Cinema Na Bahia, Memórias Da Cidade de Salvador

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  • Revista do Programa de Ps-Graduao em Estudo de LinguagensUniversidade do Estado da Bahia UNEB

    Departamento de Cincias Humanas DCH I

    NMERO ESPECIALISSN: 2176-5782

    Cinema na Bahia, memrias da cidade de Salvador1

    Maria do Socorro Carvalho2

    RESUMO: A produo de cinema na Bahia pode ser associada busca de construo de uma memria da cidade de Salvador. notvel sua forte presena como tema, cenrio e problema de grande parte de sua cinematografia, sobretudo ao tratar-se do chamado Ciclo do Cinema Baiano (1958 1964), quando tem incio a realizao dos primeiros filmes de longa-metragem na Bahia. Este artigo aborda o Ciclo do Cinema Baiano como depositrio de memrias da cidade de Salvador, com destaque para o filme A grande feira (Roberto Pires, 1961), que discute um problema contemporneo daquela cidade o dos feirantes de gua de Meninos ameaados de serem expulsos do terreno da feira. Com A grande feira, uma bem sucedida experincia de crtica e de pblico, os soteropolitanos no estavam apenas na platia, mas tambm nas imagens do filme projetado na tela do cinema, fazendo dele a produo mais representativa daquela sociedade que ento produzia a nova onda baiana (1958 1962).

    Palavras-chave: CinemaBahia; MemriaSalvador; Nova onda baiana

    Esboarei algumas notas sobre o cinema na Bahia, em torno da relao entre a

    produo de filmes do surto cinematogrfico baiano do final dos anos 1950 e a efervescncia

    cultural desse perodo, em Salvador, para pensar a histria do cinema baiano, recorrentemente

    contada em ciclos (como tambm acontece com o cinema brasileiro) e a memria daquela

    cidade. Por isso, nesse momento de uma novssima onda baiana que assinala um

    significativo aumento da produo cinematogrfica local, comeo citando uma frase de

    Glauber Rocha, proferida no j distante ano de 1968 antigamente, ns fizemos o

    impossvel: cinema na Bahia.

    1 Texto extrado de Maria do Socorro Silva Carvalho, Imagens de um tempo em movimento (1999) e A nova onda baiana (2003) . Uma verso dele foi apresentada na mesa-redonda Cinema na Bahia, ontem e hoje, do III Seminrio Internacional de Cinema e Audiovisual (SemCine), realizado na cidade de Salvador, em julho de 2007.2 Professora do Programa de Ps-Graduao em Estudos de Linguagem (PPGEL) e do Curso de Graduao em Comunicao Social (DCH-I) da Universidade do Estado da Bahia (UNEB).

    Email: [email protected] .

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    O quase veredicto de Glauber Rocha remete-nos ao movimento que inaugura uma

    importante produo cinematogrfica na Bahia, o chamado Ciclo de Cinema Baiano (1958-

    1964), que recortei como A Nova Onda Baiana. Ou seja, o cinema feito, na Bahia, de

    Redeno, em 1958, o primeiro longa-metragem baiano, a Tocaia no Asfalto, realizado em

    1962, ambos dirigidos por Roberto Pires. Entre esses dois marcos, alm de um nmero

    expressivo de curtas-metragens, so produzidos mais cinco filmes de longa-metragem, todos

    de fico. um fenmeno que chama a ateno. De repente, em um lugar sem histria de

    produo de filmes, exceo de pequenos documentrios do pioneiro Alexandre Robatto

    Filho (hoje em processo de restaurao na Cinemateca Brasileira), surge um movimento de

    cultura cinematogrfica, no apenas produzindo filmes, mas antes crtica, tcnicos,

    produtores, atores e diretores. Tudo acontece muito rapidamente, e em um breve intervalo de

    cinco anos essa nova onda de cinema na Bahia nasce, cresce, produz, ganha notoriedade e

    morre.

