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Claudio Willer - Entrevista Para Revista Zúnai - Sobre o Livros ESTRANHAS EXPERIÊNCIAS

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01/02/2015  ZUNÁI Revista de Poesia & Debates

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UMA CONVERSA COM CLAUDIO WILLER 

Claudio Willer

  

Chiu Yi Chih Zunái: É um imenso prazer conversar com você, Willer. Podemos começar falando um poucosobre seu livro recentemente publicado Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e poesiamoderna (Ed. Civilização Brasileira, 2010). Comentando sobre o papiro encontrado nabiblioteca Nag Hammadi, texto da Antiguidade tardia, “O trovão – Intelecto perfeito”, olivro revela de modo extraordinário que a linguagem das antinomias e dos paradoxos erautilizada nos textos gnósticos (“Pois eu sou a primeira: e a última / Sou eu a venerada: e adesprezada. Sou eu a meretriz: e a santa...) e transparece em doutrinas orientais comoreligião védica, budismo e taoísmo. De certo modo, essa linguagem regida pelo princípio daanalogia ataca os princípios lógicos da identidade e não‐contradição presentes na nossa visãode mundo ocidental. É impressionante como tal princípio de associação dos contráriosreaparece nos místicos (São João da Cruz) e na cosmovisão de poetas da modernidade(Baudelaire, Stefan George). Essa descoberta é interessantíssima. Gostaria que vocêcomentasse sobre esse confronto, sobre essas duas visões de mundo.  Willer: Comentar? Mas isso daria outro livro... Aliás, tenho um ensaio, semipronto, sobreessas antinomias e a conexão misticismo‐poesia. Vai dar livro. É o capítulo 4 de Um obscuroencanto detalhado, desenvolvido. Vou desde textos arcaicos, inclusive “O trovão – Intelectoperfeito”, que analiso em maior detalhe, passando por místicos, Rumi, São João da Cruz eoutros, até poetas modernos e atuais; até Roberto Piva e Herberto Helder. O que é expressãode místicos vai reaparecer, mais tarde, como expressão de uma rebelião romântica. Achointeressantes as observações de Octavio Paz, sobre a idéia de identidade dos contrários, emvez de oposição, ser dominante no Oriente e marginal no Ocidente. Será? Não terá elegeneralizado? Oriente é plural. De qualquer modo, essa episteme (sim, Foucault de As

 

 

