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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros SOTTA, CP. Das letras às telas: a tradução intersemiótica de ensaio sobre a cegueira [online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2015, 249 p. ISBN 978-85-7983-710-4. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>. All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International license. Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribição 4.0. Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento 4.0. Das letras às telas a tradução intersemiótica de ensaio sobre a cegueira Cleomar Pinheiro Sotta

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Das letras às telas a tradução intersemiótica de ensaio sobre a cegueira

Cleomar Pinheiro Sotta

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DAS LETRAS ÀS TELASA TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA DE ENSAIO SOBRE A CEGUEIRACLEOMAR PINHEIRO SOTTA

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Das letras às telas

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CONSELHO EDITORIAL ACADÊMICO

Responsável pela publicação desta obra

Álvaro Santos Simões Junior

Benedito Antunes

Carlos Eduardo Mendes de Moraes

Daniela Mantarro Callipo

Maira Angélica Pandolfi

Sandra Aparecida Ferreira

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CLEOMAR PINHEIRO SOTTA

Das letras às telas

A trAdução intersemióticA de ensAio sobre A cegueirA

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© 2015 Editora Unesp

Cultura Acadêmica Praça da Sé, 108 01001-900 – São Paulo – SP Tel.: (0xx11) 3242-7171 Fax: (0xx11) 3242-7172 www.culturaacademica.com.br [email protected]

CIP – BRASIL. Catalogação na Publicação Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

S693d

Sotta, Cleomar Pinheiro

Das letras às telas [recurso eletrônico]: a tradução intersemiótica de ensaio sobre a cegueira / Cleomar Pinheiro Sotta. – 1. ed. – São Paulo: Cultura Acadêmica, 2015.

recurso digital

Formato: epub

Requisitos do sistema: Adobe Acrobat Reader

Modo de acesso: World Wide Web

Inclui bibliografia

ISBN 978-85-7983-710-4 (recurso eletrônico)

1. Educação – Brasil. 2. Professores – Formação. 3. Livros eletrônicos. I. Título.

15-28939 CDD: 370.1

CDU: 37.02

Este livro é publicado pelo Programa de Publicações Digitais da Pró-Reitoria de Pós-Graduação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp)

Editora afiliada:

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À minha família, meu alicerce.

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Olhar, ver e reparar são maneiras distintas de usar o órgão da vista, cada qual com a sua intensidade própria, até nas degenerações, por exemplo, olhar sem ver, quando uma pessoa se

encontra ensimesmada [...], ou ver e não dar por isso, se os olhos por cansaço ou fastio se de-fendem de sobrecargas incômodas. Só o reparar

pode chegar a ser visão plena, quando num pon-to determinado ou sucessivamente a atenção se

concentra, o que tanto sucederá por efeito duma deliberação da vontade quanto por uma espécie

de estado sinestésico involuntário em que o visto solicita ser visto novamente, assim se passando

de uma sensação a outra, retendo, arrastando o olhar [...]

José Saramago

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AgrAdecimentos

Meus sinceros agradecimentos a todos que contribuíram de alguma forma para o desenvolvimento deste livro:

A Deus, que me ajudou a superar as dificuldades e chegar até aqui.

À minha família: meus pais, pelo amor incondicional, compreen-são e apoio emocional; meus irmãos, pelo incentivo e pela torcida; e meus sobrinhos, que divertem os meus dias.

À minha orientadora, Dra. Sandra Aparecida Ferreira, por ter acreditado em mim, pelo profissionalismo exemplar, pela amizade, generosidade e paciência.

Aos professores Dr. Antônio Roberto Esteves, Dr. Márcio Ro-berto Pereira e Dr. Edvaldo Aparecido Bérgamo, pela leitura aten-ta deste trabalho e por todas as enriquecedoras considerações e sugestões.

Aos meus colegas de trabalho da Biblioteca da Faculdade de Ciências e Letras de Assis, pelo apoio e motivação; aos funcionários da Seção de Pós-Graduação, pela disposição e presteza no atendi-mento, e à Sônia, secretária do Departamento de Linguística, pela gentileza com que sempre me recebeu.

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Aos catequistas da Capela São João Batista, pelas orações e pelos bons momentos de descontração, e à pastora Idalina, por todas as vezes que orou por mim, principalmente nos momentos de desânimo.

Aos professores apaixonados pela profissão que passaram por minha vida, despertando em mim a vontade de tornar-me também um educador.

Aos meus amigos, com quem pude partilhar alegrias, angústias e medos e, por fim, a todas as pessoas que colaboraram com um sorriso, uma saudação ou com palavras de encorajamento.

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sumário

Prefácio 13Introdução 17

1 Imagens escritas 232 As imagens na ausência da visão 493 A literatura e o cinema: convergências e divergências 155

Considerações finais 231Referências 241

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Prefácio

Ensaio sobre a Cegueira (1995) representa uma inflexão no modo de compor de José Saramago. O autor de O Ano da Morte de Ricar-do Reis passa da prosa meta-historiográfica à alegorizante, fazendo reverberar ainda mais em sua ficção o sentimento do mundo. A partir de Ensaio sobre a Cegueira, seus romances sucessivos manti-veram em perspectiva a relação entre estética e ética, decorrente do comprometimento de José Saramago com a História, acentuando, porém, seu compromisso primacial com a literatura.

A adaptação cinematográfica, intitulada Blindness (2008), diri-gida por Fernando Meirelles, escandalizou espectadores, em razão da crueza de algumas situações narrativas. Comoveu-os também. A cegueira branca, potente alegoria, lembra-nos de que o artista inventa a história, é criador e não testemunha, mas impede-nos de esquecer que, sendo tantos os conflitos (guerra, separatismo, ter-rorismo etc.) em vigor, a arte e a vida muitas vezes irmanam-se em apresentar a insanidade como regra na trajetória humana.

É para Ensaio sobre a Cegueira e Blindness que o estudo crítico de Cleomar Pinheiro Sotta se volta, com o propósito de analisar o diá-logo entre o romance de Saramago e o filme de Meirelles. Para isso,

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14 CLEOMAR PINHEIRO SOTTA

Sotta estabelece um roteiro preciso, que abrange a consideração dos estudos intersemióticos e a centralidade do conceito de imagem nas modalidades artísticas em comparação. Ciente de que as imagens, decisivas para o cineasta, não o são menos para o romancista, apre-senta-as como recursos composicionais dignos da máxima atenção no romance e no filme em pauta.

Sotta demonstra o uso expressivo das imagens no romance de Saramago, considerando figuras de linguagem, alegoria, descrição, personificação, entre outros recursos que evidenciam uma forte atenção ao texto analisado, de modo a não se distanciar de um pres-suposto (o de que os princípios adotados pela crítica literária devem nascer do que os textos literários oferecem) assinalado por Nor-throp Frye, em cuja Anatomia da Crítica Sotta encontra a base me-todológica para a consideração das imagens arquetípicas. No que toca ao filme de Meirelles, lembrando ser a imagem em movimento sua matéria-prima, enfatiza o objetivo comum (contar uma histó-ria) que une literatura e cinema, para estabelecer um harmonioso contraponto entre o romance e o filme, à luz da irretocável epígrafe: “Um filme é uma escritura em imagens” (Jean Cocteau). Com a mesma atenção dedicada à composição do romance de José Sara-mago, considera os recursos de adaptação do filme de Meirelles: es-tratégias para representar a cegueira branca, processos de redução, deslocamento e transformação no roteiro, bem como sonorização, tratamento do tempo-espaço e transposição de personagens.

A clareza argumentativa de Sotta impõe uma invulgar unidade analítica a seu ensaio crítico, graças ao estabelecimento de um centro gravitacional – as imagens demoníacas, apocalípticas e analógicas – que imanta os diversos planos da análise. Essa unidade fica ainda assegurada pela atitude metodológica de investigar os dois objetos analisados como realidades autônomas, mas intercomunicantes. Em razão disso, a competência sensível para evidenciar o alcance das imagens, compostas por Saramago e Meirelles para dar voz e vista ao

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drama humano, faz do trabalho de Cleomar Pinheiro Sotta um guia generoso para ver com nitidez as estruturas estéticas e as questões éti-cas engendradas pelo Ensaio sobre a Cegueira. Afinal, como assinala Fernando Pessoa, “ver será sempre a melhor metáfora de conhecer”.

Sandra Ferreira1

Unesp/Assis

1 Mestre e doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universi-dade de São Paulo, tem pós-doutorado em Teoria Literária pela Universidade de Coimbra. É professora de Literatura Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp, campus de Assis. É autora de Entre a biblioteca e o bordel: a sátira narrativa de Hilário Tácito (2006) e Da estátua à pedra: percursos figu-rativos de José Saramago (2014).

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introdução

Uma das tendências que se tem observado ao longo do tempo é o crescente interesse em investigar o diálogo estabelecido entre as diferentes modalidades artísticas. No passado, alguns estudiosos já haviam atentado para a aproximação existente entre as artes. Em re-lação à similaridade entre as imagens construídas na literatura, mais especificamente nos poemas, e aquelas representadas por meio da pintura, o poeta Horácio (65 a.C.–8 a.C) já apontava em sua Poéti-ca (14-13 a. C), produzida na Antiguidade Clássica, que “como a pintura é a poesia” (ut pictura poesis). Se desde os tempos remotos já era possível perceber a afinidade entre as artes, com o passar dos anos esse relacionamento tem se tornado cada vez mais evidente, na medida em que estamos cercados por obras literárias adaptadas para o cinema e televisão, ficções construídas a partir de persona-gens históricas e acompanhadas de fotografias reais, poemas que originam músicas, a dança que comparece aos espetáculos teatrais, as diversas linhas e formas geométricas antes exclusivas da pintura incorporadas à construção de imóveis e tantas outras aproximações entre artes distintas que poderiam ser enumeradas. É graças a essa profunda inter-relação das diferentes modalidades artísticas que o filósofo francês Étienne Souriau afirma que “Arte são todas as artes” (Souriau, 1983, p.2), definindo de modo abrangente o termo

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18 CLEOMAR PINHEIRO SOTTA

arte como a reunião de todas as formas de manifestação artística (a pintura, a literatura, a dança, a música, a arquitetura, a escultura, o teatro, o cinema, entre outras).

A partir do conceito de intertextualidade, definido por Gérard Genette como “uma relação de copresença entre dois ou vários textos [...], presença efetiva de um texto em outro” (Genette, 2010, p.14) e, principalmente, com o surgimento das pesquisas de Lite-ratura Comparada, essa investigação da irmandade entre as artes foi sistematizada. Como a literatura não dialogava apenas consigo mesma e as demais artes também mantinham contato umas com as outras, iniciaram-se os estudos interartes, responsáveis por obser-var as relações estabelecidas entre as distintas modalidades artísti-cas, a fim de contribuir para a compreensão do fenômeno estético como um todo. Na concepção de Mario Praz,

[...] a ideia de artes irmãs está tão enraizada na mente humana desde a Antiguidade remota, que deve nela haver algo mais profundo que a mera especulação, algo que apaixona e que se recusa a ser leviana-mente negligenciado. Poder-se-ia mesmo dizer que, com sondar essa misteriosa relação, os homens julgam poder chegar mais perto de todo fenômeno da inspiração artística (Praz, 1982, p.1).

Sob essa perspectiva, uma ampla visão do que seja a arte é reali-zada por meio do conhecimento das distintas manifestações estéti-cas, das aproximações e especificidades de cada uma delas. A cada dia os estudos comparativos das artes têm aumentado o seu espaço, uma vez que o diálogo entre elas tem sido um dos frequentes re-cursos utilizados na composição de obras da modernidade, pois, conforme registra Claus Clüver, “o que caracteriza os movimentos modernos são atividades, programas e manifestos partilhados por artistas de vários campos” (Clüver, 2001, p.350).

Ratificando a forte presença do intercâmbio entre as artes em obras da atualidade, Maria do Carmo de Freitas Veneroso declara que,

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[...] não mais preocupada com a pureza formal dos veículos artísti-cos tradicionais, a arte recente volta-se para as ‘impurezas textuais’. O campo da arte mudou na medida em que a separação entre for-mas distintas de expressão (como expressão visual versus expressão literária) já não é mais obedecida (Veneroso, 2005, p.46).

Dessa forma, elementos de dada modalidade artística podem ser aproveitados por outra. Marc Jimenez enfatiza a força desse encontro interartes:

Assistimos a aproximações, a conjunções, a intercâmbios que tendem a abolir divisórias. Tudo acontece como se a vontade de criar elos entre as diferentes práticas artísticas, de associar materiais heterogêneos, de conjugar as práticas artísticas, fosse mais forte do que a preocupação de classificar, de ordenar, de “administrar” o domínio do imaginário e do sensível (Jimenez, 1999, p.103).

Um exemplo bastante comum dessa relação entre as artes está no diálogo que se estabelece entre a literatura e o cinema. Muitas produções cinematográficas tomam como ponto de partida uma obra literária. O que propicia essa aproximação é o fato de que tanto uma narrativa quanto um filme contam uma história. Contudo, a despeito desse traço comum, cada um desses segmentos artísticos possui elementos próprios de expressão. Enquanto a literatura con-siste no trabalho com o signo linguístico, com as palavras, o cinema compõe-se a partir de imagens em movimento cuja construção envolve uma série de fatores: iluminação, cenário, figurino, enqua-dramento da câmera, trilha sonora, entre outros. Portanto, quando uma narrativa literária é transformada em filme ocorre sempre uma tradução intersemiótica (Jakobson, 2010, p.81), isto é, a transposi-ção, nesse caso, dos componentes de um sistema de signos verbais (a literatura) para outro, não verbal (o meio cinematográfico). Essa alteração de suporte faz com que, apesar da semelhança na trama, cada uma das obras – livro e filme – ganhe autonomia, impedindo que uma tenha necessariamente de ser fiel à outra. Nesse sentido,

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20 CLEOMAR PINHEIRO SOTTA

toda adaptação cinematográfica torna-se uma releitura do texto tomado como base.

Com o intuito de verificar como ocorre essa prática, este traba-lho – escrito originalmente como uma dissertação de Mestrado, de-fendida na Faculdade de Ciências e Letras de Assis, em 2014 – tem como propósito examinar a tradução intersemiótica da obra Ensaio sobre a Cegueira (1995), do escritor português José Saramago, adap-tada para o cinema sob a direção do cineasta brasileiro Fernando Meirelles. A narrativa e o filme, cada qual a seu modo, apresentam a seu público um surto de cegueira branca e transmissível, e as con-sequências que a epidemia gera na vida da população de uma cidade não nomeada.

A fim de levar a efeito esse objetivo, o primeiro capítulo oferece uma exposição geral sobre a importância e a utilização de imagens na literatura. Além disso, são apresentadas a definição e as carac-terísticas das três categorias de imagens postuladas pelo crítico literário canadense Northrop Frye, usadas como referencial teórico na análise do romance. Em síntese, esse estudioso destaca que é recorrente na literatura a presença de imagens que são expressão do mundo desejado pelos homens (apocalípticas), do mundo com-pletamente refutado (demoníacas) e de um estado intermediário a esses dois opostos (analógicas). Essas três concepções revelam-se na obra de Saramago, por meio do caos que se estabelece com a perda da visão e do comportamento das personagens, que oscila entre o egoísmo e a solidariedade. Há, ainda, uma breve apresen-tação da narrativa de Saramago e do filme de Meirelles, mostrando o lugar que tais obras ocupam, respectivamente, na carreira do escritor e do cineasta.

O capítulo seguinte é dedicado à análise das imagens que com-põem Ensaio sobre a Cegueira. Subdividido em três blocos, o pri-meiro deles trata do aparecimento da cegueira e de sua caracteriza-ção peculiar, bem como do período em que os infectados são postos em quarentena. São discutidos a escolha do local de recolhimento, a postura do governo, a conduta dos soldados do exército que vigiam os internos, as ações dos cegos malvados, a degradação do manicô-

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DAS LETRAS ÀS TELAS 21

mio e o incêndio que põe fim à reclusão. O segundo item aborda o percurso dos cegos pela cidade. Destacam-se a devastação do espaço urbano, a visita à casa da rapariga, o aspecto demoníaco do reino animal, a passagem da mulher do médico pelo supermercado e pela igreja e a convivência do grupo de cegos hospedado na casa do oftalmologista. O terceiro, por fim, apresenta como finalidade analisar o comportamento das personagens que integram o grupo formado pela mulher do médico. Ao longo desse segundo capítulo, há, inclusive, alguns momentos em que se exibe o diálogo intertex-tual que a obra estabelece com a pintura.

Valendo-se de conceitos extraídos da literatura comparada e dos estudos interartes, o terceiro capítulo discute, em sua abertura, a re-lação entre a literatura e o cinema, destacando-se os traços inerentes a cada uma dessas linguagens, os aspectos envolvidos na intersec-ção entre elas e alguns procedimentos utilizados na produção de uma adaptação cinematográfica a partir de uma obra literária. Em seguida, a análise de Blindness evidencia elementos de composição do filme, aproximações e distanciamentos em relação ao romance de Saramago. Enfatizam-se a representação visual da cegueira, a sonoplastia, a focalização, a transposição das personagens e das referências espaçotemporais. Por último, as considerações finais apresentam as principais linhas de discussão estabelecidas no cotejo entre as duas obras e o papel que exercem as imagens em sua confi-guração temática e estética.

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1 imAgens escritAs

A palavra e a imagem são tão correlativas que sempre se procuram mutuamente. [...] Sempre que alguma coisa é dita ou contada ao ouvido, ela deveria ir igualmente ao encontro dos olhos.

Goethe

As imagens na literatura

A imagem sempre esteve prese55nte na vida dos seres humanos. Antes mesmo da invenção da escrita, os homens pré-históricos uti-lizavam gravuras rupestres para retratar cenas do cotidiano (caça, animais, plantas, rituais, descobertas etc.). Eles já haviam apren-dido que podiam se valer dessas imagens para estabelecer comu-nicação, para registrar suas experiências e seu olhar sobre o que os rodeava.

Com o passar do tempo, o homem descobriu outro meio eficaz para desempenhar o mesmo papel que as imagens. Surgiu a escrita, que lhe propiciava um armazenamento maior de dados e detalhes. As imagens, no entanto, não foram abandonadas, pelo contrário,

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24 CLEOMAR PINHEIRO SOTTA

elas se incorporaram aos registros verbais e ganharam espaço na literatura, na pintura, na escultura, na dança, na fotografia, no ci-nema e também na televisão e na internet.

O termo imagem (do latim imago, áginis: reflexo, máscara, som-bra, alma, fantasia, fantasma), utilizado de forma ampla e variada, quando relacionado à teoria da literatura, é definido por Carlos Ceia como:

Representação mental de uma realidade sensível que funciona como um recurso linguístico em textos literários, quando se faz a associação inconsciente ou indireta de dois mundos ou realidades separadas no tempo e no espaço. Nesta definição estão contidos os dois usos mais comuns da imagem no espaço literário: a possibili-dade de reconstrução mental de uma realidade de que se pretende criar um efeito de verossimilhança e a possibilidade de construção de um discurso feito de analogias e similitudes com padrões conhe-cidos. (Ceia, 2010)

Observando a construção e a utilização de imagens na literatura, Ceia ainda acrescenta que elas ocupam papel fundamental na ela-boração das figuras de linguagem e na associação de ideias:

De um ponto de vista estritamente literário, a imagem participa nos conceitos de metáfora, símile, comparação, alegoria e símbolo e em muitas figuras de pensamento que baseiam a sua capacidade figurativa na criação de imagens. Uma imagem, a rigor, é ao mesmo tempo sempre uma metáfora (aproximação entre duas coisas dife-rentes) e uma descrição (uma relação linguística entre palavras para revelar uma visão do mundo, real ou não real, representável ou irrepresentável pela racionalidade). (Ceia, 2010)

Uma vez que se relacionam com o sentido conotativo dos textos literários, as imagens são capazes de aproximar realidades distintas, produzindo novos e inesperados significados, que vão além das aparências, pois fazem “as palavras dizerem algo diferente de seu

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DAS LETRAS ÀS TELAS 25

estrito valor semântico” (Candido, 1993, p.77). Seu emprego cola-bora, portanto, com a plurissignificação, uma das marcas distinti-vas entre a literatura e outros tipos de discursos:

O texto literário é plurissignificativo ou pluri-isotópico, porque nele o signo linguístico, os sintagmas, os enunciados, as microestru-turas e as macroestruturas são portadores de múltiplas dimensões semânticas, tendem para uma multivalência significativa, fugindo da univocidade característica, por exemplo, dos discursos científico e didáctico e distanciando-se marcadamente, por conseguinte, do que se poderá considerar o “grau zero” da linguagem verbal. (Silva, 1999, p.229)

Gilberto Mendonça Teles complementa esse pensamento e ainda destaca a participação das imagens tanto na forma quanto no conteúdo das obras literárias, ao apontar que

Com a escrita a imagem passou a ocupar o centro da criação poé-tica, introduzindo vários sentidos e representando coisas difíceis de serem ditas de outra maneira. Ela introduz um segundo sen-tido, não literal, metafórico, simbólico ou analógico. E possui o seu “lugar” no discurso, deslizando entre o significante e o significado e atuando na micro- e na macroestrutura, nas duas estruturas do poema ou da narrativa. (Teles, 2006, p.12)

Vale lembrar que, para Ezra Pound (2006, p.63), além dos efei-tos estéticos que podem ser produzidos a partir do som (melopeia) e da combinação de vocábulos (logopeia), pode-se explorar nos tex-tos literários a capacidade que possuem as palavras de evocar um quadro visual (fanopeia). O poeta norte-americano reconhece que a projeção de imagens é, portanto, um dos elementos legítimos da literatura.