    Em 1959, Trigueirinho Neto agita a cidade de Salvador com as filmagens de Bahia de

    Todos os Santos; em 1960, Nelson Pereira dos Santos, no serto da Bahia, inventa

    Mandacaru Vermelho; e, em 1961, a vez de Anselmo Duarte filmar o premiado O Pagador

    de Promessas. Ao mesmo tempo, iniciava-se a realizao de filmes pelos prprios cineastas

    baianos. Em 1961, trs anos depois de inaugurar a produo de cinema na Bahia com

    Redeno, Roberto Pires dirige A Grande Feira e, no ano seguinte, Tocaia no Asfalto. Entre

    1960-61, Glauber Rocha, aps duas incurses pelo cinema experimental de curta-metragem

    Ptio, em 1958, e o inacabado A Cruz na Praa, em1959 , filma seu primeiro longa-

    metragem, Barravento.

    Na tentativa de investigar o Ciclo de Cinema Baiano, encontrei a cidade, uma ainda

    provinciana cidade do Salvador. notvel sua forte presena no apenas na origem do

    movimento, mas alm disso como tema, cenrio, problema, sendo quase a protagonista dos

    filmes Bahia de Todos os Santos, A Grande Feira, O Pagador de Promessas e Tocaia no

    Asfalto. Essa uma questo a se pensar tambm em relao ao cinema que se realiza hoje,

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    pois a cidade novamente faz-se personagem principal em suas produes recentes, como

    Cidade Baixa (Srgio Machado, 2005), Eu me Lembro (Edgard Navarro, 2006), Pa

    (Monique Gardenberg, 2007), Esses Moos (Jos Araripe Jr., 2007) e at no documentrio

    Samba Riacho (Jorge Alfredo, 2001). (Nessa perspectiva de anlise, pode-se apontar ainda o

    dilogo entre A Grande Feira e Samba Riacho, ou entre os estrangeiros polmicos Bahia

    de Todos os Santos e Pa ).

    Portanto, ao redor do processo de modernizao da Bahia, em especial de sua

    capital, na segunda metade da dcada de 1950, que se desenvolve o primeiro cinema baiano.

    Promovia-se a imagem de um estado em franco progresso, no caminho da modernidade e, ao

    mesmo tempo, corajosamente preservado em suas fortes razes culturais. A idia corrente,

    muito difundida pela imprensa local, era a de que Salvador, por sua histria, situao

    geogrfica privilegiada e rica tradio cultural, seria a nica cidade brasileira com

    possibilidades de tornar-se uma sntese do pas, uma referncia do Brasil para o mundo. E o

    Cinema teria um papel importante na construo daquele sonho de fazer da Cidade da Bahia a

    capital cultural do pas.

    At meados da dcada de 1950, Salvador era uma cidade pacata, orientada pelo antigo

    centro da capital da Colnia. Uma cidade de uma rua s, diziam os jornais da poca. O

    processo que a transformaria, ocorrido ao longo de quase trinta anos, tem nesse perodo em

    sintonia com a ideologia do desenvolvimento do Governo Juscelino Kubitschek (1956-

    1961) um momento decisivo na definio de seus novos caminhos.

    Dominada pela tradio colonial, Salvador possua na Rua Chile, em alguns prdios de

    arquitetura moderna e poucas residncias particulares os exemplos da at ento lenta chegada

    da modernizao. Uma cidade que no dispunha da infra-estrutura urbana bsica, como

    sistemas eficientes de telefonia, energia eltrica e transporte, mas que tinha no cinema sua

    principal atividade de lazer, o nico divertimento realmente popular, segundo os jornais,

    sobretudo pelos filmes hollywoodianos e chanchadas da Atlntida. Talvez por isso, alm

    da programao, assunto dos mais debatidos entre a crtica especializada, as discusses sobre

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    a qualidade das salas e o preo dos ingressos ocupavam os jornais. Ainda sem a presena da

    televiso, as vinte salas que em janeiro de 1959 estavam em funcionamento na cidade eram

    consideradas insuficientes para sua populao de cerca de quinhentos mil habitantes. (Note-se

    que, hoje, Salvador conta com cerca de 50 salas de cinema, em sua maioria espalhadas pelos

    shoppings, para uma populao em torno de trs milhes de habitantes).