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palavras e as coisas) se faz presente, no ocidente em uma espécie de conexão ou circuito damagia, misticismo e poesia. É o “contradiscurso” de que fala Foucault.   Zunái: Um obscuro encanto complementa algumas ideias já presentes no seu livro Volta (Ed.Iluminuras, 1996), como por exemplo, aquela visão heterodoxa, xamânica, visionária e não‐cerebral da poesia? Nesse aspecto, há continuidades, novas descobertas (teóricas e práticas),indagações, revelações?  Willer: Muito bem observado. Relendo Volta, reparei no seguinte: os dois capítulos finais,relatos de um episódio que realmente aconteceu, uma palestra que dei em um encontro deocultistas na Câmara Municipal de São Paulo em 1987, já são uma sinopse da minha tese,daquilo que 20 anos mais tarde eu apresentaria como tese de doutorado...! Sou circular, vouretomando temas – Hilda Hilst, por exemplo, já havia observado gnosticismo na obra dela emuma resenha que publiquei em 1987 – mas de modo progressivo, aprofundando (oucomplicando) a cada etapa. Escrever ensaio e narrativa em prosa é, para mim, não um modode afirmar, mas de perguntar – vou expondo, apresentando no texto aquilo que desejo saber,esperando que a escrita me traga respostas, e isso me torna uma espécie de precursor demim mesmo. Foi o que aconteceu na relação entre Volta e minha tese – e também desselivro, com minha insistência no acaso objetivo, e terem‐me convidado a escrever sobreacaso objetivo em 2004, no ensaio que saiu pela Perspectiva, em O surrealismo. Agora,tenho pronto um ensaio extenso, 170 pgs, Geração beat e místicas da transgressão, em quefaço paralelos entre os beats e rebeliões religiosas medievais. É uma continuação ouampliação, ao mesmo tempo, de Geração Beat, de 2009, e Um obscuro encanto, de 2010.Esse ensaio aguarda materialização de editor – logo ocorrerá, creio.   Zunái: No capítulo do livro que introduz essa perspectiva gnóstica na leitura dos escritores,William Blake pode ser considerado como poeta gnóstico por excelência e deveria ser lido àluz das observações de André Breton publicadas em “Le méssage automatique” em que se dizque “a percepção e a representação – que para o adulto ordinário parecem opor‐se demaneira tão radical”‐ não devem ser tidas senão como produtos de uma dissociação de umafaculdade única, original, da qual a imagem eidética dá conta e da qual se reencontramtraços entre os primitivos e as crianças” (p.222).  Segundo sua leitura,  há vários “Blakes”(apocalíptico, panteísta, místico, Blake cultuado pelos beats) e é por isso que sua análiseescapa de certos reducionismos literários. Qual é a ideia fundamental que se encontra pordetrás dessa leitura não‐cartesiana e que atravessa todo o percurso do livro?  Willer: Chiu, você está fazendo questão de publicar a mais aprofundada das entrevistas quejá fizeram comigo.... Idéia? Mais que idéia, expressão – a manifestação do meu espanto porconstatar como Blake é enorme, que imenso profeta ele foi, como já está tudo lá, na obradele. Ginsberg já havia tido essa percepção. Provavelmente, antes dele, W. B. Yeats –lembrando que Yeats foi um dos responsáveis pela descoberta e valorização tardia de Blake;foi o primeiro a publicar, em 1893, uma boa edição reunindo sua obra. Tive ocasião de lerum livro, Yeats’s Golden Dawn de George Mills Harper, com os registros da sua participaçãoem polêmicas na ordem esotérica da qual fazia parte, a Golden Dawn. Observei que Yeatstomava Blake como paradigma de sua cosmovisão, situando‐o acima de suas fontesespecificamente ocultistas, em seus textos sobre esoterismo, como “Is the Order of R.R. &A.C. to remain a Magical Order?” A poesia como um conhecimento superior.   Zunái:  Sob esse prisma, você diz que, em Blake, a visão dos profetas e do irmão falecido,entre outras coisas, tanto quanto a sua obra poética se referem à mesma faculdade depercepção que supera a “dicotomia entre o mundo subjetivo e objetivo, comum aos médiunse os poetas e aos místicos.” E, no seu livro Geração Beat (Ed.LP&M, 2009), você relata queAllen Ginsberg teve a “iluminação auditiva da voz de William Blake simultaneamente com avisão da eternidade. Foi em 1948, ele ouviu uma voz, que seria a do próprio Blake, dizendo opoema que lia, ‘Ah! Girassol de Canções da Experiência’. Nesse caso, a percepção visionáriae obra poética se convergem na criação de uma obra?      Willer: São os momentos de superação da contradição entre sujeito e objeto, ou entresubjetividade e objetividade. Confirmações do que Breton havia dito: “Tudo indica aexistência de um certo ponto do espírito, onde vida e morte, real e imaginário, passado efuturo, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo, cessem de ser percebidos como

