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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO CLÁUDIA MARIA BORGES COSTA PINTO O “EXCEPCIONAL INTERESSE SOCIAL” E O DIREITO À REPETIÇÃO DO INDÉBITO TRIBUTÁRIO CURITIBA 2008

CLÁUDIA MARIA BORGES COSTA PINTO O “EXCEPCIONAL … · implementação de direitos de segunda dimensão) e o enquadramento do direito à repetição do indébito como direito de

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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO PARAN

CENTRO DE CINCIAS JURDICAS E SOCIAIS

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO

CLUDIA MARIA BORGES COSTA PINTO

O EXCEPCIONAL INTERESSE SOCIAL E O DIREITO

REPETIO DO INDBITO TRIBUTRIO

CURITIBA

2008

CLUDIA MARIA BORGES COSTA PINTO

O EXCEPCIONAL INTERESSE SOCIAL E O DIREITO

REPETIO DO INDBITO TRIBUTRIO

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao, Pesquisa e Extenso em Direito, da Pontifcia Universidade Catlica do Paran, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Direito.

Orientador: Prof. Dr. Dalton Luiz Dallazem

CURITIBA

2008

P659e 2008

Pinto, Cludia Maria Borges Costa

O excepcional interesse social e o direito repetio do indbito tributrio / Cludia Maria Borges Costa Pinto ; orientador: Dalton Luiz Dallazem. -- 2008.

167 ; 30 cm

Dissertao (mestrado) Pontifcia Universidade Catlica do Paran, Curitiba, 2008.

Inclui bibliografia

1. Direito Constitucional. 2. Direito Tributrio. 3. Finanas Pblicas. 4. Oramento. 5. Responsabilidade Fiscal. I. Dallazem, Dalton Luiz. II. Pontifcia Universidade Catlica. Programa de Ps-Graduao em Direito. III. Ttulo.

Dris 4. ed. 341.39

CLUDIA MARIA BORGES COSTA PINTO

O EXCEPCIONAL INTERESSE SOCIAL E O DIREITO

REPETIO DO INDBITO TRIBUTRIO

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao, Pesquisa e Extenso em Direito, da Pontifcia Universidade Catlica do Paran, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Direito.

COMISSO EXAMINADORA

_________________________________________ Prof. Dr. Dalton Luiz Dallazem

Pontifcia Universidade Catlica do Paran

_________________________________________ Profa. Dra. Cludia Maria Barbosa

Pontifcia Universidade Catlica do Paran

_________________________________________ Prof. Dr. Abili Lzaro Castro de Lima

Universidade Federal do Paran

_________________________________________ Prof. Dr. Roberto Catalano Ferraz

Pontifcia Universidade Catlica do Paran

Curitiba, 29 de fevereiro de 2008.

AGRADECIMENTOS

A Deus, o qual me deu foras para, em meio a tantas dificuldades e provaes, realizar este

trabalho.

Para minha me Agneta, pelas inesquecveis manifestaes de amor e apoio incondicionais.

Para meu filhinho amado, que, enquanto escrevo estas palavras, encontra-se no meu ventre e

que deu novo significado e esperanas minha vida.

Para o Professor Dr. Dalton Luiz Dallazem, meu orientador, pelo apoio, compreenso e

auxlio nos momentos difceis.

Para os Professores Drs. Cludia Maria Barbosa e Abili Lzaro Castro de Lima pela honrosa

participao da Comisso Examinadora e pelas valiosas contribuies para o aprimoramento

deste trabalho.

Para a Professora Dra. Mrcia Carla Pereira Ribeiro, pela sincera demonstrao de

solidariedade.

Para os demais professores da Pontifcia Universidade Catlica do Paran, pelo excelente

convvio acadmico.

Para as amigas da Secretaria da Ps-Graduao em Direito, Eva de Ftima Curelo (Evita) e

Isabel Cristina Rosa.

Para meus colegas de Mestrado e todos os meus amigos que me acompanharam nesta jornada,

em especial, Caroline de Almeida Sampaio.

Sinceros agradecimentos tambm para Carolina Hartmann, Adriana Maria Farias e Ivonete

Arclio dos Santos, pela real demonstrao de amizade.

Para minha irm Simone Koubik, pelos bons conselhos e boas palavras.

Para minha irm Alessandra de Ftima Borges Gomes, que deixou em um dos livros

utilizados neste trabalho, a mensagem bblica que segue adiante e que, durante os dias e noites

de rduo labor, tanto me iluminou e estimulou a prosseguir, mesmo diante das dificuldades.

Para os Advogados Luiz Carlos da Rocha e Alexandre Polati, pelo auxlio e compreenso nos

momentos da minha ausncia no trabalho.

Por fim, para meus grandes amigos, muito mais que irmos, Evaldo Jos Magalhes e Srgio

Paulo Frana de Almeida.

A minha graa te basta, porque o poder se aperfeioa na fraqueza. De boa vontade, pois, mais me gloriarei nas fraquezas, para que sobre mim repouse o poder de Cristo. Pelo que sinto poder nas fraquezas, nas injrias, nas necessidades, nas perseguies, nas angstias, por amor de Cristo. Porque, quando estou fraco, ento que sou forte.

2 Cor 12:9

RESUMO

Este trabalho se prope analisar a teoria da clusula da reserva do possvel em confronto ao direito repetio do indbito tributrio, nas hipteses da modulao (ou calibrao, manipulao) dos efeitos da deciso declaratria de inconstitucionalidade ou constitucionalidade de norma jurdica tributria. A proposta da presente dissertao estudar a admissibilidade da limitao ou mesmo negao do direito repetio do indbito tributrio nas hipteses em que a restituio dos valores devidos aos contribuintes, em virtude da declarao de inconstitucionalidade da norma jurdica tributria, possa ensejar desequilbrios nas finanas pblicas e, assim, possam autorizar a incidncia da clusula da reserva do possvel. Em um cenrio em que crescentes demandas estatais e, por conseguinte, sucessivos aumentos de arrecadao tributria levam ao Supremo Tribunal Federal discusses constitucionais tributrias de grande impacto nas finanas pblicas, o tema assume grande importncia, pois se cuida de verificar se o interesse fazendrio ou meramente arrecadatrio - do Estado est compreendido na expresso excepcional interesse social e, como tal, pode ser argumento vlido para modular os efeitos de decises que declarem a inconstitucionalidade da norma jurdica tributria, a pretexto da aplicao da clusula da reserva do possvel. As concluses do trabalho convergem para a impossibilidade da utilizao da clusula da reserva do possvel para o fim de cercear o direito repetio do indbito. O estudo abrange a anlise dos limites da jurisdio constitucional, os processos decisrios da distribuio de recursos escassos, os princpios que regem o instituto da repetio do indbito tributrio e os papis dos poderes ou funes estatais na elaborao de polticas pblicas e distribuio de recursos e a participao da sociedade neste processo, compreendendo, ramificaes para o exame de questes oramentrias, responsabilidade fiscal, sindicabilidade das polticas pblicas (no que toca implementao de direitos de segunda dimenso) e o enquadramento do direito repetio do indbito como direito de primeira dimenso (e a necessidade, por conseguinte, do resguardo dos princpios da legalidade e proteo propriedade, alm dos princpios da moralidade e proteo da confiana). A pontuao de tais aspectos revela, assim, a evidente vinculao e afinidade do tema com a Linha de Pesquisa Estado, Atividade Econmica e Desenvolvimento Sustentvel e ao projeto de pesquisa Fundamentos e Efeitos Socioeconmicos da Tributao.

Palavras-chaves: Direito constitucional. Direito tributrio. Controle de constitucionalidade. Repetio do indbito tributrio. Finanas pblicas. Distribuio de recursos escassos. Clusula da reserva do possvel. Oramento. Lei de responsabilidade fiscal.

ABSTRACT

This paper intends to analyze the theory of the "clause of the reserve of possible" in confrontation to the right to the repetition of the undue tax, in the hypotheses of the modulation (or calibration, manipulation) of the effects of the declaratory decision of unconstitutionality or constitutionality of tax law. The proposal of this dissertation is to study the admissibility of the limitation - or even denial - of the right to the repetition of the undue tax in the hypotheses in that the restitution of the due values to the taxpayers, because of the declaration of unconstitutionality of the tax law, can cause unbalances in the public finances and, like this, they can authorize the incidence of the clause of the "reserve of possible". In a scenery in that crescents state demands and, consequently, successive outturn increases take to Federal Supreme court tax constitutional discussions of great impact in the public finances, the theme assumes great importance, because it takes care of verifying if the treasury interest - or merely collected - of the State is understood in the expression "exceptional social interest" and, as such, it can be valid argument to modulate the effects of decisions to declare the unconstitutionality of the tax law, on the pretext of the application of the clause of the "reserve of possible". The conclusions of the paper converge for the impossibility of the use of the clause of the "reserve of possible" for the proposal of reducing the right to the repetition of the undue. The study includes the analysis of the limits of the constitutional jurisdiction, the ruling processes of the distribution of scarce resources, the principles that govern the institute of the repetition of the undue tax and the papers of the state powers - or functions - in the elaboration of public politics and distribution of resources and the participation of the society in this process, understanding, ramifications for the exam of budget subjects, fiscal responsibility, self-protection of the public politics (in what it refers to the implementation of rights of second dimension) and the framing of the right to the repetition of the undue as right of first dimension (and consequently the need of the protection of the principles of the legality and protection to the property, besides the principles of the morality and protection of the trust). So, the punctuation of such aspects reveals the evident link and likeness of the theme with the research line "State, Economic activity and Maintainable Development" and with the research project "Foundations and Socioeconomic Effects of the Taxation".

Keywords: Constitutional law. Tax law. Constitutionality control. Repetition of the undue tax. Public finances. Distribution of scarce resources. Clause of the reserve of possible. Budget. Law of fiscal responsibility.