    Ao nos voltarmos para o estudo do cinema produzido na Bahia dos anos 1950-60,

    fundamental portanto buscar entend-lo no conjunto de uma movimentao social mais

    ampla, na qual os jovens cinfilos, futuros crticos e realizadores, experimentavam sua

    formao em um ambiente culturalmente favorvel, inclusive, s manifestaes artsticas. No

    processo de expanso da cidade, alguns acontecimentos davam suporte crena na

    possibilidade de no apenas fazer filmes, mas estruturar uma indstria de cinema na Bahia.

    Talvez j se pudesse falar da incipincia de uma Indstria Cultural na Bahia (ORTIZ,

    1988). Pensava-se em criar um teatro baiano e um mercado de artes plsticas; acreditava-se

    na possibilidade de estruturao do plo cinematogrfico; a inaugurao da primeira emissora

    de televiso, ao lado da modernizao dos antigos meios de comunicao e do surgimento das

    primeiras agncias de publicidade, sustentariam a idia de um desenvolvimento cultural em

    moldes industriais. E os planos de um plo turstico no estado incentivavam o otimismo dos

    baianos.

    A criao do Museu de Arte Moderna (o MAMB, como era ento conhecido)

    consolidava o surgimento de um novo grupo de artistas plsticos, e o projeto de um Museu de

    Arte Popular demonstrava a valorizao das antigas tradies do povo brasileiro,

    especialmente o nordestino. A construo do Teatro Castro Alves inspirou o surgimento de

    salas de espetculos na cidade. Ressalte-se a importncia deste Teatro, semi-destrudo por um

    incndio na semana de sua inaugurao3, mas que ainda assim serviu como sede provisria do

    Museu de Arte Moderna, cedeu espao para a primeira sala de projeo do Clube de Cinema

    3 Inaugurado oficialmente em 2 de julho de 1958, o TCA foi parcialmente destrudo pelo fogo na madrugada do dia nove, cinco dias antes de sua efetiva abertura ao pblico.

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    da Bahia, foi palco para a montagem de grandes espetculos dos estudantes de teatro, alm de

    estdio para filmes baianos.

    A Universidade da Bahia outra referncia obrigatria quando se trata da cultura

    baiana desse perodo. Seu esforo de integrao comunidade um dos elementos

    importantes na renovao cultural baiana, tanto no campo tcnico-cientfico quanto no das

    expresses artsticas. A instalao do seu campus, no Vale do Canela, contribuiu para o

    deslocamento do eixo dos acontecimentos do antigo centro da cidade em direo ao Campo

    Grande. Sua produo intelectual foi fundamental na construo dos anos dourados na

    Bahia, sobretudo a das famosas, e pioneiras na universidade brasileira, escolas de artes

    (Teatro, Dana e os Seminrios de Msica), fundadas em meados dos anos 1950. Em

    particular, a Escola de Teatro, onde Glauber Rocha teve grande atuao, foi responsvel pela

    formao de jovens atores na Bahia, entre os quais se destacam Othon Bastos, Geraldo Del

    Rey, Helena Ignez, Snia dos Humildes e Antnio Pitanga, futuros integrantes do elenco da

    Nova Onda Baiana e, mais tarde, do Cinema Novo.

    Estranhamente, o empenho da Universidade da Bahia para estimular as diversas

    linguagens artsticas no envolveu o cinema, omisso sempre enfatizada por seus crticos.

    Excludo da vida universitria, o cinema encontraria em outras instituies os canais para se

    consolidar como expresso de cultura. A mais importante delas foi o Clube de Cinema da

    Bahia, fundado em 1950 por Walter da Silveira, o grande incentivador da arte

    cinematogrfica entre os baianos e a referncia maior dos seus jovens cinfilos, futuros

    crticos, produtores, tcnicos e diretores.