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contraditórios.” E, antes de Breton, Baudelaire: “O que é a arte pura segundo a concepçãomoderna? É criar a magia sugestiva que contenha ao mesmo tempo o objeto e o sujeito, omundo exterior ao artista e o próprio artista.” O mesmo que Rimbaud entendia por vidência.E que também está em Novalis, em Schelling, em Hegel, essa idéia da superação dacontradição de sujeito e objeto – você, que estudou filosofia, sabe disso. Nas ocorrências doacaso objetivo – tratado adiante nesta entrevista – essa superação se realiza.   Zunái:   Lautréamont e Antonin Artaud, segundo o seu livro, são autores que manifestamcaracterísticas esotéricas e gnósticas na literatura. Eles mobilizavam certas forças darealidade à semelhança de magos e videntes. No seu outro livro Volta, você diz que ambos ‐o poeta e o mago – operam com a magia propiciatória no sentido de serem capazes deprofetizar o futuro e atuarem na realidade simbólica, mas enquanto o segundo procuradominar o cosmos, o primeiro se entrega às forças da linguagem poética. Em que medida sedá essa semelhança entre o poeta e o mago?  Willer: Justamente nessa medida. Lembro as observações de Octavio Paz em O arco e a lira: 

A operação poética não é diferente do conjuro, do feitiço e de outros processos demagia. A atitude do poeta tem muita semelhança com a do mago. Ambos usam oprincípio da analogia; ambos agem com fins utilitários e imediatos; não seperguntam o que é o idioma ou a natureza, mas servem‐se deles para seus própriosfins. Não é difícil acrescentar outra característica: magos e poetas,diferentemente de filósofos, técnicos e sábios, extraem seus poderes de simesmos. 

 E mais: 

Toda operação mágica requer uma força interior, conseguida através de umpenoso esforço de purificação. As fontes do poder mágico são duplas: as fórmulas edemais métodos de encantamento, e a força psíquica do encantador, a afinaçãoespiritual que lhe permite fazer concordar seu ritmo com o do cosmos. O mesmo severifica com o poeta. A linguagem do poema está nele e só nele se revela. Arevelação poética pressupõe uma busca interior. Busca que em nada se assemelhaà análise ou à introspecção; mais que busca, atividade psíquica capaz de provocara passagem propícia ao surgimento de imagens.  

Segundo Octavio Paz, o mago é solitário, o poeta comunica‐se. Nem tanto, penso – magosprecisam da egrégora, de uma comunidade.   Zunái: Essa visão “mágica” da linguagem na literatura e nas artes em geral é revolucionáriase pensarmos que ela traz consigo uma postura libertária, crítica e existencial diante domundo. Nesse sentido, a atitude da rebeldia dos jovens nos anos 60 e 70 (incluindo a de seucírculo de amigos como Piva, Bicelli, etc.) foi profundamente decisiva para astransformações culturais que viriam depois. Pensando nesse nosso mundo complexo dehibridizações, agenciamentos múltiplos e desterritorializações contínuas, o que significa ser“rebelde” hoje e quais seriam suas implicações estéticas e políticas para o mundocontemporâneo?  Willer: Fomos decisivos para as transformações que viriam depois? Quais transformações? Éclaro que muita coisa mudou para melhor, vivemos em uma sociedade mais aberta, careticenos anos de 1950 a 60 era insuportável. Mas, por enquanto, somos lidos – de um tempo paracá, há mais leitores. E interlocutores, autores novos que dialogam com o que escrevemos.Você é um excelente exemplo, há outros. Evidentemente, isso atesta renovação da poesiabrasileira, mostra que algo se move, que alguma coisa de bom está acontecendo. Daí a falarem transformações do mundo ainda vai, infelizmente, uma boa distância. Espero que minhasprofecias de uma rebelião de poetas transformando o mundo (falo mais disso na resposta àúltima das suas perguntas) se realize.   Zunái:   Pensando nisso, Willer, em relação ao seu primeiro livro Anotações para umApocalipse, como foi concebido, escrito e organizado? Qual foi impacto dele na época emque surgiu, levando em conta o ambiente cultural‐político do país, já que o livro foi