SUMRIO

1 INTRODUO .................................................................................................................... 11

2 O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE ........................................................... 14

2.1 NOTAS INICIAIS .............................................................................................................. 14

2.2 ASPECTOS GERAIS DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE ..................... 14

2.2.1 Supremacia constitucional ............................................................................................ 15

2.2.2 Rigidez constitucional .................................................................................................... 16

2.2.3 Conceito e tipos de inconstitucionalidade .................................................................... 17

2.2.4 Tipos de controle de constitucionalidade ..................................................................... 19

2.2.5 rgos de controle da constitucionalidade .................................................................. 20

2.2.6 Jurisdio constitucional ............................................................................................... 22

2.3 ORIGEM E EVOLUO HISTRICA DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE ................................................................................................... 24

2.3.1 Notas iniciais ................................................................................................................... 24

2.3.2 A evoluo do controle da constitucionalidade na Europa ........................................ 25

2.3.2.1 Frana .......................................................................................................................... 25

2.3.2.2 ustria .......................................................................................................................... 26

2.3.2.3 Alemanha ..................................................................................................................... 29

2.3.2.4 Inglaterra ..................................................................................................................... 29

2.3.3 A evoluo histrica do controle de constitucionalidade nos Estados Unidos ......... 31

2.4 DOS SISTEMAS DE CONTROLE JURISDICIONAL DE CONSTITUCIONALIDADE .................................................................................................................................................. 36

2.4.1 Sistema difuso ou americano ........................................................................................ 36

2.4.2 Do sistema concentrado ou europeu ............................................................................. 38

2.4.3 Do sistema misto ............................................................................................................. 38

2.5.2. Do sistema difuso .......................................................................................................... 40

2.5.3. Do sistema concentrado ................................................................................................ 43

2.5.3.1 Aspectos gerais ............................................................................................................. 43

2.5.3.2 Da modulao dos efeitos da deciso prolatada no controle concentrado de constitucionalidade ................................................................................................................... 59

3 DA TEORIA DA RESERVA DO POSSVEL .................................................................. 92

3.1 A DISTRIBUIO DE RECURSOS ESCASSOS ............................................................ 92

3.1.1 Os processos decisrios na distribuio de recursos ................................................... 92

3.1.2 Papel do Poder Pblico na distribuio de recursos .................................................. 93

3.1.2.1 A atividade financeira do Estado .............................................................................. 94

3.1.2.2 O planejamento na Constituio de 1988 ................................................................. 97

3.2 A CLUSULA DA RESERVA DO POSSVEL ......................................................... 106

3.2.1 Notas iniciais ................................................................................................................. 106

3.2.2 A clusula da reserva do possvel e o Estado Democrtico de Direito brasileiro ................................................................................................................................................ 111

3.2.3 O oramento e a clusula da reserva do possvel .................................................. 115

4 O DIREITO REPETIO DO INDBITO TRIBUTRIO ..................................... 120

4.1 NOTAS INICIAIS ............................................................................................................ 120

4.1.1 Direitos fundamentais. Geraes ou dimenses de direitos ..................................... 120

4.1.2 Princpios constitucionais aplicveis repetio do indbito .................................. 122

4.1.2.3 Princpio da moralidade administrativa ................................................................. 127

4.1.2.4 Princpio da proteo da confiana ......................................................................... 128

4.1.3 Outras consideraes aplicveis repetio do indbito ......................................... 130

5 A CLUSULA DA RESERVA DO POSSVEL E O DIREITO REPETIO DO INDBITO ............................................................................................................................ 131

5.1 NOTAS INTRODUTRIAS ............................................................................................ 131

5.2 O PRINCPIO DA SEPARAO DOS PODERES ........................................................ 137

5.2.1 O papel do Poder Executivo ........................................................................................ 138

5.2.2 O papel do Poder Legislativo ...................................................................................... 145

5.2.3 O papel do Poder Judicirio ....................................................................................... 147

5.2.4 A participao da sociedade ........................................................................................ 150

6 CONCLUSES .................................................................................................................. 152

REFERNCIAS .................................................................................................................... 156

11

1 INTRODUO

Objetiva a presente dissertao analisar o emprego da denominada clusula da

reserva do possvel, para fundamentar a modulao de efeitos de deciso prolatada em sede

de controle concentrado de constitucionalidade de norma tributria, para fins de limitar ou

elidir eventual direito repetio do indbito fiscal.

A reserva do possvel ou clusula da reserva do possvel vem a ser resultado de

uma teoria, concebida no seio da jurisprudncia da Corte Constitucional Alem, a qual,

partindo da idia de que os recursos pblicos so limitados, condiciona a exigibilidade dos

direitos sociais em face do Estado s possibilidades oramentrias (aplicando a parmia ad

impossibilita nemo tenetur ningum obrigado a coisas impossveis).

A modulao, calibrao ou manipulao dos efeitos da deciso prolatada no controle

concentrado de constitucionalidade, por seu turno, constitui a possibilidade de o Supremo

Tribunal Federal, rgo de cpula do Poder Judicirio brasileiro, no julgamento da ao direta

de inconstitucionalidade e da ao declaratria de constitucionalidade, ou, ainda, na argio

de descumprimento de preceito fundamental da Constituio, restringir os efeitos da

declarao de constitucionalidade ou inconstitucionalidade, ou, ainda, fixar sua eficcia a

partir de determinado momento, que pode o trnsito em julgado da deciso ou outro que

venha a ser estipulado 1.

Referida possibilidade trata-se de um aperfeioamento do sistema de controle de

constitucionalidade adotado no Brasil e sua utilizao, no contexto de grandes e crescentes

necessidades financeiras estatais, pode causar grande impacto no campo do Direito Tributrio,

especialmente no caso de decises que venham a alterar o equilbrio financeiro do Estado ou

do contribuinte.

1 A matria encontra-se regulada nos artigos 27 da Lei n 9.868, de 10 de novembro de 1999 e 11, da Lei n 9.882, de 03 de dezembro de 1999, a primeira, que trata do processo e o julgamento da ao direta de inconstitucionalidade e da ao direta de constitucionalidade e a segunda, da argio de descumprimento de preceito fundamental da Constituio, ambas perante Supremo Tribunal Federal. Referidos dispositivos possuem a seguinte redao: Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razes de segurana jurdica ou de excepcional interesse social, poder o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois teros de seus membros, restringir os efeitos daquela declarao ou decidir que ela s tenha eficcia a partir de seu trnsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado. Art. 11. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, no processo de argio de descumprimento de preceito fundamental, e tendo em vista razes de segurana jurdica ou de excepcional interesse social, poder o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois teros de seus membros, restringir os efeitos daquela declarao ou decidir que ela s tenha eficcia a partir de seu trnsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.

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Deste modo, justifica-se a necessidade de estudos que contribuam para definir as

fronteiras da atuao do Poder Judicirio no uso desta tcnica de deciso, notadamente no que

toca possibilidade de se restringir - ou mesmo negar - a repetio do indbito tributrio, sob

o argumento de impossibilidades ou insuficincia oramentrias.

Cuida-se, pois, de um tema complexo, que contempla a anlise e estudos de diversos

campos do Direito, que vo desde a verificao da existncia de uma autorizao

constitucional para a outorga - ou pelo menos os limites - da competncia do Supremo

Tribunal Federal para modular os efeitos da deciso que prolatar no controle da

constitucionalidade de normas (ganhando novas dimenses a histrica discusso da

legitimidade da jurisdio constitucional). Envolve, ainda, o exame de questes de natureza

oramentria e de responsabilidade fiscal (uma vez que relacionadas com as escolhas pblicas

para a distribuio de recursos escassos e a judiciabilidade de polticas pblicas), passando

pelo estudo da repetio do indbito e dos princpios que regem o instituto, dos papis dos trs

Poderes (ou funes) do Estado e a participao da sociedade, culminando com as concluses

do presente trabalho.

Sem nenhuma pretenso de esgotar o assunto, at mesmo porque h alarmante

escassez de estudos na perspectiva ora proposta, como premissas necessrias compreenso

do tema, inicialmente se proceder pesquisa da evoluo do controle de constitucionalidade.

Com tal estudo, se pretende investigar e compreender a gnese das principais controvrsias e

dificuldades de interpretao do sistema de controle de constitucionalidade adotado no Brasil

e situar a questo da legitimidade da jurisdio constitucional.

Posteriormente, sero analisadas as principais questes subjacentes teoria da clusula

reserva do possvel, tais como o enfoque jurdico da distribuio dos recursos escassos, o

papel do Estado na distribuio de recursos pblicos, o equilbrio oramentrio, a opo

constitucional pelo Estado Democrtico de Direito e clusula da reserva do possvel na

limitao de direitos denominados prestacionais ou de segunda dimenso.

Aps, sero examinados o instituto da repetio do indbito e os princpios que o

informam, identificando a posio do instituto no mbito dos direitos fundamentais e a

exigibilidade de sua observncia.

Na sequncia, ser analisado o princpio da separao dos poderes (ou funes)

estatais e seus respectivos papis, assim como a participao da sociedade, no que toca ao

direito repetio do indbito e clusula da reserva do possvel.

Assim, firmadas as principais premissas para a compreenso do tema proposto, sero

apresentadas as concluses da presente dissertao.

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Nesse extenso caminho, necessrio advertir que no existem mtodos especficos

para abordar um tema to complexo. Contudo, mister fixar determinados cortes

metodolgicos para delimitar os espaos de pesquisa e anlise. Neste desiderato, como opo

de pesquisa, limitou-se o recurso ao emprego das doutrinas e jurisprudncias estrangeiras,

pois o objeto da investigao situa-se no mbito do direito interno e a experincia demonstra

que no basta verificar as semelhanas dos textos legais entre os diversos pases para adotar-

se concluses padronizadas, porquanto os diferentes espaos sociais em que atuam as normas

jurdicas extradas dos textos legais no so os mesmos.

Dessa maneira, em que pese o apoio e utilidade da doutrina e jurisprudncias

estrangeiras, o recurso aos seus ensinamentos moderado e ser feito apenas e na medida em

que for til compreenso das idias expostas, sem a pretenso de ostentar a autoridade ou

superioridade das contribuies de uma ou outra doutrina (nacional ou estrangeira).

Em resumo, o trabalho se divide em cinco partes; as trs primeiras abordaro a

jurisdio constitucional, a clusula da reserva do possvel e a repetio do indbito. A

quarta parte buscar correlacionar os estudos efetuados nas trs primeiras partes e, ao final,

sero apresentadas as concluses acerca da admissibilidade do uso da clusula da reserva do

possvel como um argumento vlido (ou invlido) para restringir ou mesmo obstar o direito

repetio do indbito tributrio, mediante a modulao dos efeitos da deciso prolatada no

controle concentrado de constitucionalidade da norma jurdica tributria.

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2 O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

2.1 NOTAS INICIAIS

Neste captulo, pretende-se apresentar breve sntese do controle da

constitucionalidade, suas caractersticas principais e sua evoluo histrica, para, ao final,

estabelecer as particularidades do sistema de controle de constitucionalidade adotado no

Brasil.

