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CLAUDIA SANTOS DA SILVA HERANÇAS SECRETAS: AS MEMÓRIAS AFRICANAS NO COTIDIANO DAS REZADEIRAS DE POJUCA. Dissertação submetida como requisito para obtenção de título de Mestre em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional, do programa de Pós-Graduação em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional. Orientadora: Profª. Drª Marise de Santana Santo Antonio de Jesus - Bahia 2010

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CLAUDIA SANTOS DA SILVA

HERANÇAS SECRETAS: AS MEMÓRIAS AFRICANAS NO COTIDIANO DAS REZADEIRAS

DE POJUCA.

Dissertação submetida como requisito para obtenção de título de Mestre em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional, do programa de Pós-Graduação em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional. Orientadora: Profª. Drª Marise de Santana

Santo Antonio de Jesus - Bahia

2010

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S586 Silva, Cláudia Santos da.

Heranças Secretas: as memórias africanas no cotidiano das rezadeiras de Pojuca. / Cláudia Santos da Silva - 2010.

162 f.: il Orientador: Prof. Dra. Marise de Santana.

Dissertação (mestrado) - Universidade do Estado da Bahia, Programa de pós-graduação em Cultura Memória e Desenvolvimento Regional, 2010.

1.Curandeiras. 2. Medicina mágica, mística e espagírica 3. Pojuca – Bahia. 4. Medicina Popular. I. Santana, Marise. II. Universidade do Estado da Bahia, programa de pós-graduação em Cultura Memória e Desenvolvimento Regional.

CDD:

398.353

Elaboração: Biblioteca Campus V/ UNEB Bibliotecária: Juliana Braga – CRB-5/1396.

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CLAUDIA SANTOS DA SILVA

HERANÇAS SECRETAS: AS MEMÓRIAS AFRICANAS NO COTIDIANO DAS REZADEIRAS

DE POJUCA.

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB

PROGRAMA DE MESTRADO MULTIDISCIPLINAR EM CULTURA, MEMÓRIA E DESENVOLVIMENTO REGIONAL

Dissertação de Mestrado defendida e aprovada em em: ____/_____/2010

BANCA EXAMINADORA:

________________________________________________ Profª. Drª. Marise de Santana

Universidade do Sudoeste da Bahia

_________________________________________________ Profª Drª

Universidade

_________________________________________________ Prof. Dr.

Universidade

Santo Antonio de Jesus – Bahia

2010

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À todas as pessoas que acreditam na vida para além das normas e exigências de um pequeno grupo privilegiado; Aos que não impõem suas verdades, mas têm disposição para ouvir e boa vontade para compreender o outro; Aos que lutam e à luta incondicional por liberdade, justiça e dignidade da pessoa humana, integralmente, com respeito às suas diferenças, peculiaridades e compreensão de mundo. À todos e todas que direta ou indiretamente, contribuíram com o processo dessa pesquisa; À todas as pessoas que acreditam na força da fé, das folhas e na terra, pois o simples fato de existirem já anima, a presença entusiasma e o companheirismo nos fortalece na caminhada sempre adiante.

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Seja calma como a luz do sol rasgando a negra noite dor de março. Seja fruto do suor tão santo que envolve o trabalho flor de maio. Será justiça para com as mãos cobertas de tanto calor flor de outubro. Será beleza como a chegada do colorido das primaveras. Seja forte como a união dos nossos corações trabalho e dor. Seja firme como as águas lentamente tomando as tantas terras. Será o fogo que arde em cada peito nas fogueiras das paixões. E violento como o amor o corpo exige, grita, toma e berra. Que seja um parto dolorido e farto de vida e alegria trabalho e festa. Que seja novo como a emoção de um cego vendo a luz de um dia. Será justiça para com as mãos cobertas de tantos calos flor de outubro. Seja fruto do suor tão santo que envolve o trabalho flor de maio.

Gonzaguinha

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AGRADECIMENTOS

Os sonhos se consolidam gradativamente, e a cada dia que vivemos,

introduzimos a eles novos elementos; pois também o sonho é sonhado

gradativamente. Aos poucos vamos dando formas e quando pensamos que já o

temos realizado, percebemos que ainda falta muito, cumprimos apenas uma

etapa da interminável tarefa dar sentido à nossa vida.

Para isso é que servem os sonhos, as aspirações de nós humanos.

Necessitamos sonhar para dar sentido às nossas vidas, do contrário, seríamos

apenas executores de tarefas, reprodutores de ações, que não passariam de

repetições mecânicas como comer, dormir, acordar, trabalhar... Os sonhos fazem

as mais simples ações tornarem-se importantes, necessárias e desejáveis para

nos mantermos vivos e com expectativas.

Os mais variados sonhos nos põem vivos e nos fazem caminhar sempre

para frente em busca da realização desses. Mas não sonhamos sozinhos, como

já dizia Raul Seixas, “Sonho que se sonha só é só um sonho que se sonha só,

mas sonho que se sonha junto é realidade”.

Como não sonhei e não sonho sozinha, muita gente sonhou e até sofreu

comigo nessa empreitada, para transformar o que outrora fora um sonho, numa

entusiasmada realidade. A todas essas pessoas minha terna gratidão.

Agradeço com o que tenho de melhor, meu sorriso e minha lealdade.

Em primeiro lugar, agradeço ao Deus-Pai-Mãe-Natureza, que cria, cuida e

orienta; o início e o fim; o que nos lança no mundo e depois de cumprida nossa

missão nos acolhe ternamente, Aquele que me presenteou com dois grandes

tesouros: minha família e meus amigos.

Agradeço a todas as rezadeiras que me colaboraram diretamente com

essa pesquisa, sem elas não teria essa pesquisa, especialmente dona Dida,

dona Djão, dona Laura, dona Senhora e dona Zilda.

Agradeço a toda minha família, meu ninho. Minha mãe e meu pai, que são

os responsáveis pela minha existência e pela mulher que sou; que também me

ofereceram importantes informações; me ajudaram a elucidar algumas dúvidas

referentes a essa pesquisa.

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Agradeço aos meus irmãos e irmãs: Kel, Tonho, Del, Eto, Jó e Ito

(relacionados por ordem cronológica, para evitar ciúmes) com os quais aprendi

partilhar, respeitar, amar, fazer festa e também brigar pela justiça. Onde, ainda

que sem noção, aprendi a importância da história de vida na nossa vida.

Agradeço aos meus amigos, especialmente Anilton, Dirceu, Jailton,

Jarbas, Lene, Nice e Noélia, (também relacionados em ordem alfabética, para

não despertar ciúmes) pessoas tão presentes na minha vida, tão dispostas a

ajudar e a caminhar comigo, verdadeiros irmãos e irmãs.

Agradeço a Karlinha, amiga que me recebeu em sua casa em Santo

Antonio de Jesus e além da acolhida, me presenteou com a oportunidade de

conviver com sua sabedoria, espiritualidade, carinho e sensatez.

Agradeço a Zé Carlos e Marcos, queridos que me ajudaram a pegar livros

nos seus cadastros em outras universidades.

Agradeço a minha orientadora, professora doutora Marise de Santana,

pelas longas conversas, que me provocavam e proporcionaram descobertas e

decisão. Em nenhum momento se impôs, sempre refletiu comigo os caminhos

dessa pesquisa com humildade e senso democrático.

Agradeço também aos colegas do mestrado, especialmente, Anderson,

pelo carinho, caronas e incentivo.

Agradeço com muita ternura a todas as rezadeiras que me receberam em

suas casas, seus quintais, que me presentearam com seu tempo, suas rezas,

saberes e histórias.

Que toda Força de Bondade e Resistência que firma esse mundo faça

seus caminhos permanecerem sempre abertos.

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Lista de siglas ACAP – Associação do Culto Afro de Pojuca

CEB’S – Comunidades Eclesiais de Bases

HP – Hermenêutica Profunda

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

PJE – Pastoral da Juventude Estudantil

PJMP – Pastoral da Juventude do Meio Popular

PT – Partido dos Trabalhadores

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Lista de Tabelas

Texto:

Tabela I - Engenhos matriculados pela Junta da Real Fazenda e pelo governo

provincial, Bahia 1807 – 1874 -------------------------------------------------------------------------

--- 93

Tabela II - Nação dos escravos africanos em Salvador, 1802 – 35 -----------------103

Tabela III - Escravos crioulos e africanos em nove engenhos baianos, 1739----- 105

Anexos:

Tabela I - Relação das rezadeiras de Pojuca – entrevistadas -----------------------------

142

Tabela II – Outras rezadeiras de Pojuca ----------------------------------------------------- 143

Tabela III - Outras pessoas entrevistadas --------------------------------------------------- 143

Tabela IV – Espaços e práticas de conteúdo do legado africano em Pojuca ------- 144

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Lista de fotos e gravuras

Gravura I – Mapa da Bahia – localização de Pojuca ------------------------ 88

Gravura II – Fazenda São José do Caboclo ----------------------------------- 97

Gravura III– Placa da base da torre da fazenda S. José do Caboclo ----- 98

Gravura IV – Mapa do Recôncavo Baiano -----------------------------------107

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RESUMO

Em geral, a história oficial tem omitido a participação das mulheres na vivência social; contrariando a sabedoria da natureza, que dotou as mulheres da nobre capacidade de gerar a vida. A terra é feminina, a água, a fauna e a flora também são femininas. Todas férteis, com a capacidade de gerar e perpetuar a vida. Por isso, apesar da discriminação, as mulheres assumem papel fundamental em qualquer sociedade. Além de portadoras do poder de gerar a vida, em sua maioria, são elas as guardiãs da memória de seu povo; nas palavras e nos gestos repetidos cotidianamente, elas transmitem aos mais novos experiências e saberes, que ao serem repetidos serão divulgados e conservados por muito tempo nas comunidades. As rezadeiras, por exemplo, senhoras de saberes e crenças continuam desempenhando seu papel nas comunidades, contrariando as imposições da “sociedade terrorista”, que, pela sutileza do “jogo de opressões”, dissemina os discursos da negação da cultura, negação do pertencimento e da emancipação. Ainda hoje são procuradas para o benzimento de pessoas com diversas doenças do corpo e também da alma, repetindo o que aprenderam por gerações, utilizando-se de ritos, folhas, orações e fé. Elas guardam segredos e memórias de tempos idos e revelam nos seus fazeres receitas e experiências ensinadas por africanos na direta relação entre o corpo e o espírito, entre a terra e o divino, entre o sagrado e o profano. É embrenhando na vivência cotidiana das rezadeiras de Pojuca, com base na metodologia da Hermenêutica Profunda – HP, numa perspectiva interdisciplinar, que investigamos como a memória africana tem sido preservada nessa cidade, a partir dos saberes e fazeres das mulheres rezadeiras de Pojuca, cidade do estado da Bahia, que entra para a história oficial a partir do século XVII, quando é inaugurado o cultivo da cana-de-açúcar, às margens do rio que a batiza. Pojuca: yapô yuca, que em tupi guarani quer dizer pântano podre; o que nos permite identificá-la como morada de Nanã, africana que é a senhora da lama, da fertilidade, o início e o fim, e juntamente com Ossâim, senhor das folhas, guardam o segredo de Pojuca. Assim, o seu nome, carregado de sentido e significado, preserva as contribuições africanas na sua constituição, marcas que o discurso oficial cristão tentou camuflar.

Palavras-chave: rezadeiras, cotidiano, memória, Pojuca.

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ABSTRACT

In general, societies, throughout history, women have been denied effective

participation in social life, behavior that goes against the wisdom of nature, which has given women the ability to generate a noble life. Thus, while they are discriminated against, women play a fundamental role in any society. Besides bearing par excellence, the power to generate life, they are the guardians of the memory of certain people, since, in words and gestures repeated daily, not always aware of their importance, they convey to younger ones, experience and knowledge, which when repeated will be disseminated and preserved for a long time in the communities. Some women, however, are harder this membership; example of the mourners. Ladies of knowledge and beliefs, these women continue to play a role in the communities, countering the charges of "terrorist society" which, by the subtlety of the "game of oppression," disseminates the speeches of the negation of culture, belonging and empowerment. Even today these women are sought for the blessings of people with various diseases of the body and soul, the wisdom to realize that by repeating what they have learned for generations, using the rites, leaves a lot of prayers and faith. These women keep secrets and memories of bygone days and reveal in their doings experiences taught by Indians and Africans in the direct relationship between body and spirit, between earth and the divine, between the sacred and the profane. It penetrated the daily lives of the mourners Pojuca, based on the methodology of hermeneutics Deep - HP, an interdisciplinary perspective to investigate how the African and indigenous memory has been preserved in this town, from the knowledge and actions of women mourners Pojuca, city the state of Bahia, which enters the official story from the seventeenth century, when it inaugurates the cultivation of sugar cane, the river that baptized. Located 70 km from the capital, with an estimated population of 30 thousand inhabitants, has a history that can not be denied that, like many other Brazilian cities formed during this period, brings in its constitution the contributions African and Indian, camouflaged by the official discourse Christian.

Keywords: mourners, everyday life, memory, Pojuca.

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SUMÁRIO

LISTA DE TABELAS ........................................................................................... vii

LISTA DE SIGLAS ............................................................................................... viii

LISTA DE FOTOS E GRAVURAS ....................................................................... ix

RESUMO .............................................................................................................. x ABSTRACT .......................................................................................................... xi

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................. 14 2 CAPÍTULO I – O CAMINHO TEÓRICO-METODOLÓGICO ............................ 26

2.1 Identidade Cultural: tecendo significados ....................................................... 40

2.2 Memória: sentimento de pertencimento.......................................................... 62

2.3 Cotidiano: o lugar dos sentidos e das representações ................................... 79

3 CAPÍTULO II – A HISTÓRIA DE POJUCA NAS MEMÓRIAS GUARDADAS PELAS REZADEIRAS ................................................................................... 92

4 CAPÍTULO III – REZADEIRAS: GUARDIÃS DA MEMÓRIA E DA FÉ ........... 122

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Os mitos resistem: novas indagações para o tema…………. ............................ ..147

REFERÊNCIAS .................................................................................................... 152

ANEXOS ............................................................................................................... 156

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Introdução

E que a atitude de recomeçar é todo dia toda hora É se respeitar na sua força e fé

E se olhar bem fundo até o dedão do pé

Essa dissertação representa o resultado, parcial, de um sonho em curso.

Parcial, porém, fundamental, para que eu possa continuar sonhando. Desde o

momento em que entrei na faculdade de Licenciatura em História, decidi

enveredar pela vida acadêmica e iniciei a caminhada para a realização desse

sonho.

No entanto, muito antes de ingressar na faculdade, as minhas

experiências, os valores que aprendi e apreendi em casa e em todos os

ambientes de formação a que tive acesso, foram me sensibilizando na

preocupação com a realidade das pessoas ao meu redor; com os jeitos de viver e

de fazer dessas pessoas. Especialmente, me incomodava a aparente apatia

diante de tanta opressão e exploração a que eram submetidas, inclusive as

pessoas da minha família. A discriminação racial era uma das coisas que mais

me incomodava, percebia isso nas escolas onde estudei, na igreja, na cidade

como um todo; ainda que naquele período eu não tivesse clara compreensão do

que aquilo significava na vida do povo brasileiro.

Tanto na militância do movimento estudantil e do Partido dos

Trabalhadores (PT) como na faculdade, recebi formação predominantemente

marxista, porém, embora concordasse (e em muitos aspectos concordo até hoje),

algo me incomodava no marxismo, pois, nas modestas leituras que tive

oportunidade de fazer sobre o tema, não conseguia perceber a valorização da

subjetividade do proletariado, não via o elemento cultural, ser considerado como

importante no processo de transformação da sociedade.

Marx (1818 – 1883) e Engels (1820 – 1895), no Manifesto Comunista

afirmam que “A história de todas as sociedades que já existiram é a história da

luta de classes” (MARX & ENGELS, 1999: 9), mas em 1890 Engels edita notas

referentes à tal obra, nas quais informa que se referem à toda história escrita e

reconhece que antes dessa, havia uma outra forma de sociedade, onde os bens

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eram comuns a todos da sociedade, contudo, o autor determina que todas as

sociedades passam pelo mesmo estágio, numa perspectiva de linearidade

história, concepção que nega as peculiaridades de cada sociedade, e,

principalmente, as visões e crenças de mundo de cada povo.

“Operários do mundo uni-vos!”, A célebre máxima de Karl Marx (1999: 63)

dá a idéia de que bastava a condição social para determinar os responsáveis

pelo processo de derrubada da burguesia do topo da pirâmide social. Essa

constatação me angustiava, pois, por outro lado, nos processos de formação que

recebi na Pastoral da Juventude Estudantil (PJE) e, principalmente, na Pastoral

da Juventude do Meio Popular (PJMP) e nas Comunidades Eclesiais de Bases

(CEB’s), as manifestações culturais, como crença nos sonhos, receitas, festas,

jeitos de fazer determinadas coisas, dentre outros, o sentimento de identidade,

que hoje compreendo como pertencimento, sempre eram consideradas como

elementos fundamentais no processo de resistência e, conseqüentemente, de

libertação do povo oprimido.

Quando fiz a especialização em Metodologia do Ensino, da Pesquisa e

Extensão em Educação, na UNEB – Campus II, em Alagoinhas, no ano 2000,

optei por estudar sobre a valorização do cotidiano dos alunos nas escolas.

Questionei professores, alunos e direção da Escola Estadual Padre João Montez,

em Pojuca, se esses valorizavam o cotidiano dos alunos no processo de ensino-

aperndizagem, pois já me preocupava com a visível dicotomia entre escola e

vida, entre o discurso e a prática.

A pesquisa apontou para a confirmação das minhas hipóteses, pois, ainda

que nos seus discursos, professores e professoras entrevistadas afirmassem a

preocupação com a valorização do cotidiano, muitos tinham dificuldade em

explicar qual metodologia utilizavam para viabilizar tal aspecto, outros

declamavam exemplos que, de fato, não conduziam para a valorização do

cotidiano. Enquanto a quase totalidade dos alunos dessa referida escola eram

negros e empobrecidos, os livros estavam voltados para uma realidade sulista de

crianças brancas de classe média e nenhum dos profissionais entrevistados foi

capaz de apresentar exemplos de superação dessa situação. Assim, a tal

valorização não passava, quando muito, de mera ficção.

Essa especialização me proporcionou duas importantes contribuições para

a atual fase da minha vida: primeiro a confirmação de que a história da

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população afro-brasileira só aparece na escola quando se refere ao período

colonial e pela passagem do 13 de maio, data da assinatura da Lei Áurea. O

outro momento em que o negro aparece como assunto nas escolas é o dia do

folclore, 22 de agosto. Assim, é atribuído ao negro brasileiro apenas o papel de

escravo, enquanto a sua história é reduzida ao folclore. Conclusão que me

angustiou.

Angústia que ganhou alívio com a exigência da Lei 10. 639 de 09 de

janeiro de 2003 e reforçada com a Lei 11.645 de 10 de março de 2008, que

obriga todas as escolas brasileiras do ensino fundamental e médio, públicas e

privadas, incluir nos seus currículos o ensino de história e cultura africana, afro-

brasileira e indígena; o que tem contribuído para desvelar o preconceito que há

por trás do falso mito da democracia racial cantado em verso e prosa no Brasil,

ao tempo em que expondo esse preconceito, provoca a população a refletir mais

séria e profundamente sobre os problemas sofridos pelos afro-brasileiros e

indígenas desse país, na possibilidade da construção de novas perspectivas

históricas e sociais para esses povos.

A outra contribuição que o estudo do cotidiano naquela monografia me

proporcionou, através de Henri Lefbvre (1991), na sua obra “A Vida Cotidiana no

Mundo Moderno” e Agnes Heller (1989) em “O Cotidiano e a História”, foi a

constatação de que é possível conjugar os estudos culturais com a perspectiva

marxista,

Algum tempo depois, quando li “Costumes em Comum” do marxista E. P.

Thompson (1998), a partir da sua afirmação de que a cultura do povo é uma

defesa contra as intrusões da elite, mais uma vez percebi que há a possibilidade

de conjugar o socialismo com estudos culturais. Essa possibilidade encheu-me

de expectativas quanto essa área do conhecimento, isentando-me do

desconforto por não seguir os estudos na linha do socialismo, numa perspectiva

meramente política.

A partir de então, assumi esse interesse sem sentir-me contraditória ou

equivocada. E tornei-me mais certa ainda da importância desse tema no contexto

dos conflitos sociais, quando iniciei a pesquisa bibliográfica e me dei conta de

que os teóricos a quem recorri inicialmente para fundamentar essa pesquisa,

eram, em sua maioria adeptos do marxismo ou críticos da estrutura social

moderna, como Heller (1989), Lefebvre (1991) e Certeau (1999), dentre outros.

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No entanto, uma preocupação ainda era latente. Certa de que falar de

cultura é tema extremamente amplo e complexo, necessitava fazer um recorte

que delimitasse meu interesse. Então passei a me perguntar que aspecto da

cultura queria estudar.

Foi quando tive acesso ao resultado do I Censo Cultural da Bahia,

realizado entre 2000 e 2006, pela Secretaria de Cultura e Turismo do Estado,

que organizou um banco de dados culturais de todos os municípios da Bahia.

Nele, rezadeira era uma das modalidades apuradas e em Pojuca foram

apontadas apenas duas delas. Resultado que me causou espanto, pois naquele

momento eu já conhecia muito mais de três rezadeiras. Essa controvérsia

despertou em mim várias indagações: por que será que aparecem apenas duas

rezadeiras na pesquisa? Quem forneceu as informações? Será que as pessoas

temem se identificar enquanto rezadeiras ou abandonaram o ofício?

Numa noite, pensando sobre tudo isso, me dei conta de que havia

encontrado o tema da minha pesquisa e o achado já se manifestou com o título

completo! Vivência cotidiana e preservação da memória: as rezadeiras de Pojuca

em foco. Considerei que esse título evidenciava a minha preocupação com a

valorização das experiências culturais, com as questões étnicas, uma vez que

enxergava nas rezadeiras a presença da cultura afro-brasileira e indígena e que,

por conseguinte, essa pesquisa deveria colaborar com o desvelamento da

memória e da identidade do povo de Pojuca.

Assim, as rezadeiras de Pojuca apareceram como os sujeitos sociais da

minha pesquisa e a sua vivência do cotidiano como elemento fundamental para a

verificação da preservação da memória do referido município.

Pojuca é um pequeno município do Recôncavo da Bahia, que situa-se a

70 km de Salvador, com população estimada de 32.225 mil habitantes, segundo

contagem da população 2009 do IBGE. É a cidade onde nasci e cresci, mas, a

partir do momento que iniciei essa pesquisa, percebi que a conhecia muito

pouco. Pouco sabia sobre a sua história, sobre as memórias do seu povo, meu

povo. Conhecia apenas de informações soltas, que como peças de um quebra-

cabeça se constituíram nas primeiras pistas perseguidas para elaboração do

caminho histórico de Pojuca, processo fundamental para posterior verificação da

preservação ou não da memória africana e indígena do município através da

vivência cotidiana das rezadeiras.

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As parcas informações sobre a história de Pojuca se explicam porque na

escola só tive a oportunidade de ouvir falar sobre alguns aspectos bem pontuais

da sua história, como o significado do termo que a nomeia: uma corruptela de

yapô-yuca, palavra tupi, que quer dizer água podre, pântano, estagnado. Essa

informação era a única menção feita à presença indígena na história da cidade

nas escolas onde estudei.

Mas a significação desse termo diz muito mais do que parece; nos

aventuremos, então, em desconstruir a lógica ocidental e desvendar a lógica

indígena e africana que o termo podre pode ter. Pensemos no podre como o

fértil, o lugar que oferece a vida e também acolhe a morte, como um ciclo infindo.

Essa compreensão nos permite fazer alusão ao elemento africano, se

considerarmos que no panteão dos orixás do Candomblé encontramos dona

Nanã, a iabá que representa o inicio e o fim, por estar relacionada ao barro, à

lama, à mistura de terra e água, pois, assim como o mito fundador dos cristãos

atribui a origem do ser humano ao barro1, também na tradição iorubá, o barro é o

material original do qual o ser humano foi modelado e que no final da vida o ser

humano deve novamente ser devolvido à terra”. (BERKENBROCK, 2007: 243).

Outro aspecto da sua história, também repetido nas escolas refere-se à

origem do seu povoamento, ocorrido desde o início do século XVII, período

colonial do Brasil, sendo Pojuca parte de uma sesmaria, pertencente à Garcia

D’Ávila, que, só passou a ser povoada no final do referido século, com a

construção dos engenhos de cana-de-açúcar.

Depois de uma grande lacuna, por ocasião dos festejos emancipatórios

fala-se da emancipação do município no início do século XX, quando a cidade

deixou de ser um distrito do município de Catu, em 29 de julho de 1913.

Ainda no período em que estudava no ensino fundamental, era comum

ouvir em verso e prosa o chavão de que Pojuca era a “Princesinha do Petróleo”,

isso, por causa da extração petrolífera, que iniciou no município a partir de 1953,

quando a Petrobrás se instalou naquela região. Hoje já não se fala mais nisso,

pois, embora ainda tenha na extração de petróleo e de gás natural a sua maior

fonte de renda, Pojuca já perdeu esse título há alguns anos.

1 Então Javé Deus modelou o homem com a argila do solo, soprou-lhe nas narinas um sopro de vida, e o homem tornou-se um ser vivente. Gn, 2:7.

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Esses últimos parágrafos refletem a escassa configuração da história

oficial da minha cidade, que só é lembrada quando da comemoração do seu

aniversário de emancipação política, e a cada ano, menos se fala dessa história;

enquanto as comemorações se limitam ao trio elétrico e às inaugurações de

praças reformadas.

Creio que essa lertagia histórica se reflete no comportamento dos

pojucanos em relação à cidade, quando dizem que “Pojuca não tem nada”, “não

tem cultura”. Durante muito tempo se ouviu dizer que “Pojuca é má mãe e boa

madrasta”, referindo-se ao fato de que “quem chega de outras cidades progride,

financeiramente, mais do que quem nasce lá”.

Apesar de ter ciência da complexidade que o termo cultura impõe, nessa

introdução, ouso-me dizer que ainda é notório o silêncio, a pouca compreensão

da identidade cultural do município. É comum ouvir comentários do tipo “Pojuca

não tem nada”, referindo-se à idéia de que não há nada que expresse a “cara” do

município, ou “Pojuca é a terra do já teve”, referindo-se ao fato de que hoje

existem menos coisas no município (como cinema, clubes, festas, organização

política...) que no passado. Também é evidente a indiferença ou a falta de

conhecimento dos poderes públicos quanto aos incentivos às manifestações

culturais; praticamente, não há nenhum estímulo à vivência cultural da população

pojucana, Os recursos destinados a esse tipo de manifestação, são empregado

em modismos, em “grandes” atrações em detrimento da preservação das

manifestações culturais da cidade.

Mas o tema ainda não estava pronto. Com ele ingressei nesse Mestrado,

porém, nos primeiros encontros com minha orientadora, fui questionada sobre

qual memória era essa que eu pretendia investigar se é preservada ou não entre

os pojucanos e pojucanas. Esse questionamento me provocou outra inquietação,

me fez perceber que aquela idéia de pesquisa ainda não estava pronta e, ao

formular a resposta ao questionamento feito por minha orientadora, tive a

oportunidade de delimitar melhor o tema da dissertação, assim, foi nesse

momento que defini que a memória que seria investigada era a africana e a

indígena. Decisão tomada a partir das conversas preliminares com as duas

primeiras rezadeiras que tive a oportunidade de entrevistar.

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A partir de então considerei a hipótese de que no cotidiano das rezadeiras,

os seus fazeres, saberes e rituais são impregnados de rudimentos da sabedoria

africana e também indígena.

Nessa perspectiva, levantei a seguinte questão: como a memória africana

e indígena é preservada através das rezadeiras de Pojuca?

Para responder a esse problema precisei interpretar, primeiramente, as

falas e histórias contadas pelas rezadeiras de Pojuca, sujeitos sociais dessa

pesquisa, além me debruçar sobre dados da história do Recôncavo Baiano, onde

Pojuca está localizada, e nela identificar o que se fala dos negros que foram

levados na condição de escravos para os engenhos canavieiros implantados

naquela região desde o século XVI.

A princípio, parece-me evidente a invisibilidade da memória indígena em

Pojuca, pois, ainda que saibamos dessa existência por força da compreensão

histórica da colonização do Brasil e da localização geográfica do município em

questão e também da alusão feita ao significado do seu nome, sem um olhar

mais apurado e cauteloso, não é possível perceber as influências dessa memória

entre os pojucanos e pojucanas. Num olhar superficial, é praticamente total a

ausência desse referencial entre esses munícipes; também em relação aos

africanos, embora não tenha como negar a sua presença, pois essa é manifesta

nas crenças, em certos valores e nas características físicas predominantes da

grande maioria da sua população, essa, em geral, tenta negar tais evidências.

Diante dessas constatações, observar o cotidiano das rezadeiras de

Pojuca, para, a partir daí, investigar se a memória africana e indígena é

preservada no município, se revelou numa tarefa de singular importância e,

sobretudo, prazerosa, ainda que árdua, pois, tal tarefa significou um verdadeiro

mergulho nas minhas próprias raízes.

Pois, sou a quarta filha de uma família de sete irmãos, desses sete cinco

nasceram em casa, com o auxilio de mãe Lina, famosa parteira da cidade, já

falecida. Só os dois mais novos não nasceram com o seu auxílio, pois em Pojuca

já tinha maternidade e mãe Lina já se considerava muito velha para aquela

tarefa. Minha família não era a única a recorrer aos préstimos da mãe Lina. Boa

parte dos meus visinhos, com a mesma faixa de idade, nasceu por suas mãos.

Muitas das minhas vizinhas, já falecidas, eram rezadeiras, como dona

Xandu, mãe de uma das rezadeiras entrevistadas – dona Dida, dona Cecília,

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dona Eremita, essas duas últimas mãe e filha, respectivamente. Todas sabiam

algum tipo de reza, de cura. Minha mãe também sempre nos rezava, quando

estávamos adoentados e ela dizia que não era doença de médico ou, ainda que

fosse sempre recorria também aos chás, banhos e benzeções.

Fui educada em meio a muitas crenças. Muitas histórias povoaram e ainda

povoam meu imaginário. Kel, minha irmã mais velha, nasceu no dia treze de

junho, dia de Santo Antonio, por isso minha mãe rezou durante muitos anos as

treze noites em homenagem ao Santo. Para mim aquilo era mágico. Durante o

mês de junho, praticamente todos os dias tinha festa na minha casa, pois eram

muitas as pessoas que iam rezar para o Santo, fazer pedidos e pagar

promessas. Tinha os puxadores do ofício, um altar muito bonito, cada dia

decorado com cores e flores diferentes; ofício cantado, incenso, palmas, doces...

Assim, eu também me tornei uma devota de Santo Antonio.

Quando fui me dando conta de todas essas questões, inundando-me das

lembranças da minha infância, entendi porque o resultado daquele censo cultural

tanto me incomodou. Percebi que existe uma perfeita simbiose entre eu (a

pesquisadora) e os sujeitos sociais da minha pesquisa (as rezadeiras). Digo isso

sem nenhum receio, pois, longe do discurso da neutralidade científica, posso

dizer que foi o tema que me escolheu e não eu que escolhi o tema, assim, como

ouvi alguém dizer recentemente num terreiro: “O candomblé é uma religião muito

exigente. É ele que escolhe as pessoas e não as pessoas que escolhem o

candomblé”.

Mergulhei no universo das rezadeiras em busca da memória africana na

cultura de Pojuca. Apesar de trabalhoso, não muito difícil, pois essas mulheres,

embora nos primeiros contatos se apresentassem um tanto tímidas e dessem

respostas muito diretas e pouco profundas, gostam de falar. Então, quando

consegui conquistar a confiança, essas mulheres, tornaram-se faladeiras,

passaram a narrar sobre as importantes curas que conseguiram realizar ao longo

dos anos do ofício de rezadeiras. Bastam algumas perguntas para termos

importantes e curiosos relatos, que fluem juntamente com curiosas maneiras de

ver o mundo e de fazer as coisas.

Na perspectiva de responder o problema provocador dessa pesquisa,

busquei traçar as respostas a essa pergunta com o objetivo de investigar e

analisar o papel das rezadeiras de Pojuca no processo de preservação da

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memória indígena e africana do município. Para tanto, escolhi como referencial

metodológico a Hermenêutica Profunda (HP) ou metodologia da interpretação,

sugerida por Thompson (1995), que se desenvolve em três momentos distintos

que se completam e constroem o todo da pesquisa: análise sócio-histórica

(etnografia), através do qual entrevistei e observei os cotidianos das rezadeiras,

identificando esses e suas peculiaridades e semelhanças e descrevendo-o;

análise formal ou discursiva, na qual fiz análise do discurso das rezadeiras,

observei as construções simbólicas do universo das rezadeiras e a interpretação/

re-interpretação, quando analisei, interpretei e reinterpretei a vivência, os

sistemas simbólicos das rezadeiras no contexto do seu cotidiano, a partir também

do estudo da história de Pojuca. Para a qual investi também na pesquisa

documental.

Assim, procurei informações em alguns livros; também pretendi pesquisar

no arquivo público do município de Pojuca, para o qual não tive permissão de

acesso e na Paróquia de Pojuca. Porém, só recorri a tais fontes a partir das

necessidades provocadas pelos encontros com as rezadeiras.

A pesquisa bibliográfica, fundamental para situar as reflexões em torno

dos meus sujeitos sociais – as rezadeiras, se constituiu na primeira investida da

pesquisa, necessária para construir o arcabouço teórico dessa dissertação,

então, a discussão em torno da identidade cultural foi embasada pelas

abordagens de Sodré (2005), Geertz (1989), Burk (2004), Santana (2004), Laraia

(2008) e Eliade (2002); para refletir sobre memória referi-me as idéias de

Halbwachs (1990): memória coletiva, Nora (1993): lugares da memória e,

principalmente Pollak (1992), quando refere-se à memória subterrânea.

Já para abordar sobre cotidiano, optei pelas idéias de autores como Heller

(1989), Lefevbre (1991) e Certeau (1996). Enquanto que para discutir a categoria

rezadeiras apoiei-me nas idéias de Cascudo (1999), Oliveira (1985) e Santos

(2005).

No entanto, no processo de aprofundamento sobre as rezadeiras, outras

discussões como: dupla pertença e mito nos exigiram outras leituras. Depois de

sofrer mais uma metamorfose, o título dessa pesquisa assim ficou: A cruz, o ewé

e o xamã: estudo sobre a preservação da memória africana e indígena de Pojuca

através da vida cotidiana das rezadeiras.

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Porém, quando cheguei ao processo de exame de qualificação, etapa

proposta pelo programa de mestrado ao qual estou vinculada, embora já tivesse

apresentado certo volume de pesquisa, com os questionamentos e comentários

feitos pela banca examinadora, percebi que não teria tempo suficiente para

abordar a memória indígena e africana, por isso, devido à maior dificuldade de

acessar as informações referentes à temática indígena, de acordo com o perfil da

realidade pojucana, resolvi debruçar-me com mais profundidade sobre a memória

africana, adiando pesquisa a cerca da memória indígena para ser aprofundada

numa próxima oportunidade.

Assim, o título mais uma vez sofreria alteração e nasceu de uma situação

inusitada. Certo dia, no momento em que já me despedia de dona Dida (70 anos)

uma das rezadeiras, quando o gravador já estava desligado, ela resolveu falar de

algo que nunca havia comentado durante todas as visitas que lhe fiz ao longo

dessa pesquisa. Revelou-me o costume da sua mãe de fazer caruru, pois havia

tido trigêmeos, então, voltei, liguei o gravador e pedi que ela repetisse a

informação com mais detalhes.

Cheguei em casa me perguntando porquê só naquele momento ela havia

revelado tal informação, dei-me conta, então que negar ou omitir algumas

informações, ainda que apenas nas palavras, não era característica apenas do

seu comportamento, mas das outras rezadeiras também. Dona Senhora (80

anos), por exemplo, só me revelou a sua devoção por Santa Bárbara, alguns

encontros depois e não foi no mesmo dia que revelou que essa Santa Bárbara

era “a do Candomblé”, ou seja Iansã.

Assim, as reflexões provocadas por essa constatação renderam o título

dessa pesquisa, que assim se consolidou: Heranças Secretas: as memórias

africanas no cotidiano das rezadeiras de Pojuca. Com o título definido, percebi a

necessidade de ajustar o problema; que então ficou assim: como as rezadeiras

de Pojuca preservam as memórias africanas no seu cotidiano? Com título e

problema definidos segui na pesquisa, confirmando a hipótese: no cotidiano das

rezadeiras, os seus fazeres, saberes e rituais são impregnados de rudimentos da

sabedoria africana, apenas aboli (por enquanto) o elemento indígena.

A primeira boa constatação que essa pesquisa me deu foi a negação do

resultado do I Censo Cultural da Bahia, que apresenta apenas duas rezadeiras.

Ressalto inclusive, que uma rezadeira “Joana Elisa” é citada duas vezes, assim o

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Censo afirma a existência de três, mas cita apenas duas. No entanto nas

investidas dessa pesquisa, consegui identificar 27 (vinte e sete) rezadeiras entre

as que acompanhei e as outras que foram indicadas durante o processo da

pesquisa; dentre elas, dois homens, no entanto, ao lado dessa constatação

animadora, veio uma angustiante: a maioria dessas mulheres não são de Pojuca,

menos da metade são nascidas nessa cidade, as demais já vieram para Pojuca

em idade adulta, confirmando a idéia de que há um excessivo fluxo migratório

naquela cidade.

Diante dessa realidade, resolvi entrevistar todas as mulheres com idade

superior a sessenta anos e as informações que contribuíssem para a elaboração

de uma conceituação de rezadeiras seriam consideradas nessa pesquisa, no

entanto, para efeito da memória africana de Pojuca através das rezadeiras,

limitei-me a interpretar as informações das cinco rezadeiras que nasceram em

Pojuca, com idade a partir de setenta anos e tiveram sua formação dentro da

realidade do município. A saber: dona Dida (70 anos), dona Djão (74 anos), dona

Laura (81 anos), dona Senhora (80 anos) e dona Zilda (72 anos).

E assim, depois de todas essas investidas e de acordo com os referenciais

teóricos e metodológicos citados acima, essa dissertação foi elaborada,

organizada em quatro capítulos assim apresentados:

Capítulo I, O caminho teórico-metodológico, no qual discorro sobre as

categorias de análise que serviram para embasar as reflexões e interpretações

dos dados coletados e informo quais linhas metodológicas utilizei e como as

utilizei para realização da pesquisa, considerando, principalmente, o referencial

da Hermenêutica profunda - HP.

Capítulo II, A História de Pojuca nas memórias guardadas pelas

rezadeiras, no qual me encarrego de fazer a reconstituição da história de Pojuca,

tendo como referência informações fornecidas pelas rezadeiras, bem como

informações fornecidas por outras pessoas mais antigas da cidade, as quais

meus pais também contribuíram, além de dados oficiais e de outros

pesquisadores. Nesse capítulo tento identificar indícios da presença africana na

constituição histórico-cultural de Pojuca.

Capítulo III, Rezadeiras: guardiãs da memória, o maior dos capítulos, pois

é nele que realizo a discussão central dessa pesquisa, onde procuro responder

ao problema apresentado por ela, conjugando as reflexões dos dados coletados

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com as perspectivas teóricas definidas em seu curso, através da interpretação-

reinterpretação desses.

Por último, no IV capítulo, apresento as considerações finais, que prefiro

chamar de novas indagações para o tema, deixando evidente a necessidade e

pretensão de continuidade da presente pesquisa, pois, todas as interpretações

que fiz no decorrer dessa me deram mais sede, vontade de voltar à fonte e

lançar-me ainda mais na sua profundidade. Além do mais, insisto em investigar a

memória indígena. Afinal, pesquisar é uma atividade dialética, a certeza de hoje é

a dúvida de amanhã e a própria história de vida de cada pesquisador e

pesquisadora que o/a lança para o abismo da pesquisa.

Foi assim nesse processo de construção da dissertação. Inevitavelmente,

fui transportada, através da memória, para a minha infância: as brincadeiras no

quintal de casa ou da casa da minha avó, onde com irmãos, primos e colegas

brincávamos por entre as plantas que nos forneciam sombra, frutas e também as

folhas usadas nas comidinhas de boneca, mas que eram também as folhas da

cura, usadas para os chás, banhos e para rezar as pessoas. Lembro-me que

quando alguém em casa estava desanimado, febril, sem apetite e ou sonolento,

logo se tinha um diagnóstico: é olhado, olho grosso! E o remédio era

providenciado pela minha própria mãe ou por alguma vizinha: três galhos de

vassourinha, uma reza murmurada com as folhas passando pelo corpo; ritual

repetido por três dias consecutivos. Era infalível!