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publicado em 1964? O que significou particularmente para você?  Willer: Já usei a expressão “periferia rebelde”, referindo‐me ao nosso grupo de amigos, nocontexto da geração “Novíssimos” de 1960. Virou título de uma dissertação, pioneira, sobrePiva (Roberto Piva e a periferia rebelde, de Thiago de Almeida Noya). Pois bem: por umbom tempo – algumas décadas, diria – algo como Anotações para um Apocalipse circulouespecificamente no âmbito da periferia rebelde. Teve leitores – pessoas que de algum modose identificavam àquela periferia. Mas dá para contar nos dedos (estranho: o que houve comaquela tiragem, acredito que 1.500 exemplares?). Passei a ser mais lido na década de 1980.Piva sempre teve leitores, mas uma recepção compatível com sua importância é algo queocorreu a partir de 2000 (“O século 21 me dará razão”, ele escreveu na década de 1980). Como foi concebido? Não foi propriamente “concebido” – Massao Ohno, como já relatei emoutras ocasiões, pronunciou aquele fulminante “Willer, quero te publicar!” – juntei algunspoemas em prosa, os que me pareceram melhores no que vinha escrevendo, e isso logodepois daquela fase de engavetar poemas definitivamente, por serem incipientes, e aindaescrevi e acrescentei um manifesto, uma proclamação de rebelião muito inspirada emleituras simultâneas de Breton e Ginsberg.   Zunái: Esse livro foi prefaciado pelo poeta e grande xamã da nossa cultura subversiva,Roberto Piva, interlocutor fundamental para sua trajetória. Considerando essa troca deleituras, vivências e referências poéticas, o que os ligava de maneira mais intensa nessaaproximação intelectual?  Willer: Tinha que ter perguntado isso ao Piva... Ele me escolheu como amigo e interlocutor.Que fonte, não só de informação, mas de excelentes indicações de leituras. Era certeiro. Eisso, até o fim. Por volta de 2000: “Willer, na Livraria Cultura tem a História da filosofiaoculta, de Alexandrian! Tem que ler!”. Dois ou três anos depois, “Willer, tem um livroótimo, A literatura e os deuses, de Roberto Calasso! (já comentei que o Piva falado tem queser grafado com um ponto de exclamação após cada frase, era incisivo) E lia‐me aotelefone, encantado, trechos do capítulo de Calasso sobre Lautréamont, intitulado“Reflexões de um serial killer”. Os dois estão em Um obscuro encanto – Calasso, no capítulosobre Mallarmé, e Alexandrian, inspirando‐me o projeto todo da tese, a idéia do gnosticismocomo ponto de partida do ocultismo ocidental. Ainda relataria muitos episódios assim, entre 1960 e 2009. “Willer, na livraria Lorca tem aedição portuguesa de O amor louco de Breton!” Meio século de diálogo. Ele mencionounossas conversas no posfácio de seu Piazzas e no prefácio do meu Anotações para umApocalipse. Tem aquele poema lindo dedicado a mim, “Equinóxio do oitavo andarcarbonizado”, em Abra os olhos e diga Ah!, ressoando ou antecipando o tipo de cultura deresistência em que nos envolvíamos em meados da década de 1970. E aquela imagem lindaem Quizumba, “Claudio Willer olhando a Lua através do córtex de sua amante”.   Zunái: Você escreveu alguns poemas do seu livro Dias Circulares com Piva. Você podiacontar para nós alguma experiência decisiva daquele período, tendo em vista o cenáriocultural e seus respectivos movimentos poéticos e artísticos? É um poema em Dias Circulares, que escrevemos juntos – mais tarde, Sergio Cohn opublicaria em Azougue, na seleção de poemas que acompanhou uma entrevista comigo. Umatarde, Piva passou em casa, havia uma lauda na máquina de escrever e pusemo‐nos adatilografar aleatoriamente – semelhante a escritas automáticas mas usando a máquina deescrever. Outro, durante um fim de semana no Guarujá em 1977, recentemente coloquei online e sairá em A verdadeira história do século 20. Outro ainda, com Juan Hernandez, ovigoroso poema da espécie humana, “As palavras da tribo”, que publiquei em Jardins daProvocação – já relatei em outras ocasiões as circunstâncias da escrita daquele poema. Hámais, alguma coisa, tenho guardado. Piva era descuidado, displicente com seus originais – perdeu muita coisa. E houve poemaspublicados de modo avulso, mas que ele não se interessou em fazer sair em livros. Uns textosexcelentes – algo disso reapareceu, por exemplo o ousado poema sobre Paulinho Paiakan,voltou à tona em Os dentes da memória. Outro, um vigoroso poema contra tortura de presospolíticos que publiquei no Versus em 1978, esse eu tenho e vou fazer reaparecer. Eu deveriater guardado mais de seus originais, ter atuado como aqueles antigos cronistas daRenascença que iam recolhendo tudo de seu biografado, do personagem que era tema da