Tal mtodo demonstrar sua utilidade para a compreenso das principais polmicas

em torno do controle de constitucionalidade no Brasil, entre elas, o postulado da nulidade (ou

anulabilidade) da norma inconstitucional, os efeitos da deciso declaratria de

constitucionalidade ou inconstitucionalidade, bem assim os limites do controle exercido pelo

rgo jurisdicional, tpicos de grande interesse na discusso da possibilidade de modulao

dos efeitos da deciso prolatada no controle de constitucionalidade, nos termos preconizados

pelo artigo 27 da Lei 9.868/99 (e tambm artigo 11 da Lei 9.882/99).

2.2 ASPECTOS GERAIS DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

Neste tpico, sero estudados alguns conceitos e contedos relacionados ao controle

de constitucionalidade.

Inicialmente, esclarea-se que o controle de constitucionalidade caracterstica dos

Estados onde h o reconhecimento da supremacia da Constituio e a rigidez nos processos de

alterao do texto constitucional.

O controle de constitucionalidade um mecanismo de defesa da supremacia e rigidez

da Constituio.

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2.2.1 Supremacia constitucional

Por supremacia ou superioridade constitucional deve-se entender que a Constituio

a lei suprema, posicionando-se no pice do ordenamento jurdico.

A Constituio confere unidade ao sistema jurdico que integra e constitui fundamento

de validade para todas as demais normas hierarquicamente inferiores, as quais no podem

contrari-la, sob pena de serem consideradas invlidas perante este mesmo sistema jurdico.

Estas idias decorrem, basicamente, da construo terica de Hans Kelsen 2, que, na

figura de uma pirmide, procura explicar a organizao do ordenamento jurdico como um

conjunto de normas sistemtica e hierarquicamente escalonadas, que buscam, sucessivamente,

fundamento de validade da norma imediatamente superior, at culminar no pice da pirmide,

em que se situa a Constituio 3.

Traduzindo a idia de superioridade constitucional, a definio de Celso Antonio

Bandeira de Mello:

[...] 18. Alm disto a Constituio no um mero feixe de leis, igual a qualquer outro corpo de normas. A Constituio, sabidamente, um corpo de normas qualificado pela posio altaneira, suprema, que ocupa no conjunto normativo. a Lei das Leis. a Lei Mxima, qual todas as demais se subordinam e na qual todas se fundam. a lei de mais alta hierarquia. a lei fundante. a fonte de todo o Direito. a matriz ltima da validade de qualquer ato jurdico. Constituio todos devem obedincia: o Legislativo, o Judicirio e o Executivo, por todos os seus rgos e agentes, sejam de que escalo forem, bem como todos os membros da sociedade. Ningum, no territrio nacional, escapa ao seu imprio. Segue-se que sujeito algum, ocupe a posio que ocupar, pode praticar ato - geral ou individual, abstrato ou concreto - em descompasso com a Constituio, sem que tal

2 Clmerson Mrlin Clve (2000, p. 25) reconhece a contribuio de Kelsen, mas defende que a supremacia da Constituio decorre de uma concepo histrica, incorporada conscincia jurdica da civilizao ocidental. Eis os dizeres do referido autor: No h dvida de que Kelsen formulou o discurso jurdico mais completo a respeito do escalonamento hierrquico das normas jurdicas. Nem por isso, todavia, o reconhecimento do escalonamento hierrquico da ordem jurdico-normativa importa pronta adeso aos seus (de Kelsen) postulados formalistas. Com efeito, a histria ocidental desde h muito tempo reconhece a existncia de leis superiores, embora s recentemente tenha atribudo conseqncias jurdicas a tal circunstncia. A supremacia da Constituio decorre menos de postulados tericos e mais de uma concepo histrica progressivamente incorporada conscincia jurdica da civilizao ocidental. 3 Explica o mestre de Viena, que as normas integrantes do sistema jurdico encontram seu fundamento de validade na norma superior, e assim sucessivamente, de modo [...] que todas as normas cuja validade pode ser reconduzida a uma mesma norma fundamental formam um sistema de normas, uma ordem normativa. A norma fundamental a fonte comum da validade de todas as normas pertencentes a uma e mesma ordem normativa, o seu fundamento de validade comum (KELSEN, 1996, p. 217). Interessa registrar que tal mecanismo leva indagao de qual seria o fundamento de validade da Constituio. Para dissipar esta dvida, Kelsen prope a existncia de uma norma hipottica fundamental, que, embora no seja uma norma de direito positivo, uma norma pressuposta, constituindo o pressuposto lgico fundamental, que confere unidade ao sistema jurdico (op. cit., p. 224 et. seq.).

16

ato seja nulo e da mais grave nulidade, por implicar ofensa ao regramento de escalo mximo. [...] (MELLO, 2007, p. 137).

O reconhecimento da superioridade da Constituio, em relao s leis que lhes so

hierarquicamente inferiores, postulado expresso de diferentes ordenamentos jurdicos 4, os

quais, por conseguinte, estabelecem variados sistemas de controle de constitucionalidade, que,

guardadas suas respectivas particularidades, se fundam, basicamente, nos modelos norte-

americano e europeu de controle de constitucionalidade, o quais, adiante, sero estudados.

2.2.2 Rigidez constitucional

A idia de rigidez constitucional advm da clssica distino entre Constituio

flexvel e Constituio rgida, sendo a primeira (flexvel) conceituada como aquela cujo

processo de alterao segue os mesmos moldes previstos para a legislao ordinria, ao passo

que a Constituio rgida pode ser conceituada como aquela que exige um processo agravado

em relao ao processo de formao de leis ordinrias. (CANOTILHO, 1995, p. 1123).

Regina Maria Macedo Nery Ferrari (2004, p. 58) esclarece que a rigidez nos processos

de alterao da Constituio pode se traduzir de diversas formas, como, por exemplo, no

quorum exigido para aprovao, na existncia de um rgo especial para elaborao, na

iniciativa reservada, ou, ainda, na sujeio do projeto aprovao popular, o referendum.

Ainda, esclarece a autora, Constituio escrita no significa Constituio rgida,

tampouco a flexibilidade deve ser tomada como um indicador de instabilidade constitucional,

que, na verdade, no ditada pela forma, mas pelo equilbrio das foras sociais e econmicas

que sustentam a Constituio. Rigidez e flexibilidade no conduzem, necessariamente,

distino entre constituies mutveis e imutveis que, no entender da autora trata-se de

uma idia absurda, porquanto inadmissvel considerar que a lei fundamental do Estado,

destinada a regular a vida de uma sociedade em constante evoluo, possa ser imutvel ou

perptua. (FERRARI, 2004, p. 61).

4 Luis Geraldo Floeter Guimares (2003) expe que [...] atualidade, o pensamento quase unssono no sentido de que qualquer Estado deve ter a sua organizao fundamental fulcrada num documento escrito, ou seja, numa Constituio. Em copiosa compilao da legislao estrangeira, este mesmo autor elenca diversos pases cujos textos constitucionais consagram expressamente a supremacia da Constituio, entre eles: Argentina, Nicargua, Honduras, Equador, Mxico, Qunia, frica do Sul, Angola, Nigria, Paquisto, Bahamas e Estados Unidos da Amrica.

17

2.2.3 Conceito e tipos de inconstitucionalidade

Supremacia e rigidez constitucionais so conceitos que se complementam e so

essenciais, em seu conjunto, para a compreenso do conceito de inconstitucionalidade 5.

Diversos so os conceitos encontrados, na doutrina, de inconstitucionalidade. A

definio de Oswaldo Luiz Palu (2001, p. 69), contudo, apreende as idias de supremacia e

rigidez constitucional. Eis as palavras do referido autor:

A inconstitucionalidade a incorreo da norma com o parmetro superior positivo, quer sob o aspecto de incorreo formal (ou seja, do processo legislativo, rgo emissor competente), quer sob o aspecto da incorreo material (contedo substancialmente incompatvel com a Constituio).

A inconstitucionalidade pode ser por ao (positiva) ou por omisso (negativa). Na

primeira espcie, a norma infringe a Constituio. Na segunda, o legislador ou o

administrador omitem ou deixam de praticar ato ao qual estavam constitucionalmente

obrigados.

Igualmente, pode se distinguir a inconstitucionalidade total ou parcial, cuja verificao

depende da extenso do vcio: se todo o ato estiver viciado, a inconstitucionalidade total, se

a inconstitucionalidade afeta apenas parte da norma, parcial.

A inconstitucionalidade total ou parcial pode ocorrer tanto na espcie positiva (ao)

quanto negativa (omisso).

Quanto inconstitucionalidade originria isto , aquela existente em lei que sucede a

edio da norma constitucional e a superveniente ou seja aquela que decorre do vcio

que macula a norma aps o advento da Constituio, cumpre discernir que esta ltima no

aceita no Brasil. Aplica-se o brocardo latino lex posterior derrogat priori, no se podendo

5 Regina Maria Macedo Nery Ferrari (2004, p. 62) explica: Dessa rigidez que decorre, como primeira conseqncia, a supremacia constitucional, consistindo na mais eficaz garantia da liberdade e dignidade do indivduo, j que, como norma suprema, confere validade ao sistema jurdico e legitimidade aos poderes estatais, que s podem atuar dentro das competncias por ela conferidas. Alexandre de Moraes (2004, p. 598) complementa: [...] a idia de interseco entre controle de constitucionalidade e constituies rgidas tamanha que o Estado onde inexistir o controle, a Constituio ser flexvel, por mais que a mesma se denomine rgida, pois o Poder Constituinte ilimitado estar em mos do legislador ordinrio. Hugo de Brito Machado, por seu turno, salienta que poucos autores, no mbito do Direito Tributrio, deram-se conta de que a supremacia constitucional o nico instrumento que o Direito pode oferecer contra o arbtrio que se manifesta na atividade legislativa. (MACHADO, 2007, p. 63).

18

submeter tais leis revogadas por incompatibilidade com o novo texto constitucional. Este

posicionamento acolhido pelo Supremo Tribunal 6.

No entanto, ainda no mbito de inconstitucionalidade superveniente, h os defensores

da ocorrncia de tal vcio quando existir mutao constitucional, ou seja, de alteraes que

decorram de uma no conformao do texto da lei superveniente com a Constituio. Esta

mutao poder ocorrer nas hipteses de uma reforma constitucional, de uma nova

hermenutica da norma e alteraes das circunstncias fticas, no ambiente social. Entre os

defensores desta tese, cite-se, Clmerson Merlin Clve 7 e Gilmar Mendes 8.