Embora essa dissertação refira-se à memória de Pojuca, ela pretende ir

além de um lugar determinado, se amplia em direção para onde há ou existiu

experiências, vivências de rezadeiras. Ela pretende-se fustigante e despertar

outras memórias, suscitar outras indagações. É um convite ao mergulho nas

entrelinhas da memória. Adentrem por essas páginas, inundem-se das memórias

de vossas infâncias e se deliciem das possibilidades de encontros consigo

mesmo e com seu espaço, seu lócus e sua memória.

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Capítulo I

1 O caminho teórico-metodológico 1.1 O caminho percorrido

E é como se eu despertasse de um sonho Que não me deixou viver

E a vida explodisse em meu peito Com as cores que eu não sonhei

E é como se eu descobrisse que a força Esteve o tempo todo em mim

E é como se então de repente eu chegasse Ao fundo do fim

De volta ao começo Ao fundo do fim

De volta ao começo

Segundo Boas (2004) as experiências do indivíduo são “amplamente

determinadas pela cultura na qual ele vive2”. Ainda segundo o mesmo autor, “as

condições casuais das ocorrências culturais repousam sempre na interação entre

indivíduo e sociedade3”. De acordo com essas afirmações, compreendemos que

tal interação se apresenta cada vez mais complexa, uma vez que, as pessoas da

modernidade ou pós-modernidade, emersas num turbilhão de acontecimentos,

símbolos e informações, que permeiam vossas vidas, ao mesmo tempo em que

desejam conectar-se ao mundo, sentem a necessidade de afirmação da sua

identidade, por isso, buscam encontrar suas raízes ou se espelham em

determinados referenciais.

2 BOAS, F. Antropologia Cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, 96. 3 Ibid., p. 107;

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A incansável busca pelo conceito de cultura engendrada pela moderna

antropologia, a partir do século XIX, apesar do seu caráter etnocêntrico inicial,

evidencia essa necessidade de afirmação da identidade. Nessa perspectiva

compreendemos que a preocupação com o estudo sobre as rezadeiras de

Pojuca, enquanto procedimento que nos conduz à compreensão do

comportamento e da identidade de determinada sociedade, condiz efetivamente

com a importância atribuída aos estudos culturais.

Compreendemos que os estudos culturais nos exigem traçar um caminho

metodológico que nos permita abordar esse tema, considerando a complexidade

contida nele, bem como ter a capacidade de captar a subjetividade que é uma

das suas principais características, como o é toda e qualquer concepção cultural,

em qualquer parte do mundo.

A graduação em licenciatura nos proporcionou o contato com as idéias de

Paulo Freire (1982) e, a escolha da nossa conduta pedagógica foi profundamente

marcada por essas idéias, especialmente quando ele afirma que

A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que

a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto.4

Essas palavras de Freire (1982) nos fazem crer que a vivência das

diversas experiências é a mais significativa lição para qualquer ser humano. As

palavras ganham sentido real, na medida em que, traduzem sentimentos,

sensações, desejos, compreensões de uma experiência vivida.

Também, ao ler as palavras de Lênin presentes no texto de Minayo

“pensar a metodologia como a articulação entre conteúdos, pensamentos e a

existência5”, imediatamente nos remetem à mesma compreensão que a idéia

freiriana. Tal concepção nos faz crer que as nossas experiências e compreensão

de mundo, bem como dos nossos sujeitos sociais, são fundamentais no processo

de construção do conhecimento.

4 FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três textos que se completam. 3. ed. São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1982. (Coleção Polêmicas do nosso tempo), p. 11. 5 MINAYO, Maria Cecília de Souza et al. (Org.) Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 2. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1994, p. 16.

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Consideramos que os modos de fazer, ver e de viver, memória, imaginário,

espaço, paisagens, história, identidade, crença... Enfim, tudo isso é muito

subjetivo e, dessa maneira, muito rico de signos e significados. Sem conceitos

unívocos, essas idéias, presentes e efetivadas de diferentes formas nas

sociedades e, conseqüentemente, no cotidiano das pessoas, nos intrigam e

desafiam ao esforço de interpretar coerentemente o que investigamos.

De acordo com Goldemberg (1999), “como a realidade social só aparece

sob a forma de como os indivíduos vêm este mundo, o meio mais adequado para

captar a realidade é aquele que propicia ao pesquisador ver o mundo através dos

olhos dos pesquisados”6. Essa afirmativa nos ajuda a compreender que o papel

do pesquisador pode perder sua importância e revelar-se estéril se não se

pautar, a priori, pelo olhar dos sujeitos sociais na base das suas observações e

conclusões. Isso nos faz crer que uma pesquisa social de qualidade só se revela

eficaz a partir do contato direto do pesquisador com os sujeitos sociais,

circunstância só possível se a pesquisa for realizada in loco.

Contudo, temos ciência de que nunca enxergaremos tais quais os sujeitos

sociais investigados, afinal, a subjetividade também nos envolve e todo o olhar

que lançamos sobre nossos sujeitos sociais já está previamente “contaminado”

por nossa concepção de mundo.

Segundo essa premissa, para realização da nossa pesquisa, avaliamos

como necessária uma metodologia que nos permita compreender o universo das

rezadeiras de Pojuca a partir do seu próprio olhar, dos significados que elas

atribuem ao que vêm, sentem, acreditam, criam e reproduzem. Ler para além do

que suas palavras dizem e assim, compreender, por exemplo, o que está por trás

de discursos como esse, de dona Laura (81 anos), quando questionada sobre o

motivo do uso das folhas no processo do benzimento. Em janeiro de 2010 ela

respondeu assim:

Não sei, mas você vê, a gente usa; você vê; qualquer

coisa que Jesus fez de cura, qualquer coisas que Jesus fez de cura, ele curou o cego, ele usou remédio, não? Que quando Jesus curou o cego, ele mandou ele cuspir no chão. Jesus cuspiu no chão, fez a lama e passou na vista. Não foi um remédio?7

6 GOLDEMBERG, Míriam. A Arte de Pesquisar. Rio de Janeiro, Record, 1999, p. 27. 7 Conversa realizada com dona Laura, 81 anos, em 22/01/2010.

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Porém, em junho do mesmo ano, ela respondeu com as seguintes palavras:

Porque as folhas é que dá o sinal; que diz se as

pessoas estão doentes ou não. Se não tiver, agente pára, não reza. Pelas folhas agente conhece se tem alguma doença, pela oração. Todas as folhas, para tirar tem que pedir licença (pausa). Todas as plantas tem um dono, para tirar tem que pedir licença. Agente pede assim: Senhor, me dê licença para tirar essas folhas aqui para cura dessa doença. Agente sabe que tudo quanto é folha Jesus está presente.8

Percebemos na primeira resposta a preocupação em atribuir a Jesus o motivo

do uso das folhas, já a segunda resposta está dividida em duas partes, antes e

depois da pausa. Num primeiro momento ela fala do poder das plantas e dos seus

donos, parece falar de “outros” donos, porém depois de uma considerável pausa,

completou que é Jesus quem está presente nas folhas, retornando o curso do seu

discurso para a mesma perspectiva da primeira resposta. Nesse caso, o silêncio

presente na pausa da sua fala soa mais que as palavras ditas, pois provoca

inúmeras indagações.

John B. Thompson (1995) considera a que:

(...) na investigação social o objeto de nossas

investigações é, ele mesmo, um território pré-interpretado. O mundo sócio-histórico não é apenas um campo-objeto que está ali para ser observado; ele é também um campo-sujeito que é construído, em parte, por sujeitos que, no curso rotineiro de suas vidas quotidianas, estão constantemente preocupados em compreender a si mesmos e aos outros, e em interpretar as ações, falas e acontecimentos que se dão ao seu redor.9

Baseados nessa afirmação, nos damos conta de que o discurso da

hierarquia intelectual, no qual quem estuda detém o conhecimento e ocupa

posição superior aos demais, cai por terra; pois, quem enche os pesquisadores

de novidades, que afirmam ou negam suas hipóteses e antigas certezas são os

sujeitos sociais; no nosso caso as rezadeiras de Pojuca.

O perfil da presente pesquisa é determinado por essas concepções.

Assim, ao referimo-nos às rezadeiras de Pojuca a denominação dada a elas,

8 Conversa realizada com dona Laura, 81 anos, em 02/06/2010 9 THOMPSON, John B. Ideologia e Cultura Moderna: Teoria social critica na era dos meios de comunicação de massa. Rio de Janeiro: Vozes, 1995, p. 358.

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diferente de objeto de pesquisa; depoentes ou informantes será sujeitos sociais,

uma vez que, na lógica da História Oral essas mulheres e suas histórias não

foram manipuladas nem postas à prova e sim consultadas, observadas,

entrevistadas e interpretadas; colaboradoras, agentes de um processo de

interpretação e construção de determinado conhecimento, afinal, ao serem

entrevistadas e observadas, essas mulheres também se colocaram a pensar

sobre suas vidas e seu ofício, como talvez não tivessem feito antes.

Já nas últimas visitas, dona Djão (74 anos) declarou-se decidida a

procurar alguém para ensinar como rezar; ela se deu conta da necessidade de

continuação desse saber.

A complexidade da temática abordada nessa pesquisa nos exigiu a

escolha de um caminho metodológico capaz de abarcá-la, sendo assim, optamos

pela Hermenêutica Profunda – HP, pois esta envolve tanto a abordagem

qualitativa, quanto a quantitativa, assim, de acordo com Minayo (1994): “O

conjunto dos dados quantitativos e qualitativos, porém, não se opõem. Ao

contrário, se complementam, pois a realidade abrangida por eles interage

dinamicamente, excluindo qualquer dicotomia”10.

Dessa forma, definimos o caminho metodológico começando pela revisão

bibliográfica, exigência primordial para qualquer tipo de pesquisa, com o

propósito de atender as abordagens das categorias de análise, a saber:

cotidiano, memória, identidade cultural e rezadeiras. É bem verdade que com o

andamento dos estudos, novas leituras se mostram necessária e outros autores

figuram no processo, assim como alguns dos já analisados são suprimidos da

discussão.

Em especial, para investigarmos o cotidiano das rezadeiras de Pojuca,

optamos pelo método da História Oral, com o processo interpretativo com base

na HP – Hermenêutica Profunda, referencial metodológico sugerido por

Thompson (1995). Esse enfoque é desenvolvido em três momentos distintos que

se completam:

A) Análise sócio-histórica (história oral), a qual o autor considera como

momento preliminar e indispensável da pesquisa, que tem como ponto de partida

10 MINAYO, Maria Cecília de Souza et al. (Org.) Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 2. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1994, p. 22.

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primordial a vida cotidiana dos sujeitos sociais, que ele chama de campo-sujeito-

objeto e tem como objetivo:

(...) reconstruir as condições sociais e históricas de produção, circulação e recepção das formas simbólicas, examinar as regras e convenções, as relações sociais e instituições, e a distribuição de poder, recursos e oportunidades em virtude das quais esses contextos constroem campos diferenciados e socialmente estruturados.11

B) A análise formal ou discursiva, que se preocupa com a organização interna

das formas simbólicas, com suas características estruturais, seus padrões e

relações. Pode se desenvolver a partir da análise semiótica, a qual: “se centra nas

próprias formas simbólicas, e procura analisar suas características estruturais

internas, seus elementos constitutivos e inter-relações, integrando-os aos sistemas e

códigos dos quais eles fazem parte”12.

Pode se desenvolver também a partir da análise lingüística, que por sua vez,

apresenta diferentes formas de ser realizada, a partir da compreensão do sujeito

social ou campo-sujeito-objeto, conforme Thompson (1995), como análise da

conversação, análise sintática, análise argumentativa e ou análise da estrutura

narrativa, a qual escolhemos para desenvolvimento dessa etapa da presente

pesquisa, pois identificamos que os discursos das rezadeiras entrevistadas

apresentavam nuances bem diversas e em alguns aspectos até contrários diante de

um mesmo aspecto observado, especialmente ao que diz respeito a questão da

religiosidade.

Porém, ao aplicarmos a análise da estrutura narrativa no processo de análise

formal ou discursiva, segundo as orientações da HP, seguiremos a compreensão da

análise estrutural da narrativa, compreendida a partir das palavras de Todorov

(1996):

O objetivo de tal estudo nunca será a descrição de uma

obra concreta. A obra será sempre considerada como a manifestação de uma estrutura abstrata, da qual ela é apenas uma manifestação de uma estrutura abstrata, da qual ela é

11 THOMPSON, John B. Ideologia e Cultura Moderna... Op. Cit. P. 369. 12 Ibid., p. 370;

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apenas uma das realizações possíveis; o conhecimento dessa estrutura será o verdadeiro objeto da análise estrutural.13

Segundo Todorov (1996), a análise estrutural da narrativa apresenta a

abordagem crítica, pois “terá sempre um caráter essencialmente teórico e não

descritivo”14. Nesse caso, compreendemos que para realização da análise

estrutural há a necessidade de um olhar interno às narrativas. Devemos observar

a narrativa a partir do que é dito e não a partir de conceituações externas. Assim,

“as obras literárias existentes aparecem como casos particulares realizados”, e

não imaginados ou pré-concebidos.

C) Por último a interpretação/ re-interpretação, que se desenvolve

baseada e a partir das duas primeiras. “Mas a interpretação implica um

movimento novo de pensamento, ela procede por síntese, por construção criativa

de possíveis significados15”.

Thompson (1995) ainda reforça:

O processo de interpretação, mediado pelos métodos

do enfoque da HP, é simultaneamente um processo de reinterpretação. (...) as formas simbólicas que são o objeto de interpretação são parte de um campo pré-interpretado, elas já são interpretadas pelos sujeitos que constituem o mundo sócio-histórico. Ao desenvolver uma interpretação que é medida pelos métodos de enfoque da HP, estamos reinterpretando um campo pré-interpretado; estamos projetando um significado possível que pode divergir do significado construído pelos sujeitos que constituem o mundo sócio-histórico.16

Por último, investimos na pesquisa documental, necessária para a coleta

de dados e informações sobre a história de Pojuca. Nessa fase fomos à busca de

documentos que nos ajudaram a conhecer e compor aspectos importantes da

história de Pojuca. Coletamos documentos da Paróquia de Pojuca, por

considerarmos que durante muitos séculos a Igreja Católica era a instituição que

tinha as maiores informações sobre a sociedade; além de alguns autores que

abordam a temática dos africanos no Recôncavo. Reconhecemos que essa

etapa poderia estar entre as primeiras atividades nesse processo da pesquisa,

13 TODOROV, Tzvetan. As Estruturas Narrativas. Tradução de Leila Perrone. 4ª ed. São Paulo: Perspectiva. 1969, p. 80. 14 Id. 15 THOMPSON, John B. Ideologia e Cultura Moderna... Op. Cit. p. 369 16 Ibid., 376.

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porém, preferimos que as informações das rezadeiras conduzissem o caminho

para tais fontes.

Compreendido dessa forma, o caminho que percorremos para efetivação

da presente pesquisa é processual e se baseia na confluência dos métodos

apontados acima, com o propósito de imprimir fluência e qualidade ao estudo em

questão. Assim, a conjugação desses métodos determina e aparece nos

capítulos da dissertação, sem, necessariamente estarem dispostos na ordem

respectiva do estudo ou exclusivas na construção das idéias que aqui se

apresentam.

Como pode ser observado, esse primeiro capítulo O caminho teórico-

metodológico está dividido em duas partes: a primeira refere-se à escolha dos

métodos e da metodologia aplicada à essa pesquisa e a segunda parte refere-se

à construção das significações das categorias de análises bases para as

reflexões do tema em questão.

A segunda parte desse capítulo foi se desenhando a partir do momento em

que a idéia da pesquisa foi se configurando. É fruto da pesquisa bibliográfica, no

qual apresentamos reflexões em torno das categorias de análise que oferecem

as bases teóricas dessa dissertação, mas já traz nos seus discursos

compreensões advindas das entrevistas e observações.

Nessa segunda parte apresentamos discussões em torno da Identidade

Cultural, Memória e do Cotidiano. Nosso propósito não é perseguir conceitos e

sim discorrer a acerca das elaborações de significações das categorias de

análise, como identidade cultural, memória e cotidiano. Para tanto, apoiamo-nos

em teóricos como Hall (2005), Geertz (1989), Muniz Sodré (2005), Santana

(2004), Consorte (1999) e Eliade (2002) nas reflexões sobre cultura, na

perspectiva da concepção de Identidade Cultural; Maurice Halbwachs (1990),

Pollak (1992), Pierre Nora (1993), Thomson (1997) e Guarinello (1997), nas

discussões para a definição mais apropriada de Memória no contexto dessa

pesquisa e Lefebvre (1991), Agnes Heller (1992) e Michel Certeau (1999), no

processo de construção da significação de Cotidiano, dentre outros.

Sobre identidade cultural, o primeiro aspecto a ser considerado é que

partirmos da reflexão sobre a categoria cultura, a qual possui inúmeros conceitos,

por isso, partimos da idéia de cultura como uma “teia de significados” atestada

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por Grretz (1989)17 e tendo como base o livro a Verdade seduzida: por um

conceito de cultura no Brasil, de Muniz Sodré (2005)18, mais a “A identidade

cultural na pós-modernidade” de Hall (2005)19 fomos cruzando com

conceituações feitas pelos outros autores já citados acima, o que nos permitiu

concluir a significação de Identidade Cultural enquanto um processo de

sentimento de pertencimento, como mais apropriada para a abordagem em

questão.

Por considerar a memória também como um elemento de resistência, a

construção da sua significação teve como pressuposto a memória conflitiva das

rezadeiras no processo de manutenção das suas crenças, seus saberes e

fazeres. Assim, optamos por teóricos que abordam a memória a partir dessa

compreensão, como Pollak (1989; 1992)20; de Pierre Nora (1993)21, embora

discordemos da sua idéia de que já não há memória, concordamos com a idéias

de lugares da memória,

De Maurice Halbwachs (1990)22 aderimos a sua concepção de Memória

Coletiva, quando referida à pequenas esferas, como família, grupos – a memória

coletiva “fixa sua atenção sobre o grupo23; porém, compreendendo a memória,

principalmente, enquanto individual, para a qual também nos apoiamos nas

reflexões de Thomson (1997)24

Autores como Heller (1992)25, Lefevbre (1991)26 e Certeau (1999)27

abordam o cotidiano por caminhos diferentes, mas é possível encontrar

confluência entre suas abordagens, especialmente, ao considerar a modernidade

como ponto de partida para a compreensão dessa categoria, o que nos permitiu

17 GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1989. 18 SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida: por um conceito de cultura no Brasil. Rio de Janeiro: DP&A, 2005, 3ª ed. 19 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. 20 POLLAK, Michel. Memória, esquecimento e silêncio. In: Estudos Históricos; Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989; POLLAK, Michel. Memória e identidade social. In: Estudos Históricos; Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992. 21 NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares.. In: Projeto História. São Paulo: Brasil, 1993. 22 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006. 23 Ibid., p. 109. 24 THOMSON, Alistair. Recompondo a memória: questões sobre a relação entre a História Oral e as memórias. In: Projeto História; São Paulo, n. 15. 1997. 25 HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. São Paulo: Paz e Terra, 1992, 4ª ed. 26 LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Ática S/A, 1991. 27CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petropólis: Vozes, 1999.

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ensaiar uma significação razoável para o tema e, a partir daí compreendermos

como se dá o dia-a-dia das rezadeiras nesse contexto.

Assim, situamos as abordagens de todos os teóricos adotados nesse

trabalho no mesmo período histórico – a modernidade ou pós-modernidade,

como defende Hall. Decisão que nos permitiu aferir uma incontestável afluência

entre suas considerações.

O segundo capítulo: A História de Pojuca nas memórias guardadas pelas

rezadeiras foi desenvolvido como a montagem de um quebra-cabeça, a partir das

informações fornecidas pelas rezadeiras e também por outros antigos moradores

da cidade, e, dessas informações também partimos em busca de dados

fornecidos por documentos oficiais na secretaria da Casa Paroquial de Pojuca,

também informações de pessoas no município de Catu, cidade a qual Pojuca

pertenceu, além de autores que abordam sobre a citada cidade em suas obras.

Tínhamos o propósito de também pesquisar no Arquivo Público Municipal.

Perdoem-me, se parece capricho, mas decidi pesquisar especificamente em

Pojuca, desvendar sua história presente nos seus próprios documentos, porém,

tive como obstáculo a impossibilidade de pesquisar no Arquivo Público Municipal,

pois não tive permissão de acesso ao citado logradouro.

Para realizar o terceiro capítulo: Rezadeiras: guardiãs da memória, além

da pesquisa bibliográfica, na qual consultamos autores como Câmara Cascudo

(1999), Elda Oliveira (1985) e Denilson dos Santos (2005), fomos à busca das

rezadeiras do município. Elaboramos um banco de dados com os nomes e

endereços dessas, além de calendário de visitas e entrevistas. Esse capítulo

ainda nos rendeu algumas reflexões sobre mito, com contribuição de Eliade

(2002)28, religiosidade popular, a partir das reflexões de Santos (2006)29 e dupla

pertença, a partir de Santana (2004)30 tendo como transversalidade a construção

social das rezadeiras.

O trabalho de campo teve inicio com conversas bem informais com

moradores da cidade sobre rezadeiras. As reações eram as mais diversas: uns

28 ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 6ª ed, 2002. 29 SANTOS, Rafael Beondani dos. Martelo dos hereges: militarização de Santo Antonio no Brasil colonial. Dissertação de Mestrado em História. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2006. Disponível em: http://www.historia.uff.br/stricto/teses/Dissert-2006_SANTOS_Rafael_Brondani_dos-S.pdf . Acessado em 25/06/2010. 30 SANTANA, Marise de. O legado ancestral africano na diáspora e o trabalho docente: desfricanizando para cristianizar. Tese de Doutorado, São Paulo: PUC, 2004.

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diziam que não existia mais rezadeiras, outros começavam a dar informações

onde eu encontraria, outros perguntavam se eu acreditava “nisso” e outros até se

colocavam à disposição para me levar até rezadeiras conhecidas suas.

Aceitamos de bom grado as solicitudes, mas fomos primeiramente ao

encontro das duas rezadeiras indicadas no I Censo Cultural da Bahia, dessas só

tivemos êxito com dona Zilda (72 anos), a outra, dona Joana Elisa, infelizmente,

não conseguimos localizar, nem por telefone, nem no endereço informados no I

Censo Cultural. Em seguida realizamos diversas visitas, tivemos contato inicial

com doze rezadeiras e ao longo da pesquisa fomos recebendo informações de

mais quinze rezadeiras.

Para estabelecermos os limites de rezadeiras que comporiam o quadro

dos sujeitos sociais dessa pesquisa, definimos como critérios a idade, a partir dos

setenta anos e a naturalidade, nascidas em Pojuca. Das doze entrevistadas no

primeiro momento, seis tinham idade a partir dos setenta anos, porém, apenas

quatro entre essas seis nasceram em Pojuca. Diante desse quadro,

consideramos como sujeitos sociais da nossa pesquisa, as quatro rezadeiras

nascidas em Pojuca, como idade a partir dos setenta anos, mas, ao longo da

pesquisa tivemos a oportunidade de conhecer dona Djão (74 anos), e, como ela

preenchia todos os critérios, além de disposição e muita informação interessante

para nos oferecer, também a incluímos nesse processo.

Então apresentamos como sujeitos sociais dessa pesquisa, cinco

rezadeiras, a saber: Aldir dos Santos Souza – dona Dida (70 anos), Jardelina

Moura Silva – dona Senhora (80 anos), Laura Alves Costa – dona Laura (81

anos), Maria José Cardoso Ferreira – dona Djão (74 anos) e Maria Zilda Moura

Nonato – dona Zilda (72 anos).

No período em que essas mulheres que nos contaram histórias, falaram

das suas vidas, nos apresentaram muitas folhas, declamaram rezas e nos

permitiram observar suas benzenções no momento em que atendiam as

pessoas; tivemos a oportunidade de penetrar nos seus espaços, perceber e

conhecer a simbologia em todo o seu contexto e nos dedicamos à interpretá-las,

pois:

De acordo com Thompson (1995):

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O enfoque da HP deve aceitar e levar em consideração as maneiras em que as formas simbólicas são interpretadas pelos sujeitos que constituem o campo-sujeito-objeto. Em outras palavras, a hermenêutica da vida quotidiana é um ponto de partida primordial e inevitável do enfoque da HP. Por conseguinte, o enfoque da HP deve se basear, o quanto possível, sobre uma elucidação das maneiras como as formas simbólicas são interpretadas e compreendidas pelas pessoas que as produzem e as recebem nos discursos de suas vidas quotidianas, este momento etnográfico é um estágio preliminar indispensável ao enfoque da HP.31

Então, tanto o terceiro capítulo, quanto as considerações finais: novas

indagações para o tema foram os principais momentos elaborados a partir da HP,

pois a investigação em torno das rezadeiras foi realizada através do processo

etnográfico. É como Thompson32 chama a análise sócio-histórica, o qual tem por

objetivo reconstruir as condições sociais e históricas de produção, circulação e

recepção das formas simbólicas. Esse momento pode ser desenvolvido em

vários pontos a partir da natureza do sujeito social estudado. De acordo com os

aspectos apontados por Thompson, o que corresponde à natureza do estudo das

rezadeiras refere-se ao espaço-temporais.

(...) podemos identificar e descrever as situações

espaço-temporais específicas em que as formas simbólicas são produzidas e recebidas. As formas simbólicas são produzidas (faladas, narradas, inscritas) e recebidas (vistas, ouvidas, lidas) por pesoas situadas em locais específicos, agindo e reagindo a tempos particulares e a locais especiais, e a reconstrução desses ambientes é uma parte importante da análise sócio-histórica.33

Já a análise formal ou discursiva refere-se à compreensão de que objetos

e expressões que circulam nos campos sociais são também construções

simbólicas complexas que apresentam uma estrutura articulada. Thompson34.

Tais formas simbólicas são os produtos e ações situadas que estão baseadas em

regras, recursos e etc., disponíveis ao produtor; mas elas são também algo mais,

pois elas são construções simbólicas complexas, através das quais algo é

expresso ou dito.

31 THOMPSON, John B. Ideologia e Cultura Moderna... Op. Cit. 363; 32 Ibid., p. 366 33 THOMPSON, John B. Ideologia e Cultura Moderna... Op. Cit. 366; 34 Ibid., p. 366; 368;

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Essa fase apresenta-se muito importante, pois o universo das rezadeiras é

completamente envolto de símbolos e significados. Porém, embora de extrema

relevância no processo da pesquisa qualitativa, tal forma de análise só tem

sentido se realizada no conjunto dos momentos que compõem a HP.

O último momento componente da HP: interpretação/ re-interpretação, é

esclarecido pelo autor como processo construído a partir dos dois primeiros

momentos: a análise sócio-histórica e análise formal ou discursiva, porém diverso

destes. Momento fundamental tanto na construção do quarto capítulo como nas

considerações finais, pois ambos se constituíram através da interpretação do que

foi colhido em documentos, entrevistas e observações.

Thompson35 afirma que a interpretação implica um movimento novo de

pensamento, ela procede por síntese, por construção criativa de possíveis

significados... Essa concepção nos remete compreensão que também temos

sobre a tríade “tese – antítese – síntese” método da dialética marxista –

hegeliana. Dessa maneira, compreendemos que a interpretação/reinterpretação

nos permite, a partir do que tivemos a oportunidade de observar e apreender

durante o processo de pesquisa de campo, confrontar e avaliar o que se

apresenta como verdade e, a partir daí, construirmos novas idéias ou novos

conhecimentos. Assim, a metodologia da HP como um todo, é um processo

dialético.

Esse momento exige grande criticidade e também coerência, pois as pré-

intrepretações, as interpretações e a reinterpretação podem ser conflituosas.

Assim, Thompson adverte:

Ao desenvolver uma interpretação que é mediada pelos

métodos da HP, estamos reinterpretando um campo pré-interpretado; estamos projetando um significado possível que pode divergir do significado construído pelos sujeitos que constituem o mundo sócio-histórico.36

Sendo assim, desenvolvemos o processo de interpretação/reinterpretação,

a partir da preocupação com a coerência, para que ainda que a nossa

interpretação entre em conflito com o que as rezadeiras proclamem como

verdade e concepção de mundo, não prejudiquemos nossa pesquisa pelo receio

35 Ibid., p. 375; 36 Ibid., p. 376;

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de decepcioná-las. No entanto, devemos respeitar seus pontos de vista e

considerá-los como fundamentais para a compreensão do processo que está

sendo estudado, pois, Thompson (1995) nos mostra que:

(...) a justificação de uma interpretação pressupõe um

princípio de não-imposição e que, dentro dos amplos contornos estabelecidos por esse princípio, podemos desenvolver argumentações dentro de contextos específicos, a fim de defender ou criticar, uma interpretação específica, mostrar que ela é plausível ou implausível, justificável ou injustificável, à luz da evidência e das razões que podem ser trazidos dentro desse contexto da investigação.37

Essa lógica se apresentou com notoriedade nessa pesquisa quando

observamos os discursos das rezadeiras a cerca do ser católica. Podemos

identificar falas muito diferentes e, no entanto, todas elas acabaram apontando

para um mesmo prisma de compreensão. Enquanto afirmavam ser católicas, era

nas próprias argumentações para respaldar suas afirmativas que encontramos os

elementos conflituosos e contrários a tal afirmação.

Thompson (1995) esclarece essa situação nas seguintes palavras:

É essa possibilidade de um conflito de interpretações,

uma divergência entre uma interpretação de superfície e uma de profundidade, entre pré-interpretação e reinterpretação, que cria o espaço metodológico para o que eu descreveria como o potencial crítico da interpretação...38

Podemos concluir que a Hermenêutica Profunda impõe a nossa pesquisa

uma postura crítica, porém, verdadeiramente fundamentada nos textos e também

nos contextos que estamos investigando. Essa premissa nos fez identificar

contrastes entre o cotidiano e as falas das rezadeiras, e, desses contrastes

podemos identificar a presença de símbolos e significados da cultura indígena e

africana nos seus mitos e ritos, que reafirmam a cultura cristã negando em seus

discursos as culturas indígenas e africanas, mas em suas práticas reafirmando-

as.

37 Ibid., p. 412;

38 Ibid., p. 336;

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As técnicas utilizadas para realização desse trabalho em conformidade

com a metodologia adotada foram: coleta de dados, fundamentais no processo

da pesquisa documental, na composição da história de Pojuca; a observação,

importante para compreensão do que era dito e também do não dito pelos

sujeitos sociais. Além disso, empregamos as entrevistas.

Optamos, no entanto, pela entrevista desenvolvida a partir de dois

aspectos: primeiro direcionamos algumas perguntas gerais como nome,

endereço, naturalidade, profissão, formação, estado civil, idade e religião, além

do pedido para que recitassem algumas das orações repetidas durante o ritual da

benzeção, depois seguimos com a entrevista não estruturada, pois atentamos

para não direcionar as respostas das rezadeiras no sentido das nossas

expectativas, além de considerarmos pertinente atentar para o que elas avaliam

como importante para ser dito sobre seu cotidiano, saberes e crenças. Aspecto

que nos rendeu muitos elementos para interpretação.

Essa pesquisa nos fez perceber que a linguagem, explorada nas suas

mais diversas formas, pode ser um fundamental instrumento para a construção

de um contínuo, gradual, mas eficaz processo de preservação da memória, bem

como para a manutenção dos laços que nos identificam e, consequentemente,

fortalecem e se constituem como sutil resistência. É nessa perspectiva que

iniciamos as reflexões em torno das categorias de análise que dão bases às

nossas interpretações/ reinterpretações das idéias, símbolos, discursos e

sentidos coletados e identificados no decorrer desse trabalho.

Segundo Lefebvre “A reserva de poder da linguagem nunca se esgota”.39

Palavras muito pertinentes para um tópico destinado ao estudo conceitual de

determinadas categorias, que tem como pretensão tecer significados. E é

justamente a linguagem que dá sentido e nomes às coisas, que verbaliza as idéias e

permite que essas sejam comunicadas.

Partindo dessa concepção, compreendemos que a linguagem é o

elemento fundamental para a construção e ou desconstrução de qualquer idéia,

mais que isso, em se tratando da presente pesquisa, a linguagem, viva e

dinâmica, dialética e concreta (de acordo com a sua função social) e,

39 LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno. Op. Cit.; p. 9;

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principalmente, subjetiva é também o ponto de convergência entre a tríade que

aqui se apresenta: identidade cultural, memória e cotidiano.

Admitimos que, a priori, quando pensamos o tema dessa pesquisa, apesar

de acreditar na relação entre os termos dados, não desconfiávamos que essa

relação era tão profunda. São, pois, intrínsecas, assim como o mar, que não

seria mar se não fossem os rios, apesar das suas distintas peculiaridades. Pois,

um depende do outro para que sejam, de fato, eles mesmos; para que, de fato,

tenham sentido.

Essa conjunção entre os três termos é fundamental para o estudo da

memória africana de Pojuca, a partir do cotidiano das rezadeiras; pois nos

oferece argumentos para o olhar mais apurado da realidade que buscamos

desvendar, dentro do contexto em que se encontra cada uma das rezadeiras

investigadas, e assim, como numa troca mútua, tanto as abordagens dos

diferentes autores vão nos permitir identificar os determinados conceitos entre os

sujeitos sociais; como, a partir da análise, interpretação e re-interpretação dos

seus discursos e fazeres, saberes, poderemos tecer novas significações ou

aspectos para identidade cultural, memória e cotidiano.

1.2 Identidade cultural: tecendo significados

Quem teve a oportunidade de viver no meio rural ou longe dos grandes

centros urbanos, ou numa casa com quintal e não tem nenhuma relação com

algum tipo de planta ou erva? Possibilidade praticamente impossível. As plantas

fazem parte da nossa vida, nos alimentam, nos acolhem e confortam com suas

sombras, nos curam... Mas, de acordo com as experiências vividas, cada pessoa

desenvolve uma relação diferente com as plantas. As rezadeiras, por exemplo,

imediatamente, vêem nas plantas, potencial poder de cura. Dona Zilda40, uma

das rezadeiras dessa pesquisa, deixa isso bem evidente, quando profere: “as

folhas são atraentes”. Dona Laura41 também nos faz compreender dessa

maneira, quando diz: “Deus deixou as folhas foi para curar, para rezar...”

40 Conversa com dona Zilda, 72 anos, em 05/05/2010. 41 Conversa com dona Laura, 81 anos, em 25/10/2010.

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Isso por que o nosso olhar perante o mundo é determinado por nossas

experiências de vida vividas ou aprendidas a partir das experiências dos mais

velhos. Assim, no dia-a-dia, muitas vezes fazemos coisas que não sabemos o

porquê nem nunca nos preocupamos em saber, apenas fazemos porque “é

assim que se faz”. Quando perguntamos a dona Senhora42 porque ela prefere

rezar no quintal, ela respondeu: “por que não sei, sempre fiz assim”.

Sodré (2005) esclarece esse comportamento comum entre os praticantes

das religiões de matriz africana dos dias atuais:

(...) no ritual negro de hoje (dos terreiros da Bahia, do

Norte, do Rio, aos quintais dos subúrbios paulistas), nem sempre se conhecem bem os fundamentos (isto é, a ordem originária dos textos, das liturgias), mas a comunidade se forma em torno do ato concreto de realização do culto.43

Podemos ir além dessa observação e acrescentar que também nos

quartinhos de santos, nos quintais não só dos subúrbios paulistas e mesmo em

algumas práticas cotidianas, preceitos44 e ritos são preservados, pois repetidos,

ainda que sem consciência dos seus fundamentos de origem. Assim a sabedoria

africana e ou afro-brasileira resiste, evidenciando a heterogeneidade cultural da

sociedade brasileira.

Então, o que para nós (afro-brasileiros) parece ser “normal” ou

“corriqueiro”, para pessoas que não passaram por nossas experiências, tais

coisas podem parecer absurdas. Isso porque, como afirma Geertz, a cultura é

como uma “teia de significados”45. Não temos como sair dela, por mais que

queiramos. Nosso olhar para determinada situação ou coisa, inevitavelmente,

será determinado pela nossa maneira de ver o mundo, pelos valores que nos

envolvem e dão sentido às coisas.

Acreditamos que esse é o primeiro passo para pensarmos cultura na

possibilidade de compreensão do diferente, por isso, povos e culturas diferentes;

mas nunca melhores ou piores, adiantados ou atrasados, modernos ou

primitivos; apenas diferentes.

42 Conversa com dona Senhora, 80 anos, em 05/05/2010. 43 SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida... Op. Cit.; p.137; 44 Preceito, para as rezadeiras está relacionado a obrigações do candomblé. Dona Dida, ao se referir ao caruru que sua mãe fazia porque teve filhos trigêmeos esclareceu: “mas não era de preceito, não”. 45 GEERTZ, C. A interpretação das culturas... Op. Cit.; p. 15;

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No entanto, reconhecemos que o mundo moderno tem feito severas

imposições para as pessoas. O mercado define as regras, o comportamento e os

valores. Utiliza-se da moda para definir padrões, da religião para definir o que é

certo e o que é errado, das leis para justificar a dominação de uns poucos sobre

ou outros. Utiliza-se da televisão para divulgar suas verdades e seduzir

consumidores. É nesse contexto que devemos pensar a cultura. Culturas que

estão esfaceladas, povos que entre si, não se conhecem, identidades confusas!

Sobre isso Hall (2005), ressalta:

Quanto mais a vida social se torna medida pelo

mercado global de estilos, lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas de comunicação globalizantes interligados, mais as identidades se tornam desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares, histórias e tradições específicos e parecem “flutuar livremente”. Somos confrontados por uma gama de diferentes identidades (cada qual nos fazendo apelos a diferentes partes de nós), dentre os quais parece possível fazer uma escolha.46

Por outro lado, o autor admite tendências contraditórias dentro da própria

globalização (modernidade) e, considera a possibilidade de resistência à essa,

forjada pelas identidades locais:

As identidades nacionais e outras identidades “locais” ou particularistas estão sendo reforçadas pela resistência à globalização.47

Sendo assim, ainda que reconheçamos o efeito opressor da globalização

ou da modernidade48, não podemos considerar tal situação como força infalível,

pois, ou conscientemente ou como uma mera forma de defesa, as pessoas,

grupos e ou comunidades reagem a esse tipo de opressão. Não é à toa que as

identidades locais ou particularistas, como o autor nomina, estão se re-

conhecendo, re-encontrando, tendo como princípio a resistência.

46 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Op. Cit.; p.75; 47 Ibid., p. 69; 48 Embora os diferentes autores apresentem conceituações bem definidas para cada termo, todos, ao referirem-se a tanto à globalização quanto à modernidade, geralmente consideram o mesmo período e as mesmas características e conseqüências para ambos. Assim, para efeito dessa pesquisa, considerando as abordagens de autores como Sodré (2005) e Hall (2005), dentre outros, ainda que globalização e modernidade não sejam, necessariamente, a mesma coisa, são aqui referências para as mesmas características do mundo atual.

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Um sério estudo da história dos africanos no Brasil nos faz saber, que

posturas de resistências diante de situações de extrema opressão, foram

largamente adotadas pelo povo negro, escravizado, especialmente no que se

refere às imposições culturais, aos valores que foram impostos aos africanos

pela sociedade cristã católica, como afirma Sodré (2005):

Hoje se sabe que, em plena vigência da escravatura –

com seus desmoralizantes castigos corporais, suas sangrentas intervenções armadas, suas táticas de assimilação e cooptação ideológicas (concessões de pequenos privilégios, oportunidades de ascensão social para os mestiços etc.) –, os negros desenvolviam formas paralelas de organização social.49

A afirmação de Sodré (2005) nos permite alegar que o comportamento de

resistência a partir da cultura, é uma potencial arma dos povos oprimidos,

especialmente por que cada povo constrói sua resistência a partir da

peculiaridade da sua cultura original.

Mas como construir resistência com base na cultura se vivenciamos

tempos de fragmentação por um lado e por outro generalização dos

comportamentos, valores e crenças, orquestrados pelos ditames da globalização

ou modernidade?

O próprio Sodré (2005), com exemplos da resistência dos negros (nagô)

na Bahia, nos ajuda a responder tal questionamento, quando afirma que: (...) “no

mesmo campo ideológico cristão do colonizador, fixaram-se as organizações

hierárquicas, formas religiosas, concepções estéticas, relações míticas, músicas,

costumes, ritos característicos dos diversos grupos negros”50.

Em outras palavras, podemos dizer que mesmo dentro do contexto de

opressão, de imposição de uma nova ordem cultural, um povo pode manter ou

re-inventar a sua cultura e resistir a partir dela. Para ser mais coerente, é

justamente a cultura que atua como elemento de resistência. É na sua cultura

que o povo busca inspiração, respostas para os desafios que lhes são postos. No

entanto, diante da realidade de repressão e esfacelamento de um povo, essa re-

invenção só se torna possível se esse povo, de acordo com as palavras de

49 SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida... Op. Cit.; p. 90; 50 Id.

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Sodré, consegue estabelecer os “elementos básicos de sua organização

simbólica de origem” 51.