 

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crônica. Por volta de 1980, ele escreveu uma prosa poética incrível, a história do cu dogaroto com um lustre enfiado no cu – obviamente, piscava e piscava – peguei o poemaemprestado, li em uma sessão de poesia em um bar em Pinheiros, pessoas se contorciam deriso enquanto eu lia, adoraram, em seguida devolvi, nunca mais vi, sumiu. Na mesma época,tivemos uma festa alucinada na casa de campo de um amigo nosso, Irco, na Represa Billings,juntamos uma multidão, teve de tudo, típica festa beat; Piva, bem chapado, saiu da casa,viu um cão e ao mesmo tempo teve uma visão ou alucinação de que era um centuriãoromano, escreveu algumas linhas – “Nenhum cão claro”, assim começa – um texto forte,simples, sintético – nunca mais vi. Quem sabe, acha‐se algo no que está no acervo dele noInstituto Moreira Salles. Repare que no documentário Antes que eu me esqueça, de JairoFerreira, de 1977, divulguei‐o em meu blog emhttp://claudiowiller.wordpress.com/2011/09/27/%E2%80%9Cantes‐que‐eu‐me‐esqueca%E2%80%9D‐no‐youtube/, Piva lê três poemas: um deles, esse que mencionei contratorturas, os outros dois, ótimos, sumiram, nunca foram publicados. Serão encontrados?Espero que sim.   Zunái: Autores fundamentais como Antonin Artaud, Lautréamont e Allen Ginsberg nemsempre foram reconhecidos pela crítica literária de caráter formalista. No entanto, a suaatividade de tradução extremamente valiosa e seus ensaios críticos permitiram ao públicobrasileiro um conhecimento adequado sobre a obra deles. No Brasil, muitos jovens (inclusiveeu) descobriram novas possibilidades poéticas com a leitura de Lautréamont e AllenGinsberg. Por que acontece frequentemente esse menosprezo da crítica? Isso já estámudando de alguns anos para cá?  Willer: Minhas traduções foram bem recebidas, e por críticos de várias tendências. Adificuldade era com meus poemas e manifestos – mas sempre fui respeitado como tradutor eensaísta. As três, de Artaud, Lautréamont e Ginsberg – na verdade, não só traduções, masorganização de edições, com prefácios, notas e seleção de textos em Artaud e Ginsberg.Todos com reedições, dezenas de milhares de leitores. Trouxeram‐me leitores, gente que viuo que fiz e quis saber mais a meu respeito, ler mais textos meus.  Se algo mudou, foi parapior – há mais leitores, é claro, circulação desses livros, que sempre foi grande, ampliou‐se,mas as páginas em grandes jornais, o que davam então, entre 1980 e final dos anos de 1990,não sei se dariam o mesmo destaque hoje. Que pena, o editor não conseguir renovação doArtaud – como acertei a mão, aquela seleção e apresentações estão valendo até hoje.   Zunái: De que maneira essa poética da “rebelião romântica” (lembrando Os Filhos do Barrode Octavio Paz) provocada por eles e outros poetas mudaram a sua percepção, a sua poesia,a sua crítica literária, e nesse caso, o seu modo de ver o mundo?  Willer: Ou foi o contrário? Sempre, acho, fui um romântico rebelde. Questão detemperamento. Por exemplo, ao ler O arco e a lira de Octavio Paz por volta de 1965: asatisfação por ele dizer, e dizer tão bem, aquilo que eu pensava. Leitura de poetas, desdeRimbaud e Lautréamont até Herberto Helder: constatação de estar lendo textos que eugostaria de ter escrito.   Zunái:  Você diz no seu livro Escritos de Antonin Artaud (Ed. LP&M), que Artaud não nosdeixou um “conjunto de ensinamentos ou de normas estéticas, mas sim uma atitude, umapostura de rebelião radical, de inconformismo e de recusa a compactuar com a nossacivilização” (pág.16). Se analisarmos a sua vida e obra, ambas estavam intimamenteassociadas. Sua escritura era extraordinária, anti‐convencional, blasfematória, “nômade”,transgressiva e vanguardista. Influenciou criadores na área do teatro, da dança e daperformance. Encontramos essa escritura “nômade” também em Rimbaud, Lautréamont,Witold Grombrowicz, Campos de Carvalho, Roberto Piva, Cláudio Willer, Hilda Hilst, sendoque cada autor é uma singularidade inigualável?  Willer: Sim, mas destacando a pluralidade, as enormes diferenças (se não fossem tãodiferentes, não tinha graça, não interessava tanto, é evidente). Artaud me parece o menos“literário” deles todos – linguagem direta, expressão de idéias, sempre de modo passional,pura explosão. O menos estético, digamos assim, o menos lírico, e o mais incandescente.Alguma coisa dele – as Cartas de Rodez, por exemplo – traduzi sentindo como poesia emprosa, acompanhando o ritmo. O restante, procura de precisão na transmissão das idéias, da