Merece meno, ainda a inconstitucionalidade material e formal. Inconstitucionalidade

material aquela que diz respeito ao contedo do ato normativo. A relao de

incompatibilidade com a Constituio de fundo. J a inconstitucionalidade formal, a

incompatibilidade ocorre em decorrncia do descumprimento de formalidades

constitucionalmente previstas para o processo de elaborao da lei 9.

Outro ponto importante a distino entre inconstitucionalidade e ilegalidade. A

inconstitucionalidade ocorre quando o parmetro superior para a verificao da

incompatibilidade a Constituio. H ilegalidade quando a relao de incompatibilidade se

d com lei.

Por fim, ainda no mbito dos tipos de inconstitucionalidade, importa mencionar a tese

da existncia de normas constitucionais inconstitucionais, defendida por Otto Bachof, no

prefcio traduo portuguesa de sua aula inaugural, em 20 de julho de 1951 em Heindelberg

Verfassungwidrige Verfassungsnormen? (1994, p. 54).

Basicamente, defende Bachof a incorporao de princpios suprapositivos na ordem

jurdica e que, portanto, poderia a Corte Constitucional alem aferir a legitimidade de normas

constitucionais com base em parmetros suprapositivos, que seriam imanentes em qualquer

ordem jurdica.

6 A tese da inconstitucionalidade superveniente defendida por escassa minoria. Cite-se, por exemplo, o Ministro Seplveda Pertence, do Supremo Tribunal Federal (voto vencido, RTJ 143/367, ADIN 74-RN). 7 Superveniente a inconstitucionalidade que se manifesta em momento posterior: um ato sendo constitucional no momento de sua edio, deixa de s-lo em virtude de reforma constitucional, diante de renovada interpretao do dispositivo constitucional, ou, ainda, em decorrncia de mudana de circunstncias fticas (CLVE, 2000, p. 54). 8 Segundo Gilmar Mendes a lei pode adquirir [...] um outro contedo mediante a evoluo hermenutica, a mudana do prprio texto ou da ambincia social; e essa nova conformao no mais se compatibiliza com a Constituio. (MENDES, 2005, p. 90). 9 Os vcios que caracterizam a inconstitucionalidade formal podero ser: a) subjetivos, ou seja, quando se prescinde a iniciativa legislativa para determinado assunto; b) objetivos, isto , quando so desrespeitadas as fases constitutiva e complementar do processo legislativo, desrespeitando-se o trmite constitucional previsto nos artigos 60 a 69 da CRFB/1988 (MORAES, 2004, p. 600 et. seq.).

19

Esta tese foi acolhida pelo Tribunal Constitucional alemo (Bundesverfassungsgericht)

(MENDES, 2005, p. 139 et. seq.).

Entretanto, acertada a posio de Oswaldo Luiz Palu (2001, p. 73), o qual afirma ser

impossvel a existncia de normas constitucionais originrias inconstitucionais, j que todas

as normas, princpios, regras e disposies transitrias constantes de uma Constituio advm

do mesmo Poder Constituinte e possuem o mesmo nvel hierrquico, de modo que admitir a

existncia deste tipo de inconstitucionalidade seria limitar faticamente um poder que

juridicamente ilimitado.

2.2.4 Tipos de controle de constitucionalidade

Controlar a constitucionalidade significa verificar a adequao (compatibilidade) de

uma lei ou de um ato normativo com a constituio, verificando seus requisitos formais e

materiais (MORAES, 2004, p. 600).

As classificaes mais comumente encontradas na doutrina quanto aos sistemas de

controle de constitucionalidade pautam-se pelo momento da realizao do controle: se o

controle realizado antes do ingresso da norma no ordenamento jurdico denominado

preventivo, se o controle realizado aps tal evento, objetivando expurgar a norma eivada do

vcio de inconstitucionalidade, o controle considerado repressivo.

Desta feita, ento, tem-se:

a) controle preventivo: realizado pelo Poder Legislativo10;

b) controle repressivo 11 ou jurisdicional: realizado pelo Poder Judicirio.

10 Segundo Osmar Lopes Junior, o controle preventivo da constitucionalidade dos projetos de emendas CF e dos projetos de lei federal feito, em primeiro lugar, pelas comisses da Cmara dos Deputados e do Senado Federal (em especial a Comisso de Constituio e Justia e Redao da Cmara e a Comisso de Constituio, Justia e Cidadania do Senado). Os pareceres negativos das Comisses costumam ser terminativos, acarretando a rejeio e o arquivamento do projeto. Tal controle tambm pode ser efetivado pelo Presidente da Repblica, via sano e veto. De maneira paralela, esse controle tambm ocorre nas esferas estaduais e municipais, com procedimentos parecidos previstos nas respectivas legislaes (Constituies Estaduais e Leis Orgnicas dos Municpios). O veto baseado na inconstitucionalidade denominado jurdico. Quando baseado no argumento de que a norma contraria o interesse pblico, denominado veto poltico. Excepcionalmente, o controle preventivo da constitucionalidade feito pelo Poder Judicirio ainda durante o trmite do projeto de lei (LOPES, 2005). 11 Importa registrar que Alexandre de Moraes (2004, p. 606 et. seq.) entende ser repressivo o controle realizado pelo Poder Legislativo, nas seguintes hipteses: a) artigo 49, V da CRFB/1988 (prev o poder de o Congresso Nacional sustar, por meio de decreto legislativo, os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem o poder regulamentar artigo 84, inciso IV da CRFB/1988 - ou dos limites de delegao legislativa artigo 68 da

20

O controle jurisdicional, por sua vez, subdivide-se, em dois sistemas bsicos 12: o

sistema difuso (tambm denominado sistema americano) e sistema concentrado (tambm

denominado sistema europeu), cuja combinao d ensejo a sistemas mistos, tais como, por

exemplo, o sistema brasileiro e portugus (MARTINS; MENDES, 2007, p. 1) 13.

Para efeitos do presente estudo, interessa analisar o controle jurisdicional de

constitucionalidade, com especial nfase no sistema concentrado.

2.2.5 rgos de controle da constitucionalidade

Quanto ao rgo competente para o exerccio do controle da constitucionalidade,

conhecida a histrica polmica havida entre Carl Schmitt e Hans Kelsen.

Schmitt rejeitava a jurisdio constitucional. Para ele, a deciso poltica, inserta na

Constituio totalmente diversa da deciso judicial a qual pressupe uma deciso geral,

tomada pelo legislador.

Sobre as idias de Carl Schmitt, Eduardo Appio (2005, p. 46) anota que

[...] em sua ptica, Schmitt intercede em favor do chefe do Estado (Presidente do Reich), como legtimo defensor da Constituio [...]. Ao analisar o contexto poltico da Alemanha de 1930 o autor situa o problema na questo da legitimidade de um rgo judicial que substitua a vontade do Parlamento (eleito). Na concepo de Schmitt, um rgo judicial somente poderia se negar a aplicar um determinado texto de lei (votado e aprovado pelo Parlamento) caso o preceito a ser aplicado no se

CRFB/1988), por desrespeito forma constitucional prevista para suas edies; b) artigo 62 da CRFB/1988, na hiptese de rejeio de medida provisria, apontada no parecer da comisso temporria mista, como inconstitucional. 12 No h, nos ordenamentos jurdicos que adotam o controle de constitucionalidade, a utilizao dos sistemas tais como originalmente idealizados pela doutrina de Marsahll (EUA) ou por Kelsen (ustria). H, ao revs, uma forte tendncia da conjugao dos elementos de ambos os sistemas de controle, fato este que vem a ser a principal fonte de problemas atuais no estudo deste tema. 13 Outras classificaes so encontradas na doutrina. Sacha Calmon Navarro Coelho (1992, p. 24) assevera que o Direito Pblico ocidental aponta trs modelos bsicos de controle de constitucionalidade: a) ingls, ancorado na supremacia absoluta do parlamento, rgo este zelador dos documentos jurdicos e institucionais do reino, com o auxlio de juzes e juristas; b) norte-americano, o qual consagra a supremacia do Judicirio como rgo supremo de controle de constitucionalidade e legalidade de leis e atos administrativos; c) constitucional-europeu, cujo controle outorgado a cortes especiais, conforme o modelo austraco. Alexandre de Moraes (2004, p. 603), por seu turno, aponta trs modelos histricos: norte-americano, austraco e francs. Esclarece, ancorado nas lies de Jorge Miranda, que este ltimo um modelo de fiscalizao poltica que, algo impropriamente, pode denominar-se francs (por remontar juria constitucional de Siys e ao Senado Conservador napolenico e hoje se traduzir no Conselho Constitucional da Constituio de 1958 e que pode tambm entender-se ser o que prevalece, de harmonia com uma concepo jurdica diversa, nas Constituies marxistas-leninistas, excepto na Ioguslvia) ou de fiscalizao por rgo poltico, ainda quando adopta processo jurisdicionalizado, e fiscalizao necessariamente concentrada, seja preventiva ou a posteriori.

21

conformasse (subsumisse) no texto expresso da Constituio, quando ento o preceito constitucional que seria aplicado (ao invs da lei).

Importa lembrar que Schmitt emprestava grande importncia soberania popular

(VIEIRA, 1999, p. 95) e, para ele,

a eliminao das dvidas decorrentes da interpretao de dispositivos constitucionais, por meio de uma Corte Constitucional, seria fruto de um mero decisionismo [...] no qual uma das opinies divergentes seria autoritariamente eliminada por uma Corte que, em tudo, se assemelharia a um legislador constitucional. (APPIO, 2005, p. 49).

Kelsen se insurgiu contra estas idias, com a publicao do artigo Quem deve ser o

guardio da Constituio (Wer soll der hter der Verfassung sein?), em 1930, defendendo a

jurisdio constitucional e a necessidade de um sistema de controle dos atos estatais do

Governo e do Parlamento controle este que no poderia ficar sob responsabilidade do

mesmo rgo emissor dos atos sujeitos ao controle.

Assim, propugnava Kelsen a instituio de uma Corte Constitucional, outorgando-se o

direito de ao, no controle abstrato de normas, a uma minoria qualificada. Igualmente,

defendia a idia de que determinadas decises do Tribunal Constitucional deveriam ser

dotadas de fora de lei e serem publicadas no Dirio Oficial (MENDES, 2005, p. 11).

Kelsen aduz que a diferena do carter poltico (em acepo contrria de jurdico)

da atividade legislativa e da jurisdicional meramente quantitativa e no qualitativa, ou seja,

tanto o legislador quanto o tribunal criam normas (sejam gerais ou individuais), no

constituindo a jurisdio atividade meramente reprodutiva das normas gerais criadas pelo

legislador, mas tambm tem poder de escolher e optar por caminhos deixados, consciente ou

inconscientemente, pelo legislador. (PALU, 2001, p. 90 et. seq.).

