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Frederico Barbosa Literatura e Culturas Brasileiras IESDE Brasil S.A. Curitiba 2012 3.ª edição Edição revisada

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Frederico Barbosa

Literatura e Culturas Brasileiras

IESDE Brasil S.A.Curitiba

2012

3.ª edição Edição revisada

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© 2008 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ __________________________________________________________________________________B197L Barbosa, Frederico, 1961- Literatura e culturas brasileiras / Frederico Barbosa. - 3. ed. rev. -Curitiba, PR : IESDE Brasil, 2012. 228 p. : 24 cm Inclui bibliografia ISBN 978-85-387-3530-4 1. Literatura brasileira - História e crítica. I. Título.

12-9013. CDD: 869.909 CDU: 821.134.3(81)(091)

10.12.12 12.12.12 041379 __________________________________________________________________________________

Capa: IESDE Brasil S.A.

Imagem da capa: Shutterstock

IESDE Brasil S.A.Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br

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Frederico Barbosa

Graduado em Letras Português pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Hu-manas da Universidade de São Paulo (USP). Poeta e diretor do Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura (Casa das Rosas).

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Sumário

O que é Brasil? Literatura informativa durante o século XVI ............................................................... 11

Breve histórico ............................................................................................................................ 11

Literatura jesuítica ..................................................................................................................... 13

Brasileiros: de anjos a demônios .......................................................................................... 16

Sobre a Literatura informativa .............................................................................................. 21

O Barroco e a formação do continente ............................ 29

Definição de Barroco ................................................................................................................ 29

O Barroco em Portugal e no Brasil ...................................................................................... 31

O Barroco no Brasil .................................................................................................................... 33

Padre Antônio Vieira: a retórica entre dois mundos ............................................... 45

Vieira hoje .................................................................................................................................... 45

Gregório de Matos e o nativismo crítico .......................... 63

Gregório de Matos (1636-1696) ........................................................................................... 63

Neoclassicismo e a consolidação de um sistema literário no Brasil ......................................... 79

O Arcadismo em Portugal e no Brasil................................................................................. 79

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Cláudio Manuel da Costa: o poeta das pedras .............. 97

Tomás Antônio Gonzaga: poesia e política ...................115

Romantismo e a formação da nacionalidade ..............135

Por que o Romantismo foi tão importante no Brasil? ................................................135

Os folhetins ................................................................................................................................137

O nascimento do romance brasileiro ...............................................................................138

José de Alencar (1829-1877) ...............................................................................................138

Outros romancistas românticos .........................................................................................141

Gonçalves Dias: nacionalismo e indianismo ................149

Gonçalves Dias (1823-1864) ................................................................................................149

Álvares de Azevedo: o escapismo ultrarromântico ....171

Infância ........................................................................................................................................171

Faculdade de Direito ..............................................................................................................171

Morte ...........................................................................................................................................171

Obra ..............................................................................................................................................172

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Castro Alves: o condoreirismo e a crítica social ...........191

Castro Alves (1847-1871) – vida fugaz e intensa ..........................................................191

Sousândrade e a invenção na poesia ..............................207

Breve biografia .........................................................................................................................207

Comentário biográfico ..........................................................................................................207

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ApresentaçãoEste livro apresenta os primórdios da literatura brasileira, desde a primeira manifesta-

ção literária no Brasil, escrita em língua portuguesa, a Carta do Descobrimento, de Pero Vaz de Caminha, até a poesia inventiva e ímpar de Sousândrade.

A escolha dos autores e textos estudados no livro obedeceu a quatro critérios básicos: a sua importância do ponto de vista da evolução temática e formal da literatura brasileira como reflexo das nossas mutações culturais; o seu valor literário (poético) intrínseco; as pos-sibilidades de relacionar cada texto escolhido a outros do livro, apontando-se, assim, para os diálogos que textos das mais variadas épocas estabelecem entre si e a riqueza de recursos estilísticos e linguísticos de cada texto.

A ênfase, portanto, recaiu sobre a produção mais criativa e original dos autores elenca-dos: aquela que os torna significativos não só como fruto de uma época ou estilo, mas principalmente como indivíduos singulares e formadores, com suas obras, das épocas, dos estilos e da cultura do país. Nem por isso foram esquecidas ou rechaçadas as obras mais conhecidas e típicas, segundo a historiografia literária tradicional, de cada um dos autores abordados, para que, do confronto entre os textos mais consagrados (que nem sempre são os mais ousados) e aqueles mais inovadores dentro da sua época (que nem sempre são de conhecimento geral), o leitor possa formar uma imagem mais nítida, are-jada e ampla de cada autor, tanto no que apresenta de condizente com seu tempo quanto no que demonstra de inovador até para o leitor contemporâneo.