A imagem também pode ser responsável por intermediar a rela-ção estabelecida entre o ficcional e o mundo empírico, por conta da impressão de realidade que muitas vezes evoca. Segundo Octavio

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26 CLEOMAR PINHEIRO SOTTA

Paz, as imagens recriam nossa experiência do real, expressam o indizível e “nos dizem algo sobre o mundo e sobre nós mesmos e que esse algo, ainda que pareça um disparate, nos revela de fato o que somos” (Paz, 1982, p.131), proporcionando-nos, dessa forma, inclusive um autoconhecimento.

Depreende-se, por meio dessas elucidações, que as imagens não são fortuitas, não são recursos de que o escritor lança mão apenas para adornar o texto. Elas constituem elementos fundamentais para a estrutura composicional das obras literárias e, por isso, não podem ser descartadas, exigindo um olhar especial. Por meio de sua utilização, estabelece-se um “modo da presença que tende a suprir o contato direto e a manter, juntas, a realidade do objeto em si e a sua existência em nós” (Bosi, 1977, p.13). Sua presença facilita ao leitor a fixação dos textos literários, pois “na imagem, a ideia per-manece sempre infinitamente eficaz e inatingível” (Goethe, 2000, p.188). Além disso, “a imagem pode ser retida e depois suscitada pela reminiscência ou pelo sonho” (Bosi, 1977, p.13).

A construção de imagens por meio da linguagem verbal confir-ma, portanto, a ideia de Diderot de que “o discurso não é tão só um encadeamento de termos enérgicos que expõem o pensamento com força e nobreza, mas também um tecido de hieróglifos amontoados uns sobre outros, que o pintam” (Diderot apud Praz, 1982, p.4).

Para criar imagens, os textos literários exploram com intensi-dade as figuras de linguagem e de pensamento. A comparação e a metáfora, por exemplo, são utilizadas para aproximar duas ideias distintas a partir de um traço comum. Todas as diferenças entre as duas realidades são ofuscadas a fim de fazer sobressair o que de análogo há entre elas. Lembra Stephen Ullmann (1973, p.444) que quanto mais afastadas forem as realidades colocadas em contato, desde que mantendo um elemento comum, mais intenso será o efeito, o estranhamento causado, a desautomatização. Essas duas figuras, por meio da aproximação de elementos, proporcionam com facilidade a projeção de imagens e nos levam, muitas vezes, a ressignificar o que nos cerca, já que os escritores as tomam para expressar “uma percepção intuitiva da semelhança entre coisas des-

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semelhantes” (Bosi, 1977, p.30). Em Ensaio sobre a Cegueira, por causa da imundície em que se encontra o manicômio, os confinados são comparados a porcos habitando um chiqueiro. No fragmento: “Os cegos relincharam, deram patadas no chão, vamos a elas que se faz tarde, berraram alguns” (Saramago, 2008, p.176), ao se atribuir relinchos e patadas ao comportamento dos cegos, cria-se implicita-mente uma associação entre estes últimos com cavalos.

Outro procedimento utilizado para compor imagens é a alego-ria, que se manifesta, segundo João Adolfo Hansen (2006, p.7), quando se “diz b para significar a”, ou, em outras palavras, quando há a utilização de uma ideia para expressar outra, transcendendo, assim, o significado aparente, literal, em favor da expressão de um sentido mais amplo. As fábulas e as parábolas são exemplos de textos alegóricos, pois se utilizam de um enredo para transmitir alguma mensagem, geralmente uma lição de moral. Na narrativa de Saramago em análise, a perda da visão pode ser considerada alegó-rica, pois quer chamar a atenção não para a cegueira física, mas para a cegueira de ordem ética.

A descrição é também um dos mecanismos empregados na cria-ção artística e que pode contribuir para a composição de imagens. As enumerações, o detalhamento das ações e o retrato dos espaços, do tempo e das personagens tornam a história mais verossímil, propiciam a visualização da cena, a fixação de imagens, o aumento da sensibilidade e da capacidade de percepção. As descrições têm como finalidade aproximar o leitor da história, bem como levá-lo a compartilhar dos sentimentos que o narrador está a exprimir. Agregam-se comumente a elas o emprego de adjetivos, compara-ções e impressões sensitivas. Cabe recordar as descrições feitas na narrativa de Saramago das condições hediondas do manicômio ou da cidade.

A ironia, instrumento que, grosso modo, consiste em dizer o contrário do que se pensa, também aparece em Ensaio sobre a Ce-gueira, com o objetivo de estabelecer inúmeras críticas, denúncias e censuras. Outro fator preponderante, que contribui para a constru-ção de imagens é a intertextualidade, o diálogo que uma obra estabe-

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lece com outros textos. No livro de Saramago, notam-se trechos que fazem, entre outros, referência à Bíblia, bem como a alguns quadros de indiscutível valor no cânone ocidental das artes plásticas.

Por meio da prosopopeia ou personificação (atribuição de traços humanos a animais, vegetais ou seres inanimados) ou ainda do seu contrário, a animalização (aparecimento nos seres humanos de características inerentes aos animais) é possível também a projeção de imagens. Pode-se citar na obra literária que é foco deste trabalho o tratamento que se dá ao cão das lágrimas, conferindo-lhe carac-terísticas humanas e, por outro lado, a representação de alguns dos cegos como animais selvagens.

Todos esses procedimentos destacados são escolhidos e conju-gados pelo autor de Ensaio sobre a Cegueira para projetar inúmeras imagens ao longo da narrativa, as quais conferem ao texto um as-pecto plurissignificativo, enriquecem o trabalho com o signo lin-guístico e contribuem para a expressão dos temas abordados, bem como para a configuração estético-estilística da obra.

Anatomia da crítica: corpos escritos em análise

O professor e crítico literário canadense Northrop Frye contri-bui para a reflexão sobre o uso de imagens na literatura em Anatomia da Crítica (1957), ao discutir a função arquetípica que elas podem assumir nos textos. Tal obra é resultante dos esforços do crítico para caracterizar a crítica literária como um campo de investigação científica. Seu objetivo é conceder uma fundamentação teórica aos estudos literários e sistematizar os princípios utilizados pela crítica, combatendo posturas que a concebem como opinião intuitiva, mera divagação ou juízo de valor sem critérios bem definidos.

Na concepção do autor, “a matéria da crítica literária é uma arte, e a crítica evidentemente é uma espécie de arte” (Frye, 1973, p.11). Embora fortemente associada à literatura, a crítica não pode ser considerada uma forma parasitária daquela, pois adquire seu grau de independência na medida em que se constitui como uma

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estrutura de pensamento e saber que possui suas próprias leis e seu próprio discurso.

Frye adverte que os princípios adotados pela crítica literária devem nascer necessariamente do que os textos literários oferecem. Outro cuidado imprescindível ao crítico é não se deixar levar pelo próprio gosto, pela moda da época ou por seus preconceitos.

Com a organização das ferramentas de que a própria teoria da literatura dispõe, o acadêmico canadense acredita ser possível con-ferir aos escritos críticos o toque sistemático e científico de que necessitam e eliminar a crença de que a função do crítico seja “sim-plesmente tomar um poema que um poeta recheou diligentemente com determinado número de belezas ou efeitos. E complacente-mente extraí-los um por um” (Frye, 1973, p.25), o que desconside-ra o trabalho de interpretação e a reflexão sobre o modo como esses diferentes ingredientes se combinam a fim de formar uma massa homogênea.

Para colaborar com os estudos críticos, a obra compõe-se de quatro ensaios, cada um deles dedicado a uma forma diferente de abordagem crítica. No terceiro deles, intitulado Crítica Arquetípi-ca: teoria dos mitos, o autor argumenta que, ao se analisar as ima-gens que perpassam a literatura, é possível perceber que muitas delas são recorrentes, apresentando-se como verdadeiros arqué-tipos, os quais, em sua maioria, seriam resultado de uma herança clássica e cristã.

Além disso, ele assinala que na literatura a ênfase tradicional está posta na representação ou na “semelhança com a vida”, visto que o leitor, ao se deparar com um texto literário, procura estabe-lecer conexões com aquilo que o rodeia, busca aproximações entre aquilo que lê e a sua própria existência. O professor ressalta que “em nossa tradição temos um lugar para a verossimilhança, para a experiência humana imitada de maneira hábil e compatível” (Frye, 1973, p.137).

Congregando, portanto, esses dois fatores – a influência dos textos clássicos e cristãos e a busca por uma representação mais realista – o crítico aponta três modos de organização dos arquétipos

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na literatura. Em primeiro lugar, há a tendência mítica, descrita por Frye como

o mito não deslocado, que geralmente se preocupa com deuses ou demônios, e que toma a forma de dois mundos contrastantes de total identificação metafórica, um desejável e outro indesejável. Esses mundos identificam-se amiúde com os céus e infernos existenciais das religiões contemporâneas de tal literatura. (Frye, 1973, p.141)

No outro extremo está o naturalismo/realismo, quando não há praticamente elementos míticos envolvidos. Por último, há a ten-dência romanesca, que procura integrar ou, ao menos, aproximar esses dois extremos. Pode-se tanto deslocar o mito numa direção humana ou, pelo contrário, conduzir o realismo para uma direção mais idealizada.

Baseando-se, assim, nessa sistematização da invenção literária, o crítico estabeleceu três categorias de imagem – apocalípticas, de-moníacas e analógicas – organizadas em torno de uma metáfora do desejo e da frustração humana.

Tanto as imagens demoníacas quanto as apocalípticas consistem na representação dos dois mundos não deslocados – o apocalíptico e o demoníaco – que formam a tendência mítica. Para auxiliar na caracterização de ambas as categorias imagéticas, Frye se utiliza com frequência da Bíblia, pois acredita que ela é a principal fonte do mito não deslocado em nossa tradição. O professor destaca como se apresentam as esferas divina, humana, animal, vegetal e mineral, bem como a simbologia do fogo e da água quando observadas sob a perspectiva de cada um dos três segmentos: demoníaco, apocalíp-tico e analógico.

As imagens demoníacas exibem um mundo rejeitado completa-mente pelo desejo, “mundo do pesadelo e do bode expiatório, de cativeiro e dor e confusão, […] do trabalho pervertido, ou desola-do, de ruínas e catacumbas, instrumentos de tortura e monumen-tos de insensatez” (Frye, 1973, p.148). Retratam um mundo que ainda não foi modificado pelo trabalho e pela imaginação humana.

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Associam-se à ideia de inferno existencial, que possuem algumas religiões.

Entre suas manifestações encontram-se deuses que exigem obe-diência e sacrifícios dos homens, aplicando-lhe punições; socie-dades que vivem “uma espécie de tensão molecular de egos, uma lealdade ao grupo ou ao chefe que diminui o indivíduo ou, no me-lhor dos casos, contrasta seu prazer com sua obrigação ou honra.” (Frye, 1973, p.149); vítimas fadadas ao sacrifício para dar força aos demais; representações de canibalismo, tortura e mutilação; animais monstruosos ou predadores; florestas aterradoras, jardins misteriosos ou terras desoladas; desertos, rochedos, ruínas e espa-ços que funcionam como prisão, calabouço ou labirinto, ocupados por instrumentos de tortura, armas de guerra e objetos sinistros. O fogo e a água vinculam-se à ideia de destruição, às chamas que tudo consomem ou aos dilúvios e enchentes. Como se pode observar, as imagens demoníacas sempre apresentam uma conotação negativa, uma vez que são expressão de tudo o que seja indesejável aos olhos dos seres humanos.

As imagens apocalípticas são, por sua vez, exatamente o avesso dialético das imagens demoníacas. Se o mundo demoníaco é a re-presentação de tudo que seja indesejável, o mundo apocalíptico, ao contrário, constitui o céu da religião, a plena realização do desejo hu-mano, apresentando uma realidade já modificada pelo trabalho da ci-vilização humana e que, por isso, atinge o estado de um mundo ideal.

Compõem o universo apocalíptico espaços aprazíveis como jar-dins, fazendas, bosques e parques e a presença de animais domés-ticos; templos e edifícios originados da transformação da pedra e que se juntam para fundar cidades; a instituição de uma sociedade fraternal, de maneira que os homens formem um só corpo, inclusi-ve nas relações conjugais, por meio das quais o casal deve tornar-se uma só carne por intermédio do amor. Sob a ótica apocalíptica, o fogo e a luz que produz possuem poder purificador e associam-se à manifestação do mundo espiritual aos homens, como comprovam algumas passagens bíblicas: as línguas de fogo do Pentecostes, a sarça ardente que não se consumia, a brasa utilizada por um se-

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rafim para purificar os lábios de Isaías etc. A água, por sua vez, é símbolo de vida, circula pela terra como o sangue circula no corpo humano, lava, limpa e purifica, crença essa que constitui a essência do rito batismal cristão. Configuradas a partir desses elementos, as imagens apocalípticas são, em resumo, a representação do mundo perfeito, do mundo idealizado, símbolos da realização do desejo humano.

Quanto às imagens analógicas, antes de apresentar sua des-crição, é preciso retomar as ideias de Frye contidas no ensaio de abertura de sua obra, o qual tematiza a crítica histórica e a teoria dos modos. Tomando como ponto de partida o pensamento aristotélico de poesia como imitação de ações, o crítico indica a existência de cinco modos que variam de acordo com a força de atuação dos he-róis e da sua posição em relação ao homem comum e ao meio:

1. Modo mítico: quando o herói é superior em condição aos homens e ao meio, e age como um ser divino, o que é típico dos mitos;

2. Modo da estória romanesca: quando o herói é superior em grau aos homens e ao meio. Nestas condições ele se assemelhará a um ser humano, capaz, porém, de realizar ações maravilhosas, como acontece nas lendas e contos populares;

3. Modo imitativo elevado: nesse caso o herói é superior apenas em grau aos homens e atua como um líder. Essas característi-cas se manifestam na epopeia e na tragédia, por exemplo;

4. Modo imitativo baixo: o herói não é nem superior tampouco inferior aos homens e ao meio. Ele age como um ser humano comum, como se pode notar nas comédias e na ficção realista;

5. Modo irônico: quando o herói é inferior ao homem e ao meio. Aparece geralmente submetido a algum tipo de escravidão, malogro ou situação absurda.

A recuperação dessas informações serve para compreender a afirmação de Frye de que as imagens apocalípticas são bastante adequadas ao modo mítico (já que a personagem principal alcança o que quer graças à superioridade) e que as imagens demoníacas se voltam mais ao modo irônico (por conta da condição subalterna do herói). A representação dos outros três modos intermediários fica a

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cargo das imagens analógicas. No geral, tais imagens se encontram entre os dois mundos extremados – o apocalíptico e o demonía-co – e buscam uma aproximação maior com a experiência huma-na. Contudo, ao atender os modos romanesco, imitativo elevado e imitativo baixo, elas se subdividem em três estruturas, cada uma delas associada a um desses três modos. De acordo com Frye, essas subcategorias “são menos rigorosamente metafóricas; são, antes, como constelações significativas de imagens, as quais, quando se encontram, formam o que amiúde se chama, um tanto debilmente, ‘atmosfera’” (Frye, 1973, p.152).

No modo da estória romanesca, encontramos um mundo onde as frustrações, as ambiguidades e os obstáculos da vida comum pa-recem não existir, de forma que as imagens apresentam “uma con-trapartida humana do mundo apocalíptico, que podemos chamar a analogia da inocência” (Frye, 1973, p.152). Nesse modo, os homens atuam como heróis, heroínas ou vilões, sendo, respectivamente, verdadeiros exemplos de bravura, beleza e vilania. As crianças des-tacam-se entre os seres humanos por serem expressão de inocência, virtude, pureza de coração e virgindade. O simbolismo sexual é marcado pela castidade. Os entes divinos ou espirituais se mani-festam como figuras paternas, anciãos sábios e dotados de poderes mágicos ou espíritos guardiães. Os animais demonstram fidelidade e dedicação. Os ambientes naturais são lugares amenos e possuem um espírito pastoril e rural. Torres, castelos, cabanas e eremité-rios são as principais habitações das cidades. O fogo, nesse mesmo mundo, consiste em um elemento purificante, o qual só pode ser atravessado por pessoas verdadeiramente castas. A água manifesta--se em fontes e remansos, chuvas fertilizadoras ou correntes que separam um homem e uma mulher, a fim de manter a castidade de ambos. Vale lembrar ainda que o mundo inocente é bastante ani-místico, já que espíritos mágicos e elementares o habitam.

Se castidade e magia são as palavras que melhor definem a estru-tura romanesca, amor e forma são as que marcam o mundo imitati-vo elevado, o qual estabelece uma analogia da natureza e da razão. Nessa estrutura, há a “tendência a idealizar os tipos humanos do

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mundo divino e do mundo espiritual, que são característicos do imitativo elevado” (Frye, 1973, p.154). A aura divina é conferi-da ao rei, cuja amada é uma deusa. O amor existente entre eles expressa-se de forma cortês, é educativo e conduz alguém à uni-dade com o mundo espiritual e divino. Os animais dessa estrutura são representações de soberba e beleza, como o pavão, o cisne e a fênix. Jardins formais são justapostos a edifícios. A cidade resume--se à capital, que abriga a corte em seu centro. O fogo, dessa vez metonimizado em brilho, se mostra na coroa do rei e nos olhos de cada dama. A água se expressa no rio disciplinado, pelo qual pode navegar o barco real. Nessa estrutura não há uma descrição de como seria o homem comum, pois o imitativo elevado se forma a partir de seres superiores.

No imitativo baixo, segundo Frye, apresenta-se um mundo que pode ser chamado de analogia da experiência, e que “mantém uma relação para com o mundo demoníaco correspondente à relação do mundo inocente romanesco para com o apocalíptico” (Frye, 1973, p.155). As ideias estruturais centram-se nas palavras gênese e trabalho. Os seres divinos e espirituais ocupam pouco espaço nesse mundo, a fé precisa ser (re)descoberta por meio das obras e do trabalho. As figuras humanas são marcadas por situações comuns e típicas, parodiando em muitas ocasiões a crença em uma vida ide-alizada. Animais e homens assemelham-se, imitam-se e aprendem uns com os outros. O homem por vezes regressa ao primitivismo, à era das cavernas e passa a agir por instinto, como o fazem os ani-mais. Nos espaços naturais, os indivíduos desempenham um fati-gante trabalho com a enxada, lavrando a terra ou executando outras atividades. A cidade apresenta-se como uma moderna metrópole labiríntica, onde existe solidão e falta de comunicação entre os seus habitantes. A água e também o fogo funcionam como símbolos destrutivos, o mar esconde perigos, as chamas consomem tudo o que esteja ao seu alcance.

A ligação entre a analogia da inocência e da experiência, res-pectivamente, com as imagens demoníacas e apocalípticas também aponta, na concepção do crítico, a deslocação em direitura à moral:

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As duas estruturas dialéticas são, fundamentalmente, o desejá-vel e o indesejável. As rodas e o calabouço enquadram-se na visão sinistra, não porque sejam moralmente proibidos, mas porque é impossível fazê-los objeto de desejo. Por outro lado, pode desejar--se a realização sexual, mesmo quando seja moralmente conde-nada. A civilização tende a fazer coincidirem o desejável e o moral. (Frye, 1973, p.156)

Frye observa que as religiões promoveram um deslocamento ético, procurando fazer com que as visões apocalípticas das pes-soas correspondessem àquilo que é moralmente aceitável. Não seria plausível, por exemplo, relatar a criação tal como realizada pela mitologia egípcia, na qual um determinado deus cria o mundo masturbando-se.