Posteriormente, as idias de Schmitt foram severamente abaladas quando Adolf Hitler,

que j exercia a posio de Chanceler, com a morte do Presidente Hindenburg, assumiu o

poder na Alemanha, com base na teoria de Schmitt e do artigo 48 da Constituio de

Weimar14, ganhando, relevo e predominncia, assim, s idias de Hans Kelsen.

14 Nas palavras de Oswaldo Luiz Palu, Adolf Hitler no teve sequer que derrogar formalmente a Constituio para se tornar ditador plenipotencirio. A Constituio de Weimar foi destruda por quem invocava o ttulo de seu defensor. (PALU, 2001, p. 90).

22

Diante da correlao entre os rgos de controle da constitucionalidade e a idia de

jurisdio constitucional, adiante sero mencionadas as solues adotadas por diversos

ordenamentos jurdicos na escolha dos rgos de controle de constitucionalidade.

2.2.6 Jurisdio constitucional

Segundo Jos Ribas Vieira (1999, p. 71), o termo jurisdio constitucional surgiu na

Alemanha, no final dos anos 20, no mbito da "Associao dos Professores Alemes de

Direito Pblico" como reflexo da experincia kelseniana da Constituio austraca de 1920.

Cristiano Paixo de Arajo Pinto (1995, p. 26), por seu turno, assevera que:

A idia de jurisdio constitucional uma das pedras de toque do constitucionalismo moderno, estando presente na grande maioria dos ordenamentos jurdicos do mundo ocidental. A jurisdio constitucional oferece uma variada gama de procedimentos destinados a efetuar o controle judicial da constitucionalidade dos atos normativos, e exige a presena, na esfera do direito constitucional de cada pas, de um sistema de controle de constitucionalidade das normas.

Oswaldo Luiz Palu ensina que jurisdio constitucional uma atividade que visa

fiscalizao da constitucionalidade:

[...] jurisdio constitucional a atividade que visa garantir a aplicao de princpios e normas da Constituio s controvrsias e dvidas, surgidas, concreta ou abstratamente, atividade advinda de rgo que atua com a independncia em relao aos rgos ou poderes elaboradores do texto normativo objeto da fiscalizao, ou do Executivo, de modo definitivo e imparcial. A jurisdio constitucional exerce, primordial e institucionalizadamente, a fiscalizao da constitucionalidade. (PALU, 2001, p. 94).

Prossegue o Autor afirmando que atualmente reconhecido o fato de que nenhum

poder possui o monoplio de exercer, com exclusividade, funes estatais. Assim, a funo

jurisdicional do Estado pode no ter, necessariamente, relao com o Poder Judicirio,

podendo ser exercida por rgo independente, alm dos clssicos poderes do Estado (PALU,

2001, p. 95).

Por tais motivos, dividem-se as solues na distribuio de atribuies do controle da

constitucionalidade entre os rgos do Estado.

23

Nos Estados Unidos, por exemplo, o controle outorgado Suprema Corte, rgo de

cpula do Poder Judicirio norte-americano. Na Alemanha e na Itlia foram criados rgos

especficos Tribunais Constitucionais - para o controle. Na Alemanha o Tribunal

Constitucional encontra-se na estrutura do Poder Judicirio; j na Itlia, encontra-se fora da

estrutura dos trs poderes. H, ainda, pases que optaram por um controle poltico

(entregando-o ao Parlamento), caso da Inglaterra15.

Oswaldo Luiz Palu (2001, p. 101), examinando estes aspectos, apresenta a seguinte

sistematizao entre as solues jurisdicionais e as solues polticas, na outorga do controle

de constitucionalidade:

a) solues jurisdicionais: pases que confiam a jurisdio constitucional ao Poder Judicirio (caso dos Estados Unidos da Amrica, Brasil, etc.). pases que criaram rgos especficos para exercer a jurisdio constitucional (Tribunal Constitucional), com sistemas de indicao de juzes pelo Executivo ou Legislativo, mas integrantes expressamente do Poder Judicirio (Alemanha). Tanto para uns como para outros a jurisdio constitucional equivale funo judicial. pases que conferem a jurisdio constitucional a rgos especficos, excluindo-os da esfera do Poder Judicirio, fora dos trs clssicos poderes (Itlia). b) solues polticas (portanto, no jurisdicionais): pases que permitem que as prprias Cmaras legislativas exeram o controle da constitucionalidade, e que para Biscaretti di Ruffia ... in pratica, equivale a non ammeterlo...ou criam rgos especficos para atuar sem garantias de independncia, sem atuao tcnico-jurdica, discricionrios.

Contudo, preciso ter em mente que os problemas constitucionais so dotados de

grande complexidade e no podem ser reduzidos a questes puramente jurdicas ou puramente

polticas.

Na verdade, no a natureza do rgo que realiza o controle que ir definir as funes

do tribunal constitucional (poltica ou jurisdicional), mas sim a jurisdicionalidade da atividade

exercida e a sua vinculao a uma medida material de controle 16.

15 Vide item 2.3. desta dissertao. 16 Neste sentido so as lies de Oswaldo Luiz Palu (2001, p. 102): [...] unilateral classificar as funes exercidas por um tribunal constitucional como funes polticas em forma jurisdicional, como qualific-las de funes jurisdicionais sobre matrias polticas. O que caracteriza decisivamente a funo de um tribunal constitucional a sua jurisdicionalidade (Gerichtsfrmigkeit) e a sua vinculao a uma medida constitucional material de controle.

24

2.3 ORIGEM E EVOLUO HISTRICA DO CONTROLE DE

CONSTITUCIONALIDADE

2.3.1 Notas iniciais

Neste item ser estudada a origem dos principais sistemas de controle de

constitucionalidade difuso e concentrado - bem assim a sua evoluo histrica, tanto no

continente europeu, quanto nos Estados Unidos da Amrica, objetivando conhecer a gnese

dos caracteres principais de ambos os sistemas.

Enquanto nos Estados Unidos, a partir do clebre julgamento do caso Marbury v.

Madison (julgado em 180317), adotou-se um vigoroso sistema de controle jurisdicional de

constitucionalidade, na Europa houve grande resistncia instituio de mecanismos de

controle, assim como divergncias quanto ao rgo competente para este fim.

Raul Machado Horta, prefaciando a obra de Navarro Coelho (1992), explica que a

repulsa dos europeus quanto ao controle da constitucionalidade e mais, o repdio a um

controle realizado por um rgo judicirio, assenta suas razes histricas em dois fatores: o

primeiro, na idia de que a lei seria uma expresso da vontade geral (Rosseau) - ideal este

consagrado nas Constituies Francesas do perodo da Revoluo de 1789; o segundo, de que

a sano real aos atos legislativos gozaria de grande prestgio e eficcia, tornando

desnecessrio o controle por outro rgo do Estado.

Oswaldo Luis Palu (2001, p. 108), por seu turno, acrescenta que, alm destes fatores,

havia um repdio e temor dos revolucionrios franceses retomada de um governo de

juzes.

17 O caso Marbury v. Madison configura o marco histrico da construo do sistema de controle de constitucionalidade, nos Estados Unidos. Vide item 2.3.3. desta dissertao.

25

2.3.2 A evoluo do controle da constitucionalidade na Europa

2.3.2.1 Frana

Na Frana, Sieys chegou a sugerir a criao de um rgo poltico para o controle da

constitucionalidade, incumbido de anular atos violadores da Constituio. A idia foi mal

recebida e somente na Constituio de 1799 atribui-se ao Senado tal funo. Porm, em que

pesem as garantias formais que o Senado dispunha para o exerccio de tal controle, na prtica

houve total fracasso: o Senado deixou de anular atos inconstitucionais de Napoleo, ante a

influncia exercida por ele com a outorga de ttulos, condecoraes e doaes. Na

Constituio de 1852, o sistema foi copiado, todavia, repetiu-se o fracasso anterior.

preciso lembrar que na Frana, a Revoluo se voltou contra a tirania do Executivo e

os abusos do Judicirio, restando ao Poder Legislativo a condio de rgo detentor da

soberania da Nao. A lei, ao traduzir a vontade geral da Nao, no poderia sofrer controle,

seno que o advindo das prprias assemblias representativas (BASTOS, 1992, p. 323).

Igualmente, preciso registrar que aps a Revoluo de 1789, a Frana tratou o

princpio da separao de poderes de forma radical, no admitindo a interferncia do Poder

Judicirio nos negcios do Poder Executivo. Os abusos da Administrao deveriam ser

coibidos por um rgo extrajudicirio o Conselho de Estado e os abusos do Poder

Judicirio seriam censurados pela Corte de Cassao. Da porque jamais tenha o direito

francs admitido a fiscalizao da constitucionalidade para rgos judicirios, muito menos

tenha incorporado a prtica norte-americana das interferncias recprocas entre os Poderes do

Estado, a fim de assegurar a mecnica dos checks and balances (CLVE, 2000, p. 59).

A Constituio francesa de 1958 desmistificou o dogma da soberania da lei (havendo

uma sensvel reduo dos poderes outorgados ao Poder Legislativo francs 18), instituindo um

sistema de controle, quase sempre preventivo, exercido por um Conselho Constitucional

(composto de nove membros nomeados - trs pelo Presidente da Repblica; trs pelo

18 As principais redues dos poderes outorgados ao Legislativo francs foram: a) no possui mais o monoplio da elaborao das leis o referendo previsto em muitos casos; b) a Constituio enumerou as matrias sujeitas ao Parlamento e as reservadas regulamentao governamental (Poder Regulamentar). O governo pode se utilizar de ordonnances e editar atos normativos reservados ao campo da lei, devidamente autorizadas pelo Parlamento; c) a lei pode ser controlada pelo Conselho Constitucional; d) houve reforo ao Poder Executivo, que pode determinar ao Parlamento as matrias a serem votadas, em assim obrigar um Parlamento reticente a votar matrias de seu interesse. (PALU, 2001, p. 110).

26

Presidente da Assemblia Nacional e trs pelo Presidente do Senado; bem assim os ex-

presidentes da Repblica, que so considerados membros vitalcios).

A atuao do Conselho de carter marcadamente poltico, no se cuidando, no que

toca fiscalizao da constitucionalidade, de funo jurisdicional. Importa destacar que por

se tratar de um controle preventivo, no h qualquer mecanismo de controle ou aferio de

constitucionalidade da lei, cabendo s autoridades pblicas meramente cumpri-la (CLVE,

2000, p. 61 et. seq.).