    Nas manhs de domingo, o Clube de Cinema reunia jornalistas, artistas, intelectuais,

    profissionais liberais, professores e estudantes para ver e discutir o que havia de mais

    importante na cinematografia mundial, obras que dificilmente seriam exibidas no circuito

    comercial. Desde os diretores mais antigos, ainda da poca do cinema mudo, at a mais nova

    gerao dos crticos-realizadores da nouvelle vague francesa, todos foram vistos, analisados e,

    muitas vezes, debatidos nessas sesses matinais.

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    Uma prova da fecundidade desse trabalho foi a revelao de jovens crticos

    preocupados com a expresso cinematogrfica nos seus aspectos estticos, histricos, sociais,

    polticos e econmicos. Sob a liderana de Walter da Silveira, colaborador do Suplemento de

    Artes e Letras do Dirio de Notcias, entre outros peridicos4, esse grupo de crticos crescia e

    espalhava-se pelos diversos veculos de comunicao para discutir cinema. Entre eles,

    Hamilton Correia (Dirio de Notcias), Jernimo Almeida pseudnimo de Jos Gorender

    (Jornal da Bahia), Orlando Senna e Plnio de Aguiar (Estado da Bahia), Walter Webb (A

    Semana). E o nome de Glauber Rocha, mais uma vez, destaca-se nesse movimento de crtica

    cinematogrfica. Entre 1956, quando comea a escrever profissionalmente, e 1963, ano em

    que se consolida como cineasta, o crtico Glauber Rocha, em diversos peridicos5, defendia

    com muita veemncia a idia de um novo cinema brasileiro, comprometido com a

    transformao social do pas e, principalmente, como expresso legtima de sua cultura6.

    Essa agitao levava a crer que o sonho dos crticos de fazer Salvador a capital

    brasileira do cinema parecia se realizar. Atrados pela beleza natural e cultura da cidade,

    chegavam produtores e realizadores, brasileiros e estrangeiros. Na verdade, era o propagado

    exotismo baiano o motivo maior do interesse, em particular dos estrangeiros, pelo ambiente

    cinematogrfico da Bahia, explicitado nas constantes referncias profuso de seus temas, que

    brotariam naturalmente da riqueza de sua geografia e de seu povo. Foi de certo modo com esse

    esprito que aqui vieram Trigueirinho Neto, Nelson Pereira dos Santos e Anselmo Duarte, mas o

    projeto de seus filmes Bahia de Todos os Santos, Mandacaru Vermelho e O Pagador de

    Promessas, respectivamente os aproximaram tanto do meio cinematogrfico de Salvador que

    acabaram incorporados ao chamado cinema baiano.

    4 Sobre a produo escrita de Walter da Silveira, ver Jos Umberto Dias (2006).5 Entre 1956 e 1957, inicia sua atividade crtica profissional, primeiramente, assinando como Rocha Andrade, em O Momento, jornal do Partido Comunista, no qual tambm escrevia Walter da Silveira. Depois, no semanrio Sete Dias e no programa Cinema em Close-up, na Rdio Excelsior. Em 1958, assume a coluna Jornal do Cinema, no recm-criado Jornal da Bahia, saindo no ano seguinte para exercer os cargos de copidesque e diretor do Suplemento de Artes e Letras, do Dirio de Notcias. Nessa poca, j publicava crticas no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil.6 Sobre a produo crtica de Glauber Rocha na Bahia, ver Jos Umbelino Brasil (2007).

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    Embora a preocupao com problemas sociais tenha sido a caracterstica marcante do

    Ciclo baiano, seu filme inaugural, Redeno um semi-policial melodramtico, segundo

    definio de Glauber Rocha , rodado entre 1957 e 1958, estava afastado da concepo de

    cinema social, comprometido com a realidade do pas.

