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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE DIREITO Guilherme Gehlen Walcher A REPETIÇÃO DE INDÉBITO DOS TRIBUTOS QUE, POR SUA NATUREZA, COMPORTAM A TRANSFERÊNCIA DO RESPECTIVO ENCARGO FINANCEIRO Prof. Orientador: Igor Danilevicz Porto Alegre, 2006 A tributação indireta vem, cada vez mais, ganhando espaço dentre as formas de tributação dos signos presuntivos de riqueza. A preocupação com a praticidade da arrecadação tributária e o necessário combate à sonegação fiscal alarmante são, sem dúvidas, motivos a justificarem tal forma de imposição tributária. Paralelamente, é sabido e notório que os entes federativos, numa incessante corrida para arrecadar (tanto quanto seja possível) os tributos que a Constituição, ao deferir-lhes competência tributária, permitiu-lhes instituir, criam tributos não raro ilegais e inconstitucionais. Sendo compulsoriamente forçados pelo Fisco a recolher estas quantias indevidas, os contribuintes vêem surgir, na esfera de suas personalidades jurídicas, o correlativo direito (e a respectiva pretensão) de verem restituídas as importâncias exigidas. Nesse contexto, surge o art. 166 do Código Tributário Nacional (CTN), a condicionar o ressarcimento do contribuinte à comprovação de não ter ele conseguido repercutir o encargo da tributação indevida para o adquirente de seus produtos (ou, alternativamente, de estar por este autorizado a litigar em defesa do respectivo quantum). Em vista das dificuldades práticas em se comprovar a não-repercussão da exação indevidamente exigida (e, assim, legitimar-se à propositura da ação de repetição de indébito), teria o Estado encontrado uma forma de instituir exações inconstitucionais sem que possam os contribuintes ser ressarcidos do prejuízo que, compulsoriamente, são forçados a

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL

FACULDADE DE DIREITO

Guilherme Gehlen Walcher

A REPETIÇÃO DE INDÉBITO DOS TRIBUTOS QUE, POR SUA NATUREZA,

COMPORTAM A TRANSFERÊNCIA DO RESPECTIVO ENCARGO FINANCEIRO

Prof. Orientador: Igor Danilevicz

Porto Alegre, 2006

A tributação indireta vem, cada vez mais, ganhando espaço dentre as

formas de tributação dos signos presuntivos de riqueza. A preocupação com a

praticidade da arrecadação tributária e o necessário combate à sonegação fiscal

alarmante são, sem dúvidas, motivos a justificarem tal forma de imposição tributária.

Paralelamente, é sabido e notório que os entes federativos, numa incessante

corrida para arrecadar (tanto quanto seja possível) os tributos que a Constituição, ao

deferir-lhes competência tributária, permitiu-lhes instituir, criam tributos não raro

ilegais e inconstitucionais. Sendo compulsoriamente forçados pelo Fisco a recolher

estas quantias indevidas, os contribuintes vêem surgir, na esfera de suas

personalidades jurídicas, o correlativo direito (e a respectiva pretensão) de verem

restituídas as importâncias exigidas. Nesse contexto, surge o art. 166 do Código

Tributário Nacional (CTN), a condicionar o ressarcimento do contribuinte à

comprovação de não ter ele conseguido repercutir o encargo da tributação indevida

para o adquirente de seus produtos (ou, alternativamente, de estar por este

autorizado a litigar em defesa do respectivo quantum). Em vista das dificuldades

práticas em se comprovar a não-repercussão da exação indevidamente exigida (e,

assim, legitimar-se à propositura da ação de repetição de indébito), teria o Estado

encontrado uma forma de instituir exações inconstitucionais sem que possam os

contribuintes ser ressarcidos do prejuízo que, compulsoriamente, são forçados a

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suportar?1 Teria o Estado encontrado, no dispositivo, uma forma de burlar os

princípios da legalidade, da taxatividade e, até mesmo, da moralidade?

Consubstanciar-se-ia, no dispositivo, o direito a um confisco aprioristicamente

garantidor de que o Estado permaneça com o fruto de seus ilícitos no campo

tributário?2 É o que se passa a analisar.

A mais marcante característica da tributação indireta consiste no fato de que,

nela, a regra-matriz do tributo, ao eleger abstrata e hipoteticamente o fato cuja

ocorrência, no mundo fenomênico, causará o surgimento da obrigação tributária,

busca atingir a capacidade contributiva de um terceiro, assim considerado porque

alheio à relação jurídico-tributária que será deflagrada com a ocorrência do fato

gerador. Verifica-se, portanto, uma dissociação entre a titularidade da capacidade

contributiva atingida pela regra-matriz do tributo e a obrigação legal de efetuar o seu

recolhimento,3 a ocorrer em se tratando de “impostos juridicamente construídos para

obrigatoriamente repercutir”,4 bem como nos casos de responsabilidade tributária

por substituição, casos em que incide o art. 166 do CTN.5

Por meio desta forma de sujeição passiva (a responsabilidade tributária por

substituição), o sujeito ativo obriga uma personalidade jurídica a recolher tributo

relacionado a signos presuntivos de riqueza alheia.6 Isso é perfeitamente lícito,

apenas se obtemperando que, em ordenamentos jurídicos como o brasileiro, em que

o princípio da capacidade contributiva foi galgado ao patamar constitucional, sempre

1 “Acrescento dizendo que não há critérios jurídicos capazes de conciliar aberrações, como o ‘quasímodo’ inserto no artigo 166 do CTN.” (MARTINS, Ives Gandra da Silva. Repetição do Indébito. In: CEZAROTTI, Guilherme (coord.). Repetição do Indébito Tributário. São Paulo, Quartier Latin, 2005, p. 37.)

2 “O artigo 166 conflita com os artigos 5º, inciso II, e 150, inciso I, da C.F. e com os artigos 97, 121 e 128 do CTN, representando pela sua inequívoca inadaptação ao cenário jurídico pátrio, dispositivo notoriamente inconstitucional.” (MARTINS, Ives Gandra da Silva. Repetição do Indébito. In: CEZAROTTI, Guilherme (coord.). Repetição do Indébito Tributário. São Paulo, Quartier Latin, 2005, p. 28)

3 MÖRSCHBÄCHER, José. Repetição do Indébito Tributário Indireto. 3. ed. São Paulo : Dialética, 1998, p. 39.

4 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 709.

5 “A restituição de tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro somente será feita a quem prove haver assumido referido encargo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por este expressamente autorizado a recebê-la.”

6 MÖRSCHBÄCHER, José. Repetição de Indébito Tributário e Compensação. In: MACHADO, Hugo de Brito (coord.). Repetição do Indébito e Compensação no Direito Tributário. São Paulo: Dialética; Fortaleza: Instituto Cearense de Estudos Tributários – ICET, 1999, p. 256.

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que utilizar o substituto legal tributário, o legislador deverá, simultaneamente, criar a

“repercussão jurídica do tributo sobre o substituído (aquela pessoa de cuja renda ou

capital a hipótese de incidência é fato signo presuntivo), outorgando ao substituto o

direito de reembolso ou retenção do valor do tributo perante o substituído”.7 Indireta,

portanto, é a forma que a tributação encontra para atingir determinada capacidade

contributiva, ostentada não pelo contribuinte de direito, mas sim por aquele para o

qual - presume a lei - o ônus fiscal será repercutido.8

Muito embora se pudesse argumentar que o Supremo Tribunal Federal, no

leading case9 em que, modificando sua anterior orientação,10 afirmou que a

imunidade tributária do art. 150 da CF/88 abrange, também, os tributos indiretos

quando imune for o contribuinte de direito (caso distinto daquele em que imune é o

contribuinte de fato,11 cuja imunidade, em regra, não se estende ao contribuinte de

direito),12 teria reconhecido que seria a entidade imune a onerada pelo tributo

repercutível - e não o adquirente de seus produtos -, tal argumento é equivocado.

Isso porque, na ocasião, o Supremo reconheceu que era sim o contribuinte de fato

(e não o de direito, imune) que suportava o tributo indireto, decidindo estender aos

imunes mais um benefício – uma vantagem competitiva em relação aos demais

concorrentes –, pelas dificuldades práticas de financiamento de atividades

constitucionalmente reconhecidas como nobres e importantes à nação brasileira (as

imunizadas). Interpretou-se, por maioria de oito votos contra três, que essa

(des)vantagem teria sido deliberadamente instituída pelo Poder Constituinte. No

caso, portanto, foi reconhecido que a tributação indireta recai sim sobre o

contribuinte de fato, optando-se por desonerar o contribuinte de direito (imune) não

para imunizar sua capacidade contributiva (que não é a atingida), mas sim para

7 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 3. ed. São Paulo : Lejus, 1998, p.

500. 8 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 6. ed. Rio de Janeiro:

Forense, 2002, p. 613. 9 ERE n.º 210.251/SP. Tribunal Pleno. Relator para o acórdão: Ministro Gilmar Mendes. 10 RE 191.067-4/SP. Relator: Ministro Moreira Alves. Brasília, 26 de outubro de 1999. 11 Súmula n.º 591 do STF: “A imunidade ou a isenção tributária do comprador não se estende ao

produtor, contribuinte do Imposto sobre Produtos Industrializados.” 12 PAULSEN, Leandro. Direito Tributário: Constituição, Código Tributário e Lei de Execução Fiscal à

luz da doutrina e da jurisprudência. 4. ed. rev. e atual. – Porto Alegre: Livraria do Advogado: ESMAFE, 2002, p. 201.

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conceder-lhe mais um benefício: uma vantagem concorrencial em relação aos

demais (não-imunes).13

Portanto, indireta – para o Direito Tributário - é aquela tributação

juridicamente construída para atingir a capacidade contributiva de terceiros (os

contribuintes de fato),14 que não integram a relação jurídico-tributária na condição de

sujeitos passivos. E o critério cuja análise é necessária para caracterizar-se uma

tributação como indireta não é o da repercussão econômica da carga tributária, mas

sim o da repercussão jurídica.15 Não basta que, acidentalmente (ou, até,

comumente), haja, no plano econômico, tal repercussão, já que ela ocorre (ou tende

a ocorrer) em todos os tributos, como brilhantemente notou e criticou Alfredo

Augusto Becker: “Por sua própria natureza alguns tributos repercutem e outros não.

O raciocínio baseado nesta premissa é ingênuo e denuncia superficialíssima noção

do fenômeno da repercussão, porque todos os tributos repercutem.”16

A verificação de quem - em última instância - efetivamente suporta o ônus

financeiro é estritamente econômica, quiçá somente podendo a Economia confirmar

ou infirmar, com proficiência, sua ocorrência num caso concreto. Isso porque todo

aquele que é tributado obviamente busca repassar o ônus que lhe é imposto àqueles

dos quais obtém acréscimos patrimoniais. Nessa ótica, todos os tributos seriam

economicamente repercutíveis – não só os indiretos, mas também os diretos. Para

Sacha Calmon Navarro Coelho, “o erro está em afirmar que uns tributos comportam,

e outros não, a possibilidade de transferência. Todos comportam!”17

13 É o que se depreende da leitura do voto então proferido pelo Ministro Sepúlveda Pertence: “Creio que o argumento de que o reconhecimento da imunidade resulta em favorecer, no mercado, a entidade imune, data vênia, não me impressiona: toda imunidade, entre elas aquelas incidentes sobre impostos diretos, reais, como o IPTU, acabam beneficiando a atividade econômica de que se valha a entidade imune e tem sido reconhecida, desde que a renda se aplique exclusivamente em seus fins. Foi o que firmamos recentemente a propósito do IPTU incidente sobre imóveis locados por entidades beneficentes [...]”.

14 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 709.

15 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 709.

16 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 3. ed. São Paulo : Lejus, 1998, p. 540-541.

17 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 710.