É possível identificar esse aspecto, quando observamos o comportamento

de dona Senhora. Todas as vezes que se refere aos seus conhecimentos, às

suas crenças sempre cita a sua mãe, como uma necessidade de referendar o

que diz: “é que eu via minha mãe falar”52. É bem verdade que não se trata da

busca do elemento de origem, nos termos que Sodré sugere, mas há uma busca

da origem, através da sua maior referência – a mãe.

Também dona Dida busca amparar sua prática e seu comportamento de

razadeira nos ensinamentos de sua mãe: “as pessoas mais antigas do que eu,

fala; minha mãe, que rezava também, ela passava para mim isso, né? Não

poderia pegar folhas na beira da estrada, onde passava caixão”53. Dona Dida se

vale também das palavras de um antigo padre o qual lhe ensinou muita coisa: “o

padre Manoelito me ensinou que as rezas são os salmos populares, como

antigamente não tinha salmo, as pessoas rezavam essas rezas”54. Imaginamos

que nesse caso, poderíamos dizer, que, no que se refere aos seus aprendizados,

a figura do padre, substitui a figura do seu pai, já que esse não lhe ensinou muita

coisa.

E é justamente na origem – na cosmogonia da origem – de determinado

povo, que é possível estabelecer os laços identitários, a identidade cultural. Essa

compreensão nos faz crer que cultura não é uma palavra solta, ou um termo

genérico capaz de definir qualquer povo, por mais diferente que seja. Talvez por

isso, a conceituação desse termo seja tão complexa e controversa.

Mas, como já foi dito anteriormente, esse capítulo não tem o propósito de

definir conceitos. Nosso propósito é tecer significados, isso quer dizer que o que

estamos propondo é uma interpretação do sentido que os termos dados

adquirem quando relacionados à vivência das rezadeiras, assim, teremos a

significação destes sem o risco de ter que racionalizar ao extremo aquilo que é,

inevitavelmente, subjetivo.

51 Id. 52 Conversa com dona Senhora, 80 anos, em 05/05/2010. 53 Conversa com dona Dida, 70 anos, em 14/04/2010. 54 Conversa com dona Dida, 70 anos, em 10/03/2009.

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Peter Burke (2005)55, que também concorda com as abordagens de

Certeau, nos ajuda a explicar o sentido desse propósito, quando fala da

“recepção”. Isso quer dizer que o sentido e o significado das mensagens que são

comunicadas por qualquer transmissor e também em qualquer tipo de linguagem

são recebidos de acordo com a compreensão do receptor.

Não foi por acaso que optamos por iniciar a discussão em torno de uma

significação de cultura aderindo à idéia de “uma teia de significados”. Ainda que

não exista um conceito unívoco de cultura, não se pode negar que cada povo e

ou cada grupo vive e se relaciona com as pessoas, com o seu espaço,

determinado pelos valores, pelas experiências, pelos símbolos e mitos, que o

reportam e dão sentido a sua origem, a sua existência.

No entanto, diante dos tantos processos de transformação, fragmentação

e complexificação das culturas dos mais variados grupos étnicos e sociedades

espalhados pelo mundo, provocados pelas as guerras de conquistas, pelas

colonizações, unificações de nações e, mais recentemente pelo processo de

globalização, especialmente, com o gigantesco avanço das tecnologias de

comunicação e informação, impõe-se uma inquestionável dificuldade em

determinar a cultura de certos povos ou sociedades.

Segundo Hall (2005), na modernidade, são as culturas nacionais as

responsáveis em representar determinado povo, ou melhor, determinados povos

que foram “unificados” em um dado memento. Para ele:

As culturas nacionais são uma forma distintivamente

moderna (...). As diferenças regionais e étnicas foram gradualmente sendo colocadas, de forma subordinada, sob aquilo que Gellner chama de “teto político” do estado-nação, que se tornou, assim, uma fonte poderosa de significados para as identidades culturais.56

Ele diz ainda:

A formação de uma cultura nacional contribuiu para criar

padrões de alfabetização universais, generalizou uma única língua vernacular como meio dominante de comunicação em toda nação, criou uma cultura homogênea e manteve instituições culturais nacionais, como, por exemplo, um sistema

55 BURKE, Peter. O que é história cultural? Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2005. p. 104. 56 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade... Op. Cit., p. 49;

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educacional nacional. Dessa e de outras formas a cultura nacional se tornou uma característica chave da industrialização e um dispositivo da modernidade.57

Para Hall58, a cultura nacional é diferente de identidade nacional, porém, a

primeira é que determina a segunda. De acordo com o autor, a identidade

nacional não é inata ao ser humano, nós a formamos e transformamos no

“interior das representações”. Ele afirma que a nação não é apenas os limites

políticos, é, pois, algo que produz sentidos, que cria sentimento de identidade e

lealdade entre os seus.

Com essa compreensão de identidade nacional, a impressão que se tem é

de que não há como superar as imposições do Estado, do mercado ou das elites

que dominam as sociedades. Sensação que não se altera ao conhecermos o

conceito de campo, sub-campo e indústria cultural, abordados por Sodré (2005),

que afirma:

O problema da diversidade das culturas se esclarece

por meio da diversidade dos campos, isto é, dos espaços globais da ideologia que estabelecem valores diferentes para a atividade simbólica. O campo estipula as regras dos códigos através dos quais passam os discursos que uma classe ou uma etnia produzem num dado momento de sua história. (SODRÉ, 2005: 55).

No entanto, essa visão do autor está relacionada a um olhar ainda anterior

à modernidade, pois para classificar o comportamento cultural em tempos

modernos, Sodré (2005) argumenta em torno da idéia de subcampos culturais.

De acordo com essa compreensão, ele diz que “o advento da Modernidade

instaura no Ocidente a possibilidade de subcampos culturais, isto é, zonas de

especialização de códigos, manejados por instituições diversificadas...”59. Para

ele, “a ação do subcampo cultural se exerce, portanto, por meio de uma

‘censura’, cujos mecanismos podem ou não ser explicitados institucionalmente” 60.

57 Id. 58 Ibid., p. 48; 59 SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida... Op. Cit.; p. 56. 60 Ibid.; p.57.

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O autor nos apresenta dois subcampos culturais: a cultura elevada, que

corresponde e determina a cultura da elite, pautada na lógica de produção e a

indústria cultural ou produção de massa, que representa a ação do mercado e é

pautada pela lógica do consumo.

Nessa perspectiva apresentada por Sodré, o sujeito das classes populares

ou minorias é excluído quando refere-se à cultura elevada, pois:

A luta do subcampo pela autonomia produtiva leva-o a

censurar as demandas externas, a questionar as formas expressivas vigentes e a discriminar os receptores, na medida em que o discurso produzido se hermetiza, acessível apenas à camada social dotada de recursos para manejar o código de deciframento.61

Já em referência a indústria cultural, o sujeito das classes populares ou

minorias aparece apenas como um consumidor, levado pelas imposições da

indústria de massa a aceitar seus produtos também ideológicos, ou seja, não são

sujeitos:

(...) nele a forma produtiva, ao contrário da cultura

elevada, é acionada pela motivação econômica do retorno de capital, do lucro. A produção dita de “massa” apóia-se na rentabilidade do capital investido, o que a leva a buscar um público consumidor socialmente diversificado (heterogêneo, disperso e anônimo) e a faz dependente (heterônomia) do mercado.62

Só a classe média é apresentada como opositora às formas da cultura

elevada e da indústria cultural:

Estas ocorrem quando frações da classe média – por

meio de mecanismos de discriminação e seleção de públicos no interior da cultura de massas – participam de estratégias de distinções estéticas, tradicionalmente reservadas aos saberes da cultura elevada. Ou então quando tentam criar, sob a égide da indústria cultural, lugares de oposição aos mecanismos de legitimação (a censura) da cultura elevada – o fenômeno da contracultura é uma oposição desse tipo.63

61 Ibid., p. 59; 62 Ibid., p. 66; 63 Ibid., p. 69;

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Num primeiro momento essa percepção causa certa estranheza, mas, com

o aprofundamento da leitura, é possível compreender que ambos os autores

identificam um conflito eminente entre diferentes comportamentos culturais, que

ocorrem ao mesmo tempo e no mesmo espaço e, a partir desses conflitos é

possível perceber que outros atores e outros comportamentos emergem

reivindicando e/ou reinventando suas identidades.

Sodré argumenta sobre da disputa entre o subcampo da cultura elevada e

o subcampo da indústria cultural, que provocado por esse último, dá origem ao

pós-modernismo:

A essa mudança de estatuto do saber, os sociólogos

tem chamado pós-modernismo – uma condição ou uma era em que busca seus critérios de legitimação, ainda oscilando entre os da ideologia clássica e os da “falta de sentido e de verdade” da nova ideologia da operacionalidade absoluta, assentada na grande organização, cujos efeitos de totalidade (informacionais, tecnológicos, econômicos etc.) permeiam a sociedade capitalista pós-moderna.64

Em outro momento Sodré ainda afirma que:

A cultura, entendida como relacionamento com o real e,

portanto, como extermínio dos termos finalísticos do sentido, das posições ideológicas do sujeito65, implica excesso (não excedente, que é resto acumulado), consumação, reversibilidade. Não é nenhum sistema, nenhuma estrutura, mas o sedutor vazio que nos indetermina.66

Também Hall aponta o pós-modernismo como fruto da disputa entre as

identidades nacionais e a globalização:

As identidades nacionais permanecem fortes,

especialmente com respeito a coisas como direitos legais e de cidadania, mas as identidades locais, regionais e comunitárias têm se tornado mais importantes. Colocadas acima do nível da cultura nacional, as identificações “globais” começam a deslocar e, algumas vezes, a apagar, as identidades nacionais.67

64 Ibid., p. 70; 65 Grifo nosso. 66 Ibid., p. 88; 67 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade... Op. Cit.; p. 73;

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50

Verifiquemos que esse momento, é possível, ainda que de forma

subtendida, compreender que outras vozes ou outros atores, ainda que

contrariando a lógica do pós-modernismo, emergem nesse cenário, atuando na

luta por identidades étnicas, particulares, comunitárias ou locais.

Observemos que Hall (2005), com um breve questionamento, já sinaliza

que a cultura nacional, apesar de todos os esforços e todas as formas (violência

bélica, perseguição religiosa, imposição de novas línguas...) para unificar a

nação, se mostra ineficaz, pois busca juntar diferentes etnias, grupos, classes

sociais numa mesma representação identitária:

Para dizer de forma simples: não importa quão

diferentes seus membros possam ser em termo de classe, gênero ou raça, uma cultura nacional busca unificá-los numa identidade cultural, para representá-los todos como pertencendo à mesma e grande família nacional. Mas seria a identidade nacional uma identidade unificadora desse tipo, uma identidade que anula e subordina a diferença cultural?68

Imaginamos as culturas nacionais ou os campos como um caldeirão de

diversos grupos étnicos e raças diferentes, tendo que se enquadrar num ethos

forjado para mantê-los como um só povo, sempre ameaçando explodir em

conflitos étnicos, raciais e sociais. Inevitavelmente, movimentos, silenciosos ou

com ar de revoltas, se espalham pelas nações, onde as minorias resistem às

imposições da cultura elevada e ou da indústria cultural.

Cabe ressaltar, no entanto, que esses movimentos não são uma

peculiaridade do tempo atual, da pós-modernidade. As formas são diferentes, as

inspirações ou provocações também são outras, pois, de acordo com Sodré

(2005), “A cultura, movimento do sentido, relacionamento com o real, tem de lidar

com as determinações geradas num dado espaço social e num tempo histórico

preciso”69. Isso nos permite afirmar que todo povo submetido ou subjugado, em

qualquer tempo histórico, forjou formas de resistência.

A cultura nacional brasileira, por exemplo, conforme podemos observar

nas palavras de Sodré, desde o seu primórdio, é uma especial representação

desse caldeirão cultural:

68 Ibid., p. 59; 69 SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida... p. 81;

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51

Como se sabe, a formação da sociedade brasileira, iniciada no século XVI, foi um processo de agrupamento, num vasto território a se conquistar, de elementos americanos (indígenas), europeus (os colonizadores portugueses) e africanos (escravos negros, trazidos principalmente da costa ocidental da África).70

Com um olhar muito diferente da “visão indiferenciada do humano” 71, da

antropologia do século XIX, o qual inaugura o preconceito racial do europeu

frente aos outros povos, compreendemos que essa situação nos faz perceber

uma inquestionável dificuldade em apontar a cultura desse ou daquele grupo e

ou sociedade. Também esses se vêm fragmentados, e, se fragmentados,

inevitavelmente fragilizados, necessitam recompor suas memórias, seus mitos,

suas origens.

É o que Hall nos afirma nas palavras abaixo:

Algumas vezes isso encontra uma correspondência num

recuo, entre as próprias comunidades comunitárias, a identidades mais defensivas, em resposta à experiência do racismo cultural e de exclusão. Tais estratégias incluem a re-identificação com as culturas de origem (no Caribe, na Índia, em Bangladesh, no Paquistão); a construção de fortes contra-etnias – como na identificação simbólica da segunda geração da juventude afro-caribenha, através dos temas e motivos do rastafarianismo, com sua origem e herança africana...72

A escravização dos negros africanos no Brasil, também provocou nestes,

desde o inicio, uma necessidade de defesa e resistência, que se pautou

principalmente na preservação das suas origens, ainda que sob a influência das

relações entre as diferentes etnias negras, os brancos, os mestiços e também

entre os indígenas. As palavras de Sodré (2005) são elucidativas nessa questão:

A cosmogonia e os rituais nagô não se implantaram no

Brasil exatamente como existiam na África. Houve aqui uma síntese operada sob o vasto panteão dos orixás africanos, assim como modificações que só o trabalho etnográfico pode dar conta. Em outras palavras, a ordem original (africana) foi reposta, sofrendo alterações em função das relações entre

70 SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida... Op. Cit.; p. 89; 71 Ibid., p. 28; 72 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade... Op. Cit.; p. 85;

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negros e brancos, entre mito e religião, mas também entre negros e mulatos, e entre negros de etnias distintas...73

Em outra perspectiva, Laraia (2008), afirma que:

A participação do indivíduo em sua cultura é sempre

limitada; nenhuma pessoa é capaz de participar de todos os elementos de sua cultura. Este fato é tão verdadeiro nas sociedades complexas com um alto grau de especialização, quanto nas simples, onde a especialização refere-se apenas às determinadas pelas diferenças de sexo e de idade74

Há controvérsias diante dessa compreensão, pois, ao adotar a lógica da

“teia de significados”, ao contrário de Laraia (2008), acreditamos que, numa dada

sociedade, mesmo quando há a interdição da participação de certos segmentos

sociais para algumas atividades, ritos, celebrações ou outros, ainda assim,

aqueles que são proibidos de participar, apesar de parecer contraditório,

participam sim, pois estão desempenhando o seu papel (o de não participar de

determinado aspecto ou ação), ocupando o seu espaço no referido grupo ou

sociedade.

Essa argumentação só ganha sentido se for observada diante de uma

compreensão de cultura baseada na idéia de cultura nacional ou na idéia de

campo e subcampos culturais, nas quais há submissão de aspectos culturais de

povos distintos em nome de uma unidade nacional ou da imposição ideológica de

uma etnia ou classe social em detrimento dos outros ou ainda diante das

imposições da indústria cultural respectivamente. No entanto, não é essa a

compreensão de cultura que determina essa pesquisa, ela apenas aparece

nesse trabalho como parâmetro para ajudar a compreender o cenário em que se

apresenta a necessidade constante de identificação cultural a partir do

sentimento de pertencimento, especialmente dos afro-brasileiros.

Nessa perspectiva, podemos nos perguntar, por exemplo, como um povo

como o brasileiro, formado a partir de tantas matizes étnicas, consegue criar um

referencial de identidade. E imediatamente, nos veremos diante de diferentes

concepções do ser brasileiro, desde as diferenças da língua portuguesa falada

73 SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida... Op. Cit.; p. 99; 74 LARAIA, Roque de Barros. Cultura um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Zahar, 22ª Ed; 2008, p. 80.

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nos diferentes estados brasileiros às crenças, concepções religiosas e aos

fenótipos humanos encontrados por aqui.

Numa visão geral, se perguntarmos a um brasileiro sobre a formação do

universo, esse, automaticamente vai responder conforme relata a tradição cristã,

porém, se perguntarmos a um índio sobre a criação do mundo para o seu povo,

como perguntamos à Otto Payayá75 – índio da nação payayá, da região da

Chapada Diamantina, mas que reside há dez anos em Pojuca – ele vai falar do

grande caldeirão de onde saíram todas as formas de vida. Se fizer essa mesma

pergunta à um adepto do candomblé, esse irá falar do ser supremo, dos orixás e

da responsabilidade de cada um desses na criação do mundo. Assim, apesar de

todos os esforços da unificação cultural dos povos que compõem o Brasil, apesar

da formação de certas simbioses de símbolos e valores, as memórias de suas

origens ainda são latentes.

Até mesmo entre os afro-brasileiros, que tiveram que re-criar nessas terras

seu mito de origem, quando nos referimos à religiosidade, é possível identificar

peculiaridades que identificam diferentes grupos étnicos que foram trazidos da

África para o Brasil, como podemos constatar nas palavras de Bastide (2001):

Os candomblés pertencem a “nações” diversas e

perpetuam, portanto, tradições diferentes: angola, congo jeje (isto é euê), nagô (termo com que os franceses designavam todos os negros de fala ioruba, da Costa dos Escravos), queto ijexá. É possível distinguir essas “nações” umas das outras pela maneira de tocar o tambor (seja com a mão, seja com varetas), pela música, pelo idioma dos cânticos, pelas vestes litúrgicas, algumas vezes pelos nomes das divindades, e enfim por certos traços do ritual.76

As pessoas vivem a cultura a partir da sua realidade e é justamente na

realidade em que estão inseridas que conseguem compreender o mundo a sua

volta. Ainda que num mesmo país ou sociedade, detalhes lhes escapem; porém,

essa é a situação que pode permitir às pessoas desenvolverem formas

alternativas de organização. É possível incidir novos significados aos símbolos e

construir novos valores, redimensionar espaços e, assim, transformar

gradativamente a realidade em que se encontra.

75 Conversa com o índio Otto Payayá, 49 anos, em 20/07/2009. 76 BASTIDE, Roger. O Candomblé da Bahia: rito nagô, São Paulo: Companhia das Letras, 2001, 29.

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Atualmente a palavra que melhor expressa esse cenário e que tem

provocado muitos discursos é diversidade. O Brasil é o país da diversidade!

Frase muito repetida ultimamente, porém, essa diversidade, se por um lado, é

apresentada como sinônimo de riqueza cultural, de reconhecimento da

resistência dos povos contra as ordens estabelecidas do estado e das elites, por

outro, também o discurso da diversidade – é o discurso da “democracia racial”,

que aliena – é transformado em mercadoria, especialmente para alimentar a

indústria do turismo.

Assim muitas características nossas, especialmente dos afro-brasileiros,

são caricaturadas e ou desvirtuadas para atrair o turista (consumidor de

costumes e culturas exóticas) e isso é muito sedutor. Um de nossos sujeitos

sociais, por exemplo, dona Zilda, se entusiasma ao relatar que reza até

estrangeiros, suíços e alemães. “Rezo até por telefone”77.

Cabe ressaltar, no entanto, que o discurso em torno da diversidade não é

algo do século XXI, como geralmente fazem parecer, e que preocupações em

torno dele já aparecem na Bahia, desde a década de 1950, como podemos

verificar através das palavras de Santana (2004):

Na década de 50, por iniciativa do educador Anísio

Teixeira, então Secretário de Educação e Saúde do governo do Estado da Bahia, o programa de Pesquisas Sociais, Estado da Bahia – Columbia University do qual participou, promoveu o desenvolvimento de estudos de comunidades, precisamente com o objetivo de fornecerem subsídios para a formulação de diretrizes para o trabalho daquela secretaria.78

Porém, para que a diversidade cultural não passe de mero discurso

mercadológico – do mercado do turismo ou de cooptação de lideranças –, todas

as ações para ser, de fato, força de resistência num processo de preservação e

ou reinvenção do que identifica (valores, crenças, símbolos, saberes...) os grupos

e ou povos, só são eficazes se baseadas na busca da origem. Não é por acaso

que todos os povos possuem seus mitos de origem, que, segundo Eliade (2001)

“relata de que modo algo foi produzido e começou a ser”79. Ele também informa

77 Conversa com dona Zilda, 72 anos, em 03/2009. 78 SANTANA, Marise de. O legado ancestral africano na diáspora e o trabalho docente... Op. Cit.; p. 52; 79 ELIADE, Mircea. Mito e Realidade... ... Op. Cit.; p. 11;

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que “a principal função do mito consiste em revelar os modelos exemplares de

todos os ritos e atividades humanas significativas: tanto a alimentação ou o

casamento, quanto o trabalho, a educação, a arte ou a sabedoria”.80.

É provável que a busca pelo mito de origem seja provocada pelo

sentimento de pertencimento, que uma vez despertado pode ter como

conseqüência o encontro com a identidade cultural de determinado grupo. Assim,

como afirma Santana (2004) “os grupos dependem da manutenção das suas

fronteiras para reafirmar suas identidades”81. Tal afirmação reforça a idéia de que

mesmo dentro do contexto da cultura nacional, para se sustentar resistente, os

grupos necessitam manter suas fronteiras ou buscá-las, defini-las ou redefini-las.

Podemos comprovar esse comportamento nas palavras de dona Senhora:

(...) Ta lá meu quartinho; quando eu me sinto ruim aqui,

eu me pico, quando chego lá no quarto do meu santo... Aqui tudo é crente e lá... Eu vendi... Eu só tinha uma vaquinha, essa vaquinha eu vendi e fiz o quarto do meu santo, que eu tenho uma casinha, quando eu chego, lavo, limpo, rezo, acendo uma vela e deixo lá...82

Essa fala de dona Senhora é bastante provocativa. A idéia do quartinho do

santo pode ser entendida de várias maneiras. Num primeiro momento, uma vez

que evocada para ilustrar as palavras de Santana (2004), podemos interpretá-lo

como um espaço, necessário para definição de fronteiras, limite. Fronteiras essas

com o firme propósito de afastá-la (dona Senhora) dos “crentes”, ao tempo em

que reafirma a sua identificação com o candomblé. Assim, podemos imaginar

esse quartinho também como uma representação do terreiro, espaço sagrado, do

tempo em que ela era feliz: “Agora eu gostava do bichinho! No fim foi chegando

filho, não tinha tempo, ???, Não perdia, cochilava , daqui a pouco eu levantava

sambava, , dançava candomblé, dancei muito candomblé”83.

Segundo Sodré (2005)84, o terreiro é guardião do axé (força vital) e do auô

(segredo). É matéria e antimatéria, é lugar de irradiação de intensidades e

possibilidades de reversibilização para a sociedade global. Como limite (fronteira)

é uma resistência.

80ELIADE, Mircea. Mito e Realidade... ... Op. Cit.; p. 13; 81 SANTANA, Marise de. O legado ancestral africano na diáspora e o trabalho docente... Op. Cit.; p. 38; 82 Conversa com dona Senhora, 80 anos, em 05/05/2010; 83 Id. 84 SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida... Op. Cit.; p. 125;

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O quartinho de dona Senhora, pode representar então a re-significação

dos saberes da cultura africana, conforme podemos compreender através das

palavras de Santana (2004):

Para tanto se faz necessário não esquecer que a

criação dos Terreiros, no século XIX, se deu para preservar os saberes da cultura africana, mas com a repressão da colonização cristã, esses saberes tiveram que ser (re) significados no imaginário dos africanos e de seus descendentes, para serem redistribuídos como saberes populares.85

Como espaço para preservar os saberes da cultura africana, os terreiros

foram duramente perseguidos, muitos foram destruídos e impedidos de

funcionar. Essa ação da elite branca no Brasil provocou muitas resistências, mas

também medo e, consequentemente, negação pública do culto afro-brasileiro

pelos próprios negros.

Contudo, ainda que publicamente houvesse omissão ou negação do culto

aos Orixás, estratégias criadas antes mesmo da criação dos terreiros persistiram

e ainda persistem no comportamento dos negros brasileiros.

Tais evidências nos permitem perceber que a construção da identidade

cultural das rezadeiras de Pojuca se pauta no que Sodré (2005) nomina de

reposição, quando se mantém inatas as formas essenciais de diferença simbólica

e dentro dessas se relaciona com seus elementos tradicionais e aqueles

produzidos a partir com a relação com o novo contexto.

No entanto, vale ressaltar, que as identificações existem,

independentemente da vontade das pessoas, o que, então, não significa,

necessariamente, uma força de resistência. As pessoas podem se reconhecer

numa determinada identidade e, no entanto, não se sentir ou admitir pertencente

àquela identidade. Não desenvolvem o sentimento de pertencimento. Dona Dida

(70 anos), por exemplo, quando relatou sobre o caruru que sua mãe oferecia

para os santos Crispim, Crispiniano e Doú, por causa dos filhos trigêmeos,

apesar de exemplificar um dos preceitos86 seguidos por sua mãe, nega com

veemência qualquer tipo de relação com o candomblé. Eis a sua fala:

85 SANTANA, Marise de. O legado ancestral africano na diáspora e o trabalho docente... Op. Cit.; p. 41; 86 As rezadeiras se referem a preceito como obrigação de candomblé.

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Porque o caruru de minha mãe era muito... Era muito assim, ela diz que era... São, era três, era três filhos, e ela só fazia com as galinhas, que eram fêmeas: três frangas virgens. Ainda tinha esse negócio de franga virgem; ela tinha que matar aquelas três frangas, agora depois das frangas, matava também outras galinhas, e ai fazia esse caruru, ela fazia um caruru muito grande mesmo, de mil quiabos, ou não sei quantos quiabos, e eu não pude fazer mais, minha família cresceu, tenho uma família grande, e ai meus filhos não quiseram fazer e eu não pude fazer, tenho aqui as imagenzinhas de minha mãe, de São Crispim, dela era São Crispim Crispiniano e Doú, mas não são de candomblé não.87

Os elementos que aparecem nessa fala de dona Dida por si só falam.

Servem para ilustrar muitas coisas, mas nesse momento basta nos atermos à

negação que aparece pelo fato de ela não dar continuidade ao que sua mãe fazia

– algo exigido nas religiões de matriz africana – bem como no final da explicação,

quando apresenta as imagens, mas diz que não tem nada a ver com o

candomblé. As informações sobre o caruru que sua mãe oferecia por ter três

filhos gêmeos deixam evidente a inevitável identificação com suas raízes

africanas, no entanto, diante das duas formas de negação que aparecem nessa

exposição, percebemos que o sentimento de pertencimento é negado. Vale

lembrar que a sua mãe também era rezadeira e foi quem lhe ensinou as

primeiras rezas.

Entretanto, vale ressaltar que dona Dida (70 anos), é uma senhora de

setenta anos e muito católica. Vai para a igreja quase todos os dias e participa de

todas as missas durante a semana. É membro do Apostolado da Oração e do

coral. Leva unção dos enfermos aos doentes e faz exéquias88 nos velórios. Uma

mulher comprometida com a fé cristã católica e que busca no próprio cristianismo

respaldo para seu ofício de rezadeira. Segundo ela, um antigo padre de Pojuca,

padre Manoelito, havia dito que as rezas eram os salmos populares que os pais

ensinavam para os filhos.

Também encontramos uma fala bastante contraditória nas palavras de

dona Zilda (72 anos). Quando questionada sobre a sua relação com os orixás ou

outra entidade dos cultos afro-brasileiros, ela diz não, mas no momento em que

87 Conversa com dona Dida, 70 anos, em 04/05/2010. 88 Exéquias são cerimônias de honras fúnebres.

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justifica por que não, deixa transparecer como água cristalina o seu

pertencimento.

Não, essas coisas não, a minha reza é somente com a

luz, flores e alfazema e água, viu? Eu não tenho entidade,viu? Não boto mesa, eu não, não... Só às vezes, assim, uma simpatia. Tem gente, uma simpatiazinha às vezes eu faço, e dá certo, dá certo, a maioria das pessoas dizem que se dá bem.

(...) Simpatia eu compro um capim, um bocado de coisa,

usa isso aqui mesmo, vela, (ruído) mais um bocado de coisa, mas não é nada de candomblé, né? Candomblé eu nem gosto, acho bonito, acho bonito os trajes, acho bonito as danças, as músicas... Eu acho bonito, eu acho bonito, mas eu tenho medo. Não que eu tenha medo, mas é que eu sinto mal quando eu chego (pausa), quando eu chego perto mesmo assim, eu sinto mal...89

E ela tem consciência disso. Porque será então, que a primeira vista ela

nega esse pertencimento? Vejamos o que ela continua dizendo para justificar o

medo que sente do candomblé:

Eu não vou por que eu acho que não me garanto lá

dentro do quarto. Eu tenho medo de não me garantir, ai lá eu não vou (pausa). Eu não vou não, tenho medo, eu não gosto, tenho medo, ficar agarrado por lá e fazer as coisas que eu não quero... Não, não vou não, Eu vou é em Candeias... Domingo agora, que passou, eu fui prá Nova Soures, um encontro do Sagrado Coração, da igreja, da católica, em encontro do Sagrado Coração de Jesus. Lá prá Nossa Senhora da Conceição, eu vou prá São Roque, viu? No dia 16 eu vou pra Salvador, visitar a Igreja do Bonfim, a Igreja de Santa Luzia, a Irma Dulce... Depois vou pra Igreja da Conceição, Nossa Senhora da Conceição, e depois eu vou pra Mãe Rainha, lá no Imbui, a gente faz esse percurso, não sabe? Todo dia três de agosto eu vou pra Bom Jesus da Lapa, já estou com a passagem aqui nas mãos, para ir pra Bom Jesus da Lapa...90

Embora dona Zilda (72 anos) ache o candomblé bonito, com as danças, as

roupas, ela se nega participar das festas. Acreditamos que pelo fato de saber e

sentir que tem um forte pertencimento – as sensações que tem são evidentes –

então ela teme ter que assumir um orixá, ter que “fazer a cabeça” – o que ela diz

89 Conversa com dona Zilda, 72 anos, em 05/05/2010 90 Id.

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não querer – e, como se para assegurar que isso não vai acontecer ela prefere

não ir às festas do candomblé e busca refúgio na igreja católica.

Como mais um exemplo dessa constatação, relembramos a explicação de

dona Laura sobre a necessidade do pedido de licença para colher as folhas a

serem utilizadas na benzeção, quando ela nos disse que todas as folhas têm um

dono e, depois de certa pausa, revelou que o dono das folhas é Jesus. É a Ele

que se pede licença.91

Para compreendermos melhor esse exemplo, precisamos saber que dona

Laura (81 anos) é católica, membro da Pastoral da Criança há 22 anos, já ajudou

a organizar três comunidades e tem um discurso bem católico, para justificar o

seu ofício de rezadeira:

Eu vejo isso descrente de reza de magia, de caboclo, eu

vejo isso como uma coisa assim que agente usa na mente da gente, sobre a mente da gente. Eu não creio que Jesus esteja misturado com essas coisas (orixás, caboclos), eu sei que o trabalho de Jesus é um só, é curar e salvar nós. (dona Laura, 81 anos)

Tanto no comportamento e dona Dida (70 anos), no de dona Zilda (71

anos), quanto no de dona Dida evidencia-se a face do duplo pertencimento. Não

apenas elas, mas quase todas as rezadeiras entrevistadas professam a fé

católica, exceto dona Bió (72 anos), que hoje é cristã da Primeira Igreja Batista.

Contudo, todas elas vivem a experiência do duplo pertencimento, ainda que nem

sempre reconheçam com as palavras, porém suas práticas não deixam dúvidas.

Dona Senhora, por exemplo, não nega seu duplo pertencimento, ainda

que em alguns momentos seu discurso revele mais uma pertença e noutros

momentos outra. Primeiro, quando questionada sobre sua devoção por Santa

Bárbara, ela afirma que é do candomblé e diz que já dançou muito nas festas,

nos terreiros: “Ela é de candomblé mesmo, o santo que eu festejo é de

candomblé, já dancei no candomblé, já fui muito no candomblé, já perdi muitas

noites, hoje não posso mais, vou fazer o que, mas não disfarço não, eu gosto de

candomblé mesmo!92”

91 Conversa com dona Laura, 81 anos, em 02/06/2010. 92 Conversa com dona Senhora, 80 anos, em 04/05/2010.

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Cita inclusive o terreiro de São Bartolomeu, em Salvador. Depois, quando

questionada sobre seus saberes enquanto rezadeira, se receitava algum banho,

ela disse que não, que não aprendeu sobre isso. Mas, quando estava concluindo

a entrevista nesse dia, ela nos sugeriu que quando acordasse desanimada,

sentindo-se mal, que fizesse um banho com vassourinha e tomasse da cabeça

aos pés.

Noutro momento ela fala das suas discussões com o marido (falecido),

que, como católico, membro da Irmandade do Sagrado Coração de Jesus, a

repreendia pelo fato de pertencer ao candomblé: “Não vou à igreja? Não faço

batizado e tudo? O que tem isso?”93

O duplo pertencimento é evidente nos quatro exemplos. Contudo, devido o

que Santana (2004) chama de cristianização94, esse duplo pertencimento

manifesta-se nas vidas dessas mulheres em forma de conflito, no qual o discurso

cristão católico atua como censura frente às práticas e saberes de origem

africana.

Sobre o duplo pertencimento, também chamado de dupla militância

religiosa por Brekenbrock (2007) podemos entender: “se trata de fato de duas

militâncias distintas entre si. Uma não tem nada a ver com a outra, a não ser no

fator de se tratar de uma só pessoa”95.

No entanto essa dupla pertença ou duplo pertencimento ou dupla

militância religiosa, não pode ser pensada apenas com respeito às pessoas que

tem atuação efetiva nas religiões, ela pode ser pensada também no contexto das

experiências e tradições passadas por gerações, ainda que as pessoas não

assumam professar esse ou aquele credo, mas os elementos constitutivos das

diferentes religiões, inevitavelmente, influenciam na forma de ver o mundo e de

se relacionar com todas as coisas e pessoas ao seu redor.

No fragmento abaixo a professora Marise de Santana (2004), estabelece a

diferença básica entre sincretismo e dupla pertença:

Assim, ao falar sobre nossos pesquisados, preferimos

nos referir à ‘dupla pertença’ ao invés de sincretismo, pois,

93 Conversa com dona Senhora, 80 anos, em 04/05/2010. 94 O mito-cristão se move na sociedade educando para que indivíduos se tornem racionais lógicos e percam a dimensão das emoções, da intuição, da imaginação, enfim, criatividade. (SANTANA, 2004: 126); 95 BERKENBROCK, Volney J. E experiência dos Orixás: um estudo sobre a experiência religiosa no candomblé. Petrópolis, Vozes, 3ª ed, 2007, p. 343.

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estamos tratando da relação das pessoas com diferentes universos religiosos e não do processo cultural que leva este nome.96

No entanto, como já averiguamos nos fragmentos de suas falas, as

rezadeiras, mesmo aquelas que professam a fé católica, mas não atuam

efetivamente na igreja, identificam claramente as fronteiras que existem entre o culto

cristão católico e os de matriz africana, ainda que também não tenham uma vivência

orgânica no candomblé ou em outra denominação afro-religiosa. Isso é evidente até

mesmo quando negam qualquer possibilidade de influência do segundo sobre suas

ações, memórias e saberes. Por isso, também nós optamos pela terminologia do

duplo pertencimento, para denominar o comportamento das rezadeiras pesquisadas.

Contudo, vale ressaltar, que uma das rezadeiras, dona Laura católica,

membro da Pastoral da Criança, foi a mais contundente ao negar qualquer influência

dos cultos afro-brasileiros no seu ofício de rezadeira. Para todas as perguntas as

respostas eram sempre a partir de alguma estorinha envolvendo Jesus – nada

partindo dos evangelhos – ou então atribuía tudo à fé em Deus e à força da mente:

“tem que ter fé. O que cura é a fé e a mente da pessoa. Tem que ter a fé e a mente

positiva. Se não tiver a mente positiva não vale nada”97.

De certa forma, ela já demonstrava alguns elementos da influência do legado

africano no seu ofício de rezadeira, mas não se deixava trair pelas palavras. Porém,

quando observamos ela rezar uma “paciente” de erisipela, ela aproveitou para

explicar o processo e algo me chamou a atenção, quando ela explicou que quem

fuma, vai fumando e jogando a fumaça para cima, no momento em que estiver

rezando. Essa fumaça passou a ser a ponta do novelo, que vai ser desvendado no

capítulo específico sobre rezadeiras.

Esse comportamento de dona Laura nos despertou para a necessidade de,

para efeito dessa pesquisa, além de considerar o aspecto da dupla pertença,

considerar também, imprescindívelmente, o sincretismo, muito presente nos versos

das orações declamadas durante uma bezenção.

Nessa pesquisa conseguimos identificar que o legado africano está presente

no município de Pojuca através das rezadeiras, a maioria delas recebeu esse legado

96 SANTANA, Marise de. O legado ancestral africano na diáspora e o trabalho docente: Op. Cit.; p. 43; 97 Conversa com dona Laura, 81 anos, em 22/01/2010

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dos seus pais, contudo, ainda que seja repetido e afirmado por essas mulheres

através de seus saberes, especialmente a benzenção, elas sofrem um conflito entre

assumir e omitir suas origens. Por isso percebemos que há a preocupação com a

preservação do ofício de rezadeira, mas tal preocupação não se traduz em esforços

para garantir que seus saberes sejam preservados, provavelmente por conta do

processo de cristianização, já mencionado acima.

Entendemos o legado africano conforme Santana (2004) nos apresenta:

Estamos entendendo o Legado Ancestral Africano como

um conjunto de saberes de uma matriz não ocidental que transcende o espaço dos Terreiros, pois se encontra como sobrevivências africanas nestas cidades (...). Apesar de acharmos que Nina Rodrigues (1935), trata dos elementos do legado africano com uma carga excessivamente grande de preconceitos, ele nos oferece riquezas de detalhes sobre esse legado e nos diz: pedras, águas, vegetais, são todos elementos sagrados para os africanos e os seus descendentes. Ele descreve elementos de crenças africanas em Terreiros e espaços sagrados da cidade de São Francisco do Conde, contribuindo para que, trilhando suas indicações, em nossa coleta de dados, encontrássemos muitas dessas remanescências.98

Aqui nos interessa especialmente, identificarmos os elementos que compõe o

legado africano, não especificamente por sua existência, pois todas as pessoas

podem ter acesso a esses elementos, que são oferecidos pela natureza, mas

principalmente pelo significado, pelo sentido que esses elementos têm para as

práticas e para a vida das rezadeiras. Pois, de acordo com Eliade (2002):

É então a imagem em si, enquanto conjunto de

significações, o que é verdadeira, e não uma única das suas significações ou um único dos seus inúmeros planos de referências. Traduzir uma Imagem na sua terminologia concreta, reduzindo-a a um único dos seus planos referenciais, é pior que mutilá-la, anulá-la como instrumento de conhecimento. 99

Ainda sobre os símbolos Eliade (2002: 174) profere: “É a presença das

Imagens e dos símbolos que conserva as culturas “abertas”: a partir de qualquer

98 SANTANA, Marise de. O legado ancestral africano na diáspora e o trabalho docente: Op. Cit.; p. 24; 99 ELIADE, Mircea. Mito e Realidade... Op. Cit.; p. 12.

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cultura, tanto a australiana quanto a ateniense, as situações-limite do homem são

perfeitamente reveladas graças aos símbolos que sustentam essas culturas”100.

Tais palavras nos permitem compreender como os símbolos são

imprescindíveis no processo de preservação do legado africano. Percebemos que os

símbolos nos falam tão forte, que, mesmo quando revestido por uma outra capa,

ainda assim deixam transparecer e por isso conseguem conservar seu significado,

sua significação mítica, que está para além da história.

Nessa perspectiva, o que podemos afirmar sobre cultura é que ela existe

independentemente da nossa vontade. Ela não existe para uma só pessoa; só um

grupo, uma sociedade ou uma comunidade tem condições de viver uma

determinada cultura de ser moldado por essa e moldá-la todos os dias. No entanto,

diante da atualidade, para compreender sua cultura e dela, construir resistência, há

a necessidade de que as pessoas, primeiro se identifiquem nela e a partir daí

desenvolvam o sentimento de pertencimento, o que não é fácil, se consideramos a

discurso cristão cada vez mais contundente, agora com o crescimento das igrejas

protestantes e com a “pentencostalização”101 da igreja católica em Pojuca.

Porém, mesmo quando esse sentimento é negado ou omitido,

inevitavelmente, diante de uma dada situação de opressão, ele emerge, invadindo a

mente e o cotidiano das pessoas através da memória.