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argumentação.   Zunái:  Conheci você em 1996 ao mesmo tempo em que conheci o Piva. Naquela época, euestava com quatorze anos e fazia a oficina do Piva: Poesia e Xamanismo na Funarte. Lembrodos jovens que estavam fazendo a oficina (Gustavo Benini, Sendi, Nilson, Irael e outros) eassisti suas leituras de Ginsberg. Experiências viscerais. Vi também a entrevista que você deupara o Piva nos Encontros Órficos onde foram entrevistados Zé Celso e Antônio Bivar.Impregnado pela energia das leituras que já fazia (Baudelaire, Rimbaud e outros), num diapassei na Livraria Cultura e fui logo surpreendido na prateleira pelo seu Lautréamont: ObraCompleta (Ed.Iluminuras, 1997). Comprei‐o e devorei as páginas imediatamente.Lautréamont foi um marco para mim e tão fundamental que comecei a transcrever trechosno meu caderno e colava‐os na parede. Fiquei “possuído” por algum espírito alucinado (rsss).Entrei em crise. É dessa época o poema Menino Orfeu. Este poema e outros mais recentesdediquei ao Piva no meu livro Naufrágios que inclusive teve seu prefácio. Alías, nesse mesmolivro dediquei a você uma série de poemas como Estudo do Mar Hexaedro, Poliedro ePrometeu. A poesia nasce de uma crise, de um encontro com o maravilhoso, de uma espéciede transe e imersão no inconsciente?  Willer: Os poetas inteligentes acham que não... Acham que tem que “trabalhar” o poema,que poesia é resultado da reflexão e não da emoção. Reflexão e emoção são categoriaspsicológicas, portanto limitadas. Vêm da psicologia positivista. Psicanálise nos leva adesconfiar que há mais, muito mais, subjazendo não só á criação poética, mas a todaexpressão simbólica. Quantos relatos já temos – que os poetas inteligentes desconsideram –de criações em estados visionários, de transe ou próximos ao transe. Nunca cheguei a colarna parede, mas basicamente minha criação é assim, pelo entusiasmo, suscitado por umaleitura, por algo que acontece ou por ambos; por experiências do maravilhoso. Já quefalamos do Piva: era espontâneo, sua escrita era direta, de inspiração – tive acesso a seusmanuscritos, o que ele rasurou é o que depois descartou.   Zunái: Você conta experiências de “acaso objetivo” reportando‐se às suas vivências eleituras no seu maravilhoso livro Volta, e de fato aconteceu comigo quando estava fazendosua oficina em 2008. Você nos indicava várias leituras, dentre as quais, Nadja de AndréBreton, e logo depois eu vi três vezes esse nome Nadja em intervalos muito próximos: oprimeiro num pára‐brisa de caminhão quando estava numa estrada indo da minha casa para ocentro de Embu das Artes, o segundo numa placa de sinalização na periferia do Embu e oterceiro numa loja de roupa aqui em São Paulo. São esses acontecimentos de sincronicidadeonde as fronteiras do sonho e da realidade se comunicam que despertavam a imaginação dospoetas surrealistas como André Breton. Quando estamos em processo de criação, é como seabrisse uma brecha na realidade. Gostaria que falasse sobre essa ruptura dos limites no seuprocesso de escrita.  Willer: Magnífico! Só faltou uma coisa: você fotografar cada uma dessas Nadjas, dessasaparições de Nadja. Que beleza – esse seu relato, transformei‐o em publicação em meu blog,convidando outros a participar – está emhttp://claudiowiller.wordpress.com/2012/05/25/acaso‐objetivo/ Enquete no melhor estilosurrealista. Já tem 20 relatos, e ainda quero ampliar, você pode trazer outros testemunhosde casos assim.   Zunái: No início do século XX, quando o surrealismo apareceu no horizonte das artes, algunsartistas do movimento modernista já o vinham assimilando como Tarsila do Amaral e Oswaldde Andrade. Contudo, mesmo entre os modernistas, havia uma certa desconfiança emrelação ao surrealismo, já que as obras surrealistas pareciam produtos de uma meraarbitrariedade, ora surgidos da inspiração ora nascidos de um irracionalismo total. Noentanto, os artistas plásticos como Flávio de Carvalho e Maria Martins abriram nossos olhosno sentido de uma percepção mais radical e ampliada. E, na literatura, Murilo Mendes eJorge de Lima reinventaram o surrealismo que já estava presente no nosso imagináriobarroco. Os poetas beats também fizeram suas releituras. Como Claudio Willer reinventa omundo e dialoga com essa tradição poética do surrealismo (incluindo a literatura beat)?   Willer: Caretice no âmbito do modernismo brasileiro – e não só pela rejeição do surrealismo.

