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Ciências Políticas II Adriano Codato Alexandro Dantas Trindade Giovana Bonamim Julio Cesar G. Silva Luiz Domingos Costa Pedro Leonardo Medeiros Lucas Massimo 2010

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Ciências Políticas IIAdriano Codato

Alexandro Dantas TrindadeGiovana BonamimJulio Cesar G. Silva

Luiz Domingos CostaPedro Leonardo Medeiros

Lucas Massimo

2010

© 2010 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais.

Capa: IESDE Brasil S.A.

Imagem da capa: Jupiter Images/DPI Images

IESDE Brasil S.A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br

Todos os direitos reservados.

C669 Codato, Adriano; et. al / Ciências Políticas II / Adriano Codato – Curitiba IESDE Brasil S.A., 2010

216 p.

ISBN: 978-85-387-1203-9

1. Ciência Política. I. Título.

CDD 300.0904

Doutor e mestre em Ciência Política pela Universida-de Estadual de Campinas (Unicamp). Graduado em Ciên-cias Sociais com ênfase em Ciência Política pela Unicamp.

Adriano Codato

Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadu-al de Campinas (Unicamp). Especialista em Formação de Quadros Profissionais pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Graduado em Ciências Sociais com ênfase em Ciência Política e Sociologia pela Unicamp.

Alexandro Dantas Trindade

Mestranda em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e graduada em Ciências Sociais.

Giovana Bonamim

Mestrando em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Graduado em Ciências Sociais pela UFPR.

Julio Cesar G. Silva

Mestrando em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Luiz Domingos Costa

Mestrando em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Graduado em Ciências Sociais pela UFPR.

Mestrando em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) com estágio de pesquisa na Fondation Nationale des Sciences Politiques (França).

Pedro Leonardo Medeiros

Lucas Massimo

SumárioA formação do Estado no Brasil .......................................................................13

Modelos, métodos e teorias .................................................................................................................14Definição do objeto e escolha do período ......................................................................................15O campo de estudos sobre a formação do Estado no Brasil ....................................................21Considerações finais ................................................................................................................................25

Tradições do pensamento social brasileiro..................................................31

Peculiaridades da formação social brasileira: o Brasil-nação como ideologia ...................31Motivos ibéricos e a modernidade no Brasil ..................................................................................35Modernismo e identidade nacional ..................................................................................................39

O pensamento político autoritário .................................................................51

Crise das oligarquias, conjuntura e síntese política de Getúlio Vargas .................................52O Código Eleitoral de 1932: desencontros sobre o conceito de democracia .....................55Autoritarismo: definições e aplicações .............................................................................................57Nacionalismo e Modernismo ...............................................................................................................61A derrota do liberalismo e a modernização conservadora: considerações finais .............63

A ideologia do desenvolvimento nacional na década de 1950 ...........71

De Vargas a Juscelino Kubitschek: a eleição de 1955 ..................................................................72Política econômica e estrutura social na década de 1950 .........................................................74O governo JK e a construção de Brasília ..........................................................................................77O Iseb e o nacional-desenvolvimentismo .......................................................................................79Considerações finais ................................................................................................................................80

A classe trabalhadora no Brasil ........................................................................87

O ciclo PCB e o sindicalismo corporativista ....................................................................................87O ciclo PT e o novo sindicalismo .........................................................................................................94Considerações finais ................................................................................................................................99

Sistema eleitoral e partidos políticos ..........................................................105

Recuo contextual: metamorfoses sofridas pelos partidos ......................................................105Sistema eleitoral brasileiro ..................................................................................................................108Efeitos imediatos ou diretos ...............................................................................................................113

Sistema de governo no Brasil: o presidencialismo de coalizão, passado e presente............................................................................................121

O presidencialismo brasileiro. ............................................................................................................123O Poder Legislativo. ...............................................................................................................................125O risco da crise institucional e a quebra do regime democrático ........................................126Novas avaliações e a crença na estabilidade. ...............................................................................128

A judicialização da política e a politização da Justiça no Brasil. ........137

A Constituição Federal de 1988 e as relações entre o Judiciário e os demais poderes. ...............................................................139A política judicializada. .........................................................................................................................144A face política da Justiça. .....................................................................................................................146Considerações finais. .............................................................................................................................148

Economia e política no desenvolvimentismo brasileiro. .....................157

A ditadura militar e o milagre econômico. ....................................................................................158A campanha contra a estatização: a burguesia contra o Estado? .........................................162Expansão do Estado e a crise da dívida externa .........................................................................166

Economia e política no neoliberalismo brasileiro ..................................177

O Plano Real e o programa de ajustes estruturais ......................................................................179O estilo tecnocrático de gestão e o pacto político conservador ..........................................182Abertura da economia e vulnerabilidade externa: uma estratégia de inserção subordinada à economia internacional ..................................185Considerações finais ..............................................................................................................................187

Gabarito .................................................................................................................193

Referências ...........................................................................................................205

Anotações .............................................................................................................215

ApresentaçãoCientistas políticos são quase unânimes ao afirmar

que o Brasil é uma “poliarquia institucionalizada”. Isso significa que o regime político democrático – um nome menos preciso e mais normativo que poliarquia – tornou- -se a forma de governo incontestada entre nós.

Conforme a definição clássica de Robert Dahl, um país será tanto mais democrático, ou poliárquico, quanto me-lhores forem as condições que garantam o direito à oposi-ção (que Dahl chama de contestação pública) e o direito à participação em eleições e cargos de direção política.