A literatura foi intensamente influenciada por essas ideias re-ligiosas, propagando a moral. Por essa razão, as imagens sexuais apocalípticas ganham a forma matrimonial e virginal, enquanto o incesto e o adultério são inseridos no mundo demoníaco. Há mo-mentos, no entanto, em que ocorre uma fuga da moralidade, de modo que a literatura se volta para a expressão do desejo, sem se preocupar com os valores tidos como aceitáveis. Isso acontece, por exemplo, nas sátiras, um gênero aparentemente distante da serie-dade. Nesse sentido, a literatura apresenta flexibilidade diante da moralidade e aceita o que esta e a religião classificam como inde-centes, obscenos, impudicos e blasfemos. Contudo, essas imagens marginalizadas por alguns segmentos precisam ser apresentadas por meio de técnicas de deslocação. O mais simples desses pro-cedimentos, de acordo com o crítico canadense, é o ajustamento demoníaco, que consiste numa inversão das associações morais de arquétipos. Embora cada símbolo ganhe seu sentido dependendo do contexto em que está inserido, todavia algumas relações podem tornar-se habituais, em razão de sua repetição ou força. A serpente figura, quase sempre, como um elemento negativo, por conta de sua atuação no jardim do Éden, porém nada impede que, em certo contexto, ela possa aparecer como um ser inocente. Imagens con-

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vencionalmente demoníacas surgem algumas vezes também como um caminho para a redenção.

Se o mundo apocalíptico apresenta tudo o que é desejável aos homens, cujas vontades “identificam-se com os deuses, adaptam--se a eles ou neles se projetam” (Frye, 1973, p.158), a analogia da inocência exibe também o desejável, mas dessa vez voltado à reali-dade humana, àquilo que pode ser atingido e que é ético. O mundo demoníaco abarca tudo o que seja indesejável, ao passo que a ana-logia da experiência destaca as barreiras que impedem a concreti-zação de seus desejos. As tragédias, por exemplo, acontecimentos duros, mas que precisam ser aceitos, podem ser interpretadas como castigo ou cólera dos deuses, como algo imoral, um gesto de covar-dia, em vez de serem vistas como parte integrante da existência. Todas essas imagens inseridas nos textos permitem que uma obra literária transcenda o caráter meramente histórico que possa conter e apresente sua composição estética.

Essas três tipologias de imagens propostas pelo crítico canaden-se serão utilizadas na análise de Ensaio sobre a Cegueira, apresen-tada no capítulo seguinte. Como se verá, o romance de Saramago contém imagens representativas das três categorias. Abundam no texto, evidentemente, as imagens demoníacas em razão do caos instalado com o surto de cegueira. Contudo, não deixam de ser projetadas também imagens apocalípticas, expressão de um mundo idealizado pelo homem, e imagens analógicas, resultado do com-portamento das personagens que oscilam entre esses dois mundos, um avesso ao outro.

Ensaio sobre a Cegueira e Blindness: uma apresentação

Ensaio sobre a Cegueira (1995) é uma das obras que ocupam lugar de destaque dentro da produção romanesca de Saramago. Descendente de uma humilde família de camponeses da aldeia de Azinhaga, no Ribatejo, o primeiro escritor de língua portuguesa

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contemplado com o Prêmio Nobel de Literatura atuou como ser-ralheiro mecânico, funcionário público, jornalista, editor, tradutor, desenhista, entre outros cargos, antes de se dedicar exclusivamente à literatura. Sua estreia nos meios literários aconteceu com a pu-blicação de Terra do Pecado (1947), romance que não foi bem visto pela crítica, pois, na opinião de Horácio Costa, “o livro apresenta uma notável defasagem estilística, e mesmo temática, em relação à escrita romanesca que então se processava em Portugal” (Costa, 1997, p.28).

Em seus escritos subsequentes, o escritor desenvolveu uma série de experimentações e transitou pelos diversos gêneros literários, produzindo romances, contos, poemas, peças de teatro e escreven-do crônicas jornalísticas, em algumas das quais, comunista que era, deixava aflorar seu forte espírito político. Contudo, ao lançar Levantado do Chão (1980), romance que retrata a luta dos traba-lhadores alentejanos contra a exploração, Saramago passou a adotar um estilo peculiar, que se tornou marca registrada de sua produção romanesca. Subvertendo as regras convencionais de pontuação, ele abandona a utilização de travessões para indicar diálogos e passa a escrever longos parágrafos, nos quais, sem aviso prévio, misturam--se as falas do narrador e das personagens, separadas apenas por meio de uma vírgula e do uso da caixa alta (letra maiúscula) a cada mudança da voz narrativa. O próprio escritor, em entrevista a João Céu e Silva, expressa consciência da guinada que houve em sua carreira com a publicação de tal obra:

Digamos que até os 58 anos eu tinha escrito uns quantos livros, mas não era um escritor! Como é que eu vivia isso tudo, pergunta? Com toda a naturalidade. Eu, no fundo, posso dizer que foram os livros que escrevi que me fizeram. Evidentemente que os escrevi, mas, ao escrevê-los, o livro fazia-me dar uns quantos passos adiante que o livro seguinte confirmaria ou não – isso logo se veria – e, provavelmente, por uma maneira de ser que é a minha, de não me deixar embriagar pelos êxitos nem de ir atrás da banda, de ser por natureza e também por decisão discreto. (Silva, 2008, p.28)

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Esse depoimento reforça o caráter experimental das obras pro-duzidas antes de Levantado do Chão, as quais, em seu, conjunto, constituem o que Costa (1997, p.19) classificou como período for-mativo, momento em que o escritor investigava com qual gênero literário possuía maior afinidade e buscava sua própria forma de expressão.

Para compor Levantado do Chão, Saramago ouviu as histórias de muitos camponeses. No entanto, sem querer recorrer à forma neorrealista, não conseguia encontrar uma maneira de estruturar sua narrativa. Ele revela:

Então comecei a escrever como todo o mundo faz, com tra-vessão, com diálogos, com a pontuação convencional, seguindo a norma dos escritores. Na altura das páginas 24 e 25, e talvez esta seja uma das coisas mais bonitas que me aconteceram desde que comecei a escrever, sem pensar, quase sem dar-me conta, começo a escrever assim: interligando, interconectando o discurso direto e o discurso indireto, passando por cima de todas as regras sintáticas ou de muitas delas. (Arias, 2003, p.74)

A modificação de sua escrita, em sua opinião, possivelmente deve ter se dado por influência do meio camponês, onde a cultura é transmitida predominantemente pela oralidade. Daí a confluên-cia de vozes em seu texto, mimetizando o ritmo da fala. Saramago sentia como se houvesse incorporado o discurso de cada uma das pessoas que ouvira, para ser capaz de contar o que elas lhe haviam narrado. Desde essa obra, o escritor irá abandonar os signos de pontuação indicativos de exclamação e interrogação, deixando ao leitor a tarefa de acrescentá-los, durante o ato da leitura. A partir de Levantado do Chão se configura, portanto, o legítimo narrador saramaguiano, o qual, de acordo com Beatriz Berrini (1998, p.54) se assemelha ao “tradicional contador de histórias”, uma voz sábia, que transmite suas experiências aos ouvintes/leitores, sempre an-siosos por suas palavras. Disso decorre a profunda comunicação entre narrador e leitor que se revela em todos os seus romances.

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Corrobora essa ideia o depoimento do escritor registrado nos Ca-dernos de Lanzarote, uma espécie de diário: “É como narrador oral que me vejo quando escrevo e que as palavras são por mim escritas tanto para serem lidas como para serem ouvidas. Ora, o narrador oral não usa pontuação, fala como se estivesse a compor música” (Saramago, 1998, p.223).

Ao contrário do que se possa pensar, esse estilo peculiar de pon-tuação e o apreço por termos eruditos não afastam o grupo de seus leitores, pertencentes às diversas faixas etárias, o que se explica “porque se limita a tocar nas poucas coisas essenciais, as que afetam diretamente a todos, como a morte, o sentido da vida ou a busca da felicidade” (Arias, 2003, p.16). O autor sugere que seus leitores podem encontrar em suas obras “os ecos das suas próprias inquieta-ções e, sendo assim, não permitem que as dificuldades os vençam” (Calbucci, 1999, p.14).

A Levantado do Chão sucedeu a obra Memorial do Convento (1982), que levou Saramago a ser conhecido internacionalmente. Na sequência, vieram os romances O ano da morte de Ricardo Reis (1984), A Jangada de Pedra (1986), História do Cerco de Lisboa (1989) e O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991), que demonstram seu apreço pela prosa narrativa, fazendo dele predominantemente um romancista, embora ainda continuasse a compor alguns textos em outros gêneros.

O conjunto desses romances constitui o que Saramago, ao refle-tir sobre sua produção, denominou como fase da estátua, conforme explica a Costa, em entrevista para a Revista Cult:

Eu estou percebendo que, depois de uma expressão bem mais barroca, como é o caso do Memorial do Convento, talvez por inter-ferência do próprio século XVIII, em que tudo acontece, estou me aproximando de uma narrativa cada vez mais seca. Encontrei, outro dia, uma fórmula que me parece boa, é como se durante todo esse tempo eu estivesse descrevendo uma estátua – o rosto, o nariz – e agora eu me interessasse muito mais pela pedra de que se faz a estátua. Quer dizer, já descrevi a estátua, todo mundo já sabe que

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estátua é essa que eu estive descrevendo desde Levantado do Chão até O Evangelho Segundo Jesus Cristo. A partir de Ensaio sobre a cegueira, em Todos os Nomes e no próximo romance, se o escrever, trato da pedra. (Costa, 1998, p.24)

O que faz o escritor bipartir suas obras a partir dessas metáforas da estátua e da pedra é a constatação de que até O Evangelho seus romances foram muito marcados por questões pontuais, geralmen-te ligadas à sua pátria, à história de Portugal, a fim de problematizar “o que é ser português no mundo contemporâneo, utilizando para tal a História como base de investigação” (Calbucci, 1999, p.118). Os fatos históricos do passado ou do presente de Portugal perpas-sam as narrativas da primeira fase: no Memorial está a figura de D. João V; em O ano da morte aparece o salazarismo; em A Jangada de Pedra, discute-se o espaço ocupado pela Península Ibérica no continente europeu; no Cerco de Lisboa está a luta dos portugueses contra os mouros e, por fim, O Evangelho subverte o cristianismo, tão arraigado na cultura portuguesa. Nota-se uma preocupação latente com temas nacionais nessas obras.

A partir de Ensaio sobre a Cegueira (1995), Saramago inaugura o que chama de fase da pedra. Perfurando a estátua para adentrar o seu âmago, o escritor dá um salto, ao abandonar questões mais loca-lizadas, voltadas à história e ao desenvolvimento de Portugal, para dar espaço em suas obras a temáticas de caráter universalizante, passando “a tratar de assuntos sérios de forma abstrata: considerar um determinado tema, mas despindo-o de toda circunstância so-cial, imediata, histórica, local” (Aguilera, 2008, p.119). Essa obra relata o aparecimento de um estranho tipo de cegueira, que se con-trapõe à tradicional, pois, além de contagiosa, ela também faz com que a visão seja tomada pela cor branca, diferente da escuridão ha-bitual a que costumeiramente os cegos são submetidos. Parado em um semáforo de uma rua com trânsito intenso, aguardando o sinal verde para avançar, um motorista é a primeira vítima dessa ceguei-ra, a qual acomete gradativamente os habitantes de uma cidade que não é nomeada. Diante do crescimento do número de infectados,

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para conter o surto, o governo decide isolar os contaminados em um manicômio desativado, espaço onde os cegos manifestam seus ins-tintos primários, lutando pela sobrevivência a qualquer custo, cada qual a seu modo, enfrentando problemas de organização, convivên-cia e diversos conflitos. No entanto, apesar da medida de reclusão, a epidemia continuava a se alastrar. Mantidos sob a vigilância do Exército, os cegos só conseguem deixar o manicômio quando um dos internos provoca um incêndio e se constata que os soldados já não estavam mais lá, provavelmente haviam sido atingidos também pela cegueira.

A cidade que os ex-confinados encontram lá fora está irreconhe-cível: há cadáveres, animais mortos, veículos batidos, fezes, casas arrombadas, lojas utilizadas como abrigos. Um pequeno grupo de cegos passa a habitar a casa de um médico oftalmologista, cuja es-posa fora a única que resistira ao mal branco, mas havia sido levada ao manicômio porque simulou estar cega para acompanhar o mari-do. Embora sem apresentar nenhum grau de parentesco, o grupo se comporta na residência do doutor como uma verdadeira família. A obra termina no momento em que o primeiro atingido pela epide-mia volta a enxergar, sugerindo-se que o surto de cegueira chegara ao fim e que todos os demais infectados em breve recobrariam a visão.

Entre os recursos utilizados por Saramago para compor essa narrativa está a utilização de imagens, projetadas por meio de pala-vras. Tais imagens, como já foi dito, podem ser classificadas em três categorias, se tomarmos a tipologia proposta pelo canadense Nor-throp Frye: demoníacas (representação de situações indesejáveis aos homens), apocalípticas (plena realização do desejo humano) e analógicas (imagens intermediárias entre os extremos apocalíptico e demoníaco, tendendo ora ao paraíso, ora ao inferno). Essas três configurações imagéticas podem ser aplicadas ao romance de Sara-mago, uma vez que a epidemia de cegueira transforma a cidade em um espaço infernal, onde as personagens lutam pela sobrevivência, agindo por instinto. Apesar disso, há algumas delas que ainda ten-

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tam preservar o mínimo de civilidade, adotando, para tanto, com-portamentos louváveis diante das circunstâncias.

A narrativa, com tão intrigante enredo,

apoiando-se em recursos alegóricos, em ideias fortes e inesperadas e em situações abstratas, lança um olhar crítico sobre a realidade atual e mergulha na natureza do ser humano do nosso tempo, tin-gindo as suas visões de denúncia, ironia, compaixão e rebeldia. (Aguilera, 2008, p.119)

Segundo o próprio autor, a ideia para compor tal história veio--lhe de forma inesperada. Quando entrevistado por Juan Arias, Saramago conta que tudo surgiu quando se encontrava em um res-taurante em Lisboa:

Eu estava a almoçar sozinho, à espera do meu pedido, nesse momento em que se pensa em tudo e em nada. De repente, per-gunto-me: e se fôssemos todos cegos? Assim, sem mais. Como serí-amos? Isso já vai dando algumas pistas, a catástrofe, a peste, algo parecido com o cine-catástrofe que se faz hoje em dia, um grande terremoto. Depois você pensa, fica a pensar e a ideia original trans-forma-se em algo que vai muito além da própria cegueira, como a cegueira da razão, e não simplesmente a física. (Arias, 2003, p.55)

A escolha de uma temática ampla permite imprimir com mais facilidade à narrativa o caráter universalizante de que falávamos, que se manifesta na indefinição do tempo e do espaço em que os acontecimentos se desenrolam, na ausência de nomes próprios para as personagens, designadas por meio de perífrases, nas diversas si-tuações temáticas que são postas e vão se desdobrando, traços estes que se tornarão recorrentes nas próximas obras de ficção em prosa publicadas pelo escritor. Assim como o horizonte narrativo se ex-pande, o escritor português também percebe alterações estilísticas em sua escrita. Além da utilização não convencional dos signos de pontuação, inaugurada em Levantado do Chão, afirma Saramago:

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“A minha maneira de escrever tornou-se mais austera, mais seca; não menos poética, mas mais concisa. Afasto-me da retórica barro-ca que imprimi no Memorial do Convento” (Aguilera, 2008, p.119).

O título do livro, “o cartão-de-visita, as palavras que primeiro irão estabelecer o contato entre o autor e o leitor” (Berrini, 1998, p.183) é também digno de nota. Saramago classifica a obra como um ensaio, gênero que aborda com liberdade um assunto de ca-ráter filosófico, histórico, literário ou científico, de forma lógica e reflexiva, sem esgotar o tema, mais suscitando questões do que oferecendo respostas. Todavia, ao realizar a leitura, percebe-se que não se trata a rigor de um ensaio, na definição exata do termo, pois o texto é construído na forma de uma narrativa, com personagens e um enredo que se desenrola em um determinado tempo e espaço. Sendo híbrida, o viés ensaístico da obra fica a cargo do narrador, que tece reflexões e julga os fatos à medida que relata a história. Se o primeiro núcleo nominal do título está para a forma, o segundo volta-se para o conteúdo, a cegueira que acomete a população. O título “sumariza, portanto, com perfeição as duas faces do roman-ce. [...] Reúne na denominação o ensaio e a ficção” (Berrini, 1998, p.190). O próprio autor, tratando da obra em questão, afirma ter escrito um “ensaio que não é ensaio, um romance que talvez o não seja, uma alegoria, um conto filosófico” (Saramago, 1998, p.275). Ele reconhece a fusão de gêneros em sua produção em prosa e de-clara: “É possível que eu não seja um romancista, porque no fundo não me interessa tanto contar histórias. O que na verdade sou é um ensaísta, escrevo ensaios com personagens” (Aguilera, 2008, p.15). Romancista e/ou ensaísta, o autor português, vale-se da perda ale-górica da visão para discutir, com essa narrativa, questões de poder, o papel da Igreja e do Estado em nossa sociedade, as relações in-terpessoais, questionar a atuação e as atitudes tomadas pelas per-sonagens diante da situação insustentável a que são submetidas e penetrar nos mistérios e contradições da alma humana, revelando--os ao leitor e conduzindo-o a uma reflexão sobre sua própria vida.

Ensaio sobre a Cegueira foi a obra que deu origem ao filme Blind-ness (2008), a adaptação cinematográfica do romance de Saramago,

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dirigida por Fernando Meirelles.1 O diretor iniciou seu contato com o cinema logo na infância, quando seu pai, médico gastroenterologista, produzia, nos tempos da universidade, algumas filmagens com os amigos e com a família, parodiando os gêneros cinematográficos em voga em sua época. Quando adolescente, Meirelles já fazia algumas gravações domésticas. Conta ele a Maria do Rosário Caetano: “Cres-ci com essa ideia de que fazer cinema era algo divertido, mas nada muito sério. Jamais uma opção de carreira” (Caetano, 2007, p.39).

Formado arquiteto pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, durante o período em que cursou sua graduação, além das atividades acadêmicas, Fernando traba-lhou com fotografia, participou de um cineclube, desenvolveu ani-mações e ainda contribuiu com a edição, diagramação e circulação da Revista Cine-Olho. Nos anos 80, em parceria com alguns colegas arquitetos, Meirelles fundou a produtora Olhar Eletrônico, que produziu vídeos, clipes musicais, documentários, propagandas partidárias, além de alguns programas de televisão, como o Ante-nas, 23ª Hora e Crig-Rá. Por se tratar de um grupo praticamente autodidata, no início as edições foram bastante amadoras, mas, com o passar do tempo, o grupo conseguiu aperfeiçoar os trabalhos. Podemos dizer que esses primeiros passos da produtora marcaram o período formativo do diretor. Segundo ele, “a Olhar Eletrônico foi dando certo não porque fazíamos TV bem-feito, mas porque fazíamos diferente. Nosso trabalho não era bem-acabado, mas era original” (Caetano, 2007, p.95).

Meirelles também carrega em seu currículo a direção da bem--sucedida série infantil Rá-Tim-Bum e de muitas propagandas pu-blicitárias, entre as quais estão a da Semp Toshiba (“Os nossos japo-neses são mais criativos que os dos outros”) e a da Brastemp (“Não é assim uma Brastemp”). As campanhas publicitárias foram durante muito tempo o carro-chefe da O2 Filmes, a produtora fundada por

1 Além de Blindness, há ainda A Jangada de Pedra (2002), do cineasta holandês George Sluizer e Embargo (2010), dirigido por António Ferreira, que são, res-pectivamente, adaptações cinematográficas de um romance e de um conto de Saramago, homônimos aos filmes.