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Seguindo esse raciocínio, a doutrina e a jurisprudência, depois de muita

polêmica, sedimentaram que, de fato, o que caracteriza o “tributo que, por sua

natureza, comporta a transferência do respectivo encargo financeiro” é a existência

de “prescrição normativa” da repercussão,18 que, justamente por isso, sai do

patamar de meramente econômica para galgar o status de jurídica. Ou seja: a

hipótese de incidência do art. 166 juridiciza a repercussão econômica, em alguns

casos (o dos “tributos que, por sua natureza, comportam a transferência do

respectivo encargo financeiro”), tornando-a juridicamente relevante. E para que a

repercussão econômica esteja juridicizada, é necessário que “a lei estabeleça dita

transferência”.19

Portanto, as repercussões meramente econômicas não se confundem com

as juridicamente relevantes, pois, nestas, é necessária uma transferência (não

apenas econômica, mas também) jurídica do encargo financeiro.20 Mesmo quando

expressamente deu relevância jurídica à classificação dos tributos em diretos e

indiretos (na já abandonada Súmula n.º 71),21 o Supremo Tribunal Federal não

atribuiu aplicação jurídica irrestrita ao critério da repercussão econômica (o que o

obrigaria a vedar a repetição de indébito sempre que existente a translação, em

qualquer tributo), pois não aplicava a súmula à repetição de todos os tributos, mas

apenas à de alguns. Os “tributos que, por sua natureza, comportam a transferência

do respectivo encargo financeiro” são, portanto, os juridicamente construídos para

repercutir,22 assim entendidos como aqueles em que a transferência é estabelecida

pela lei; em outras palavras, trata-se dos tributos juridicamente construídos para

serem indiretos.

18 RABELLO FILHO, Francisco Pinto. Consideração do ISS Como Imposto Direto ou Indireto, para

efeito de Repetição do Indébito Tributário: breve revisitação do tema. In: Revista Tributária e de Finanças Públicas, n. 55. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2004, mar-abr. 2004, p. 147.

19 “A nosso ver, tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro são somente aqueles tributos em relação aos quais a própria lei estabeleça dita transferência. Somente em casos assim aplica-se o art. 166 do Código Tributário Nacional, pois a natureza a que se reporta tal dispositivo legal só pode ser a natureza jurídica, que é determinada pela lei correspondente, e não por meras circunstâncias econômicas que podem estar, ou não, presentes, sem que se disponha de um critério seguro para saber quando se deu, e quando não se deu, tal transferência.” (MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 26. ed. rev. atual. e ampl.. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 208.)

20 GRECO, Marco Aurélio. Repetição do Indébito. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (org.). Caderno de Pesquisas Tributárias n.º 8. São Paulo: Editora Resenha Tributária, 1983, p. 284.

21 “Embora pago indevidamente, não cabe restituição de tributo indireto.” 22 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 6. ed. Rio de Janeiro:

Forense, 2002, p. 709.

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Mas não é apenas a existência de prescrição normativa (aspecto

estritamente formal) o que caracteriza a transferência de encargo financeiro. Em

1983, Marco Aurélio Greco percebeu que, sob pena se constatar incoerências na

linguagem do próprio Código Tributário Nacional, a “natureza” referida pelo art. 166

do CTN tinha de ser aferida pela análise do fato gerador da obrigação, por força do

que dispunha (e segue dispondo) o art. 4.º do mesmo Código (“A natureza jurídica

específica do tributo é determinada pelo fato gerador da respectiva obrigação [...]”).

Sucessivamente, como só se poderia falar de “transferência” havendo ao menos

duas pessoas, estava o CTN referindo-se a tributos cujo fato gerador envolvia, numa

operação, uma “dualidade de sujeitos”.23 Além disso, seria imprescindível a

existência de uma “operação”, pela qual a “transferência” se realizaria.24

Aí os aspectos essenciais dos tributos juridicamente repercutíveis.

Aprofundando essa análise, Sacha Calmon extrai, além das características já

assinaladas por Marco Aurélio Greco (dualidade de sujeitos, operação, sujeito

passivo que pode economicamente transferir), outra. Para o autor, se o tributo é

juridicamente construído para repercutir, sua instituição deve ocorrer de modo que

haja meios de comprovação da transferência do encargo. Existiriam, em

decorrência, formas de comprovação documental dos elementos essenciais, sob

pena de se admitir que o art. 166 do CTN estaria a impor a produção de uma prova

verdadeiramente diabólica.25

23 GRECO, Marco Aurélio. Repetição do Indébito. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (org.). Caderno de Pesquisas Tributárias n.º 8. São Paulo: Editora Resenha Tributária, 1983, p. 280-285.

24 “1) Comportam transferência: 1.1 - tributos cujo fato gerador envolva uma dualidade de sujeitos; ou seja, o fato gerador é uma operação, e 1.2 - cujo contribuinte é pessoa que impulsiona o ciclo econômico podendo transferir o encargo para outro partícipe do mesmo fato gerador. [...] 3) Não comportam transferência: 3.1 – os tributos cujo fato gerador não é uma operação, vale dizer, não engloba uma dualidade de sujeitos; ou 3.2 – aqueles que, apesar de terem por fato gerador uma operação envolvendo uma dualidade de sujeitos, indicam como contribuinte de direito pessoa que seja a última da seqüência de operações sujeitas ao tributo. Neste caso quem suportou o encargo não terá para quem transferi-lo, pois não participará de outro fato gerador do mesmo tributo, desta vez na posição de impulsionador da etapa seguinte do mesmo ciclo econômico indicado pela Constituição para fins de incidência tributária.” (GRECO, Marco Aurélio. Repetição do Indébito. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (org.). Caderno de Pesquisas Tributárias n.º 8. São Paulo: Editora Resenha Tributária, 1983, p. 286-287.)

25 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 709.

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Outros autores - em especial Alfredo Augusto Becker e Eduardo Domingos

Bottallo26 - referem outra característica, também essencial. Como o tributo

juridicamente indireto, por definição, não pode ser ontologicamente destinado a

atingir a capacidade contributiva do sujeito passivo da obrigação tributária, a lei deve

conceder a este, de alguma forma, o direito de se ressarcir, o que ocorreria por meio

de dois mecanismos: o reembolso e a retenção.

Becker, com sua notável precisão teórica, ao explicar o funcionamento

jurídico do reembolso, refere a existência de duas relações jurídicas. Na primeira, de

natureza tributária, o contribuinte de jure seria sujeito passivo de uma obrigação -

desencadeada pela ocorrência, no mundo fenomênico, da hipótese de incidência de

uma primeira norma -, perante o sujeito ativo. Na segunda relação, cuja hipótese de

incidência seria o cumprimento da obrigação jurídico-tributária surgida da realização

da hipótese de incidência da primeira norma, o contribuinte de jure, por força de uma

segunda norma, seria sujeito ativo de uma prestação a ser satisfeita pelo

contribuinte de fato.27 Já na retenção, Becker salienta a ocorrência de compensação

entre os contribuintes de jure e de factum, ao contrário do que ocorreria no

reembolso. Se, neste, os valores recolhidos a título de tributo seriam acrescidos a

um crédito do contribuinte de jure perante o contribuinte de fato, naquela os valores

recolhidos a título de tributo seriam deduzidos de um débito do contribuinte de direito

perante o contribuinte de fato.28

Cabe ressaltar que a “não-cumulatividade” não é instituto que, por si só,

implique repercussão jurídica - ainda que presente no IPI e no ICMS, tributos

reconhecidos como passíveis de transferência do respectivo encargo financeiro -,

não sendo, portanto, mecanismo de transferência do encargo (como são o

reembolso e a retenção). Se fossem tais tributos instituídos de forma cumulativa, não

deixariam apenas por isso de estar juridicamente construídos para atingir a

capacidade contributiva do consumidor. A carga tributária seguiria sendo destacada

na nota fiscal, acrescida ao preço de venda (respeitado, no ICMS, o cálculo por

26 BOTTALLO, Eduardo Domingos. Restituição de Impostos Indiretos. In: Revista de Direito Público

n. 22. São Paulo, Revista dos Tribunais, out-dez. 1972, p. 314 e ss. 27 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 3. ed. São Paulo : Lejus, 1998, p.

85. 28 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 3. ed. São Paulo : Lejus, 1998, p.

86.

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8

dentro) e repassada ao adquirente dos bens. Haveria apenas uma oneração da

produção, a refletir-se no já conhecido inconveniente da diminuição da

competitividade das cadeias produtivas mais longas, num incentivo à verticalização

da produção.29 A relevância prática da constatação reflete-se nos casos do PIS e da

COFINS não-cumulativos, em relação aos quais a doutrina vem afastando a

incidência do art. 166 do CTN, reconhecendo tratar-se de tributos diretos.

Portanto, são características da essência dos “tributos que, por sua

natureza, comportam a transferência do respectivo encargo financeiro” (art. 166,

CTN): a) fato gerador que envolve uma dualidade de sujeitos, por meio de uma b)

operação, sendo que c) o sujeito passivo não está ao final da cadeia produtiva, d)

podendo transferir a um terceiro, o contribuinte de fato, o quantum por ele devido, o

que fará por meio de e) mecanismos de transferência jurídica do encargo financeiro

(reembolso, retenção), que f) podem ser comprovados documentalmente. Não é um

aspecto substancial do tributo juridicamente indireto o fato de ele ser, também, não-

cumulativo.

A repetição de indébito dos tributos indiretos passou a ser vedada pelo

Supremo Tribunal Federal desde o julgamento do Recurso Extraordinário n.º 44.115,

precedente da Súmula n.º 71. Desde então, houve um abrandamento desse rigor,

admitindo-se, com o entendimento exposto na Súmula n.º 546, a repetição quando

provado ter sido o contribuinte de jure que afinal suportara a carga tributária

indevida. Isso em razão da preocupação com a existência de prejuízo patrimonial

efetivo daquele que pleiteia a repetição, de modo a evitar-se o seu enriquecimento

sem causa.

Para Brandão Machado, porém, o fundamento do direito de repetição seria

tão-somente a existência de um recolhimento indevido, não havendo, pois, de se

indagar – para o efeito de eventualmente se afastar o direito à devolução do indébito

– quanto à existência de prejuízo daquele que compulsoriamente tivera de recolher

29 BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11. ed., atualizada por Misabel Abreu Machado

Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 419.

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as quantias indevidas.30 Inclusive, seria justamente a busca pela vedação ao

enriquecimento sem causa do contribuinte de direito o que acabaria por consagrar a

chamada “inconstitucionalidade útil”,31 pela qual o Estado ficaria com o produto do

seu ilícito: o “tributo” inconstitucional.32 E o que agravaria a situação ainda mais seria

o fato de tal hipótese, embora teórica, ocorrer cotidianamente na República

Federativa do Brasil. São juristas de alçada que atestam a reiterada prática da

tributação ilegal;33 mas, de impacto, são as palavras do eminente Ministro Sepúlveda

Pertence:

[...] tenho contado um episódio de meus tempos de Procurador-Geral da República: certa vez, fui consultado por técnicos de determinado setor governamental sobre uma proposta de decreto-lei. Lembro-me ter dito: este decreto-lei não passa pelo primeiro juiz de plantão: a inconstitucionalidade é bradante. A resposta foi mais ou menos assim: - quem somos nós, Dr. Procurador, para discutir questão de inconstitucionalidade com V. Exa.? Mas veja V. Exa. O que está ocorrendo com a questão constitucional “X”: há quatro anos, a União não teve sequer uma sentença, de qualquer instância, a seu favor; no entanto – dizia-me o técnico -, a arrecadação real está por volta de 85% do previsto, porque a grande maioria não vai a juízo.34

Portanto, parte da doutrina afirma que o art. 166 - jurídica mas ilegalmente -

consolida a ilicitude da tributação, porquanto impede que o respectivo quantum seja

devolvido àquele que é compulsoriamente obrigado a recolhê-lo e, ainda assim, o

faz de modo probo e pontual.35 Isso, além de incoerente e incompatível com a

30 MACHADO, Brandão. Repetição do indébito no Direito tributário. In: Direito Tributário: Estudos em

homenagem ao Prof. Ruy Barbosa Nogueira. São Paulo : Saraiva, 1984, p. 59-106. 31 TROIANELLI, Gabriel Lacerda. Repetição do Indébito, Compensação e Ação Declaratória. In:

MACHADO, Hugo de Brito (coord.). Repetição do Indébito e Compensação no Direito Tributário. São Paulo: Dialética; Fortaleza: Instituto Cearense de Estudos Tributários – ICET, 1999, p. 122.

32 “Ora, à evidência, tal monumento aos princípios da ilegalidade e torpeza tributária, pela qual o Estado pode ficar com o tributo indevido e pode se opor a ‘presumível enriquecimento ilícito’ sob a alegação de que o privilégio de ‘enriquecer-se ilicitamente é apenas seu’, algo que não se insere no sistema tributário brasileiro regido pelos princípios da estrita legalidade e tipicidade fechada.” (MARTINS, Ives Gandra da Silva. Repetição do Indébito. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (org.). Caderno de Pesquisas Tributárias n.º 8. São Paulo: Editora Resenha Tributária, 1983, p. 162-163.)