Alguns dados brutos são suficientes para ilustrar as mudanças do país nas últimas décadas nessa direção. Desde a promulgação da Constituição de 1988 e da elei-ção para presidente da República, em 1989, houve um processo contínuo e crescente de institucionalização democrática. O total de eleitores inscritos para votar em 2006 era muito próximo de 126 milhões de pessoas. O Poder Legislativo abriu-se à expressão de minorias e ga-rantiu seu poder de veto. O sistema partidário tornou-se complexo e passou a contar, em 2007, com 21 partidos representados no Parlamento. A efetiva separação entre o Executivo e o Legislativo, se não garantiu integralmente o preceito da autonomia mútua e da fiscalização recípro-ca, ao menos dividiu as funções governativas (ainda que de maneira desequilibrada) entre os dois ramos principais do sistema estatal. As eleições tornaram-se razoavelmente competitivas, embora persista (e cada vez se amplie mais) o desequilíbrio entre candidaturas mais e menos opulen-tas. A legislação garantiu consultas políticas por meio de plebiscitos e referendos e o direito de propor leis de inicia-tiva popular. Foram criados inúmeros conselhos setoriais de políticas de governo com participação da sociedade civil. O direito de greve foi garantido.

Comparando com o período imediatamente anterior, da ditadura militar, ou com o regime da Constituição de 1946, é certo que hoje há muito mais garantias aos direi-tos de associação e expressão, muito mais condições para a formação de partidos e organizações políticas, maior igualdade perante a lei, maior controle sobre os governos, maior tolerância diante do conflito. Essas liberdades libe-rais clássicas foram responsáveis por uma mudança impor-tante na composição e no perfil das lideranças eleitas, au-mentando o grau de inclusão de outros grupos sociais nas arenas políticas e, com isso, a variedade de interesses re-presentados. As políticas governamentais de caráter social – cada vez mais importantes na agenda pública – ilustram isso. Houve mesmo uma relativa popularização da classe política e uma importante profissionalização da elite esta-tal em alguns domínios específicos. Os próprios partidos tiveram de adaptar-se às novas condições de competição por eleitores, ajustando seu programa e sua retórica a va-lores mais pluralistas. As ideologias autoritárias perderam a audiência e a popularidade que já tiveram no passado. A democracia parece gerar – ainda em um grau insuficien-te, é certo – crenças e atitudes mais democráticas e mais tolerantes.

Essas condições para a poliarquia não foram criadas do nada. O processo histórico que conduziu o país até o grau presente de desenvolvimento institucional supôs certas sequências históricas. Ao longo do século XX, vários foram os fatores socioeconômicos e ideológicos que in-fluenciaram o mundo político.

O livro que o leitor tem em mãos procura expor e explicar o difícil caminho para a institucionalização da poliarquia à brasileira. Compreender a persistência do clientelismo, da patronagem, da corrupção, do grau des-mesuradamente alto de irresponsabilidade governamen-tal, de autonomia dos representantes políticos, dos dese-quilíbrios do poder econômico e do poder social implica

compreender a via peculiar do país para a democracia realmente existente entre nós. Assim, oferecemos aqui duas coisas em um mesmo volume: um resumo das pre-condições históricas do regime atual e uma caracterização sumária e didática das suas características principais.

Adriano Codato

Curitiba, primavera de 2009.

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A formação do Estado no Brasil

Adriano Codato Nós sofremos não apenas dos vivos, mas também dos mortos.

Karl Marx

O tema da formação do Estado no Brasil é um assunto recorrente na Ciência Po-lítica e na Sociologia Política brasileiras por conta de sua grande importância para a compreensão da realidade nacional e de certos problemas, por exemplo, o subdesen-volvimento, a violência e a desigualdade. Assim, ao mostrarem as raízes históricas das dificuldades nacionais, os estudos sobre a formação do Estado contribuem para o de-senvolvimento de ações políticas e econômicas que ajudem a resolvê-los.

Se olharmos unicamente para a estrutura pronta, final e acabada, isto é, para o Estado tal como ele se apresenta em um dado momento, com certeza corremos o risco de não entendê-lo integralmente. Por outro lado, conhecer o processo de construção do Estado nos permite desvendar os elementos que contribuíram tanto para a cria-ção de seu aspecto epidérmico (o que nos é facilmente apreensível) quanto para seu aspecto visceral (os seus segredos), pois ao longo desse processo ambos os aspectos ainda não estavam ajustados da forma como estão no presente. Esse acompanhamen-to exige uma análise diacrônica. Ela permite mudar nosso olhar sobre esse objeto (no nosso caso, o Estado brasileiro) como se o fragmentasse em várias partes, mostrando detalhes, encaixes, conflitos, contradições que passam despercebidos em uma análise puramente sincrônica.

Diacrônico: relativo ao estudo ou à compreensão de um fato ou de um conjun-to de fatos em sua evolução no tempo.

Sincrônico: que ocorre, existe ou se apresenta precisamente ao mesmo tempo; simultâneo [...]; [...] relativo a um conjunto de fatos que coincidem no tempo, sem levar em conta o processo evolutivo.

(in: HOUAISS dicionário eletrônico da língua portuguesa, versão 1.0, dez. 2001.)

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Modelos, métodos e teorias Existem basicamente duas grandes teorias da Sociologia Política que explicam a

formação do Estado burguês moderno: a marxista e a weberiana. As duas são incom-patíveis do ponto de vista lógico. Elas abordam a relação entre Estado e sociedade de duas maneiras muito distintas.

A sociologia histórica de Max Weber (1864-1920) pode ser muito bem entendi-da por meio da leitura do texto “Política como vocação” e dos textos que compõem a última parte do seu livro Economia e Sociedade. No capítulo “Sociologia da dominação”, Weber demonstra como ocorreu o desenvolvimento do Estado moderno. A partir de uma perspectiva internalista, ele entende o Estado por meio de variáveis propriamente estatais, sem fazer alusão às dinâmicas que correm paralelamente ao Estado (sociais, econômicas etc.).