Oswaldo Luis Palu (2001, p. 111) esclarece que o Conselho Constitucional francs

pode exercer o controle em trs momentos distintos:

a) quando da discusso do Parlamento (artigo 41 da Constituio);

b) aps votada a lei, mas antes de sua promulgao (artigo 61, al. 2, da Constituio);

c) aps a promulgao da lei (artigo 37, al. 2, da Constituio).

Segundo o mesmo autor, as decises do Conselho Constitucional francs

no esto sujeitas a recursos e se impem aos poderes pblicos (Parlamento, Presidente e Governo), como s administraes e aos juzes (artigo 62 da Constituio da Frana). O Conselho no anula a lei (ainda no promulgada), mas a declara no conforme Constituio (nest pas conforme la Constitution) e, na prtica, suas decises so obedecidas, mas no se prev mecanismo algum para que o Conselho Constitucional faa prevalecer sua deciso a um poder eventualmente recalcitrante. (PALU, 2001, p. 111).

2.3.2.2 ustria

A rejeio histrica francesa ao controle de constitucionalidade no impediu, contudo,

que, na ustria, sob os auspcios do projeto legislativo de autoria de Hans Kelsen,

inaugurasse-se o controle de constitucionalidade (realizado, entretanto, por um rgo especial,

sem relao com o Poder Judicirio - Verfassungsgerichtshoft - institudo na Constituio

Federal da ustria de 1 de outubro de 1920).

Lembra Clmerson Merlin Clve (2000, p. 67)

[...] que na ustria, como em quase toda a Europa Continental, at o incio do presente sculo, inexistia qualquer procedimento de fiscalizao de constitucionalidade nos moldes como hoje concebido. O Parlamento, na ustria, provavelmente por influncia do direito pblico francs, assumia uma posio de

27

relativa supremacia; sendo a lei uma expresso da soberania, descabia a qualquer rgo estatal, mesmo o Judicirio, questionar a respeito de sua legitimidade.

Antes da reforma de 1920, as cortes austracas tinham competncia para controlar a

constitucionalidade das leis apenas quanto sua adequada publicao, sendo uma reviso

judicial possvel dentro de limites bastante estreitos.

Assim, embora um dos objetivos da reforma fosse ampliar este controle, no se

considerou desejvel outorgar um controle difuso a todo juzo e tribunal, por se temer falta de

uniformidade em questes constitucionais. Deste modo, Kelsen no cogitou um sistema

difuso a exemplo do norte-americano tampouco de natureza judicial, mas sim legislativa

(negativa) 19. O controle seria abstrato (e no concreto, como no sistema do judicial review e

do princpio do stare decisis - adiante examinados). A lei inconstitucional no nula ou

inexistente, a inconstitucionalidade mero pressuposto da sano da anulao, ou seja, a lei

inconstitucional no nula, mas sim anulvel, sendo vlida at sua anulao. (CLVE, 2000,

p. 68).

Em conseqncia do raciocnio de Kelsen, a deciso de inconstitucionalidade possui

fora de lei e eficcia erga omnes. A deciso prolatada no controle de

constitucionaldiade possui carter constitutivo e no declaratrio (como no sistema difuso)

e, portanto, seus efeitos so ex nunc (e no ex tunc), funcionando como uma revogao

da lei.

importante enfatizar que o sistema de controle idealizado por Kelsen tinha o

objetivo subjacente de evitar o governo de juzes, proibindo-se, assim, os juzes ordinrios a

realizao de um controle difuso.

Destarte, caso surgisse questo constitucional nas instncias inferiores, os autos seriam

enviados ao Tribunal Constitucional, que limitaria sua anlise e exporia sua posio apenas

matria constitucional. Aps tal anlise, os autos seriam devolvidos instncia a quo, que, na

soluo do caso concreto, teria que aplicar a lei conforme a orientao do Tribunal

Constitucional.

Com tal procedimento, conferiu Kelsen alto grau de abstrao ao controle de

constitucionalidade, ou seja, o Tribunal Constitucional no examinaria a justia ou injustia

da lei, no caso concreto, mas apenas a validade, por meio de uma lgica racional, evitando

que o Tribunal Constitucional adentrasse nas valoraes e paixes inseparveis da deciso

19 Ensina Clmerson Merlin Clve (2000, p. 68), que, para Kelsen, cabe Constituio definir o processo pelo qual a lei inconstitucional ser anulada, bem como o rgo competente, sendo que, para o jurista austraco, parecia claro que a fiscalizao da constitucionalidade no seria funo prpria do Judicirio, mas sim uma funo constitucional autnoma, comparvel, de certo modo, com a funo legislativa negativa.

28

concreta, e que tais valoraes e paixes pudessem levar o Tribunal a juzos de oportunidade

e convenincia, estes pertencentes ao Parlamento, quando legisla. (PALU, 2001, p. 92)

Na opinio de Gilmar Mendes

[...] o modelo austraco traduz uma nova concepo do controle de constitucionalidade. Outorgou-se ao Tribunal Constitucional (Verfassungsgerichtshof) a competncia para dirimir as questes constitucionais, mediante requerimento especial (Antrag), formulado pelo Governo Federal (Bundesregierung), com referncia a leis estaduais, ou pelos Governos estaduais (Landesregierungen), no tocante s leis federais (art. 140, par. 1). No se exige, porm, a demonstrao de ofensa a qualquer interesse particular ou situao objetiva. (MARTINS; MENDES, 2007, p. 13).

A introduo de um controle concreto, em 1929, provocado no curso de uma

pendncia judicial no entanto, somente suscitvel pelos rgos jurisdicionais de segunda

instncia (no cabendo aos demais rgos inferiores da magistratura ordinria, segundo

Clmerson Merlin Clve (2000, p. 69) - ensejou o reconhecimento, em carter excepcional, do

efeito retroativo deciso proferida no caso concreto submetido. Kelsen o explica como uma

necessidade tcnica, ou seja, os rgos legitimados a provocar o Tribunal, no caso concreto,

necessitavam saber se a provocao, caso procedente, teria efeito imediato sobre a questo em

exame. (MARTINS; MENDES, 2007, p. 14).

Em 1975, foi introduzido no controle de constitucionalidade austraco o recurso

denominado recurso individual (Individualantrag), o qual permite a impugnao, perante a

Corte Constitucional, de lei ou regulamento que lese, diretamente, direitos individuais. Sua

admissibilidade fica condicionada ao princpio da subsidiariedade, isto , se no houver outra

via judicial adequada tutela do direito alegado. (MARTINS; MENDES, 2007, p. 14).

O modelo austraco foi assimilado por diversos pases (Alemanha, Itlia, Espanha,

Turquia, Chipre, Grcia e Blgica), inspirando, igualmente, sistemas mistos, tais como no

Brasil e em Portugal. Nota comum, contudo, que

embora adotando a fiscalizao constitucional concentrada, nem por isso deixaram de incluir um grande nmero de alteraes na arquitetura bsica. Logo, os respectivos sistemas praticados, sobre guardarem certa identidade entre si, devem ser compreendidos tambm luz de suas especificidades. (CLVE, 2000, p. 69).

29

2.3.2.3 Alemanha

A Alemanha seguiu o modelo austraco, todavia, sua Corte de Justia de Estado

(Staatsgerichtshoft), estabelecida na Constituio de 1919, possua competncia apenas para

apreciar questes constitucionais no mbito de um Estado, responsabilidade ministerial,

questes federais e controle normativo na relao entre o direito estadual e o federal arts. 19

e 59 da Constituio de Weimar. (MENDES, 2005, p. 12).

Posteriormente houve muitas discusses sobre a possibilidade da ampliao da

competncia do Staatsgerichtshoft, inclusive se considerando a possibilidade da insero de

mecanismos de controle incidental e um controle legislativo, opes estas rejeitadas

(MENDES, 2005, p. 11).

Atualmente, na Alemanha apenas o Tribunal Constitucional pode declarar a

inconstitucionalidade das leis, cabendo aos juzes comuns, na hiptese de se depararem com

uma dvida sobre a constitucionalidade da lei a ser aplicada ao caso concreto, suspenderem o

julgamento e remeterem aos autos para a Corte Constitucional, que decidir a questo

constitucional.

No tpico i.4 do item 2.5.2.2.2, quando for tratada a modulao dos efeitos da

deciso proferida no controle de constitucionalidade, outros aspectos do direito alemo sero

estudados.

2.3.2.4 Inglaterra

Na Inglaterra, por mais paradoxal que se possa mencionar de um controle de

constitucionalidade onde no h uma Constituio rgida 20, apresentou-se um sistema de

controle.

Oswaldo Luiz Palu (2001, p. 105) explica o controle de constitucionalidade no

ordenamento jurdico ingls, nos termos que seguem:

20 Apesar de a Constituio inglesa ser flexvel, esta dotada de grande estabilidade, pois sofreu poucas alteraes e sendo, pois, na prtica, uma Constituio que consolidou, com o tempo, um carter de rigidez (COELHO, 1992, p. 33 et. seq.).

30

[...] Na evoluo histrica do direito constitucional ingls divisam-se quatro fases: (a) aquela anterior conquista normanda de 1066; (b) aquela iniciada em 1066, passando pela concesso da Magna Charta pela vez primeira (1215), que foi cancelada e revalidada inmeras vezes nas lutas entre o poder real e o baronato nos sculos seguintes, indo at o advento da dinastia dos Tudors (1485); nesse perodo formou-se a common law; (c) uma outra fase, entre 1485 e 1832, passando pela luta entre o Rei e o Parlamento, de onde se tem como conseqncia a Petio de Direitos de 1628, a Revoluo de 1648, a intercorrncia da Repblica Britnica sob o protetorado de Cromwell, que em 1653 elaborou aquela que parece ter sido a primeira Constituio escrita do mundo, de vida efmera, chamada de instrument of government, com 42 artigos, a Revoluo de 1688 (Glorious Revolution) e a declarao de direitos de 1689 (nesse perodo surgiu um sistema complementar, s vezes rival, das regras de equidade); (d) a fase contempornea, de 1832 at hoje, com as reformas eleitorais tendentes ao alargamento do direito de sufrgio e diminuio do poder da Cmara dos Lordes em favor da Cmara dos Comuns, com membros eleitos por tempo determinado, bem como pela importncia cada vez maior das leis frente ao sistema do commom law.