33 MATTOS, Aroldo Gomes de. Repetição do Indébito, Compensação e Ação Declaratória. In: MACHADO, Hugo de Brito (coord.). Repetição do Indébito e Compensação no Direito Tributário. São Paulo: Dialética; Fortaleza: Instituto Cearense de Estudos Tributários – ICET, 1999, p. 47-48.

34 Apud CASSONE, Vitório. Contribuição Previdenciária dos Administradores, Autônomos e Avulsos Declarada Inconstitucional pelo STF – a Problemática de sua Compensação em Face do Art. 166 do CTN e Art. 89 da Lei 8.212/91 na Redação da Lei 9.032/95. In: Cadernos de Direito Tributário e Finanças Públicas, ano 6, n.º 24. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, jul-set de 1998, p. 67.

35 “Considero que facilitar a repetição do imposto, por parte de quem o pagou indevidamente, deve ser um objetivo do legislador e da jurisprudência. Quem pede a repetição do imposto é sempre o contribuinte cordato, e o contribuinte que respeita as regras do jogo e que, se aparentemente

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legalidade estrita e a moralidade administrativa, seria agravado pela reiterada (e até

intencional) instituição indevida de tributos pelos entes federativos. A conseqüência

seria uma segunda punição, dada justamente ao contribuinte cordato: inobstante ter

sido compelido a pagar quantia indevida, não poderia ser ressarcido do respectivo

quantum.

Tais argumentos, entretanto, não prosperam, e, há muito tempo, não vêm

sendo acolhidos pela jurisprudência pátria. Há de ser discernido que, de acordo com

o entendimento exposto (favorável à desimportância de prejuízo na repetição de

indébito), embora tendo recolhido valores indevidos, o contribuinte de direito na

grande maioria dos casos seria ressarcido de prejuízo que não teve. Haveria, no

caso, ressarcimento sem dano, a caracterizar, aí sim, prática imoral.36 Se, a priori,

fosse dispensada a comprovação de prejuízo, ao julgar procedente ação de

repetição de indébito promovida pelo contribuinte de direito, o Poder Judiciário

provavelmente estaria chancelando um locupletamento imoral, um enriquecimento

sem causa, um ressarcimento sem dano, em proveito de um pseudo-contribuinte

(que, no caso, não suporta o ônus da ilegalidade) e em prejuízo do contribuinte de

fato (que, efetivamente, sofrera o peso da exação) e da coletividade (que, pela

condenação do Erário, teria de ressarcir um prejuízo inexistente). O contribuinte de

jure, por outro lado, receberia duas vezes: na primeira, pelo preço pago por seu

produto (no qual embutido o valor do tributo indevido); após, pela procedência do

pleito repetitório.

Esses, pois, os fundamentos da restrição imposta no art. 166: a) a vedação

ao enriquecimento sem causa; e b) a incoerência em ressarcir-se um prejuízo

inexistente. Tais argumentos têm força, de modo que Paulo de Barros Carvalho

chega a asseverar que, num caso de falta de comprovação da não-repercussão pelo

devido o imposto ele o paga, para pedir depois a restituição [...] um tanto liberal em relação à aplicação que o Fisco tem procurado dar à Súmula 546, prefiro que se peça restituição que se veja com liberalidade o pedido de restituição, porque, dificultada a recuperação, estimula-se o contribuinte à rebeldia contra as novas disposições tributárias.” (sábias palavras do ex-Ministro do STF, Dr. Décio Miranda, no RE 87.439/SP, julgado em 30 de março de 1979.)

36 “O CTN está rigorosamente correto. Não seria ético, nem justo, devolver o tributo indevido a quem não o suportou. Seria enriquecimento sem causa. Por isso mesmo, exige a prova da não-repercussão, ou então a autorização do contribuinte de fato, o que suportou o encargo, para operar a devolução ao contribuinte de jure, o sujeito passivo da relação jurídico-tributária.” (COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 709.)

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contribuinte de direito requerente da repetição, ocorreria um choque entre a falta de

fundamento para o Estado permanecer com os valores (que, afinal, sequer deveria

ter obtido) e a falta de razão para devolvê-los ao contribuinte de direito (que não

arcou com o recolhimento indevido), sendo que “na ausência de títulos de ambos os

lados, deve prevalecer o magno princípio da supremacia do interesse público ao do

particular incorporando-se as quantias ao patrimônio do Estado”.37

Questão de enorme relevância em se tratando da análise do art. 166 do CTN

é a polêmica quanto à sua (in)constitucionalidade. Se o Estado é o aplicador do

direito, por óbvio não se poderia admitir dispositivo que tolerasse a perpetração, por

ele, de ilegalidades reiteradas, afastando qualquer direito de o cidadão-contribuinte

se defender da cobrança indevida. O eminente Ives Gandra da Silva Martins, jurista

de renome internacional, vem, desde 1983, sustentando a inconstitucionalidade do

dispositivo, sob esse argumento.38 Vittorio Cassone, outro jurista de alçada, refere

ter sido persuadido pelos argumentos de Ives Gandra, e também defende a

inconstitucionalidade do art. 166,39 assim como outros juristas de renome.40

Entretanto, percebe-se que muitos dos defensores desse entendimento entendem

que o dispositivo se refere à transferência econômica do encargo financeiro, que,

como visto, ocorre em todos os tributos. Assim entendido, o art. 166 do CTN estaria

37 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1991, p.

305. 38 “Com efeito, o artigo 166 do CTN consagra o princípio da ilegalidade tributária como fonte de receita do sujeito ativo, gerando – para a maior parte dos tributos – condição de impossível repetição. [...] Cria, em decorrência, o princípio da imoralidade tributária, princípio apenas possível de ser vivido pelo Estado. O Estado passa a monopolizar o direito de ser torpe e injurídico, na medida em que imponha tributo indevido e se negue a restituí-lo a quem o recolheu, sob a alegação de que não ele mas o terceiro, que teoricamente o suportou, seria o único que poderia ser titular no direito de iniciar o procedimento, por outorga de autorização [...] O artigo 166 conflita com os artigos 5º, inciso II, e 150, inciso I, da C.F. e com os artigos 97, 121 e 128 do CTN, representando pela sua inequívoca inadaptação ao cenário jurídico pátrio, dispositivo notoriamente inconstitucional.” (MARTINS, Ives Gandra da Silva. Repetição do Indébito. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (org.). Caderno de Pesquisas Tributárias n.º 8. São Paulo: Editora Resenha Tributária, 1983, p. 160-163.)

39 CASSONE, Vitório. Contribuição Previdenciária dos Administradores, Autônomos e Avulsos Declarada Inconstitucional pelo STF – a Problemática de sua Compensação em Face do Art. 166 do CTN e Art. 89 da Lei 8.212/91 na Redação da Lei 9.032/95. In: Cadernos de Direito Tributário e Finanças Públicas, ano 6, n. 24. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1998, jul./set. de 1998, p. 66.

40 “A rigor, regra jurídica como essa sequer poderia estar vigente, pois não se revela funcional e, com isso, vulnera o princípio da praticabilidade da tributação.” (PEIXOTO, Marcelo Magalhães; DINIZ, Marcelo de Lima Castro. A Regra do Artigo 166 do Código Tributário Nacional e a sua Aplicação à Cofins – não-cumulativa e ao PIS não-cumulativo. In: CEZAROTTI, Guilherme (coord.). Repetição do Indébito Tributário. São Paulo, Quartier Latin, 2005, p. 290)

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a criar óbice probatório de difícil superação àqueles cujo patrimônio é notoriamente

afetado pela tributação indevida.

Porém, restringindo a aplicabilidade do art. 166 aos casos de repercussão

jurídica (e não meramente econômica) do encargo financeiro, a doutrina aponta a

interpretação correta a ser dada ao dispositivo.41 Na verdade, inconstitucional seria

chancelar o enriquecimento sem causa daquele que nada sofrera com a tributação

ilegal. Um erro (a instituição ou majoração indevida de tributo), por certo, não

justifica outro (a restituição à personalidade jurídica errada). Ademais, o que o artigo

em comento impõe é tão-somente a necessária averiguação quanto a quem ostenta

a titularidade do direito de ser ressarcido do impacto da tributação indevida. Nesse

sentido, corroboram o exposto as precisas ponderações de Hugo de Brito Machado

Segundo, principalmente por afastarem a verossimilhança dos argumentos de parte

da doutrina, que, partindo de premissa correta - derivando o direito à repetição de

indébito diretamente do texto da Constituição Federal,42 não pode ser restringido por

qualquer lei, ordinária ou complementar -,43 deduz conclusão equivocada – a de que

seria o art. 166 inconstitucional. Ora, não se tratando de qualquer limitação a esse

direito, mas apenas de definição de quem ostenta a sua titularidade, conclui-se: o

art. 166 é norma absolutamente legítima.44

41 “A não ser assim, ter-se-á de concluir pela inconstitucionalidade, do art. 166, por ser este um óbice

intransponível ao exercício do direito à restituição do indébito. Admitir que o contribuinte sempre transfere o ônus do tributo ao consumidor dos bens ou serviços é uma idéia tão equivocada quanto difundida. Na verdade, o contribuinte tenta transferir não apenas o tributário, mas todos os ônus que pesam sobre sua atividade. Mas nem sempre consegue. Ou nem sempre consegue inteiramente. Tudo depende das circunstâncias de cada caso e de cada momento. Seja como for, o certo é que não se pode confundir a relação jurídica de direito tributário, existente entre o contribuinte e o Fisco, com a relação jurídica de Direito Privado, existente entre o comprador e o vendedor dos bens e serviços.” (MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 26. ed. rev. atual. e ampl.. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 208.)

42 FORTES, Marcelo. Repetição do Indébito Tributário. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 401. 43 PEIXOTO, Marcelo Magalhães; DINIZ, Marcelo de Lima Castro. A Regra do Artigo 166 do Código

Tributário Nacional e a sua Aplicação à Cofins – não-cumulativa e ao PIS não-cumulativo. In: CEZAROTTI, Guilherme (coord.). Repetição do Indébito Tributário. São Paulo, Quartier Latin, 2005, p. 291.

44 “Nesses termos posta a interpretação do citado artigo do CTN em face da Constituição, desaparece a incompatibilidade daquele com esta, pois: a) o Estado não estará enriquecendo sem causa, uma vez que há apenas mudança da parte legitimada a pleitear a restituição; b) sendo jurídica, e não financeira, a repercussão a que se refere o art. 166 do CTN, ela não decorre de relação de direito privado, mas diretamente da lei tributária; [...] e) não se pode simplesmente atribuir ao propósito de enriquecimento ilícito por parte do Estado os obstáculos previstos no art. 166 do CTN, pois referido artigo apenas confere àquele que juridicamente suportou o ônus do tributo a legitimidade de questioná-lo.” (MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito; RAMOS, Paulo de Tarso Vieira. Repetição de Indébito Tributário e Compensação. In: MACHADO, Hugo de Brito (coord.).

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Outro argumento comumente utilizado para afastar-se a incidência do art.

166 do CTN consiste na impossibilidade de identificação do contribuinte de fato, com

o que restaria inviável ao contribuinte de jure produzir a prova da autorização que,

consoante o referido dispositivo, lhe legitimaria a figurar no pólo ativo do pleito

repetitório. Tal tese decorre dos escritos de José Eduardo Soares de Melo,45 que

datam de 1983.46 Tal posicionamento é corroborado por Hugo de Brito Machado,

para quem “[...] é importante lembrar a posição acertada de Soares de Melo,

segundo a qual se não é possível identificar o consumidor final de bens, ou dos

serviços tributados, o art. 166 é inaplicável”.47 Esta, contudo, não parece ser a

melhor solução. A presunção, em tais casos, embora juris tantum, é justamente de

ocorrência das repercussões jurídica e econômica do encargo financeiro para o

contribuinte de fato. Assim, a menos que se prove o contrário, é de se presumir que

a capacidade contributiva atingida não foi a do sujeito passivo, mas sim a dos

consumidores. Aliás, se a lei outorga a estes a faculdade de autorizarem o

contribuinte de jure – que, no caso, não logra provar ter suportado o tributo indevido

-, é porque presume, justamente, serem eles os efetivamente afetados – e, portanto,

os legitimados. Acatar tal tese seria, portanto, ignorar o próprio fundamento do art.

166: a vedação do enriquecimento sem causa. Portanto, mesmo que não sejam

identificáveis os contribuintes de fato, o art. 166 do CTN deve incidir, somente se

ressarcindo o sujeito passivo caso comprove ter suportado o ônus da exação

ilegítima.