    O aparecimento desse primeiro filme de fico foi uma grata surpresa para os mais

    envolvidos com cinema em Salvador. A equipe de Redeno no participava daquele grupo

    liderado por Walter da Silveira no Clube de Cinema, o que refora a idia de amplitude da

    efervescncia cultural em Salvador ao final dos anos 1950. Alm disso, Roberto Pires

    surpreende ainda mais pelo fato de, ele prprio, ter desenvolvido uma lente com a qual filmara

    Redeno, em um processo que ficou conhecido como "igluscope", uma homenagem a Iglu

    Filmes, a pioneira produtora do cinema baiano.

    O sentimento geral era de orgulho Redeno seria "um pouquinho" de todos os

    baianos, dizia Glauber Rocha e de incentivo quela corajosa iniciativa, pois "primitivo ou

    no", o primeiro longa-metragem baiano merecia ser amado e analisado, segundo Walter da

    Silveira. No seu lanamento, destacava-se o fato de Redeno ser um filme com capital baiano,

    escrito e dirigido por um baiano, interpretado por baianos, porm, no um filme sobre a Bahia.

    Naquele tempo de exaltao das "coisas da Bahia", via-se com reserva essa ausncia. Na

    cruzada em defesa da futura produo de cinema na Bahia, Glauber Rocha apressava-se para

    justific-la, afirmando que Roberto Pires, por falta de recursos artsticos, econmicos e tcnicos,

    havia preferido deixar o complexo tema Bahia intocvel a estrag-lo com sedues superficiais

    do ambiente baiano.

    De fato, Roberto Pires iria se aproximar de certa temtica regional em seus dois filmes

    seguintes, A Grande Feira (1961) e Tocaia no Asfalto (1962), que contaram tambm com a

    presena de um importante personagem dessa histria do cinema baiano: Rex Schindler.

    Produtor e argumentista, Rex Schindler foi, "silenciosamente", lembrava Glauber Rocha,

    durante muitos anos, um dos scios mais assduos s exibies e conferncias promovidas pelo

    Clube de Cinema da Bahia.

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    Ao realizar Tocaia no Asfalto, Roberto Pires voltava ao gnero policial para abordar a

    poltica nordestina, marcada pela prtica do crime como forma de manuteno do latifndio e,

    portanto, de dominao na regio. No ano anterior, com A Grande Feira tratara de um

    problema contemporneo da cidade, o dos feirantes de gua de Meninos ameaados de despejo

    para que se pudesse construir um loteamento em seu terreno.

    Com A Grande Feira, os soteropolitanos estavam na platia e, em larga medida, nas

    imagens projetadas na tela do cinema, fazendo desse filme a experincia de maior xito de

    crtica e pblico do Ciclo baiano. Como bem observou o jovem crtico Caetano Veloso, esse

    filme de Roberto Pires criava a Bahia mais Bahia que o cinema j havia mostrado. Por esta

    relao complexa entre cinema-cidade-pblico transposta para o filme por seus realizadores,

    destaco aqui A Grande Feira como a produo mais representativa daquela sociedade que

    produziu o que considero a nova onda baiana.

    Em A Grande Feira, a fantasia baiana vivida em torno do progresso, para neg-lo ou

    afirm-lo, est bastante presente. Fora da feira de gua de Meninos, tenta-se mostrar uma

    cidade que aspirava modernizao, com um porto movimentado, ruas agitadas e policiadas,

    trfego intenso de carros, nibus e bondes, prdios altos e residncias luxuosas de arquitetura

    moderna abrigando uma burguesia que possua lanchas e companhias de aviao, freqentava

    bares, festas, colunas sociais e cujos filhos estudavam na Europa.