O que queremos dizer com a expressão perspectiva internalista? É que Weber busca explicar o Estado analisando como a configuração estatal se altera ou se repro-duz com base unicamente em suas forças e poderes internos. Ele explica a política a partir de variáveis exclusivamente políticas, como se as ações, os interesses e os conflitos dos atores políticos estivessem ligados apenas a causas especificamente políticas. Assim, pode-se dizer que, em resumo, Weber estuda o Estado como se ele tivesse vida pró-pria, independente de quaisquer outros determinantes que não os seus movimentos internos. Segundo Weber, a lógica de funcionamento do Estado é completamente au-tônoma, pois nenhuma força externa ao aparelho estatal tem capacidade de interferir no seu arranjo interno e no seu desenvolvimento como organização.

O contraste mais claro com esse tipo de abordagem é a explicação proposta por Karl Marx (1818-1883) no livro O 18 Brumário de Louis Bonaparte. Marx sugere como as dinâmicas ocorridas no interior do Estado são na realidade determinadas por disputas de interesse que se situam fora do aparelho político; isto é, como a sua estrutura interna e o seu desenvolvimento como uma organização burocrática complexa são determi-nadas pelas lutas de classe. Portanto, a obra de Marx se opõe à de Weber na medida em que adota uma perspectiva analítica externalista, que explica o Estado utilizando variáveis que não pertencem e não agem a partir da estrutura interna do aparelho de Estado. Marx entende o Estado como um efeito das lutas de classe. Assim, segundo a teoria marxista, o Estado não é determinado por sua dinâmica própria, mas por forças e interesses que atingem o Estado de fora para dentro.

Esses dois marcos teóricos são os principais paradigmas que orientaram os estu-dos sobre a formação do Estado no Brasil e no mundo. Salientaremos a partir de agora como a oposição lógica entre as teorias marxista e weberiana se refletiram nos estudos que buscam compreender a constituição do Estado brasileiro.

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Definição do objeto e escolha do período Um rápido olhar sobre a história do Brasil pode nos ajudar a responder certas ques-

tões acerca da nossa realidade nacional. Entretanto, embora os estudos históricos facilitem a compreensão de vários problemas, não é simples recorrer à análise histórica. A dificulda-de decorre, no caso, do apreciável volume de história que já acumulamos.

Desde a colonização portuguesa (1500-1822), com introdução de mão de obra escrava, até o início do século XXI, passando pela libertação dos escravos em 1888 e pela primeira Era Vargas (1930-1945), temos mais de 500 anos de história. Esse grosso período e a quantidade de eventos que o caracterizam tornam difícil uma abordagem que lance mão apenas de variáveis ligadas ao desenvolvimento histórico. Um dos prin-cipais problemas aqui é a seleção dos eventos significativos ou do recorte temporal re-levante. Com efeito, se queremos tomar como objeto de estudo a formação do Estado brasileiro, o primeiro passo é definir quando ocorreu esse processo.

Ao examinarmos a bibliografia específica sobre esse assunto, percebemos que não há muito consenso sobre o momento em que o Estado nacional brasileiro se constituiu.

Alguns autores estudam mais detidamente o período que vai do fim das Regências (1831-1840) até a Proclamação da República (1889), dando grande ênfase ao processo de libertação dos escravos (1888).

Por outro lado, outros autores analisam principalmente o período desde o fim da política oligárquica (1898-1930) até o fim do primeiro governo Vargas (1930-1945), enfatizando dois acontecimentos políticos significativos: a Revo-lução de 1930 e o Golpe de Estado de 1937.

Enquanto o primeiro grupo de estudiosos entende que para compreender e ex-plicar a gênese do Estado brasileiro é preciso estudar o Estado do Segundo Império (1840-1889), o segundo grupo de autores postula que não é preciso ir tão longe, pois o Estado só se consolidou de fato na década de 1930.

Por que existe essa discordância? As principais causas dessa divergência são a definição do que é Estado e a face do Estado que se pretende abordar.

A definição do Estado está ligada aos critérios utilizados por um autor para formu-lar um conceito que dê conta do aspecto do Estado que se pretende abordar. O espe-cialista escolhe e nomeia um aspecto do Estado, evitando assim o risco de pesquisar a esmo. Isso é particularmente necessário para evitar uma pesquisa demasiadamente grande, e que conduza a proposições muito genéricas, ou uma pesquisa muito restrita e que retenha desse processo só as particularidades, só as exceções.

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O Estado do Segundo Império Os principais estudiosos que buscaram explicar a gênese e o desenvolvimento

do Estado brasileiro a partir de análises do período imperial foram Paula Beiguelman, Décio Saes e José Murilo de Carvalho.

Segundo Paula Beiguelman, em seu livro Formação Política do Brasil, é importante analisar o Estado no Segundo Império porque foi exatamente nesse período que foram geradas duas ordens políticas fundamentais:

a formação de uma burguesia nacional, com o “crescimento de um setor de mercado interno no complexo cafeeiro” (BEIGUELMAN, 1976, p. 268);

a formação de uma ordem ideológica que ligava os interesses de classe à práti-ca política (BEIGUELMAN, 1976, p. 143).