Cada aula é composta de uma introdução, seja sobre o seu período histórico/literário abordado, seja, nas aulas específicas sobre determinado autor, de notas biobibliográficas sobre o escritor. Em seguida temos uma proposta de análise literária, na qual se procura estabelecer uma ponte entre a literatura do passado e a atualidade.

Assim, a Literatura informativa do século XVI é articulada ao Modernismo de Mário e Oswald de Andrade, o Barroco é associado à teoria do Neobarroco de Haroldo de Campos, Padre Antônio Vieira é colocado em confronto com os pregadores atuais, é discutida a similari-dade entre Gregório de Matos e Caetano Veloso. Já o Arcadismo brasileiro é motivo para que se discuta a formação da nossa literatura, sob as perspectivas discordantes de Antonio Can-dido e Haroldo de Campos, enquanto seu primeiro representante, Cláudio Manuel da Costa, é relacionado a Augusto de Campos, João Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de Andrade, e Tomás Antônio Gonzaga é abordado pelo prisma da sua releitura por Cecília Meireles.

Os romancistas românticos são associados à Antropofagia de Oswald de Andrade e ao Tropicalismo de Caetano Veloso. Quanto a Gonçalves Dias, observa-se o seu estudo da literatura do passado, por meio da reutilização de passagens do cronista quinhentista Pero de Magalhães Gândavo na composição de sua obra. Já Álvares de Azevedo é associado ao movimento “dark” contemporâneo. Enquan to Castro Alves é relacionado à teoria de Roland Barthes e Sousândrade à vanguarda contemporânea de Augusto de Campos.

Este livro pretende, assim, ajudar o estudante a ler o nosso passado literário colocan-do-o em perspectiva atual, com atenção aos aspectos socioculturais e também às sutilezas da criação e invenção literárias. Ou seja, ver nossa literatura e nossa cultura com os olhos da inquietação e da curiosidade.

Frederico Barbosa

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Breve históricoO Brasil foi “descoberto”11 pela cultura europeia há mais de 500 anos. No

entanto, esse momento ímpar na história da humanidade, marcado pelo encontro de civilizações absolutamente díspares, continua ecoando na for-mação da cultura brasileira até hoje: seja na imagem que nós brasileiros fa-zemos de nós mesmos, seja na forma como os estrangeiros nos encaram.

Como se forma a imagem de um país recém-inserido na cultura ociden-tal? Certamente por meio de relatos sobre seu povo nativo e sua natureza exuberante e, principalmente, pelo confronto inevitável entre a cultura do “descobridor” europeu e os antigos moradores da terra, que, com a sua nudez despudorada, sua aparente ingenuidade e seus hábitos inimagi-náveis para o cristianismo, como os rituais antropofágicos, provocaram o imaginário europeu como poucas coisas seriam capazes.

É interessante notar, durante toda esta aula, como os relatos apontados e seus contextos continuam ecoando na imagem de Brasil que temos na mente, que, como toda a imagem, foi construída e transformada durante séculos. Moldada sempre por diversos fatores socioculturais e ideológicos.

Além disso, é fundamental perceber como o encontro das culturas, ocorrido em terras brasileiras, é uma fonte inesgotável de reflexão sobre a “alteridade”, ou seja, de como “o outro” é visto e recebido por “nós”.

O DescobrimentoDurante quase um século, os portugueses buscaram uma forma de

contornar a África para che gar à Índia. Em 1434, Gil Eanes contorna pela primeira vez o Cabo Bojador. Em 1471, João de Santarém e Pedro Escobar chegam ao Golfo da Guiné e Diogo Cão atinge o Rio Zaire em 1483. Cinco anos depois, em 1488, Bartolomeu Dias dobra o Cabo da Boa Esperança, 1 Desde o século XIX, discute-se se a chegada dos portugueses foi ao acaso ou se já havia o conhecimento anterior deste Novo Mundo. Há também um questionamento acerca do uso da palavra “descobrimento”, uma vez que o Brasil já se encontrava habitado quando os portugueses chegaram.