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Meirelles e um amigo, quando os membros da Olhar Eletrônico se dispersaram em outros projetos. Relata o diretor os benefícios que a filmagem de comerciais lhe proporcionou:

Graças à publicidade, já filmei – e aprendi muito – com quase todos os fotógrafos de cinema do primeiro time no Brasil. É só nomear. A mesma coisa com cenógrafos, figurinistas, maquiado-res, montadores. A publicidade é, de fato, uma escola, em que os melhores profissionais do mercado funcionam como professores que dão aulas práticas. O diretor de publicidade lida diariamente com a questão de como conseguir tirar um ou dois fotogramas de um filme. Isso nos dá a noção do que é essencial. Contar histórias em 30 segundos ajuda a desenvolver a capacidade de síntese nar-rativa, muito útil mesmo na hora de dirigir formatos mais largos. (Caetano, 2007, p.118)

Depois de filmar inúmeras peças publicitárias, a O2 Filmes, a fim de dar um salto para o cinema, decidiu iniciar a produção de curtas-metragens, entre os quais estão E no meio passa um trem, um diálogo entre um ladrão e um policial que têm em comum o fato de trabalharem o tempo todo, lançado em 1998. Nesse mesmo ano, Meirelles foi convidado para dirigir o filme O Menino Maluquinho 2, uma trama que mostra as aventuras da personagem de Ziraldo, durante as férias, na casa de seu avô. Domésticas (2001) foi o primei-ro longa-metragem assinado pela O2, baseado na peça de mesmo título, escrita por Renata Melo. O propósito dessa produção “era entrar no universo dessas mulheres, que são a maior categoria pro-fissional no Brasil, e revelar um pouco de suas expectativas, frustra-ções e seu entendimento do mundo” (Caetano, 2007, p.138).

O próximo grande projeto foi a adaptação homônima ao roman-ce de Paulo Lins, Cidade de Deus, exibida nas telas do cinema em 2002. O longa-metragem retrata a crescente violência e a formação do crime organizado na favela carioca que dá nome ao filme. Foi uma das produções mais ousadas do diretor, pois a maior parte do elenco foi composta por moradores das comunidades do Rio de

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Janeiro, que passaram por algumas oficinas de atuação. O filme alcançou fama internacional e rendeu a indicação ao Oscar e ao Festival de Cannes nas categorias de melhor direção, montagem, fotografia e roteiro adaptado. Foi essa a produção responsável por consagrar o nome de Meirelles no meio cinematográfico.

Em 2005, o diretor lançou O Jardineiro Fiel (The Constant Gar-dener). O filme, adaptado do romance homônimo de John Le Carré, exibe os abusos da indústria farmacêutica na realização de testes de medicamentos em seres humanos. Em 2006, Meirelles aceitou prontamente o convite para dirigir Blindness, a transposição de Ensaio sobre a Cegueira para as telas do cinema. A admiração pelo romance, o diretor relata em Diário de Blindness, blog que criou para comentar a gravação do filme. Conta ele: “Li o livro quase em uma sentada, e por uma semana aquelas imagens e a ideia de que tudo está por um triz me fizeram companhia” (Meirelles, 2007). Em outra postagem acrescenta:

É um texto que gera muitas perguntas, mas nenhuma resposta, levanta questões sobre a evolução do homem, nos faz refletir criti-camente, mas não aponta direções. Cada um terá que descobrir o caminho por si só. É uma história pós-moderna. Creio que, por ser assim tão aberto, este livro permite que cada um o leia projetando suas próprias questões, e todas as leituras parecem fazer sentido. (Meirelles, 2007)

O filme, com roteiro escrito por Don McKellar, foi uma copro-dução Brasil-Canadá, com a participação das produtoras Bee Wine (japonesa), Rhombus Midia (canadense) e O2 Filmes (brasileira), distribuída pela Fox Filmes. As cenas foram rodadas em Toronto (Canadá), São Paulo (Brasil) e Montevidéu (Uruguai). Foram esco-lhidos para compor o elenco Julianne Moore (mulher do médico), Mark Ruffalo (médico), Danny Glover (velho da venda preta), Gael García Bernal (chefe dos cegos malvados), Alice Braga (ra-pariga dos óculos escuros), Don McKellar (ladrão), Yusuke Iseya (primeiro cego), Yoshino Kimura (mulher do primeiro cego), entre

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outros. Lançado em 2008 e escolhido para a abertura da 61ª edição do Festival de Cannes, Blindness foi bem recebido pelo público, ape-sar de algumas ressalvas quanto à intensidade do filme.

O longa-metragem de Meirelles se apropria dos temas e re-flexões da narrativa de Saramago e faz com que a cegueira branca deixe as páginas do romance para tornar-se estrela das telas do cinema.

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2 As imAgens nA AusênciA dA visão

É necessário certo grau de cegueira para poder enxergar determinadas coisas.

Clarice Lispector

A cegueira e o isolamento no manicômio

Entre o rol de imagens identificadas na obra de Saramago, a cegueira é a que primeiro se destaca, estando presente, inclusive, no próprio título do romance. Ela é o elemento instaurador do caos, do inferno existencial, pois a partir do seu aparecimento decorrem todas as demais imagens demoníacas projetadas na narrativa. En-tretanto, já nas primeiras páginas, constatamos que não se trata de uma cegueira comum, associada geralmente à escuridão, à imagem das trevas. A primeira surpresa que temos é que o primeiro cego vê tudo branco: “[...] é como se estivesse no meio de um nevoeiro, é como se tivesse caído num mar de leite, Mas a cegueira não é assim, disse o outro, a cegueira dizem que é negra, Pois eu vejo tudo bran-co” (Saramago, 2008, p.13).

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O segundo estranhamento do leitor é deparar-se com um tipo de cegueira contagiosa, ao saber que o homem que roubou o carro do primeiro cego também perdera a visão logo em seguida. E assim, por meio do contato entre pessoas infectadas, a cegueira se espalha, até atingir paulatinamente toda a cidade.

Observando o jogo que se faz com as cores, Eduardo Calbucci menciona que

o preto e o branco não são exatamente cores. A luz branca seria a mistura de todas as cores que formam o arco-íris, enquanto o preto seria a ausência total de luminosidade; ou, em outras palavras, o branco seria a reflexão total da luz, e o preto, a retenção total. (Cal-bucci, 1999, p.85)

Essas considerações são muito pertinentes, pois não é somente a ausência de luz que nos faz perder a visão, o seu excesso também nos impede de enxergar. Ao ser caracterizada como branca e con-tagiosa, essa cegueira afasta-se de sua manifestação tradicional e já prenuncia a intrigante situação descrita na obra, que concentra toda a atenção do leitor:

É um livro impressionante, de leitura muito incômoda, mas que nos mantém presos até à última linha, e ainda bem, porque os últi-mos capítulos são uma espécie de libertação, para as personagens, mas muito especialmente para o leitor, que se sente reconciliado com os problemas que lhe foram sendo postos ao longo dos capí-tulos, numa reconciliação que não é apagamento, mas antes inten-sificação, dos problemas e das perplexidades que o texto levanta e configura, em proposta de reflexão e advertência para um olhar mais atento sobre o quotidiano. (Seixo, 1999, p.97)

Enfatiza esse excesso de luminosidade ao longo da narrativa o uso de substantivos e adjetivos que fazem lembrar algum tipo de projeção luminosa ou de relação com a luz: semáforo, lâmpada, sol,

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fogo, candeia, farol, holofote, lanterna, fósforo, claro, luminoso, ilumi-nado, brilhante, lúcido, límpido, entre outros.

Além desses aspectos apontados, outro elemento que contribui para a peculiaridade dessa cegueira apresentada na obra é a ausência de sintomas físicos. A mulher do primeiro cego, ao descobrir que o marido perdera a visão, leva-lhe imediatamente a um médico oftalmologista para uma consulta. No entanto, depois de fazer uma série de questionamentos e examinar o paciente, o especialista não encontrou nada, nenhum sintoma, nenhuma lesão que pudesse in-dicar a razão da repentina cegueira. O oftalmologista fica surpreso com o que constata, chegando a afirmar ao paciente que o caso era raro, que nunca tomara conhecimento de um quadro clínico como aquele e que se arriscaria a dizer que a história da oftalmologia não registrara algo semelhante, fato que confirma quando busca infor-mações nos manuais de medicina e não encontra nada que pudesse ajudá-lo a solucionar a súbita perda da visão daquele homem. Nem outro especialista, amigo do médico, fora capaz de chegar a um diagnóstico preciso. O oftalmologista levanta a hipótese de agnosia (incapacidade psíquica de reconhecer o que se vê) ou amaurose (cegueira negra), porém nenhuma delas era totalmente compatível com a descrição feita pelo enfermo. Era impossível explicar como “olhos que tinham deixado de ver, olhos que estavam totalmente cegos, encontravam-se no entanto em perfeito estado, sem qual-quer lesão, recente ou antiga, adquirida ou de origem” (Saramago, 2008, p.37).

Diante desta ausência de sintomas físicos, a narrativa sinaliza, portanto, uma cegueira de ordem metafórica, interpretação que pode ser confirmada pela leitura da obra. “No livro, as personagens cegam porque renegam sua própria cegueira. Saramago força uma cegueira física a fim de evidenciar a cegueira mental, ética-política--social, que cega o indivíduo para os outros, para o mundo e para si” (Leal & Resenes, 2008, p.204). Essa cegueira aparece para romper a alienação em que vivem as pessoas, presas às suas atividades co-tidianas, preocupadas apenas consigo mesmas, mostrando-se indi-vidualistas, egoístas, cegas de entendimento. O mal branco tira-as

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da rotina e, ainda que privadas do sentido da visão, faz com que elas vejam a realidade de um modo diferente, repensando, assim, a inte-ração com o outro e com o meio, a estrutura social e a convivência. As personagens, diante dessa situação, descobrem “quanta lucidez possível há na aparente privação da vista e quanta insuperável es-curidão contamina a pretendida transparência da visão [...], a vista é cega e a cegueira é um estado visionário” (Vasco, 2001, p.VIII).

A perda da visão levou as pessoas a revelarem instintos violentos e agressivos ou, pelo contrário, atitudes solidárias, fazendo-as refle-tir sobre suas vidas e seu comportamento:

Com efeito, este Ensaio sobre a Cegueira pode ser lido inver-samente como um ensaio sobre a visão. Esses cegos chegaram ao fundo do poço de onde puderam ver surgir suas fraquezas, sua arrogância, sua intolerância, sua impaciência, sua violência, a monstruosidade dos universos concentracionários. Mas assistiram também à sua própria força, à sua solidariedade, à sua generosi-dade, ao seu espírito revolucionário e à revisão de seus próprios preconceitos. Este, repito, é um ensaio sobre a visão: do outro, das relações humanas, das linguagens e seus clichês, da verdade, do poder. (Cerdeira, 2000, p.259)

É importante notar o quanto a ausência de apenas um dos senti-dos é capaz de desorganizar, desestabilizar e provocar um terremo-to em uma sociedade que se acredita sólida e estável, modificando muitos de seus valores. A cegueira põe em xeque as diferenças so-cioeconômicas, visto que afeta a todas as pessoas, independente-mente da classe social, da condição financeira, da ocupação exer-cida por cada um (médico, ladrão de carros, taxista, policial) ou da idade (rapazinho estrábico e velho da venda preta). Mantidos em quarentena em um manicômio desativado, os infectados são obri-gados a comer da mesma comida, a dormirem no mesmo lugar, a dividirem os alimentos, as angústias, os medos, as dificuldades e os problemas, a expor suas opiniões diante das decisões, a esperar pelo apoio uns dos outros. Os laços familiares são rompidos, a família

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passa a ser formada por um grupo de estranhos que se encontra ca-sualmente e se reúne a fim de amenizar as dificuldades enfrentadas. É obvio que esse tipo de convivência não foi fácil de ser realizada e provocou inúmeros conflitos.

Todo o progresso tecnológico que a humanidade alcançou deixa de fazer sentido nessa terra de cegos. Os sistemas de captação e distribuição de água e de eletricidade já não têm mais quem os comande. “Fogões comuns e de micro-ondas, batedoras, espre-medores, aspiradores, varinhas mágicas, as mil e uma invenções electrodomésticas destinadas a tornar mais fácil a vida” (Saramago, 2008, p.217) se fizeram inúteis, dividiam espaço nas lojas e nas re-sidências com os cegos, que, incapazes de voltar cada qual para sua casa, tornaram-se errantes e transformaram os estabelecimentos em acampamentos improvisados, onde descansavam, abrigavam-se do frio, do sol e da chuva nos intervalos de caça pela comida, tal como ocorria na era das cavernas.

Os sentimentos de posse e de propriedade deixaram de existir. As casas não tinham mais donos, pela simples razão de que a elas, uma vez ausentes do lar, era quase impossível retornar. Lembre-mos, por exemplo, que o apartamento do primeiro atingido pelo surto foi ocupado pela família de um escritor, o qual perdera sua residência para outro grupo. Além disso, conta um dos cegos à mulher do médico: “não tardamos a perceber que nós, os cegos, por assim dizer, não temos praticamente nada a que possamos chamar nosso, a não ser o que levarmos no corpo” (Saramago, 2008, p.216). Esse mesmo homem afirma não saber se um dia retornaria a sua casa, mas também não se importava que ela tivesse sido ocupada por inúmeras pessoas, pois nesse momento era melhor viver nos espaços térreos, evitando subir e descer escadas.

A arte também foi afetada. As galerias e museus não têm mais quem aprecie seus quadros e esculturas. Os cinemas, teatros e salas de espetáculo serviam para acomodar os cegos sem teto. A música tinha-se acabado, as estações de rádio se calaram. A iluminação ur-bana, principalmente dos anúncios e dos estímulos consumistas de outrora se findara. Resumindo: a humanidade regressara à horda

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primitiva, a ponto de se cogitar a possibilidade de voltar ao noma-dismo, vivendo da caça e da coleta: “quando se acabar tudo teremos de ir por esses campos à procura de comida, arrancaremos todos os frutos das árvores, mataremos todos os animais a que pudermos deitar a mão” (Saramago, 2008, p.299).

A percepção da passagem do tempo sofreu alterações. Por causa da incapacidade de se saber se era noite ou dia, horário de café, almoço ou jantar, o tempo passa a ser regido pelo relógio biológico desregulado, comandado pela fome e pelo sono. Um dos cegos, sa-bendo que a gravação do alto-falante seria transmitida diariamente no manicômio, tentava contabilizar os dias, dando um nó em um cordel a cada vez que ouvia a mensagem acústica. No entanto, a estratégia fracassou, pois algumas vezes a gravação falhara e, ainda, quando tentou contar os nós, constatou que muitos deles estavam “sobrepostos, cegos, por assim dizer” (Saramago, 2008, p.195).

Um agravante da situação é que esta cegueira não era de nascen-ça, quando os afetados são conscientizados desde cedo de que terão de conviver com a perda da visão durante toda a sua existência, sem nunca receber a oportunidade de enxergar o mundo, sendo obri-gados a se adaptar desde o início da vida. A cegueira da narrativa tirava a visão daqueles que já tinham desfrutado de tal sentido, que estavam acostumados a viver com ele e que só puderam perceber o seu valor quando sofreram a sua ausência.

A ciência, esperança de muitos, não pôde evitar essa situação, pois os Anais de Medicina desconheciam um caso semelhante, os vários simpósios e reuniões entre especialistas da área não surtiram efeito, inclusive muitos deles ironicamente cegaram durante os congressos. Tampouco a religião mostrou uma saída, basta lembrar a cena da igreja, na qual as imagens dos santos tinham os olhos ven-dados ou cobertos por uma pincelada de tinta branca.

Se repararmos atentamente em algumas palavras ou expressões utilizadas no dia a dia, como visão de mundo, ponto de vista, revisão, olhe aqui, veja o que diz, é evidente, sem sombra de dúvida, é claro, ser lúcido ou alucinado (Chauí, 1988, p.31) é possível constatar ainda o quanto visão e luz, dois dos principais elementos do romance,

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são ideias associadas à nossa forma de pensar. Em Ensaio sobre a Cegueira, algumas passagens demonstram uma escolha lexical que enfatiza a presença da visão e da cegueira em expressões linguís-ticas e frases feitas. Verifiquemos alguns exemplos: Quando não encontra o carro que provavelmente fora roubado, a mulher do primeiro cego ofende o marido quase sem perceber ao dizer “eu vi bem, eu vejo bem” (Saramago, 2008, p.20), mostrando-se superior por enxergar; sem o resultado de exames, o oftalmologista alega ao primeiro cego não poder “receitar às cegas” (Saramago, 2008, p.24) e despede-o dizendo “Vamos a ver, vamos a ver, é preciso não de-sesperar” (Saramago, 2008, p.24); o médico, em casa, estudando o caso do paciente, decide “passar os olhos, rever bibliografia” (Sara-mago, 2008, p.28); o ministro determina que os cegos ficariam em quarentena “até ver” (Saramago, 2008, p.45); a mulher do primeiro cego, quando “se viu cega” (Saramago, 2008, p.229) saiu de casa aos gritos; a rapariga ao chegar em seu prédio querendo “ver o seu quarto” (Saramago, 2008, p.237) sente dificuldades em subir os de-graus e declara à mulher do médico: “Imagina tu, uma escada que eu dantes era capaz de subir e descer de olhos fechados” (Saramago, 2008, p.237); ao tropeçar um dos cegos, outro lhe pergunta se “não via onde punha os pés” (Saramago, 2008, p.296). O que importa perceber, no entanto, é que, na narrativa, essas expressões relacio-nadas ao uso do campo semântico da visão na linguagem cotidiana revestem-se de ironia, pelo fato de serem empregadas em uma obra que trata justamente da perda de tal sentido, referindo-se ou sendo ditas por personagens que se tornaram incapazes de enxergar.

Todos os traços que caracterizam a insólita cegueira apresenta-da no romance, quando reunidos, permitem lançar a essa perda da visão um olhar alegórico. Vivendo em uma era globalizada, repleta de tecnologias, de informações que repercutem instantaneamente e marcada pela sensação de que o desenvolvimento das civilizações é intenso, estamos todos cegos de nós mesmos, porque as relações interpessoais parecem, em contrapartida, tornar-se cada vez mais superficiais e virtuais, cedendo espaço ao egocentrismo. Afirma o próprio autor no documentário Janela da Alma que estamos

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cegos da razão, da sensibilidade, cegos, enfim, de tudo aquilo que faz de nós não um ser razoavelmente funcional no sentido da relação humana, mas o contrário, um ser agressivo, um ser egoísta, um ser violento, enfim, isso é que nós somos e o espetáculo que o mundo nos oferece é precisamente esse, um mundo de desigualdade, um mundo de sofrimento, sem justificação. (Janela Da Alma, 2001)

São cegos aqueles que, crendo ter uma visão plena de tudo o que ocorre ao seu redor, veem somente a si mesmos, esquecem-se de pensar nas demais pessoas, ou, ainda que enxerguem seu próximo, preocupam-se apenas com seus próprios interesses, demonstrando total indiferença pela vida de seu semelhante, negando os “atri-butos distintivos do outro, sua singularidade irrepetível” (Vasco, 2001, p.206). Liga-se a essas ideias a epígrafe da narrativa, retira-da do Livro dos Conselhos, uma obra imaginária: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara” (Saramago, 2008, p.10). Faz-se aqui um jogo de linguagem entre os verbos ver e olhar, que, embora sinô-nimos, guardam uma diferença semântica preciosa à nossa análise. Se “olhar” significa voltar os olhos para alguma imagem, o verbo “ver” requer que se estabeleça algum tipo de envolvimento com o que está diante dos olhos. As personagens são tomadas por uma cegueira branca, porque sabem olhar, mas não aprenderam a ver. Enxergam o outro, o mundo, as situações que as cercam, contudo se mostram indiferentes.

Semelhante sentido da epígrafe é encontrado na Bíblia: “Olha-reis com vossos olhos e não vereis” (Bíblia, 1998, Mateus 13,14). Recordando as palavras do profeta Isaías, Jesus anuncia que, em-bora convivendo com o Filho de Deus, muitas pessoas seriam inca-pazes de enxergá-lo e reconhecê-lo como o Messias esperado. Vale recordar, ademais, que o apóstolo Paulo, perseguidor dos cristãos, converteu-se ao cristianismo, tornando-se um grande evangeliza-dor, depois de ter sido atingido no caminho de Damasco por uma luz resplandecente vinda do céu que o cegou, recobrando a vista três dias depois pela imposição das mãos de Ananias. Segundo as Sagradas Escrituras, foi a cegueira que fez Paulo encontrar o cami-

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nho da retidão. Talvez essa cegueira simbólica da narrativa tenha a intenção de, ao privar as personagens da visão física, fazê-las refle-tir sobre si próprias e sua conduta na sociedade.