Um campo ideológico específico, ligado ao mesmo tempo às classes sociais e à esfera política, é o mecanismo pelo qual os interesses da burguesia são representados dentro do aparelho de Estado. E a construção da burguesia nacional corresponde ao fim do modo de produção escravista e ao início de um modo de produção assalariado, tipicamente burguês. Essas características, com ênfase na presença de representantes da burguesia dentro do aparelho de Estado, são elementos essenciais para a definição do Estado brasileiro.

De modo semelhante, Décio Saes, em seu livro Formação do Estado Burguês no Brasil, também define o Estado a partir das transformações do modo de produção da economia brasileira. Tanto para Beiguelman quanto para Saes, o fim da escravidão é o marco inicial do processo de constituição do Estado capitalista no Brasil, pois com a alteração do modo de produção se altera, concomitantemente, a forma estatal. Com a abolição, passamos de um Estado escravista moderno para um Estado burguês. Para ambos, as lutas de classe possuem um papel central, pois “foi a luta de classe que levou [...] à liquidação do Estado escravista moderno e à sua substituição por um Estado bur-guês” (SAES, 1985, p. 345).

José Murilo de Carvalho, por sua vez, tem argumentos completamente diferentes para relacionar a origem do Estado nacional brasileiro ao Segundo Império. Conforme Carvalho, o principal elemento a ser levado em conta é a unidade territorial, ou mais exatamente, a formação das fronteiras nacionais. Comparando as colônias portugue-sas e espanholas no continente americano, ele observa que

[...] no início do século XIX a colônia espanhola dividia-se administrativamente em quatro vice- -reinados, quatro capitanias-gerais, e 13 audiências, que no meio do século tinham se transformado em 17 países independentes. Em contraste, as 18 capitanias-gerais da colônia portuguesa existentes em 1820 (excluída a Cisplatina) formavam, já em 1825, vencida a Confederação do Equador, um único país. (CARVALHO, 2008, p. 13)

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Assim, como ele define o Estado tendo em vista a unificação territorial, nada mais estratégico do que estudar o Estado do Segundo Império, já que a unificação territorial ocorreu justamente nesse momento.

Unidade Territorial

No momento que precedeu o Segundo Império – período das Regências (1831- -1840) –, a unidade territorial estava em risco pela grande quantidade de revoltas auto-nomistas, como a Cabanagem (1835-1840), a Balaiada (1838-1841) e a Sabinada (1837--1838). Somente depois da posse de D. Pedro II e da consolidação do Segundo Império a unidade territorial estaria garantida. E embora tenha ocorrido uma nova descentrali-zação a partir de 1889, a unidade territorial não voltou a ser uma questão nacional.

Com base nessas indicações muito sumárias, já percebemos que dois argumentos centrais (e bem diferentes entre si) são utilizados para explicar a origem do moderno Estado brasileiro e para justificar a escolha do Segundo Império como o momento es-sencial desse processo:

a formação da unidade territorial nacional;

a passagem da sociedade para um modo de produção (escravista) a outro (capitalista).

Esses dois argumentos são muito mais diferentes do que aparentam. Eles dizem respeito a formas completamente distintas de entender a relação entre Estado e sociedade.

Saes e Beiguelman percebem o Estado e, mais amplamente, a estrutura política da so-ciedade brasileira como um efeito do modo de produção econômico. Nesse sentido, qual-quer alteração na lógica do modo de produção acarretará alterações na forma do Estado.

Por sua vez, Carvalho enxerga o Estado como um sistema autônomo dotado de uma lógica interna, de uma dinâmica própria e específica. Essa lógica é baseada na competição pelo poder propriamente estatal, sendo que a configuração do Estado diz respeito à forma como se dá a distribuição do poder estatal pela sociedade. Isto é, se o poder é mais ou menos centralizado.

O Estado da década de 1930 Ao contrário de Décio Saes, Paula Beiguelman e José Murilo de Carvalho, autores

como Simon Schwartzman, Raymundo Faoro e Sônia Draibe postulam que o momen-to-chave para estudar a formação do Estado brasileiro não é o Segundo Império e sim a década de 1930 e após.

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Para Schwartzman, no Brasil o Estado se consolida à medida que a vida econômi-ca se torna subordinada ao processo político, de modo que a formação do Estado bra-sileiro só ocorreu após o golpe de 1937 (com o qual Getúlio Vargas instituiu o Estado Novo), pois antes dessa data houve um longo período em que as políticas econômicas eram levadas a cabo a partir das próprias localidades. Afirma o autor que,

[...] no Brasil, pelo menos desde 1937, o Estado tem sempre desempenhado um papel ativo e agressivo na implementação de algum tipo de política de desenvolvimento econômico e social, embora fustigado pela crítica liberal anti-intervencionista. (SCHWARTZMAN, 1982, p. 145)

Um segundo motivo que leva o autor a escolher a década de 1930 para datar esse processo é que nesses anos se ampliou a modernização do Brasil graças ao aumento de alguns índices: população, urbanização, dispêndios governamentais. Assim, perceber o início do processo de efetiva modernização do Brasil é um passo importantíssimo: “o entendimento de como o Brasil moderno se inicia é essencial, se queremos saber como o país é hoje” (SCHWARTZMAN, 1982, p. 106).

Modernização

Conforme Simon Schwartzman, “Estima-se [...] que a população urbana do país aumentou de 10% para cerca de 30% de 1920 a 1940; os gastos governamentais, que se mantiveram praticamente estáveis em termos per capita de 1907 a 1943, cres-ceram no entanto, substancialmente, em termos absolutos, depois de 1930. Depois de 1930, os itens referidos a ‘gastos sociais’ começaram a surgir no orçamento fede-ral de forma individualizada, chegando a 10% do orçamento em 1940. A estrutura ocupacional da população não mudou significativamente: o emprego na agricultu-ra desceu de 69 para 61,1% entre 1920 e 1940, enquanto que o emprego industrial cresceu somente 1%, de 13% em 1920” (SCHWARTZMAN, 1982, 105-106). Percebe-mos aqui alguns critérios utilizados pelo autor para definir modernização: a predomi-nância da vida urbana em detrimento da vida rural, o aumento das despesas estatais com políticas sociais (como saúde, habitação, saneamento etc.) e industrialização.