O que é Brasil? Literatura informativa durante o século XVI

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O que é Brasil? Literatura informativa durante o século XVI

abrindo assim o caminho para Vasco da Gama encontrar, afinal, a rota marítima para a Índia, em 1498. A viagem de Vasco da Gama abriu um caminho há muito sonhado pelos portugueses. Ao retornar a Portugal, no final de 1499, o descobri-dor do caminho para as Índias já encontrou uma nova frota em preparação. Co-mandada por Pedro Álvares Cabral, seria, com seus 13 navios, a maior já lançada ao mar. O roteiro de Vasco da Gama já tinha se afastado em muito do continente negro, para fugir das correntes marítimas adversas da costa africana.

Mas persistia um problema: a viagem, sem paradas na costa ocidental da África, tornava-se extremamente desgastante e longa. Carecia encontrar um ponto de parada. As terras do Novo Mundo, já devidamente divididas pelo Tra-tado de Tordesilhas de 1494, serviriam bem a este propósito. Além disso, era pre-ciso tomar posse do que já era, por decisão papal, de Portugal.

Veio Cabral seguido por inúmeros jovens aventureiros durante todo o século XVI, em busca da liberdade, da aventura, de tudo o que prometia um novo e desconhecido mundo.

Notícias do desconhecidoO primeiro século de colonização do Brasil foi marcado pela tentativa europeia

de descrição e dominação. A nova terra – cheia de animais, plantas exóticas e seus estranhos habitantes, de costumes tão inusitados e por vezes assustadores – gerou uma literatura composta basicamente por cartas, relatos de viagem e tratados descritivos, denominada informativa, que procurava contar todas essas novidades àqueles europeus que não se atreviam a fazer uma viagem tão atribulada.

Entre europeus que descreveram a terra brasileira durante o século XVI, destacam-se, em língua portuguesa, Pero Vaz de Caminha, escrivão oficial da frota portuguesa que primeiro aportou no país, em 1500; Gabriel Soares de Sousa (1540-1591), que compôs uma descrição minuciosa da terra e do homem brasileiro no seu Tratado Descritivo do Brasil (1584) e Pero de Magalhães Gândavo, amigo de Camões e autor do Tratado da Terra do Brasil e da História da Província de Santa Cruz (1576) em que se sobressaem as descrições das frutas e árvores brasileiras, assim como os relatos do ritual antropofágico. Outro texto bastante curioso, já dos primórdios do século XVII, é o Diálogos das Grandezas do Brasil (1618), de Ambrósio Fernandes Brandão, que, através da personagem Brandônio, dialoga com o menos crédulo Alviano, prevê um futuro brilhante para a terra brasileira. Entre os viajantes de língua estrangeira, dis-tingue-se Hans Staden, cujas aventuras, descritas em Duas Viagens ao Brasil (1557), tornaram-se os mais populares relatos do Novo Mundo durante o século XVI.

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Observe agora uma ilustração desse livro de Hans Staden.

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Literatura jesuíticaTemos também a obra dos padres jesuítas que vinham ao Brasil com o objetivo

de catequizar os nativos, criando uma literatura de caráter didático, por meio da qual procuravam levar, e muitas vezes forçar, o índio a adotar a fé cristã. Nesta literatu-ra de formação, ou jesuítica, o mais destacado, tanto na labuta missionária quanto nos dotes literários, foi o Padre José de Anchieta, que nos deixou inúmeros poemas e peças doutrinárias de valor literário. A obra de Anchieta, embora com o intuito básico de catequizar os índios, tinha um caráter mais pragmático do que artístico.

Padre José de Anchieta (1534-1597)Natural de Tenerife, nas Ilhas Canárias, esse jesuíta veio

para o Brasil em 1553, onde fundou a cidade de São Paulo, envolveu-se ativamente com a política e realizou um tra-balho missionário sem par. Sua obra literária, escrita em latim, espanhol, português e até no tupi que aprendeu com os índios, volta-se exatamente para esse trabalho, tendo, portanto, um caráter pragmático básico: o intuito de ca-tequizar os índios. Além de poemas, crônicas, sermões e cartas, destaca-se na sua obra o teatro. Escrevendo autos

Padre José de Anchieta.