Além disso, a visão mostra-se superior em relação aos demais sentidos, graças à sua capacidade de captar a realidade à distância e projetar na mente humana um simulacro daquilo que se encontra diante do olhar. Lembra Alfredo Bosi que

o olho é o mais espiritual dos sentidos [...] Conhecendo por mimese, mas de longe, sem a absorção imediata da matéria, o olho capta o objeto sem tocá-lo, degustá-lo, cheirá-lo, degluti-lo. Intui e com-preende sinteticamente, constrói a imagem não por assimilação, mas por similitudes e analogias (Bosi, 1977, p.17).

A cegueira que acomete as personagens não prejudica apenas a visão física, mas também a visão psicológica, moral, espiritual, ética, já que os olhos são considerados espelho da alma. Eles reve-lam nossas verdadeiras intenções, que podem contradizer nosso discurso, como discute o narrador: “fizemos dos olhos uma espécie de espelhos virados para dentro, com o resultado, muitas vezes, de mostrarem eles sem reserva o que estávamos tratando de negar com a boca” (Saramago, 2008, p.26). Essa hipótese de uma complexa ce-gueira que vai além das aparências, que “devorava, mais do que ab-sorvia, não só as cores, mas as próprias coisas e seres, tomando-os [os cegos], por essa maneira, duplamente invisíveis” (Saramago, 2008, p.16) se confirma por reflexões do tipo “já éramos cegos no momen-to em que cegamos” (Saramago, 2008, p.131), “Penso que não cega-mos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem” (Saramago, 2008, p.310) ou “sem olhos os sentimentos vão tornar-se diferentes, não sabemos como, não sabemos quais, tu dizes que estamos mortos porque estamos cegos” (Saramago, 2008, p.242). Essas reflexões remetem ao caráter alegórico da cegueira branca, que faz com que as personagens sejam colocadas diante do “absurdo do mundo e a irracionalidade bestial que se esconde no

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homem, marcado por uma existência da qual nos acostumamos a não ver mais do que as aparências ou as ficções” (Vasco, 2001, p.90).

A fim de transcender a imagem superficial, aparente e pré--concebida que uma pessoa pode ter de outra, reconhecendo que é possível descobrir a si mesmo no outro e prometendo importar-se mais com os que o rodeiam, o oftalmologista chega a afirmar: “Se eu voltar a ter olhos, olharei verdadeiramente os olhos dos outros, como se estivesse a ver-lhes a alma” (Saramago, 2008, p.262). Con-tudo, para que pensamentos como esse começassem a surgir, foi necessário passar por variadas situações, que testaram a capacidade humana de resistir ou enfrentar a abjeção.

Como era de se esperar diante do aparecimento de uma cegueira desconhecida, ao se constatar o crescimento do número de vítimas do mal branco, o que apontava a iminência de uma epidemia, é unânime a ideia de que seria fundamental a intervenção do gover-no, pois, nesse caso, é ele a autoridade suprema de que fala Thomas Hobbes (1999, p.145), a quem os indivíduos de uma sociedade delegam a função de manter a ordem pública.

Após consultar o primeiro cego e perder a visão em seguida, jul-gando grave a situação, o doutor, preocupado, revela-se um guar-dião da saúde das pessoas e decide telefonar e comunicar às autori-dades competentes sobre a sua constatação acerca do surgimento de um novo tipo de cegueira, passível de ser transmitida. Tem-se nesse momento a primeira imagem do governo, uma máquina bu-rocrática, cheia de intermediários e cujos ocupantes dos grandes cargos são quase inacessíveis à população em geral, como fica claro na dificuldade encontrada pelo oftalmologista de entrar em contato com algum responsável do Ministério da Saúde. O primeiro obs-táculo enfrentado pelo médico foi convencer a telefonista a trans-ferir a ligação a um funcionário médio. Este, por sua vez, atende-o com abundante rispidez e insolência em razão do desejo do dou-tor de tratar o assunto diretamente com quem tinha incumbência para resolvê-lo, visando evitar o pânico gerado pela disseminação antecipada da notícia, sem que antes algumas precauções fossem tomadas.

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O homem quis saber de que se tratava antes de o passar ao supe-rior imediato, [...] O senhor declara-me que é médico, se quer que lhe diga que acredito, pois sim, acredito, mas eu tenho as minhas ordens, ou me diz de que se trata, ou não dou seguimento, É um assunto confidencial, Assuntos confidenciais não se tratam por telefone, o melhor será vir cá pessoalmente, Não posso sair de casa, Quer dizer que está doente, Sim, estou doente, disse o cego depois de uma hesitação, Nesse caso o que você deverá fazer é chamar um médico, um médico autêntico, retorquiu o funcionário, e, encan-tado com o seu próprio espírito, desligou o telefone (Saramago, 2008, p.40).

Frustrada a primeira tentativa de agir diante de uma possível epidemia, o médico resolveu falar com o diretor clínico do hospital em que trabalhava, “ele que se encarregasse depois de pôr a maldita engrenagem oficial a funcionar” (Saramago, 2008, p.40). A princí-pio, o diretor custou a acreditar que um surto de cegueira estaria por vir, dois casos isolados não tinham significado estatístico. No en-tanto, com a notícia de que outros pacientes que estiveram no con-sultório do oftalmologista também estavam cegos e com as vítimas auxiliadas pela polícia, confirmava-se a disseminação da cegueira branca. Somente nessas circunstâncias, o Ministério da Saúde foi comunicado. Representantes do governo telefonam para agradecer o zelo do oftalmologista e o seu senso de cidadania. O próprio mi-nistro dirige-lhe algumas palavras. O discurso inicia cordialmente e termina de modo autoritário, com uma ordem, desprezando o envolvimento daquele que fora o primeiro a lançar um olhar clínico sobre os infectados e a entrar em contato diretamente com a suposta enfermidade avassaladora:

O ministério queria saber a identidade dos pacientes [...], o médico respondeu que as fichas clínicas respectivas continham todos os elementos de identificação [...] e terminou declarando-se ao dispor para acompanhar a pessoa ou pessoas que fossem recolhê--los. Do outro lado o tom foi cortante, Não precisamos. [...] Boas

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tardes, fala o ministro, em nome do Governo venho agradecer o seu zelo, estou certo de que graças à prontidão com que agiu vamos poder circunscrever e controlar a situação, entretanto faça-nos o favor de permanecer em casa (Saramago, 2008, p.42).

Apesar de ordenar ao médico que não saísse de sua residência, essa fala enfática do ministro soa positiva. Afinal, parece que tudo se resolverá com facilidade, visto que as autoridades estão informa-das sobre o caso e a doença ainda não afetou muitas pessoas. Parece--nos que o pessimismo por parte do doutor em relação à burocracia e à lentidão da máquina administrativa vai agora se desfazer, pois o governo está mostrando justamente o contrário. O oftalmologista recebe em seguida uma ligação do ministério para avisar que uma ambulância iria apanhá-lo e levá-lo a algum hospital, assim supu-nha. Pouco tempo depois, são levados pela ambulância não só o mé-dico, mas também sua esposa, que simulou cegar naquele instante em que o doutor embarcara, apenas para conseguir acompanhá-lo. Essa ideia, todavia, já tinha sido planejada pela mulher quando soube que seu marido seria levado de casa. Na mala preparada com os pertences do médico, haviam sido postos, sem que ele soubesse, alguns sapatos e peças de roupa feminina. O casal foi levado pelo carro de transporte de doentes. No entanto, a suposição do doutor estava equivocada, não era para um hospital que se dirigiam.

O Ministério da Saúde precisava pensar em alguma estratégia para administrar o surto. Conta o narrador que, sem levar em conta o avanço da medicina, inspirando-se em práticas obsoletas utiliza-das no passado, nos tempos das pestes e das grandes epidemias de cólera e febre amarela, quando barcos com infectados ou suspeitos de infecção vagavam nas águas durante quarenta dias, o ministro deliberou isolar os cegos e os possíveis contaminados (que tinham tido algum contato com os atingidos pela cegueira) do convívio so-cial e mantê-los em quarentena. A preocupação do administrador de assuntos relacionados à saúde não era primordialmente com do-entes, as principais vítimas da situação, mas com a imagem de seu ministério. Reunir em um só lugar os contagiados era “uma ideia

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feliz, senão perfeita, tanto no que se referia aos aspectos meramente sanitários do caso como às suas implicações sociais e aos seus deri-vados políticos” (Saramago, 2008, p.45). A proposta se justificaria como uma ação destinada a evitar a multiplicação da doença, que, ao que tudo indicava, alastrava-se por meio do contato físico com um dos infectados. Bastava definir apenas em que local os cegos ficariam confinados. Quatro opções foram levantadas pelo presi-dente da comissão de logística:

Temos um manicômio vazio, devoluto, à espera de que se lhe dê destino, umas instalações militares que deixaram de ser utilizadas em consequência da recente reestruturação do exército, uma feira industrial em fase adiantada de acabamento, e há ainda, não con-seguiram explicar-me porquê, um hipermercado em processo de falência (Saramago, 2008, p.46).

Analisando-se as possibilidades, as vantagens e desvantagens de cada espaço, verifica-se que o quartel seria ideal no que tange às condições de segurança, porém dificultaria a vigilância pelo tama-nho; o hipermercado e a feira eram locais bastante amplos, contudo o primeiro envolveria inúmeras questões jurídicas a serem acer-tadas, enquanto a utilização da segunda não agradaria aos donos da indústria que ali tinham investido milhões. O manicômio não apresentava nenhum tipo de impedimento, pelo contrário, facilita-ria o isolamento, uma vez que possuía duas alas, uma para os que já estavam cegos e a outra para os que possivelmente cegariam. Essas alas eram separadas por um amplo corredor e não seria necessário o trabalho de ninguém lá dentro, pois os próprios suspeitos expulsa-riam de seu convívio e encaminhariam para a outra ala aqueles que cegassem. Para a composição narrativa, essa escolha também não parece ter sido nem um pouco fortuita, à medida que esse espaço originalmente destinado a loucos – pessoas com algum distúrbio mental ou de comportamento e, portanto, incapazes de manter um convívio social saudável – associa a cegueira branca à loucura, “uma vez que a vida dentro do manicômio será regida, a princípio, pela

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insensatez, pela violência e pela falta de civilidade” (Silva, 2008, p.25). As próprias personagens refletem “Isto é loucura, Deve de ser, estamos num manicômio” (Saramago, 2008, p.46). Fica aqui mais uma pista do fundo alegórico dessa perda da visão.

Cabe observar que, entre os ambientes sugeridos,

Os dois primeiros espaços [o manicômio e o quartel] reme-tem a instâncias de contenção e extinção das vontades individuais submetidas à tutela hierárquica. A seu turno, a feira industrial e o hipermercado representam lugares da instigação à produção e ao consumo, forças que acabam impelindo o ser humano à triviali-dade, ao autoengano. (Ferreira, 2007/2008, p.32)

A supressão das liberdades individuais e a tutela hierárquica apontadas se concretizam na configuração que ganha o confina-mento, visto que o manicômio se transforma em um ambiente carcerário, vigiado por soldados, o que o faz intimamente ligado à concepção de um espaço demoníaco, descrito por Frye (1973, p.151) como uma prisão, um calabouço. Os cegos, na condição de prisioneiros, ficariam reclusos, não somente no espaço, mas tam-bém presos em seus medos e angústias, “igualados pela doença ab-surda, condenados ao encarceramento, à loucura do confinamento, à violência e à morte” (Cerdeira, 2000, p.254).

O sociólogo Erving Goffman enquadra os manicômios no con-junto do que ele chamou de instituições totais, definidas como

um local de residência e trabalho onde um grande número de indi-víduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada. (Goffman, 2005, p.11)

Ele divide tais instituições em cinco grandes grupos: 1. as que cuidam de pessoas consideradas incapazes e inofensivas, como asilos e orfanatos;

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2. as que tomam conta de indivíduos que não podem cuidar de si próprios e que, não intencionalmente, constituem uma ameaça à sociedade, como é o caso dos sanatórios e hospitais para doentes mentais ou portadores de uma enfermidade contagiosa; 3. as que se encarregam de proteger a população de pessoas consideradas perigosas, como as penitenciárias e os campos de concentração; 4. as que unem indivíduos para facilitar o trabalho, como os quartéis e escolas internas;5. as que servem de refúgio do mundo e instrução para religiosos, como os conventos e seminários.Todos esses segmentos, de acordo com o sociólogo, podem ser

aproximados em razão do tratamento oferecido ao seu público. En-quanto um ser humano comum trabalha, dorme e desfruta de mo-mentos de lazer em lugares diferentes, nas instituições totais, essas atividades são realizadas no mesmo espaço. Os indivíduos vivem em grupo, devem receber o mesmo tratamento e estão submetidos a um rígido sistema de regras e horários estabelecidos, bem como a um esquema de supervisão e vigilância, a fim de se averiguar se as normas estão sendo cumpridas.

Muitos dos traços característicos das instituições totais aponta-dos por Goffman podem ser verificados em Ensaio sobre a Ceguei-ra, no que tange à configuração do manicômio para onde foram levados os contaminados, que se converte em um espaço de repres-são, perpetrada sob diversas modalidades, por diferentes agentes. O primeiro deles é o próprio Estado, de quem partiu a ideia de confinar as pessoas. Sem escolha, sem que pudessem opinar ou manifestarem-se contrários à quarentena, os contaminados eram levados à força de suas casas. Segregá-los em um único lugar, justi-ficava o governo, seria uma forma de ganhar tempo para estudar a cura e acompanhar a evolução da doença. Contudo, a real intenção dessa medida era facilitar o controle do comportamento dos cegos, fazê-los obedecer às ordens do Estado e, principalmente, isolar o insólito problema, que provocava medo nos habitantes da cidade. Sabia o governo que

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O domínio total que procura sistematizar a infinita pluralidade e diferenciação dos seres humanos como se toda a humanidade fosse apenas um indivíduo, só é possível quando toda e qualquer pessoa seja reduzida à mesma identidade de reações. (Arendt, 2000, p.488)

Ignorando a subjetividade das pessoas contaminadas e conce-bendo-as como uma ameaça, o Estado isola os cegos e uniformiza o tratamento dado a eles, como se todos enfrentassem o problema exatamente da mesma forma. Essa atitude governamental demons-tra a sua incapacidade de administração e a falta de experiência em situações de emergência.

Foram internados ali “seres humanos de todos os jeitos, proce-dências e feitios em matéria de humor e temperamento” (Saramago, 2008, p.117), obrigados a coabitar, enfrentando uma série de con-flitos de convivência e organização. Nesse sentido, o manicômio torna-se uma minirrepresentação do mundo exterior a ele, como observa a mulher do médico: “O mundo está todo aqui dentro” (Saramago, 2008, p.102). Esse tipo de convívio forçado provoca a violação da intimidade, uma superexposição dos indivíduos – uma vez que compartilham o mesmo espaço – e um processo de “mu-tilação ou mortificação do eu” (Goffman, 2005, p.27), de perda da subjetividade. As famílias foram separadas. Os papéis sociais que cada um exercia antes foram perdidos. De forma irônica, o médico oftalmologista não podia auxiliar nos problemas com a visão, o atendente de farmácia não fornecia medicamentos, os policiais esta-vam impedidos de prender o ladrão de carros ou os cegos malvados, bem como de proteger os internos e zelar pela ordem no local, os motoristas não eram mais capazes de dirigir. “A cegueira, já se sabe, não olha a mesteres e ofícios” (Saramago, 2008, p.139).

Assinala Calbucci que “o máximo que o governo oferece, de uma cautelosa distância, são produtos higiênicos e refeições pro-gramadas” (Calbucci, 1999, p.87). Com o transcorrer do tempo, entretanto, tais ofertas se tornam também escassas, atitude que nega o cuidado que o Estado declarara dispensar aos infectados. Além de uma máquina burocrática e inacessível, que toma atitudes

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visando ao seu próprio bem e à promoção de sua imagem, sem ofe-recer a assistência necessária, o governo também envia os oficiais das forças armadas para realizar a vigilância do manicômio, medida que deixa transparecer o autoritarismo e o tratamento repressivo aplicado aos infectados.

Sob a justificativa de que estavam ali para reprimir as desor-dens, impedir que alguém saísse e contaminasse outros indivíduos, os soldados do exército abusavam de sua autoridade e tentavam impedir de todas as maneiras que os confinados descumprissem suas determinações. O tratamento dispensado aos cegos mostra-se bastante inadequado, a começar pelo momento em que os contami-nados chegavam ao manicômio, quando os soldados exigiam que os recém-chegados se organizassem para adentrar o local em co-lunas com número de integrantes pré-estabelecido e, impacientes, transmitiam-lhes instruções aos gritos, insensíveis às dificuldades enfrentadas por aqueles seres que ainda não tinham tido tempo suficiente para se adaptar à sua nova condição.

Quando se sentiam ameaçados pelos cegos ou suspeitavam de alguma revolta, mesmo sem constatá-la, os homens do exército não hesitavam em utilizar seus armamentos, sem demonstrar nenhum vestígio de piedade e, muitas vezes, sem que fosse necessário dis-parar contra os indefesos: “Os cegos começaram a cair uns sobre os outros, caindo recebiam ainda no corpo balas que já eram um puro desperdício de munição” (Saramago, 2008, p.88).

Quando o médico e sua esposa pedem medicamentos para tratar a ferida na perna do ladrão de carros, o discurso do sargento revela o autoritarismo do Estado, o poder que o exército tomou para si diante da epidemia, e ainda a ausência de compaixão por uma vida em risco:

No mesmo instante um soldado gritava-lhes do portão, Alto, voltem já para trás, tenho ordens para disparar e logo, no mesmo tom, apontando a arma, Nosso sargento, estão aqui uns gajos que querem sair, Não queremos sair, negou o médico, O meu conselho é que realmente não queiram, disse o sargento enquanto se aproxi-

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mava, e, assomando por trás das grades do portão, perguntou, Que se passa, Uma pessoa que se feriu numa perna apresenta uma infec-ção declarada, necessitamos imediatamente antibióticos e outros medicamentos, As ordens que tenho são muito claras, sair, não sai ninguém, entrar, só comida, Se a infecção se agravar, que será o mais certo, o caso pode rapidamente tornar-se fatal, Isso não é comigo [...] ou você e essa voltam agora mesmo para donde vieram, ou levam um tiro. (Saramago, 2008, p.69)

Como se observa, qualquer movimento dos cegos era entendi-do pelos soldados como uma tentativa de fuga, a qual combatiam prontamente. O sargento também segue à risca a orientação do governo para que o exército não manifestasse nenhum tipo de in-tervenção com relação à convivência dos reclusos. Com o mesmo desinteresse agem os militares quando uma cega grita-lhes, inutil-mente, que uma parte dos reclusos estava roubando a comida aos demais: “Os soldados fizeram de conta que não tinham ouvido, as ordens que o sargento recebera de um capitão [...] eram peremptó-rias, claríssimas, Se eles se matarem uns aos outros, melhor, menos ficam” (Saramago, 2008, p.139).

Os militares estavam dispostos a matar sem qualquer tipo de pena ou arrependimento pelos seus atos. Lembremos, por exemplo, do motorista de uma das ambulâncias que, por ter transportado cegos, recebeu a ordem de se juntar a eles, pois provavelmente ce-garia. Recusando-se, acabou morto por uma bala. Outra tragédia, fruto da atitude repressiva do exército, foi a morte do ladrão de carros, para o qual o médico e a esposa tentaram pedir ajuda, sem resultados. Pensou ingenuamente o ferido que se fosse até o portão e vissem o seu estado, dar-lhe-iam atenção, constatariam a necessi-dade de cuidados médicos e o encaminhariam a um hospital. Com muito esforço, ele se deslocou durante a noite em direção ao portão. Contudo, foi recebido pelos disparos do vigia de plantão, que lhe tiraram a vida. Sem guardar remorsos ou compadecer-se, o autor do tiro gabava-se de sua pontaria, pois acertara às escuras o rosto da vítima. Fica claro que o desejo dos soldados era de acabar com

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os infectados, já que “morrendo o bicho acaba-se a peçonha” (Sara-mago, 2008, p.64). A violência parece ter sido a forma mais simples de lidar com essa situação delicada, que ninguém sabia como admi-nistrar. A conduta dos soldados recorda uma experiência realizada em 1971, pelo pesquisador Philip Zimbardo, na Universidade de Stanford.1 O estudo consistia em simular uma prisão a fim de ob-servar o comportamento dos envolvidos. Voluntários foram dividi-dos em dois grupos, guardas e prisioneiros. Diante das queixas dos detentos em relação ao tratamento que recebiam, os guardas pas-saram a agir com violência, adotando medidas e punições arbitrá-rias para humilhar os detentos, os quais, por sua vez, sofriam uma profunda perturbação emocional, ora rebelando-se, ora chorando, ora tentando apresentar bom comportamento e evitar os castigos. Passados seis dias do início da experiência, prevista para durar duas semanas, Zimbardo teve de cancelar a simulação, pois percebeu que a situação se tornava insustentável. Com o experimento, o pesqui-sador pôde notar a forma como as prisões desumanizam as pessoas e o quanto seres vulgares, quando em grupo e dotados de superio-ridade, podem modificar rapidamente sua conduta. Tal como esses guardas, os soldados do manicômio deixaram de ver os cegos como seres humanos e, por isso, abusavam de sua autoridade, adotando ações sádicas e agressivas.