Relativamente às espécies tributárias às quais se aplica o art. 166 do CTN, o

entendimento majoritário no ordenamento jurídico brasileiro é o de que o art. 166 se

Repetição do Indébito e Compensação no Direito Tributário. São Paulo: Dialética; Fortaleza: Instituto Cearense de Estudos Tributários – ICET, 1999, p. 148-149.)

45 “Inaplicável o art. 166 do CTN no caso de não ser identificado o terceiro, como acontece com as operações realizadas com consumidores finais dos bens e serviços, porque acabaria sendo inviabilizada a restituição ao sujeito passivo, o que caracterizaria o locupletamento da Fazenda, que recebera valores sem causa jurídica.” (MELO, José Eduardo Soares de. Repetição do Indébito e Compensação. In: MACHADO, Hugo de Brito (coord.). Repetição do Indébito e Compensação no Direito Tributário. São Paulo: Dialética e ICET, 1999, p. 235.)

46 MELO, José Eduardo Soares de. Repetição do Indébito. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (org.). Caderno de Pesquisas Tributárias n.º 8. São Paulo: Editora Resenha Tributária, 1983, p. 266.

47 MACHADO, Hugo de Brito. Apresentação e Análise Crítica. In: MACHADO, Hugo de Brito (coord.). Repetição do Indébito e Compensação no Direito Tributário. São Paulo: Dialética; Fortaleza: Instituto Cearense de Estudos Tributários – ICET, 1999, p. 15.

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aplica somente ao ICMS e ao IPI.48 O IPTU é caso que suscita contraposições

doutrinárias. Hugo de Brito Machado refere, quanto ao “IPTU, por exemplo, a

situação do imóvel alugado, na qual muitas vezes o ônus do imposto pode ser

transferido para o inquilino”.49 Embora a doutrina refira que a propriedade de bens é

materialidade suscetível de tributação direta da capacidade contributiva daquele que

a titulariza, nos casos de locação do imóvel, a questão ganha maior complexidade.

Realmente, não fosse bastante a transferência econômica do ônus de

recolher o tributo (repassado do locador ao locatário), existiria no caso, também,

permissão legal para esta translação no art. 25 da Lei n.º 8.245/91.50 Portanto, num

primeiro momento, se poderia inferir a presença do requisito formal segundo o qual

“a lei estabeleça dita transferência”, tendo-se o IPTU, em casos tais, como tributo

juridicamente indireto. Esta, porém, não parece a melhor solução. A rigor, a Lei do

Inquilinato não determina uma transferência legal de encargo, senão que tão-

somente autoriza - havendo estipulação a respeito - o locador a cobrar o montante

de IPTU do locatário, não alterando, portanto, a sujeição passiva do tributo. Há de

ser feita uma diferenciação fundamental: o que a lei faz não é estabelecer a

transferência do encargo financeiro, mas sim permitir que os particulares, por

convenção, ajustem o repasse econômico do montante do imposto, agregando-o no

quantum a ser pago, mensalmente, pelo locatário ao locador, que segue sendo o

devedor.51 A translação é, assim, contratualmente ajustada e não legalmente

estabelecida. Não é a lei, portanto, que “estabelece dita transferência”, mas os

particulares. São brilhantes as palavras do eminente Marco Aurélio Greco:

48 “Juridicamente, somente existem dois impostos ‘indiretos’ por presunção: o imposto sobre produtos

industrializados – IPI – de competência da União, e o imposto sobre operações de circulação de mercadorias e prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação – ICMS – de competência dos Estados. [...] Portanto, a presunção de transferência somente se coloca em relação àqueles impostos, cabendo ao solvens que fez o pagamento indevido, demonstrar que tem legitimidade para pleitear a devolução, por ter suportado o encargo, relativamente ao ICMS e ao IPI. Tem assim o art. 166 aplicação muito restrita, pois juridicamente, apenas esses dois tributos presumem-se ‘indiretos’, ou seja, juridicamente transferíveis.” (BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro, atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 886.)

49 MACHADO, Hugo de Brito. Imposto Indireto, Repetição do Indébito e Imunidade Subjetiva. In: Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, Dialética, n. 2, nov. 1995, p. 33.

50 “Atribuída ao locatário a responsabilidade pelo pagamento dos tributos, encargos e despesas ordinárias de condomínio, o locador poderá cobrar tais verbas juntamente com o aluguel do mês a que se refiram.”

51 “Art. 22. O locador é obrigado a: [...] VII – pagar os impostos e taxas, e ainda o prêmio de seguro complementar contra fogo, que incidam ou venham a incidir sobre o imóvel, salvo disposição expressa em contrário no contrato.”

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De imediato, cabe dizer que este elemento que vincula as duas pessoas referidas (transferidor e quem suporta os efeitos da transferência) decorre da lei tributária e não de uma simples convenção particular, mesmo porque o artigo 123 do CTN é taxativo em excluir essa possibilidade, salvo previsão legal específica a respeito. Quer dizer, não é vontade das partes que determina a transferência a que se refere o art. 166 do CTN, posto que este dispositivo exige que a transferência seja de tributos que, por sua própria natureza, a comportem. A transferência, portanto, é algo que se liga ao tributo em si, e mais, decorre da sua própria natureza. A existência efetiva da transferência depende da possibilidade jurídica da mesma, a qual é dada pela natureza do tributo.52

As espécies tributárias que mais suscitam divergências quanto à aplicação

do art. 166 do CTN são, indiscutivelmente, o Imposto sobre Serviços (“ISS”) e o

Imposto de Importação (“II”). Os casos do ITBI e do IOF são semelhantes, também

gerando polêmicas. Desde já, consigna-se: não havendo caso de responsabilidade

tributária por substituição, nenhum deles está sujeito à comprovação exigida pelo art.

166, embora haja precedentes em sentido contrário, como se passa a expor.

De um modo geral, pode-se verificar, da análise dos referidos tributos, que

seus fatos geradores envolvem uma dualidade de sujeitos, através de – num sentido

lato – operações, ocorrendo um acréscimo financeiro ao valor do bem (ou serviço)

transacionado, referente ao imposto incidente. Destas semelhanças com os tributos

juridicamente indiretos, alguns autores deduzem a sujeição das exações ao

regramento do art. 166 do CTN;53 outros assim não entendem.54 Precisa é a análise

de Francisco Rabello Filho, que, analisando especificamente o tema em pauta, diz:

É necessário arrematar: o imposto sobre serviços de qualquer natureza (ISS) tem feição direta, para ainda uma vez empregar o dito ao gosto da hoje em dia abandonada classificação. Este tributo, induvidosamente, não

52 GRECO, Marco Aurélio. Repetição do Indébito. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (org.). Caderno de Pesquisas Tributárias n.º 8. São Paulo: Editora Resenha Tributária, 1983, p. 280-285.

53 MATTOS, Aroldo Gomes de. Repetição do Indébito, Compensação e Ação Declaratória. In: MACHADO, Hugo de Brito (coord.). Repetição do Indébito e Compensação no Direito Tributário. São Paulo: Dialética; Fortaleza: Instituto Cearense de Estudos Tributários – ICET, 1999, p. 53.

54 “E é esta justamente a hipótese de que se cuida, uma vez que o fato imponível do ISSQN ‘por sua natureza’, ocorre independentemente da dualidade de contribuintes partícipes de uma mesma operação, valendo realçar, ainda, que eventual repercussão indireta do imposto, por meio de suposto acréscimo de preços, é irrelevante sob o aspecto jurídico, situando-se no plano econômico, que não interessa ao direito tributário. Daí por que, no caso específico da repetição de indébito do ISSQN, não há que se falar, em princípio, na aplicação do artigo 166 do CTN.” (KNOEPFELMACHER, Marcelo. O Artigo do CTN e a Repetição do Indébito do ISSQN. In: CEZAROTTI, Guilherme (coord.). Repetição do Indébito Tributário. São Paulo, Quartier Latin, 2005, p. 184-185)

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se inclui entre aqueles (IPI e ICMS) que por sua própria natureza jurídica comportam transferência do respectivo encargo financeiro, na medida em que a lei não determina que o ônus financeiro dessa exação (ISS) seja transferido a terceiro. Pela característica legal desse imposto (ISS), as qualidades de sujeito passivo de fato e sujeito passivo de direito estão concentradas na mesma pessoa, o prestador do serviço (contribuinte). É consideração de matiz exclusivamente econômica, completamente irrelevante no campo da repetição do indébito, a que pretender argumentar com a circunstância de que de fato o prestador do serviço incorpora, no valor deste, o do imposto.55 (grifos do autor)

Como se vê, o autor não vislumbra determinação legal de transferência. A

jurisprudência, por seu turno, parece timidamente se inclinar pela incidência do art.

166 ao ISS, tanto no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul56 quanto

no Superior Tribunal de Justiça.57 Não parece o melhor entendimento. São Marcelo

Magalhães Peixoto e Marcelo de Lima Castro Diniz que brilhantemente explicam a

situação de tributos que, embora incidindo sobre operações, não atraem a incidência

do art. 166:

Convém ressalvar que nem todos tributos incidentes sobre negócios jurídicos apresentam-se como pertencentes à classe dos tributos indiretos. É o caso do imposto sobre transmissão de bens imóveis, cujo sujeito passivo pode ser qualquer das partes na operação tributada como dispuser a lei (art. 42 do CTN). Não se vê aí a figura da pessoa que está fora da relação jurídica tributária (contribuinte de fato), e que não poderia estar por força da competência tributária, mas que a norma jurídica tributária pretende alcançar visando à realização do princípio da capacidade contributiva. É que ambos, alienante e adquirente, revelam capacidade contributiva, e por isso tanto um como outro podem ser postos na condição de sujeito passivo, sem que se possa identificar naquele que foi excluído da relação jurídica tributária a condição de contribuinte de fato, assim considerada a pessoa que, conquanto ausente do vínculo tributário, revela riqueza na ocorrência do fato jurídico tributário. Situação idêntica ocorre com o imposto sobre operações financeiras, cujo sujeito passivo é qualquer das partes na operação tributada, como dispuser a lei (art. 66 do CTN). Também nesse caso, não se identifica a figura do terceiro (contribuinte de fato) integrante do negócio jurídico, mas fora da relação jurídica tributária. Como qualquer das partes na operação financeira revela capacidade contributiva, não se visualiza a figura do contribuinte de fato, assim considerada aquela pessoa que se agrega ao negócio jurídico, mas que não é posta na condição de sujeito passivo da obrigação tributária. No ITBI e no IOF, conquanto suas hipóteses tributárias tenham por objeto negócios jurídicos, é impossível a repercussão jurídica do encargo financeiro, pois não se identifica terceiro,

55 RABELLO FILHO, Francisco Pinto. Consideração do ISS Como Imposto Direto ou Indireto, para

efeito de Repetição do Indébito Tributário: breve revisitação do tema. In: Revista Tributária e de Finanças Públicas, n. 55, mar.-abr. 2004. Revista dos Tribunais : São Paulo, 2004, p. 156-157.

56 “Segundo a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, o disposto no artigo 166 do CTN aplica-se ao ISS nas hipóteses em que o encargo financeiro é suportado por terceiro. Sendo esse o caso da locação de bens móveis, na ação de repetição do indébito do tributo pago indevidamente, é necessária (I) a comprovação de que não houve repercussão do tributo ou (II) a autorização do contribuinte de fato.” (TJRS, Apelação e Reexame Necessário n.º 70014574180. Porto Alegre, 13 de abril de 2006.)

57 STJ, AgRg no AI 692.583/RJ. Relatora: Ministra Denise Arruda. Brasília, 11 de outubro de 2005.

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alheio à relação jurídica (isto é, o contribuinte de fato), para quem possa ser transferido o ônus do tributo. O Supremo Tribunal Federal decidiu que o IOF não configura tributo cuja natureza comporta o repasse do encargo financeiro [...] Enfim, o art. 166 do CTN se aplica aos tributos cuja hipótese tributária consiste num negócio jurídico em que um dos sujeitos não pode ser posto na qualidade de sujeito passivo, mas revela capacidade contributiva. Mas é necessário mais que isso: como veremos é preciso que haja regra jurídica prevendo o repasse do encargo financeiro do tributo para o terceiro fora da relação jurídica tributária.58 (grifos dos autores)

De fato: o contribuinte efetivo, em tais casos, integra, como partícipe, a

operação, diferentemente do que se vislumbra no ICMS e no IPI. Qualquer dos

envolvidos – tomador ou prestador do serviço, financiador ou financiado, adquirente

ou cedente do imóvel – revela capacidade contributiva atingível pela norma. O

contribuinte efetivo, portanto, não é um terceiro em relação à operação, para o qual

o encargo seria transferido. E, se há um acréscimo do valor do tributo no preço

praticado, isso nada mais reflete do que o fenômeno da repercussão meramente

econômica da carga tributária, que, como visto, é irrelevante para o efeito de atrair

ou afastar a incidência do art. 166 do CTN, já que ocorre (ou tende a ocorrer) em

todos os tributos.59 Por fim, cabe referir que o destaque de ISS na nota fiscal é

obrigação meramente acessória, que, por si só, não tem o condão de tornar indireto

um tributo que diretamente atinge a capacidade contributiva de seu contribuinte.