Memória: sentimento de pertencimento Acima, já tivemos a oportunidade de abordar sobre o contexto do mundo pós-

moderno ou globalizado em que nos situamos, a partir de autores como Sodré

(2005) e Hall (2005). Assim como eles, enxergamos o mundo a partir de uma

infinidade de referenciais, símbolos, mercadorias e informações (que também são

mercadorias), que provocam, dentre outros, uma sensação de aceleração do tempo

100 ELIADE, Mircea. Imagens e Símbolos: ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso. São Paulo: Martins Fontes, 2002.b 101 Movimento iniciado na Igreja Católica na década de 60 do século passado, que tem como princípio a “volta ao espírito” a "inspiração pessoal do Espírito Santo", a exemplo das igrejas “protestantes”. Esse movimento é chamado de Renovação Carismática Católica – RCC e tem ganhado muito espaço também midiático, especialmente com a propagação de alguns padres como Fábio de Melo e Marcelo Rossi.

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e o distanciamento das pessoas do seu espaço e do seu grupo, ainda que

continuem convivendo no mesmo local.

Outro autor também falando da modernidade, consegue expressar muito bem

essas sensações:

O turbilhão da vida moderna tem sido alimentado por

muitas fontes: grandes descobertas nas ciências físicas, com a mudança da nossa imagem do universo e do lugar que ocupamos nele; a industrialização da produção, que transforma conhecimento científico em tecnologia, cria novos ambientes humanos e destrói os antigos, acelera o próprio ritmo de vida, gera novas formas de poder corporativo e de luta de classes; descomunal explosão demográfica, que penaliza milhões de pessoas arrancadas do seu habitat ancestral, empurrando-as pelos caminhos do mundo em direção a novas vidas; rápido e muitas vezes catastrófico crescimento urbano; sistemas de comunicação de massa, dinâmicos em seu desenvolvimento, que embrulham e amarram, no mesmo pacote, os mais variados indivíduos e sociedades...102

Nesse fragmento, Berman (2007) consegue imprimir e transmitir ao leitor a

sensação de velocidade e mudanças constantes provocadas pelo mundo

globalizado e assim faz despertar inúmeras preocupações diante do nosso futuro.

É interessante como nossas preocupações geralmente giram em torno do futuro

e não do presente, independente da situação que estejamos experimentando.

Mais interessante ainda é perceber que ao projetarmos nossas atenções para o

futuro, inevitavelmente, nos lançamos para o passado. Vamos à busca de

referências; é como se procurássemos nos ancorar no passado para não

ficarmos à deriva, sem perspectivas, sem rumo.

É possível perceber essa característica na fala de dona Senhora (80

anos), quando conta sobre uma das suas idas ao médico:

Esses filhos meu, quando eu tô rezando, bem que

podiam pedir assim: minha mãe, eu quero aprender, pra quando a senhora morrer. Não, diz: ah, eu não quero saber esse negócio de reza não! Ah, isso aqui não é o médico! Eu quando estava com essa perna inchada, tava com dois dias com a perna... Mãe, não quer ir no médico?! Menina, isso é reumatismo, num é coisa de médico, não. Então a senhora fica ai... Depois, com muita coisa, eu fui no médico; quando eu chego lá o médico disse que era pressão! Eu disse: doutor, o

102 BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido se desmancha no ar. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007, p. 25.

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senhor já viu pressão inchar o pé? Ele disse mais é. Ah, eu não sabia que pressão inchava o pé não, para mim era reumatismo. Essa conversa de reumatismo dona Senhora? É o que ouvi minha mãe falar, que quando a gente tinha a junta inchada era reumatismo, agora o senhor diz que é não sei o quê, eu não sei não!103

Observemos que dona Senhora tem certa dificuldade para acreditar nos

diagnósticos dos médicos, pois esses contrariam o que ela aprendeu com sua

mãe. Seus filhos, por sua vez, não dão valor ao seu ofício e a sua sabedoria, não

têm interesse em aprender e se deixam levar pela conversa do médico, que pode

contribuir para que fique ainda mais doente, pois dizem que “é uma coisa e é

outra.” Em outro memento ela deixa ainda mais clara essa preocupação:

É antigamente... Minha mãe, quando minha mãe tinha

boa saúde, que trabalhava pra me criar, eu não via minha mãe dizer que sentia nada. Depois, quando ela apareceu doente, doente, doente... Foi no médico teve de operar, tirou o mioma, ai pronto, perdeu a saúde, perdeu a saúde, ficou um século doente. Eu tenho coisa de médico, eu não gosto não!104

Ou seja, para ela, os diagnósticos dos médicos, acabam contribuindo para

que as pessoas fiquem mais doentes ainda. Os “remédios de médico” provocam

tantos outros problemas. Assim, se os seus filhos se interessassem em aprender

a rezar, evitariam as idas ao médico e não ficariam tão doentes. Nas suas

memórias, pouco se ficava doente, mas agora, para tudo as pessoas recorrem ao

médico e não são saudáveis. Foram vários os exemplos que dona Senhora

utilizou para expressar sua aversão aos médicos e sua confiança nos remédios

que aprendeu como rezadeira.

De certa forma, para dona Senhora, no seu passado ficou o tempo bom,

da saúde, da festa “já dancei no candomblé, já fui muito no candomblé, já perdi

muitas noites, hoje não posso mais, vou fazer o quê?105” É confortável para ela

se lembrar do seu passado. Esse passado nada mais é do que suas origens.

É provável que para todas as pessoas, suas origens estejam em algum

momento do passado, por isso vão à busca dos mitos que justificam vossa

103 Conversa com dona Senhora, 80 anos, em 04/05/2010; 104 Conversa com dona Senhora, 80 anos, em 04/05/2010; 105 Conversa com dona Senhora, 80 anos, em 05/05/2010;

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existência, que explicam o mundo, que abrandam suas angústias. Esse passado,

muitas vezes está para além da sua existência; aliás, nossa existência, de fato, é

muito anterior a nós mesmos. Não é incomum sentirmos saudades ou medo de

algo, de um tempo que, necessariamente não vivemos, mas sabemos que

existiu, que aconteceu e sentimos suas sensações... Mas, o passado, passado,

só pode nos socorrer ou até mesmo nos atormentar se revivificado e a única via

para essa revivificação é a memória.

A memória, assim como assinala Guarinello (1995):

Memória é uma palavra que nos veio do latim,

preservando, em português, os dois sentidos fundamentais que possuía na origem. Memória, em primeiro lugar, é algo que não está em lugar algum, por que ocupa e preenche todos os lugares. É um substrato, repositório dos produtos de nosso passado que sobrevivem no presente, condição mesma do tempo presente. É a trama dos vestígios oriundos de diferentes épocas e condições de produção, que constitui a espessura mesma daquilo que existe, como cristalização e permanência do que não morreu, daquilo que nos liga aos mortos na medida em que sobrevive no presente.106

Temos clareza de que não existe apenas uma definição para memória, no

entanto, a definição elaborada por Guarinello (1995) é muito interessante e nos

oferece elementos para análises, especialmente quando confrontada com

abordagens de outros autores como Halbwachs (2006), Nora (1993), Pollak

(1989; 1992) e também Thomson (1997). Desse confronto de idéias pretendemos

estabelecer significados para o tema, que nos permitam interpretar o

comportamento das rezadeiras frente suas memórias.

De imediato, podemos confrontar a idéia de lugares da memória. Enquanto

Guarinello (1995) afirma que a memória não está em lugar algum, pois ocupa

todos os lugares, Nora (1993) sentencia: “Fala-se tanto de memória porque ela

não existe mais”107. Para ele, existem lugares de memória.

Num primeiro momento pode parecer que as abordagens referidas aqui

são contrárias, mas ao analisarmos com mais precisão, percebemos que também

Nora, concebe a memória como preenchendo todos os espaços: “a memória se

enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto...” Entretanto,

106 GUARINELLO, Norberto Luiz. Memória coletiva e história científica... Op. Cit.; p. 187; 107 NORA, Pierre. Entre memória e história... Op. Cit.; p. 7;

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ele problematiza a ação da história como cristalizadora da memória em alguns

lugares – os lugares de memória – Isso devido à realidade da sociedade

moderna, “sociedade do esquecimento”108. Não há aqui, mais necessidade de

repetir as características desse tempo, contudo, cabe lembrar a idéia de campo e

subcampo cultural e cultura nacional, abordadas por Sodré (2005) e Hall (2005)

respectivamente, como estratégias do Estado de uniformização dos povos de

uma nação. Nesse caso, para Nora (1993) a história também é utilizada como um

dos elementos para garantir tal uniformização:

A memória emerge de um grupo que ela une, o que

quer dizer, como Halbwachs o fez, que há tantas memórias quantos grupos existem; que ela é, por natureza, múltipla e desacelerada, coletiva, plural e individualizada. A história, ao contrário, pertence a todos e a ninguém, o que lhe dá uma vocação para o universal.109

Mas, ao mesmo tempo que Nora percebe uma pluralidade de memórias

numa sociedade, ele mesmo sentencia sua morte, considerando que “Há lugares

de memória porque não há mais meios de memória”110. O autor considera que a

memória “verdadeira” só existe nas sociedades “ditas primitivas”, enquanto nas

modernas sociedades o que existe é a história.

Ainda seguindo essa lógica, Nora (1993) afirma:

O que nós chamamos de memória é, de fato, a

constituição gigantesca e vertiginosa do estoque material daquilo que nos é impossível lembrar, repertório insondável daquilo que poderíamos ter necessidade de nos lembrar. A “memória de papel” (...)111

Para respaldar a nossa argumentação de que há um certo equívoco nas

palavras de Nora, evocamos as argumentações de Pollak.

O longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao

esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de discursos oficiais. Ao mesmo tempo, ela transmite cuidadosamente as lembranças

108 Ibid., p.9; 109 NORA, Pierre. Entre memória e história... Op. Cit.; p. 9; 110 Ibid., p. 7; 111 Ibid., p. 715;

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dissindentes nas redes familiares e de amizades, esperando a hora da verdade e da redistribuição das cartas políticas e ideológicas.112

Pollak (1989), assim como Nora (1993) reconhece que há um processo de

opressão e dominação, sobre determinados grupos sociais, ao ponto de impor

um longo silencia das suas memórias, no entanto, essas memórias não deixam

de existir, e, de acordo com o autor, continuam sendo transmitidas nas redes

familiares e de amigos. É provável que esse processo de transmissão silenciosa

alimente a memória de uma força extraordinária, ao ponto de emergir quando for

oportuno ao grupo.

É bem provável que as memórias das rezadeiras de Pojuca estão nesse

estágio, ou que a memória africana de Pojuca esteja passando por esse

processo de silenciamento, mas, com possibilidade de emergir quando for o

momento. Levantamos essa suspeita, pois mesmo sob a dominação do discurso

pentecostal das igrejas evangélicas mais a católica, há pouco tempo, vários

praticantes dos cultos afros em Pojuca se organizaram e formaram a Associação

do Culto Afro Pojucano – ACAP –, com o objetivo de reorganizarem seus

espaços de culto e conquista do respeito, dentre outros.

De uma forma geral, a população pojucana discrimina e tenta negar a

existência desses cultos no município; muitos barracões foram fechados depois

do falecimento de seus líderes e suas famílias não deram continuidade, por

diversos motivos, dentre eles, por terem migrado para as igrejas evangélicas, no

entanto, aqueles que resistem resolveram falar dos seus problemas e os

tornaram públicos e coletivos; então, como resultado, formaram a associação,

algo que jamais ocorreu na época em que existiam os famosos pais e mães-de-

santo na cidade. Os tambores vão voltar a soar!

O fato de apresentarmos perspectiva diferente ao discurso de Nora, não

significa que descartemos toda a sua reflexão em torno dos locais de memória,

consideramos que, de fato, há a construção e manipulação desses locais, bem

como também concordamos que “Não se celebra mais a não, mas se estudam

suas celebrações”113.

112 POLLAK, Michel. Memória, esquecimento e silêncio... Op. Cit.; p.5 113 NORA, Pierre. Entre memória e história... Op. Cit.; p. 14;

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Analisamos a história de Pojuca a partir dessa lógica dos locais de

memória e nos deparamos com um processo, inegavelmente pensado, elaborado

para ofuscar determinadas características da memória dos grupos que

constituem aquele município.

Quatro elementos nos saltam aos olhos: o primeiro refere-se ao ancestral

indígena, conservado no significado do seu nome yapô-yuca (pântano podre, o

estagnado), porém com uma compreensão ocidental do seu significado, afinal, se

esforçarmo-nos um pouco, podemos desvelar uma outra face para a significação

do seu significado. Pensemos, pois na idéia da fertilidade. A terra pantanosa foi

escolhida para a produção da cana-de-açúcar, por causa da sua fertilidade.

Pensemos também na lama, terra podre, que faz geminar a vida e acolhe o

estagnado, que oferece seus restos para enriquecer a terra e assim volta à vida.

Não esqueçamos ainda, que é o rio Pojuca, que batiza o município, é o mais

extenso da bacia do Recôncavo Norte e corta sete municípios até chegar à

Pojuca.

O segundo aspecto da história oficial de Pojuca apresenta-se como

substituição do mito fundador indígena e atribui à Jesus Cristo, no caso, Bom

Jesus da Passagem – o padroeiro da cidade – a fundação do povoado que dará

origem ao município. Vemos nesse caso, o que Santana (2004) denomina de

cristianização114; o terceiro elemento refere-se à representação da fonte de

riqueza do município: o petróleo, que se faz lembrar em monumentos, no seu

pseudônimo “a princesinha do petróleo” e também na sua bandeira.

Torna-se conveniente aqui, para efeito de evidenciar o caráter proposital

dessa “realidade” histórica, ressaltar que a emancipação política de Pojuca

ocorreu no ano de 1913, enquanto a Petrobrás só se instalou naquele município

na década de 50 de século passado, quando da sua implantação no Brasil, como

um todo.

E finalmente, o quarto elemento – lugar de memória – da história do

município de Pojuca, fica por conta do seu caráter pecuário. Antes representado

pelas vaquejadas, hoje pelos rodeios e pela construção de um parque de

vaquejadas, subutilizado, que figura com um dos grandes feitos de uma das

administrações daquela cidade. Talvez para ostentação do tempo (do final do

114 Processo de formação/educação pautado no ensinamento do mito cristão. A catequese do período colonial já tinha esse propósito.

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século XIX até as primeiras décadas do século XX) em que Pojuca era uma

grande produtora leiteira, pois até os dias atuais os pojucanos identificam-se com

o perfil pecuarista.

Até hoje, nas datas festivas como independência do Brasil e aniversário de

emancipação política da cidade, dentre outras, é comum ver muitas pessoas

desfilando montadas pelas ruas da cidade, embora, do ponto de vista econômico,

essa ostentação não tenha mais nenhum sentido; pois, de acordo com alguns

dados (IBGE)115, numa área de 318,21 km2, com população estimada em 32.225

habitantes, dos quais 21.884 vivem na cidade e apenas 4.319116 vivem no

campo, Pojuca conta com PIB de R$ 818.159, 00, sendo que a agropecuária

contribui com apenas 6.768, 00, enquanto os serviços contribuem com R$

170.204, 00 e a indústria com R$ 532.736.

É nesse aspecto, da universalização da cultura, que a história, cria e

manipula os locais da memória e tenta generalizá-la, impondo a experiência de

uns para todos e, para efetivar tal esforço, se vale do sentimento de que não há

memória espontânea, como afirma Nora:

nascem e vivem do sentimento que não há memória

espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque essas operações não são naturais.117

Embora Nora ateste a morte da memória, se confrontarmos essas

palavras com a abordagem de Eliade (2002), quando este fala sobre a

necessidade de rememorar os mitos, ritualizando-os para “aprender o segredo da

origem das coisas”118, uma vez que “celebrações, aniversários, elogios

fúnebres...”, podem ser considerados ritos do retorno ao mito?

Ressaltamos ainda a eficácia dos ditos locais de memória; afinal, na

maioria das vezes, ao menos no Brasil, verificamos um certo esquecimento

mesmo diante os locais de memória. Na véspera do feriado “21 de abril”, dia de

115 IBGE Cidades. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1, acesso em 23/05/2010. 116 IBGE. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2000/universo.php?tipo=31&paginaatual=1&uf=29&letra=P, acesso em 23/05/2010. 117 NORA, Pierre. Entre memória e história... Op. Cit.; p. 13; 118 ELIADE, Mircea. Mito e Realidade... Op. Cit.; p. 17;

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Tiradentes, perguntamos aos nossos alunos se sabiam por que não haveria aula

e nenhum deles soube informar o motivo do feriado.

Durante essa pesquisa também tivemos a oportunidade de saber que o

Conselheiro Saraiva, grande figura política do último período do império, morava

em Pojuca e era dono do Engenho da Purificação ou Engenho Central de Pojuca.

Contudo, ainda que exista uma escola e uma rua com o seu nome no município

de Pojuca, nem alunos, nem professores têm a mínima noção de quem tenha

sido o patrono da referida escola. Esses exemplos nos levam a crer que não

basta “imortalizar” o feito ou determinado personagem através dos lugares de

memória. Se não houver ações que estimulem a lembrança do significado desses

lugares de memória, com o tempo eles perdem o sentido e, consequentemente a

significação.

Também Pollak (1989) acredita na apropriação da memória pela história,

quando nos fala sobre o enquadramento da memória: Vê-se que as memórias coletivas impostas e defendidas

por um trabalho especializado de enquadramento, sem serem o único fator aglutinador, são certamente um ingrediente importante para a perenidade do tecido social e das estruturas institucionais das sociedades. Assim, o denominador comum de todas essas memórias, mas também as tensões entre elas, intervém na definição do consenso social e dos conflitos num determinado momento conjuntural. Mas nenhum grupo social, nenhuma instituição, por mais estáveis e sólidas que possam parecer tem sua perenidade assegurada. Sua memória, contudo, pode sobreviver a seu desaparecimento, assumindo em geral a forma de um mito que, por não poder se ancorar na realidade política do momento, alimenta-se de referências culturais, literárias ou religiosas. O passado longínquo pode então se tornar promessa de futuro e, às vezes, desafio lançado à ordem estabelecida.119

Embora Guarinello (1995: 182) não trate dos lugares de memória, assim

como Nora (1993) ou de enquadramento da memória como Pollak (1992),

também compreende a história (a partir de uma crítica à lógica positivista) como

limitadora da memória: “A função mesma da história como ciência, carregava em

si uma condenação da memória”120.

119 POLLAK, Michel. Memória, esquecimento e silêncio... Op. Cit.; p. 11; 120 GUARINELLO, Norberto Luiz. Memória coletiva e história científica... Op. Cit.; p. 182;

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É interessante observar como tais abordagens encontram ressonância

muito acertada nos discursos das rezadeiras dessa pesquisa. Observemos a

resposta de dona Laura para o significado do uso das folhas nos benzimentos:

Não sei, mas você vê, a gente usa; você vê, qualquer

coisa que Jesus fez de cura, qualquer coisas que Jesus fez de cura, ele curou o cego, ele usou remédio, não? Que quando Jesus curou o cego, ele mandou ele cuspir no chão. Jesus cuspiu no chão, fez a lama e passou na vista. Não foi um remédio? Foi remédio, quando ele mandou que o cego levantasse e andasse, o que foi que ele fez? Ele não mandou que ele se molhasse na água? Silule (?), mandou que ele pegasse a cama e andasse, foi um remédio. Tudo que Jesus fez, ele não fez nada só com falar. Ele, em nome disso, tudo ele fez, tudo ele usou a palavra, não teve nada que ele não usasse a palavra do Pai. Ele fez, eu te faço isso, a gente sempre reza em nome do Pai, em nome do Filho em nome do Espírito Santo, porque são os três que une o Pai com o Filho. É o pai, o Filho e o Espírito Santo que nos defende de tudo quanto for ruim, é quem nos cura, é quem nos salva, é quem nos faz tudo. É Deus, primeiramente que e nosso pai, Jesus que é nosso irmão e o Espírito Santo que une os três em um só.121

Observemos que segundo a lógica da cristianização da sociedade, a Igreja

também se utiliza da história e também de uma linguagem simbólica para

enquadrar os grupos e suas memórias. Uma história religiosa e, especialmente,

universalista, mais que todas as outras histórias, uma vez que apresenta Jesus

Cristo como a única verdade, provoca rupturas entre a memória vivida e a

história escrita e dogmatizada. Halbwachs122: “por isso é preciso derrubar os

altares dos deuses antigos e destruir seus templos...” Assim, dona Laura, mesmo

se utilizando de um saber ancestral não cristão, substitui a significação do uso

das folhas pelo discurso cristão. Porém, como há um mito por trás dos saberes

das rezadeiras e identificamos o duplo pertencimento na sua vivência religiosa,

como já vimos acima, noutros momentos, ela deixa revelar as outras

significações em torno das folhas.

Então, o que Nora (1993) chama de lugares de memória, Pollak (1993)

denomina de enquadramento da memória, guardadas suas proporções, dizem a

mesma coisa. Porém, Pollak (1992) tem um discurso mais otimista e reconhece

121 Conversa com dona Laura, 81 anos, em 22/01/2010; 122 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva... Op. Cit.; p. 185;

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que, apesar do enquadramento, há uma margem de mobilização da memória que

a história não consegue abarcar, ou seja, enquadrar.

Entre os diversos debates em torno da memória, não é uma peculiaridade

das abordagens de Pollak (1992), Nora (1993) e Guarinello (1995), a

compreensão da história como mutiladora da memória. Halbwachs (2006), um

dos maiores teóricos da memória, trata da memória coletiva e, ao contrário do

possa parecer, para ele, memória coletiva e história não são sinônimos, ainda

que, de certa forma desenvolvam certa relação.

... A memória coletiva não se confunde com a história e

que a expressão memória histórica não é muito feliz, pois associa dois termos que se opõem em mais de um ponto. A história é a compilação dos fatos que ocuparam maior lugar na memória dos homens (...) em geral, a história só começa no ponto em que termina a tradição, momento em que se apaga ou se decompõe a memória social123.124

Assim, todos os autores aqui citados, concebem a história como um

instrumento ideológico de unificação, de dominação de uns povos ou classes

sociais, ou grupos étnicos sobre outros. Contudo, não é nossa intenção

apresentar a história como uma vilã. Nesse caso se faz necessário considerar as

imposições do discurso positivista desde o século XIX e os esforços para

confirmar à história o status de ciência e com isso a sua utilização como

instrumento de opressão, na medida em que subjuga e omite as peculiaridades

dos diferentes grupos, amarrados na unidade da cultura nacional.

O mundo pós-moderno também coloca a história em xeque, não são em

vão essas abordagens em torno da contradição entre história e memória. No

entanto, conseguimos vislumbrar a história hoje como uma potencial aliada das

minorias e grupos que, na contra-mão do turbilhão de informações e

acontecimentos do tempo pós-moderno, se perdem de si mesmos e necessitam

re-constituir suas identidades. Podemos assim citar a história regional, a história

local e, especialmente, a história oral, tanto enquanto disciplina como enquanto

metodologia, como provas dessa possibilidade.

Afinal, como Halbwachs sugere: “um dos objetivos da história talvez seja

justamente lançar uma ponte entre o passado e o presente e estabelecer essa

123 Grifo nosso. 124 Ibdi., p. 100;

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continuidade interrompida”125. Contudo, para nós, essa possibilidade só se torna

real se de acordo com a lógica da história local, regional, oral e/ou afins como já

sinalizamos acima.

Isso só é possível, porque a memória tem um quê de mística. A memória é

afetiva, ainda que guarde lembranças de situações desagradáveis, de sofrimento

e etc. Mas, por ser algo de cada pessoa, ainda que coletiva, a memória mesmo

quando silenciada consegue cravar na vida traços de uma identidade dada como

perdida.

Por causa da angústia dos dias atuais, para os idosos, é no passado que

se estabelece a felicidade. As lembranças são sempre agradáveis, de tempos em

que se era feliz. Mesmo com as dificuldades que eram enfrentadas, memoriar

esses tempos traz a sensação de conforto, de segurança de felicidade. É o que

constatamos nas palavras sempre repetidas de dona Djão:

Isso, eu era muito feliz, a rua Alfredo Leite, a rua da

Lama de antigamente só tinha 50 casa e tinha uma ponte, quando agente era pequena tinha um candomblé dentro d’água. O candomblé, nera? Agente ia prá lá sete horas da noite, oi! Era galo cantava, era bode... Era a Lagoa Encantada. Agente ia prá ver, era uma festa nessa lagoa. Ai agente via tudo, agente era muito feliz...126

Essa pesquisa estimulou a memória dessas mulheres, elas passaram a se

preocupar em lembrar das coisas para nos informar; então a cada encontro elas

narravam situações das mais diversas. E o mais interessante é que os primeiros

discursos foram sempre baseados no discurso católico, porém, com o passar dos

dias, elas começavam a revelar outras falas, começavam a revelar segredos.

Porém, percebemos que sempre havia a necessidade de apoiar suas

lembranças nas lembranças de outros, assim, se houvesse mais alguém por

perto, era chamado para confirmar algo ou então recorriam a nós mesmos para a

necessária confirmação das suas lembranças; sempre com um “né?” ou “como

é”. Às vezes se contentavam com um simples aceno de cabeça, um olhar

afirmativo ou com alguma palavra que ajudava a completar o raciocínio. Tal

verificação nos permite afirmar que a memória coletiva atinge as pessoas nos

125 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva... Op. Cit.; p. 101; 126 Conversa com dona Djão, 74 anos, em 12/05/2010;

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seus relacionamentos sociais e suas lembranças são construídas a partir dos

estímulos externos como comentários, imagens, sons e odores que fazem as

pessoas viajarem no tempo e trazerem para o presente, recordações do

passado, que ajudam a construir a memória coletiva.

Nessa perspectiva, pode-se afirmar que a memória é determinantemente

marcada pela cultura de um povo, pois, a memória é indissociável da cultura e

das instituições sociais.

Quando dona Djão nos falou da Lagoa Encantada, por exemplo, ainda não

havíamos ouvido nenhuma outra falar, no entanto, quando passamos a tocar no

assunto, passaram a surgir relatos daquela lagoa e de outras. E quando

questionávamos onde estão os encantados ou por que não aparecem mais,

todas diziam a mesma coisa: “é porque agora tudo está sujo, as pessoas jogaram

lixo, agora é esgoto”127.

Essa lógica impõe a preservação das tradições e modos de fazer que só

são possíveis graças a memória de determinado grupo social. Nesse caso, a

memória é um elemento imprescindível na preservação da cultura. Justifica-se

assim, a necessidade de evocarmos a memória como escudo diante da atual

dinâmica de vida que tem provocado a desagregação de grupos e generalização

cultural e, conseqüentemente, da identidade cultural do povo.

Atentos a essa realidade assistimos a crescente importância que vem

sendo atribuída à História Oral, seja ela enquanto disciplina, ou enquanto

metodologia de pesquisa; o fato é que as testemunhas orais, narradores,

colaboradores, depoentes, entrevistados, informantes..., seja lá qual for a

terminologia empregada pelo pesquisador à quem lhes fornece as informações,

ou seja, se permite entrevistar, investigar; tem sido cada vez mais respeitadas

enquanto importantes e, em alguns casos, imprescindíveis fontes de pesquisa,

especialmente nas pesquisas sociais, o que confirma a crescente credibilidade

do estudo da memória ou a partir da memória entre a comunidade acadêmica.

No entanto, mesmo com esse crescente interesse em ouvir e fazer projetar

as vozes das minorias, não há como contestar que a sociedade terrorista128,

127 Id. 128 Na “sociedade terrorista” reina um terror difuso. A violência permanece em um estado latente. As pressões se exercem de todos os lados sobre os membros dessa sociedade; eles têm uma enorme dificuldade para se desembaraçar delas, para afastar esse peso. Cada um se torna terrorista dos outros e seu próprio terrorista; cada

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como denomina Lefebvre (1991), interfere diretamente no cotidiano das pessoas

e, na tentativa de moldá-lo, cria novos mitos, camuflam certos acontecimentos e

inventa outros; também cria novos símbolos e se empenha em impor diferentes

significações à esses. Essa sociedade provoca medo, as novidades amedrontam

as pessoas, que se sentem impotentes diante de tais situações.

As pessoas mais velhas são as maiores vítimas dessa situação, pois se

vêm diante de uma realidade para a qual sentem-se impotentes. As palavras de

dona Senhora são fiel exemplo do que afirmamos: “a gente tem medo até de

dizer que faz, né? Porque tudo é estranho; é uma coisas, é outra; é uma doença,

é outros nomes que a gente hoje não sabe, tudo que passa nas pessoas,agora e

não sei o que...”129

Dona Laura desabafa: “acho que o amor do povo está esfriando. O povo

só acredita em médico, qualquer coisa é médico e nos pastores. O amor do povo

esfriou, a fé do povo esfriou”130.

As falas de dona Senhora e de dona Laura funcionam como desabafo.

Elas estão cheias de angústias, de medos provocados pelas novidades impostas

na atualidade. Não se sentem mais construtoras de um processo, não sabem

mais das coisas. Diante desse desabafo nos perguntamos o que essa sociedade

reserva para as pessoas idosas?

E nós mesmos ensaiamos responder que essa angústia, que não é só de

dona Senhora, nem de dona Laura, mas, em diferentes aspectos, foi explicitada

por quase todas as rezadeiras entrevistadas. É uma angústia de todas as

pessoas que sentem-se oprimidas e buscam respostas, buscam saídas. Mas,

numa perspectiva otimista, cremos que essa angústia representa um passo para

a possibilidade de superação do terror, que começa com o sentimento de

pertencimento, construído através do desvelar da memória.

Essa crença é sustentada com base no que Thomson (1997) chama de

composição da memória:

um aspira a tornar-se terrorista (...). Não é preciso ditador, cada um se denuncia a si mesmo e se pune (...). LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno... Op. Cit.; p. 158; 129 Conversa com dona Senhora, 80 anos, em 07/2009; 130 Conversa com dona Laura, 81 anos, em 02/06/2010;

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As imagens e linguagens disponíveis usadas pelo público nunca se encaixam perfeitamente às experiências pessoais e há uma tensão que pode ser manifestada através de um desconforto latente, da comparação ou da avaliação. Portanto, os relatos coletivos que usamos para narrar ou relembrar experiências não necessariamente apagam experiências que não fazer sentido para a coletividade. Incoerentes, desestruturadas e, na verdade, “não-relembradas”, essas experiências podem permanecer na memória e se manifestar em outras épocas e lugares (...). A memória “gira em torno da relação passado-presente, e envolve um processo continuo de reconstrução e transformação das experiências relembradas”.131

Assim, é possível vislumbrar um processo de superação e, portanto a

possibilidade de rompimento com certas histórias. Fazer o exercício de

rememorar ou memoriar, embora não seja uma tarefa fácil, pois, “para alguns

esse processo é extremamente desafiador, mas pode também insuflar-lhes

confiança à medida que se recuperam e confirmam experiências antes

silenciadas e fazer com que suas histórias sejam compartilhadas e ouvidas”132.

Podemos verificar essa possibilidade através do relato da experiência de

Alistair Thomson (1997) com ex-combatentes de guerra australianos e a lenda

sobre esses Anzacs: “Como o retrato público de participação dos australianos na

guerra havia mudado, Fred Farral pode compor um passado para os Anzacs com

o qual conseguia conviver”133.

Suas entrevistas lhe permitiram constatar que a partir de uma nova versão,

de uma revisão dos fatos históricos, é possível devolver o lugar de sujeito ou de

retratar a participação de certos grupos num processo histórico e assim,

contribuir para que haja um processo de recomposição de certas memórias.

Em termos de Brasil, podemos citar vários exemplos, como o caso de

Tiradentes, ainda que resultado de um processo de enquadramento, de traidor,

no período imperial, passou à condição de herói da nação e símbolo da luta

republicana, sendo transformado, como defende Nora, num local de memória,

pelos defensores da república, que necessitavam também da construção do seu

mito fundador. Numa outra perspectiva, também Zumbi dos Palmares foi, durante

muito tempo, apresentado como vilão na história oficial e, a partir da luta dos

131 THOMSON, Alistair. Recompondo a memória: questões sobre a relação entre a História Oral e as memórias. In: Projeto História; São Paulo, n. 15. 1997, p. 56. 132 Ibid., p.70; 133 THOMSON, Alistair. Recompondo a memória: Op. Cit.; p. 67.

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negros organizados, no final do século passado, passou a figurar como herói da

nação, ajudando a recompor a história de luta contra a escravidão, se tornando

assim uma referência de luta e resistência para os afro-brasileiros, que saem da

condição de passivos ou coitadinhos, para a condição de valentes, lutadores.

Nessa perspectiva, são elucidativas as palavras de Pollak: “A memória e a

identidade são valores disputados em conflitos sociais e intergrupais, e

particularmente em conflitos que opõem grupos políticos diversos”134. Então, para

construir o sentimento de pertencimento da sua identidade exige do grupo a

laboração de um processo de provocação das suas memórias; o que,

inevitavelmente, vai provocar conflitos, pois vai colocar antigas verdades em

xeque.

Acreditamos que de forma silenciosa, e ainda que sem um propósito

planejado, mas pela necessidade da sobrevivência, as pessoas e/ou grupos

criam e também dão outros significados àquilo que lhes é imposto, dessa forma,

conseguem burlar a ordem imposta. Contudo isso só se torna realidade se

houver sentimento comunitário, se as pessoas se identificam em determinado

grupo, o significam e se permitem significar por esses.

É, justamente, o que sugere Pollak (1992):

Podemos, portanto dizer que a memória é um elemento

constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também fator extremamente importante no sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si.135

Memória e identidade, portanto, faces da mesma moeda. Essa operação,

no entanto, não é fácil e necessita da memória como elemento fundamental para

essa construção silenciosa das artes de fazer. É preciso construir, rememorar o

mito fundador. Eliade, diz que a “função do mito consiste em revelar os modelos

exemplares de todos os ritos e atividades humanas significativas; tanto a

alimentação ou o casamento, quanto o trabalho, a educação, a arte ou a

sabedoria”136. Assim fizeram os povos de todos os tempos.

134 POLLAK, Michel. Memória e identidade social... Op. Cit.; p.205; 135 POLLAK, Michel. Memória e identidade social... 135 Op. Cit.; p. 204; 136 ELIADE, Mircea. Mito e Realidade... 136 Op. Cit.; p. 13;

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Os hebreus, quando voltaram do exílio, para continuarem caminhando,

criaram o mito do gênese e da arca de Noé; os africanos, desterrados, tiveram

que recriar seu mito fundador, para dar sentido à vida em meio à escravidão,

como diz Sodré (2005): “A cultura negro-brasileira, emergia tanto de formas

originárias, quanto dos vazios suscitados pelos limites da ordem ideológica

vigente”137.

Essas reflexões nos permitiram identificar cinco aspectos que nos

garantem compreender a memória para fins dessa pesquisa:

a) a memória é uma manifestação do presente, pois o passado é acionado

a partir de sentimentos e necessidades provocados pelo momento. As

lembranças de dona Quita (89 anos), moradora de Catu, que de imediato nos

disse nunca ter ouvido a palavra “jeje”, mas no decorrer da conversa ela foi se

lembrando de pessoas e de situações, com riqueza de detalhes:

Agora me lembro, aqui tinha algumas mulheres que

foram escravas, que diziam que eram jeje. Elas trajavam aquelas saias rodadas, eram bem pretinhas.

Dona Sofia, eu chamava ela de “tia Sofia”. Ela tinha um santo preto na casa; orava, era esse negócio de bruxaria ... trajava saias rodadas com um camisão, como chama? Isso, bata. Usava torço na cabeça. Mas era muito cismada, não ria para ninguém.138

Assim, cremos que é o momento que determina nossas lembranças; é

através do olhar do presente, dos valores do presente que avaliamos nossas

lembranças e a importância da memória que ela faz aflorar;

b) a memória como indissociável da vida social, portanto, individual e

coletiva ao mesmo tempo, numa perspectiva dialética, pois, como afirma

Halbwachs, “a nossa memória se aproveita da memória dos outros”139;

c) que a memória também é herdada e se conserva não só na mente, mas

também no corpo, cheiros, objetos e em espaços, ela é afetiva. Dona Lindu, fala

do tempo da sua mãe, como se tivesse vivido esse tempo: “no tempo da minha

137 SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida... Op. Cit.; p. 93; 138 Conversa com dona Quita, 89 anos, em 03/06/2010; moradora de Catu, cidade a qual Pojuca pertenceu antes da sua emancipação. 139 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva... Op. Cit.; p. 39;

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mãe era tão bom... Agora hoje em dia não, mas no tempo da minha mãe...”140 Ao

mesmo tempo ela revela que o que aprendeu com sua mãe foi muito pouco, pois

essa faleceu quando ela ainda era muito nova “uma garotinha”

d) a memória figura como instrumento fundamental de reconstrução da

identidade: “eu fico muito feliz em saber a reza que minha mãe me ensinou,

deixou para mim, minha mãe tem trinta e poucos anos de morta, mas me deixou

essa bênção, essa glória, que eu fico muito feliz...”141. É dessa maneira que dona

Dida descreve sua sensação por ser rezadeira;

e) por último, ao contrário do que Nora (1993) afirma, a memória existe e

resiste, ainda que silenciada, ainda que enquadrada ou camuflada, porém,

quando de alguma forma provocada pode surgir com uma força devastadora,

capaz de destruir locais, discursos e histórias cristalizados; ou sorrateira, através

de uma reconstrução que só tem sentido, se coletiva para garantia da

preservação e/ou re-composição da identidade de determinado grupo ou

sociedade. Pois, como afirma Pollak:

O longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao

esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de discursos oficiais. Ao mesmo tempo ela transmite cuidadosamente as lembranças dissidentes nas redes familiares e de amizade, esperando a hora da verdade e da redistribuição das cartas políticas e ideológicas.142

Cabe ressaltar, no entanto, que, na tentativa de explicar a memória na

suas diversas nuances os autores, especialmente Nora e Pollak, apesar de

oferecerem importantes contribuições para a compreensão do tema, o

apresentam de maneira muito cartesiana. Enquanto, ao conviver e escutar as

narrativas das lembranças das rezadeiras de Pojuca percebemos que,

independentemente de vontade ou de prévias formulações, as memórias brotam

e, em muitos momentos se apresentam conflitivas com os discursos reproduzidos

pelas mesmas. Assim, compreendemos a memória como um fenômeno

inevitavelmente subjetivo, para além das nossas conjecturas e determinações,

140 Conversa com dona Lindu, 98 anos, em 12/05/2010. Dona Lindu é responsável pelo bumba-meu-boi, que sai às ruas de Pojuca nas festas de reis todos os anos, há quase 80 anos. 141 Conversa com dona Dida, 70 anos, em 10/03/2009; 142 POLLAK, Michel. Memória, esquecimento e silêncio... Op. Cit.; p. 5;

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ainda que seja real o processo de manipulação da memória, através da história

oficial, na construção de uma memória oficial / nacional. Mas é justamente o seu

caráter subjetivo que garante um movimento de resistência da memória, que está

fincado no sentimento de identidade.

E é a cultura que torna tudo isso possível. É a identidade cultural que

conserva a memória e, ao mesmo tempo, é a memória que preserva a identidade

cultural de um povo ou grupo. Uma não existe sem a outra e ambas se realizam

no cotidiano, na vida cotidiana.

Cotidiano: espaço de sentidos e representações

Na perspectiva de tecer um significado de cotidiano que responda aos

questionamentos e se adéqüe às constatações dessa pesquisa, optamos pela

leitura de três importantes teóricos estudiosos dessa temática: Certeau (1999),

Lefebvre (1991) e Heller (1989). Chamamos atenção para o fato de que esses

três autores, assim como os que abordam sobre identidade cultural e memória,

também contextualizam suas abordagens na modernidade, ou pós-modernidade,

como prefere Hall (2005).

Na sua obra “A invenção do cotidiano”, Certeau (1999) já sinaliza a grande

aproximação existente entre suas idéias e as idéias de Lefebvre (1991), quando

informa, em nota, que os trabalhos do segundo “constituem uma fonte

fundamental143” para os estudos do comportamento das pessoas, enquanto a

rede de antidisciplina144.

Por isso, optamos em abordar nosso entendimento sobre cotidiano a partir

de uma base constituída em torno da obra de Lefebvre (1991); contudo,

ressaltamos que nossa concepção de cultura está para além da concepção de

revolução cultural do referido autor, pois esse não consegue compreendê-la para

além das formulações nacionais ou mundiais ou de estética, como podemos

observar nesse fragmento: “A revolução cultural tem como primeira condição e

143 CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano I: Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 319. 144 Antidisciplina, para Certeau, é uma multiplicidade de “táticas” articuladas sobre os “detalhes” do cotidiano; contrárias, por não se tratar mais de precisar como a violência da ordem se transforma em tecnologia disciplinar, mas de exumar as formas sub-reptícias que são assumidas pela criatividade dispersa, tática e bricoladora dos grupos ou dos indivíduos presos agora nas redes de “vigilância”. Esses modos de proceder e essas astúcias de consumidores compõem, no limite, a rede de uma antidisciplina. CERTEAU, 1999: 41.

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procedimento, como exigência inicial e fundamental a reabilitação plena e

completa dessas noções: obra, criação, liberdade, apropriação, estilo, valor (de

uso), ser humano”145.

Observemos que o ser humano aparece como a última noção a ser

reabilitada no processo da revolução cultural promulgada por Lefebvre.