Entretanto, as singularidades do ordenamento jurdico ingls infenso s codificaes 21 e no qual reina um grande prestgio do Parlamento, levam Sacha Calmon Navarro Coelho

(1992, p. 35) a concluir que no se trata, propriamente, de um sistema de controle de

constitucionalidade de leis - pois sequer se poderia afirmar que a Inglaterra possui, em termos

estritos, leis constitucionais (BANDEIRA DE MELLO, 1980, p. 53) 22 - mas sim de um

controle de legitimidade das leis, o qual verifica dentro de uma relao de conformidade entre

a lei e os documentos constitucionais histricos e razo do common law.

O common law pode ser complementado pelo legislador, mas no pode ser violado

pelo direito escrito (statuory law), eis a a premissa do controle da legitimidade, exercendo o

Juiz um sofisticado papel de mediador do conflito 23.

21 Sacha Calmon Navarro Coelho (1992, p. 35 et. seq.) explica as peculiaridades do ordenamento jurdico ingls: nele existem os mesmos princpios, institutos, direitos e garantias comuns s experincias jurdicas da humanidade, contudo, no h uma codificao rgida, mas sim uma configurao original: os books ingleses renem todos os textos institucionais, tais como a Magna Carta, as decises jurisdicionais e leis dos tribunais, condensando, ento, a histrica, o direito e as instituies do povo ingls. Em outras palavras, o ordenamento jurdico ingls condensa sua Constituio em uma srie de documentos constitucionais, os quais expressam valores fundamentais da sociedade inglesa, definindo a organizao poltica, direitos e garantias do cidado. So eles: a Magna Carta (1215), Petition of Rights (1627), o Habeas Corpus Act (1679), Bill of Rights (1688), Act of Settlement (1700), Act of Union Scotland (1707), Act of Union With Ireland (1800), Parliament Act (1911). 22 Em igual sentido, Clmerson Merlin Clve (2000, p. 57), para quem, no direito britnico [...] no h lugar, ainda hoje para a distino formal entre leis constitucionais e leis ordinrias. 23 Explica Sacha Calmon Navarro Coelho que a doutrina de Sir Edward Coke, o qual defendia a supremacia do Judicirio no vingou no direito ingls. Contudo, a resposta do Judicirio ingls veio de forma subreceptcia: inibida de resistir frontalmente lei do Parlamento e, assim, romper com a doutrina ortodoxa da supremacia deste, a magistratura inglesa, no confronto de leis que julgam incompatveis, adotam sofisticados raciocnios, de modo a amold-las aos valores fundamentais que pretendem preservar. Por tais motivos assiste-se ao apego dos ingleses ao common law e ao due process of law e a averso s leis escritas. esta, portanto, a crena nos juzes e no a frustrao inglesa que fecundou o nascimento do judicial review nos Estados Unidos. (COELHO, op. cit., p. 51 et. seq.). Clmerson Merlin Clve (op. cit., p. 59) defende que tal sistema constituiu, na Inglaterra, uma espcie de controle de constitucionalidade.

31

Atualmente, na Inglaterra h o exerccio de funes judicirias pelo Poder Legislativo

(Cmara dos Lordes), que considerado, formalmente, o mais alto tribunal britnico.

Contudo, efetivamente, quem julga o seu Appellate Committee, o qual formado pelo Lorde

Chancellor (Presidente da Cmara), 11 Lordes Judiciais nomeados e os Lordes que j

exerceram funes judicirias previstas na lei. Em outras palavras, o Parlamento o rgo

fiscalizador de si mesmo. (PALU, 2001, p. 107).

2.3.3 A evoluo histrica do controle de constitucionalidade nos Estados Unidos

Por fim, nos Estados Unidos, onde seria esperada uma forte influncia do direito

britnico, o controle de constitucionalidade seguiu caminho oposto: enquanto na Inglaterra o

ordenamento jurdico baseia-se fundamentalmente em uma srie de documentos escritos, ao

lado da reverncia e confiana irrestrita s leis do Parlamento, nos primrdios da experincia

norte-americana, o cenrio era diferente: as leis das colnias eram as leis do Parlamento

ingls, opressivas e sem reconhecimento popular, no havia confiana 24, portanto, no rgo

legislativo da colnia (no mbito poltico, isto explica o processo emancipatrio das colnias

e a adoo de um controle de constitucionalidade com tcnicas absolutamente diversas ao do

sistema ingls).

Outros fatores histricos contriburam para a elaborao de sistemas de controle

distintos, o que se relaciona, em ltima anlise, com a prpria configurao do ordenamento

jurdico norte-americano.

Como lembra Clmerson Merlin Clve (2000, p. 63) as histrias constitucional

americana e da Suprema Corte, de certo modo, confundem-se e mais, a gnese do controle

concentrado encontra-se plasmada nesse contexto histrico.

A povoao territorial norte-americana ocorreu de forma diversificada, imposta pelas

caractersticas geogrficas. A diversidade da cultura dos povos colonizadores e seus

interesses contrapostos justificam - no isoladamente e de forma linear, obviamente a

construo de uma confederao que, em seus primrdios, era frgil e rarefeita.

24 Gilmar Mendes (2005, p. 25) anota que o modelo americano revelador de uma forte desconfiana em relao ao legislador. O modelo europeu, por seu turno, alm desta desconfiana, tambm traduz uma forte dvida em relao ao papel do juiz.

32

Passados sete anos de embates com o governo ingls, cada colnia americana possua

seu governo e cada qual desejava resguardar a esfera de seus poderes locais, insistindo em sua

liberdade e soberania. Por conta disto, o Congresso Continental, ento constitudo, no

possua poder para impor suas decises.

Some-se a tais fatores o fato de que a aliana com a Frana e o esforo pela

independncia, deixaram um saldo de dificuldades na administrao da paz: era preciso

executar tratados, reembolsar emprstimos, lanar impostos, incentivar a indstria, entabular

novas relaes comerciais, estabelecer relaes diplomticas, administrar a moeda, organizar

servios pblicos, emitir ttulos, etc. (COELHO, 1992, p. 68), tudo isto sob os cuidados de

um governo central enfraquecido e dividido sob o poder de cada Estado, ocasionando uma

grande crise na confederao americana.

Dentro de tal ambiente, somente com a autoridade, esforo e habilidade poltica de

George Washington, a confederao norte-americana poderia sobreviver. A adoo de uma

assemblia de notveis, constituda por membros graduados e emritos de cada colnia traa

novos rumos para a Confederao, resultando a Constituio norte-americana, cujo texto,

casustico, ditado pela necessidade circunstancial de estabelecer um governo forte, no prima

pela sistematizao 25.

A compreenso de sua gnese fornece importantes elementos para o entendimento da

formao do constitucionalismo e do controle da constitucionalidade 26.

25 Muitas vezes a Constituio americana elogiada como um texto sinttico e de grande durabilidade. Luis Roberto Barroso, contudo, refuta as qualidades da Constituio norte-americana, asseverando que esta no possui a insinuada origem popular, porquanto seus autores abastados comerciantes, proprietrios, heris militares e renomados advogados elaboraram-na s portas fechadas, no se contabilizando voto ou ouvindo-se a palavra de qualquer cidado. A escravido foi mantida e serviu de bnus aos Estados do Sul, uma vez que, no clculo de nmeros de membros do rgo de representao popular, tomava-se por base o nmero de pessoas livres somado a trs quintos da populao restante. A escravido foi abolida apenas em 1865, pela 13 Emenda, o princpio da isonomia tardou at 1868, com a 14 Emenda. Somente com a 19 Emenda, em 1920 isto , passados 134 anos da promulgao, as mulheres adquiriram o direito a voto. A Bill of Rights s veio a ser introduzida em 1791. Quanto ao seu carter sinttico a Constituio americana conta com apenas sete artigos argumenta que [...] correspondem a um nmero muitas vezes maior se comparados com a nossa tcnica de legislar, haja vista que se desdobram em mltiplas sees, pargrafos e incisos. A eles se somam, ainda, 27 emendas, a ltima delas datada de 1992. Em verdade, apenas ao ngulo formal se pode dizer que uma nica Constituio vigorou nos Estados Unidos ao longos desses duzentos anos. O Direito Constitucional americano atual pouco tem a ver com o conjunto de disposies regidas em 1787. (BARROSO, 2006, p. 53 passim) 26 Por exemplo, a enumerao de competncias: o iminente fracasso da Confederao e necessidade de um governo forte explica porque a Constituio americana, ao estabelecer o Estado Federal, ocupa-se a enumerar, de forma lacnica, as exguas competncias da Unio (defesa, diplomacia, moeda, Justia Federal, Comrcio Exterior e Fazenda Nacional COELHO, 1992, p. 70), pois estas foram resultado de um mnimo denominador comum extrado da deliberao dos diversos Estados (BARROSO, op. cit., p. 53). Aos Estados restaram os poderes residuais, implcitos. A reserva de duas cadeiras no Senado, por seu turno, independentemente da populao, visava acalmar os nimos dos Estados pequenos, outorgando a eles a participao em processos decisivos para a federao (v.g. referendar guerra e a paz, tratados, etc.). No que toca separao de poderes diversamente do parlamento britnico estabeleceu-se que as leis seriam feitas pelo Congresso com a sano do

33

Da anlise das discusses que antecederam a aprovao do texto constitucional

americano fica clara a controvrsia de se admitir o controle de constitucionalidade pelo

Judicirio.

John Marshall, apontado como verdadeiro arquiteto do direito constitucional

americano (COELHO, 1992, p. 73), j afirmava, na Conveno de Virgnia, que:

[...] se eles (o Congresso) elaborarem uma lei no permitida por um dos poderes enumerados, ela deve ser considerada, pelos juzes, como infringente Constituio, da qual eles so o guarda. Eles no devero consider-la como lei, ao exercerem sua funo jurisdicional. Elas devero declar-la nula.

preciso lembrar que os Estados Unidos incorporaram a doutrina de Sir Edward

Coke, que atribua aos juzes o controle da legitimidade das leis, negando aplicao quelas

que contrariassem o common law.

Esta doutrina, embora tenha sido repudiada na Inglaterra depois de 1688, foi aceita e

desenvolvida no direito norte-americano, que j na poca colonial apresentava decises que

rejeitavam a aplicao do direito local incompatvel com as Cartas outorgadas pela Inglaterra.

Portanto, a tese de Marshall no era nova: desde 1780, juzes estaduais julgavam-se

competentes para dizer a constitucionalidade das leis. Tal aconteceu na Justia do Estado de

New Jersey (1780), Virgnia (1782) e Carolina do Norte (1787).