O IOF, por seu turno, também não está submetido ao regramento do art.

166.60 Quanto ao Imposto de Importação, não procede o argumento de que seu

valor é repassado ao adquirente dos produtos importados, transferindo-se o encargo

financeiro do importador ao adquirente. Isso porque tal repercussão é estritamente

58 PEIXOTO, Marcelo Magalhães; DINIZ, Marcelo de Lima Castro. A Regra do Artigo 166 do Código

Tributário Nacional e a sua Aplicação à Cofins – não-cumulativa e ao PIS não-cumulativo. In: CEZAROTTI, Guilherme (coord.). Repetição do Indébito Tributário. São Paulo, Quartier Latin, 2005, p. 305-306.

59 “Em relação ao ITBI, a lei diz que o sujeito passivo é o vendedor. Na contratação, este transfere o encargo ao comprador. Meses depois, verifica que recolheu a maior, e repete o excesso. E como fica o comprador? Não houve enriquecimento sem causa. O que houve foi assunção do ônus daquilo que se supunha devido. Não há enriquecimento sem causa de uma obrigação contratual cumprida!” (CASSONE, Vittorio. Relatório da Conferência Inaugural. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (org.). Caderno de Pesquisas Tributárias n.º 9. São Paulo: Editora Resenha Tributária, 1984, p. 16.)

60 “O IOF funciona para o importador como o Imposto de Renda na Fonte ou como qualquer tributo direto, que venha a incidir sobre suas atividades, mas, uma vez arrecadado, esgota-se, como o próprio imposto de renda, sendo sua eventual repercussão apenas indireta sem qualquer relação de dualidade pessoal. [...] À evidência, o IOF não se assemelha ao IPI e o ICM na caracterização de hipótese expressa de repercussão direta.” (MARTINS, Ives Gandra da Silva. Repetição do Indébito. In: CEZAROTTI, Guilherme (coord.). Repetição do Indébito Tributário. São Paulo, Quartier Latin, 2005, p. 47)

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econômica. Veja-se: caso o importador, futuramente, decidisse não revender a

mercadoria, incorporando-a definitivamente a seu ativo permanente, o imposto se

tornaria direto. Ora, é evidente que não se pode pretender classificar o imposto com

base na destinação que o importador decidirá dar aos produtos onerados num futuro

próximo ou remoto (momento esse em que a relação jurídico-tributária, há muito

tempo, já teria sido extinta). José Mörschbächer assim não entende, sustentando

que tal tributo será direto ou indireto conforme a destinação que o importador dê ao

bem onerado.61 Sem razão o mestre.62

As contribuições sociais patronais sobre folha de salários não estão sujeitas,

para serem repetidas, às restrições do art. 166. Tais contribuições são tributos

eminentemente diretos, cujo montante não pode ser transferido a terceiro senão

indireta e economicamente. Contudo, há questões a serem enfrentadas, pois o

legislador, ao modificar a redação da Lei n.º 8.212/91, por meio da Lei n.º 9.032/95,63

criou um art. 166 do CTN “turbinado”, que efetivamente juridicizou o critério da

repercussão econômica, determinando que qualquer tributo que fosse embutido, de

alguma forma, como custo dos produtos ou serviços do contribuinte, não poderia ser

repetido sem a comprovação da não-repercussão. Tal artigo consiste numa

aberrante violação ao princípio da legalidade tributária, pois impede a repetição de

indébito em qualquer caso, já que a prova da repercussão meramente econômica é

“diabólica”. Tratou o dispositivo, pois, de garantir ao Estado o produto de seu ilícito –

a tributação indevida -, num verdadeiro confisco sem direito a restituição.64 E, se o

61 MÖRSCHBÄCHER, José. Repetição do Indébito Tributário Indireto. 3. ed. São Paulo : Dialética,

1998, p. 36. 62 “O E. STJ já pacificou o entendimento de que o artigo 166 do CTN tem aplicação ao tributo indireto.

Para checar tal qualidade, o intérprete deve analisar a natureza da exação, verificando se ela permite a transferência do respectivo encargo financeiro. 2. A doutrina é unânime em indicar como paradigmas de tributos indiretos o IPI e o ICMS, não se referindo ao Imposto sobre a Importação. Tal tributo reúne, num único sujeito, o contribuinte de fato e de direito. Não há mecanismo jurídico para repasse do encargo financeiro do importador a terceiro. Assim, ele é um imposto direto e inaplicável à espécie é o artigo 166 do CTN.” (TRF4, AMS 2003.70.00.040557-0. Relator: Desembargador Federal Dirceu de Almeida Soares. Porto Alegre, 7 de dezembro de 2004.)

63 “Art. 89. Somente poderá ser restituída ou compensada contribuição para a Seguridade Social arrecadada pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) na hipótese de pagamento ou recolhimento indevido. § 1º Admitir-se-á apenas a restituição ou a compensação de contribuição a cargo da empresa, recolhida ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), que, por sua natureza, não tenha sido transferida ao custo de bem ou serviço oferecido à sociedade.”

64 “Havendo valores desembolsados a maior, existirá direito ao pronto ressarcimento do contribuinte (seja através da devolução do indébito, seja através da compensação), sob pena de agressão ao art. 150, IV, valendo notar que, no caso sequer tratar-se-á de ‘efeito de confisco’, mas de confisco propriamente dito, na medida em que, em tais casos, a tributação estará a destoar da materialidade constitucional ou da hipótese legal de incidência, recaindo sobre atos ou fatos que

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art. 166 do CTN não é inconstitucional justamente por apenas impor a perquirição da

titularidade do direito de ser ressarcido da tributação ilegal, não limitando o direito

constitucional à repetição do indébito, o mesmo não se pode dizer quanto ao art. 89,

§ 1.º, em pauta, que não apenas restringe como efetivamente suprime tal direito. Eis

por que razão recebeu tão duras críticas da doutrina nacional.65 Inobstante uma

inicial aceitação da jurisprudência,66 logo sua aplicação foi rechaçada pelos tribunais

pátrios.67

Outras espécies tributárias interessantes relativamente à aplicabilidade do

art. 166 são o PIS e a COFINS “não-cumulativos”, instituídos após o advento da

Emenda Constitucional n.º 42.68 Tendo o PIS e a COFINS se tornado não-

cumulativos, assim como o IPI e o ICMS, tributos inegavelmente sujeitos à incidência

do art. 166 do CTN, surgiram novas divergências doutrinárias quanto à submissão

de tais tributos ao disposto no referido artigo. Roberto Ferraz afirmou que a não-

cumulatividade faz da “COFINS e do PIS tributos que por sua natureza comportam

transferência do encargo financeiro do tributo como previsto no art. 166 do CTN, isto

é, transforma-os em típicos tributos sobre o consumo”.69 Como se percebe, ignorou

não autorizam o ataque ao patrimônio do contribuinte; a quantia tomada, portanto, não terá a natureza de tributo, mas representará, pura e simplesmente, uma expropriação não indenizada.” (GOLDSCHMIDT, Fabio Brun. O Princípio do Não-Confisco no Direito Tributário. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 250)

65 “[...] não é lícito, todavia, ao legislador ordinário, e muitíssimo menos ao Poder Judiciário, guardião da ordem jurídica, pena de cometimento de abominável abuso de direito, forçar o alargamento da abrangência do artigo 166 do CTN às incidências tributárias diretas; fazendo-o, estarão transformando em exceção a regra geral contida no artigo 165 do Código, a dizer que o tributo indevido deve ser restituído ao sujeito passivo da obrigação tributária, interpretando às avessas o artigo 166 do CTN, além de ferir os princípios constitucionais que garantem o direito de propriedade e condenam o confisco.” (MÖRSCHBÄCHER, José. Repetição do Indébito Tributário e Compensação. In: MACHADO, Hugo de Brito (coord.). Repetição do Indébito e Compensação no Direito Tributário. São Paulo: Dialética; Fortaleza: Instituto Cearense de Estudos Tributários – ICET, 1999, p. 257.)

66 STJ, RESP 140.723/RS. Relator: Ministro Ari Pargendler. Brasília, 16 de setembro de 1997. 67 “Pacificou-se nesta Corte o entendimento segundo o qual, por ser tratar de tributo de natureza

direta, não há necessidade de comprovação da não-repercussão financeira das contribuições previdenciárias. Precedentes.” STJ, RESP 362.494/PR. Relator: Ministro Castro Meira. Brasília, 22 de junho de 2004.

68 “Art. 195. A Seguridade Social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: I – do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre: [...] b) a receita ou o faturamento [...] IV – do importador de bens ou serviços do exterior, ou de quem a lei a ele equiparar [...] § 12. A lei definirá os setores de atividade econômica para os quais as contribuições incidentes na forma dos incisos I, b; e IV do caput, serão não-cumulativas.”

69 FERRAZ, Roberto. Não-cumulatividade do PIS/PASEP e da COFINS. São Paulo: IOB, 2004, apud ÁVILA, René Bergmann; PORTO, Éderson Garin. COFINS. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2005, p. 145. Grifos do autor.

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o mestre que: a) a não-cumulatividade não integra a essência dos tributos

juridicamente indiretos, podendo estar ou não presente, sem que com isso a exação

passe a (ou deixe de) ser indireta;70 que b) nem toda a tributação sobre o consumo

tem de ser indireta; e que c) no caso, a não-cumulatividade não tornou o consumo o

alvo da tributação, que segue constituído por faturamento ou receita.71

De fato: a não-cumulatividade existente no PIS e na COFINS atua de modo

diverso do que no IPI e no ICMS. Nestes, funciona como técnica de desoneração da

cadeia produtiva que busca realizar uma tributação sobre valor agregado (num

sentido estritamente econômico, e não jurídico),72 a ser suportada, ao final, pelo

contribuinte de fato (o consumidor). Busca-se, portanto, construir juridicamente uma

incidência tributária que atinja a capacidade contributiva do adquirente dos produtos

onerados. Já no PIS e na COFINS, a tributação, mesmo que não-cumulativa, não

deixa de visar à capacidade contributiva do contribuinte de direito, até porque

faturamento e receita não são materialidades suscetíveis de sofrer uma tributação

indireta (senão por meio de substituição tributária). Tributos que sobre elas incidam

inevitavelmente atingirão diretamente a capacidade contributiva daquele que as

70 “É que a capacidade contributiva que é alvo das contribuições é daqueles que auferem receita e

não dos consumidores. Não há que se falar em contribuinte de direito e de fato nas contribuições incidentes sobre a receita que se caracterizam, por isto mesmo, como tributos diretos.” (MANEIRA, Eduardo. Considerações sobre ao art. 166 do CTN e a não-cumulatividade das contribuições ao PIS e à COFINS. In: Revista Dialética de Direito Tributário, n. 124, jan. 2006. São Paulo: Dialética, 2006, p. 45)

71 “Mas, como veremos, a aplicação da não-cumulatividade para as citadas contribuições é incapaz de conferir o caráter de tributo indireto para a COFINS e o PIS. A regra da não-cumulatividade não integra a natureza do tributo, uma vez que está fora da regra-matriz de incidência tributária. Ademais, a não-cumulatividade não confere, por si só, o caráter de tributo indireto à COFINS e ao PIS; como vimos, tributo indireto é aquele incidente sobre negócios jurídicos nos quais, por força de lei, ocorre o repasse do encargo financeiro do tributo ao ‘contribuinte de fato’. Logo, não constitui fundamento hábil para que se admita a incidência da norma prevista pelo art. 166 do CTN. [...] Conquanto seja admissível a transferência dos ônus tributários (isto é, de qualquer tributo) aos preços dos produtos, mercadorias e serviços, é importante ressalvar que, em matéria de restituição, o art. 166 do CTN, por se aplicar exclusivamente a tributos incidentes sobre negócios jurídicos que visam à tributação do ‘contribuinte de fato’ e cuja legislação prevê a repercussão jurídica, não se aplica a tributos que não tenham essas características, como é o caso da COFINS e do PIS.” (PEIXOTO, Marcelo Magalhães; DINIZ, Marcelo de Lima Castro. A Regra do Artigo 166 do Código Tributário Nacional e a sua Aplicação à Cofins – não-cumulativa e ao PIS não-cumulativo. In: CEZAROTTI, Guilherme (coord.). Repetição do Indébito Tributário. São Paulo, Quartier Latin, 2005, p. 318.)