    O filme pretende denunciar a falsidade do desenvolvimento em curso, mostr-lo em seus

    aspectos perversos e injustos como obra de empresrios gananciosos, interessados apenas em

    enriquecimento prprio. Aquele progresso seria ento um modo moderno de ganhar mais

    dinheiro, de tornar os ricos cada vez mais ricos. Os pobres, por sua vez, identificados com os

    marginais que viviam em torno da Feira, eram os explorados. Sem nenhuma alternativa de

    partilhar as riquezas geradas nesse processo, eram as vtimas do falso desenvolvimento.

    Ou ricos burgueses ou pobres marginais, eram as opes apresentadas na fita. A no ser

    que o jornalista que acompanha as gr-finas Feira, a fim de tirar fotos para o turismo,

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    conforme palavras do prprio personagem, representasse aquele segmento social mdio no qual

    se encontraria grande parte dos habitantes de Salvador, como alis os prprios realizadores,

    ausentes do filme (tema explorado pelas crticas de Walter da Silveira) .

    A falta torna-se mais significativa quando se nota que o jornalista, chamado de Renot,

    que parece ntimo da personagem de Helena Ignez e de suas amigas, interpretado pelo mesmo

    Renot (Reinaldo Marques) que assinava a coluna social Smart Society, publicada diariamente

    no jornal Estado da Bahia. Ao mesmo tempo em que o colunista fazia uma participao

    amical, em outra seqncia quando o rico advogado comenta indignado que teve de reagir,

    pois, pela terceira vez, seu nome havia sido omitido das crnicas sociais desdenhava-se esse

    mundo, mesmo que Glauber Rocha e Helena Ignez tambm tenham sido responsveis pela

    coluna social Krista, durante cerca de dois anos, do Dirio de Notcias.

    Observe-se ainda que o elenco de A Grande Feira conta com a participao expressiva

    de jovens artistas e intelectuais em pequenos papis ou como figurantes. Ao representar

    personagens diversos do seu mundo real artistas plsticos, jornalistas, crticos e cineastas,

    transformados em msicos e freqentadores de cabar, investigadores de polcia, prostitutas,

    mendigos, barraqueiros e sindicalistas , para alm do cinema de amigos, o filme indica um

    sentido de solidariedade com os excludos, imprimindo-lhes certo charme. (Vale lembrar que

    alm de Walter da Silveira como o dono do bar e do prprio Roberto Pires como o lder

    sindical, o elenco contava com Calasans Neto, Agnaldo (Siri) Azevedo e Luiz Henrique Dias

    Tavares como msicos e Glauber Rocha, Orlando Senna e Leo Rozenberg como

    freqentadores do cabar; Sante Scaldaferri era um dos investigadores, Walter Webb um dos

    mendigos e Genaro de Carvalho um dos amigos ricos, entre outras participaes. Entre os

    artistas populares, alm do poeta Cuca de Santo Amaro, como o narrador da histria, destaca-

    se a presena do msico Riacho como cantor do cabar.)

    Ao conferir essa aura aos personagens marginalizados, A Grande Feira cria uma

    falsidade da pobreza, fazendo-nos crer que os realizadores foram atingidos pela mesma fantasia

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    de progresso que ento dominava certos setores sociais. Embora a inteno maior do filme

    fosse recusar/denunciar o pseudo-desenvolvimento, sobretudo ao ver o crescimento e a

    modernizao da cidade como forma de aumentar a fome e a injustia social, acredito que o

    filme termina por sugerir sua aceitao. Assim, paradoxalmente, na tentativa de negar aquela

    alegre Bahia, entendida como produto da "ideologia do desenvolvimento", os cineastas

    acabam por afirm-la.

    Diferentemente de A Grande Feira, os realizadores de Barravento a conturbada

    estria de Glauber Rocha na direo de filmes de longa-metragem, lanado em 1962, mas

    rodado entre outubro e dezembro de 1960 distanciam-se da cidade, e de sua euforia

    desenvolvimentista, para responsabiliz-la pela explorao da pobreza e da ignorncia

    existentes sua volta, ampliando a discusso sobre a fome e suas formas de representao

    iniciada em Bahia de Todos os Santos. Na impossibilidade de trat-los aqui, no se pode

    deixar ao menos de mencionar sua importncia como precursores do cinema da fome e da

    violncia que explodir com o Cinema Novo ao longo da dcada de 1960.