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O que é Brasil? Literatura informativa durante o século XVI

aos moldes de Gil Vicente, Anchieta utilizava uma linguagem simples e direta para melhor atingir seu público-alvo: os indígenas. Entre as suas obras, destacam- -se as peças Quando, no Espírito Santo, se Recebeu uma Relíquia das Onze Mil Vir-gens (1579), Na Vila de Vitória (1586), e o importante volume Arte de Gramática da Língua Mais Usada na Costa Brasileira (1595).

Segue um poema de Anchieta (apud BARBOSA, 2003, p. 31) que exempli-fica muito bem como sua literatura estava a serviço da religião e do ensina-mento catequético dos índios brasileiros.

Ao Santíssimo SacramentoOh que pão, oh que comida,

oh que divino manjar

se nos dá no santo altar

cada dia.

Filho da Virgem Maria

que Deus Padre cá mandou

e por nós na cruz passou

crua morte.

E para que nos conforte

se deixou no Sacramento

para dar-nos com aumento

sua graça.

[...]

Este manjar aproveita

para vícios arrancar

e virtudes arraigar

nas entranhas.

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O que é Brasil? Literatura informativa durante o século XVI

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Suas graças são tamanhas,

que se não podem contar,

mas bem se podem gostar

de quem ama.

Sua graça se derrama

nos devotos corações

e os enche de benções

copiosas.

Oh que entranhas piedosas

de vosso divino amor!

Ó meu Deus e meu Senhor

humanado!

[...]

Seja minha refeição

e todo o meu apetite,

seja gracioso convite

de minha alma.

Ar fresco de minha calma,

fogo de minha frieza,

fonte viva de limpeza,

doce beijo.

Mitigador do desejo

com que a vós suspiro, e gemo,

esperança do que temo

de perder.

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O que é Brasil? Literatura informativa durante o século XVI

Pois não vivo sem comer,

como a vós, em vós vivendo,

vivo em vós, a vós comendo,

doce amor.

Comendo de tal penhor,

nela tenha minha parte,

e depois de vós me farte

com vos ver.

Âmen.

Brasileiros: de anjos a demôniosEscrivão oficial da frota portuguesa, Pero Vaz de Caminha, natural da cidade

do Porto, jamais retornaria à sua terra. Após passarem no Brasil nove intensos dias, os navegantes rumaram para a Índia, onde fizeram os negócios tão sonha-dos pela coroa portuguesa. Foi por lá que Caminha, como boa parte dos intrépi-dos marinheiros da época, viria a morrer. Mas não sem antes nos deixar um dos mais importantes relatos das viagens europeias da época.

A leitura da Carta do Descobrimento nos revela algumas surpresas. Escrita entre os dias 22 de abril e 1.º de maio de 1500, descreve claramente que a frota não se perdera, como durante algum tempo se apregoou, que a viagem trans-correra tranquila e que os marinheiros sabiam que estavam chegando a uma terra nova, já pertencente ao rei de Portugal.

Outro aspecto bastante relevante é a construção de um retrato do Brasil como um lugar repleto de maravilhas, e seus habitantes como um povo inocen-te, afável e “sem qualquer cultura”, pronto para ser “civilizado” e cristianizado. O Brasil, neste período inicial, é um “paraíso habitado por anjos”, como neste trecho da Carta de Caminha:

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O que é Brasil? Literatura informativa durante o século XVI

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A feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso de encobrir ou deixar de encobrir suas vergonhas do que de mostrar a cara. Acerca disso são de grande inocência. […]

Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem novinhas e gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas costas; e suas vergonhas, tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as nós muito bem olharmos, não se envergonhavam. […]

E uma daquelas moças era toda tingida de baixo a cima, daquela tintura e certo era tão benfeita e tão redonda, e sua vergonha tão graciosa que a muitas mulheres de nossa terra, vendo-lhe tais feições envergonhara, por não terem as suas como ela. Nenhum deles era fanado, mas todos assim como nós. […]

Parece-me gente de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que não têm nem entendem crença alguma, segundo as aparências. E portanto se os degredados que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa tenção de Vossa Alteza, se farão cristãos e hão de crer na nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque certamente esta gente é boa e de bela simplicidade. E imprimir-se-á facilmente neles qualquer cunho que lhe quiserem dar, uma vez que Nosso Senhor lhes deu bons corpos e bons rostos, como a homens bons. E o Ele nos para aqui trazer creio que não foi sem causa. E portanto Vossa Alteza, pois tanto deseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da salvação deles. E prazerá a Deus que com pouco trabalho seja assim!