Compreendemos que sua concepção de mundo e de modernidade tem como

base os ideais marxistas e que, embora identifique limites na visão de Marx, ele

também não consegue avançar para uma idéia de ser humano para além da

divisão de classes (proletariados e burgueses) ou de categorias (mulheres,

operários, jovens).

Sendo assim, ressaltamos também que, embora em raros momentos o

autor considere a existência de diferentes grupos étnico-culturais, a base da sua

abordagem em torno do mundo moderno não atinge tais grupos. Sua visão é

limitada ao mundo urbano e à filosofia e organização espacial ocidental, diante

do seu olhar para a França - Nação; o que determina mais esse limite na sua

obra e, por isso, reforçamos que nosso ideal de cultura, passa pela

identificação/identidade de grupo, pautado na busca e respeito à ancestralidade e

ao seu mito fundador, divergindo assim, da concepção de Lefebvre.

Contudo, a sua conceituação de cotidiano e cotidianidade nos é muito

favorável, para a construção do significado dentro da perspectiva dessa

pesquisa, pois conseguimos traçar uma evidente via que conduz tal conceituação

às discussões e problematizações já abordadas na elaboração desse capítulo. O

fragmento abaixo, por exemplo, consegue expressar idéias preliminares sobre o

significado de cotidiano.

No entanto essas pessoas nascem, vivem e morrem. Vivem bem ou mal. É no cotidiano que eles ganham ou deixam de ganhar sua vida, num duplo sentido: não sobreviver ou sobreviver, apenas sobreviver ou viver plenamente. É no cotidiano que se tem prazer ou se sofre. Aqui e agora.146

Observemos que o autor concebe o cotidiano como um lugar – o lugar

onde tudo acontece, onde as pessoas vivem, bem ou mal, mas é nesse lugar que

as pessoas vivem, no sentido mais amplo da palavra, pois, todas as pessoas

145 LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno... Op. Cit.; p. 210; 146 LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno... Op. Cit.; p. 27;

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habitam num determinado lugar onde moram, se relacionam, trabalham,

estudam, brigam, cuidam, plantam, colhem, se divertem, aprendem, ensinam e

etc. É bem verdade, que a ideologia da modernidade também influencia na

significação de lugar, assim como o faz com tantos outros termos. Por isso,

consideramos importante apresentarmos aqui, a nossa concepção de lugar.

Podemos dizer que o lugar é o concreto, o espaço concreto, que permite

que todos os aspectos subjetivos ganhem significados e sentidos, pois é onde se

realizam. O professor Milton Santos (1996) nos ajuda a pensar o lugar dessa

maneira quando afirma que:

O lugar é o quadro de uma referência pragmática ao

mundo, do que lhe vem solicitações e ordens precisas de ações condicionadas, mas é também o teatro insubstituível das paixões humanas, responsáveis, através da ação comunicativa, pelas mais diversas manifestações da espontaneidade e da criatividade.147

Nessa perspectiva, o lugar é, pois, o espaço dos sentidos e das

representações. A partir dessa compreensão do significado de lugar,

conseguimos situar o ser humano e observar seu comportamento, suas ações,

suas maneiras de se relacionar e apropriar do espaço; aí identificamos o

cotidiano.

Dessa maneira, compreendemos que, assim como a cultura e também a

memória são assaltadas e oprimidas pela modernidade, o cotidiano, que é a base

onde a cultura se realiza ou é representada e a memória é provocada e/ou

estimulada, também é assaltado por essa modernidade.

Assim, nas obras dos autores em questão, as idéias em torno de uma

ordenação do cotidiano ou alienação, imposta pela ação da “sociedade

terrorista”, ou da “cultura ordinária”, ou ainda da estrutura econômica, vão confluir

para o termo cotidianidade, mais evidente nas obras de Lefebvre (1991) e de

Heller (1989), quanto à nomenclatura, porém tão evidente quanto nos dois

primeiros na obra de Certeau (1999), no que diz respeito ao seu sentido.

É nesses termos que Lefebvre define cotidianidade:

147 SANTOS, Milton. A natureza do espaço. São Paulo: Hucitec, 1996, p. 258;

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(...) pressões e repressões que se exercem em todos os níveis, a todos os instantes, sobre todos os planos, até mesmo a vida sexual e afetiva, a vida privada e familiar, a infância, a adolescência, a juventude, em resumo o que aparentemente escapa à repressão social, porque está próximo da espontaneidade e da natureza.148

Noutro momento ele define cotidianidade dessa maneira: “(...) espaço

social e solo do consumo organizado, da passividade mantida pelo terrorismo

(...). Ela domina, resulta de uma estratégia global (econômica, política, cultural)

de classe”149.

Diante dessas elaborações em torno do cotidiano, podemos afirmar que

antes mesmo da modernidade, ainda que com outras estratégias, o cotidiano

sempre foi oprimido, ainda que muito mais atualmente. É fácil comprovar tal

afirmação se observamos o comportamento e as imposições da Igreja Católica

no período medieval, por exemplo. Essa tinha o controle até do tempo, que na

modernidade, de acordo com Lefebvre, passa a ser controlado pela filosofia e

pela publicidade.

Para Lefebvre é através da racionalização e da ordenação da

cotidianidade que o Estado, a religião e a cultura oprimem o cotidiano.

Interessante, como diante de determinadas situações as pessoas, de certa

forma, ainda que não consigam identificar de onde vem a opressão, percebem

que ela existe. As palavras de dona Senhora são comprovadoras:

Quando eu saio daqui, eu saio alegre, mas alegre,

quando digo vamos embora, eu já tô toda pelos cantos. Eu não vou gosto daqui não, não gosto. Aqui dá muita lembrança, e lá na roça não, lá na roça eu fico à vontade, não tem que ficar... Saio com meus vestidos cheios de... Qualquer uma saia rasgada, ninguém repara, eu (pausa)... Ave Maria , olha, faço meu fogo de lenha, ôxe, asso meu pedaço de carne pra come, faço o meu gostoso, é bom mesmo.150

Dona Senhora não tem consciência de que é a opressão do consumo e da

moda que determina o que e como se vestir, o quê e como cozinhar... Mas sente

que existe uma “censura”, uma imposição. Contudo, ela, quando vai para a roça,

148 LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno... Op. Cit.; p. 156; 149 Ibid., p. 208; 150 Conversa com dona Senhora, 80 anos, em 07/05/2010;

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foge desse cotidiano oprimido da cidade e fica à vontade. Esse ficar à vontade é

cheio de significações. É o lugar onde ela se realiza; onde pode rezar em

qualquer lugar, pois “todo canto é quintal”; onde se veste como quiser, come o

que gosta e prepara do jeito que gosta. A roça é o lugar onde dona Senhora vive

sem as cobranças, sem as imposições, sem se sentir vigiada pelos seus filhos,

pela sociedade como um todo.

Esse comportamento de dona Senhora expressa o que Certeau (1999)

denomina de antidisciplina. E representa um comportamento de resistência.

Ainda podemos observar essas palavras de dona Senhora a partir da ótica

do mal-estar, abordado por Lefebvre, que por sua vez, não se dá apenas no

campo das artes e do lazer.

A forma como Certeau (1999) lida com a situação de opressão contra o

cotidiano, lhe permite atribuir caráter fictício à ordem imposta pela técnica e pela

teoria à realidade cotidiana, quando diz que:

O que ocorre abaixo da tecnologia e lhes perturba o

jogo nos interessa aqui. É seu limite, percebido há muito tempo, mas ao qual se deve dar outro alcance que não o de uma no man’s land151. Pois, trata-se de práticas efetivas. Os conceptores conhecem muito bem essa modalidade a que dão o nome de “resistências” e que perturba os cálculos funcionalistas (forma elitista de uma estrutura burocrática). Não podem deixar de perceber o caráter fictício instilado numa ordem por sua relação à realidade cotidiana152

O que Certeau (1999) define como técnica e teoria se adéqua

perfeitamente ao que Lefebvre (1991) chama aqui de filosofia (a partir da ótica do

positivismo), ao afirmar que: “Diante da vida cotidiana, a filosofia pretende ser

superior, e descobre que é vida abstrata e ausente, distanciada e separada”153

(LEFEBVRE, 1991: 18). Dessa maneira, ambos sugerem a existência de um

campo/espaço/tempo, resultado “de uma estratégia global (econômica, política,

cultural) de classe” (LEFEBVRE, 1991: 208), que, por sua vez, precisa ser

combatido. Segundo Certeau através da antidisciplina e, segundo Lefebvre,

através da revolução cultural.

151 Tradução do inglês: terra de ninguém. 152 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano... Op. Cit.; p. 308; 153 LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno... Op. Cit.; p.18;

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Apesar de toda repressão que a sociedade moderna impõe sobre o

cotidiano, ela não é infalível:

A tese constante aqui exposta é que a sociedade

terrorista, caso extremo da sociedade super repressiva, não pode se manter por muito tempo. Ela visa à estabilidade, às estruturas, à manutenção de suas próprias condições e de sua sobrevivência. Mas é em vão, pois no final das contas ela explode. (LEFEBVRE, 1991: 159)

Heller (1989), por sua vez, admite que a vida cotidiana é heterogênea e

hierárquica, especialmente no que concerne ao conteúdo, significação e

importância dos tipos de trabalho. O que nos faz entender que essa hierarquia

determina e é determinante da estrutura social e, consequentemente, determina

a ordenação da cotidianidade. No entanto, a autora diz que “a ‘ordenação’ da

cotidianidade é um fenômeno nada cotidiano” 154, e sugere como forma de

superação da alienação, provocada por essa “ordenação” a “condução da vida”:

Nesse caso a condução da vida torna-se representativa,

significa um desafio à desumanização, como ocorreu no estoicismo ou no epicurismo. Nesse caso, a “ordenação” da cotidianidade é um fenômeno nada cotidiano: o caráter representativo, “provocador”, excepcional, transforma a própria ordenação na cotidianidade numa ação moral e política.155

Compreendemos, contudo, que revolução cultural, artes de fazer ou

antidisciplina e condução da vida, são todas idéias da configuração do

comportamento/ação das pessoas oprimidas pela cotidianidade para superação

dessa dada opressão, que transforma a cotidianidade no tempo/espaço do

consumo, do desejo e do pecado, dos sonhos e das obrigações, é a ilusão de

que se é possível realizá-los. Pois, conforme Lefebvre (1991), o papel atribuído

para a cotidianidade pela elite está na construção do imaginário.

(...) o imaginário, com relação à cotidianidade, prática

(pressão e apropriação), tem um papel: mascarar a predominância das pressões, a fraca capacidade de apropriação, a acuidade dos conflitos e os problemas “reais”. E às vezes preparar uma apropriação, um investimento prático.156

154 Ibid., p. 41; 155 HELLER, Agnes. O cotidiano e a história... Op. Cit.; p. 41; 156 LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno... Op. Cit.; p. 99;

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Assim, todos os autores aqui consultados, concordam que o processo de

mudança da realidade se dá a partir do cotidiano. O cotidiano, então, seria esse

espaço/tempo em que tudo acontece, sem preocupação prévia com uma

elaboração ou cientificação; o mundo real, onde as pessoas vivem, trabalham,

criam, sonham, brigam, se relacionam... Ainda que em certos momentos, haja a

necessidade de organizações para elaborações de estratégias; mas, também

esse processo, para ser fiel à organização das pessoas, deve acontecer no seu

cotidiano, pois é no próprio cotidiano é possível forjar o processo de superação.

Mas já vimos que a elite moderna, para se manter no poder necessita se

apropriar do cotidiano, assim, ordena e controla a cotidianidade e dessa forma

determina, define o que deve ser dito, produzido, criado, desejado. O que se

deve comer, usar, comprar... Anulam-se os sujeitos e em seu lugar institui o

indivíduo consumidor de coisas e de idéias. No entanto, a resistência, ainda que

silenciosa, acontece dentro do próprio cotidiano, até porque fora dele, não se

pode transformá-lo. Porém, só é possível enxergar tais mudanças se, a exemplo

de Certeau (1999), observarmos a partir de baixo, ou seja, se observarmos os

movimentos de homens e mulheres comuns do lugar onde atuam.

Muitas práticas cotidianas (falar, ler, circular, fazer

compras ou preparar as refeições etc.) são do tipo tática157. E também, de modo mais geral, uma grande parte das “maneiras de fazer”: vitórias do “fraco” sobre o mais “forte” (os poderosos, a doença158, a violência das coisas ou uma ordem etc.), pequenos sucessos, artes de dar golpes, astúcias de “caçadores”, mobilidades da mão-de-obra, simulações polimorfas, achados que provocam euforia, tanto poéticos quanto bélicos.159

Basta observar com atenção os exemplos que Certeau oferece sobre as

práticas ou artes de fazer (ler, fazer compras, trabalhar, falar, escrever, caçar,

cozinhar...), que percebemos que tais práticas estão inseridas em contextos

intrínsecos à vida em sociedade, como a linguagem (entendida em sua

157 As táticas “tem que utilizar, vigilante, as falhas que as conjunturas particulares vão abrindo na vigilância do poder proprietário. Aí vai caçar. Cria ali surpresas. Consegue estar onde ninguém espera. É astúcia. Em, suma, tática é a arte do fraco” (CERTEAU, 1999: 101). 158 Grifo nosso. Para nossa pesquisa, essas palavras são elucidativas, pois fala através de nós, que as ações das rezadeiras, bem como de quem recorre à elas, fazem parte das táticas que correspondem à vitória dos fracos sobre os mais fortes. 159 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano... Op. Cit.; p. 47;

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amplitude), a religião e o uso do espaço; logo, nos damos conta de que ele se

refere a uma “rede de antidisciplina”.

Podemos exemplificar isso com o uso que as rezadeiras dão às folhas,

como se relacionam com os santos, os objetos utilizados nos rituais de

benzeção, as palavras usadas, a preservação dos quintais... Mulheres que se

utilizam de conhecimentos antigos e misturam crença com conhecimento de

plantas, ervas e outros elementos e realizam cura, ainda que a ciência e a

sociedade de consumo e repressora não admitam e tentem reprimir. Assim,

medicina alopática e tratamento alternativo existem concomitantemente, ainda

que não seja de forma harmoniosa. E, contrariando o discurso da eficácia da

medicina alopática/oficial versus a ineficácia dos benzimentos, elas resistem até

mesmo nas grandes cidades.

Essa constatação tem particular importância, pois as rezadeiras, enquanto

mulheres que também vivem essa realidade do cotidiano conseguem sobrepor a

lógica de que, segundo Lefebvre (1991), são os principais alvos da cotidianidade

da sociedade terrorista do consumo e, por isso, vítimas da vida cotidiana, como

podemos observar no fragmento abaixo:

Pesa sobre as mulheres o fardo da cotidianidade. É provável que tirem vantagem disso. Sua tática: inverter a situação. Nem por isso deixam de agüentar a carga. Acontece que, em sua maioria, elas ficam presas na pesada massa. Para as outras, pensar é evadir-se, não ver mais, esquecer o atolamento, não perceber mais a massa pegajosa [...] São ao mesmo tempo sujeitos na cotidianidade e vítimas da vida cotidiana, portanto objetos, álibis (a beleza, a feminilidade, a moda, etc.) e é a elas que os álibis maltratam. São igualmente compradoras e consumidoras e mercadorias e símbolos da mercadoria (na publicidade: o nu e o sorriso). A ambigüidade da sua situação no cotidiano, que faz parte, precisamente da cotidianidade e da modernidade, fecha-lhes o acesso à compreensão. A modernidade, para elas, por elas, dissimula notavelmente bem a cotidianidade.160

Essa abordagem de Lefebvre tem um quê de machista. Ele pensa a

mulher assim como a publicidade. A modernidade construiu um modelo de

mulher e a tornou, como o autor informa, em consumidora e objeto de consumo

160 LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno... Op. Cit.; p. 83;

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ao mesmo tempo. E, embora numa postura de crítica à esse comportamento da

modernidade, o autor não sugere uma possível resistência feminina, frente a tal

situação.

Hall (2005) nos oferece argumentação plausível que nos permite negar

com segurança o posicionamento de Lefebvre frente às mulheres:

Mas o feminismo teve também uma relação mais direta

com o descentramento conceitual do sujeito cartesiano e sociológico.

Ele questionou a clássica distinção entre o “dentro” e o “fora”, o “privado” e o “público”. O slogan do feminismo era: “o pessoal é público”. ( HALL, 2005: 45)

E mais, todas as rezadeiras aqui investigadas servem como referência

para afirmarmos que as mulheres dentro do cotidiano que as absorve, ao

repetirem os ensinamentos dos seus antepassados, resistem e põem em xeque

essa total submissão da mulher à modernidade.

Especialmente, podemos ilustrar essa afirmação com um relato de dona

Dida sobre a sua vida, seu dia-a-dia:

Sou católica, participo do Apostolado da Oração, do

grupo de convivência do idoso, vou à missa todos os sábados e domingos e canto nas missas. Participo das atividades da igreja. Gosto da religião, nasci e me criei nela e me casei nela e peço a Deus para não sair dela.

Sofri muito, no início meu marido não aceitava eu sair para a igreja. Hoje em dia ele já acostumou. Quando não vou para a missa ele pergunta: Mulher, você não vai para a igreja hoje não, o que está acontecendo? Mas ele não vai. Eu rezo todos os dias para que ele se acomode e passe a me acompanhar para as coisas da igreja.161

Mulher franzina, de voz baixa, mas, com uma força de determinação que

não permitiu que o marido a impedisse de fazer o que gostava. Conquistas

gradativas, que ela atribui ao fato de ter rezado muito, mas que é marca da sua

insistência e resistência. Não se acomodou, perseverou e conseguiu impor a sua

vontade. Não se enquadra no comportamento das mulheres descrito por

Lefebvre. Afinal, é o autor quem afirma que: “Apesar dos esforços para

161 Conversa com dona Dida, 70 anos, em 10/03/2009;

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institucionalizá-lo, o cotidiano; foge sua base e se furta, ele escapa ao assalto

das formas”.162

Com essas palavras o autor nos faz acreditar que o cotidiano possui uma

energia vital, que o alimenta e é alimentada por ele (o cotidiano). Ao contrário do

que parece, o cotidiano tem uma força de se reinventar sempre, por isso,

consegue burlar as formas impostas. Sendo assim, a modernidade não criou um

outro cotidiano, ela impôs a este, formas, que no entanto, são sorrateiramente

burladas.

Cabe ressaltar, contudo, que não é o cotidiano que realiza as ações, pois

não se trata de um ente. Assim, podemos dizer que são as pessoas – homens,

mulheres, grupos, que dentro do cotidiano, se moldam, mas também resistem às

imposições da sociedade terrorista, subvertendo as ordens determinadas,

através dos seus saberes, das suas crenças, dos seus desejos, das suas dores e

conflitos.

Heller (1989) reconhece que:

A estrutura da vida cotidiana, embora constitua

indubitavelmente um terreno propicio à alienação, não é de nenhum modo necessariamente alienada. Sublinhemos, mais uma vez, que as formas de pensamento e comportamento produzidas nessa estrutura podem perfeitamente deixar ao indivíduo uma margem de movimento e possibilidades de explicação, permitindo-lhe – enquanto unidade consciente do humano-genérico e do indivíduo particular – uma condensação “prismática”, por assim dizer, da experiência da cotidianidade, de tal modo que essa possa manifestar-se.163

Assim, é possível entender que a sociedade moderna, com todas as suas

teses não comporta o cotidiano, por isso o nega, no entanto, necessita dele, pois

é na vida cotidiana que as coisas acontecem e a racionalidade, a ciência

moderna, que pretende ordenar tudo, definir lugar e mensurar, enfim, racionalizar

todas as coisas, contraditoriamente necessita do cotidiano, pois é na vida

cotidiana que todas as coisas acontecem. Ai se estabelece a capacidade de

resistência do cidadão do cotidiano.

É exatamente no cotidiano que se manifestam as potencialidades

humanas, onde acontecem as coisas corriqueiras e, as vezes, despercebidas ou

162 LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno... Op. Cit.; p. 193; 163 HELLER, Agnes. O cotidiano e a história... Op. Cit.; p. 38;

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ignoradas. Porém é nessas coisas que se estabelece a força capaz de

transformar a vida das pessoas. Assim, é também no cotidiano que as pessoas

se reconhecem e se identificam através da memória. Sobre isso, assim discorre

Lefebvre (1991):

A imagem, a imaginação, o imaginário parecem

mergulhar no fluxo temporal e prolongá-lo; no entanto, a essência do imaginário situa-se, talvez, na evocação, na ressurreição do passado, ou seja, numa repetição. Isso aproxima a imagem da lembrança e o imaginário da memória, assim como do conhecimento. O conhecimento, os filósofos souberam desde o início que ele comportava reminiscência e reconhecimento (de si mesmo, na reflexão; do outro, no conceito; do ser, na certeza).164

Nesse caso, assim como já é possível vislumbrar a organização das

pessoas em torno das suas culturas, e por compreendermos que é o cotidiano o

“cenário” de todas as ações do ser humano, acreditamos que também o cotidiano

está sendo transformado, cada vez que um grupo reivindica a sua

ancestralidade, o seu espaço na sociedade, no mundo. Cada vez que as pessoas

conseguem se identificar enquanto grupo e se identificam com suas heranças

culturais ancestrais, elas estão resistindo à opressão do cotidiano e libertando-o,

ao mesmo tempo em que se libertam.

Dessa maneira, a memória preservada pode significar uma fonte de

resistência contra todo tipo de opressão. Principalmente quando nos referimos

aos artifícios utilizados pela sociedade terrorista, como a religião, a publicidade, a

televisão e a história moderna para ordenar o cotidiano. Crença que é reforçada

pelas palavras de Certeau (1999), que considera a memória também como uma

arte de fazer, uma resistência contra a cotidianidade oprimida. Segundo ele, Este saber se faz de muitos momentos e de muitas

coisas heterogêneas. Não tem enunciado geral e abstrato, nem lugar próprio. É uma memória, cujos conhecimentos não se podem separar dos tempos de sua aquisição e vão desfiando as suas singularidades. Instruída por muitos acontecimentos onde circula sem possuí-lo (cada um deles é passado, perda de lugar, mas brilho de tempo), ela suporta e prevê também “as vias múltiplas do futuro” combinando as particularidades antecedentes ou possíveis. Assim se induz uma duração na relação de forças, capaz de modificá-la. A métis aponta com

164 LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno... Op. Cit.; p. 24;

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efeito para um tempo acumulado, que lhe é favorável, contra uma composição de lugar, que lhe é desfavorável. Mas a sua memória continua escondida (não tem lugar que se possa precisar), até o instante em que se revela, no “momento oportuno”, de maneira ainda temporal embora contrária ao ato de se refugiar na duração. O resplendor dessa memória brilha na ocasião.165

Concluímos então que o cotidiano, enquanto o lugar onde as pessoas

vivem, onde realizam as ações, é o plano onde a cultura se significa e se faz

representar; é também onde a memória é provocada e estimulada. Assim, é no

cotidiano que as pessoas se realizam, são alienadas ou se tornam conscientes

do seu papel na sociedade e a cultura, por sua vez figura como força de

resistência, que desperta as pessoas para a tomada da consciência de quem

são: construção da identidade. Enquanto é a memória o elemento fustigador

dessa construção.

A partir desse ponto de vista, entendemos que o processo de investigação

dessa pesquisa, interferiu diretamente no cotidiano das rezadeiras de Pojuca,

sujeitos sociais desse trabalho. As visitas e perguntas serviram como estímulo

para que “forçassem a mente” e lembrarem-se de coisas acontecidas e/ou ditas

há anos. Fez com que essas mulheres se perguntassem sobre o seu ofício,

lamentaram muitas vezes porque seus filhos e filhas “não se interessam em

aprender rezar”, para que quando elas se forem, tenha quem continue rezando. E

por isso, demonstraram preocupação em passar seus conhecimentos para

alguém: “Eu vou até ver alguém para ensinar essas coisas”166, disse dona Djão

em um dos nossos encontros.

Então, quando pensamos o cotidiano, quando provocamos as pessoas

para que nos exponham suas memórias, inevitavelmente estamos interferindo no

seu cotidiano, afinal, o que antes não era questionado ou parecia não ter mais

“jeito”, agora figura como incômodo e, se incomoda, é porque tem força de

transformação, pois está latente na memória e, consequentemente, no cotidiano

das pessoas e do espaço que elas habitam. Portanto, como afirma Lefebvre

(1991: 35) “é tratando do cotidiano que podemos caracterizar a sociedade”167 em

165 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano... Op. Cit.; p. 157; 166 Conversa com dona Djão, 74 anos, em 02/06/2010;

167 LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno... Op. Cit.; p. 35;

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que vivemos, assim podemos conhecê-la, desvendá-la e superar suas limitações

e imposições.

Capítulo II

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A História de Pojuca nas memórias guardadas pelas

rezadeiras

Começaria tudo outra vez,

se preciso fosse meu amor. A chama que em meu peito arde...

Nada foi em vão.

A Constituição do Estado da Bahia, no inciso VII do artigo 59, que versa sobre

a competência dos municípios, diz que cabe à esses “garantir a proteção do

patrimônio ambiental e histórico-cultural local168”, no entanto, em muitos municípios

da Bahia nos deparamos com situações que ignoram por completo tal determinação

legal. Pojuca é um exemplo típico dessa constatação.

Na tentativa de investigar aspectos da sua história a partir do Arquivo Público

Municipal, tivemos a oportunidade de ver que tratamento tem sido dado aos

documentos oficiais do município. Num local de muita umidade, inclusive com

infiltração no teto, encontramos várias pastas e caixas, contendo documentos,

jogadas de forma aleatória nas prateleiras e pelo chão. Até uma poça de água,

formada pela infiltração foi possível verificar naquele local. Porém, não tivemos a

oportunidade de acesso a nenhum documento, pois não foi-nos dada autorização

pela prefeita do município para tal propósito.

Tratamento parecido tem sido dado ao conjunto arquitetônico e objetos

antigos, que serviriam como “locais de memória”, como define Nora (1993). Casas e

prédios do início do século XX são demolidos ou reformados sem o mínimo pudor e

objetos antigos ou encontrados em obras de escavação não são guardados ou

expostos em nenhum local adequado.

Essas considerações nos fazem voltar às reflexões do capítulo anterior, nas

quais verificamos o esforço para a construção e manutenção de uma cultura geral e

uma história oficial organizadas pelo Estado, que representa os grupos dominantes,

aos quais, diante dos seus objetivos, nos posicionamos criticamente. Os poderes

públicos de Pojuca, não se interessam, nem sequer em conservar os documentos

oficiais do município.

168 BAHIA, Constituição do Estado, Assembléia Legislativa da Bahia, 2002.

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Enfatizamos que, não negamos a importância da história; já havíamos

assinalado que a consideramos de grande valor para a humanidade, desde que esta

retrate as peculiaridades, as entranhas da vida, do cotidiano e da memória dos

grupos, que compõe a sociedade; desde que dê eco às vozes das minorias e não

camufle os conflitos existentes nas diversas sociedades. Portanto, não negamos a

importância dos elementos que viabilizam a construção da história, o que

questionamos são os interesses que estão por trás de determinadas elaborações

históricas e culturais e, consequentemente, o tratamento dispensado à esses

elementos.

Sendo assim, percebemos que em Pojuca não há uma política de tratamento

das “fontes históricas” ou “locais de memória”. A história desse município tem sido

contada de forma surreal, apenas baseada nos nomes dos prefeitos e prefeitas e

suas famílias, nos ditames das famílias abastadas e baseada na presença da

Petrobrás e da Ferbasa. Então, para não fugir da regra, revela os nomes das nobres

famílias responsáveis pelo inicio do povoamento e em seguida, os feitos em prol da

sua emancipação política. Tudo mais tem sido omitido ou camuflado.

Diante dessa infeliz realidade, nos propomos fazer o caminho inverso no

processo de averiguação da história de Pojuca e suas memórias, pois nos apoiamos

no olhar, nas experiências e nas memórias do seu povo. Investigar um pouco dessa

história a partir das informações orais, das memórias das pessoas entrevistadas,

principalmente das rezadeiras, e também de alguns outros documentos e obras

bibliográficas, deve nos permitir formular algumas sínteses em torno dos aspectos

omissos dessa história.

Resolvemos iniciar apresentando dados da sua localização.

Pojuca é um pequeno município do Recôncavo Norte da Bahia, com área de

318 Km2 e situada a 70 km de Salvador. É cortada pelas rodovias BA 093 (que vai

de Entre Rios até Simões Filho, quando se encontra com a BR 324 e alcança

Salvador) e BA 420 (que a liga à Catu). Tem população estimada 32.225 mil

habitantes169.

É um dos municípios que compõem a região ao entorno da Baía de Todos os

Santos – o recôncavo baiano –, situado ao norte. Trata-se de uma região de Mata

169 Contagem da população, IBGE 2009. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1. Acessado em 08/06/2010.

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Atlântica, com clima temperado e solo úmido, de massapé, propício para o plantio de

cana-de-açúcar, por exemplo.

170

Na escola só tivemos a oportunidade de ouvir falar sobre alguns aspectos

bem pontuais da sua história, como o significado da palavra pojuca, que, de acordo

com Teodoro Sampaio171, é considerada uma corruptela de yapô-yuca, palavra tupi,

que quer dizer água podre, pântano, estagnado. Recebemos também informações

bem superficiais do seu processo de colonização, como podemos observar na

monografia número 262, ano 1963 do IBGE:

A colonização nas terras baianas só teve início depois

da chegada de Tomé de Souza, em 1549. O bandeirante

170 Localização de Pojuca, disponível em: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/9/9c/Bahia_Municip_Pojuca.svg/579px-Bahia_Municip_Pojuca.svg.png acessada em: 20/08/2009. 171 Pojuca corr. yapó – yuca, o pântano corrupto, apodrecido; estagnado, podre. In: SAMPAIO, Teodoro. O tupi na geografia nacional. São Paulo: Brasiliana, 1987, 5ª ed. P. 305.

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Garcia d'Ávila estabeleceu-se na região e venceu os patachós e tupiniquins. Grande movimento de colonização operou-se de 1609 a 1612, na zona territorial entre os rios Joanes, Jacuípe e Pojuca, sendo interrompido durante a invasão holandesa. A primeira povoação surgida no território data de 1684, quando se fixaram às margens do rio Pojuca, onde hoje está situada a cidade, as famílias Freire de Carvalho, Veloso e Saraiva, construindo moradias e engenhos, cercando pastagens e cultivando a terra. A iniciativa despertou interesse dos moradores circunvizinhos, desenvolvendo-se mais rapidamente o núcleo. O distrito surgiu em 1892 e o Município em 1913.

O termo Pojuca, segundo Teodoro Sampaio, é corruptela de "yapô-yuca": "o pântano, o estagnado e podre"172

Confirmamos essa informação através do vocabulário geográfico brasileiro de

Sampaio (1987), que apresenta assim o significado do termo: “Pojuca. Corr. Yapó –

yuca, o pântano corrupto, apodrecido; o estagnado, podre. Alt. Ipojuca, pajú, bajú,

mojú” (SAMPAIO, 1987: 305). O significado do termo pojuca e os índios que

habitavam a região: tupiniquim e pataxó são as únicas menções feitas à presença

indígena na história da cidade, embora a presença do povo pataxó seja bem

questionável, diante da sua localização desde a chegada dos portugueses ao Brasil,

ainda que saibamos que o nomadismo era uma das características desse povo.

Outro aspecto da história de Pojuca também repetido nas escolas refere-se à

origem da sua colonização, ocorrida desde o início do século XVII, período colonial

do Brasil, sendo Pojuca parte de uma sesmaria, que, só passou a ser povoada pelos

portugueses no final do referido século, com a construção dos engenhos de cana-

de-açúcar, também mencionados na citada monografia do IBGE. Assim, sobre a

presença dos negros nessa história, apenas há um indício implícito, por conta da

informação de que nesse município se construiu engenhos.

Depois de uma grande lacuna, por ocasião dos festejos emancipatórios fala-

se da emancipação do município no início do século XX, quando a cidade deixou de

ser um distrito do município de Santanna do Catu em 29 de julho de 1913, como

consta na mesma monografia:

FORMAÇÃO ADMINISTRATIVA O Distrito foi criado pela Lei municipal de 5 de setembro de 1892, como componente do Município de Santana do Catu. Desmembrou-se deste em virtude da Lei estadual n.º 979, de 29 de julho de 1913 que criou o Município de Pojuca. A

172 IBGE/ BA, Monografia nº 262, 1963. Disponível em: - http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/dtbs/bahia/pojuca.pdf, acesso em 01 maio de 2009.

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instalação verificou-se a 26 de outubro do mesmo ano. O decreto-lei estadual n.º 11.089, de 30 de novembro de 1938, elevou a sede à categoria de cidade. Sempre foi composto de 2 distritos: Pojuca (sede) e Miranga173 (IBGE, 1963).

Ainda no período em que estudávamos no ensino fundamental, era comum

ouvir em verso e prosa o chavão de que Pojuca era a “Princesinha do Petróleo”,

isso, por causa da extração petrolífera, que iniciou no município a partir de 1953,

quando a Petrobrás se instalou naquela região, transformando sua paisagem,

valores e, consequentemente, o comportamento da população, que ampliou

bastante com a chegada de muitas pessoas para trabalhar na empresa.

Segundo Brito (2008), entre 1940 e 1950, devido a grande crise na cultura

canavieira, o índice populacional de Pojuca sofreu uma grande depressão: cerca de

44, 8%. Já entre as décadas de 1950 e 1960, com a implantação da extração

petrolífera ocorreu movimento inverso e o índice populacional teve crescimento de

60% de moradores na sede do município174. Assim, Pojuca passa a ter uma

população crescente, combinada com o aumento da densidade demográfica na sede

e redução na zona rural; fator que provoca profundas mudanças na paisagem e no

comportamento da população, que vai se orgulhar de pertencer à “princesinha do

petróleo”.

Hoje já não se repete mais esse chavão, pois, embora ainda tenha na

extração de petróleo e de gás natural a sua maior fonte de renda, Pojuca já perdeu o

título de “princesinha do petróleo” há alguns anos.

A abordagem de Hall (2005) sobre a cultura nacional ou de Nora (1993) sobre

história, encontram fiel exemplo na forma como a história oficial de Pojuca busca

construir no imaginário do povo pojucano a idéia da homogeneização social da

população. Os gestores, especialmente a partir da década de 80, passaram a utilizar

o discurso de pai ou mãe dos pojucanos, assim, omitem os conflitos que desafiam a

realidade, e, através de favores, apadrinhamentos e distribuição de brindes, mantêm

a população alheia aos desmandos cometidos, e submissa à ordem por eles

estabelecida.

Esse discurso histórico, somado ao grande fluxo migratório que a cidade

sofreu e ainda sofre são responsáveis pela realidade de alienação à qual o povo de

173 IBGE/ BA, Monografia nº 262, 1963. 174 Esses dados podem ser observados entre as páginas 71 e 130, onde o autor representa-os através de tabelas. BRITO, Cristóvão. A Petrobrás e a gestão do território no Recôncavo Baiano. Salvador: EDUFBA, 2008.

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Pojuca tem sido induzido. Como conseqüência dessa situação, encontramos uma

população com pouca ou nenhuma consciência da sua identidade cultural,

especialmente no que se refere à presença africana, ainda que a grande maioria dos

seus habitantes seja notoriamente negra.

Pojuca tem dois inegáveis indícios da presença africana desde os primórdios

da sua história oficial. Primeiro as características físicas e culturais do seu povo, que

é uma conseqüência do segundo indício, a sua localização, no recôncavo, que não

deixa dúvidas da presença africana nessa região, pois os colonizadores ocuparam

suas terras com a criação de gado e, principalmente com a construção de engenhos

de cana-de-açúcar, para os quais foi introduzida a mão-de-obra escrava dos negros

africanos.

Como a grande maioria dos municípios baianos, Pojuca também se formou às

margens de um rio, seu homônimo. De acordo com os dados do Relatório de

Monitoramento das Águas do Estuário do Rio Pojuca (2005)175, esse rio é o principal

de uma bacia que recebe águas de doze rios, possui cerca de 4.341 km² e percorre

quase de 200 km, sendo a bacia de maior extensão do Recôncavo Norte. Nasce no

município de Santa Bárbara , na Serra da Mombaça e desemboca no Oceano

Atlântico entre a Vila da Praia do Forte e Itacimirim.

Além de Pojuca, suas águas atravessam os territórios de vários municípios

como Feira de Santana, Irará, Teodoro Sampaio, Terra Nova, Coração de Maria,

Alagoinhas, Catu, Mata de São João e Camaçari.

(...) Cruzando o interior ao norte do Recôncavo, outros

rios como o Jacuípe, Joanes e Pojuca corriam em direção leste, desaguando não na baía de Todos os Santos, mas no oceano, ao longo da costa norte de Salvador. Esses rios nasciam nos áridos planaltos e ocasionalmente secavam por completo durante o verão. Os engenhos, sempre que possível, localizavam-se às margens da baía ou ao longo dos rios, aproveitando-os como meio de transporte e as vezes também como fonte de energia.176

O rio Pojuca dá nome à cidade e foi ele o responsável pela atração de

famílias que foram se acumulando nessas terras, onde construíram engenhos de

175 BAHIA, Relatório de Monitoramento das Águas do Estuário do rio Pojuca. Salvador, Bahia, 2005. Disponível em: http://www.semarh.ba.gov.br/gercom/relatorio_monitoramento.pdf, acessado 20/06/2009. 176 SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos, e escravos na sociedade colonial 1550 – 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 79;

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cana-de-açúcar, comum naquela época. Rego (1988) apresenta relato datado no

ano de 1757, do reverendo Felipe de Barbosa da Cunha para o rei de Portugal:

Há nesta freguesia oito engenhos de fazer açúcar a

saber: Laranjeiras, da Pojuca, do Retiro, da Água Boa, Pimentel, Laranjeiras Nova, Papassu, Terra Nova e das religiosas de Nossa Senhora do Carmo. Distam um do outro entre uma e duas léguas. Estes engenhos são as maiores povoações de que compõem esta freguesia, porque além de serem os seus senhores pessoas distintas, trabalham nesta oficina grande quantidade de escravos e homens forros, havendo também muitos lavradores de cana que plantam para moerem nos ditos engenhos, dando-lhes a meação do açúcar como é estilo vivendo estes em suas fazendas distintas que fazem corpo com os mesmos engenhos (...). Há nesta freguesia três capelas filiais: a de Nossa Senhora da Soledade, sita no Engenho do Retiro; Nossa Senhora das Mercês, no Engenho de Pojuca177, e a Nossa Senhora do Desterro, no Engenho das Laranjeiras (...).178

Contudo, encontramos esta mesma citação no artigo de Filho179, seguramente

mais elaborado, e, a partir dele, percebemos que os engenhos citados pelo então

vigário não se referiam apenas ao atual território de Pojuca, pois, as terras do

referido município compuseram, juntamente com os atuais municípios de Catu, Mata

de São João, São Francisco do Conde, São Sebastião do Passé, dentre outros, a

Vila de São Francisco do Conde, Schuartz (1988):

As paróquias instituídas pela Igreja estabeleceram a

forma básica de organização no Recôncavo por duzentos anos; entretanto em fins do século XVII um sistema de organização secular, baseado em municipalidades, também começou a formar-se. Em 1698, criaram-se no Recôncavo as vilas de São Francisco do Conde, Cachoeira e Jaguaripe; Santo Amaro foi estabelecido em 1727. Jaguaripe foi subdividido em 1724, com a criação da vila de Maragogipe (...).180

Consideramos também que o número de engenhos oscilou durante os anos

da economia canavieira, com suas altas e baixas. Schuartz (1988), ainda que

desconfiado dos dados, apresenta dados que informam que no final de século XVI a

177 Grifo nosso. 178 REGO, Alfredo Antonio Silva. Breve notícia sobre a emancipação de Pojuca: 1913 – 1930. Pojuca, 1988, p. 7; 179 FILHO, Walter Fraga. Histórias e reminiscências da morte de um senhor de engenho no Recôncavo. In: Afro-Ásia nº 24. Salvador: UFBA, 2000, pp. 165 – 189. 180 SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos, e escravos na sociedade colonial... Op. Cit.; p. 81;

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capitania da Bahia possuía 50 engenhos em funcionamento181. Porém, Sousa

(1851), na sua obra Tratado Descritivo sobre o Brasil em 1587, contabiliza 36

engenhos na Bahia:

Mas comecemos nos engenhos, nomeando-os em

suma, ainda que particularmente se dissesse de cada um seu pouco, havendo que dizer deles e de sua máquina muito, os quais são moentes e correntes trinta e seis, convém a saber: vinte e um que moem com água e quinze que moem com bois, e quatro que se andam fazendo. Tem mais oito casas de cozer meles, de muita fábrica e mui proveitosas. Saem da Bahia cada ano destes engenhos passante de cento e vinte mil arrobas de açúcar, e muitas conservas. Tem a Bahia com seus recôncavos sessenta e duas igrejas, em que entra a Sé e três mosteiros de religiosos, das quais são dezesseis freguesias curadas...182

Assim, Schuartz, apresenta maior confianças nas observações de Sousa183.

