de um Sistema de Informaes. Albuquerque (2001) se manifesta no sentido de que o computador somente viria adquirir o carter de meio de comunicao a partir do momento em que incorpora, como elemento de sua estrutura, o conceito de interface. Posicionamento este igualmente defendido por Steven Johnson (2001) que entende a interface como:

    (...) softwares que do forma interao entre usurios e computador. A interface atua como uma espcie de tradutor, mediando entre as duas partes, tornando uma sensvel para a outra. Em outras palavras, a relao governada pela interface uma relao semntica, caracterizada por significado e expresso, no por fora fsica (Johnson, 2001:17).

    E, ainda, quando afirma que:

    Olhando pela diminuta tela branca, com sua lixeira bojuda e suas janelas rodopiantes, podamos ver pela primeira vez que a interface se tornara ela prpria um meio de comunicao. No mais um ponto de interseo inerte e misterioso entre usurio e microprocessador, era agora uma

    (2) Dispositivo que se encontra hoje em exposio no Conservatoir ds Arts et Metrez, em Paris.

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    entidade autnoma, uma obra de cultura tanto quanto de tecnologia. (Johnson, 2001:41)

    O conceito de interface, tal como

    descrito por Johnson, no havia sido desenvolvida, mas seu devir j se anunciava atravs de discursos cada vez mais freqentes sobre a bem-aventurana tecnolgica. Alis, estes tipos de discursos ainda persistem em nossos dias como, por exemplo, nas obras integradas de Pierre Lvy, dentre outros.

    Os suportes se tornavam cada vez mais sutis e eficientes em sua apreenso e registro do mundo, dentre os quais ressalto os fotossensveis (filmes, microfilmes, fotografias, etc.), mecnicos (discos de vinil) e magnticos (filmes polmeros). O rompimento com o espao e o tempo se dava de modo voraz. A voz registrada e fixada em um suporte tecnolgico se lanava para alm de seu local de emisso e do tempo em que se originou, assim tambm ocorrendo com outros meios de comunicao, alargando, por via de conseqncia, a margem de ao entre emissor e receptor. A galopante inovao tcnica verificada neste perodo v surgir um largo leque de novidades - no tocante aos aparatos comunicacionais - como, por exemplo, o gravador, a fotocopiadora e o cinema falado. Todos tendo em comum uma espcie de busca da acelerao que remete ao pensamento de Francisco Dria, no sentido de que:

    A informao nova busca o meio mais rpido para a sua difuso. O texto pode ser codificado de muitas maneiras; se informao nova, a codificao utilizada ser a que lhe permitir a difuso mais rpida. (1999:53)

    E ainda:

    Se este meio era o livro, at comeos

    do sculo XIX, ser em seguida a revista especializada, no sculo XIX e em comeos do sculo XX, e aps o desenvolvimento das tcnicas baratas de reproduo em pequenas tiragens (como a xerox), ser o preprint a separata pr-publicao, desde os anos 60 do sculo. Hoje em dia a Internet, onde a difuso ser instantnea. (1999:53)

    Entretanto, a pulsante artria

    tecnolgica iria se obstruir, na dcada de 30, com a crise capitalista que se instaurou naquele momento, voltando a fluir to somente com o advento da Segunda Guerra Mundial, quando o cenrio informacional sofreria mais um surto inventivo.

    3. Primeira fase (1940/1969): projetos e experimentos iniciais

    Sendo impossvel dissociar o

    desenvolvimento dos jogos eletrnicos do desenvolvimento do computador, seu termo inicial obriga que se considere os principais projetos e experimentos computacionais. Neste sentido, possvel apontar como marco inicial o desenvolvimento pelos nazistas de uma mquina que criptografava mensagens de modo diferente a cada emisso, a qual foi batizada, apropriadamente, de Enigma. Movidos pela necessidade de descobrir o processo de reprogramao destes cdigos, os governos da resistncia comearam a investir e dar prioridade s pesquisas cientficas na rea de tecnologias de comunicao. frente destas pesquisas se colocou o governo ingls, com destaque especial para o trabalho desenvolvido por Alan Turing, que j havia publicado trabalhos tericos sobre computao de dados, como por exemplo o artigo Nmeros Computveis, publicado, em 1936; sendo recrutado, por esta razo, para que os aprofundasse (Virtual Informtica, 2001 a).

    A ousadia do projeto culminou na construo de um dispositivo capaz de imitar o crebro humano quant