Raymundo Faoro também identifica como marco inicial da formação do Estado brasileiro a década de 1930, período caracterizado pela consolidação de eventos im-portantes para a constituição do Estado, como a sua centralização administrativa, a forma como ele se tornou condutor de uma economia capitalista, e a modernização tanto do aparelho do Estado quanto da sociedade. E devemos salientar que quando Faoro escreve sobre centralização administrativa ele está querendo dizer algo diferente de centralização territorial de que fala Carvalho. A centralização territorial diz respeito à demarcação das fronteiras e limites de terras assimiladas pelo Estado, ao passo que a centralização administrativa faz alusão à centralização dos processos de dominação e gestão do território previamente assegurado.

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A definição de modernização de Raymundo Faoro está muito próxima da de Schwartzman. Porém, Faoro enfatiza um pouco mais a aparente liberdade dos indi-víduos, pois “o indivíduo, de súdito passa a cidadão, com a correspondente mudança de converter-se o Estado, de senhor a servidor, guarda da autonomia do homem livre” (FAORO, 1975, p. 734) e a liberdade dos indivíduos diz respeito principalmente à li-berdade de escolher os governantes, mobilizar-se politicamente e gerir seus próprios negócios. Mas um dado interessante da obra de Faoro é que ele interpreta essas liber-dades como “liberdades aparentes” ao constatar que a própria força estatal fornece aos indivíduos apenas a impressão de que eles podem agir livremente, sem fornecer-lhes veículos objetivos que concretizem tais liberdades: “Em última análise, a soberania po-pular não existe, senão como farsa, escamoteação ou engodo” (FAORO, 1975, p. 742).

A centralização administrativa se desenvolve paralelamente à assunção da con-dução da economia pelo Estado. Ela é definida tanto pela forma com que o Estado consegue controlar os poderes privados (ou seja, os poderes econômicos – segundo o autor, “o Estado invade e dirige a esfera econômica”) quanto pela forma como o Estado se centraliza internamente.

Embora Sônia Draibe tenha escolhido o mesmo período de Faoro e Schwartzman, ela se diferencia amplamente desses dois autores no que diz respeito à lógica da explica-ção e ao procedimento de pesquisa. Sua escolha por estudar o Estado da década de 1930 e após se deu porque, segundo afirma, nesse período se evidencia mais claramente o nascimento do Estado capitalista e do processo de industrialização do país. A correspon-dência cronológica entre esses dois fatos – o surgimento de um Estado especificamente burguês e a mudança dos rumos do desenvolvimento econômico nacional – permite à autora “apreender o caráter específico” da “relação entre o Estado e a economia ”brasi-leiros. Esse é, diz ela, o “momento que é simultaneamente o da industrialização e o da aquisição, por parte do Estado brasileiro, de estruturas materiais tipicamente capitalistas” (DRAIBE, 1985, p. 45).

Conforme a autora, a relação entre o Estado capitalista e a industrialização ocor-reu na medida em que a industrialização foi conduzida pelo Estado. No entanto, o Estado não determinou diretamente a industrialização: ele dirigiu as forças sociais, as forças que estavam já presentes na sociedade. Essas forças são as classes sociais e sua dinâmica corresponde às lutas entre elas (ou seja, às lutas de classe).

No Brasil, até o início da década de 1930, as disputas entre as classes sociais ocorriam de forma descentralizada, sem um ambiente específico para isso. O desequilíbrio das forças sociais, o surgimento de uma burguesia industrial (uma classe interessada na industriali-zação) e a complexificação das lutas de classe foram as principais causas da concentração das lutas de classe no aparelho de Estado. Para a teoria marxista, o Estado é o espaço em que são decididas as lutas de classe: o Estado é compreendido como uma arena em que ocorrem as disputas pelos interesses econômicos relacionados a cada classe, e o interesse

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que predomina nessa luta é concretizado, realizado na prática por meio do aparelho do Estado graças às políticas de Estado. Sônia Draibe entende o processo ocorrido no Brasil a partir de 1930 como sendo o momento em que o Estado transformou-se concomitan-temente no espaço de equacionamento das lutas de classe (esse fenômeno é nomeado como nacionalização das lutas de classe) e no mecanismo específico de realização dos in-teresses ligados às classes que predominam nas lutas. E ainda sustenta a autora que esse fenômeno “constitui uma forma peculiar de incorporação dos interesses de classe na es-trutura material do Estado” (DRAIBE, 1985, p. 45).

Uma das peculiaridades do processo de nacionalização das lutas de classe no Brasil foi que a força resultante das lutas de classe (o rumo apontado pela síntese dessas lutas) tendia para a industrialização: os interesses ligados à industrialização predominavam e isso fez com que a força resultante das lutas de classe se direcionas-se para ela. Dessa forma, afirma a autora, o Estado teve de se modificar substancial-mente para atender às demandas da força resultante das lutas de classe.