72 “É por esse motivo que dizemos que uma das hipóteses de incidência do ICMS é ‘realizar operações relativas à circulação de mercadorias’ (e, não, ‘realizar operações, com lucro, relativas à circulação de mercadorias’). Vai daí que, juridicamente, o ICMS não é um imposto sobre o valor agregado.” (CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 10. ed., rev. e ampl., até a EC 45/2004 de acordo com a Lei Complementar 87/1996, com suas ulteriores modificações. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 295-296)

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aufere. Assim, o que ocorre no caso é uma desoneração da cadeia produtiva

(desconsiderando-se que a alíquota é maior para a modalidade não-cumulativa),

que, contudo, não tem por objetivo tributar signos presuntivos de riqueza de um

terceiro (o contribuinte de fato), mas sim do próprio sujeito passivo (o contribuinte de

direito). Por essas razões, valores indevidamente recolhidos a título de PIS e

COFINS não-cumulativos não estão sujeitos, para serem repetidos, à comprovação

de que trata o art. 166 do CTN.

Estudadas as espécies tributárias que, por si só, implicam transferência de

encargo financeiro, cabe analisar a outra hipótese que, de per si, atrai a incidência

do art. 166 do CTN. Trata-se da responsabilidade tributária por substituição (ou

substituição tributária), modalidade de sujeição passiva que consubstancia previsão

legal de transferência do encargo, em que o devedor do tributo passa a ser

personalidade jurídica diversa daquela que, por força da regra-matriz de incidência

da exação, deve suportá-la. José Mörschbächer percebeu a hipótese com nitidez:

“se encontram submetidas ao regramento do art. 166 do Código, não apenas os

tributos indiretos [...] mas também outra qualquer incidência tributária indireta que

possa estar inserida em tributo tipicamente direto."73 Para Hugo de Brito Machado,

“existe substituto legal tributário toda vez que a lei coloca como sujeito passivo da

relação tributária uma pessoa qualquer diversa daquela de cuja capacidade

contributiva o fato tributável é indicador”.74 No caso, a lei fiscal - por razões de

“praticidade, segurança, economicidade e aceleração nos procedimentos de

arrecadação e de fiscalização, redução dos casos de sonegação e efetividade de

justiça fiscal”75 - elege como sujeito passivo da obrigação tributária pessoa diversa

do contribuinte efetivo do tributo. O regime jurídico aplicável deve ser sempre o do

contribuinte substituído: isenções ou imunidades subjetivas deste alcançam a

obrigação do substituto, para afastá-la; a lei aplicável é a vigente ao tempo do

surgimento da obrigação tributária substituída e “a carga do tributo não deve ser

73 MÖRSCHBÄCHER, José. Repetição de Indébito Tributário e Compensação. In: MACHADO, Hugo

de Brito (coord.). Repetição do Indébito e Compensação no Direito Tributário. São Paulo: Dialética; Fortaleza: Instituto Cearense de Estudos Tributários – ICET, 1999, p. 255.

74 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 26. ed. rev. atual. e ampl.. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 152.

75 TORRES, Heleno Taveira. Substituição Tributária – Regime Constitucional, Classificação e Relações Jurídicas (Materiais e Processuais). In: Revista Dialética de Direito Tributário, n. 70, jul. 2001. São Paulo: Dialética, 2001, p. 91.

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suportada pelo terceiro responsável.”76 Portanto, trata-se a substituição tributária de

uma hipótese legal de transferência do encargo financeiro do tributo.77 Bom exemplo

é o da contribuição previdenciária do empregado, que, pela substituição, deve ser

recolhida pelo empregador. Em caso de suposto pagamento indevido, o empregador

– que recolheu os valores - só poderá ser restituído se comprovar que,

excepcionalmente, suportou o encargo financeiro da tributação tida por ilegal. Isso

porque, no caso, a presunção é a de que o empregado, que teve seu salário

descontado da contribuição pretensamente ilegítima, seja quem efetivamente sofreu

o prejuízo e, portanto, seja quem deve ser indenizado.78

Vistos os casos que atraem a incidência do art. 166 – tributos indiretos (IPI e

ICMS) e incidências indiretas de tributos diretos (responsabilidade tributária por

substituição) -, passa-se a analisar situações – pode-se dizer - conexas à repetição

de indébito, buscando-se determinar se também elas implicariam tal incidência. A

primeira questão diz com a compensação. Parte da doutrina sustenta que ela não

atrairia a necessidade de prova de não-repercussão ou de autorização, posto a

literalidade do art. 166 referir-se tão-somente à restituição,79 e não à

compensação.80 Para José Mörschbächer, “esta exceção constante do artigo 166 ao

amplo e geral direito de restituição conferido ao sujeito passivo se aplica, também, à

compensação.”81 Estabelecida a polêmica, cabe analisar-se se as diferenças entre

76 TORRES, Heleno Taveira. Substituição Tributária – Regime Constitucional, Classificação e

Relações Jurídicas (Materiais e Processuais). In: Revista Dialética de Direito Tributário, n. 70, jul. 2001. São Paulo: Dialética, 2001, p. 96.

77 GONÇALVES, José Artur Lima; MARQUES, Márcio Severo. O Direito à Restituição do Indébito Tributário. In: MACHADO, Hugo de Brito (coord.). Repetição do Indébito e Compensação no Direito Tributário. São Paulo: Dialética; Fortaleza: Instituto Cearense de Estudos Tributários – ICET, 1999, p. 207.

78 MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito; RAMOS, Paulo de Tarso Vieira. Repetição de Indébito Tributário e Compensação. In: MACHADO, Hugo de Brito (coord.). Repetição do Indébito e Compensação no Direito Tributário. São Paulo: Dialética; Fortaleza: Instituto Cearense de Estudos Tributários – ICET, 1999, p. 148.

79 “A restituição de tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro somente será feita a quem prove haver assumido referido encargo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por este expressamente autorizado a recebê-la.”

80 “É importante ressaltar que o direito de compensar é distinto do direito à restituição do que tenha sido pago indevidamente. Nasce de suporte fático diverso, no qual, além da situação de credor de tributo pago indevidamente, está o fato de ser devedor de tributo atual. Tratando-se de direito diverso, a ele não se aplica a restrição do art. 166 do CTN, até porque as normas restritivas não podem ser interpretadas ampliativamente.” (MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 26. ed. rev. atual. e ampl.. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 208-209.)

81 MÖRSCHBÄCHER, José. Repetição do Indébito Tributário e Compensação. In: MACHADO, Hugo de Brito (coord.). Repetição do Indébito e Compensação no Direito Tributário. São Paulo: Dialética; Fortaleza: Instituto Cearense de Estudos Tributários – ICET, 1999, p. 272.

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os institutos justificam um diferente tratamento quanto à exigência de prova de

prejuízo ou de autorização do prejudicado. Ora, são a restituição in pecunia e a

compensação espécies de um mesmo gênero: o ressarcimento.82 O contribuinte,

tendo débitos vincendos e créditos vencidos perante o Estado-sujeito ativo, pode –

nos termos de lei – ressarcir-se destes compensando-os com aqueles, evitando,

quando possível, a vagarosa via dos precatórios e o solve et repete.

Dessa forma, percebe-se que a tese do eminente professor Hugo de Brito

Machado contraria, em prol de uma interpretação restritiva, o louvável fundamento

da vedação ao enriquecimento sem causa. Se não sofreu qualquer prejuízo com a

tributação indevida, o contribuinte de direito não tem crédito algum a ser oposto ao

Estado; assim, não pode manejar formas de ressarcir-se de um dano que não

sofreu.83 Da mesma forma como não pode repetir em pecúnia, não pode, também,

compensar.84 Falta-lhe a causa jurídica para fazê-los, que, no caso, é a mesma: a

existência de um prejuízo efetivo a ser ressarcido. Sem razão, portanto, o eminente

professor. Está-se diante de um caso de regra “subincludente” relativamente à sua

justificativa substantiva subjacente (a vedação ao enriquecimento sem causa),

sendo, como tal, “derrotável” pelo princípio da razoabilidade.85 A jurisprudência

pátria, no ponto, bem interpretou o tema, estando o Egrégio Superior Tribunal de

Justiça convencido da aplicabilidade do art. 166 aos casos de compensação.86

82 TROIANELLI, Gabriel Lacerda. Repetição do Indébito, Compensação e ação Declaratória. In:

MACHADO, Hugo de Brito (coord.). Repetição do Indébito e Compensação no Direito Tributário. São Paulo: Dialética; Fortaleza: Instituto Cearense de Estudos Tributários – ICET, 1999, p. 125.

83 Trata-se de um caso nítido daquilo que Humberto Ávila chama de “under inclusiveness”: “Como os dispositivos hipoteticamente construídos são resultado de generalizações feitas pelo legislador, mesmo a mais precisa formulação é potencialmente imprecisa, na medida em que podem surgir situações inicialmente não previstas [...] É precisamente em decorrência das generalizações que alguns casos deixam de ser mencionados (under inclusiveness) e outros são mal-incluídos (over inclusiveness) [...] Nesses casos, o aplicador [...] deverá avaliar a razão justificativa da regra para decidir pela sua incidência”. (ÁVILA. Humberto Bergmann. Teoria dos Princípios. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 57)

84 “Como a compensação tributária é, também, uma forma alternativa de restituição do indébito tributário, estou que a regra do art. 166 da Lei n.º 5.172/66 a ela se aplica.” (SARAIVA FILHO, Oswaldo Othon de Pontes. Repetição do Indébito Tributário e Compensação. In: MACHADO, Hugo de Brito (coord.). Repetição do Indébito e Compensação no Direito Tributário. São Paulo: Dialética; Fortaleza: Instituto Cearense de Estudos Tributários – ICET, 1999, p. 286)

85 SHAUER, Frederick. Las Reglas en Juego: un examen filosófico de a toma de decisiones basada en reglas en el derecho y en la vida cotidiana. Tradução: ORUNESU, Claudina; RODRÍGUEZ, Jorge. Madrid: Marcial Pons, 2004, pp. 154 e ss.

86 STJ, RESP 710.240/SC. Relatora: Ministra Eliana Calmon. Brasília, 06 de outubro de 2005.

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No plano teórico, indubitavelmente é a legitimidade ativa para a propositura

da ação de repetição de indébito, nos casos em que incide o art. 166 do CTN, a

questão que suscita as maiores e mais complexas divergências doutrinárias e

jurisprudenciais.87 A este ponto do trabalho, sabe-se ser inequívoco que, não

havendo o repasse do quantum, aquele que o tiver suportado, provando, fará jus à

repetição. Mas e tendo havido? Como fica a questão?

Existem duas grandes correntes de juristas: a) a dos que entendem não

haver direito à restituição, pois aquele que suportou o ônus, por não ter mantido

qualquer pré-existente relação jurídico-tributária com o sujeito ativo, pagando ao

contribuinte de jure preço e não tributo, não ostentaria legítimo interesse para

exercer tal pretensão, sendo – enquanto contribuinte de fato – figura estranha ao

direito tributário; e b) a dos que entendem restar o contribuinte de fato legitimado à

propositura do pleito repetitório, pois seria quem efetivamente suporta o encargo,

ostentando a posição de contribuinte real do tributo indireto.

Na doutrina, a polêmica pode ser demonstrada com a mudança de

entendimento de Hugo de Brito Machado, para quem “o terceiro, que tenha

suportado o encargo financeiro do tributo indevidamente pago, não é parte legítima

para pedir a restituição”.88 Em obras anteriores, porém, afirmou em sentido diverso,

(aliás, antagônico).89 A questão da legitimidade ativa está intrinsecamente imbricada

com o que dispõe o Código de Processo Civil, em seus arts. 3.º e 6.º, segundo os

quais não se pode defender em juízo direito alheio, salvo expressa permissão

legal.90 Como a lei presume que, em se tratando de tributos juridicamente indiretos,

quem sofre o ônus de uma tributação indevida é o contribuinte de fato, o contribuinte

de jure, para questioná-la, haveria de demonstrar a existência prejuízo para si, na

87 RODRIGUES, Walter Piva. A Regularidade da Legitimação do Contribuinte no Ajuizamento da

Ação de Repetição do Indébito Fiscal. In: CEZAROTTI, Guilherme (coord.). Repetição do Indébito Tributário. São Paulo, Quartier Latin, 2005, p. 95.