Outro comportamento impróprio dos soldados é o prazer que sentem em zombar dos enclausurados. Se os vigilantes concediam um tratamento ora indiferente, ora truculento, por vezes, também se divertiam à custa dos infectados. As coordenadas enunciadas por um dos militares à esposa do médico para que recolhesse uma pá no pátio faziam a mulher zanzar inutilmente de um lado a outro. Outra sentinela, com a espingarda em mira, tenta atrair um dos cegos para perto de si, onde pudesse matá-lo: “vem andando, disse de lá um soldado em tom falsamente amigável, [...] nesta direcção chegarás

1 Todas as etapas da Experiência da Prisão de Stanford são descritas com deta-lhes no site <http://www.prisonexp.org/portugues/>.

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aonde te estão a chamar, ao encontro da bala que substituirá em ti uma cegueira por outra” (Saramago, 2008, p.106).

O narrador também evidencia a discriminação ao relatar que os membros das forças armadas, da aeronáutica e da marinha, atingi-dos pelo mal branco, eram levados para outras instalações, separa-das exclusivamente para esses segmentos.

Esse comportamento abusivo do exército não preocupava as autoridades, pelo contrário, estava adequado à mísera consideração do Estado pelos infectados, confiando-lhes, inclusive, a organiza-ção do local e a solução dos problemas internos, conforme explici-ta uma gravação reproduzida exaustivamente em um alto-falante no manicômio. Desde o primeiro dia de isolamento, os reclusos ouvem “uma voz forte e seca, de alguém, pelo tom, habituado a dar ordens” (Saramago, 2008, p.49). O autoritarismo do Estado, que já constatamos anteriormente na fala do ministro, na escolha pela quarentena e na incumbência de vigilância delegada ao exército, aparece novamente por meio dessa gravação, a qual, logo no início, tenta justificar aos internos as medidas tomadas e convencer-lhes de que o confinamento iria conferir-lhes um ar de heroísmo, diante dos demais habitantes da cidade:

O Governo lamenta ter sido forçado a exercer energicamente o que considera ser seu direito e seu dever, proteger por todos os meios as populações na crise que estamos a atravessar. [...] O governo está perfeitamente consciente das suas responsabilidades e espera que aqueles a quem esta mensagem se dirige assumam também, como cumpridores cidadãos que devem de ser, as res-ponsabilidades que lhes competem, pensando que o isolamento em que agora se encontram representará, acima de quaisquer outras considerações pessoais, um ato de solidariedade para com o resto da comunidade nacional. (Saramago, 2008, p.49)

A argumentação desse discurso polido visava mostrar que o governo estava cuidando da situação e tomando todas as medidas cabíveis. Além disso, se alguém discordava da estratégia adotada,

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o pronunciamento pretendia ainda sensibilizar os cegos de que, estando ali, mostrariam seu senso de cidadania, evitando o alastra-mento da doença e a contaminação de novas vítimas. Contudo, essa era apenas mais uma forma de evitar reclamações de que autorida-des da saúde estavam preocupadas somente com os que ainda não tinham sido infectados. Parece que o dever do governo de zelar pelo bem-estar de toda a população fora esquecido.

A gravação enumerava quinze instruções, as quais deveriam ser seguidas rigidamente pelos confinados. A primeira delas afirmava que as luzes ficariam sempre acesas, uma ação inútil, pois as perso-nagens já estavam mergulhadas em um mar de luz e não poderiam certificar-se se aquilo era real ou não. O segundo item prevenia que poderia ser morto qualquer um que executasse uma tentativa de fuga. A terceira orientação comunicava a existência de um tele-fone em cada camarata para que pudessem requisitar produtos de higiene ou limpeza. Entretanto, as solicitações não eram atendidas, pois nunca havia ninguém do outro lado da linha e os recados dei-xados nunca receberam resposta. A quarta regra era de que os cegos deveriam lavar suas roupas manualmente, mesmo sabendo que locomover-se até um local apropriado para alvejar suas vestes e en-contrar os produtos certos causaria muita dificuldade aos internos. Ademais, nunca saberiam quando a roupa estaria completamente limpa. Em quinto lugar, recomendava-se na gravação, “a eleição de responsáveis de camarata, trata-se de uma recomendação, não de uma ordem, os internados organizar-se-ão como melhor entenderem” (Saramago, 2008, p.50, grifo nosso). O descaso com os cegos e com o tipo de convivência que eles estabeleceriam fica aí registrado. Quanto à sugestão de eleger representantes, nem todas as camara-tas conseguiram entrar em acordo na escolha de um dos membros.

Na sequência, anunciava-se que a comida seria entregue três vezes ao dia para as duas alas, a dos doentes e a dos suspeitos; to-davia, nem sempre foi disponibilizada com essa regularidade, e as refeições, ao longo da quarentena, tornaram-se insuficientes para alimentar o crescente número de cegos que chegavam. Ordena-vam as instruções sete e oito que os restos fossem queimados no

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pátio do manicômio. Atentemo-nos aqui para o risco que corriam esses cegos, ao serem obrigados a atear fogo aos objetos, podendo, inclusive, permitir que as chamas se alastrassem pelo prédio, sem que ninguém percebesse, provocando um grande desastre. Con-tudo, as autoridades não estavam preocupadas com isso, uma vez que as duas recomendações seguintes transferiam aos internados a responsabilidade de qualquer consequência negativa da queima e já antecipavam que não haveria intervenção dos bombeiros, assim como não deveriam contar com nenhum auxílio do exterior em caso de doenças, desordens ou agressões, como expressava a décima primeira recomendação.

Os quatro últimos itens relatavam que os cadáveres seriam en-terrados sem formalidade, que a comunicação entre as duas alas se daria pelo corredor central, por onde passariam os suspeitos assim que cegassem e que a gravação seria repetida todos os dias no mesmo horário para que todos os recém-chegados tomassem conhecimento das regras. Por meio dessas últimas recomendações, fica claro que já se previam mortes, que se esperava que os suspeitos brevemente perderiam a visão e que se estimava o crescimento do número de internados dia após dia. É importante ressaltar que a promessa de dividir o espaço entre os infectados e os que possivel-mente cegariam foi respeitada apenas no início. Com a chegada de novos grupos, a ala dos não cegos foi invadida por conta da falta de espaço na área destinada aos contaminados.

Como se pode notar, as instruções estão revestidas de um sig-nificado irônico. A ironia, segundo aponta Linda Hutcheon (2000, p.30) “acontece no espaço entre o dito e o não dito (e que os inclui)”. Na gravação, o dito consiste em recomendações transmitidas por meio de um discurso bastante solene, que deveriam servir para organizar a convivência dos internos e demonstrar o efetivo apoio por parte das autoridades governamentais. O não dito se processa, quando, analisando-se as determinações uma a uma, observa-se que elas negam o efeito pretendido. Muitas delas são inúteis e im-possíveis de ser executadas por quem acaba de perder a visão, não havendo condições para que fossem postas em prática. Da interação

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entre o dito e o não dito, a ironia nasce e “mina o sentido declarado” (Hutcheon, 2000, p.30) do pronunciamento, o qual, em vez de de-monstrar a preocupação e o cuidado que o governo dispensaria aos infectados, revela, pelo contrário, que a organização do manicômio ficaria a cargo dos próprios internos e que não haveria nenhum tipo de intervenção externa, independentemente do que acontecesse.

Constata-se, assim, por meio dessa gravação e da postura dos soldados, o menosprezo do Estado pelos cegos, os quais não tinham como manter contato com a instituição que supostamente tomaria conta deles, o que agravava o caos vivido pelos isolados. Mais que menosprezo, a atitude do governo revela o pragmatismo ou, nas pa-lavras de Hannah Arendt (1999, p.274), a banalidade do mal, o mal que é praticado no dia a dia como um ato qualquer, não por carras-cos, mas por pessoas que levam uma vida comum. Para o Estado, os cegos estão convertidos em algo aquém de qualquer consideração. O manicômio serve como um lugar de extermínio, assemelhando--se aos campos de concentração, os quais

destinam-se não apenas a exterminar pessoas e degradar seres huma-nos, mas também servem à chocante experiência da eliminação [...] da própria espontaneidade como expressão da conduta humana, e da transformação da personalidade humana numa simples coisa, em algo que nem mesmo os animais são. (Arendt, 2000, p.488)

Os cegos tinham perdido a liberdade, estavam ali sem dúvida alguma como verdadeiros prisioneiros, correndo inúmeros riscos, que não importavam a ninguém; pelo contrário, esperava-se que padecessem ali até a morte. Abandonados, os reclusos tiveram que encontrar sozinhos a melhor forma de conviver, de resolver os con-flitos, de tomar as medidas cabíveis, reaprendendo, enfim, a viver a cada instante. A presença do governo no espaço designado para a quarentena se restringia à mensagem acústica propagada pelo alto-falante, a qual continuava sendo repetida ironicamente, pois, poucos dias depois do início do confinamento, o caos já se instalara

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e a desorganização já dominava o local, não havia mais espaço para um discurso formal que transmitisse regras de conduta.

Portanto, a tentativa do governo de organizar a relação entre os cegos e manter a ordem no manicômio por meio dessas instruções não surtiu efeito. E a culpa não foi só dos infectados, incapazes de executar muitas das determinações, mas do próprio Estado, que parecia ter esquecido o compromisso, firmado na abertura da mensagem acústica, de cumprir com suas responsabilidades, não colocando em prática muitas de suas promessas.

A cegueira epidêmica provoca, pois, a instalação de um estado totalitário. Por meio da gravação difundida pelo alto-falante, bem como da incapacidade de atuação das instituições públicas e tam-bém da repressão e do tratamento agressivo, mostrados a partir das atitudes do exército, a obra dirige uma crítica ao governo e confi-gura uma rica reflexão sobre os desvãos que a perda do sentido/da visão é capaz de produzir.

Sem a assistência adequada, as condições de sobrevivência no local ficaram comprometidas. Muitos internos foram acometidos por doenças durante a estadia no manicômio ou tiveram agravados os problemas de saúde que já apresentavam antes de serem levados de suas casas. Embora o governo tivesse assegurado o bem-estar dos cegos, não houve a concessão de medicamentos para tratar os doentes ou os que adoeceram pela falta de higiene do lugar, pela má alimentação ou pela queda de imunidade em razão do nervosismo e do pânico diante da situação. As autoridades eram incapazes de enxergar as peculiaridades e o estado de saúde de cada um dos re-clusos, o que contraria os padrões humanitários que devem manter as instituições desse tipo. Mesmo em uma prisão, os dirigentes têm a obrigação de “deter as tentativas de suicídio de um prisioneiro e dar-lhe atenção médica integral, mesmo que isso possa adiar a sua execução” (Goffman, 2005, p.71). Assim pensava o ladrão de car-ros que foi morto pelos soldados quando pretendia chegar até estes com a esperança de receber um tratamento: “Quando eles me virem neste estado perceberão logo que estou mal, metem-me numa am-bulância e levam-me ao hospital, [...] tratam-me da perna, curam-

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-me, ouvi dizer que é o que se faz com os condenados à morte” (Saramago, 2008, p.77).

Além da escassez de alimentos e da falta de medicamentos, as condições de higiene também eram extremamente precárias. A obra é rica na descrição do aspecto físico, do estado em que se en-contrava o manicômio, relatando que odores fétidos e nauseabun-dos se propagavam pelo local, onde havia excrementos espalhados pelo chão, misturados às caixas de comida, ao sangue e aos cadáve-res amontoados, que atraíam moscas. A dificuldade de locomoção, de conseguir encontrar a tempo os sanitários, a vergonha, a pregui-ça ou a falta de civilidade “tornaram os corredores e outros lugares de passagem em retretes que começaram por ser de ocasião e se tor-naram de costume” (Saramago, 2008, p.133). As latrinas estavam saturadas, as paredes e o chão, completamente tomados de sujeira. Em cada camarata, depois de pouco tempo, havia “catres infectos, inçados de pulgas e percevejos, com seus colchões apodrecidos de suor e urina, as mantas como esfregões, já não cinzentas, mas de todas as cores de que pode vestir-se a repugnância” (Saramago, 2008, p.200).

Alguns cegos perderam a discrição, os bons modos e o respeito pelos demais confinados e não demonstravam nenhum tipo de preo- cupação com a manutenção da limpeza e da higiene no manicômio:

Alguns são uns mal-desbastados que se aliviam matinalmente de escarros e ventosidades sem olhar a quem está, verdade seja que no mais do dia obram pela mesma conformidade, por isto a atmos-fera se vai tornando cada vez mais pesada e não há nada a fazer, a única abertura é a porta, às janelas não se lhes pode chegar, do altas que estão. (Saramago, 2008, p.99)

Sentindo a podridão se alastrar por todo o espaço, o médico, preocupado, questionava-se:

Como será isto dentro de uma semana, perguntou-se, e teve medo de imaginar que dali a uma semana estariam encerrados neste

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lugar, Supondo que não haverá dificuldades com o abastecimento de comida, e não é certo que não as haja, duvido, por exemplo, que a gente lá de fora saiba em cada momento quantos vamos sendo aqui, a questão é como irão resolver-se os problemas de higiene, já não falo de como nos lavaremos, cegos de poucos dias sem ajuda de ninguém, e se os duches funcionarão e por quanto tempo, falo do resto, dos restos, um só entupimento das sentinas, um só que seja, e isto transforma-se numa cloaca. (Saramago, 2008, p.74)

A mulher do médico, a única que podia enxergar, diante da-quela imundície, tentava ainda manter a limpeza e a organização ao menos em sua camarata, já que sozinha não podia dar conta e nem tinha as condições necessárias para remover toda a sujidade do prédio. Pensava ela que

O que ali verdadeiramente se necessitava era um poderoso jorro de mangueira que levasse à frente toda a merda, depois de uma bri-gada de canalizadores que viessem reparar os autoclismos, pô-los a funcionar, depois água, água em quantidade, para levar aos canos de esgoto o que ao esgoto deveria ir. (Saramago, 2008, p.134)

Habitar um espaço degradante como esse é a principal causa da desfiguração pessoal dos acometidos pela cegueira. Os cegos andam sujos, descalços, maltrapilhos, com roupas rasgadas, con-traem doenças e são impossibilitados de cuidar de sua aparência: banhar-se, barbear-se, cortar os cabelos, limpar-se após evacuar.

Para agravar ainda mais o quadro, os confinados tiveram de enfrentar as exigências de um grupo de cegos que se organizou para tirar proveito da situação. Bertrand Russell aponta que, “quando se extingue uma forma tradicional de poder, pode suceder-lhe uma outra, não pura e simples, mas investida de uma autoridade revolu-cionária pelo consenso da maioria ou de uma minoria preponderan-te da população” (Russell, 1941, p.27). Ele ainda acrescenta que “o poder é necessário e se não for o de um governo, será o de aventu-reiros anárquicos” (Russell, 1941, p.77). A não intervenção do go-

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verno na convivência dos mais de duzentos e quarenta internos no manicômio abre espaço para que alguns cegos mal intencionados assumam o comando e imponham suas próprias regras aos demais por meio de ameaças. A ação desse grupo começa quando alguns de seus integrantes, armados com uma pistola, madeiras e ferros das camas, impedem que os outros reclusos recolham a comida, a qual, a partir desse instante, seria entregue exclusivamente mediante pa-gamento. Aqueles que, indignados, tentavam burlar a muralha dos malvados, acabavam agredidos. Nem a civilidade e a diplomacia do médico, que tenta resolver tudo com uma boa conversa, tampouco o desespero de uma cega que grita pedindo ajuda aos soldados, pôde conter a ação dos infratores, que insistiam em exigir algo em troca dos alimentos. A imposição do jugo sob o qual estariam os inter-nados submetidos se expressa na atitude daquele que parecia ser o líder dos malvados, o qual, percebendo a confusão entre os cegos, saca a pistola, dispara para o alto e dita as regras:

Quietos todos aí, e calados, se alguém se atreve a levantar a voz, faço fogo a direito, sofra quem sofrer, depois não se queixem. Os cegos não se mexeram. O da pistola continuou, Está dito e não há volta atrás, a partir de hoje seremos nós a governar a comida, ficam todos avisados, e que ninguém tenha a ideia de ir lá fora buscá-la, vamos pôr guardas nesta entrada, sofrerão as consequências de qualquer tentativa de ir contra as ordens, a comida passa a ser ven-dida, quem quiser comer, paga. (Saramago, 2008, p.140)

A estratégia dos dominadores já parecia estar articulada. Eles recomendam que cada camarata eleja dois representantes para “re-colher os valores, todos os valores, seja qual for a sua natureza, di-nheiro, joias, anéis, pulseiras, brincos, relógios” (Saramago, 2008, p.140) e entreguem tudo no terceiro quarto da ala esquerda. A ati-tude dos chamados “cegos malvados”, ao exigir os poucos objetos de valor que os outros traziam consigo, chama a atenção pelo fato de que os pertences recebidos ou até mesmo alguma quantia em dinheiro não poderiam ser usados naquele contexto, não serviriam

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para nada. Uma parte da comida que, não sendo entregue, ficaria armazenada na camarata dos gatunos, não lhes seria necessária, não teriam capacidade de consumi-la integralmente, sozinhos. Além disso, uma boa parcela dos alimentos era perecível e estragaria den-tro de pouco tempo. Essas considerações sinalizam, portanto, que as ações maldosas não eram imprescindíveis à sobrevivência do grupo. A intenção dos dominadores era assumir o poder, provocar o desespero, a angústia, o terror, o medo nos outros cegos e sentir prazer com o sofrimento alheio, como se já não bastassem os males gerados pela cegueira, a perda da liberdade e a falta de assistência.

A violência, perpetrada assim de forma gratuita e sem benefício aparente a seus autores revela a especial crueza de sua lógica: ela basta por si mesma, não requer uma razão que esteja fora dela. Os cegos maus a praticam e dela extraem um prazer que basta por si só. (Teixeira, 2010, p.23)

Por meio da ação desses seres inescrupulosos, ocorre a duplica-ção da tirania a que os cegos estavam submetidos: externamente, por parte do governo e agora, internamente, pelo grupo dos mal-vados. Sem encontrar outra alternativa, por medo e pelo desejo de sobrevivência, os outros cegos confinados rendem-se às ordens dos rebeldes. Na camarata onde estava o médico, ele e o primeiro cego foram eleitos para arrecadar os pertences. Entre os objetos da mulher do oftalmologista estava uma tesoura, da qual decidiu não se desfazer. Pouco a pouco, foi recolhido “o que cada um tinha para entregar, alguns protestavam que estavam a ser vergonhosamente roubados, e era uma pura verdade, outros desfaziam-se do que pos-suíam com uma espécie de indiferença” (Saramago, 2008, p.143).

Os representantes da primeira camarata, quando vão entregar o que fora recolhido, deparam-se com a organização dos malvados, que haviam improvisado um balcão, realizavam a avaliação dos objetos, dos quais um cego comum tomava nota, escrevendo em braille. Esse homem, já acostumado à sua condição, lidava com a si-

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tuação com mais facilidade que os demais confinados. Sua presença no grupo dos malvados marca mais uma ironia da narrativa, pois

De todos os homens, aquele que melhor poderia entender as mazelas vividas pelos doentes, aquele que conviveu por toda a vida com as limitações que a cegueira impõe, é justamente o que maior ameaça representa, pois sabe tudo o que se deve saber para viver cego, e que pode tirar vantagem da inexperiência alheia. (Teixeira, 2010, p.24)

O inventário dos objetos entregues era realizado inicialmen-te pelo líder do bando, o dono da pistola, que intimidava os que reclamavam da quantidade de comida disponibilizada. Segundo espionagem da mulher do médico, o grupo era formado por apro-ximadamente vinte cegos, a camarata não estava cheia, ninguém precisava dormir no chão. Tinham estabelecido um esquema de vigilância, ficava sempre uma sentinela a guardar a porta, para pro-teger o grupo e as caixas de comidas empilhadas, que não tinham sido distribuídas. Inconformados, alguns cegos se reuniram para invadir o espaço dos opressores, porém acabaram sendo expulsos de lá a tiros e pontapés; a camarata a que pertenciam deixou de re-ceber comida por alguns dias.