Já nos séculos seguintes o autor informa que esse número sofreu significativo

aumento: “Em 1676 havia no Recôncavo 130 engenhos. Apenas em princípios do

século XVIII começou a haver melhora na documentação. Em 1710 indicou-se a

existência de 146 engenhos na Bahia”184. E no século XIX ocorreu um considerável

aumento no número de engenhos na Bahia, como podemos observar na tabela

abaixo:

TABELA I – Engenhos matriculados pela Junta da Real Fazenda e pelo governo provincial, Bahia 1807 – 1874185

Anos

Nº médio de novos engenhos

matriculados por ano

Nº total de novos

engenhos matriculados

Total

cumulativo

181 Embora existia alguma discrepância quanto ao número total de engenhos, vários relatos dão conta de cinqüenta deles funcionando na capitania da Bahia em 1590. (SCHWARTZ, 1988: 72) 182 SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro, 1851. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/me003015.pdf . Acesso em 02/06/2010, p. 141; 183 Temos a boa sorte de possuir descrições minuciosas, embora incompleta, referentes a 1587, (...) as quais fornecem um excelente panorama dos contornos demográficos e econômicos dessa região. (SCHWARTZ, 1988: 82); 184 SCHWARTZ, Stuart. B. Segredos internos... Op. Cit.; p. 85; 185 BARICKMAN, Bert Jude. Um contraponto baiano: açúcar, fumo, mandioca e escravidão no Recôncavo, 1780-1860. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 75.

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1807 – 1818

1818 – 1820

1821 – 1829

1830 – 1834

1835 – 1839

1840 – 1844

1845 – 1849

1850 – 1854

1855 – 1859

1860 – 1864

1865 – 1869

1870 – 1874

-

8,7

12,2

26,4

11,6

3,2

10,8

13,2

6,2

3,6

1,8

1,0

-

26

110

132

58

16

54

66

31

18

9

5

315

341

451

583

641

657

711

777

808

826

835

840

Essas constatações nos servem de argumento quanto a dificuldade de

precisar a quantidade de engenhos no território pojucano. Outro fator que também

dificulta tal precisão refere-se à grande troca de donos sofrida pelos engenhos,

como podemos verificar nas palavras de Schwartz: “Os engenhos mudavam de mão

rapidamente; uma má colheita, a chegada tardia de uma frota, uma guerra européia

podiam acarretar um desastre. A indústria açucareira não era um investimento

seguro”186.

Contudo, conseguimos identificar um dos engenhos citados pelo vigário

Felipe Cunha, no atual contorno das terras de Pojuca: o Engenho Pojuca, onde

ainda existe e resiste uma velha fazenda, localizada entre os bairros Shangri-lá e

Pojuca Nova. Foi possível localizar esse Engenho, graças a um dos relatos de dona

Djão, quando nos informou sobre sua mãe: “Minha mãe era... Ai tinha uma igreja,

uma capelinha... Nossa Senhora da Mercês e mãe lavava roupa prá... Engomava

prá o pessoal da fazenda. Mãe Joana foi criada lá e disse até que ela era filha do

barão”187.

Convém considerar que essa dita fazenda, outrora Engenho Pojuca e

pertencente ao Conselheiro Saraiva, pertence hoje à família Leite, família que

tradicionalmente tem governado o município. João Alfredo Leite (pai), fazendeiro,

que já aparece na cena política de Pojuca desde os anos trinta do século passado188

e foi prefeito nos anos de 1946 a 1948; Luiz Alfredo Leite (filho), que governou por

186 SCHWARTZ, Stuart. B. Segredos internos... Op. Cit.; p.93; 187 Conversa com dona Djão, 74 anos, em 12/05/2010; 188 Participou da cerimônia de posse do prefeito Pacífico de Azevedo Lima, no dia 08 de dezembro de 1930, quando da “Revolução de 30”, conforme constatamos em Rego (1988:17).

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duas vezes, de 1984 a 1988 e de 1993 a 1996 e, por último, Luiz Eduardo Bastos

Leite (neto), que governou de 2006 a 2008. Fato que comprova que ainda hoje a

situação política de Pojuca é marcada por profundos resquícios do período

escravocrata.

Segundo os relatos de dona Djão, toda a região do bairro Shangri-lá pertencia

a João Alfredo Leite. Suas lembranças indicam que ainda no inicio do século XX,

existiam engenhos – usinas – em Pojuca e que o tratamento dado aos trabalhadores

era como se ainda fossem escravos:

Ele (seu pai) era escravo mesmo. Era filho de escravo.

Ele criava. Tinha uma fonte bem perto que mãe lavava roupa prá a fazenda, mãe era lavadeira... E meu pai trabalhava na fazenda. Ela engomava prá as pessoas da fazenda, lá e cozinhava...

Tinha cana, meu pai ia para Paranaguá, ia buscar cana. Os carros de cana para moer aqui.

Ai tinha a moenda. A fazenda era aqui, no finado João Leite, a fazenda... Ai tinha a moenda, tinha um tacho deste tamanho, o tacho. Agora tinha... Moía com o boi, viu? Era dois boi moendo assim: moendo, moendo, moendo... E depois fazia o açúcar, fazia o açúcar, o açúcar mascavo. Tá vendo?189

Região de tabuleiro do recôncavo, mas ainda com clima úmido e solo fértil,

Pojuca oferecia todos os aspectos necessários para favorável produção de cana-de-

açúcar, mas além da cana, também produziu em mandioca, fumo e desenvolveu a

criação de gado leiteiro.

De acordo com informações tiradas do Livro Tombo da Paróquia Bom Jesus

da Passagem (1917), ao apresentar os limites da nova paróquia, conseguimos

identificar mais cinco engenhos, a saber: Engenho Santiago, Engenho Remédios,

Engenho Gameleira, Engenho Pindobal e Engenho Onça190.

189 Conversa com dona Djão, 74 anos, em 12/05/2010; 190 Pela presente Havemos por bem, usando da Nossa jurisdição ordinaria e na forma do Sagrado Concílio Tridentino, ouvido o Nosso Ilmº Revmº Caleido Metropolitano, attendendo aos interesses espirituaes dos fieis, elevar à categoria de freguezia, que se denominará = Freguesia do Bom Jesus da Passagem =, o segundo districto de paz e policial da Villa e Freguezia de Sant’anna de Catú, cuja séde é no arraial de Pojuca, ficando desde já separado, dividido e desmembrado o mesmo districto da mensionada parochia de Sant’Anna do Catú, e erigido economicamente instituída em o dito districto a nova Parochia sob o Orago de Bom Jesus da Passagem, cuja linha divisoria é a seguinte: No rio Pojuca, do lugar onde desagúa o rio Una, por este rio acima até a estrada denominada dos Olheiros; por esta acima comprehendendo as terras dos extintos engenhos: Remédios, Santiago, Gameleira, Pindombal e Onça ate os limites que tinha o territorio desmembrado da freguezia de Sant’anna do Catú com as freguezias de Alagoinhas, Abrantes, Mata de São João e Villa de São Francisco e dali ate o lugar onde se principiou a traçar a linha divisoria, isto é, na foz do rio Uma no Rio Pojuca: limites estes que são os do

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Na sua obra Povoamento do Recôncavo pelos engenhos: 1536 – 1888,

Carlos Ott (1996) cita os engenhos Remédio e Santiago, além do Pojuca, o qual ele

diz que o nome verídico é Caboclo, no entanto, tivemos muita dificuldade em

identificar o Engenho Caboclo, o Engenho da Purificação e o Engenho Pojuca. Ao

ler Ott (1996) e Araújo (2002), imediatamente concluímos que tratava-se do mesmo

estabelecimento, principalmente a partir das informações de Araújo (2002)

referentes aos sócios do Engenho Central de Pojuca – o segundo Engenho Central

da Bahia –, no processo de tentativa de recuperação da economia canavieira da

Bahia no final o século XIX:

Seus fundadores e principais acionistas — Conselheiro

José Antônio Saraiva, Coronel José Freire de Carvalho, José Augusto Chaves, Antônio Ferreira Veloso191 e Félix Vandesmet —, possuidores de grande capacidade administrativa, souberam atrair ao projeto o interesse de pessoas de projeção na sociedade baiana, como é o caso do Conde de Subaé.192

Também quando a autora se refere à localização do referido Engenho:

O segundo engenho central construído na Bahia foi o da

Pojuca, localizado em Catu, no Engenho Purificação, à margem da linha férrea inglesa (Estrada de Ferro Bahia ao São Francisco), estabelecimento contratado, à semelhança do Bom Jardim, com a Companhia Five-Lille.193

Ressaltamos aqui, que como declara o documento do IBGE (1963), o

município de Pojuca sofreu sua emancipação política em 29 de julho de 1913 e o

que estamos chamando aqui de Pojuca, não é apenas o espaço político, mas,

também o espaço geográfico, ou seja, como estamos adotando uma cronologia não

linear, para a construção de aspectos da história de Pojuca, concomitantemente,

apresentamos informações de diferentes períodos da sua história, antes e após a

sua emancipação.

Cientes de que havia uma freqüente rotatividade entre os donos de engenhos,

supomos que essa era uma realidade bem evidente do engenho em questão: Ott

actual segundo districto de paz e policial da Villa de Sant’anna do Catú... Livro Tombo da freguesia de Bom Jesus da Passsagem, 1917. 191 Grifo nosso. 192 ARAÚJO, Tatiana de Freitas. Os engenhos centrais e a produção açucareira no Recôncavo Baiano: 1875-1909. Salvador, FIEB, 2002, p. 117; 193 Ibid., p. 116;

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revela: “No dia 19 de agosto de 1839, já aparece como proprietário do engenho

Pojuca o coronel Simão Gomes Ferreira Veloso”194, mais um empreendedor do

Engenho Central.

Já na Noticia descriptiva da felicitação dirigida em nome do Partido Liberal ao

Sr. Conselheiro José Antonio Saraiva (1870)195, encontramos como proprietários do

Engenho da Purificação a família Velloso e também o Conselheiro Saraiva, que era

casado com a filha do primeiro. Com todas essas informações, somos levados a

acreditar que trata-se de um mesmo engenho, apesar dos diferentes nomes a esse

atribuídos. Porém, na consulta ao livro Tombo da Paróquia Bom Jesus da

Passagem, padroeiro de Pojuca, quando registra o extrato da escritura de doação de

terras por José Antonio Saraiva para construção do cemitério da Paróquia em 1895,

encontramos outra informação que nos faz voltar a idéia inicial de se tratar de dois

engenhos distintos, ainda que com proprietários comuns:

(...), perante os quais pelo procurador do dito

Conselheiro José Antonio Saraiva, me foi dito que seu constituinte doava à fábrica de Igreja Matriz desta parochia de Sant’Anna do Catú, novecentas braças quadradas de suas terras, para no referido terreno ser pela mesma Fabrica edificado um cemiterio, cujas terras se confinam com as do Barão de Pojuca com quinze braças de frente e sessenta de fundo um dos seus lados collocados no rumo do engênho do seu constituinte196 e em direcção à fonte antiga do Pau D’arco.197

Essa informação evidencia que o Engenho Pojuca, do Barão de Pojuca era

um e o Engenho Purificação, que tem como nome original “São José dos Caboclos”,

onde foi implantado o segundo Engenho Central da Bahia – Engenho Pojuca, é

outro, contradizendo as informações de Ott (1996), que os apresenta como se fosse

apenas um.

Para reforçar a tal conclusão acrescentamos a fala de dona Helena (99 anos):

Não sei se tinha engenho. Só sei que em Central fazia

açúcar. Meu avô plantava cana para moer em Central, na fábrica Central. Tinha também a usina de Pitanga. Em Central

194 OTT, Carlos. Povoamento do Recôncavo pelos engenhos: 1536 – 1888. Salvador: Bigraf, 1996, p. 309; 195 PARTIDO LIBERAL. Noticia descriptiva da felicitação dirigida em nome do Partido Liberal ao Sr. Conselheiro José Antonio Saraiva (1870): em sua residência à Pojuca. Bahia: Typographia do Diario, 1870. 196 Grifo nosso. 197 LIVRO DE TOMBO DA FREGUEZIA DE POJUCA, Pojuca – BA, 1917 – 1960, p. 3 (verso).

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tinha a Igreja da Purificação. Dois de fevereiro era a missa da Purificação. Quem tem a imagem da santa até hoje é Luís Claudio, filho de dr. Dilson.

A sede era mais desenvolvida que Central, só tinha a igreja e a estação e a usina de açúcar.198

Nessa foto (2010) podemos identificar a Fazenda São José do Caboclo, com sua torre, com data de 1894 a linha férrea São Francisco, com parte do prédio da Estação Central, no atual bairo de Central.

Ainda uma dúvida nos acomete em relação ao segundo Engenho Central da

Bahia, pois, de acordo com o trabalho de Araújo (2002), esse foi inaugurado em 18

de novembro de 1880, naquela tentativa de dar reativar a cultura açucareira no

estado, o que, no entanto, conforme a autora, não surtiu o efeito esperado e, em

1909, com o final da monarquia, fora completamente abandonado199.

No entanto, a placa na base da torre da fazenda São José do Caboclo, como

podemos verificar abaixo, apresenta data de 1894, quatorze anos após a

inauguração. Podemos ainda relembrar as palavras de dona Helena (99 anos), as

quais informam que esse estabelecimento ainda se encontrava em franca atividade

nos primeiros anos do século XX, quando lembra que seu pai produzia cana para

ser processada nesse engenho. Essas duas informações nos fazem deduzir que

198 Conversa com dona Helena, 99 anos, em 09/12/2009; (faleceu em Janeiro de 2010).

199 Julga-se interessante ressaltar que a política encetada oficialmente para aplicação de recursos na implantação de engenhos centrais tende a ser gradualmente abandonada, à medida que se opera a transição do regime monárquico para o republicano, até ser definitivamente abandonada em 1909. (ARAÚJO, 2002: 139)

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esse engenho continuou funcionando para além da primeira década do século

passado.

Inscrição da placa da base da torre da fazenda São José dos Caboclos, 2010.

Das terras desse engenho muito já foi vendido, mas até hoje suas terras

atingem os territórios de Catu e São Sebastião do Passé, segundo o seu dono, Sr.

Luis Claudio Vasconcelos de Aguiar, neto do então barão de Pojuca. Foi

conversando com ele que conseguimos elucidar a dúvida se o engenho São José

dos Caboclos e o engenho Pojuca eram o mesmo estabelecimento, possibilidade

negada pelo herdeiro do barão de Pojuca.

Outro engenho citado pelas rezadeiras foi o Engenho Pitanga. Citado tanto

por dona Laura (81 anos) e também por dona Helena (99 anos), mas, como dona

Laura sinalizou não pertence à Pojuca e sim ao município de Mata de São João.

Dado confirmado por Filho (2006:51): “em 12 de fevereiro de 1881, o chefe de

polícia recomendou ao subdelegado de Mata de São João que informasse ao dono

do Engenho Pitanga200 que o escravo José de Santana, crioulo, fora à sua presença

queixar-se do feitor do mesmo engenho201”. Dona Helena ainda nos informou que “a

200 Grifo nosso. 201 FILHO, Walter Fraga. Encruzilhadas da Liberdade. Campinas: UNICAMP, 2006, p.

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usina da Pitanga era o arrimo do povo de Pojuca. Tinha de tudo lá: feira, tão grande

quanto a de Pojuca, tinha dentista202, tinha feira sábado e domingo”203.

No entanto, o fato do Engenho Pitanga não pertencer a Pojuca e sim a Mata

de São João204 não interfere na nossa investigação, pois, nesse caso, a questão de

limites é apenas política, já que antes mesmo de Santana do Catú ser uma

freguesia, ela também compunha o território matense. Por outro lado, até os dias

atuais as pessoas dessas imediações se consideram pojucanas e são atendidas em

todas as questões como educação, água, saúde e comércio, dentre outros, em

Pojuca.

Por último, ainda que apenas como suposição, vemos como possível a

presença da família do barão de Jeremoabo – Costa Pinto – também em Pojuca. O

cruzamento de duas informações nos permite verificar tal possibilidade:

O historiador F. W. O. Morton estima que 92 dos 316

engenhos baianos em 1818 (29%) eram propriedade de vinte grandes famílias, entre elas, os Góes, Calmon, Fiúza, Costa Pinto, Dória e Rocha Pita. Essas famílias não só possuíam muitos engenhos, mas também, em geral, os mais bem localizados e maiores.205

Nessa lista de donos de engenho apresentada nesse fragmento identificamos

a família Dória, já apontada como proprietária do Engenho da Purificação e também,

é bem provável que a família Costa Pinto, seja a mesma família do Cel. Carlos Pinto,

que figurava como influente figura política do município, pois foi um dos

personagens do processo emancipatório de Pojuca e o primeiro prefeito daquela

cidade. Também encontramos o seu nome diversas vezes com padrinho de muitas

crianças do referido município, no livro de batismos da Paróquia Bom Jesus da

Passagem, fato que comprova sua influência sobre a população, comportamento

comum dos coronéis daquela época. Infelizmente, não conseguimos identificar qual

teria sido o engenho de propriedade dessa família.

A essa altura já temos como certa a presença africana, logo nos anos iniciais

da ocupação colonial das terras ao longo do rio Pojuca, uma vez que a mão-de-obra

202 É provável que naquela época não houvesse dentista, serviço ainda hoje muito limitado à população. Talvez o que se due 203 Conversa com dona Helena, 99 anos, em 9/12/2010;

204 Vamos ao segundo engenho, o de Pitanga da Freguesia de Bonfim da Mata. (OTT, 1996: 36) 205 SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos... Op. Cit.; p. 93;

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utilizada em toda a colônia e, especialmente nos engenhos era do negro africano

escravizado.

De acordo com Berkenbrock (2007): “Já no ano de 1549, os donos de

plantação receberam o direito de importar ao Brasil cada qual 120 escravos da

Guiné ou da Ilha de São Tomé. Esta é a primeira permissão legal para a importação

de escravos africanos ao Brasil de que se tem notícia”206, porém ainda não se

constituía o tráfico conforme se desenhou a partir do século XVII.

Berkenbrock (2007) estima que no primeiro século de colonização o Brasil

importou cerca de 30 mil escravos africanos:

Estima-se em dois a três mil o número de escravos

africanos no Brasil por volta de 1570. Duas décadas depois, este número já deve ser de nove a dez mil e na virada do século em torno de 15 mil. Segundo estas estimativas, no primeiro século de colonização foram trazidos para o Brasil cerca de 30 mil escravos africanos. Neste mesmo período, o número de engenhos subiu para mais de 100. Cada engenho possuía em média de 20 a 300 escravos.207

Já segundo Mattos (2007: 104), o Brasil recebeu cerca de cem mil africanos

só no século XVI. Eram povos mandingas, jalofos, balantas, bijagós, dentre outros,

oriundos da região da Senegâmbia208.

Observemos que Mattos indica um número de africanos no Brasil três vezes

maior que a estimativa de Berkenbrock, de trinta mil africanos. O que causa

estranheza é que Mattos utiliza como fonte Alencastro (O trato dos viventes, 2000) e

apresenta estimativa tão diferente da sua fonte, que, assim como Berkenbrock,

apresenta uma estimativa de 40209 mil escravos.

O aumento do comércio de escravos também fez expandir os territórios de

onde os africanos eram capturados e ou comprados. Assim, a partir do final do

século XVIII, os nagô passaram a ocupar lugar no cenário de escravidão no Brasil.

Nagô também era um nome genérico, como nos informa Sodré (2005);

206 BERKENBROCK, Volney J. E experiência dos Orixás... Op. Cit.; p. 67; 207 Ibid., p. 70; 208 A área entre o deserto do Saara e a floresta equatorial, nas bacias dos rios Senegal e Gâmbia, era conhecida como Senegâmbia. Habitada pelos povos sereres e jalofos, que no segundo milênio da era cristã, vindos do vale do Senegal aí se fixaram, fugindo da seca e da expansão do islamismo (MATTOS, 2007: 31). 209 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 69.

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Nagô é o nome genérico de todos os grupos originários do sul e do centro de Daomé e do sudoeste da Nigéria, portadores de uma tradição rica derivada das culturas particulares dos diferentes reinos africanos de onde provieram (...)210

Nessa perspectiva, de uma forma geral, quando ouvimos falar das nações

africanas no Brasil, especialmente na Bahia, é mais comum ouvirmos falar no povo

nagô – “baianidade nagô” – e/ou no povo banto. É bem verdade que também se

ouve falar em povo jeje-nagô.

No entanto, considerando que “jeje” não se refere a um termo corriqueiro, o

fato de as rezadeiras ao se referirem aos escravos só atribuírem o termo “jeje”, nos

faz presumir que a maioria dos negros escravizados em Pojuca originaram-se dessa

nação. Assim, tornou-se imprescindível aprofundar um pouco mais as reflexões em

torno da origem dos africanos que foram trazidos como escravos para o Recôncavo

baiano.

Assim, dona Djão (74 anos) disse que o seu pai era jeje, quando perguntei o

que era jeje, ela prontamente respondeu que jeje era quem era escravo: “(...) meu

pai que era jeje, seu Bernardo era jeje. Jeje, quer dizer... Jeje é a primeira parte de

africano, né?...”211 Também dona Senhora (81 anos) assim identificou a senhora que

lhe ensinou a rezar: “ela era assim, bem pretinha, era jeje”. Lembramos então já ter

ouvido essa denominação em outros momentos e com o mesmo significado, o que

sugere a probabilidade da presença de negros jeje ou nagô em terras pojucanas.

Informação que nos surpreendeu e, exigiu maior aprofundamento, uma vez

que o nosso propósito é identificar a memória africana de Pojuca, através da vida

cotidiana das rezadeiras. Mas, infelizmente, essas informações só foram reveladas

no período final da pesquisa, o que não nos permitiu fazer buscas mais profundas à

documentos e referências bibliográficas, e mesmo nas entrevistas, no intuito de

atribuir maior precisão às suspeitas então suscitadas. Porém, ainda que com o risco

de cometer equívocos, nos mobilizamos nessa empreitada.

Assim, encontramos autores que convergem quanto a terminologia jeje, ao

tempo em que aprofundam a classificação de forma mais detalhada que a acima

apresentada por Sodré (2005), como são os casos de Reis (2003: 162) “(...) Daomé,

210 SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida... Op. Cit.; p. 89; 211 Conversa com dona Djão, 74 anos, em 12/05/2010;

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terra dos chamados jejes (povos do grupo lingüístico gbe, sobretudo fon-ewe”212 e

Parés (2007):

O termo “jeje” aparece documentado pela primeira vez

na Bahia nas primeiras décadas dos Setecentos, para designar um grupo de povos provenientes da Costa da Mina (...) Os “jejes” têm sido usualmente identificados, ao menos a partir do século XIX e, posteriormente, na literatura afro-brasileira, como daomeanos, isto é, grupos provenientes do antigo reino de Daomé. Mas, na verdade, o termo “jeje” parece ter designado originalmente um grupo étnico minoritário, provavelmente localizado na área da atual cidade do Ponto Novo, e que, aos poucos, devido ao tráfico passou a incluir uma pluralidade de grupos étnicos localmente diferenciados.213

Não devemos esquecer, contudo, que aqui no Brasil, os africanos foram

construindo suas identidades através de traços gerais que os identificava como

língua, religiosidade, região... E assim construíram um ideal de irmandade. Então, o

que na Bahia é denominado de jeje não refere-se a apenas uma etnia africana, bem

como, não formaram seu perfil cultural apenas com os elementos vindos na memória

e no corpo do seu lugar de origem. Também devemos considerar que, com a

mudança geográfica do volume de africanos no comércio para a Bahia, a partir do

final da segunda década do século XIX, os nagôs passaram a predominar e com

isso, influenciaram também na construção cultural do povo jeje na Bahia.

De acordo com Reis (2003), devido os conflitos ocorridos na África, a partir do

inicio do século XIX, houve uma mudança na distribuição étnica dos grupos que

foram trazidos para o Brasil, com aumento substancial dos negros das nações da

região do Benin, especialmente do antigo reino de Daomé. Assim Reis descreve tal

fluxo:

Em 1819-20 – quando os nomes de nação apareceram

mais discriminadamente na documentação –, os grupos específicos mais numerosos embarcados nos portos do golfo de Benin (nagôs, haussás, jejes e tapas) representavam quase 54% dos escravos da Cidade da Bahia nascidos na África. Em 1835, esses mesmos grupos passariam a representar perto de 60%. A nação nagô foi de longe a que mais aumentou sua representação nesse período, de 16,5% para 31,1% dos africanos. Esses números poderiam ainda ser mais altos, caso

212 REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil 213 PARÉS, Luis Nicolau. A formação do Candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia.Campinas: UNICAMP, 2007, p. 30.

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a vaga expressão “mina” – que abarcava nagôs, jejes, haussás e outros grupos do golfo de Benin – pudesse ser decomposta com alguma precisão.214

No entanto, a partir da primeira metade do século XVIII até a segunda década do

século XIX o maior número de africanos desembarcados nos portos da Cidade da Bahia,

como era chamada Salvador naquela época, era de origem jeje:

Essa progressiva chegada de escravos gbe-falantes, na primeira metade do século XVIII, aos poucos ia constituir na Bahia um estrato de população escrava demograficamente significativo para estabelecer a matriz de uma nova identidade coletiva, que viria a consolidar-se como a “nação jeje” na segunda metade do século.215

Observemos que na tabela extraída de Reis (2005: 309), com a projeção das

nações dos escravos africanos em Salvador, na primeira metade do século XIX, os

Jejes aparecem como o segundo grupo mais numeroso entre as nações da África

Ocidental que foram trazidos para o Brasil.

TABELA II – NAÇÃO DOS ESCRAVOS AFRICANOS EM SALVADOR, 1802 - 35216

NAÇÃO 1802 – 6 (AMOSTRA)

1819 – 20 (AMOSTRA)

1835 (ESTIMATIVA DA POPULAÇÃO)

ÁFRICA OCIDENTAL

Mina 223 21 1681 Haussá 22 34 1611 Nagô 51 36 5388 Jeje 72 47 2668 Outros 6 26 1268 Total 374 (67%) 164 (68,6%) 12616 (72, 8%)

Devemos considerar, contudo, que os negros de origem mina são um

conjunto de povos, que inclui também os jejes.217

Vale ressaltar, que o termo jeje é presente apenas na África e no Brasil, não

sendo encontrada nenhuma referência em países da América Central, também de

214 REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil... Op. Cit.; p. 308; 215 PARÉS, Luis Nicolau. A formação do Candomblé... Op. Cit.; p. 53; 216 REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil... Op. Cit.; p 309; 217 Embora se possa admitir que entre os muitos minas listados por volta de 1835 nos inventários e nos registros de alforria – base para minhas estimativas – pudessem estar incluídos nagôs, jejes, haussás etc. (REIS, 2003: 328)

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histórico escravocrata, como Haiti, Cuba e Trindade, dentre outros. Por outro lado,

mesmo no Brasil, essa nomenclatura não se espalhou, ficando restrita apenas à

Bahia e ao Maranhão218.

Isso significa que o estudo desse povo é algo bastante localizado,

especialmente em Salvador e no recôncavo baiano, onde autores vão contribuir com

dados sobre a presença jeje no recôncavo da Bahia, sendo assim, nos engenhos de

Pojuca igualmente, afinal, de acordo com Araújo (2006):

A área do termo da cidade da Bahia corresponde,

atualmente, ao território dos municípios de Amélia Rodrigues, Camaçari, Candeias, Catu, Conceição do Jacuipe, Dias D’ávila, Itaparica, Lauro de Freitas, Mata de São João, Pojuca219, Madre de Deus, Salvador, Santo Amaro, São Francisco do Conde, São Sebastião do Passé, Saubara, Simões Filho, Teodoro Sampaio, Terra Nova, Vera Cruz e parte dos municípios de Coração de Maria, Itanagra e Salinas das Margaridas.220

Embora tenhamos a estimativa da existência de sete engenhos nas terras do

atual município de Pojuca, nas obras consultadas, das poucas informações

referentes a esses, só tivemos a oportunidade de vislumbrar informações sobre o

Engenho Pojuca. Tendo esse engenho como referência, a tabela abaixo nos é

reveladora. Por exemplo, no ano de 1739, os negros mina, aos quais também estão

referidos os jejes, além de ardas e calabares, representavam 92,5 do total de

escravos africanos daquele estabelecimento. Uma leitura bem atenta dessa tabela

pode nos revelar interessantes informações.

TABELA III – Escravos crioulos e africanos em nove engenhos baianos,

1739221 Engenhos Crioulosa Angolab Minac % Total

H M H M H M africanos H M

São Brás 12 7 12 5 9 17 69,4 33 29

Pitanganha 14 6 8 1 42 40 81,3 65 47

Acotinga 16 7 7 3 7 18 60,3 30 28

Matoim 21 12 5 2 24 24 65,9 50 38

218 Parés, 2007: 47). 219 Grifo nosso. 220 ARAÚJO, Jean Marcel Oliveira. Bahia: negra, mas limpinha. Dissertação de Mestrado. Salvador, Universidade Federal da Bahia, 2006, p. 55; 221 SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos... Op. Cit.; p. 87;

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Pindobas 9 3 9 2 24 48 87,4 42 53

Sapucaia 3 5 2 2 14 17 81,4 19 24

Caboto 6 9 3 1 15 23 73,7 24 33

Pojuca222 4 1 14 7 27 14 92,5 45 22

Cornubuçu 1 0 0 0 12 11 97,1 13 11

Total 86 50 60 23 174 212 77,4 321 285

(Porcentagem de homens)

(53,2) (72,3) (45,1) (52,9)

(a) Inclui crioulos, mulatos, mestiços. (b) Inclui angolas, são-tomés, benguelas, congos, gagos. (c) Inclui minas, jejes, calabares, ardas.

A primeira observação que nos cabe fazer é com respeito a questão de

gênero, vemos que em todos os casos referentes ao Engenho Pojuca, o número de

homens é maior que o número de mulheres, o que nos faz imaginar que as tarefas

nesse engenho eram ligadas principalmente ao trabalho pesado, literalmente

falando.

De acordo com o número de escravos existente em cada engenho

relacionado na tabela, percebemos que o Engenho Pojuca tem o terceiro maior

número de escravos, sendo superado apenas pelos engenhos Pitanganha e Matoim.

Provavelmente um dos maiores e que mais produzia açúcar também; pois,

considerando os engenhos que possuem mais homens que mulheres, o Pojuca é o

que tem a maior diferença: 23 homens a mais que mulheres. Número considerável,

pois o que mais se aproxima – o Pitanganha – tem uma diferença de 18 homens a

mais, sendo este o engenho com maior número de escravos entre os nove

relacionados na tabela.

Outra importante constatação que essa tabela nos fornece é a provável

predominância de negros jejes entre os minas. Considerando as informações de

Reis (2003: 308): “Esses números poderiam ser ainda mais altos, caso a vaga

experssão “mina” – que abarcava nagôs, jejes, haussás e outros grupos do golfo do

Benin – pudesse ser decomposta com alguma precisão”223 e de Parés (2007)224, que

apresenta um volume de 40,5%, entre os anos de 1750 e 1779, da população jeje,

em relação às demais nações de escravos nas regiões de São Francisco do Conde

e Santo Amaro da Purificação.

222 Grifo nosso. 223 REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil... Op. Cit.; p. 308; 224 Ver tabela em: PARÉS, 2007: 66.

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Ainda que a tabela de Schwartz (1996) seja representativa do ano de 1735 e

as informações de Parés (2007) se refiram ao período entre 1750 e 1779, não há

equívocos nessa argumentação, pois, o próprio Parés, informa que:

Uma das mudanças mais notórias da primeira metade

do século XVIII é o significativo aumento dos jejes, que passaram de 11.3%, nas três primeiras décadas dos Setecentos, a 27,1% no período 1730 – 1750 (...) a partir de 1750 até 1780, esse grupo atinge a sua proporção mais alta, constituindo, com quase 30% na área fumageira e 40% na área açucareira.225

Essas informações são bastante elucidativas, na perspectiva de nos ajudar a

embasar nossas argumentações em torno da maior presença de africanos de origem

jeje nas terras onde hoje encontramos o município de Pojuca.

Optamos então em seguir o caminho dos africanos jejes na Bahia, na

perspectiva de comprovar nossa suspeita. Além de observar no comportamento e

nas informações fornecidas pelas rezadeiras e outras pessoas que nos deram

importantes subsídios, como é o caso de dona Quita (89 anos), moradora do

município de Catu. Ela não nasceu em Catu, mas foi morar lá desde os cinco anos

de idade. Ela nos dá informações de duas negras que ela conheceu. E assim como

as demais pessoas que se referiram aos ex-escravos ou aos filhos de escravos que

conheceram, os classifica como jejes: dona Sofia, a qual ela chamava de tia e

também dona Bernarda, uma beata que servia de “bandeja” na igreja – levava as

crianças para o batismo.

Lembramos que até 1913, Pojuca ainda não era emancipada e pertencia ao

município de Santana do Catu. Diante disso, o mapa representativo do Recôncavo

baiano daquela época, não aparece o município Pojuca; para sua localização então,

deve ser considerado o rio Pojuca e a freguesia de Santana do Catu, localizada no

Recôncavo norte da Bahia, onde é possível precisar um pouco mais a localização da

região em estudo, já que as terras de Pojuca pertenciam ao território catuense.

Vejamos o mapa ilustrativo do Recôncavo baiano que extraímos no livro de

Schwartz (1988)226:

225 PARÉS, Luis Nicolau. A formação do Candomblé... Op. Cit.; p. 68; 226 SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos... Op. Cit.; p. 84;

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Verificamos, que a presença dos engenhos marcou muito a paisagem e a

história desse município. Quase todas as rezadeiras relataram conhecer ou até

mesmo ter morado em terras de engenho ou usina de açúcar, como é o caso de

dona Laura (usina Pitanga), dona Djão, dona Senhora e também dona Zilda. Essas

três últimas na mesma região, então, provavelmente no mesmo engenho (engenho

Pojuca). É interessante perceber como em Pojuca, as pessoas mais idosas

nasceram, se criaram e vivem até hoje no mesmo lugar, ao menos, na mesma

região.

Essas informações são importantes para compreendermos a construção

histórico-cultural de Pojuca e, a partir daí, compreendermos a relação do seu povo

com essa história e com sua cultura imprimida na memória e refletida no cotidiano

de cada pojucano e pojucana.

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A existência de tantos engenhos aponta para a grande quantidade de

africanos e crioulos (filhos de africanos nascidos no Brasil), que viveram nessa

região, então, a base da cultura de Pojuca é, decisivamente, marcada pelas

contribuições africanas.

Não podemos negar, no entanto, o processo de miscigenação entre negros,

brancos e índios. Essa miscigenação não foi algo que se deu apenas do ponto de

vista biológico. Inevitavelmente, ocorreu de forma simultânea a miscigenação

biológica e cultural. Como síntese dessa fórmula de simbiose cultural, temos nas

rezadeiras uma significativa representação.

Com o passar dos anos a cidade foi recebendo outras influências,

principalmente com a exploração do petróleo, que provocou grande migração de

habitantes de outras cidades para Pojuca, como do campo para a cidade, fazendo

reduzir o número de habitantes do campo e ampliando consideravelmente a

demografia no espaço urbano do município. Essa realidade gerou mudanças no

comportamento e, consequentemente, no discurso dos moradores de Pojuca, que a

cada dia se projeta mais distante das suas origens.

Desde o início do seu povoamento pelos colonizadores até o início do século

XIX, a principal fonte de renda de Pojuca era a cana-de-açúcar, depois a farinha e

também e criação de gado leiteiro incrementaram sua economia: “com o declínio da

economia açucareira, o sustento da Vila passou a ser a farinha de mandioca

juntamente com o comércio do leite, madeira e cereais, embora em pequena

escala”.227

A chegada da linha férrea inglesa Estrada de Ferro Bahia ao São Francisco, a

primeira da Bahia, ao município, ampliou sua importância comercial e,

conseqüentemente, política. Foi às suas margens que foi construído o segundo

Engenho Central da Bahia. Pois, de acordo com Araújo (2002)228, o segundo

Engenho Central da Bahia foi Construído em Pojuca. Agora já sabemos, porém que

o seu nome não era Engenho Pojuca e sim, Engenho da Purificação e depois São

José dos Caboclos.

A partir do final da primeira metade do século XX, a chegada de grandes

empresas devolveu à Pojuca importância econômica, perdida com o declínio da

227 REGO, Alfredo Antonio Silva. Breve notícia sobre a emancipação de Pojuca... Op. Cit.; p. 9; 228 ARAÚJO, Tatiana de Freitas. Os engenhos centrais e a produção açucareira no Recôncavo Baiano... Op. Cit.; p. 116

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economia canavieira e atraiu uma grande quantidade de pessoas de outras cidades

e estados do país. A descoberta de petróleo levou para Pojuca a Petrobrás, o que

transformou profundamente a paisagem.

Assim como a cana e o fumo, o petróleo provocou uma

penetração desigual na região. A emigração para asa cidades da região inverte o processo demográfico iniciado há décadas e permite o reencontro entre o passado e o presente, entre as tradicionais trabalhadoras da indústria fumageira, cortadores de cana, pescadores, trabalhadores da agricultura familiar e os novos trabalhadores assalariados do mercado formal construído pelo petróleo (...). O petróleo movimentou o antigo núcleo econômico do Recôncavo, representado pelas cidades de Santo Amaro, Cachoeira e São Félix, construído nas antigas relações de produção criadas pelo açúcar e fumo para a região que flutuava entre as cidades de Candeias, ainda distrito de Salvador e antigo templo religioso, São Francisco do Conde, São Sebastião do Passé, Pojuca e Catu.229

Pojuca recebeu também a Ferbasa, empresa que produz ferros e liga de ferro

e exporta para outros estados e países e implicou em conseqüências muito

parecidas como as provocadas pela Petrobrás para Pojuca e região:

A Ferbasa constitui-se numa holding230que possui treze

empresas controladas, que operam nos setores de mineração, reflorestamento e agropecuária, e tem participação (entre 64% e 100% do capital) em mais quatorze companhias. Logo, o núcleo gerencial desta empresa também necessita realizar comunicações velozes e eficientes com todas as unidades de negócios, que se encontram distribuídas em distintas partes do estado da Bahia e com seus clientes e fornecedores em regiões alhures.231

Por volta dos anos 90, o que se manifestou como destaque econômico da

cidade foi o crescimento do comércio de bens e serviços e de pequenas indústrias,

porém esse crescimento, não parece ter alguma outra explicação, do ponto de vista

local, senão o crescimento da população e as exigências da pequena burguesia da

cidade.

229 CHAGAS, Jonilson Batista. Recôncavo Baiano: as transformações em curso. Dissertação de Mestrado em Análise Regional e Urbano. Salvador: UNIFACS, 2008. Disponível em: http://tede.unifacs.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=375 Acesso em 23/06/2010, p. 84. 230 Tradução: exploradora. 231 BRITO, Cristóvão. A Petrobrás e a gestão do território no Recôncavo Baiano. Salvador: EDUFBA, 2008, p. 200.

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Assim, podemos, num primeiro momento, identificar três movimentos

econômicos que provocaram mudanças substanciais no cenário cultural de Pojuca:

a chegada da linha férrea de São Francisco, a implantação da Petrobrás e, por

último da Ferbasa. Esses movimentos provocaram profundas mudanças no cenário,

no comportamento e nos valores da população pojucana, especialmente por ter

ocasionado um extraordinário movimento migratório e, por conseguinte, ampla

demografia urbana.

É provável que por isso, atualmente, a população de Pojuca, que é de maioria

jovem, aparentemente, não apresenta ter consciência da sua cultura, tanto quanto

das manifestações culturais e da sua identidade cultural no contexto regional.

Realidade que não desperta preocupação dos poderes públicos, uma vez que não

promovem políticas publicas de estímulo às expressões culturais e a preservação da

cultura e da história do município.

Além das transformações por força das questões econômicas, outros fatores

também contribuíram para o emudecimento dos pojucanos/as diante da sua origem.

Trata-se do avanço do protestantismo ou do pentecostalismo, diante das

características que as igrejas têm adotado, inclusive a igreja Católica, religião

professada pelas cinco rezadeiras que compõem o quadro dos sujeitos sociais

dessa pesquisa. Dona Senhora (80 anos), por exemplo, reclama: “Até a igreja está

tirando os santos todos, minha filha!”