Eles não lavram nem criam. Nem há aqui boi ou vaca, cabra, ovelha ou galinha, ou qualquer outro animal que esteja acostumado ao viver do homem. E não comem senão deste inhame, de que aqui há muito, e dessas sementes e frutos que a terra e as árvores de si deitam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos. [...] (CAMINHA apud CORTESÃO, 1943, p. 204-234)

Diante do desconhecido, e da necessidade tão humana de classificá-lo, os na-vegantes europeus usaram como parâmetro o que eles já conheciam. Por exem-plo, ao observar que “nenhum deles era fanado, mas todos assim como nós”, Caminha compara os índios aos negros mulçumanos do Norte da África, que eram circuncidados. Ser circuncidado era prova de seguir outra religião, outros hábitos culturais. Caminha, em sua carta, demonstra a dificuldade de o europeu perceber a cultura do outro, confundindo a curiosidade dos nativos com vonta-de de serem “aculturados”. Ele vê os índios sem cultura ou religião, como uma “tábula rasa”, em que o europeu poderia inscrever sua cultura.

Contudo, com o tempo e a convivência, os relatos mudam. Durante a colo-nização, os portugueses e outros aventureiros europeus percebem que o índio tem sua própria cultura, muito diferente da europeia. Passam, então, a descre-ver os nativos como bárbaros e desumanos – “demônios no paraíso”. Como no trecho a seguir, extraído do Tratado da Terra do Brasil, de 1570, de Pero de Maga-lhães Gândavo.

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O que é Brasil? Literatura informativa durante o século XVI

Capítulo sétimo Da condição e costumes dos índios da terra

(GÂNDAVO, 1980, p. 38)

Não se pode numerar nem compreender a multidão de bárbaro gentio que semeou a natureza por toda esta terra do Brasil; porque ninguém pode pelo sertão dentro caminhar seguro, nem passar por terra onde não acha povoações de índios armados contra todas as nações nenhuma, e assim como são muitos permitiu Deus que fossem contrários uns dos outros, e que houvesse entre eles grandes ódios e discórdias, porque se assim não fosse os portugueses não poderiam viver na terra nem seria possível conquistar tamanho poder de gente.

Havia muitos destes índios pela Costa junto das Capitanias, tudo enfim estava cheio deles quando começaram os portugueses a povoar a terra; mas porque os mesmos índios se levantaram contra eles e faziam-lhes muitas traições, os governadores e capitães da terra destruíram-nos pouco a pouco e mataram muitos deles, outros fugiram para o Sertão, e assim ficou a costa despovoada de gentio ao longo das Capitanias. Junto delas ficaram alguns índios destes nas aldeias que são de paz, e amigos dos portugueses.

A língua deste gentio toda pela Costa é uma: carece de três letras – não se acha nela F, nem L, nem R, coisa digna de espanto, porque assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei; e desta maneira vivem sem Justiça e desordenadamente.

[...]

Não há como digo entre eles nenhum Rei, nem Justiça, somente em cada aldeia tem um principal que é como capitão, ao qual obedecem por vontade e não por força; morrendo este principal fica seu filho no mesmo lugar; não serve doutra cousa se não de ir com eles à guerra, e aconselhá-los como se hão de haver na peleja, mas não castiga seus erros nem manda sobre eles cousa alguma contra sua vontade. Este principal tem três, quatro mulheres, a primeira tem em mais conta, e faz dela mais caso que das outras. Isto tem por estado e por honra. Não adoram cousa alguma nem têm para si que há na outra vida glória para os bons, e pena para os maus, tudo cuidam que se acaba nesta e que as almas fenecem com os corpos, e assim vivem bestial-mente sem ter conta, nem peso, nem medida.