Condicionada tanto pela centralização das lutas de classe quanto pela predomi-nância de um interesse industrializante, as mudanças ocorridas no aparelho material do Estado fez com que sua estrutura interna assumisse características propriamente capitalistas, tornando-se assim o condutor do processo de industrialização. Portanto, para Sônia Draibe a explicação dessa nova dinâmica histórica requer mapear “o pro-cesso de conformação das estruturas materiais do Estado – órgãos, códigos e peças legislativas – que deram suporte objetivo à elaboração de políticas econômicas de ca-ráter nacional, que conduziram a graus elevados a estatização da luta econômica de classe” (DRAIBE, 1985, p. 83), transformando o Estado na força dirigente do processo de industrialização.

Notamos, a partir do resumo dessas três perspectivas – as de Schwartzman, Faoro e Draibe – que a industrialização, a nacionalização das lutas de classe, a centraliza-ção administrativa e a modernização são eventos essenciais que devem ser abordados para estudar o Estado. E sua gênese está, basicamente, na década de 1930.

Entretanto, assim como procedemos com o grupo dos autores que estudaram o Segundo Império brasileiro, devemos notar a forma como os autores que estudaram a década de 1930 se distinguem e se assemelham. Percebe-se claramente que a ma-neira como Faoro e Schwartzman entendem o Estado – sua gênese e seu desenvol-vimento – parte de uma perspectiva fortemente weberiana. Eles concentram toda a explicação na dinâmica propriamente estatal. Principalmente quando escrevem sobre a centralização administrativa e a subordinação da vida econômica aos processos po-líticos, ambos definem o Estado por meio de elementos que dizem respeito somente à lógica do Estado ou à forma como o Estado predomina em relação à sociedade. Por sua vez, Sônia Draibe se preocupa muito mais em olhar as dinâmicas de classe (isto é, aqueles processos que se situam fora do aparelho estatal) para definir o Estado. Assim,

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ela define e estuda o Estado por meio de elementos que não são próprios do Estado, fato que a aproxima mais de uma perspectiva marxista, que tende a focalizar o modo pelo qual as dinâmicas sociais determinam o Estado.

O campo de estudos sobre a formação do Estado no Brasil

Se a literatura que trata da formação do Estado brasileiro é muito ampla e varia-da, uma boa estratégia para nos orientar nesses estudos é identificar um fio condu-tor. Nosso fio condutor será a ambiguidade lógica existente entre a teoria weberiana e a marxista, pois o campo de estudos acerca da formação do Estado brasileiro tem como parâmetro, como vimos, a oposição entre a abordagem marxista e weberiana.

Para mostrar como estão dispostos os trabalhos, faremos uma síntese de dois dos principais estudos sobre o Estado no Brasil Imperial. Por meio do contraste, buscare-mos desvelar tanto as características lógicas dos modelos utilizados quanto alguns pontos estratégicos de análise.

Décio Saes: a transformação do modo de produção e a formação do Estado burguês no Brasil

Décio Saes, no livro A Formação do Estado Burguês no Brasil, tem por objetivo mos-trar como ocorreu o nascimento de uma burguesia nacional e a concomitante forma-ção de um Estado capitalista que contribuiu para a reprodução das relações de classe (SAES, 1985, p. 72).

Em primeiro lugar, o autor identifica as principais forças sociais (ou classes sociais) que contribuíram para a construção do Estado: a classe dominante (produtores rurais), a classe média (trabalhadores não manuais ou profissionais liberais) e os escravos.

Um dos grandes diferenciais da obra de Saes é (1985, p. 235) a afirmação de que todas as classes dominantes apoiavam a escravidão1 e que somente a classe média e os escravos apoiavam a abolição. Embora a classe média e os escravos apoiassem a aboli-ção, o papel de cada um desses grupos no processo que desencadeou o fim do trabalho compulsório foi diferente: enquanto a classe média foi a força dirigente do processo, os escravos foram a força motora. Ou seja, a força objetiva dos escravos foi conduzida e

1 Para certos autores (Paula Beiguelman, por exemplo), a classe de proprietários de lavouras de café em São Paulo era contra a escravidão. Até esses autores, as abordagens marxistas entendiam o fim da escravidão como o produto de um interesse ligado a uma fração da classe proprietária.

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canalizada pela classe média. Existia ainda, segundo Saes (1985, p. 331), uma partici-pação relevante do Exército enquanto “partido político da classe média”: o Exército se transformou no veículo utilizado pela classe média para se fazer representar na estru-tura estatal.

O fim da escravidão e a concomitante formação do Estado burguês tiveram como causas a coexistência de duas contradições inerentes ao antigo regime brasileiro:

a contradição entre os interesses dos escravos e o interesse dos proprietários;

a contradição entre os interesses da classe média e as disposições do sistema jurídico-social.

Os movimentos abolicionistas empreendidos pelos escravos foram a principal força social que conduziu à abolição. Todas as leis abolicionistas são entendidas por Saes (1985, p. 239) como concessões que visavam a amenizar as lutas de classes entre escravos e proprietários e não como produto de lutas políticas ou propriamente esta-tais. As revoltas escravas configuraram uma grande força para a construção do Estado burguês que surgiu como uma consequência do fim da escravidão e, portanto, da al-teração no modo de produção. Entretanto, a força abolicionista proveniente dos escra-vos não poderia ter realizado a emancipação caso não tivesse sido dirigida pela classe média.

O principal interesse da classe média ao lutar pela abolição era o de valorizar mais a sua posição social, já que antes da abolição o valor da posição ocupada pela classe média na sociedade era relativamente baixo. A baixa valorização da posição social do trabalhador não manual (isto é, classe média) ocorreu porque o acesso a essa posi-ção não era entendido pelos demais grupos como um produto de características pró-prias ou de “dons” e “méritos” individuais, mas como derivado de uma hierarquia clara e explícita: uma diferenciação social prevista por lei (a escravidão, sancionada por lei, diferenciava explicitamente escravos e não escravos). Nesse sentido, o maior questio-namento da classe média era com relação ao sistema jurídico, pois ao explicitar as di-ferenças sociais as leis foram responsáveis pelo baixo reconhecimento da posição da classe média na sociedade.