As palavras de Costa (2005) ilustram com bastante clareza essa face do

comportamento da população de Pojuca frente as religiões de matriz africana:

Lembro-me de uma situação que ilustra bem a

dificuldade em assumir claramente a participação no candomblé e os contornos necessários para evitar traumas: em Pojuca, quanto entrevistei uma filha de santo, tivemos que falar quase aos cochichos na varanda de sua casa, enquanto o marido dela assistia à tv na sala ao lado. A mulher parecia dividida entre o orgulho e o temor. Seu marido não gostava do candomblé e não queria que ela fizesse parte da seita. Por isso, a pedido da entrevistada, a conversa ocorreu quase às escondidas. Mesmo orgulhosa de falar sobre o assunto, sentindo-se valorizada em seu papel, estava temerosa de ser descoberta e punida. Sua atitude revela uma identidade desconfortável e a maneira complexa de se lidar socialmente com a questão.232

232 COSTA, Edil Silva. Comunicação sem reservas: ensaio da malandragem e preguiça. Tese de doutorado em Comunicação e Semiótica. São Paulo: USP, 2005, p. 109;

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Essa dada situação evidencia como tem sido difícil a livre expressão da fé, da

cultura e, consequentemente das origens das pessoas em Pojuca. Há uma forte

repressão que se revela em todos os espaços: nas próprias casas, nas escolas, nos

espaços públicos... No entanto, as reflexões em torno de cotidiano, memória e

identidade, nos ajudam a compreender que esse comportamento da população de

Pojuca não é algo singular diante do cenário contemporâneo. E nos faz crer que,

silenciosamente as pessoas vão desenvolvendo “formas de fazer”, pois, ao mesmo

tempo em que dizem que “em Pojuca não há cultura”, “não tem nada”, estão

reagindo contra a apatia aparente, reinante na cidade, se percebem diferentes dos

moradores das cidades vizinhas, tanto quanto, das mais distantes.

É bem verdade, que geralmente essas percepções são expressas nas piadas,

muitas vezes preconceituosas e com comentários pejorativos, quando se vêm diante

do diferente. Deduzimos, então, que essa percepção do comportamento

diferenciado é a prova de que há uma assimilação da sua identidade histórico-

cultural, ainda que isso não seja verbalizado ou entendido como tal. Sendo

necessário, assim, realizar atividades que despertem a população para essa

questão. Acreditamos que a plena efetivação da Lei 11. 645, de 10 de março de

2008, que versa sobre a obrigatoriedade do ensino da história e cultura indígena,

africana e afro-brasileira nas escolas, já é um bom começo, para superação do

preconceito religioso tão agressivo em Pojuca.

Outra iniciativa que se pode ser tomada é a realização de levantamento dos

espaços, práticas e ou discursos que tenham conteúdos africanos no dia-a-dia da

população pojucana, além das rezadiras:

Religião – As pesquisas nos indicaram, por exemplo, onde existiram dois

terreiros, um na parte rural do bairro Shangrí-la e o outro na Rua dos Pires, às

margens da ponte velha. Também nos indicaram nove locais onde existem ou

existiram barracões ou locais onde realizam ou realizavam atividades mais

simples.233 O interessante é notar que no bairro da Pojuca Nova é onde se

concentra o maior número de espaços do culto afro em Pojuca. Acredita-se que é

porque, embora hoje ele seja um bairro de centro, já foi a grande periferia da cidade.

233 Ver tabela IV dos anexos.

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Culinária – Quanto aos pontos de venda de acarajé, conseguimos identificar a

existência de cinco fixos na região mais central da cidade, além das mulheres que

vendem na feira, nos dias de sexta-feira e sábado.234

Festas e manifestações artísticas – Em Pojuca existem três pessoas que

animam bumba-meu-boi: dona Lindu (98 anos) é a mais atuante, todos já bem

idosos e um desses, seu Carrapeta, com sérios problemas de saúde; há também

três grupos de samba de roda na sede e é provável que existam mais alguns na

zona rural, mas com perfil mais percussivo. Também existe uma academia de

capoeira. Já existiu um clube de reggae, o Movimento Cultural de Pojuca, que junto

com outros grupos do município realizou durante alguns anos “Semanas de

Consciência Negra” e fundou um grupo de dança afro. Existiu uma escola de

samba, que desfilava na micareta da cidade. A festa do Bom Jesus da Passagem,

que é o padroeiro da cidade, acontece no mês de janeiro e, a exemplo de outras

festas de padroeiro, acontecia também a lavagem das escadarias da Igreja matriz

por um grupo de baianas, hoje, infelizmente, não existem mais as baianas; a última

vez que realizaram a lavagem das escadarias da igreja, foi no ano de 2008 e a

prefeitura convidou o Balé Folclórico do SESC (Salvador) para participar do evento,

contudo, não se sabe quais as reais intenções da re-inserção de baianas na

lavagem do Senhor Bom Jesus da Passagem.235

234 Idem. 235 Verificar tabela IV dos anexos.

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Festa do Padroeiro “Bom Jesus da Passagem” em janeiro de 1975.236

236 Arquivo da Biblioteca Municipal de Pojuca.

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Festa do Padroeiro “Bom Jesus da Passagem” em janeiro de 2008.237

Medicina popular - Encontramos muitas rezadeiras no município, 27 ao

todo.238

Os dados resultantes dessa pesquisa nos chamaram atenção para uma

realidade, no mínimo, instigante: ao contrário do que parece, existe em Pojuca um

significativo número de pessoas que freqüenta espaços, práticas e manifestações de

conteúdos do legado africano, mas que mostra-se muito discreta frente a essa

realidade, no entanto, estão em movimento e se organizando, por outro lado, é

inegável o crescimento das igrejas evangélicas no município e seus discursos já

vêm predominando em vários espaços públicos de Pojuca. Considerando que no

processo de tomada de consciência da identidade cultural e, consequentemente, da

descoberta do pertencimento, há a necessidade de se fazer memória do grupo, esse

movimento, inevitavelmente, vai provocar conflitos, pois vai se estabelecer uma

disputa pela identidade.

237 Arquivo da Biblioteca Municipal de Pojuca. 238 Ver tabelas I e II dos anexos.

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Numa perspectiva dialética, podemos dizer que está acontecendo em pojuca

em processo de antítese? Ou seja, depois de décadas sob a hegemonia do discurso

cristão, será que está sendo construída em Pojuca, sobre os alicerces do discurso

cristão/ pentecostal, com base na religiosidade afro-brasileira, uma nova identidade

pojucana?

Essa interrogação, certamente, pode nos dizer muita coisa e, por isso nos faz

questionar quais conteúdos africanos são preservados nas condutas que as

rezadeiras e a comunidade que a elas recorre adotam para driblar a “sociedade

terrorista” e continuar atuando no município? É o que tentaremos desvendar no

capítulo seguinte.

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Rezadeiras: guardiãs da memória e da fé

Renascer da própria força, própria luz e fé, memória Entender que tudo é nosso, sempre esteve em nós, história

Somos a semente, ato, mente e voz, magia Não tenha medo, meu menino povo, memória

Tudo principia na própria pessoa, beleza

A história oficial tem sido, ao longo dos tempos, muito injusta com as

mulheres. Geralmente omite sua participação nos diversos movimentos pelo mundo

a fora. Atribuímos esse comportamento da história a dois motivos que se completam.

O primeiro refere-se ao que Hall chama de cultura nacional. O segundo, associado

ao primeiro, refere-se aos conceitos e concepções machistas que determinam o

comportamento das sociedades em quase todas as partes do mundo e rotulam as

mulheres como fúteis, como tivemos a oportunidade de verificar em Lefebvre

(1991)239.

No entanto, as mulheres estiveram e estão sempre presentes e atuantes em

toda e qualquer sociedade, mesmo naquelas em que sistemas bastante fechados

oprimem e submetem-nas a condição de meros objetos ou simplesmente “mães”.

Contudo, ressaltamos que ainda que a cultura tenha a capacidade de libertar,

também, quando a sua origem é opressora, pode aprisionar e, anos a fio serão

necessários para que um povo construa postura crítica frente a sua própria cultura,

capaz de forjar as possibilidades de libertação dentro da sua mesma cultura, como

já afirmava Paulo Freire (2008):

Somente quando os/as oprimidos/as descobrem,

nitidamente, o opressor, e se engajam na luta organizada por sua libertação, começam a crer em si mesmos/as, superando, assim, sua “convivência” com o regime opressor. (...) Os/as oprimidos/as, nos vários momentos de sua libertação, precisam reconhecer-se como homens/mulheres240, na sua vocação ontológica e histórica de ser mais. A reflexão e a ação se

239 São ao mesmo tempo sujeitos da cotidianidade e vítimas da vida cotidiana, portanto objetos, álibis (a beleza, a feminilidade, a moda, etc.) e é a elas que os álibis maltratam. São igualmente compradoras e consumidoras e mercadorias e símbolos da mercadoria (na publicidade: o nu e o sorriso). (LEFEBVRE, 1991: 83) 240 Nos sentimos a vontade para acrescentar a alternativa feminina no texto de Freire por fidelidade ao nosso tema e também por acreditarmos que se hoje fosse vivo, Freire faria revisão no seu discurso, considerando a presença feminina.

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impõem, quando não se pretende, erroneamente, ditocomizar o conteúdo da forma histórica de ser do homem.241

Sendo assim, diante de uma sociedade machista e também sexista, como a

baiana, muito se tem a fazer, mas reconhecemos que muito se tem feito, ainda que

de forma silenciosa e lenta. As mulheres já sabem quão fundamental é o seu papel

diante dessa sociedade e através das suas “artes de fazer” têm alcançado sucesso

em dois importantes eixos: contra o machismo, se reconhecem como mulheres, sem

contudo, aceitarem os rótulos e as atribuições que a sociedade machista lhes

reserva. Também contra o elitismo, quando cientes da sua condição de humana,

independente de qualquer circunstância.

Em nossa opinião, grandes exemplos desse comportamento feminino

encontramos nas rezadeiras. Mulheres que nas suas práticas cotidianas contrariam

e resistem às imposições das elites, a partir da confiança nos seus saberes e da

consciência da sua importância para a sociedade. Assim, através da fé, das rezas,

das folhas e dos ritos; dos segredos e das memórias de tempos idos, revelam nos

seus fazeres receitas e experiências ensinadas por africanos, transformadas com

influências do catolicismo popular e dos saberes e crenças indígenas, na direta

relação entre o corpo e o espírito, entre a terra e o divino, entre o sagrado e o

profano.

Segundo o Dicionário do Folclore Brasileiro, de Câmara Cascudo:

Rezadeira é a “mulher, geralmente idosa, que tem

“poder de cura” por meio do benzimento. A rezadeira, especialista em quebranto, mau-olhado, vento caído, enquanto reza cruzes sobre a cabeça do doente com pequenos ramos verdes, que vão murchando por adquirir o “espírito” da doença que fazia o mal.242

É evidente que o nosso propósito, como já foi dito, não é o de definir

conceitos, é sim, construir significados. Nesse caso, o significado com o qual

Cascudo (2001) define rezadeiras é muito limitado e não consegue abranger a gama

de signos e concepções que essa palavra carrega; no entanto, a partir dele, é

possível identificar quem são essas mulheres e, afirmar que suas práticas são

241 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2008, 47ª ed, p. 58; 242 CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro: revisto, atualizado e ilustrado. São Paulo: Global, 1999, p. 587;

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fundadas numa confluência de crenças e simbolismos, oriundas de diferentes

religiões. Porém, por se tratar de uma obra bastante conhecida, de um dos maiores

folcloristas do Brasil, não podemos nos furtar de elaborar algumas análises diante

dessa definição.

Apesar da evidente limitação do significado de rezadeira apresentado por

Cascudo (2001), o que mais nos chamou atenção é a forma como o autor descreve

o ritual, ele simplifica tanto, que até parece que está tratando de uma mera “figura

folclórica”, o que não é o caso.

O rito é importante e fundamental no processo do benzimento, pois, de

acordo com Bastide (2006): “Em suma, não podemos definir a oração como um

simples rito oral; trata-se de um rito total que engloba a totalidade do homem

orante”243.

É o rito que garante a eficácia da oração, fazendo com que as pessoas

fiquem curadas. Afinal, “todo rito, mesmo consciente, é comemoração dos gestos

dos Deuses244” As rezadeiras foram unânimes em dizer que quem cura é a fé, não

temos dúvidas a esse respeito, porém, também não temos dúvidas de que a fé é

manifesta por meio de palavras, versos, movimentos e símbolos, dentre outros. Nas

entrevistas e nas observações que fizemos de momentos em que elas rezavam

algum “paciente”, tivemos a oportunidade de vê-las repetindo movimentos,

escolhendo lugares e folhas para rezar, determinando a posição em que o “paciente”

deveria ficar, dentre outros.

Esse comportamento nos faz crer que a benzeção não é um ato isolado, pelo

contrário, é um rito, um processo. Tem começo, meio e fim e por isso não deve ser

considerada como um simples remédio. Assim, no processo de cura engendrado

pelas rezadeiras, o principal agente da cura é o próprio paciente que tem que ter fé e

se tiver fé, tem que seguir todas as orientações.

Ai se estabelece uma relação entre a rezadeira e o paciente, na qual ambos

precisam ter consciência do seu papel nesse processo. Nesse momento,

independente de quem seja o paciente, as rezadeiras são atribuídas de autoridade e

isso só é possível porque elas se reconhecem diante do seu papel na sociedade.

Oliveira (1985) diz que:

243 BASTIDE, Roger. O sagrado selvagem: e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 158; 244 Ibid., 271.

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Não podemos compreender o trabalho da benzedeira sem que estudemos o que a move para realizá-lo. Em outras palavras, não podemos todo o conhecimento que fundamenta o seu trabalho sem antes localizar na sua vida a percepção de que ela tem um sentimento que marca um momento especial, determinante na escolha do seu ofício. Esse momento é a descoberta do dom de benzeção.245 (OLIVEIRA, 1985: 32)

O decorrer dessa pesquisa nos dá a idéias de que para compreender o ofício

das rezadeiras, mais do que saber o momento da descoberta do dom, é conhecer o

mito que embasa suas práticas. Assim, ainda citando Oliveira (1985):

A benzedeira, enquanto uma cientista popular, fala em

nome de uma religião. Ela não pode ser entendida sem que sua religião seja considerada. A maior parte das benzedeiras é católica. Encontram-se espalhadas em diversas vilas e bairros de uma cidade grande e não fazem parte de cooperações profissionais do tipo sindicato ou igreja. São religiosas, mas nem sempre freqüentam igrejas.246

Embora a obra de Oliveira (1985) tenha grande relevância para a

compreensão do ofício das rezadeiras, ousamo-nos aqui discordar de um detalhe

dessas suas palavras. É inegável que a prática das rezadeiras é completamente

marcada pelo viés religioso. No entanto, ainda que a maioria se considere católica,

muitas, mesmo assumindo seu catolicismo, não negam que nas suas práticas há a

interferência de outras crenças. Outras negam nos discursos, mas se deixam trair

pelas práticas. Assim, seria um equivoco dizer que elas falam em nome de uma

religião.

Devemos considerar que se há rito, é porque há mito; afinal, segundo Bastide

(2006), “o rito não passa da repetição do mito das origens”247. Nessa perspectiva,

relembramos que de acordo com Elaide (2002) o mito é sempre “a narrativa de uma

criação”248. E, de acordo com essa premissa, necessitamos desvendar qual é o mito

ou quais são os mitos que dão sentido à prática das rezadeiras, afinal, esse autor

afirma que a principal função do mito é revelar os modelos exemplares dos ritos e

das atividades do ser humano, como alimentação, casamento, trabalho, educação

arte e também a sabedoria, o que nos permite confirmar que a relação das pessoas

245 OLIVEIRA, Elda Rizzo de. O que é benzeção. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 26; 246 Ibid., 32; 247 BASTIDE, Roger. O sagrado selvagem... Op. Cit.; p. 112; 248 ELIADE, Mircea. Mito e Realidade... Op. Cit.; p. 13;

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com o mito, está intimamente ligada à sua identidade, ao seu sentimento de

pertencimento, ainda que escondido, diante das repressões comuns nessa

sociedade.

Não por acaso, a repetição do mito, através dos ritos é uma ação de

memorização. É necessário lembrar do mito para “aprender não somente como as

coisas vieram à existência, mas também como encontrá-las e como fazer com que

reapareçam quando desaparecem”249.

Para desvendar o mito ou os mitos que embasam a ação das rezadeiras é

necessário considerar alguns importantes aspectos. Inicialmente, devemos observar

o que Bastide (2001) revela:

Nos flancos sonoros dos navios negreiros vieram não só

os filhos da noite, mas também os seus deuses, os orixás dos bosques, dos rios e do céu africano. É verdade que, no cais dos portos brasileiros, o capelão esperava os nagôs, os jejes, os angolas – capelães das cidades, capelães dos engenhos para lhes ensinar as preces latinas e os batizar com o Espírito Santo. Os negros confundiram suas divindades sombrias com os santos católicos250, mas continuariam por meio dos cantos e das danças tradicionais, a adorar os deuses de além-mar.251

Embora Bastide (2001) tenha dado importante contribuição no estudo sobre o

candomblé, reconhecemos que a idéia que calça esse fragmento que grifamos já é

hoje superada. Até mesmo quem defende o sincretismo, não o ver a partir desse

ponto de vista. Os negros tinham clara consciência de que suas divindades não se

confundiam com os santos e o deus dos católicos, justamente por isso, continuaram

adorando os seus deuses. O que se deve considerar nessa questão são três

possibilidades: a primeira baseia-se na idéia de recepção defendida por Burke

(2005)252. Os portugueses apresentaram seu deus e seus santos de uma

determinada maneira, contudo, os negros, na condição de receptores, as receberam

de acordo com seus valores e visão de mundo, o que significa que, inevitavelmente,

a mensagem comunicada pelos colonizadores não foi absorvida pelos africanos,

com a “pureza” da lógica católica, como podemos atestar através das palavras de

Gaspar (2008).

249 ELIADE, Mircea. Mito e Realidade... Op. Cit.; p.17; 250 Grifo nosso. 251 BASTIDE, Roger. O Candomblé da Bahia... Op. Cit.; p. 327; 252 BURKE, Peter. O que é história cultural? Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2005.

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No Brasil, da mesma forma como ocorre em outros

países de forte tradição cristã, as crenças e práticas propostas pela estrutura religiosa formal têm sido progressivamente reinterpretadas pelo povo à luz de experiência quotidiana concreta.253

O segundo aspecto, como uma resposta ao primeiro é o que chamamos de

manutenção das fronteiras identitárias. Como já verificamos em Santana (2004: 38),

para reafirmar suas identidades faz-se necessário que os grupos mantenham suas

fronteiras bem definidas. Essa compreensão das fronteiras é a base do que

chamamos de dupla pertença (Santana 2004) ou dupla militância religiosa

Berkenbrock (2007)254, pela qual as pessoas se identificam com duas realidades

míticas diferentes, mas não as confunde.

É possível identificar esse aspecto com bastante clareza nessas palavras de

dona Senhora (80 anos):

Ela (Santa Bárbara) é de candomblé, mesmo. (...) Adoro minha santa, ele (o marido) era bom, mas aqui

não queria, não! Ai dizia: “– você é invocada”. Que ele era da Irmandade do Coração de Jesus. Eu disse: “– E o que é que tem a ver a irmandade do Coração de Jesus com o meu? Eu não vou na igreja? Eu não faço batizado e tudo? O que é que tem isso?” “– Ah, mas você é do candomblé!” “Ah, então é!” Agora eu gostava do bichinho (do candomblé)! (...) Não perdia. Cochilava, daqui a pouco eu levantava, sambava, dançava candomblé, dancei muito candomblé.255

Observemos que dona Senhora tem clara consciência das fronteiras que

separam as duas religiões, ou as duas crenças. A forma como ela revela sua

devoção pela “Santa Bárbara do candomblé” é enfática e não deixa dúvidas de que

havia um conflito entre ela e o seu marido, que era católico da Irmandade do

Coração de Jesus, por conta da sua identidade religiosa.

Vale ressaltar que quando perguntamos qual a sua religião, dona Senhora

respondeu imediatamente que é católica e que antes rezava para Santo Antonio e

Nossa Senhora do Parto, mas não revelou sua crença por Santa Bárbara; revelação

253 GASPAR, Eneida D. Guia de religiões populares do Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2004, p. 123; 254 BERKENBROCK, Volney J. E experiência dos Orixás... Op. Cit.; 255 Conversa com dona Senhora, 80 anos, em 04/05/2010;

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que só foi feita a partir do nosso terceiro encontro. Porém, percebemos que quando

ela sentiu segurança passou a assumir outro discurso, falou das festas de

candomblé que freqüentava, das pessoas e locais onde aconteciam as festas. Mas

disse que não existia terreiro em Pojuca.

Intimamente ligada ao aspecto da dupla pertença, aparece também o

sincretismo. “É a Santa Bárbara do candomblé”. Assim, uma mesma denominação

para dois entes diferentes. Dona Senhora, como exemplo do povo afro-brasileiro,

vive as duas experiências, a do duplo pertencimento, especialmente determinante

para a sua identidade de descendente africana e também a do sincretismo,

determinante da formação da cultura brasileira.

Não queremos, com isso, estabelecer antagonismos entre identidade e

cultura; são, pois, faces da mesma moeda, porém, cada uma com sua significação.

A cultura nacional brasileira, como uma cocha de retalhos, é constituída de

fragmentos das culturas dos diferentes povos que construíram essa nação. Os

“elementos básicos de sua organização simbólica de origem”256, ainda que com

traços mais acentuados da cultura cristã ocidental, devido o processo colonizador, e

permanece em constante conflito, devido essa diversidade contida nela, bem como

devido o elitismo, o que Sodré (2005) chama de cultura elevada.

Cada fragmento de cultura terá significado diferenciado para a população

(consideremos aqui, mais uma vez, a idéia da recepção), o que, por sua vez, vai ser

determinado pelo sentimento de identificação, pelo pertencimento. Contudo, mesmo

os traços identitários de cada grupo, já são marcados pela influência dos diferentes

fragmentos ou elementos culturais. A cultura é dinâmica e dialética.

Ao analisarmos as considerações de Consorte (2006) em relação ao

“manifesto de ialorixás baianas contra o sincretismo”, percebemos esse enquanto

inegável, do ponto de vista da construção da cultura nacional brasileira. Ainda que

os fiéis tenham consciência das fronteiras de cada religião, num contexto geral, que

envolve linguagem, crenças, experiências de fé, música, ditos, dente outros, o

sincretismo apresenta-se “inapelavelmente ligado ao processo de inserção do negro

na sociedade brasileira”.257

256 SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida... Op. Cit.; p. 90; 257 CONSORTE, Josildeth Gomes. Em torno de um manifesto de ialorixás baianas contra o sincretismo. In: BACELAR, Jéferson & CARDOSO, Carlos (org.). Faces da Tradição Afro-Brasileira. Rio de Janeiro: Pallas, Salvador: CEAO, 1999, p. 79;

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Ainda no ensejo de conhecer o mito ou os mitos fundadores que embasam as

práticas das rezadeiras de Pojuca convém considerarmos dois aspectos relevantes,

como a confluência ente as experiências culturais africanas e o chamado catolicismo

popular. O primeiro refere-se à construção da identidade africana no Brasil, a qual foi

forjada a partir da confluência dos diversos elementos de diferentes etnias africanas,

resultado da estratégia de resistência, adotada por esses contra a escravidão.

Quanto ao catolicismo popular, há de se considerar que, embora atualmente

seja fortemente marcado por símbolos africanos, já veio de Portugal, repleto de

fragmentos de outras crenças diversas do catolicismo oficial romano e aberto à

outras.

Como ilustração dessa informação, consideramos pertinente transcrever uma

estorinha que dona Laura (81 anos) nos contou para explicar a origem do

benzimento para curar engasgo com espinha de peixe:

Quando Deus andou no mundo, tinha um homem e uma

mulher pobrezinha, não tinha nada, nada, nada, nada. Ai, todo ano São Pedro mais Jesus descansava na casa deles. Passava uma vez , duas, na casa deles. Eles botava comida para eles comerem, eles comiam; fazia cama na varanda para eles dormir, eles dormia; no outro dia Jesus saia e ia embora, porque Jesus não comia mesmo, saia embora. Pedro ficava, ai Pedro embirrou: “Senhor, dá riqueza aquele homem!” Olha Pedro, aquele homem é bom, mas a mulher é má, se aquela mulher tiver qualquer coisa, ela não vai deixar a gente entrar na casa dela. Pedro disse: “deixa Senhor, agora eles faz tanto, depois que ficar rico, ai é que vai fazer”. Jesus chegou e deu uma “riquezinha” a eles.

Quando foi no outro ano, que Jesus passou lá, ele estava bem forte, tinha feito a casa, a casa estava mobiliada de tudo; a casa estava que fazia gosto! Ai Jesus bateu na porta: “são aqueles homem que passam aqui de ano em ano, chegou aqui, querem um arranjo para dormir”. Ela disse: “pega essa esteira velha que esta ai, bote lá na casa de farinha”. Pegou um lençol velho deu a ele: “bote lá na casa de farinha, bote eles prá dormir lá na casa de farinha”. Ai o marido pegou tudo e botou Jesus pra dormir lá na casa de farinha. Jesus dormiu na casa de farinha, a esteira velha, o lençol velho, tudo velho.

Quando foi de noite eles fizeram comida, comeram o peixe bom e pegaram aquelas espinhas, aqueles peixes ruim levaram para Jesus e São Pedro, lá na casa de farinha. São Pedro comeu, Jesus não comia mesmo, só fazia bicação, mas ele não comia, ai foi embora. Ai Jesus disse: “eu não te disse São Pedro?” Ai São Pedro foi embora mais Jesus.

Quando chega longe, vai o homem correndo atrás deles: “Senhor, Senhor, minha mulher esta engasgada, nem sobe a comida, nem desce; esta lá que não pode nem falar!” Ai

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Jesus mostrou: “vamos voltar, Pedro”. Pedro tentou acha que o que Jesus fazia era ruim: “mas nós vamos voltar daqui?” “Volta Pedro, vamos voltar, se a mulher do homem está engasgada, vamos voltar, Pedro”. Ai Pedro voltou mais Jesus, ai Jesus pegou o ramo e disse: “casa bom homem, ruim mulher; casa veia, esteira ruta, engasgo suba ou desça desse pescoço, dessa mulher”. Disse três vezes, ai quando a espinha desceu, saiu e foi embora. O engasgo desceu da garganta da mulher; Jesus foi embora.

Assim é muita gente, porque você ter fé que ele vai tirar aquele engasgo do seu pescoço, você mesmo reza com sua mão, e quando você chega é só você falar, casa veia, esteira ruta, bom homem, ruim mulher, engasgo ou suba ou desça desse pescoço, em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo, pronto!258

Apesar de extensa, optamos por transcrevê-la na íntegra, para não correr o

risco de prejudicar no seu sentido, até mesmo porque dona Laura, tem uma forma

própria de contar. Observemos que essa estorinha tem o mesmo estilo dos contos

medievais, o que nos faz crer que é uma herança do catolicismo popular trazido de

Portugal, pois, como atesta Santos (2006):

A nova religiosidade, formada pela especificidade da

religião vivida pela população colonial, eivada de reminiscências folclóricas européias e colorida pelas contribuições culturais de negros e índios, surgia como ponto fundamental na formação de um catolicismo tipicamente colonial e específico, onde o “viver em colônia” devia muito aos elementos do imaginário europeu cujo signo se constituiu.259

Assim, o mito fundador que embasa as práticas das rezadeiras de Pojuca é,

provavelmente, uma combinação de todas essas nuances. Enfatizamos, como já foi

mencionado no primeiro capítulo, que, nesse caso, tanto a concepção de dupla

pertença, no que concerne à identidade, quanto a concepção de sincretismo,

relacionada a constituição cultural das práticas das rezadeiras são nesse trabalho,

pertinentes.

Transcrevemos abaixo uma das orações utilizadas por dona Laura (81 anos)

no benzimento para cura de erisipela e a forma como é realizado o benzimento,

como prova dessa percepção.

258 Conversa com dona Laura, 81 anos, em 20/01/2010; 259 SANTOS, Rafael Beondani dos. Martelo dos hereges: militarização de Santo Antonio no Brasil colonial. Dissertação de Mestrado em História. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2006., p. 97. Disponível em: http://www.historia.uff.br/stricto/teses/Dissert-2006_SANTOS_Rafael_Brondani_dos-S.pdf . Acessado em 25/06/2010.

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A reza de erisipela ou “a vermelha” pode ser rezada de

duas forma: com folha de fedegoso e óleo de oliva ou com cachimbo aceso.

Reza fazendo cruz no lugar doente. Diz assim: Nossa Senhora vinha de viagem, encontrou com a vermelha; ela perguntou: “a onde tu vai, vermelha?” Ela respondeu: “eu não me chamo vermelha, eu me chamo, como a carne e deixo o osso”. Antes que tu coma a carne e deixe o osso, eu te corto o pescoço, com os poderes de Deus e de São Virtuoso.

Quando pergunta “prá onde tu vai, vermelha” a pessoa responde: “eu não me chamo vermelha”.

Se rezar com o fedegoso, via fazendo cruz no lugar doente; se for com o cachimbo, vai rezando e jogando fumaça no lugar doente.260

Esses dois exemplos de orações pronunciadas pelas rezadeiras no momento

do benzimento não deixam dúvidas de que o catolicismo popular é uma das bases

da prática das rezadeiras. A cruz, por exemplo, já citada na definição de Cascudo

(1999), é um símbolo presente em quase todas as orações. Nas diversas orações

são feitos movimentos em forma da cruz ou no lugar doente, como é o caso de

doenças como a erisipela ou sobre o “paciente”, de forma geral, se tratar de doenças

não localizadas, como o olhado.

Sabemos que a cruz é um símbolo cristão, trazido para o Brasil pelos

portugueses. Foi esse o primeiro símbolo que os colonizadores impuseram aos

nativos, e, foi através dele que se iniciou a catequese dos índios e também dos

negros. Para a igreja Católica a cruz é símbolo de sofrimento, penitência: “cada um

deve carregar a sua cruz”. É também o símbolo da conversão, as pessoas se

convertem “pela cruz do Nosso Senhor Jesus Cristo”. E a cruz é também o símbolo

da cura e da salvação: Jesus Cristo salvou a humanidade pelo padecimento na cruz.

Todo sacramento (batismo, unção dos enfermos, cinzas...) são feitos a partir do sinal

da cruz. A cruz é escudo, é amuleto.

As rezadeiras dizem que usam a cruz porque, quem cura é Deus. Assim

diz dona Laura (81 anos): “a importância das rezadeiras é a fé. Nossas palavras

não é nada. A fé em Deus é que cura”. Todas as outras dizem a mesma coisa.

“Você sabe que sem fé não tem nada, se não tiver fé... não é? Diz que é a fé

quem move montanha”261.

260 Conversa com dona Laura, 81 anos, em 25/10/2009. 261 Conversa com dona Zilda, 72 anos, em 05/05/2010;

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A cruz é a senha de que o que elas fazem é permitido por Deus. “Deus é

quem cura”. Porém, seus ritos de cura deixam escapar traços de outras identidades

culturais e, conseqüentemente, religiosas. Afinal, nos ritos de origem africana

simbologia da cruz também aparece, porém, na forma da encruzilhada, que sugere

as várias possibilidades de caminhos a se trilhar, como Santos (2005) esclarece:

Seria também nas encruzilhadas (espaço físico, o lugar

sagrado) que muitos curandeiros ligados aos cultos afro-brasileiros, através de seus guias, divindades e entidades sobrenaturais, oficiavam procedimentos religiosos/curativos realizados para abrir caminhos para o sucesso (no emprego, no amor e em outras situações), desmanchar feitiços, amarrar uma pessoa (in)desejável, enfim, as encruzilhadas simbolicamente representariam as várias possibilidades de caminhos por onde as pessoas – a depender de suas escolhas – poderiam trilhar para resolver suas angústias psicológicas, espirituais e até mesmo dificuldades materiais. Em suma, as encruzilhadas poderiam ser vistas por muitos como espaço ritual – o lugar de comunicação com o mundo sagrado.262

Assim, quando Cascudo (1999) informa quais os instrumentos que as

rezadeiras utilizam, ele nos apresenta elementos genuinamente católicos, pois as

rezadeiras “fazem cruzes na cabeça com pequenos ramos verdes”.

Porém, antes de nos referimos aos outros elementos, consideramos

conveniente também tratar ainda de outro elemento do catolicismo popular, trazido

pelos portugueses para o Brasil. Trata-se da devoção aos santos, especialmente a

devoção a Santo Antonio. Quase todas as rezadeiras entrevistadas revelaram

devoção ao santo, das cinco que acompanhamos durante todo o período da

pesquisa, apenas dona Laura, não expressou tal devoção. Então tentamos ver se

desvendávamos o motivo da grande popularidade de Santo Antonio entre as

rezadeiras de Pojuca.

Santo Antonio era um santo genuinamente português e adotado como o

padroeiro de Portugal; sua devoção se expandiu tanto quanto o império português,

no Brasil e na África, também, como se pode verificar em Santos (2006):

262 SANTOS, Denilson Lessa. Nas Encruzilhadas da Cura: Crenças, Saberes e Diferentes Práticas Curativas. Santo Antonio de Jesus – Recôncavo Sul – Bahia (1940 – 1980) – Dissertação de Mestrado. UFBA, Bahia, 2005, p. 13;

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Antonio, o santo português que consegui transitar pelos vários espaços e estratos sociais, também fazia crescer sua auréola em outros territórios. Empenhados em conquistar novas terras, os portugueses não abandonaram o ideal missionário. Santo Antonio seria um dos principais santos escolhidos para patrocinar as viagens e inspirar os conquistadores. Assim, a devoção ao santinho lisboeta se expandiria juntamente com o Império português.263

A devoção à Santo Antonio já chegou sincretizada nas terras brasileiras, com

elementos da cultura celta, como o cristianismo popular. Sobre isso Santos (2006)

revela:

(...) a formação de um forte culto à Santo Antonio fez-se

animada por crenças e lendas, ressaltando o Divinu Antonius como um herói popular simpático e com algo dos gênios familiares benfazejos e brincalhões, onde as quadras e as orações são por vezes resquícios de orações de origem celta, que o povo repetia e cantava em suas cerimônias.264

Assim, os portugueses trouxeram para o Brasil, um santo muito próximo, com

o qual desenvolviam um relacionamento muito íntimo, como um ente querido da

família: “Santo Antonio era para os mais devotos como um membro da própria

família, alguém bem próximo do cotidiano e da vida dos fiéis que conheciam a sua

legenda e, principalmente, esperavam seus milagres em prol dos seus interesses e

dos reinóis”265

No dia 13 de junho do ano em curso tivemos a oportunidade de participar de

algumas rezas em louvor ao santo. Três entre as cinco rezadeiras principais dessa

pesquisa renderam homenagens à Santo Antonio. Dona Zilda e dona Djão rezaram

nas suas próprias casas, com altares enfeitados de verde e amarelo, em

homenagem ao Brasil na copa do mundo. Dona Dida puxou os ofícios em louvor a

Santo Antonio em várias casas e também no “Lar dos Idosos”, onde reza todos os

263 SANTOS, Rafael Beondani dos. Martelo dos hereges: militarização de Santo Antonio no Brasil colonial. Dissertação de Mestrado em História. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2006. Disponível em: http://www.historia.uff.br/stricto/teses/Dissert-2006_SANTOS_Rafael_Brondani_dos-S.pdf . Acessado em 25/06/2010, p. 81; 264 SANTOS, Rafael Beondani dos. Martelo dos hereges: militarização de Santo Antonio no Brasil colonial. Dissertação de Mestrado em História. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2006, p. 75. Disponível em: http://www.historia.uff.br/stricto/teses/Dissert-2006_SANTOS_Rafael_Brondani_dos-S.pdf . Acessado em 25/06/2010, 265 Id.

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anos a trezena de Santo Antonio, pois já não o faz mais em sua casa, uma vez que

o padre disse que lugar de rezar é na igreja:

Antigamente se rezava nas casas, mas hoje em dia...

(pausa) como, tem várias missas, missas em todas as comunidades, todo mês tem missa, então ficou... As pessoas, as vezes o padre fala que é para gente, pra ir rezar na igreja em vez de ficar fazendo culto (que ele fala culto) em casa, pra rezar na igreja que é melhor, reúne a família e vai rezar na igreja que e melhor, né? Mas tem pessoas que não se conformaram com isso não. Aqui mesmo em minha rua, tem uma pessoa que reza Santo Antonio. Eu mesmo, não rezo Santo Antonio na minha casa, sou rezadeira de muitos anos, meu pai chamava Antonio, tenho um filho chamado Antonio, um genro chamado Antonio, meu tio chamava Antonio e eu não rezo Santo Antonio em casa, não sei por que, antigamente eu rezava.266

Percebemos nesse caso, a visível tentativa da igreja Católica em controlar a

religiosidade popular, centralizando todas as manifestações em torno dos seus

templos, especialmente, diante do processo de pentecostalização. Vale ressaltar

que como todas as rezadeiras devotas de Santo Antonio relataram também dona

Dida começou a rezar para o santo desde que era “mocinha”:

Eu, deste os meus 13 anos de idade que eu rezo Santo

Antonio, acostumava fazer trezena, tinha uma prima minha que nós saiamos assim pelas casas, colocava um retratinho do santo numa caixa do Santo Antonio e nós íamos pedir, pedir esmola, né? Falava esmola, naquele tempo as pessoas davam aquele dinheirinho e nós comprávamos papel, comprávamos as velas, e comprava açúcar, comprava manteiga para fazer a bala, nós acostumava fazer as balas, nós mesmo, em casa, e a noite nós rezamos, fazíamos a trezena de Santo Antonio na casa da minha amiga; eu tirava a reza e ela também, então foi isso que me ajudou eu aprender a rezar, tirar a reza de Santo Antonio. Até hoje eu continuo rezando.267 (dona Dida, 71 anos)

Os relatos de dona Zilda, dona Djão e também dona Lindu (98 anos), que não

é rezadeira, mas rezou para Santo Antonio durante muitos anos, só deixou depois

que uma das suas filhas faleceu. Para todas essas o processo de construção da

devoção a Santo Antonio foi o mesmo. Dona Senhora (80 anos) também rezava

para Santo Antonio e deixou de rezar depois que uma de suas filhas faleceu, só

266 Conversa com dona Dida, 70 anos, em 04/05/2010; 267 Id.

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continua rezando para Santa Bárbara. Embora não tenham dito claramente, parece-

nos que deixaram de rezar para o santo, como se fosse uma espécie de castigo ou

mágoa, que passaram a cultivar contra o santo, por não ter conseguido livrar as

filhas de ambas da morte. Esse comportamento é muito típico na relação de

intimidade que os devotos estabelecem com seus padroeiros.

Mas não acreditamos que essa devoção seja resultado apenas da forma

como chegou ao Brasil. Como já abordamos sobre a recepção e o sentimento de

identificação, acreditamos que ambos também influenciaram na adoção de Santo

Antonio como santo padroeiro de tantos brasileiros, especialmente das rezadeiras

de Pojuca. Em primeiro lugar, a devoção a Santo Antonio já era uma realidade no

Congo e também em Angola, na África, ligado às lutas revolucionárias. Diante disso

é provável que muitos dos africanos que foram trazidos para o Brasil na condição de

escravos já conhecessem o santo, de acordo as informações de Santos (2006):

(...) percebemos que a fé difundida entre os povos

africanos foi reinterpretada e relida segundo o contexto e as necessidades, fazendo de Santo Antonio um grande articulador e chefe de um movimento revolucionário, uma vez que Beatriz Kampa Vita dizia incorporá-lo, devia evidentemente haver uma grande difusão de seu culto, de imagens e orações que propiciaram tal distorção.268

O resultado desse movimento foi a queima na fogueira da líder do movimento,

acusada de heresia pela igreja Católica. Porém, essa passagem nos serve de

argumento para, considerando o fato de que durante o século XVIII, a

predominância de africanos trazidos para o Brasil foi de angolas e congoleses269,

sugerirmos que é bem provável que ao chegarem ao Brasil, já conhecessem o

santo; talvez por isso ele seja relacionado a Ogum, senhor do ferro e da guerra.

Em segundo lugar, tempo também grande participação de africanos e crioulos

nas irmandades e confrarias por todo o Brasil, especialmente na Bahia, desde o

século XVII. Essas irmandades, sobretudo, funcionavam para os negros como

possibilidade de ascensão social, luta por liberdade e respeito, mas também

influenciam no processo de formação da identidade cultural dos negros no Brasil,

como esclarece Parés (2001):

268 SANTOS, Rafael Beondani dos. Martelo dos hereges... Op. Cit.; p. 75; 269 SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos... Op. Cit.; p. 282.

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Entretanto, outra parte dos africanos envolvidos nas irmandades, talvez a maioria, não sofria uma conversão tão radical. Eles podiam adicionar, muitas vezes de forma apenas superficial, certas crenças e hábitos católicos àqueles com os quais foram educados na África, estabelecendo paralelismos ou relações conceituais, por vezes até identificações, entre os dois sistemas referenciais. A cumulação de recursos espirituais diferenciados, aliás característica de muitas religiões africanas e também do catolicismo popular, não era vivida necessariamente como uma contradição, mas como uma estratégia eficaz para lidar com a adversidade e propiciar boa fortuna.270

Por último, para decifrar o mito que embasa as práticas das rezadeiras, como

já começamos, temos um conteúdo africano muito denso, ainda que, em alguns

momentos, negado ou camuflado. Lembremos os ramos verdes citados por Cascudo

(1999).