Chancellor Wythe, um dos colaboradores na elaborao da Constituio americana e

juiz da Virgnia, defensor da tese do controle, professor de Marshall no Colgio de William

and Mary, afirmou, no julgamento de um caso da Virgnia:

Se a legislatura tentar transpor os limites que o povo lhe traou, eu, administrando a justia pblica de minha terra, afrontarei, da minha cadeira neste Tribunal, todo o seu poder, e, apontando-lhe a Constituio, lhe direi: at aqui podeis ir, alm, no. (POLLETI, 1985, p. 35 et. seq).

Tais idias pavimentaram o caminho para o nascimento do judicial review, no famoso

caso Marbury vs. Madison, que, curiosamente, no passou de um despudorado caso de

politicagem (COELHO, 1992, p. 73).

A histria do caso paradigma ao nascimento do judicial review comentada por

diversos autores e, sinteticamente, ocorreu da seguinte forma: Marshall era amigo e auxiliar

Presidente eleito ao qual se outorgava o poder de veto e mais, as leis poderiam ser declaradas inconstitucionais pelos juzes. O elitismo na formao dos poderes e funcionamento do regime ditaram a construo de um sistema representativo: em nenhum lugar o sufrgio universal, os senadores eram designados pelas legislaturas dos Estados, o presidente, eleito por um colgio eleitoral formado de delegados, segundo um complicado sistema eletivo (COELHO, op. cit., p. 70 et. seq.).

34

do Presidente Adams e, nesta condio, ocupava o cargo de Juiz e Secretrio de Estado. Aps

a derrota do Presidente Adams para Jefferson, aquele, no ltimo dia do seu mandato,

auxiliado por Marshall, realizou uma srie de nomeaes para Juzes de Paz 27.

No entanto, Marshall no teve tempo de formalizar todas as nomeaes, de modo que

os beneficirios no foram empossados a tempo. Entre eles figuravam William Marbury,

Denis Ramsay, Robert Townsend Hooe e William Harper.

Madison, ento substituto de Marshall, negou a posse a tais beneficirios, os quais, em

1801, impetraram um writ of mandamus (algo semelhante ao mandado de segurana) perante

a Suprema Corte para resguardar a sua posse.

O julgamento foi permeado por um intenso conflito poltico. O caso ficou paralisado

por dois anos, na Suprema Corte, provocando grande alarde na imprensa e expectativa na

opinio pblica, chegando-se a cogitar no impeachment dos juzes 28. O Governo manifestou

que a concesso da ordem criaria verdadeira crise entre os Poderes do Estado, sendo opinio

generalizada de que, se concedida, no seria cumprida pelo Poder Executivo. (POLLETI,

1985, p. 43).

Marshall, ento, com grande habilidade de estrategista, liderou o julgamento que

entrou para a histria do controle da constitucionalidade: afirmou que o ato de Madison era

ilegal, declarou que o artigo 13, da Lei 1789 (que regulamentava o writ of mandamus) seria

inconstitucional (pois outorgava Suprema Corte a possibilidade de conhecer diretamente o

pedido, eliminando a jurisdio das Cortes Distritais - ou seja, na opinio de Marshall, a

Suprema Corte possua apenas competncia recursal).

Assim, por uma questo preliminar competncia a Suprema Corte negou o

mandamus, assegurando aos federalistas uma deciso com variadas utilidades, embora no

tenham sido garantidas as nomeaes:

a) declarou-se que Jefferson e Madison agiram ilegalmente;

27 Oswaldo Luis Palu (2001, p. 114) comenta que havia pouco tempo restante para que os federalistas, vencidos nas eleies presidenciais, entrincheirassem-se nos tribunais. Uma nova lei judiciria foi sancionada em 27 de fevereiro visando extenso do Judicirio nacional e criando numerosos lugares de juzes. Na vspera da posse de Jefferson, at s 21h00, Adams ainda lavrava as nomeaes (por tal motivo, os beneficirios ficaram conhecidos como juzes da meia-noite). 28 Escreve Oswaldo Luiz Palu (2001, p. 115): Em 1802, nos jornais e no Congresso, foi a Corte violentamente atacada, sugerindo James Monroe o impeachmeant contra os juzes, se ousassem aplicar os princpios da common law Constituio. A mesma providncia foi pleiteada, dias antes da deciso, por um jornal oficioso do governo; se concedida, a medida certamente no seria cumprida. Enfrentava-se assim uma situao dificlima. Indeferir simplesmente o pedido seria, conforme observou Crosskey, capitulao demasiado visvel; afirmar apenas que a lei judiciria somente autorizava o mandamus pela Corte Suprema em grau de apelao era resultado insatisfatrio.

35

b) entretanto, ao no se conceder a ordem por questo preliminar, evitou-se que fosse

descumprida;

c) cristalizou a doutrina de que o Poder Judicirio pode declarar a

inconstitucionalidade de normas jurdicas, beneficiando seus correligionrios, os

quais, afinal, encontravam-se em sua maioria no Poder Judicirio (pois foram

nomeados no perodo do governo federalista gozando tais juzes das garantias de

vitaliciedade e inamovibilidade).

Navarro Coelho (1992, p. 78) acrescenta que o judicial review, inaugurado neste

importante caso, j se encontrava no mago da Constituio americana (sendo algo, portanto,

revelado e no criado pela jurisprudncia) e o que Marshall fez, com incoercvel lgica,

foi declarar o que j estava implcito na teoria das Constituies rgidas e na mecnica da

tripartio dos poderes [...].

Tal entendimento, contudo, teve os seus detratores 29, os quais julgavam uma ofensa

aos demais poderes o poder concedido ao Judicirio para o controle da constitucionalidade

das leis, problema, alis, que at a atualidade divide os estudiosos do assunto 30.

Ensina Clmerson Merlin Clve (2000, p. 93 et. seq.) que, atualmente h trs modos

de provocar o controle de constitucionalidade nos Estados Unidos:

a) por meio da exceo da inconstitucionalidade: qualquer juiz pode deixar de aplicar

uma lei inconstitucional no caso concreto;

b) recurso ao procedimento de eqidade: o cidado, por meio de uma injuno

(injunction) pede uma ordem ao Poder Judicirio para que proba aos funcionrios

pblicos31 apliquem ou tentem aplicar a lei argida de inconstitucional;

29 Raul Machado Horta (1953, p. 79) registra a oposio de Mac Donough, in Usurpation of Power by the Federal Courts. Em sentido favorvel tese de Marshall aponta os estudos de Charles Beard, o qual, ao analisar os debates da Conveno da Filadlfia, constatou que dos cinqenta e cinco delegados, dezessete eram favorveis ao controle judicirio da constitucionalidade das leis. Horta salienta, contudo, que Marshall no menciona, em sua deciso, os anais da Conveno os quais sequer haviam sido publicados, poca - tampouco invocou precedentes coloniais, que, de forma embrionria, eram formas de controle de constitucionalidade em matria econmica. Marshall limitou-se a fundamentar sua deciso a textos legais e na doutrina de dois grandes juristas do common law: Blackstone e Lorde Mansfield. 30 Posteriormente outros episdios interessantes transcorreram na histria do direito constitucional norte-americano. A Era Lochner da Suprema Corte dos Estados Unidos e a reao do governo de Roosevelt, para implementar as polticas do New Deal demonstram a importncia da atuao da Suprema Corte, naquele pas. 31 Esclarece Clmerson Merlin Clve (2000, p. 94) que no obstante a dcima primeira Emenda Constituio americana impedir a propositura de aes contra o Estado, entendeu-se que a proibio no se estendia aos seus funcionrios. Contudo, o Judicirio s passou a aceitar a injunction a partir de 1908, no caso ex parte Yong Attorney General.

36

c) uso do procedimento da sentena declaratria, mais recente 32, que visa a regular

direitos e situaes legais para as controvrsias, atravs de julgamentos

declaratrios. (CLVE, 2000, p. 95).

2.4 DOS SISTEMAS DE CONTROLE JURISDICIONAL DE CONSTITUCIONALIDADE

2.4.1 Sistema difuso ou americano

Como visto no tpico antecedente, de um singular caso poltico consolidou-se a tese

do controle de constitucionalidade no direito norte-americano.

Basicamente, as caractersticas principais do controle difuso, que se consolidaram na

jurisprudncia norte-americana desde a histrica deciso de Marshall, so as seguintes:

a) a aceitao de que o Poder Judicirio possui competncia para realizar o controle de

constitucionalidade das leis, no havendo ofensa ao princpio da separao dos

poderes. O controle considerado difuso porque todos os juzes e tribunais podem

apreciar a constitucionalidade das leis, a requerimento das partes litigantes ou ex

officio. Este poder considerado um poder inerente a todos os juzes;

b) a lei inconstitucional nula e no anulvel. O Congresso no se manifesta sobre a

inconstitucionalidade, entende-se que a lei nunca foi votada (PALU, 2001, p. 118);

c) a inconstitucionalidade s deve ser declarada se for absolutamente necessria para a

resoluo do caso, no sendo admitida a pronncia em tese sobre a

inconstitucionalidade das leis. Oswaldo Luiz Palu (2001, p. 119) observa que por

conta deste postulado, ficam de fora do controle da Suprema Corte as denominadas

questes polticas ou non-justiciable questions 33;

32 A Suprema Corte, at ento presa concepo tradicional do processo de controle difuso, no admitia a ao declaratria. No caso Nashiville, C. and St.Louis Railway v. Wallace mudou o seu entendimento. Posteriormente seguiu-se uma lei federal, em 1934, que conferiu competncia s Cortes federais inferiores para processar e julgar ao declaratria. 33 Em certa oportunidade, o Presidente Washington solicitou opinio da Suprema Corte sobre assuntos relativos a um tratado celebrado com a Frana, ao que respondeu a mesma ser imprprio tal procedimento, porquanto aquela Corte carecia de competncia para se pronunciar sobre casos que no estivesse sub judice. Vrios autores relatam que a resistncia da Suprema Corte em examinar uma simples ao declaratria de existncia ou inexistncia de relao jurdica (apegando-se apenas pronncia de inconstitucionalidade para a soluo de

37

d) a eficcia da deciso ex tunc, anulando a norma desde o nascimento, seja para

desfazer os seus efeitos, seja para ensejar a reparao devida, com abrangncia inter

partes.

Um ponto digno de nota que eventuais decises conflitantes so eliminadas pela

lgica do stare decisis cuja caracterstica principal a existncia de vnculos entre os

precedentes 34, ou seja, ainda que possam surgir divergncias, o cas