Com o decorrer do tempo e a escassez de objetos, a ordem dos usurpadores foi modificada. “Passada uma semana, os cegos mal-vados mandaram recado de que queriam mulheres. Assim, simples-mente, Tragam-nos mulheres [...] Se não nos trouxerem mulheres, não comem” (Saramago, 2008, p.165). A exigência levantou um grande conflito. O primeiro cego afirmava que sua esposa não iria. Algumas mulheres, a princípio, disseram que não se submeteriam a tais condições, diziam que isso poderia ferir a dignidade feminina. Outras, sozinhas, reclamavam que não estavam dispostas a pagar a comida dos homens. Ponderando melhor depois do susto provoca-do pela imposição, ainda que amedrontadas, prezando não só pelas próprias vidas, mas também pelas dos homens, por quem se sen-

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tiam responsáveis, as mulheres decidiram concordar com a exigên-cia. As cenas da violência sexual sofrida por elas são impactantes.

A crueza e a nitidez de pormenores do brutal relato da violação criam um quadro de grande realismo, insuportavelmente pictórico, quase tangível, em que o sadismo dos violadores e a sua absoluta falta de sentimentos realçam a extraordinária abnegação das víti-mas. (Figueira, 1999, p.9)

Tiveram as mulheres de enfrentar “o furor erótico de vinte ma-chos desenfreados que, pela urgência, pareciam estar cegos de cio” (Saramago, 2008, p.165), proferindo obscenidades, insultos, or-dens, gemidos e pancadas, de forma descomedida. Uma das mulhe-res da primeira camarata, a cega das insônias, não suportou tama-nha violência e, ao final, teve de sair arrastada pelas companheiras, cujo estado em que se encontravam não era muito diferente daquela a quem carregavam:

Nesse preciso momento a cega das insônias foi-se abaixo das pernas, literalmente, como se lhas tivesssem decepado de um golpe, foi-se-lhe também o coração abaixo, nem acabou a sístole que tinha começado, finalmente ficamos a saber por que não podia esta cega dormir, agora dormirá, não a acordemos. Está morta, disse a mulher do médico, e a sua voz não tinha nenhuma expressão, se era possível uma voz assim, tão morta como a palavra que dissera, ter saído de uma boca viva. Levantou em braços o corpo subitamente desconjuntado, as pernas ensanguentadas, o ventre espancado, os pobres seios descobertos, marcados com fúria, uma mordedura num ombro, Este é o retrato do meu corpo, pensou, o retrato do corpo de quantas aqui vamos, entre estes insultos e as nossas dores não há mais do que uma diferença, nós, por enquanto, ainda esta-mos vivas. Para onde a levamos, perguntou a rapariga dos óculos escuros, Agora para a camarata, mais tarde a enterraremos, disse a mulher do médico. (Saramago, 2008, p.178)

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A exploração sexual durou pouco, pois a esposa do médico, compadecida pela morte da cega das insônias e encorajada pelo sofrimento das outras mulheres, decide liquidar o chefe tirano, de-sestabilizando o grupo dos malvados. Observa-se que

Na primeira oportunidade a mulher do médico e as outras mulheres de sua ala submetem-se aos cegos da ala dos malvados e, apesar do asco ela não se insurge contra seu destino. Apenas quando as mulheres de uma outra ala são intimadas a comparecer e prestar sua parte de sacrifício, portanto, diante do sofrimento alheio e não do próprio é que a mulher do médico alcançará seu limite e tomará a decisão que mudará a sorte de todos os cegos. (Teixeira, 2010, p.25)

Acompanhando as mulheres de outra camarata,

a mulher do médico observava os movimentos daquele que não tar-daria a matar, como o gozo o fazia inclinar a cabeça para trás, como já parecia estar a oferecer-lhe o pescoço. Devagar, a mulher do médico aproximou-se, rodeou a cama e foi colocar-se por trás dele. [...] A mão levantou lentamente a tesoura, as lâminas um pouco separadas para penetrarem como dois punhais. [...] e fez descer violentamente o braço. A tesoura enterrou-se com toda a força na garganta do cego, girando sobre si mesma lutou contra as cartila-gens e os tecidos membranosos, depois furiosamente continuou até ser detida pelas vértebras cervicais. (Saramago, 2008, p.185)

Com tal gesto, a mulher do médico inverte o jogo, intimida os delinquentes e passa a dar as ordens: “Por cada dia que estivermos sem comer por vossa culpa, morrerá um dos que aqui se encontram, basta que ponha um pé para fora dessa porta” (Saramago, 2008, p.188).

Depois da morte do chefe dos opressores, os soldados não en-tregaram a comida como de costume. Sem alimentos para matar a fome, os cegos decidiram invadir a terceira camarata a fim de resgatar de lá a comida armazenada. No entanto, a missão foi um

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fracasso, pois os disparos do cego contabilista feriram a dois dos invasores e fez os atacantes recuarem. É curioso perceber que os cegos malvados, “antes tão prepotentes e agressivos, tão facilmente e com tanto gosto brutais, agora não façam mais do que defender--se, levantando barricadas e disparando lá de dentro à mão salva, como se tivessem medo de ir à luta em campo aberto” (Saramago, 2008, p.203). A fome e o temor de sofrer uma morte por inanição depois de toda a luta pela sobrevivência que tinham enfrentado até aquele momento tiravam o sono dos internados. Não houve tempo, todavia, para se traçar uma nova estratégia de ter acesso à comida estocada pelos vilões, pois uma das confinadas da segunda camarata tomou um isqueiro que não fora entregue na ocasião da arrecadação de objetos e pôs fogo à barricada de camas na entrada da camarata dos malvados:

Está de joelhos à entrada da camarata, mesmo junto às camas, puxa devagar os cobertores para fora, depois levanta-se, faz o mesmo na que está por cima, ainda na terceira, à quarta não lhe alcança o braço, não importa, os rastilhos estão preparados, agora é só chegar-lhes o fogo [...]. Começa pela cama de cima, a labareda lambe trabalhosamente a sujidade dos tecidos, enfim pega, agora a cama do meio, agora a cama de baixo. (Saramago, 2008, p.206)

A pouca água que os malvados tinham em seu quarto não foi capaz de evitar o incêndio que se formou. O fogo começa a con-sumir tudo o que encontra, demolindo o espaço que foi palco de tantas atrocidades. O pânico toma conta do manicômio. Na terceira camarata, as chamas se espalham pelos leitos, os cegos escalam a cabeceira das camas tentando alcançar as janelas, cujos vidros se estilhaçavam, permitindo a entrada do ar e intensificando o incên-dio. O narrador aproveita a ocasião para tecer uma reflexão sobre a inadequabilidade dessas camaratas:

Repare-se em como cada um dos catres, só por si, com a sua armação de ferros bicudos, pode tornar-se em uma mortal arma-

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dilha, vejam-se as consequências terríveis de haver uma só porta em camaratas que levam quarenta pessoas, fora as que dormem no chão, se o fogo chega lá primeiro e lhes tapa a saída, não escapa ninguém. (Saramago, 2008, p.207)

Ao longo da narração desse momento, paulatinamente, são uti-lizados vários termos e expressões relacionados ao campo semânti-co do fogo, com o objetivo de sinalizar o crescimento das chamas e a formação do incêndio:

Ao isqueiro, sucedem-se figuras como fogo, chama, punhal de lume, labareda, cortina ardente, fogueira, ardência do calor, vulcão de labaredas e tição a arder. A palavra fogo é usada insistentemente e a recorrência acentua seu poder de sugerir a intensidade do calor e das chamas, (Luft, 2008, p.121)

Os cegos, acreditando que era menos sofrido morrer com um tiro do que queimados, decidem sair e enfrentar os soldados. A mulher do médico, que a esta altura revelara a todos que não havia perdido a visão, adiantou-se ao grupo para intermediar o contato e pedir compaixão aos vigilantes:

Gritou, Por favor, pela vossa felicidade, deixem-nos sair, não disparem. Ninguém respondeu de lá. O holofote continuava apa-gado, nenhum vulto se movia. Ainda a medo, a mulher do médico desceu dois degraus, Que se passa, perguntou o marido, mas ela não respondeu, não podia acreditar. Desceu os restantes degraus, caminhou em direcção ao portão, [...] já não havia dúvidas, os sol-dados tinham-se ido embora, ou levaram-nos, cegos também eles, cegos todos por fim. (Saramago, 2008, p.209)

Surpresa, a mulher anuncia a todos que estavam livres, embora alguns não conseguissem sair. Nesse contexto, nos deparamos com o fogo, enquanto imagem demoníaca, que tudo destrói, algumas vezes com vistas à purificação. Esse incêndio faz desmoronar o ma-

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nicômio e vitima a muitas pessoas. Por outro lado, não se pode dei-xar de reconhecer que o fogo pode ganhar certa conotação positiva, uma vez que transformou em cinzas todas as relações impostas aos que ali foram encarcerados. Não precisavam mais se preocupar com o grupo de malvados, nem estavam mais sob a mira das armas dos soldados, tampouco continuavam prisioneiros, tinham readquirido a liberdade, ainda que muitos não pudessem desfrutar dela e que a situação externa não fosse muito diferente da interna. Junto ao prédio que ruía, virava pó toda a humilhação sofrida e todos os atos desumanos cometidos naquele espaço.

É durante o recolhimento no manicômio que as personagens sofrem um processo de animalização. Para se locomover com mais facilidade e segurança, os reclusos espelham-se nos quadrúpedes e se deslocam “de gatas”. Por conta da falta de higiene, afirma-se que os cegos “são como os porcos”, andam “de cara rente ao chão como suínos”. Ainda são comparados a animais a serem abatidos, “vão ali como carneiros ao matadouro”, são “trazidos em reba-nho” (Saramago, 2008, p.72-112 passim) ao manicômio e acabam empurrando-se, atropelando-se, esmagando-se e pisoteando-se uns aos outros.

O oftalmologista, sem conseguir encontrar papel para limpar--se, anda sujo por alguns instantes em busca de sua esposa e re-conhece que estavam se transformando em animais: “Há muitas maneiras de tornar-se animal, pensou, esta é só a primeira delas” (Saramago, 2008, p.97). A mulher do médico tem a mesma im-pressão que o marido. Ela desabafa: “Estes cegos, se não lhes acu-dirmos, não tardarão a transformar-se em animais, pior ainda, em animais cegos” (Saramago, 2008, p.134). Por isso, tenta estabelecer uma organização e adverte aos confinados: “Se não formos capazes de viver inteiramente como pessoas, ao menos façamos tudo para não viver inteiramente como animais” (Saramago, 2008, p.119).

No episódio do abuso sexual, a falta de escrúpulos intensifica a bestialidade dos cegos, como expressa o relato construído pelo narrador. Conta ele que seguiam para o quarto dos malvados “uma fila grotesca de fêmeas malcheirosas, com as roupas imundas e an-

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drajosas, parece impossível que a força animal do sexo seja assim tão poderosa, ao ponto de cegar o olfato, que é o mais delicado dos sentidos” (Saramago, 2008, p.174, grifo nosso). E acrescenta que, “quando os cegos pressentem a chegada das mulheres, saem da ca-marata “gritos, relinchos, risadas. [...] Depressa, meninas, entrem, entrem estamos todos aqui como uns cavalos, vão levar o papo cheio” (Saramago, 2008, p.174, grifo nosso). Uma das cegas uivava de de-sespero. Um dos homens resfolegava “como um cerdo engasgado” (Saramago, 2008, p.177), os outros davam patadas no chão e agiam como “hienas em redor de uma carcaça” (Saramago, 2008, p.176).

Além da falta de higiene e das atrocidades cometidas pelos mal-vados, assemelham-se também a animais os internados porque pouco raciocinam, tomados pelo medo e pelo horror da situação. Agem instintivamente, sem pensar, algumas vezes acreditando que a violência é a melhor saída para acabar com os conflitos: “O que estes malandros estão a pedir é uma boa sova” (Saramago, 2008, p.107), sem perceber que quanto mais divergências suscitassem, mais insuportável se tornaria a convivência, já que não haveria in-tervenção externa e não saberiam por quanto tempo teriam de per-manecer ali.

A configuração do manicômio, apresentado como um lugar in-desejável a qualquer ser humano, se alinha profundamente às con-siderações de Frye sobre as imagens demoníacas. Segundo ele, os espaços demoníacos podem manifestar-se como prisões, lugares de tortura ou labirintos. O manicômio de Ensaio sobre a Cegueira con-grega esses três elementos. Em primeiro lugar, caracteriza-se como uma prisão, pois cada cego, uma vez que atravessava a “porta que o separava do mundo” (Saramago, 2008, p.211), tornava-se prisio-neiro, era impedido de deixar o local e estava o tempo todo sob a vigilância do exército. Observando-se a descrição do lugar, é possí-vel perceber na estrutura arquitetônica do prédio o fechamento de que trata Goffman (2005, p.16). O sociólogo destaca que algumas instituições, para impedir parcial ou totalmente o contato dos inter-nados com o mundo externo, apresentam certo fechamento tanto em suas formas de organização, com preceitos rigorosos, quanto em

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sua estrutura física, contendo portas fechadas, paredes altas, arame farpado, entre outros. O manicômio era uma construção rodeada de muros e cercas, com uma escada no átrio e com um portão de gra-des, aberto apenas o suficiente para as pessoas passarem e fechado imediatamente, características que reforçam a ideia de reclusão. O número de cegos que abrigava ia além de sua capacidade, fato que agravava ainda mais os problemas de convivência e as condições de higiene no local. Na parte interna, a visão das instalações é de-primente. Era um edifício antigo. Havia duas alas simétricas, com algumas camaratas,

corredores longos e estreitos, gabinetes que deviam ter sido de médicos, sentinas encardidas, uma cozinha que ainda não perdera o cheiro de má comida, um grande refeitório com mesas de tampos forrados de zinco, três celas acolchoadas até à altura de dois metros e forradas de cortiça daí para cima. Por trás do edifício havia uma cerca abandonada, com árvores mal cuidadas, os troncos davam a ideia de terem sido esfolados. Por toda a parte se via lixo. (Sara-mago, 2008, p.47)

Nota-se que, mesmo antes da habitação do espaço pelos cegos, o ambiente já mostrava marcas de degradação e abandono, que vão se intensificando ao longo da quarentena. As camaratas eram compridas “como uma enfermaria antiga, com duas filas de camas que tinham sido pintadas de cinzento, mas donde a tinta já há muito começara a cair. As cobertas, os lençóis e as mantas eram da mesma cor” (Saramago, 2008, p.47). Os catres eram formados por arma-ções pontiagudas. Nos armários estavam guardadas camisas de força. Cada quarto tinha apenas uma porta e as janelas ficavam no alto, quase inalcançáveis, por onde entrava uma “claridade, cinzen-ta, moribunda” (Saramago, 2008, p.200), uma “luz baça” (Sara-mago, 2008, p.63), contribuindo para o aspecto horrendo do lugar. Percebe-se que não se trata de um local adequado para acolher pessoas privadas da visão. Além disso, essa atmosfera sombria e

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cinzenta antecipa a crueldade, a violência, a tensão e as diversas situações lancinantes que os internados tiveram de enfrentar.

Lembra Michel Foucault que “a prisão esteve, desde sua ori-gem, ligada a um projeto de transformação dos indivíduos” (Fou-cault, 2008, p.131), propiciada, entre outros fatores, pelo “isola-mento do condenado em relação ao mundo exterior, a tudo o que motivou a infração, às cumplicidades que a facilitaram” (Foucault, 1986, p.211). A solidão, a distância da família e o encarceramento deveriam suscitar a reflexão, o arrependimento e a mudança de postura dos infratores, embora possamos hoje constatar que esse projeto de ressocialização, na maioria dos casos, não alcança o efei-to desejado. No romance de Saramago, ainda que os detentos no manicômio, convertido em prisão, não tivessem sido confinados em razão de crimes cometidos, mas pela contaminação da cegueira branca, certamente o período de reclusão, aliado às experiências vividas fora dali, antes de recobrar a visão, provocou algum tipo de transformação, no mínimo, a valorização da vida e da liberdade.

Em segundo lugar, o manicômio também se apresenta como um espaço de tortura. Os reclusos tiveram de estabelecer contato íntimo com estranhos, racionar a comida fornecida, ceder em suas posições, modificar suas atitudes, suportar a falta de higiene, de medicamentos e de apoio das instituições governamentais, a morte brutal de muitos internos, as ameaças e agressões dos soldados, o medo de que os militares invadissem as camaratas “varrendo à bala tudo o que encontrassem pela frente” (Saramago, 2008, p.90). Não se pode esquecer ainda das humilhações e do despotismo dos mal-vados, os quais exigiram os poucos objetos de valor que os demais cegos trouxeram consigo, violentaram sexualmente as mulheres, distribuíram de forma desigual os alimentos de que se apossaram indevidamente e provocaram uma guerra entre camaratas, que, obviamente, resultou em mortos e feridos, dor e indignação. Ao longo da trama, vão aparecendo ainda alguns objetos que se tornam instrumentos de tortura. O alto-falante, por exemplo, era o dispo-sitivo que divulgava o conjunto de regras estabelecido pelo governo a serem obedecidas pelos internos, as quais demonstram a indife-

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rença, a falta de preocupação e as ameaças à vida dos confinados. A pistola era o instrumento que garantia a liderança na camarata dos malvados. Fica evidente que o poder estava associado a quem detivesse a arma, quando, após a morte do líder, o cego escriturário rouba a pistola do bolso do defunto e passa a agir como dirigente do grupo:

O cego das contas gritou com autoridade aos seus, Calma, tenham calma, vamos já resolver este assunto, e com a intenção de dar mais convencimento à ordem disparou um tiro para o ar. O resultado foi precisamente o contrário do que esperava. Surpreen-didos por perceberem que a pistola já estava noutras mãos e que portanto iam ter um novo chefe, os cegos deixaram de lutar com as cegas, desistiram de tentar dominá-las. (Saramago, 2008, p.187)

Todavia, talvez porque também sofressem uma espécie de do-minação por parte do líder do grupo (mas continuavam ali para usufruir das regalias proporcionadas), parece que os cegos da ter-ceira camarata estavam à espera de que as munições se acabassem a fim de que ninguém tivesse motivos para impor suas vontades e achar-se superior aos outros, conforme sugere o narrador:

Depois da trágica morte do primeiro chefe se havia relaxado na camarata o espírito da disciplina e o sentido da obediência, o grande erro do cego da contabilidade foi ter pensado que bastava apoderar--se da pistola para ter com ela o poder no bolso, ora o resultado foi precisamente ao contrário, cada vez que faz fogo sai-lhe o tiro pela culatra, por outras palavras, cada bala disparada é uma fracção de autoridade que vai perdendo. (Saramago, 2008, p.203)

Os ferros arrancados das cabeceiras das camas se convertem em bastões de guerra, com os quais os cegos agridem-se. Uma tesoura perde suas utilidades rotineiras e se transforma na arma que executa o dirigente dos malvados. Desde que fora encontrada e pendurada na parede sem que ninguém se desse conta de sua existência, a te-

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soura já manifestava algo mágico, um ar misterioso, insólito, ante-cipando o acontecimento fatal para o qual seria usada:

A mulher do médico olhava a tesoura, tentava pensar porque razão a estaria olhando assim, assim como, assim, mas não encon-trava nenhuma razão, realmente que razão poderia achar-se numa simples tesoura comprida, deitada nas mãos abertas, com as suas duas folhas niqueladas e as pontas agudas e brilhantes. (Saramago, 2008, p.142)

No fundo, o olhar fixo e os questionamentos da mulher do mé-dico sobre a tesoura marcam nessa personagem a busca da cora-gem para tomar uma atitude mais drástica diante dos atos sórdidos dos cegos da terceira camarata. A mulher parece não acreditar que a ideia de que pudesse matar alguém estava se formando em sua mente. Ela só concretiza o ato porque imagina que beneficiaria aos demais e porque acompanha o sofrimento das mulheres, explo-radas sexualmente. O sentimento de culpa que a corrói depois de executado o assassinato parece dissipar-se apenas quando o fogo do incêndio consome completamente a tesoura usada para aniquilar o chefe dos ladrões. A destruição do objeto marca simbolicamente a atenuação do remorso pelo delito:

Foi como se estivesse a ver as chamas a envolverem a tesoura, queimando primeiro o sangue seco que ainda houvesse nela, depois mordendo-lhe o fio, as pontas agudas, embotando-os, e aos poucos tornando-os rombos, brandos, moles, informes, não se acredita que isto pudesse ter perfurado a garganta de alguém, quando o fogo acabar o seu trabalho será impossível, na massa única do metal fundido, distinguir onde está a tesoura. (Saramago, 2008, p.228)

Aproximando-se da tesoura, o isqueiro utilizado pela mulher para atear fogo às camas constitui mais um objeto de tortura da nar-rativa, que incendeia o espaço, mata e fere a muitos dos confinados. A ligação entre esses dois instrumentos é, inclusive, marcada tex-

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tualmente, quando o narrador relata que o isqueiro produzia uma longa chama, que parecia “um pequeno punhal de lume, vibrante como a ponta duma tesoura”. (Saramago, 2008, p.206)

Por último, o manicômio pode ser descrito como um labirinto por causa da dificuldade de locomoção dos cegos nele alojados, “tinham medo de perder-se no labirinto que imaginavam, salas, corredores, portas fechadas, escadas que só se revelariam no último momento” (Saramago, 2008, p.73). Os internados chocavam-se com as camas, deitavam-se nos leitos que não lhes pertenciam, tardavam a encontrar os sanitários. Vale recordar que a mulher do médico transformara tiras de um cobertor em um longo fio, cujas pontas estavam atadas uma ao puxador da porta da camarata e outra no tornozelo de quem saía, para facilitar a movimentação dos atin-gidos pelo mal branco. Esse cordão faz lembrar o fio de Ariadne, utilizado por Teseu para encontrar a saída do mítico labirinto habi-tado pelo Minotauro. Contudo, na narrativa de Saramago, embora não conduzisse os cegos para fora do prédio, permitindo apenas que voltassem ao ponto de origem, ao quarto, essa corda funcionava como um instrumento seguro de orientação, auxiliando os internos a vencer o labiríntico manicômio.