88 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 26. ed. rev. atual. e ampl.. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 208.

89 MACHADO, Hugo de Brito. Apresentação e Análise Crítica. In: MACHADO, Hugo de Brito (coord.). Repetição do Indébito e Compensação no Direito Tributário. São Paulo: Dialética; Fortaleza: Instituto Cearense de Estudos Tributários – ICET, 1999, p. 16-17.

90 “Art. 3o Para propor ou contestar ação é necessário ter interesse e legitimidade. [...] Art. 6o Ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei.” (BRASIL. Lei n.º 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Institui o Código de Processo Civil. Diário Oficial da República

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falta do qual estaria a defender em juízo direito do contribuinte de factum – o

presumidamente prejudicado – sem, entretanto, possuir autorização legal para fazê-

lo. Daí a extinção de diversos processos envolvendo o tema sem resolução de

mérito.

Num primeiro momento, percebe-se que, por coerência, para aqueles (os

adeptos da teoria de Brandão Machado) que defendem ser irrelevante o prejuízo –

bem como a transferência jurídica do encargo – para legitimar ou deslegitimar a

propositura de uma ação de repetição de indébito, jamais o contribuinte de fato

estaria legitimado, eis que parte legítima seria, sempre, o contribuinte de direito.91 Já

José Eduardo Soares de Melo, coerente com seu entendimento de que o art. 166

não se aplica quando o contribuinte de fato não é identificável, afirma que os

adquirentes de bens e serviços “não possuem nenhuma legitimidade tributária para

postular o respectivo ressarcimento junto aos cofres públicos”, salientando que, “na

guia de recolhimento (que não possuem) não consta sua identificação”.92

Percebe-se, pois, que, para o eminente professor, sendo identificável o

contribuinte de fato, cabe-lhe autorizar o contribuinte de direito; não sendo, deverá o

este ser restituído sem necessidade de comprovação de assunção do ônus da

tributação indevida. Conclui-se, portanto, que para Soares de Melo é mais

importante o Estado não ficar com o produto da tributação ilegal do que o particular

enriquecer sem causa jurídica, sendo restituído de prejuízo inexistente. Mas a maior

incongruência neste entendimento consiste em obrigatoriamente se reconhecer uma

figura que Ives Gandra da Silva Martins designou de contribuinte “castrado”:93 pode

autorizar a repetição, mas não repetir por si próprio; ou seja, pode autorizar o

exercício de direito que não pode exercer. Sim, pois, nessa teoria, sendo

Federativa do Brasil. Brasília, DF, 17 de janeiro de 1973. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccil_03/LEIS/L5869.htm>. Acesso em: 06 out. 2006)

91 RODRIGUES, Walter Piva. A Regularidade da Legitimação do Contribuinte no Ajuizamento da Ação de Repetição do Indébito Fiscal. In: CEZAROTTI, Guilherme (coord.). Repetição do Indébito Tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 91.

92 MELO, José Eduardo Soares de. Repetição do Indébito e Compensação. In: MACHADO, Hugo de Brito (coord.). Repetição do Indébito e Compensação no Direito Tributário. São Paulo: Dialética; Fortaleza: Instituto Cearense de Estudos Tributários – ICET, 1999, p. 237.

93 MARTINS, Ives Gandra da Silva. Repetição do Indébito. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (org.). Caderno de Pesquisas Tributárias n.º 8. São Paulo: Editora Resenha Tributária, 1983, p. 161.

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identificável o contribuinte de fato, ainda assim ele não poderá, por si só, repetir,

podendo, no máximo, autorizar a repetição pelo contribuinte de jure.

Por outro lado, a corrente favorável à legitimidade do contribuinte de fato

tem, também, fortes argumentos. Para José Mörschbächer, é um imperativo lógico

que, ao se denegar legitimidade ao contribuinte de direito - sob o argumento de não

ter sido ele (mas sim um terceiro) quem efetivamente suportou o tributo indevido –

correlativamente se reconheça a legitimidade do contribuinte de fato,94 que, afinal,

experimentou o prejuízo legitimante, eis que “negar-se a restituição de tributo

indevido ao sujeito passivo, porque não é ele parte legítima, significa, contrario

sensu, afirmar que outrem é a parte legítima, que é necessariamente o contribuinte

de fato”.95 Para Aroldo Gomes de Mattos,96 se o que permite a compatibilidade entre

o art. 166 e a Constituição Federal é justamente se o interpretar de modo que ele

não se constitua num entrave ao direito constitucional de repetir o indébito tributário,

um entendimento que sustentasse não haver, em se tratando de tributos indiretos e

repercutidos, direito à restituição, fatalmente implicaria não limitação, mas sim

efetiva supressão do referido direito por lei infraconstitucional, o que seria

juridicamente inadmissível.97 Realmente, se o art. 166 não elimina o direito de o

cidadão pagar somente o que a lei determina - haja vista que apenas impõe uma

perquirição acerca da titularidade do direito de reaver o montante indevidamente

exigido -,98 entendê-lo como uma proibição absoluta da repetição no caso dos

94 MÖRSCHBÄCHER, José. Repetição do Indébito Tributário e Compensação. In: MACHADO, Hugo

de Brito (coord.). Repetição do Indébito e Compensação no Direito Tributário. São Paulo: Dialética; Fortaleza: Instituto Cearense de Estudos Tributários – ICET, 1999, p. 258.

95 MÖRSCHBÄCHER, José. Repetição do Indébito Tributário e Compensação. In: MACHADO, Hugo de Brito (coord.). Repetição do Indébito e Compensação no Direito Tributário. São Paulo: Dialética; Fortaleza: Instituto Cearense de Estudos Tributários – ICET, 1999, p. 258.

96 “Donde se conclui que a única forma de compatibilizar o referido art. 166 com os preceitos constitucionais acima aludidos principalmente com aquele que obriga o Estado a repor o que recebeu indevidamente, é o de também atribuir ao contribuinte de fato (o ‘terceiro’, que é o comprador da mercadoria), no lugar do contribuinte de direito (o sujeito passivo) a titularidade ativa para promover a restituição do indébito, já que ambos estão ‘imediata e diretamente ligados pela respectiva obrigação tributária’.” (MATTOS, Aroldo Gomes de. Repetição do Indébito, Compensação e Ação Declaratória. In: MACHADO, Hugo de Brito (coord.). Repetição do Indébito e Compensação no Direito Tributário. São Paulo: Dialética; Fortaleza: Instituto Cearense de Estudos Tributários – ICET, 1999, p. 51)

97 MACHADO, Hugo de Brito. Apresentação e Análise Crítica. In: MACHADO, Hugo de Brito (coord.). Repetição do Indébito e Compensação no Direito Tributário. São Paulo: Dialética; Fortaleza: Instituto Cearense de Estudos Tributários – ICET, 1999, p. 11.

98 OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Repetição do Indébito, Compensação e Ação Declaratória. In: MACHADO, Hugo de Brito (coord.). Repetição do Indébito e Compensação no Direito

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tributos indiretos e repercutidos seria, de fato, um óbice intransponível a tal direito; e,

assim, uma inconstitucionalidade patente.

O contribuinte de fato, portanto, é parte legítima para pleitear a repetição

de indébito, por força de uma relação jurídica – nova e diversa da relação jurídico-

tributária pré-existente e originária do recolhimento indevido99 - que surge por força

de um enriquecimento sem causa do sujeito ativo da obrigação tributária, em

detrimento do contribuinte de fato, que a suporta jurídica e economicamente.

Interpretar o art. 166 em sentido contrário implicaria necessariamente vedar a

repetição por completo para tributos juridicamente indiretos e repercutidos, em

inconstitucional supressão, por lei infraconstitucional, do direito constitucional de

pagar somente o que a lei manda (art. 150, inciso I, CF/88), dando-se, por outro

lado, “carta branca” ao Estado para instituir exigências ilegais a título de tributos

indiretos, sem que possam os cidadãos lhe opor qualquer escudo a essa

imposição.100

Ainda que sempre se mostrem pertinentes as advertências de Alfredo

Augusto Becker, quanto aos equívocos em que incidem tanto os juristas que migram

à Economia quanto os economistas que migram ao Direito, numa confusão a gerar

um “Direito Tributário Invertebrado”,101 cabe aqui assinalar: a prova de não-

repercussão a ser produzida pelo contribuinte de direito é essencialmente

econômica. E, a rigor, nisso não há qualquer incompatibilidade com o que anotou

Becker, pois o que ele temia era a interpretação extensiva de tipos tributários – para

abrangerem fatos produtores de efeitos economicamente semelhantes – de modo

Tributário. São Paulo: Dialética; Fortaleza: Instituto Cearense de Estudos Tributários – ICET, 1999, p. 361.

99 MÖRSCHBÄCHER, José. Repetição do Indébito Tributário Indireto. 3. ed. São Paulo : Dialética, 1998, p. 48.

100 “Tem, entretanto, o sujeito passivo um escudo. Não podendo manejar a espada da imposição, pode opor-lhe o escudo da legalidade. A imposição só pode existir se feita nos estritos limites da lei. Sem flexibilidade hermenêutica. Sem maleabilidade exegética. Sem elasticidade interpretativa.” (MARTINS, Ives Gandra da Silva. Repetição do Indébito. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (org.). Caderno de Pesquisas Tributárias n.º 8. São Paulo: Editora Resenha Tributária, 1983, p. 157)

101 BECKER, Alfredo Augusto. Carnaval Tributário. 2. ed. São Paulo : Lejus, 1999, p. 147.

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28

que realidades economicamente próximas fossem tributadas pela similitude (ou

proximidade)102 - e não pela subsunção - à regra-matriz de incidência tributária.103

No art. 166 do CTN, no entanto, o que se tem é a própria norma jurídica

determinando a aferição da assunção do ônus da tributação indireta, a ser

comprovada, via de regra, economicamente.104 O contribuinte de direito, para

legitimar-se, deverá, portanto, comprovar a inexistência da transferência do encargo

financeiro ao contribuinte de fato, seja porque sequer juridicamente houve a

transferência, seja porque, juridicamente ocorrida a translação, economicamente a

suportou, já que, conforme percebeu o próprio Becker, “esta repercussão econômica

pode ocorrer apenas parcialmente ou até não se realizar, embora no plano jurídico

tenha se efetivado”.105 Num caso, a prova será predominantemente jurídica; noutro,

predominantemente econômica.

Superada a questão preliminar referente à natureza da prova de não-

repercussão a ser produzida – se econômica ou jurídica -, cabe analisar os meios de

produzi-la. De um modo geral, pode-se dizer que a manutenção dos preços habituais

praticados pelo contribuinte de direito antes da instituição (ou majoração) indevida

do tributo, por si só, certifica a assunção do encargo, já que a não-inclusão do

quantum ilegal no preço de venda dos produtos afasta a presunção relativa de

repercussão. Tal manutenção é comprovada com facilidade pelo tabelamento oficial

do preço do produto, caso em que o contribuinte de direito, por força de norma

cogente, se vê proibido de repassar o aumento aos adquirentes de seus produtos. O

tabelamento, contudo, não comprova o não-repasse se, antes da instituição ou

majoração ilegítima, o preço praticado for inferior ao tabelado, pois, assim sendo, o

tabelamento não atua como fator impeditivo do aumento de preços.

102 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 3. ed. São Paulo : Lejus, 1998, p.

507. 103 “O intérprete da lei tributária deverá investigar sua incidência exclusivamente sobre o fato jurídico

(e desde que revestido daquela espécie jurídica preestabelecida pelo legislador) e não sobre a realidade econômica que lhe corresponde ou corresponderia.” (BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 3. ed. São Paulo: Lejus, 1998, p. 507)

104 MÖRSCHBÄCHER, José. Repetição do Indébito Tributário Indireto. 3. ed. São Paulo : Dialética, 1998, p. 65.

105 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 3. ed. São Paulo : Lejus, 1998, p. 88.

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29

Outra hipótese de assunção do encargo pelo contribuinte de jure se

configura quando os produtos indevidamente onerados não são comercializados

(revendidos), permanecendo em estoque.106 Já a contabilização do indébito

tributário indireto em conta destacada do ativo realizável, como crédito a haver

contra a Fazenda Pública, nada prova quanto ao não-repasse. Isso porque, como

adverte José Mörschbächer, nada impediria o contribuinte de direito de agregar o

tributo indevido no preço dos bens e, concomitantemente, contabilizá-lo em suas

demonstrações financeiras.107 Num caso assim, reconhecer-lhe o direito à repetição

chancelaria o seu enriquecimento sem causa.