A utilização de folhas em ritos, chás e efusões é uma prática muito antiga e os

índios utilizavam várias e conheciam também os espíritos das doenças. Mas as

folhas não são utilizadas apenas pelos índios, os africanos já chegaram aqui com

muitos conhecimentos de ervas e dos seus usos, além da concepção de que as

doenças têm origem mágica ou espiritual. Assim, os africanos acreditam que não

basta o uso dessa ou daquela erva; é fundamental que juntamente com os ritos,

chás ou efusões sejam pronunciadas palavras “mágicas” que têm poder de curar.

De acordo com Verger (2009): “entre os iorubas a preparação de remédios e

trabalhos mágicos deve ser acompanhada de encantações (ọfọ) com o nome das

plantas, sem as quais esses remédios e trabalho não agiriam”271.

Assim, folhas e palavras são bases de quase todas as rezas, são poucas as

doenças que não exigem o uso de folhas no processo de benzimento. Abaixo

apresentamos relação de algumas folhas utilizadas pelas rezadeiras e para que

serve:

Água – não é folha ou erva, mas muito presente em vários rituais. Serve para

rezar de olhado e dor de cabeça, principalmente;

Afavaca de galinha – febre, gripe;

Alecrim – dor de cabeça, sinusite;

270 PARÉS, Luis Nicolau. A formação do Candomblé... Op. Cit.; p. 111; 271 VERGER, Pierre Fatumbi. Ewé: O uso das plantas na sociedade ioruba. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 35;

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Alfazema - olhado

Algodão – dor no corpo, para ajudar no parto;

Alho – embora não seja uma folha ou erva, foi citado por todas as rezadeiras,

para diversos fins como dor de cabeça, dor de dente, inflamação, coceira;

Alumã – fígado, estômago;

Aroeira – para olho grosso, gripe;

Assa peixe – rins, dor no corpo, impinge

Babosa – emplasto, deve preparar com mel e vinho, serve para câncer e

doenças desse tipo;

Boldo – fígado, estômago, intestino;

Capeba – banhos, febre, estômago, fígado, intestino;

Carqueja – diarréia;

Capim santo – pressão alta, gripe;

Cidreira – gripe, dor de cabeça, pressão alta;

Fedegoso – erisipela;

Folha da costa – prepara o xarope, serve para asma;

Gonçalinho – dor de barriga, disenteria;

Guiné – olho grosso,

Jurubeba – diabetes;

Mandacaru – rim, tuberculose;

Melão de são Caetano – fígado, sarna, ferida, coceira;

Pinhão branco – intestino;

Pinhão roxo – intestino;

Pitanga – gripe, garganta, osteoporose;

Quarana – dores no corpo, osteoporose, a vermelha;

Quiôiô – febre, olhado, serve para fazer banhos e chás;

Tapete de Oxalá – serve para tudo, qualquer tipo de dor;

Vassourinha – olhado, febre, erisipela;

Velaminho – dor de cabeça, febre;

A intenção de apresentar este rol de folhas utilizadas pelas rezadeiras, não

tem nenhum propósito medicinal, até porque a base da presente pesquisa é cultural,

nossa intenção foi apresentar a grande variedade de folhas e suas utilidades, que as

rezadeiras de Pojuca conhecem e utilizam no seu ofício. Não apresentamos todas,

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apenas as mais citadas e com as informações de uso dadas pelas próprias

rezadeiras, sem a intenção de fazer checagem botânica ou farmacêutica. Com

essas folhas elas simplesmente benzem as pessoas, passando pelo corpo, fazem

chás, banhos, xaropes e outras fórmulas, de acordo com o mal que pretendem

combater.

Nenhuma rezadeira informou recitar alguma oração durante o preparo das

receitas, mas a maioria, exceto dona Senhora, admitiu pedir licença antes de colher

as folhas. Também advertiram que não se pode colher as folhas em qualquer lugar,

em beira de estrada, por exemplo, não se deve colher. Dona Dida, dona Senhora e

dona Djão disseram que não pode colher as folhas em qualquer hora: nem, depois

do por-do- sol ou no meio dia. Geralmente, elas não souberam responder o porquê

dessas cautelas no momento de colher as plantas. Mas, todas, sem exceção,

admitiram que as folhas têm dono.

Dona Djão (74 anos) foi muito direta informando que cada folha tem o seu

orixá; enquanto dona Laura (81 anos) nos diz claramente: “todas as folhas tem um

dono, para tirar tem que pedir licença”272, mas, em seguida, completou: “agente sabe

que tudo quanto é folha Jesus está presente”. Já dona Dida (71anos) nos disse que

tudo o que faz é em nome de Nossa Senhora e do Pai, do Filho e do Espírito Santo,

é neles que ela pensa quando vai tirar as folhas para rezar.

Dona Zilda (72 anos), sutilmente nos disse que “as folhas são atraentes”. Ela

disse que os elementos que utiliza para rezar são folhas, água e alfazema, às vezes

também utiliza velas e de vez em quando faz umas simpatias, umas oferendas:

(...) a minha reza é somente com a luz, folhas e

alfazema e água, viu? Eu não tenho entidade, viu? Não boto mesa, só às vezes, assim uma simpatia. Tem gente, uma simpatiazinha às vezes eu faço e dá certo.

Prefiro rezar só as rezas dos santos católicos, mas acredito e também peço licença aos orixás, principalmente quando vou tirar as folhas para rezar as pessoas e orientar no uso de chás, banhos e garrafadas; fórmulas utilizadas para a cura de todo tipo de doença.273

272 Conversa com dona Djão, 74 anos, em 02/06/2010; 273 Conversa com dona Zilda, 72 anos, em 05/05/2010;

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Ela afirma ser católica, mas confessa que vai a qualquer igreja. Um dos seus

filhos bebia muito, mas depois que foi para a igreja dos mórmons ele deixou de

beber e ela agradece muito a Deus. Às vezes vai com o filho na igreja que ele

freqüenta. Mas esclarece: “não saio da minha religião”

O conteúdo africano presente nas práticas das rezadeiras de Pojuca é

inegável, ainda que tentem fazer isso. Percebemos que algumas delas, como dona

Zilda e dona Senhora, num primeiro momento omitiram seu pertencimento, noutro

tentou até negar, dizendo que não gosta, mas no decorrer da pesquisa, foram

confirmando o que não conseguiam esconder.

Já dona Djão, que logo deixou transparecer seu pertencimento, embora

afirme ser índia, pois sua avó era índia e embora o seu pai fosse negro jeje, como

ela afirmou. Numa das nossas conversas, ela disse que uma das filhas “vê as

coisas”, que quando era criança, sempre ganhava presente da mãe d’água, mas que

não quer “mexer”, porque “é coisa de herança e ia mexer com muita gente”.

Por outro lado, dona Dida (70 anos) e dona Laura (81 anos), as mais católicas

entre as cinco, pois participam ativamente da vida na comunidade e fazem parte do

Apostolado da Oração e da Pastoral da Criança, respectivamente. Não abrem mão

do ofício, mas tentam passar uma idéia de “pureza” das suas práticas. “Jesus deixou

as folhas para curar”. Essa frase foi proclamada por dona Laura várias vezes.

Dona Dida, inclusive negou que cada reza tenha o seu patrono, embora

reconheça que os versos das orações citam vários santos, que seriam responsáveis

por aquelas doenças. Discurso fortemente controverso, por isso mesmo, muito

confuso:

(...) e os patronos, quando você fala, não. Eu não rezo,

quer dizer, é pra Nossa Senhora, quer dizer, a reza de cobreiro: vim de Roma, de Romaria, rezando cobreiro de cobraria, com ramos verdes e água fria, com os poderes de Deus e da Virgem Maria. Da Virgem Maria. Então, realmente é a Virgem Maria, E o outro é Santo Antonio; eu não tenho assim como patrono, como Santo assim, escolhido, não. Eu rezo assim, mas não tenho assim rezo é Santo Antonio, é São João, é Nossa Senhora da Conceição... E assim, não sei dizer mesmo se tem um patrono, eu sei que Nossa Senhora é também a mãe de Jesus e quase todas essas rezas nós falamos em Nossa Senhora, né? Eu acho que minha patrona e Nossa Senhora, é a Virgem Maria e também Jesus Cristo, que é o nosso irmão. Prá tudo é Jesus Cristo e Deus que é nosso Pai. Assim, patrono assim, santo especial, e santo assim, não sou muito, eu não sei assim não.

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São Braz, que é o santo de reza de engasgo, quando a pessoa engasga com espinha, uma coisa, então reza pra São Braz (...). A vermelha é Nossa Senhora também, quase todas as outras rezas com Nossa Senhora. Nossa Senhora vinha de viagem, encontrou com a vermelha... Sempre Nossa Senhora, então eu acho que o patrono dessas rezas todas é Nossa Senhora e São Braz, como ela falou e São João é muito não. Eu invoco mais é Jesus, Maria e Deus, assim eu não tenho, assim, dizer assim: é Santo Antonio, é São João, é São Pedro, não tenho, assim, não.274 (dona Dida, 70 anos)

Lembramos que dona Dida, em outro momento revelou ser devota de Santo

Antonio desde os 13 anos de idade. Que na sua família tem várias pessoas com

esse nome. E que deixou de rezar em casa porque o padre disse que não era para

fazer “cultos em casa”, deveriam rezar nas missas. Suspeitamos que esse

comportamento é fruto da ação da igreja, dos discursos dos padres sobre seus fiéis,

pois são justamente, as duas rezadeiras mais atuantes na igreja Católica, que

apresentam discurso dessa natureza. Aquelas que não têm vivência tão presente na

igreja, devem se sentir mais livres, quanto ao seu pertencimento, por isso, apesar

dos subterfúgios, falam com mais abertura sobre o assunto.

Outro fator que ilustra o conteúdo africano nas práticas e saberes das

rezadeiras é o processo de aprendizado e ensinamento do ofício. Nos causou

surpresa constatar que a maioria das rezadeiras aprendeu rezar com pessoas fora

do seu ciclo familiar. Apenas dona Zilda revela que aprendeu rezar observando e

auxiliando o seu pai no momento em que ele fazia os benzimentos. Ela conta que

começou rezar com apenas vinte anos de idade.

Todas as outras aprenderam fora do seio familiar. São os casos de dona Djão

(74 anos), que aprendeu com uma velha senhora que morava próximo da sua casa;

dona Dida, que embora sua avó e sua mãe fossem rezadeiras também, ela conta

que aprendeu com várias pessoas diferentes, desde sua mãe até um compadre;

também dona Senhora revelou que aprendeu por curiosidade, ficava olhando as

pessoas rezarem. Quem lhe ensinou foi a parteira, dona Vicença, que “pegava” e

rezava; uma senhora “bem pretinha”. Dona Senhora (80 anos) também foi parteira,

fez o curso, mas sua mãe jogou seu diploma fora, mas ela exerceu o ofício durante

274 Conversa com dona Dida, 70 anos, em 02/06/2010;

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muitos anos. Também dona Laura aprendeu a rezar com outra pessoa. Ela diz que

sua mãe não sabia nem rezar o “Pai Nosso”:

Minha mãe não sabia rezar nada, ela não sabia rezar

nem o Pai Nosso. Quem me ensinou foi uma senhora chamada Salu. O nome dela era Salustiana, ela morava na usina Pitanga e morreu com mais de cem anos. Ela rezava alto para agente aprender, depois vinha e dizia como era que rezava.275

Os diversos relatos indicam que o processo de aprendizado foi oral, exceto

dona Dida, que revelou que só gravava a oração se copiasse. Aquela que não

copiou, não conseguiu memorizar. Todas as outras aprenderam oralmente,

observando os mais velhos rezarem. Sendo assim, como afirma Vansina (1982): “a

oralidade é uma atitude diante da realidade e não a ausência de uma habilidade”276.

Dona Senhora e dona Zilda informaram que não pode copiar as orações, pois, se

copiar elas perdem a força. Essa lógica é semelhante ao que ocorre entre os

iorubas, conforme atesta Verger (2009): “(...) a transmissão oral do conhecimento é

considerada o veículo do axé das palavras, que permanecem sem efeito em um

texto escrito. Palavras, para que possam agir devem ser pronunciadas”277.

Assim, todas as vezes que as rezadeiras vão benzer alguém, elas perguntam

primeiro o nome da pessoa a ser benta e no momento em que pronunciam as

orações, repetem várias vezes o nome do paciente, enquanto passa sobre o seu

corpo, da cabeça aos pés, ramos verdes:

Claudia, com dois te botaram, Claudia, com três eu

retiro, se botaram por traz, com São Braz, se botaram pela frente, com São Vicente, com os poderes de Deus, da Virgem Maria, Divino Espírito Santo, Nossa Senhora do Livramento, te abençoe, Claudia, te dê paz, te dê saúde, te dê uma boa sorte, te faça feliz. Senhora Santana te proteja, te ilumine a sua mente cada dia mais, a gloriosa Conceição que ilumine seus caminhos, com os poderes de Deus e da Virgem Maria, Divino Espírito Santo, as três pessoas da Santíssima Trindade te dê saúde, te dê paz, uma boa sorte. Amem Jesus crucificado, filho da Virgem Maria, hoje, toda noite, amanhã por todo dia. Nem

275 Conversa com dona Laura, 81 anos, em 02/06/2010;

276 VANSINA, J. A tradição oral e sua metodologia. In: KI-ZERBO, Joseph (org). História Geral da África. I - Metodologia e pré-história da África. São Paulo: Ática/UNESCO, 1982, p. 157; 277 VERGER, Pierre Fatumbi. Ewé... Op. Cit.; p. 35;

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teu corpo será preso, Claudia, nem tua alma perdida, Jesus, ave Maria, Jesus, ave Maria.278

Contudo, algo ainda ficou por ser dito. Durante o período da pesquisa,

algumas vezes as respostas e histórias se repetiam, noutras silêncios eram a

resposta e noutros momentos ainda se desviava perguntas.

Algumas com mais sede de falar que as demais; outras com muito mais

interesse em falar da sua vida amorosa ou dos problemas com seus maridos, ou das

suas viagens. Sempre ficava algo no ar, uma informação que não foi dita, palavras

que não foram usadas...

Algumas respostas não nos deixaram dúvidas de que havia segredos,

informações que não foram reveladas. Quando perguntamos a dona Dida (70 anos)

sobre os patronos das orações, ela teve uma incrível dificuldade em responder.

Citou diversos nomes de santos, mas ainda assim, negou ter algum patrono. Então,

uma pergunta ficou sem resposta: se ela acredita no poder das rezas, se reza muita

gente e todos aqueles que ela reza ficam bons, conforme seus relatos; e as rezas

são todas invocando vários santos, por que então, ela nega a existência do

padroeiro?

Duas possibilidades são plausíveis, ou ela está tentando respeitar com

exatidão as orientações do padre, que sugere a abolição dos santos, em nome de

Jesus, ou ela tem consciência que no seu processo de aprendizado, aprendeu que

quem está por trás das folhas, não são os santos, mas sim outras entidades, os

orixás ou pode ter qualquer outra resposta muito distante dessas aqui apresentadas.

Postura parecida teve dona Zilda (72 anos), quando perguntamos sobre as

“simpatiazinhas” que ela realiza às vezes, ela respondeu evasivamente:

Compro um capim, um bocado de coisa, usa isso aqui

mesmo, vela, seiva, mais algumas coisas que a gente ponha, mas não é nada de candomblé, né? Candomblé eu nem gosto. Acho bonito, acho bonito os trajes, acho bonito as danças, as músicas eu acho bonito, mas eu tenho medo, não que eu tenha medo, mas é que eu sinto mal quando eu chego, (pausa), quando eu chego perto, mesmo assim, eu sinto muito mal, ai eu não...279

278 Dona Zilda, 72 anos. Observação em: 12/05/2010; 279 Conversa com dona Zilda, 72 anos, em 05/05/2010;

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E mudou de assunto. O que será que tem nas “simpatiazinhas”? Por que a

necessidade de enfatizar que não era coisa de candomblé? Por que a confusão com

as palavras no momento da resposta?

Muitas perguntas esse comportamento pode provocar. Portanto, embora não

tenhamos as respostas para essas perguntas, temos uma resposta que nos faz

compreender esse comportamento. Trata-se do segredo, elemento muito presente

na sabedoria africana. Segundo Sodré (2005) “é de separação o ato inaugural do

segredo, um ato de hierarquia daquele que sabe ‘alguma coisa’ – que o outro não

sabe”280. Ou seja, diante dos conteúdos do conhecimento a ser ensinado, algumas

coisas são retiradas, mas não são omitidas. O autor diz que o segredo deve ser

revelado de alguma forma, porém não para toda e qualquer pessoa, pois: “Entrar no

segredo de alguém e entrar na regra – de um jogo. A regra que permite as

identificações no interior de um determinado nível, circula, distribuí-se divide-se

entre os parceiros de um processo comunitário”.281

No caso das rezadeiras, essa vivência, de certa forma é individual, pois,

embora todas elas estejam inseridas numa comunidade, sejam reconhecidas pela

comunidade, não estão organizadas como num terreiro, então o processo de

aprendizagem é bem diferente. Cada uma vive uma experiência bem específica de

aprendizado, porém, identificamos um comportamento de segredo. Provavelmente

sejam aquelas coisas que só são reveladas quando o outro está pronto para

conhecer o segredo. Sodré confirma tal suposição quando afirma: “o enigma é uma

provocação ou um desafio à luta para conhecer a regra do jogo, é uma exibição do

segredo”282.

Não descartamos, contudo, que os segredos de hoje sejam apenas a

tentativa de camuflar ou negar o legado africano embutido na prática das rezadeiras,

especialmente no ato de rezar.

Em suma, para desvendar o mito que embasa a prática das rezadeiras de

Pojuca, necessitamos cruzar informações, muito mais das observações das suas

práticas, e das entrelinhas dos seus discursos, do que das suas palavras

propriamente ditas, pois essas se apresentam, muitas vezes, cheias de receios.

280 SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida... Op. Cit.; p. 130; 281 Ibid., p. 103; 282 SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida... Op. Cit.; p. 106;

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Assim, devemos considerar os seguintes aspectos:

1. a vivência do catolicismo, como essas mulheres se compreendem dentro

da religião católica, membros da igreja, pelo batismo e devoção aos

santos ou pela efetiva participação: sempre à serviço Tanto dona Dida,

quanto dona Laura, as assíduas na igreja, relatam suas atividades, canta

nas missas semanais, ministra a eucaristia, faz exéquias; acompanha as

crianças pela Pastoral da Criança, ajudou a fundar comunidades...

2. mais que o uso, a relação que as rezadeiras desenvolvem com as folhas.

As casas de todas as rezadeiras possuem quintal onde elas cultivam

grande parte das ervas que utilizam nas suas práticas de cura; antes de

colher uma folha pedem licença.

3. o processo de aprendizado, através da oralidade e sem a necessidade de

ser ensinado pelos pais ou avós;

4. por último, devemos também considerar os ritos de cura, baseados em

quatro eixos: o uso discriminado das folhas, o local (quintais), os

movimentos conforme a doença e as orações pronunciadas;

Notemos que o último eixo engloba os três primeiros, mas não se confunde

com eles, então nos deparamos numa encruzilhada, como diz Santos (2005), numa

situação de várias possibilidades de caminhos. Qual caminho devemos seguir para

decifrar o mito fundador que embasa as práticas das rezadeiras?

Talvez pudéssemos dizer que elas não dissociam as práticas de cura de

ações místicas ou ainda, que suas ações são inevitavelmente justificadas pela fé,

pela crença em diferentes forças que tem o poder de curar e transformar situações

(santos, orixás, espíritos...).

Pois, podemos dizer que a religião é fator determinante da vivência cultural

dessas mulheres. A religião, no entanto, é uma faca de dois gumes. Sua importância

na vida das pessoas, inevitavelmente, está associada ao tipo de organização social.

Por isso, Lefebvre (1991), Certeau (1999) e Heller (1992), se referem à religião

enquanto instrumento de dominação, utilizado pela sociedade terrorista para manter

as pessoas presas ás imposições das elites. Segundo Lefebvre (1991)283, onde a

igreja Católica não conseguiu fazer esse papel, a igreja protestante, muito mais

283 LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno... Op. Cit.; p. 157;

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competente, no processo de controle das pessoas, a partir das mesmas, assumiu

esse papel. Não podemos esquecer, no entanto que esses são marxistas.

No entanto, como Certeau (1999) sugere, mesmo dentro dessa estrutura

opressiva, no cotidiano, as pessoas conseguem desenvolver formas de fazer, que

burlam a realidade de opressão. Podemos dizer que existe também, dentro da

estratégia sutil da dominação através da religião, uma resistência também sutil, onde

as pessoas assimilam alguns aspectos e burlam outros, a partir da sua realidade, o

que só se realiza se houver a consciência e o sentimento de pertencimento da sua

identidade. Dessa forma os grupos se tornam fortes e conseguem construir

processos de resistência, e, em alguns momentos até subverter certas ordens

preestabelecidas, como podemos verificar em seguida:

Na primeira metade do século XX, observa-se na Bahia uma intensa

campanha preconceituosa, elaborada pelo poder público e amplamente divulgada

pelos jornais, contra a vendagem de plantas medicinais, na tentativa de “destruir a

independência que a população mais pobre, negra e de origem cabocla conseguia

manter usando essas folhas medicinais – devido aos seus conhecimentos

transmitidos oralmente há gerações.”284

Já em meados desse mesmo século a perseguição contra os curandeiros se

apresentou também no âmbito da legislação, com a regulamentação de leis que

restringiam as práticas de prevenção e cura para os profissionais da saúde, como

pode ser observado em Santos (2005):

No Brasil após os anos 40 do século XX, sobretudo

após a institucionalização do Conselho Federal de Medicina em 1945 – este reestruturado em 1957 juntamente com os Conselhos Regionais – os médicos com outros profissionais da área de saúde (enfermeiros, farmacêuticos, dentre outros) demarcaram quem poderia exercer as profissões relacionadas com a arte de prevenir ou curar doenças. Com a regulamentação de tais conselhos, o Estado delegava poderes para que os mesmos combatessem o exercício ilegal da medicina em quaisquer de seus ramos. 418

Com a criação das Normas Gerais sobre Defesa e Proteção da Saúde, através da Lei 2312 de setembro de 1954 e com sua regulamentação sob denominação de Código Nacional de Saúde em 1961419, estava determinado que os Conselhos de Medicina seriam os principais responsáveis

284 LÜHNING, Angela. Ewé: as plantas brasileiras e seus parentes africanos. In: BACELAR, Jéferson & CARDOSO, Carlos (org.). Faces da Tradição Afro-Brasileira. Rio de Janeiro: Pallas, Salvador: CEAO, 1999, p. 311;

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quanto à disciplinarização do exercício profissional nas artes de curar, ficando o Estado, via autoridade sanitária, a suplementar tal ação.420 Competindo aos conselhos regionais de medicina e às autoridades sanitárias fiscalizar.285

Diante de todo processo de perseguição contra as rezadeiras, contra o uso

das ervas, em favor da medicina alopática, elitista e branca, ocorrido desde os

primórdios do século passado, se não houvesse um processo de construção de uma

identidade, regido pela necessidade de sobreviver, de fazer sobreviver sua cultura,

conservar sua identidade e nela se identificar; provavelmente, os saberes

conservados pelas rezadeiras não passariam de meras lendas para as pessoas dos

dias atuais. As rezadeiras ainda hoje resistem e se impõem, por isso são

respeitadas. Conseguem sair do espaço oprimido da discriminação e marginalização

e passaram a ser reconhecidas, inclusive, pelo poder público como importantes

agentes de saúde.

Ai desvendamos o mito que dá base as suas práticas. As folhas, ou melhor, o

poder que emana das folhas: “as folhas são atraentes”; “cada folha tem seu dono”;

“tem que pedir licença para tirar as folhas”, “são as folhas que dão o sinal se a

pessoa tá com aquela doença ou não”; “planto tudo, cuido das minhas plantas, gosto

de tudo limpinha para quando precisar”; “as folhas são boas...”

“Sem folhas não há vida!”

Apesar de não termos conseguido elementos suficientes para confrontar as

práticas cotidianas das rezadeiras com o povo jeje, acreditamos que essas práticas

estão repletas desse conteúdo, contudo podemos afirmar que todos os elementos

africanos identificados nessa pesquisa pode ser uma larga porta, para um longo

caminho de pesquisas e descobertas do legado africano na vida do povo pojucano.

Afinal, para continuar vivendo temos que nos conhecermos cada vez mais,

temos que conhecer, sim, a nossa história; temos que fazer memória das nossas

vidas e precisamos ter bem definidas as fronteiras que nos identificam. Assim, ainda

que no mundo moderno a religião desempenhe papel opressivo, também a religião

pode oferecer um viés de resistência, especialmente, porque a sua base é a

tradição, então preserva alguns mitos e símbolos que identificam determinado grupo,

bem como, a partir das memórias, criam e re-significam outros.

285 SANTOS, Denilson Lessa. Nas Encruzilhadas da Cura... Op. Cit.; p. 160;

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Por fim, uma valorosa e animadora possibilidade, se apresenta em nossa

frente sobre o futuro das rezadeiras: já que, necessariamente, essa sabedoria não

tem sido passada de pais/mães para filhos/as, e sim por pessoas fora do seio

familiar, surge a esperança de que em outras esferas, fora das suas famílias, as

rezadeiras encontrem pessoas que descubram o dom de rezadeiras e se interessem

em aprender e se apropriar dessa sabedoria.

Considerações finais

Os mitos resistem: novas indagações para o tema

Yapô Yuca é um lugar muito próximo, que era habitado por seres muito especiais.

Contam que naquelas terras habitava um povo muito feliz. Um povo que vivia no mato, na

mata. Tudo o que possuíam e tudo o que consumiam vinha da mata. Havia uma grande

relação de respeito entre o povo, os encantados, as águas, a terra, a flora e a fauna daquele

lugar.

Lá havia um rio maravilhoso, que também se chamava Yapô Yuca. Esse rio além de

ser a força vital daquelas terras, servia de morada para muitos encantados.

Certo tempo chegou em Yapô Yuca uma gente muito estranha; essa gente falava

uma língua que ninguém conhecia, mas foi obrigado a conhecer e aprender a falar. Eles

usavam muitas coisas estranhas e invadiram aquelas terras sem pedir licença; não

respeitaram nenhum dos habitantes de Yapô Yuca e foram se apropriando daquele lugar.

Todos os habitantes lutaram contra os invasores. Foram conflitos desleais e por isso,

muitos foram massacrados, mas ainda assim o povo continuou resistindo. O povo irmão se

juntou para lutar contra os invasores; não conseguiram expulsá-los, mas resistiram e

conseguiram permanecer em suas terras.

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Passado mais algum tempo, outras pessoas chegaram em Yapô Yuca, mas dessa

vez não eram como os primeiros, essas outras pessoas foram trazidas como escravas pelos

primeiros; por isso chegaram muito tristes. Vendo a profunda tristeza dos novos hóspedes, os

yapôyucanos resolveram acolhe-los e confortá-los ainda que também tristes, há algum

tempo.

Entre esse novo povo, chegaram três pessoas/seres muito especiais e levaram

consigo algumas coisas muito interessantes, que eles chamavam de tesouro. A primeira era

uma senhora muito velha, mas incrivelmente forte. Segundo ela essa força vinha da lama e

que no percurso da viagem veio muito fraca, perdendo todas as suas forças; pensou que não

resistiria, mas ao chegar em Yapô Yuca, suas forças se restabeleceram, pois aquele lugar lhe

era muito familiar, lembrava muito o seu berço, por isso, sentiu-se cheia da sua força vital. E

como forma de gratidão se comprometeu em adotar todos os filhos de Yapô Yuca e cuidar

deles. Ela levou na sua bagagem um pouco de lama, que misturou com toda a lama existente

em Yapô Yuca, e dotou-a de poder vital.

O segundo era um ser muito misterioso, pois ninguém conhecia a sua face, mas, ao

mesmo tempo, tinha aspectos de todas as plantas e ervas, por isso, imediatamente se

relacionou muito bem com toda a flora da sua nova morada e logo descobriu seus segredos.

Nunca se viu tanta intimidade! Mas não divulgou o que descobriu, assim como fazia na sua

terra natal. Também trouxe consigo muitas sementes, que se adaptaram muito bem na nova

terra. Em sinal de gratidão, se comprometeu em cuidar da saúde de todo o povo que o

acolheu.

A última era uma fascinante serpente encantada. Umas vezes preta, outras colorida.

Ela era mágica, aparecia e desaparecia de repente, mas estava sempre presente. Tudo

ouvia, tudo via. Essa serpente se relacionou muito bem com o rio, vivia nas suas margens e

conversavam horas a fio. A serpente trouxe consigo um tesouro encantador, um arco

colorido, muito bonito e com esse tesouro se comprometeu em proteger o rio e todas as

águas daquela terra.

Apesar de todas as tormentas sofridas pelos dois povos, agora irmãos, o encontro

entre eles foi motivo de muita alegria, pois sabiam que se ajudariam mutuamente, sempre.

Dizem que sempre que podiam faziam muita festa. As moças da lagoa, se uniram com as

mães-da’água que vieram das terras distantes. Elas dançavam, cantavam, nadavam sem

parar; sempre muito bonitas e arrumadas. Recebiam muitos presentes e às vezes doavam

alguns desses. Contam que elas guardavam um baú com um grande tesouro no fundo do rio

Yapô Yuca, mas quem se atrevesse a pegar se daria muito mal.

Juntos, esses dois povos se tornaram um, e combateram incessantemente os

invasores. Tiveram a alegria de também poder contar com entes especiais da origem dos

invasores, também bravos guerreiros, que não concordavam com aquela forma deles se

comportarem, e foram aliados dos povos da mata e combateram juntos em grandes batalhas.

Às vezes, batalhas demoradas e silenciosas.

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O tempo foi passando e unidos, os povos irmãos conseguiram muitos feitos,

ajudaram a libertar os cativos, mas tiveram muitas perdas também, porém, a gente estranha

descobriu que o rio era o ponto de convergência de todo aquele povo, então resolveu jogar

todo tipo de lixo no rio e esse foi ficando fraco, cada dia mais fraco. Já não conseguia nem

respirar direito. Suas águas, de um alaranjado natural tornaram-se turvas como a noite e

fétidas como cadáveres.

Diante dessa situação, o rio fez uma grande assembléia com todos os habitantes de

Yapô Yuca e sugeriu que fugissem, que procurassem outro lugar para morar e continuar a

cuidar do povo, pois ele não teria nenhuma possibilidade de protegê-los naquelas condições

em que se encontrava. Assim, todos aqueles habitantes saíram em busca de outro lugar para

morar, sem, contudo, se afastar daquelas terras, especialmente do rio, que agora necessitava

mais do que nunca deles.

A gente estranha pensou que havia vencido, porém, se deram conta que com o

sofrimento do rio, também eles sofriam, ficavam fracos e vulneráveis, seus filhos ficavam

doentes. Perceberam que morriam juntos com o rio. Contam que até hoje eles não sabem o

que fazer para reverter esse quadro.

Mas o rio continua lá, mesmo sofrendo, continua lá.

E vocês não estão curiosos para saber para onde foi o povo da mata?

Todos caminharam muito a procura de um novo lugar para morar; saíram do rio para

não morrer, mas não queriam abandoná-lo, por isso não se afastaram de lá. Encontraram

então, um ótimo lugar para morar, resolveram habitar na memória, nas lembranças das

pessoas, que se comprometeram em protegê-los. Assim, enquanto as pessoas se lembrarem

e contarem sobre eles, eles estarão vivos, e, enquanto estiverem vivos, povoam as memórias

e o imaginário do povo como força de resistência, pois, são elementos fundamentais da

identidade cultural dos yapoyucanos.

Compomos essa lenda a partir dos relatos colhidos nas entrevistas;

nos esforçamos para ser o mais fiel possível, pois acreditamos que através

dela podemos explicitar de forma sutil e mítica a origem da história de Pojuca,

considerando as crenças das rezadeiras, afinal, como afirma Eliade (2002:

11) “é em razão das intervenções dos Entes Sobrenaturais que o homem é o

que é hoje, um ser mortal, sexuado e cultural”.

Ao longo dessa pesquisa lembranças indígenas foram aflorando,

histórias de caboclos, de encantados e de resistência nas matas foram

ganhando forma e Pojuca que tinha a ancestralidade indígena apenas no

nome, começa a se perceber indígena.

Diversos constituintes da memória africana foram sutilmente

desvelados diante do inevitável processo de lembranças, que a investigação

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da memória das rezadeiras de Pojuca provocou. Assim, mesmo sob couraça

dos discursos da razão, do evangelho, do pentecostalismo ou do catolicismo,

os saberes africanos existem e resistem, pois são intrinsecamente

relacionados com todos os elementos da natureza, sendo assim, da vida.

Assim, as formas de fazer as coisas, a relação com as folhas, os

cuidados com os santos, os banhos, as rezas, a sabedoria, as sensações, as

lembranças... São heranças que agem como elementos constitutivos da

identidade do povo afro-brasileiro, ainda que sob a opressão do racismo, da

cristianização e do elitismo. São sábias as palavras de Gil (2007), quando se

refere às táticas de resistência dos/as africanos/as submetidos ao cativeiro:

Para continuar resistindo, os africanos submetidos ao

cativeiro e seus descendentes tiveram que refazer tudo, refazer linguagens, refazer parentescos, refazer religiões, refazer encontros e celebrações, refazer cultura. Esta foi a verdadeira Grande Refazenda.286

Assim, reconstituir o mito, desenvolver sentimento de pertencimento a

partir da identidade afro-brasileira, preservar a memória, se apropriar da

história e viver criticamente o cotidiano são pressupostos fundamentais para a

construção da resistência necessária para a conquista da plena liberdade.

Nesse momento dois sentimentos se confrontam em nossa mente: o

sentimento de alívio, por concluir mais uma etapa da nossa caminhada

acadêmica e, ao mesmo tempo, o sentimento de angústia por perceber que

não se trata de um trabalho acabado. Há um grande volume de informações

que se transformam em problemas e nos desafia a buscar respostas para

eles. Por isso, não é possível considerar essa pesquisa concluída. Uma parte

dela foi finalizada, mas ainda tem muito o que pesquisar, questionar,

desvendar...

Por exemplo, apesar de parecer óbvio, certamente, precisaremos de

muito aprofundamento para desvelarmos por que há na superfície um

discurso, aparentemente tão bem elaborado, com transferências de

significados dos símbolos, mas nas entranhas da sociedade os símbolos

286 GIL, Gilberto. A grande Refazenda: África e Diáspora pós CIAD II. Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2007, p. 7;

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permanecem com os seus significados originais, se o mito fundador do

município foi modificado?

Também; diante da lógica da generalização da história, baseada na

cultura elevada, por que é do total desconhecimento da população pojucana,

a participação efetiva de pojuca em episódios marcantes da história nacional?

Por último, diante da clara revelação de elementos do conteúdo da

cultura indígena em Pojuca, quais grupos habitaram essa região e como se

deu o processo de permanência desse conteúdo na memória da população

pojucana?

São apenas alguns questionamentos que os resultados dessa

pesquisa fizeram brotar. Não sentimos constrangimento em dizer que a

verdadeira implicação desse trabalho foi a provocação de tantas perguntas,

ou, para ser mais fiel à sua construção textual, a verdadeira contribuição

desse trabalho foi a revelação de tantos caminhos a serem trilhados nas

investigações sobre Pojuca.

Assim, continuar ouvindo as rezadeiras ainda pode render muitas

outras informações e desvelação de heranças ainda secretas.

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Anexos

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Tabela I - Relação das rezadeiras de Pojuca - entrevistadas

NOME IDADE NATURALIDADE ENDEREÇO RELIGIÃO QUINTAL

Aldir dos Santos

Souza (d. Dida)

70

Pojuca

Rua Lino Costa

católica

sim Carlinda C. de Chagas (d. Rozinha)

60 Santa

Bárbara

Rua do Fogo católica sim

Edite dos Reis 67 Olhos

D’Água

Nova Pojuca católica sim

Jardelina Moura Silva

(d. Senhora) 80 Pojuca Rua Dois de

Julho/ Shangrilá católica sim

Laura Alves Costa 81 Pojuca Star católica sim Maria Angelina dos

Santos (d. Nezinha) 69 Salvador Pojuca Nova espírita não

Maria Batista (d. Bió) 72 Serrinha Pojuca Nova batista sim Maria José Cardoso

Ferreira (d. Djão) 74 Pojuca Shangri-lá católica sim

Maria José Nunes de

Jesus (d. Zezé) entre 98

e 105

Catu Retiro católica sim

Maria Zilda Moura

Nonato 72 Pojuca Shangri-lá católica sim

Raimunda dos Santos 58 Catu Retiro católica sim Rita 58 ? Los Angeles católica sim Valdelice Machado dos

Santos (d. Bia) 66 Catu Pojuca Nova católica sim

Obs. As linhas em destaque correspondem aos dados das rezadeiras que compõem o quadro dos sujeitos sociais da pesquisa.

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Tabela II – Outras rezadeiras de Pojuca NOME ENDEREÇO

D. Alaíde Vitória

D. Cândida Los Angeles

D. Cotinha Cruzeiro (tornou-se evangélica –

faleceu pouco antes da data

marcada para primeira entrevista)

D. Domingas 29 de Julho

D. Helena Antonio Mota

D. Joana Eliza Corujão

D. Júlia Pojuca Nova

D. Lídia Star

D. Lourdes Pojuca Nova

D. Maura Shangrilá (tornou-se evangélica)

D. Zefa Central

D. Zefa Embira Branca

Sr. Arlindo Pau D’arco

Sr. Mundinho Santiago

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Tabela III - Outras pessoas entrevistadas NOME REFERÊNCIA

Antonieta dos Santos Pinto (d.

Quita)

89 anos – moradora de Catu – informações sobre os jejes.

Helena 99 anos (falecida)

Luís Claudio Vasconcelos de Aguiar 58 anos – herdeiro do engenho São José do Caboclo, que pertencia ao barão de Pojuca.

Maria Arlinda dos Santos (d. Lindu) 98 anos – organiza bumba-meu-boi desde os dez anos de idade.

Sidney Marcos Ferreira de Avelar Gerente de cultura do município de Pojuca

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Tabela IV – Espaços e práticas de conteúdo do legado africano em Pojuca.

RELIGIÃO

GRUPOS/ ORGANIZAÇÕES

CULINÁRIA

FESTAS /MANIFESTAÇÕES

Espaços de culto atuais: Casa de d. Joana – Central; Casa de d. Elza (Nenzinha) – Ladeira do Dendê; Casa de d. Ângela – Pojuca Nova; Casa do Sr. João – Pojuca Nova

Espaços atuais: ACAP – Associação do Culto Afro de Pojuca; Academia de Capoeira Zumbiacongo;

Cinco pontos fixos de venda de acarajé: 2 na Pojuca Nova, 1 no cruzeiro; 12 no centro, 1 na Star e 2 na feira em dias de sexta e sábado.

Atuais Bumba-meu-boi (d. Lindu) – Shangri-la; De 3 a cinco grupos de Samba de viola, entre sede e zona rural;

Espaços de culto desativados: Barracão de d. Odete (falecida) – Wanderlino Nogueira; Barracão de João Borges (falecido) – Antonio Mota; Casa de d. Loló (falecida) – Pojuca Nova; Casa de d. Lourdes (falecida) Casa de Juvêncio (falecido) – Antonio Mota; Barracão de d. Ernestina/ Faterinha (deixou de bater) – Beira Rio/ 29 de Julho. Barracão de d. Ormina (falecida) – às margens da ponte velha Terreiro (?) – Shangri-lá

Não existem mais Movimento Cultural de Pojuca; Associação do Reggar de Pojuca; Escola de Samba Descendo o Morro; Baianas

Não vendem mais: d. Odete (falecida); d. Avani (deixou de vender) d. Dolores (deixou de vender)

Bumba-meu-boi (se. Carapeta) – Pau Dárco. Parou pois o responsável encontra-se muito doente; Bumba-meu-boi (Sr. Pedro) – Shangri-la – deixou de fazer; Lavagem das escadarias da Igreja com baianas a caráter; Semana da Consciência Negra – Os grupos que realizavam não existem mais.

Locais de oferendas: Encruzilhada do cemitério; Entrada da cidade.

Nos pontos comerciais é comum a venda de “comida baiana nas sextas-feiras.

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Vestígios da capela da Purificação – Fazenda São José dos Caboclos

D. Djão, 74 anos, colhendo folhas, em 02/06/2010.

Altar de Santo Antonio na casa de d. Zilda, 72 anos, em 13/06/2005.

Vestígios da capela da Purificação – Fazenda São José dos Caboclos. Em 13/06/2010.

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A lagoa encantada – águas turvas – leito completamente poluído. Em, 02/06/2010.

Símbolo da Petrobrás. Entrada de Pojuca. Em, 13/06/2010.

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