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Estes índios são mui belicosos e têm sempre grandes guerras uns contra os outros; nunca se acha neles paz nem é possível haver entre eles amiza-de; porque umas nações pelejam contra outras e matam-se muitos deles, e assim vai crescendo o ódio cada vez mais e ficam inimigos verdadeiros per-petuamente. As armas com que pelejam são arcos e flechas; a cousa que apontarem não na erram, são mui certos com esta arma e mui temidos na guerra, andam sempre nela exercitados. […]

Quando estes índios tomam alguns contrários, se logo com aquele ímpeto os não matam, levam-nos vivos para suas aldeias (ou sejam por-tugueses ou quaisquer outros índios seus inimigos), e tanto que chegam a suas casas lançam uma corda mui grossa ao pescoço do cativo para que não possa fugir, e armam-lhe uma rede em que durma e dão-lhe uma índia moça, a mais formosa e honrada que há na aldeia, para que durma com ele, e também tenha cuidado de o guardar, e não vai para parte que não no acompanhe.

Esta índia tem cargo de lhe dar muito bem de comer e beber; e depois de o terem desta maneira cinco ou seis meses ou o tempo que querem, de-terminam de o matar; e fazem grandes cerimônias e festas aqueles dias, e aparelham muitos vinhos para se embebedarem, e fazem-nos da raiz duma erva que se chama aipim, a qual fervem primeiro e depois de cozida masti-gam-na umas moças virgens, espremem-na nuns potes grandes, e dali a três ou quatro dias o bebem. E o dia que hão de matar este cativo, pela manhã se alguma ribeira está junto da aldeia levam-no a banhar nela com grandes cantares e folias tanto que chegam com ele à aldeia, atam-no pela cinta com quatro cordas cada uma para sua parte e três, quatro índios pegados em cada ponta destas e assim o levam ao meio dum terreiro, e tiram tanto por estas cordas que não se possa bulir para uma parte nem para outra, as mãos deixam soltas porque folgam de o ver defender com elas. Aquele que o há de matar empena-se primeiro com penas de papagaio de muitas cores por todo o corpo: há de ser este matador o mais valente da terra, e mais honrado. Traz na mão uma espada dum pau mui duro e pesado com que costumam de matar, e chega-se ao padecente dizendo-lhe muitas cousas e ameaçando- -lhe sua geração que o mesmo há de fazer a seus parentes; e depois de o ter afrontado com muitas palavras injuriosas dá-lhe uma grande pancada na cabeça, e logo da primeira o mata e lhe fazem pedaços. Está uma índia velha com um cabaço na mão, e assim como ele cai acode muito depres-

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O que é Brasil? Literatura informativa durante o século XVI

sa com ele a meter-lho na cabeça para tomar os miolos e o sangue: tudo enfim cozem e assam, e não fica dele coisa que não comam. Isto é mais por vingança e por ódio que por se fartarem.

Depois que comem a carne destes contrários ficam nos ódios confirma-dos e sentem muito esta injúria, e por isso andam sempre a vingar-se uns contra os outros. E se a moça que dormia com o cativo fica prenhe, aquela criança, que pare depois de criada, matam-na e comem-na e dizem que aquela menina ou menino era seu contrário verdadeiro por isso estimam muito comer-lhe a carne e vingar-se dele. E porque a mãe sabe o fim que hão de dar a esta criança, muitas vezes quando sente prenhe mata-a dentro da barriga e faz com que morra. [...]

Finalmente que são estes índios mui desumanos e cruéis, não se movem a nenhuma piedade: vivem como brutos animais sem ordem nem concer-to de homens, são mui desonestos e dados à sensualidade e entregam-se aos vícios como se neles não houvera razão de humanos ainda que todavia sempre têm resguardo os machos e as fêmeas em seu ajuntamento, e mos-tram ter nisto alguma vergonha. Todos comem carne humana e têm-na pela melhor iguaria de quantas pode haver: não de seus amigos com quem eles têm paz se não dos contrários. Têm esta qualidade estes índios que de qual-quer cousa que comam por pequena que seja hão de convidar com ela quan-tos estiverem presentes, só esta proximidade se acha entre eles. Comem de quantos bichos se criam na terra, outro nenhum enjeitam por peçonhento que seja, somente aranha.

Estes índios vivem mui descansados, não têm cuidado de cousa alguma se não de comer e beber e matar gente; e por isso são mui gordos em extre-mo; e assim também com qualquer desgosto emagrecem muito; e como se agastam de qualquer cousa comem terra e desta maneira morrem muitos deles bestialmente.

Durante a história da humanidade, este modelo cultural europeu, assim como outros, nas várias civilizações que controlaram ou controlam parte do mundo, serviram e servem de parâmetro e justificativa para genocídios, guerras e dis-criminações as mais diversas (raça, religião, costumes, sexo etc.). E hoje, como o Brasil e os brasileiros são descritos? Como classificamos o outro, aquele que é diferente de nós?