    Ainda vinculados ao Ciclo do Cinema Baiano estavam Sol Sobre a Lama e O Caipora,

    ambos iniciados em 1962, porm lanados no circuito comercial em 1963 e 1964,

    respectivamente. Sol Sobre a Lama, dirigido por Alex Viany, retomava a discusso em torno

    do problema da ameaa de extino da Feira de gua de Meninos. O Caipora, era a estria

    de Oscar Santana, antigo colaborador de Roberto Pires, na direo de filmes de fico.

    Em 1964, Olney So Paulo, continuista de Mandacaru Vermelho e assistente de

    direo de O Caipora, realiza O Grito da Terra, formalmente o ltimo filme do Ciclo de

    Cinema Baiano (SETARO, 1976, p. 15-21). Na prtica, contudo, o surto havia terminado no

    auge da produo de 1962, coroada com a nica edio do I Festival de Cinema da Bahia7, o

    primeiro grande encontro do cinema baiano com a produo flmica de outros estados, quando

    7 O evento foi uma promoo do Departamento de Turismo da Prefeitura e da Associao de Crticos Cinematogrficos da Bahia, em homenagem aos cinqenta anos de fundao do jornal A Tarde.

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    diretores, atores, crticos e produtores de vrios lugares do pas encontraram-se em Salvador

    para debater o novo cinema brasileiro8.

    Esse Festival sintetizou uma tendncia que vinha se delineando entre os crticos mais

    engajados ao movimento, ou seja, a de abordar o cinema baiano como cinema brasileiro. Em

    particular, Glauber Rocha e Orlando Senna no insistiam mais na necessidade de fazer cinema

    na Bahia, mas apenas na importncia de fazer cinema.

    Trs fatores parecem determinantes nessa mudana do discurso crtico, apontando para

    o desmantelamento daquele cinema baiano. Primeiro, os prejuzos acumulados com os

    filmes realizados inviabilizaram a continuidade de uma produo cujo xito foi restrito ao

    mercado de Salvador. Segundo, houve uma ruptura com a fantasia desenvolvimentista e a

    conseqente constatao de que a Bahia no atenderia s necessidades materiais de uma

    indstria cinematogrfica. Terceiro, o Cinema Novo j era uma realidade, atraindo para seu

    centro os nomes mais importantes do surto baiano, Roberto Pires e Glauber Rocha, que a

    partir de 1963 passam a viver e a trabalhar no Rio de Janeiro, onde se instalou o ncleo

    cinemanovista.

    Os profissionais que ento permaneceram em Salvador, como Rex Schindler e

    Orlando Senna, ainda tentaram manter o esprito da agitao cinematogrfica, realizando

    filmes curtos e planejando a produo de novos longas-metragens. Mas o tempo da utopia

    esttica baiana no estava mais em movimento, e o fim de sua nova onda foi inevitvel.

    REFERNCIAS

    8 Destacam-se as presenas de Paulo Emlio Salles Gomes, Ruy Guerra (um dos membros do jri, ao lado de Walter da Silveira e Hamilton Correia, entre outros), Nelson Pereira dos Santos, Linduarte Noronha e Srgio Ricardo. Estiveram ainda em Salvador o cnsul Arnaldo Carrilho, da Diviso Cultural do Itamaraty, e o cineasta sueco Arne Sucksdorff, representante da UNESCO, para avaliar as possibilidades de insero do cinema brasileiro no mercado internacional.

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    BRASIL, Jos Umbelino. As Crticas do Jovem Glauber. Salvador, 2007. Tese (Doutorado em Comunicao e Cultura Contemporneas) Faculdade de Comunicao, Universidade Federal da Bahia, 2007.

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