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Muitos católicos, mais a influência positivista – e um nacionalismo algo estreito, do qual osurrealismo era excluído por ser visto como coisa de fora, estrangeira – fizeram isso comsimbolismo também, como se não estivessem bebendo o tempo todo de fontes européias.Flávio de Carvalho e Maria Martins demoraram para ser reconhecidos, e digo mais, percepçãode sua contribuição é algo em processo, em andamento. Surrealismo em Piva, já escreviensaio a respeito – logo sai publicado – e é só o começo, tenho mais a dizer. Piva, por serpoeta‐leitor, é um permanente convite ao comparatismo literário. Quanto a mim, a relaçãoda minha poesia com surrealismo, acho que isso, mostrar a particularidade dessa relação, étarefa da crítica. Diga você, faça mais leituras willerianas.   Zunái: Willer, estamos chegando ao fim da entrevista. Em janeiro de 2012, você publicouseu ensaio Poesia brasileira: boa safra de 2010‐2011 na REVISTA E SESC‐SP, onde vocêcomenta sobre poetas que não foram percebidos pela crítica, porque “nossos críticoscontinuam preferindo os poetas inteligentes: aqueles racionais, precisos, rarefeitos e bemcomportados. E continuam a lamentar a ausência de novos poetas, sem atentar para o que sepassa ao seu redor”. Há poetas excelentes como Afonso Henriques Neto, Celso de Alencar,Chiu Yi Chih, Augusto de Guimarães Cavalcanti, José Geraldo Neres, Edson Bueno Camargo,Érica Zingano, Renata Huber, Roberta Ferraz, Elizabeth Lorenzotti, Davi Araújo, JosoaldoLima Rego, Andityas Soares de Moura, Abílio Terra, Claufe Rodrigues sobre os quais vocêcomentou nesse ensaio e há outros ainda dos quais poderia falar. Como você enxerga essanova geração de escritores e poetas nessa pluralidade de tendências e manifestações?  Willer: Como você disse, há outros ainda. Peguei o publicado em um biênio, e mesmo assimdeixei bons poetas fora. Tenho mania de profetizar o advento de novos poetas, tomando issocomo acontecimento revolucionário. Veja o que escrevi no final do manifesto de 1976, quesaiu em Dias circulares: “Depois da geração de 22, salvo poucas exceções, tivemos apenasalguns chatos, neoparnasianos, concretistas e preciosidades que tais. Evidentemente, acoexistência do vazio poético e da pobreza e rigidez no pensamento político não são casuais.Há, efetivamente, uma considerável lacuna entre a produção de 22 e a imediatamente após,e o momento em que Roberto Piva começou a praticar estripulias e malabarismos com anossa linguagem, por volta de 1962. Esse vazio, esta lacuna, autorizam a saudar o atual surtode produtividade poética como verdadeira manifestação revolucionária, capaz de influir naordem das coisas, a linguagem reconquistada e reinstaurando‐se com toda a sua força,sintoma e propiciação de algo novo, terrível e grandioso, cantares prenunciando oApocalipse e a Libertação.”Será que desta vez, finalmente, irei emplacar essa profecia? 