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Sobre a Literatura informativaUm aspecto relevante a se considerar é a utilização posterior da Literatura

informativa por escritores de diferentes períodos da literatura brasileira. Um dos primeiros a reutilizar criativamente os episódios narrados pelos cronistas do século XVI foi o romancista José de Alencar.

Tendo iniciado seu curso de Direito em São Paulo, Alencar se transferiu, em 1848, para a Faculdade de Direito de Olinda, em Pernambuco. Em Olinda, na velha biblioteca do Mosteiro de São Bento, encontra a literatura dos antigos cro-nistas coloniais, como Gabriel Soares de Sousa e Pero Magalhães Gândavo.

Anos mais tarde, Alencar ainda se recorda da emoção que foi a descoberta desses autores do século XVI, que nos dão as primeiras impressões dos europeus ao encontrarem a natureza e o índio do Brasil, em cujas páginas já procurava um tema para desenvolver em sua própria literatura: “Uma coisa vaga e indecisa, que devia parecer-se com o primeiro broto de O Guarani ou de Iracema, flutuava-me na fantasia. Devorando as páginas dos alfarrábios de notícias coloniais, buscava com sofreguidão um tema para o meu romance; ou pelo menos um protagonis-ta, uma cena e uma época.”

Outros a se impressionarem com a descrição dos hábitos indígenas feita pelos autores da Literatura informativa foram os primeiros modernistas. Oswald de Andrade parte das mesmas descrições dos rituais antropófagos que inspira-ram Alencar para criar seu Movimento Antropofágico, além de compor poemas ready-made por meio da utilização de trechos de Caminha, Gândavo e Gabriel Soares de Sousa. Mário de Andrade, por sua vez, inverte o ponto de vista utili-zado tanto pelos cronistas quanto por José de Alencar para descrever o contato com os índios no seu romance Macunaíma — inicialmente dedicado justamente a José de Alencar. Nessa obra há uma paródia invertida da Literatura informativa, na conhecida “Carta pras Icamiabas”, escrita pelo índio Macunaíma para descre-ver a cidade de São Paulo às suas súditas.

Texto complementar(ANDRADE, 1988, p. 72)

No famoso capítulo “Carta pras Icamiabas”, sátira feroz ao beletrismo par-nasiano da época, Macunaíma escreve a suas súditas para lhes descrever a cidade de São Paulo. Vejamos como Macunaíma descreve as paulistanas:

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Sabereis mais que as donas de cá não se derribam a pauladas, nem brin-cam por brincar, gratuitamente, senão que a chuvas do vil metal, repuxos brasonados de champagne, e uns monstros comestíveis, a que, vulgarmente, dão o nome de lagosta. E que monstros encantados, senhoras Amazonas!!!

[...]

Andam elas vestidas de rutilantes joias e panos finíssimos, que lhes acen-tuam o donaire do porte, e mal encobrem as graças, que, a de nenhuma outra cedem pelo formoso do torneado e pelo tom. São sempre alvíssimas as donas de cá; e tais e tantas habilidades demonstram, no brincar, que enu-merá-las, aqui, seria fastiendo porventura; e, certamente, quebraria os man-damentos de discrição, que em relação de Imperator para súbditas se requer. Que beldades! Que elegância! que cachet! Que degagé flamífero, ignívomo, devorador!! Só pensamos nelas, muito embora não nos descuidemos, relap-so, da nossa muiraquitã.

Nós, nos parece, ilustres Amazonas, que assaz ganharíeis em aprender-des com elas, as condescendências, os brincos e passes do Amor. Deixaríeis então a vossa orgulhosa e solitária Lei, por mais amáveis mesteres, em que o Beijo sublima, as Volúpias encandecem, e se demonstra gloriosa, urbit et orbe, a subtil força do Odor di Fêmia, como escrevem os italianos.