Com efeito, a alteração jurídica proposta pela classe média foi a abolição. Tal re-forma jurídica tornou as diferenças sociais mais disfarçadas na medida em que tratava todos os indivíduos como iguais. Essa camuflagem das diferenças sociais produziria a aparência de que os trabalhadores não manuais ocupavam uma determinada posição social não por privilégios garantidos por leis, mas por seu mérito individual, o que con-tribuiu para maior valorização da posição dessa classe na sociedade. Logo, a defesa da abolição pela classe média deve ser entendida como o produto de seu interesse parti-cular em transformar sua própria situação de classe e não como uma disposição altruísta e humanista (SAES, 1985, p. 296). Dessa forma, a classe média possuía e reivindicava

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uma ideologia propriamente burguesa (igualdade e meritocracia), a qual, colocada em prática, contribuiu para a formação do Estado burguês no Brasil.

Meritocracia: predomínio numa sociedade, organização, grupo, ocupação etc. daqueles que têm mais méritos (os mais trabalhadores, mais dedicados, mais bem dotados intelectualmente etc.)

(in: HOUAISS dicionário eletrônico da língua portuguesa, versão 1.0, dez. 2001.)

Por meio da afinidade entre os dois interesses (dos escravos e da classe média), surgiram condições favoráveis para a abolição. Associada à alteração na ordem jurídi-ca, a abolição contribuiu para transformar o Estado brasileiro em um Estado capitalista. O fim da escravidão deve ser entendido como um momento-chave para compreender a formação do Estado capitalista brasileiro.

José Murilo de Carvalho: a construção da ordem política nacional e o papel da elite política imperial

O problema que José Murilo de Carvalho se propõe a resolver (CARVALHO, 2008, p. 13) é

Por que as colônias portuguesas se mantiveram unidas, ao passo que as colônias espanholas se fragmentaram em diversas unidades administrativas?

A explicação do autor para tal questão é a de que o Estado teve essa configuração (unidade territorial) no Brasil pela homogeneidade ideológica e de treinamento das suas elites políticas e administrativas (CARVALHO, 2008, p. 33). Por elites políticas ele entende o grupo “dos homens que tomavam decisões dentro do governo central” (CARVALHO, 2008, p. 57) – senadores, ministros, deputados e conselheiros do imperador. Com homogeneidade ide-ológica e de treinamento o autor quer dizer que as elites passaram por processos muito semelhantes ao longo de sua trajetória: estudaram nas mesmas escolas, provieram de fa-mílias parecidas e não tinham entre si uma grande diferenciação profissional.

Antes mesmo da implantação do Império Brasileiro, já existiam políticas de formação de elites por parte do Estado português (CARVALHO, 2008, p. 230). Por meio dessas polí-ticas, iniciou-se o processo de homogeneização ideológica das elites imperiais. Ou seja, o Estado produziu a própria elite que posteriormente o serviria. Essa homogeneidade ide-ológica e de treinamento das elites que habitavam as colônias portuguesas na América diminuiu consideravelmente os conflitos intraelites. E a ausência de grandes conflitos entre as elites foi a condição principal que permitiu a unidade territorial das colônias.

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Assim, para Carvalho, as elites políticas, criadas pelo Estado e agindo por meio do Estado, são as maiores responsáveis pelas mudanças institucionais do Estado brasileiro.

Elites políticas e classes sociais Percebemos que a diferença entre José Murilo de Carvalho e Décio Saes é enorme,

apesar de ambos estudarem o mesmo período. Enquanto Saes explica o Estado por meio das relações entre as classes sociais, Carvalho estuda os indivíduos que partici-pam objetivamente da dinâmica política. Assim, Saes está mais próximo de uma pers-pectiva marxista, pois lança mão de variáveis extrapolíticas para explicar uma realida-de que Carvalho, mais próximo de uma análise weberiana, compreende em si mesma.

Apesar de Carvalho identificar a importância das propriedades sociais adquiridas pelos agentes para a conformação da realidade política, essas propriedades não se expli-cam por si mesmas, encontrando fundamento e relevância estruturante apenas quando situadas ou manifestadas na esfera política. Ou seja, embora Carvalho entenda que as propriedades adquiridas pelas elites não são de origem estatal, essas propriedades não constituem uma força em si mesmas, não são independentes e se tornam atributos es-truturantes da política somente a partir de sua inserção na esfera estatal: é a própria lógica política que confere caráter às propriedades sociais adquiridas pela elite política.

Por outro lado, Saes observa a forma como as propriedades sociais têm relevância e um poder estruturante da política em si mesmas. Elas ganham relevância por sua pró-pria força, independentemente de estarem ou não circunscritas pela esfera política.

Em suma, enquanto para Carvalho as propriedades sociais das elites só adquirem um peso específico quando inscritas na lógica do Estado, para Saes as propriedades sociais têm em si mesmas a capacidade de estruturar a realidade estatal.

Outra diferença está na relevância que cada um dos autores outorga aos agentes e às estruturas sociais. A abordagem de Carvalho é muito mais centrada nos indivíduos, analisando a política por meio do estudo dos agentes políticos, enquanto o trabalho de Saes está apoiado muito mais em análises estruturais, na lógica de interação dos in-teresses das classes sociais e seus desdobramentos na ação política. Assim, a análise de Saes ignora completamente o papel dos agentes concretos no processo de formação da conjuntura política.