  

Claudio Willer é poeta, ensaísta e tradutor. Seus vínculos são com a criação literária maisrebelde e transgressiva, como aquela representada pelo surrealismo e geração beat. Acabade lançar Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e poesia, ensaio (Civilização Brasileira,2010); também publicou Geração Beat (L&PM Pocket, coleção Encyclopaedia, 2009);Estranhas Experiências, poesia (Lamparina, 2004); Volta, narrativa (terceira edição em2004); Lautréamont ‐ Os Cantos de Maldoror, Poesias e Cartas (Iluminuras, nova edição em2008) e Uivo e outros poemas de Allen Ginsberg (L&PM Pocket, nova edição em 2010). Tevepublicados, também, Poemas para leer en voz alta (Andrómeda, Costa Rica, 2007) e ensaiosna coletânea Surrealismo (Perspectiva, 2008). É autor de outros livros de poesia – Anotaçõespara um Apocalipse, Dias Circulares e Jardins da Provocação – e da coletânea Escritos deAntonin Artaud, esgotados. Poemas publicados em antologias e periódicos literários, no Brasile em vários outros países. Presidiu por vários mandatos a UBE, União Brasileira de Escritores.Trabalhou em administração cultural, inclusive como Coordenador da Formação Cultural naSecretaria Municipal de Cultura (1993‐2001) Doutor em Letras na USP com Um obscuroencanto: gnose, gnosticismo e a poesia moderna (2008), faz pós‐doutorado na USP sobreReligiões Estranhas, Hermetismo e Poesia. Coordena oficinas literárias; ministra cursos epalestras sobre poesia e criação literária. Prepara um livro sobre surrealismo e umacoletânea de ensaios sobre misticismo e poesia: http://claudiowiller.wordpress.com/  Leia também poemas de Claudio Willer.

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Page 8: Claudio Willer - Entrevista Para Revista Zúnai - Sobre o Livros ESTRANHAS EXPERIÊNCIAS

01/02/2015  ZUNÁI Revista de Poesia & Debates

http://www.revistazunai.com/entrevistas/claudio_willer.htm 8/8

 

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