Tais meios de prova, contudo, são extremamente superficiais na análise de

uma questão tão complexa como o repasse de tributo indireto. A Ciência Econômica,

autorizada pelo art. 166 do CTN a atuar nessa comprovação, é que fornece os

subsídios mais profundos, por meio da análise da elasticidade das demandas. O

coeficiente de elasticidade da demanda consiste numa medida da sensibilidade da

procura por um determinado produto a variações no preço deste bem. Através de

fórmulas encontradas pelos estudiosos da Microeconomia,108 pode-se determinar

exatamente o quanto oscila percentualmente a demanda por um produto em

atenção a modificações no preço pelo qual este bem passa a ser oferecido em seu

mercado consumidor.109 Como foi visto, a impossibilidade de transferência do

encargo financeiro ocorre tanto por vedação jurídica – p. ex., tabelamento de preços

– quanto por impossibilidade econômica – p. ex., demanda absolutamente elástica.

Desnecessário, por óbvio, explicar a relevância deste instituto para o trato do tema

analisado neste trabalho, tendo-se em vista que da análise dessa elasticidade pode-

106 MÖRSCHBÄCHER, José. Repetição do Indébito Tributário Indireto. 3. ed. São Paulo :

Dialética, 1998, p. 64. 107 MÖRSCHBÄCHER, José. Repetição do Indébito Tributário Indireto. 3. ed. São Paulo :

Dialética, 1998, p. 64. 108 “A elasticidade-preço da demanda por um produto pode ser definida em termos gerais como: Ed =

variação percentual na quantidade demandada / variação percentual no preço do produto.” (NELLIS, Joseph e PARKER, David. Princípios de Economia para os Negócios. Tradução: Bazan Tecnologia e Lingüística. São Paulo : Futura, 2003, p. 84)

109 “De fato, por meio da utilização da seguinte fórmula de ‘transferência’, podemos calcular a porcentagem da carga fiscal que recai sobre os consumidores: Transferência = Eo/(Eo-Ed). Essa fórmula nos diz qual a fração do imposto que é transferida para os consumidores na forma de preços mais elevados. Por exemplo, quando a demanda é totalmente inelástica, de tal modo que Ed seja igual a 0, a fração de transferência é igual a 1, significando que o imposto recai totalmente sobre os consumidores. Quanto a demanda é totalmente elástica, a fração de transferência é igual a 0, o que significa que o imposto recai totalmente sobre os produtores.” (PINDYCK, Robert S.;

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se inferir, percentual e precisamente, quanto da instituição (ou majoração) indevida

de tributo foi suportada pelos produtores e quanto o foi pelos consumidores.110 Daí a

sua perfeita adequação enquanto meio de prova da assunção (ou do repasse) do

encargo financeiro da tributação ilegítima em sede de tributos indiretos. Como foi

visto, o fato de a tributação ser juridicamente indireta não garante a ocorrência da

repercussão; tampouco a ocorrência de transferência jurídica,111 nos tributos

(juridicamente) indiretos, garante, já que, ainda que tenha ocorrido, pode ter sido o

contribuinte de direito que, economicamente, sofreu o impacto financeiro,112 sendo,

no caso, o legitimado a repetir o indébito nos termos do art. 166 do CTN. Portanto, é

preciso precisar-se quem - e em que medida - suporta, jurídica e economicamente, o

encargo financeiro da tributação indevida.113

A aplicação dos postulados da Microeconomia ao caso não se trata de uma

pioneira inovação. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 45.977,

legitimou o contribuinte de direito à repetição de indébito, devido a se tratar de

participação do recorrido num mercado de demanda elástica (muito embora não

tenha a corte, expressamente, referido tal terminologia). No caso, cinco Estados-

membros competiam no ramo do café, sendo que um deles, o Espírito Santo,

instituiu um tributo ilegal sobre a comercialização do bem, obrigando os produtores

daquela localidade a venderem o produto por um preço maior do que os demais

RUBINFELD, Daniel L. Microeconomia. 5. ed. Tradução e revisão técnica: Professor Eleutério Prado. São Paulo: Prentice Hall, 2002, p. 315)

110 “[...] a parcela de um imposto que recai sobre os consumidores dependerá do formato das curvas da demanda e da oferta e, em particular, das elasticidades da oferta e da demanda. Quanto à primeira questão, um imposto de $1 sobre um produto realmente faria com que seu preço aumentasse, entretanto tal aumento seria geralmente inferior a um dólar, podendo, em alguns casos, ser muito inferior.” (PINDYCK, Robert S.; RUBINFELD, Daniel L. Microeconomia. 5. ed. Tradução e revisão técnica: Professor Eleutério Prado. São Paulo: Prentice Hall, 2002, p. 312)

111 “[...] mesmo havendo lei que autoriza a repercussão jurídica do encargo do tributo, essa repercussão pode não corresponder a uma transferência efetiva do encargo tributário. Essa transferência pode ocorrer apenas me parte. E pode até não ocorrer, dependendo das circunstâncias do mercado”. (MACHADO, Hugo de Brito. Comentários ao Código Tributário Nacional. Volume III. São Paulo : Atlas, 2005, p. 400)

112 “Desde logo, cumpre advertir que esta repercussão jurídica do tributo, de modo algum, significa a realização da repercussão econômica do mesmo. Esta repercussão econômica pode ocorrer apenas parcialmente ou até não se realizar, embora no plano jurídico tenha se efetivado.”

(BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 3. ed. São Paulo : Lejus, 1998, p. 535)

113 “The amount by which the price rises – the extent consumers can bear the tax – depends on the shape of the demand and supply curves […] the elasticity of demand gives the percentage change in the quantity of the good consumed due to a percentage change in its price […] who effectively pays the tax depends on the elasticity of demand and supply for labor.” (STIGLITZ, Joseph. Economics of the public sector. 2. ed. New York: Norton, 1988, p. 416-421.)

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concorrentes, já que nele embutido o montante relativo à exação indevida. A Corte

decidiu que, no caso, o preço era ditado pelo mercado, não podendo o produtor

repercutir o tributo aos consumidores, que fatalmente optariam pelo café dos demais

Estados-membros, provando que o montante relativo ao imposto tinha sido

suportado pelos contribuintes de direito do Espírito Santo – impedidos de aumentar

seus preços -, que, assim, eram partes legítimas à repetição do indébito tributário

indireto.114 Como ressaltou o Ministro Aliomar Baleeiro, o consumidor “não se

comove porque o Espírito Santo impõe à sua produção uma taxa inconstitucional e

ilegítima [...] Logo, o peso da taxa fica nos ombros do produtor ou comerciante

espírito-santense, que não tem possibilidade, ou, pelo menos, probabilidade de

majorar o preço [...]”.115

Caso de significante similitude foi julgado no Primeiro Grupo Cível do

TJRS.116 Em que pese a divergência, decidiu-se pela legitimidade do contribuinte de

direito para repetir ICMS indevido. No caso, a impossibilidade de transferência do

ônus foi comprovada porque a cotação das mercadorias oneradas era determinada

pela Bolsa de Chicago, sendo o preço estabelecido pelo mercado; e a demanda,

absolutamente sensível a quaisquer variações que ele apresentasse. Como foi

ressaltado no julgamento, não se tratava de tabelamento oficial. Tratava-se, isto sim,

de demanda elástica.

Portanto, o raciocínio é simples: se o preço do produto é ditado pelo

mercado, não estando toda a oferta deste mercado sujeita à tributação, por óbvio

não conseguirá o contribuinte de direito repassar o respectivo encargo financeiro ao

contribuinte de fato - suportando inteiramente o ônus -, pois haverá concorrentes

que não elevarão seus preços. Trata-se, pois, de elasticidade absoluta da demanda

a variações no preço dos produtos (decorrentes, inclusive, de ilegítimas imposições

114 “[...] ‘a firma pode estar à mercê dos compradores’, isto é, ficará impedida a ‘possibilidade de lucro’

(profitabilité), e de majorar o preço com o fim de ressarcir-se do ônus fiscal (p. 271). Além disso, se ela insistir na majoração, poderá haver redução global da produção ou da venda com o aumento de custo, que Marshall batizou de external diseconomies.” (BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro, atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 884).

115 STF, RE 45.977/ES. Relator: Ministro Aliomar Baleeiro. Brasília, 27 de setembro de 1966. 116 TJRS, Embargos Infringentes n.º 70008468845. Relator: Desembargador Luiz Felipe Silveira Difini.

Porto Alegre, 4 de junho de 2004.

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fiscais indiretas). Se, pelo contrário, a demanda for absolutamente inelástica - isto é,

totalmente insensível a variações nos preços -, ela assimilará por completo o

aumento indevido. Nesse caso, serão os consumidores – e não o contribuinte de

direito – que arcarão com a totalidade do tributo indevido. De um modo geral, bens

essenciais – integrantes da cesta básica – apresentam demandas inelásticas; bens

supérfluos, demandas elásticas.117

Até aqui, tudo parece de uma clarividência manifesta. Entretanto, uma

análise mais profunda denota a complexidade que a questão realmente apresenta.

Isso porque, na prática, os mercados de demanda absolutamente elástica e

inelástica são raras exceções.118 Quase sempre, há elasticidade relativa, o que

necessariamente causa uma absorção parcial do encargo financeiro pelo

contribuinte de direito, e outra, também parcial, pelo contribuinte de fato. Numa

exemplificação sucinta do que demonstram Joseph Nellis e David Parker,119 se um

produtor vende bolas por R$ 10,00, sendo R$ 2,00 de imposto, caso esse tributo

aumente para R$ 4,00, ele não conseguirá aumentar o preço para R$ 12,00,

mantendo a margem de lucratividade de R$ 8,00 por unidade. A sensibilidade de

sua demanda imporá um aumento de preços menor do que o peso fiscal criado, para

R$ 11,00, por exemplo. Isso porque, economicamente, não há demanda para bolas

vendidas por R$ 12,00. Dos R$ 2,00 de aumento fiscal indevido, o produtor e o

adquirente suportarão, no exemplo, cada um, R$ 1,00.

Trata-se, pois, juridicamente, de caso de assunção parcial do encargo

financeiro-fiscal indevido pelos contribuintes de direito e de fato, cuja probabilidade

de ocorrência é, inclusive, maior do que, juntas, as de assunção e de repasse

integrais do encargo financeiro.120 Supondo-se caso em que efetivamente

demonstrado, por exemplo por notas fiscais anteriores e posteriores ao aumento

117 NELLIS, Joseph e PARKER, David. Princípios de Economia para os Negócios. Tradução Bazan

Tecnologia e Lingüística. São Paulo : Futura, 2003, p. 85. 118 NELLIS, Joseph e PARKER, David. Princípios de Economia para os Negócios. Tradução Bazan

Tecnologia e Lingüística. São Paulo : Futura, 2003, p. 85. 119 NELLIS, Joseph e PARKER, David. Princípios de Economia para os Negócios. Tradução Bazan

Tecnologia e Lingüística. São Paulo : Futura, 2003, p. 85. 120 VARIAN, Hal R. Microeconomia: princípios básicos. Tradução da 5. ed. americana: INOJOSA,

Ricardo; MONTEIRO, Maria José Cyhlar. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 316.

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33

ilegítimo, que houvera repercussão parcial, a solução seria legitimar o requerente a

repetir, apenas parcialmente, o tributo indevido? Haveria, em decorrência,

legitimidade concorrente, de cada um dos contribuintes (de direito e de fato),

individualmente, quanto ao quantum efetivamente suportado? A prova de assunção

parcial no processo movido por um serviria como prova de repercussão (também

parcial) a ser utilizada (como prova emprestada) no processo movido pelo outro?

São questões que a doutrina e a jurisprudência terão de enfrentar num futuro

próximo.

Por fim, deixe-se claro: não se sustenta que uma alta elasticidade da

demanda, por si só, comprova o não-repasse. Defende-se, isto sim, que ela, sendo

alta, impõe um aumento de preços necessariamente menor do que o aumento fiscal

indevido, implicando assunção no mínimo parcial do encargo financeiro pelo

contribuinte de direito. A redução da demanda tão-só pelo aumento de preços, sabe-

se, pode perfeitamente coincidir com um repasse integral do tributo, com vendas

apenas mais lentas, por exemplo. Tal fato ensejaria, quiçá, uma pretensão a

indenização por instituição indevida de tributo (invocando-se, inclusive, o art. 37, §

6.º, da CF/88), com base na responsabilidade civil da função legiferante; não, porém,

uma pretensão a repetição de indébito, em face da transferência do encargo

financeiro.