Associados a cada uma dessas abordagens estão métodos específicos e procedi-mentos estratégicos de pesquisa. A ênfase nos indivíduos força o pesquisador a adotar um procedimento de análise mais empírica, buscando coletar dados sobre o conjunto de agentes pesquisados. Por outro lado, o procedimento analítico de Saes o conduz a adotar uma técnica muito mais abstrata e lógica – a interpretação dos processos histórico-sociais.

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Análise empírica e análise teórica

O trabalho empírico conduzido por Carvalho se diferencia do trabalho de Saes na medida em que coleta dados sobre as elites políticas imperiais e posteriormente os analisa. Esses dados são, por exemplo, a origem social (profissão dos pais), onde e quando os membros da elite estudaram, quais as suas profissões etc. Depois de coletadas essas informações, o pesquisador realiza uma análise estatística buscando recorrências e correlações.

Por outro lado, Saes faz uma interpretação do evento sob uma óptica específica e pré-selecionada. O pesquisador escolhe um modelo teórico específico, estuda as produções historiográficas sobre o período e interpreta os eventos tendo em vista a lógica do modelo que selecionou. Assim, a sua pesquisa não possui caráter empírico na medida em que não trabalha com dados objetivos e não deriva conclusões de dados, mas de teorias.

Considerações finais É importante reter que a pesquisa histórica pode vir a ser uma ótima ferramen-

ta para a compreensão da realidade social e dos problemas nacionais. A maioria das pesquisas sobre o Estado brasileiro que aliam Ciência Política e História estão preocu-padas em desvendar as origens do atraso, da desigualdade e do subdesenvolvimento do Brasil.

Entretanto, a pesquisa histórica não é fácil, pois exige um conhecimento amplo da historiografia (suas fontes, seus debates e suas principais interpretações) e de algumas técnicas especiais. Enunciamos algumas dessas técnicas.

O objeto de pesquisa deve estar bem circunscrito: uma definição muito ampla ou muito limitada daquilo que se quer estudar pode acarretar dificuldades no empreendimento da pesquisa. Além disso, a definição do objeto orientará a escolha do período histórico a ser estudado e dos eventos a serem focados, evitando que se investigue a esmo, sem um fio condutor.

É importante manter um contato íntimo com as teorias da Sociologia Políti-ca: graças a seus aparatos metodológico e conceitual, elas permitem opera-cionalizar certos modelos de análise tirando de cada um o que há de mais produtivo. Ao estudarmos o Estado brasileiro, percebemos que existem duas grandes teorias que explicam a instituição Estado – a marxista e a weberiana. Elas foram utilizadas pelos analistas, tendo sido adaptadas das mais diversas maneiras, como procuramos resumir aqui.

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Texto complementar

Empresariado e modernização(LEOPOLDI, 2000, p. 15-17)

“O tema específico [do livro em questão] diz respeito ao papel desempenha-do pelos empresários industriais no processo de modernização do país, via indus-trialização. Uma vez que uma das questões centrais do tema específico refere-se às relações entre o Estado e o setor industrial, representado, ao longo do tempo, por diferentes entidades de classe, acabamos chegando à questão clássica acima mencionada. Trocando em miúdos, quero me referir à natureza das relações entre o Estado e os diferentes setores de classe, na formulação de políticas públicas ou de interesses de segmentos sociais privados. Essa questão que, por seu próprio con-teúdo, nunca chegará a um ponto final, lida com problemas estratégicos como o da autonomia maior ou menor, respectivamente, do Estado e das classes sociais, o do significado do Estado como representante de interesses dominantes etc. [...]

[...] Se tanto o setor industrial de São Paulo quanto o do Rio de Janeiro adota-ram uma atitude pragmática com relação aos “novos tempos”, que acabou resultan-do em um entendimento básico entre o Estado e os empresários industriais, o ritmo desse processo foi diverso. A aproximação entre os empresários cariocas e o gover-no Vargas realizou-se com menos percalços e com maior velocidade do que ocorreu em São Paulo. Nesse estado, o bloco de interesses regionais mostrou ser um elemen-to poderoso de resistência ao poder central, como demonstra a eclosão da “guerra paulista”, sustentada, em grande medida, pelo esforço de seu parque industrial.

Passo ao que me parece ser a questão nevrálgica do livro, a qual pode ser assim formulada: em que medida o desenvolvimento econômico do país, a partir dos anos 1930, teve como polo principal a iniciativa do Estado, ou pelo contrário, a ação orga-nizada da grande indústria?

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Atividades

Explique duas técnicas que podem ajudar no empreendimento de um estudo 1. de Ciência Política que utiliza uma abordagem histórica.

As duas teorias usualmente empregadas para se pensar o Estado, tanto no Brasil 2. quanto no mundo, são a marxista e a weberiana. Explique, com suas palavras, as principais características de cada uma delas.

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Selecione dois autores dos que foram abordados na aula, um que utiliza mais o 3. modelo marxista e outro que emprega o modelo weberiano, e explique como cada um entende a formação do Estado no Brasil.

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Ampliando conhecimentos

Além das obras que exploraremos aqui, existem muitas outras cujo estudo vale a pena. Indicamos algumas.

BEIGUELMAN, Paula. Formação Política do Brasil. 2. ed. São Paulo: Pioneira, 1976.

BUARQUE DE HOLANDA, Sérgio. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. São Paulo: Globo, 2008.

FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

PRADO JR., Caio. Evolução Política do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1999.

URICOECHEA, Fernando. O Minotauro Imperial. Rio de Janeiro: Difel, 1978.

VIANNA, Oliveira. Instituições Políticas Brasileiras. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987.