E já que nos detivemos neste delicado assunto, não no abandonaremos sem mais alguns reparos, que vos poderão ser úteis. As donas de São Paulo, sobre serem mui formosas e sábias, não se contentam com os dons e excelén-cia que a Natura lhes concedeu; assaz se preocupam elas de si mesmas; e não puderem acabarem consigo, que não mandassem vir de todas as partes do globo, tudo o que de mais sublimado e gentil acrisolou a sciéncia fescenina, digo, feminina das civilizações avitas. Assim é que chamaram mestras da velha Europa, e sobretudo de França, e com elas aprendera a passarem o tempo de maneira bem diversa da vossa. Ora se alimpam, e gastam horas nesse delicado mester, ora encantam os convívios teatrais da sociedade, ora não fazem coisa alguma; e nesses trabalhos passam elas o dia tão entretecidas e afanosas que, em chegando a noute, mal lhes sobra vagar para brincarem e presto se entre-gam nos braços de Orfeu, como se diz. Mas heis de saber, senhoras minhas, que por cá dia e noute divergem singularmente do vosso horário belígero; o dia começa quando para vós é o pino dele, e a noute, quando estais no quarto sono vosso, que, por derradeiro, é o mais reparador.

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[...]

Vivem essas damas encasteladas num mesmo local, a que chamam por cá de quarteirão, e mesmo de pensões ou “zona estragada”; sobrelevando notar que a derradeira destas expressões não caberia, por indina nesta notí-cia sobre as coisas de São Paulo, não fora o nosso anseio de sermos exacto e conhecedor. Porém si como vós, formam essas queridas senhoras um clã de mulheres, muito de vós se apartam no físico, no género de vida e nos ideais. Assim vos diremos que vivem à noute, e se não dão aos afazeres de Marte nem queimam o destro seio, mas a Mercúrio cortejam tão somente; e quanto aos seios, deixam-nos evolverem, à feição de gigantescos e flácidos pomos, que, si lhes não acrescentam ao donaire, servem para numerosos e árduos trabalhos de excelente virtude e prodigiosa excitação.

[...]

Falam numerosas e mui rápidas línguas; são viajadas e educadíssimas; sempre todas obedientes por igual, embora ricamente díspares entre si, quais morenas, quais fossem maigres, quais rotundas; e de tal sorte abun-dantes no número e diversidade, que muito nos preocupa a razão, o serem todas e tantas, originais dum país somente. Acresce ainda que a todas se lhe dão o excitante, embora injusto, epíteto de “francesas”. A nossa desconfiança é que essas damas não se originaram todas da Polónia, porém que faltam à verdade, e são iberas, itálicas, germánicas, turcas, argentinas, peruanas, e de todas as outras partes férteis de um e outro hemisfério.

Estudos literáriosAs questões 1 e 2 referem-se ao texto complementar.

1. Como o texto lido se relaciona aos textos dos cronistas quinhentistas?

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2. Por que podemos considerar, do ponto de vista linguístico, a “Carta pras Ica-miabas” como uma paródia irônica e hilariante?

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3. A partir de sua leitura atenta do fragmento do Tratado da Terra do Brasil (1570), de Pero de Magalhães Gândavo, no corpo do capítulo, reflita sobre a questão a seguir:

a) Aponte alguns vocábulos utilizados por Gândavo que deixem clara a sua posição perante a cultura dos índios.

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ReferênciasANDRADE, Mário de; LOPEZ, Telê Porto Ancona (Coord.). Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Ed. Crítica. Paris; Brasília (DF): Association Archives de la Lit-térature latino-américaine, des Caraïbes et africaine du XXe siècle; CNPq, 1988. v. 6. (Col. Arquivos).

CORTESÃO, Jaime. A Carta de Pero Vaz de Caminha. Rio de Janeiro: Livros de Portugal, 1943, p. 204-234. (Col. Clássicos e Contemporâneos).

GÂNDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil: história da província de Santa Cruz. Belo Horizonte; São Paulo: Itatiaia; Editora da Universidade de São Paulo, 1980. v. 12.

Gabarito1. Mário de Andrade inverte, aqui, os relatos dos cronistas quinhentistas, como

Pero Vaz de Caminha ou Pero de Magalhães Gândavo. Agora é o índio que descreve a terra desconhecida para seus pares distantes.

2. Sem caráter, Macunaíma a escreve tomando emprestada a linguagem rebus-cada de um Rui Barbosa ou de um Coelho Neto. A paródia torna-se irônica e hilariante devido aos erros grosseiros cometidos pelo falso erudito, que comete equívocos como “odor di femia” por “odor di femina” ou “ciência fes-cenina” por “feminina”.

3. Bárbaro; desumanos; cruéis; brutos; desonestos etc.

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