A figura do grupo dos malvados, em especial do dono da pis-tola, encarna o “chefe tirânico – inescrutável, impiedoso, taciturno e de vontade insaciável que impõe lealdade” (Frye, 1973, p.149) e que diminui os demais indivíduos. O homem que se tornou o comandante dos delinquentes assumiu tal liderança unicamente porque portava uma arma de fogo e não porque merecia a confiança e a lealdade dos outros em razão de sua maneira de se comportar. Era ele quem ditava as regras, que fazia o reconhecimento dos bens exigidos em troca dos alimentos, que escolhia antes dos outros as mulheres que seriam obrigadas a satisfazer suas necessidades sexu-ais. Seu comando regia-se por ameaças, por imposição, pela violên-cia. A atuação dessa personagem e seu grupo, ao lado do governo e dos soldados, compõe o quadro representativo dos vilões cheios de vilania, que, segundo Frye (1973, p.152), marcam a analogia da inocência. O governo, já vimos, não foi capaz de administrar a

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situação. Sem saber o que fazer com os contaminados pela cegueira, realizou a segregação dos cegos, “não sob a forma de tratamento ou apoio, mas em termos de completa exclusão social” (Seixo, 1999, p.114). Tendo aprisionado os infectados em um manicômio, não prestava mais nenhum tipo de assistência. Os soldados, designados à vigilância dos cegos confinados, tratavam os internos com muita agressividade, tirania, desprezo e zombaria. Os cegos rebeldes, por fim, confiscaram por capricho os escassos bens que os demais cegos trouxeram consigo e, não satisfeitos, exigiram relações sexuais com as mulheres em troca de alimentos, um gesto hediondo, de tremen-da brutalidade. Foram também os responsáveis por provocar uma divisão entre os próprios confinados e por incitar uma briga entre as camaratas, resultando em pessoas mortas e feridas. Seus des-mandos fizeram com que a mulher do médico matasse o chefe do grupo e que uma das cegas, indignada, pusesse fogo no quarto dos rebeldes, causando um incêndio no manicômio.

A “vítima sacrifical, que tem de ser morta para fortalecer os outros” (Frye, 1973, p.149), também se manifesta na narrativa de Saramago. Uma delas foi a cega das insônias, que não resistiu à ex-ploração sexual dos malvados. Sua morte e o sofrimento das demais mulheres, entre outros fatores, encorajaram a esposa do médico a liquidar o chefe dos rebeldes. A confinada que pôs fogo na terceira camarata também serviu de vítima sacrifical. A mulher decidiu perder sua vida para propiciar a sobrevivência e, mesmo sem imagi-nar, a liberdade dos outros cegos. Quando o fogo começou a se alas-trar, ela “sentiu o cheiro dos seus próprios cabelos chamuscados, deve ter cuidado, ela é a que deita fogo à pira [...] já era o seu próprio corpo o que estava a alimentar a fogueira” (Saramago, 2008, p.206).

A angústia da liberação de que fala Goffman (2005, p.66), ou seja, o medo de deixar o manicômio e não conseguir readaptar-se ao mundo exterior, aparece logo após o incêndio. Muitos cegos ten-tam crer que os vigilantes haviam se confundido, se atrasado e logo voltariam, outros prometem ficar ali até o amanhecer, alguns ainda guardam a esperança de que “os soldados, ou outros por eles, a cruz vermelha é uma hipótese, lhe tragam a comida, e os outros confor-

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tos necessários à vida, o desengano, para estes, chegará um pouco mais tarde” (Saramago, 2008, p.212). Verifica-se, dessa forma, o desejo por parte desses cegos de manutenção da rotina a que tinham se habituado e o temor de começar uma nova etapa em suas vidas.

O descaso, a tortura, o abandono, o tratamento agressivo, abusi-vo e autoritário dispensado aos internos por parte do governo e dos soldados do exército, os desmandos dos cegos malvados, as precá-rias condições de higiene, a escassez de alimentos, os conflitos de convivência são fatores que configuram o manicômio como um es-paço demoníaco, como expressão de um mundo de pesadelos, que nenhum ser humano desejaria habitar. Lançados à própria sorte nesse ambiente símbolo da loucura, os confinados tiveram de lutar contra o desvario e reaprender a viver diante da sua nova condição.

Tendo deixado o manicômio após o incêndio, numa cidade em nada semelhante ao que eles conheceram antes de perder a visão, os cegos teriam de enfrentar outros tipos de dificuldades, obstáculos e conflitos. Estava aberta a temporada de novos desafios.

O périplo pela cidade e a libertação do mal branco

Ao deixar o manicômio incendiado, a mulher do médico levou consigo, além do marido, o primeiro cego e sua esposa, o velho da venda preta, a rapariga dos óculos escuros e o rapazinho estrábico. Essas pessoas haviam sido pacientes do oftalmologista, conviveram juntas na primeira camarata durante o período de quarentena e, por isso, manifestavam algum laço de amizade. O grupo formado tinha a vantagem de possuir em seu meio alguém que não perdera a visão e que podia guiá-los.

Os cegos que acabavam de sair do isolamento encontraram a cidade convertida em um ambiente irreconhecível. Ainda no ma-nicômio, já tinham ouvido, por meio do relato do velho da venda preta, um dos últimos a chegar ali, uma narração do estado caótico em que se encontrava a área urbana: a contaminação crescia ver-

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tiginosamente, médicos tentavam inutilmente buscar a cura do mal branco e acabavam cegos, acidentes no trânsito e abandono de veículos nas vias tinham se tornado comuns. O sistema bancário entrara em colapso, com pessoas querendo retirar todas as suas eco-nomias, levando muitas agências à falência. O desespero e a busca exagerada pelo capital financeiro, todavia, eram inúteis, uma vez que o dinheiro não serviria para mais nada, visto que o comércio se extinguira e as transações monetárias deixaram de existir quando todos perderam a visão. Os caixas eletrônicos, mesmo assaltados e destruídos, agradeciam ironicamente a preferência dos clientes por meio de mensagens programadas que já não faziam mais nenhum sentido.

A desordem anunciada pelo velho em seu relato pôde ser consta-tada pela mulher do médico enquanto percorria a cidade. Observa ela que as pessoas deslocavam-se em grupos, trajadas com roupas muitas vezes desproporcionais ao seu tamanho. Pareciam fantas-mas, caminhavam rente aos prédios, com os braços estendidos, voltados para a frente. Se havia algum choque entre os ajuntamen-tos de cegos, não mais surgiam reclamações, uma das “famílias” despegava-se da parede e seguia o seu caminho. Nessas colisões, era comum também que alguém se perdesse de seu grupo e se unisse a outro. Sem conseguirem encontrar seus familiares e suas residên-cias, os cegos abrigavam-se para dormir em lojas e nas casas que puderam ser arrombadas ou que permaneceram abertas quando os seus donos foram levados.

Para garantir que nenhum dos seus se perdesse, como via acon-tecer com os outros grupos, a mulher do médico

dispôs os companheiros em duas filas de três, na primeira colocou o marido e a rapariga dos óculos escuros, com o rapazinho estrábico ao meio, na segunda fila o velho da venda preta e o primeiro cego, um de cada lado da outra mulher. (Saramago, 2008, p.248)

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Esta era uma forma de manter os cegos perto de si e tentar impe-dir que eles se separassem ao longo do caminho. Além disso, ela os entrelaça com uma corda:

O que está a fazer agora é a passar à volta de todos e de si própria uma corda de tiras de pano entrançadas, feita enquanto os outros dormiam, Não se agarrem a ela, disse, agarrem-na, sim, com toda a força que tiverem, não a larguem em caso algum, seja o que for que aconteça. Não deviam caminhar demasiado juntos para não tropeçarem uns nos outros, mas teriam de sentir a proximidade dos seus vizinhos, o contato se fosse possível. (Saramago, 2008, p.249)

Essa iniciativa da mulher do médico revela sua preocupação com os companheiros. Da maneira como os dispôs tamanha era a harmonia que pareciam um único ser a vagar pela cidade, “um grupo heterogêneo que se torna coeso e no seio do qual surgem re-lações afetivas de cruzamento” (Seixo, 1999, p.100), manifestando, assim, a metáfora apocalíptica que considera “um grupo ou reunião de seres humanos como a um corpo” (Frye, 1973, p.144), demons-trando união.

Além dessa passagem, há outras em que os cegos fundem-se a ponto de parecer um único ser. Em dois momentos no manicômio, utiliza-se a imagem de uma pinha para descrever como eles se loco-moviam. O primeiro deles se dá quando alguns dos confinados não permitiram aos demais recolher sua cota de comida. Indignados, dispostos a resolver tudo por meio de um diálogo civilizado, os cegos da primeira camarata “avançando juntos, como uma pinha, romperam caminho por entre os cegos das outras camaratas. Quan-do alcançaram o átrio, a mulher do médico compreendeu logo que nenhuma conversação diplomática iria ser possível” (Saramago, 2008, p.138). Embora a tentativa tenha falhado, pois os malvados possuíam uma pistola e armas improvisadas, o trecho demonstra a boa intenção do grupo.

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A comparação com a pinha retorna uma vez mais quando, por conta do incêndio, se aproximam as pessoas que doravante forma-riam o grupo da mulher do médico:

Só agora é que consegui sair da camarata, a culpa foi do rapazi-nho estrábico que ninguém conseguia saber onde se tinha metido, agora já está aqui, agarro-o com força pela mão, teriam de arran-car-me o braço para que eu o largasse, com a outra mão seguro a mão do meu marido, e depois vem a rapariga dos óculos escuros, e depois o velho da venda preta, onde está um está outro, e depois o primeiro cego, e depois a mulher dele, todos juntos, apertados como uma pinha, que, espero bem, nem este calor há-de abrir. (Saramago, 2008, p.208)

Os cegos se aglomeram por causa do medo de serem consumi-dos pelas chamas. Entretanto, ao acercar-se, o calor humano, as mãos fortemente entrelaçadas e a confiança da esposa do oftalmo-logista suscitam algum alento e fazem nascer a certeza de que nada seria capaz de separá-los, nem mesmo o fogo que se alastrava por todo o prédio. Assim que atravessaram os portões do manicômio, não se dispersaram, ficaram

sentados juntinhos, as três mulheres e o rapaz no meio, os três homens em redor, quem os visse diria que já nasceram assim, é verdade que parecem um corpo só, com uma só respiração e uma única fome. Um após outro, foram adormecendo, um sono leve de que tiveram de acordar algumas vezes porque havia cegos que, saindo do seu próprio torpor, se levantavam e vinham tropeçar sonambulamente neste acidente humano. (Saramago, 2008, p.213, grifo nosso)

Durante as refeições, a união do grupo provoca a partilha, de sorte que “o que é de cada um, é de todos” (Saramago, 2008, p.240). No banho das mulheres na varanda da casa do médico, como ve-remos adiante, a fraternidade entre elas naquele instante leva o

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narrador a afirmar que ali estava “a única mulher com dois olhos e seis mãos que há no mundo” (Saramago, 2008, p.266). Além disso, o encontro do primeiro cego com sua esposa no manicômio traz à tona a ideia de um casal como uma só carne, já que os dois, “abra-çados, eram um corpo só” (Saramago, 2008, p.66). Todas essas situações retratam que, apesar de todas as dificuldades, não foram esquecidos os sentimentos de fraternidade e união.

Transitando pela cidade com seu grupo, a mulher do médico descobre que das residências arrombadas ou abandonadas por seus moradores já haviam sido levadas toda a comida e as roupas que puderam ser encontradas. Os suprimentos alimentícios a cada dia se tornavam mais escassos. Para facilitar a situação, alguns grupos chegaram a pensar que a solução era viver em uma loja de alimen-tos, mas os conflitos que travariam com outros cegos não valeriam à pena.

Pelas ruas estão espalhados vidros estilhaçados, excrementos que propagam um odor fétido e inúmeros cadáveres humanos, que são devorados pelos animais. Há ainda lama e uma grande quanti-dade de lixo por toda a parte:

O aspecto das ruas piorava a cada hora que ia passando. O lixo parecia multiplicar-se durante as horas noturnas, era como se do exterior, de algum país desconhecido onde ainda houvesse uma vida normal, viessem pela calada despejar aqui os contentores, não fosse estarmos em terra de cegos veríamos avançar pelo meio desta branca escuridão as carroças e os camiões fantasmas carregados de detritos, sobras, destroços, depósitos químicos, cinzas, óleos quei-mados, ossos, garrafas, vísceras, pilhas cansadas, plásticos, mon-tanhas de papel, só não nos trazem restos de comida, nem sequer umas cascas de frutos com que pudéssemos ir enganando a fome, à espera daqueles dias melhores que sempre estão para chegar. A manhã vai ainda no princípio, mas o calor já se sente. O mau cheiro desprende-se da imensa lixeira como uma nuvem de gás tóxico, Não tarda que apareçam por aí umas quantas epidemias, voltou

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a dizer o médico, não escapará ninguém, estamos completamente indefesos. (Saramago, 2008, p.294)

A mulher do médico informa a seus companheiros que “não há água, não há eletricidade, não há abastecimentos de nenhuma espécie, encontramo-nos no caos, o caos autêntico deve ser isto” (Saramago, 2008, p.244). Ela ainda acrescenta que cozinhar já não era possível por causa da dificuldade de conseguir gás de cozinha e ao risco de se acender uma fogueira.

Os quintais ganharam um aspecto selvagem. Aos olhos da mu-lher do médico tinham se tornado “selvas em miniatura” (Sarama-go, 2008, p.238). Pareciam com “uma selva jamais explorada, as últimas chuvas tinham feito crescer abundantemente a erva e as plantas bravas trazidas pelo vento” (Saramago, 2008, p.286). Além disso, o mato infiltrava-se na calçada e cercava as rodas dos carros abandonados nas ruas.

Destaca Frye, quando trata da analogia da experiência, que “as cidades tomam naturalmente a forma da moderna metrópole labi-ríntica, onde a principal tensão emotiva reside na solitude e na falta de comunicação” (Frye, 1973, p.156). Se a estadia no manicômio havia sido um “labirinto racional” (Saramago, 2008, p.211), pois nele os doentes mentais são internados para recobrar a razão, a cida-de, antes um espaço de ampla movimentação, com trânsito intenso, cheia de edifícios e estabelecimentos comerciais, transforma-se em um “labirinto dementado” (Saramago, 2008, p.211), pelo qual os contaminados pela cegueira, se não estão descansando, perambu-lam, entre o lixo, os dejetos humanos e os cadáveres espalhados nas vias, em busca de comida e de abrigo, sem ter noção do rumo que tomam, uma vez que a memória não lhes serve mais para indicar o caminho, apenas fornece imagens dos lugares. A mulher do mé-dico, inclusive, mesmo com a visão inalterada, chegou a perder-se pela área urbana, sentindo por alguns instantes a sensação de que não seria capaz de voltar para o lugar onde deixara o marido e os outros à sua espera.

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Ademais, embora os cegos estivessem a viver em bandos, domi-nava-lhes a solidão, a saudade dos familiares que se perderam, pois, ao contrário do grupo da mulher do médico, nos demais não havia cumplicidade, um laço de amizade mais forte:

Os grupos [...] vão perdendo e ganhando aderentes ao longo do dia, há sempre um cego que se tresmalha e se perde, outro que foi apanhado pela força da gravidade e vai de arrasto, pode ser que o aceitem, pode ser que o expulsem, depende do que traga consigo. (Saramago, 2008, p.249)

Os cegos perdiam-se não apenas geograficamente, mas tam-bém na tentativa de encontrar novas formas de sobreviver e de se organizar:

Tornada selva pela falta de visão de seus habitantes (assevera-ção que pode ser entendida tanto literalmente, dado o contexto do romance, tanto figuradamente, dada a situação urbana, e especial-mente metropolitana, da contemporaneidade), estabelece-se ao longo do relato uma correspondência entre o labirinto da cegueira e o da cidade, na qual os habitantes, uma vez começado o seu neces-sário processo de deambulação para encontrarem as suas novas for-mas de subsistência, constantemente se perdem. A cidade torna--se, portanto, o outro do mal-branco, seu equivalente ou espelho metafórico, uma vez que ao longo da narração o leitor “vê”, devido à técnica narrativa de Saramago, na qual o espaço da descrição é amplo, o que os cegos deambuladores não veem: a si próprios e à cidade que os vitima e é por eles vitimada. (Costa, 1999, p.142)

Se antes do surto do mal branco a cidade já podia ser considera-da um espaço dementado, principalmente os grandes centros, em virtude da agitação, da movimentação, do trânsito intenso e caó-tico, da rigidez de horários para a realização de diversas tarefas, do excesso de atividades que as pessoas realizam e que as faz acreditar que seu tempo é insuficiente e transcorre de forma muito acelera-

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da; após a epidemia, os acometidos pela cegueira converteram o ambiente urbano em uma área degradada, onde existiam apenas “a itinerância e a errância pelas ruas, à procura de suas antigas casas e de comida” (Richter, 2007, p.63).

Um ambiente como esse era uma ameaça à saúde das pessoas, que comiam o que encontravam, sem se importar se aquilo lhe faria bem ou não, apenas querendo sobreviver. Além da comida, os excrementos espalhados, o mau cheiro, a água suja, as bactérias poderiam provocar uma infecção. A falta de água era um atentado à vida. “O tempo está-se a acabar, a podridão alastra, as doenças encontram as portas abertas, a água esgota-se, a comida tornou-se veneno” (Saramago, 2008, p.283).

A visão da mulher do médico, olhando o espaço urbano negro sob o céu pesado, resume o que se tornara essa cidade, que talvez nem merecesse ser designada como tal:

Nem uma pálida luz nas janelas, nem um reflexo desmaiado nas fachadas, o que ali estava não era uma cidade, era uma extensa massa de alcatrão que ao arrefecer se moldara a si mesma em formas de prédios, telhados, chaminés, morto tudo, apagado tudo. (Sara-mago, 2008, p.260)

Essa vista aterradora converte a cidade em um espaço demo-níaco, completamente indesejável, impossível de despertar em al-guém a vontade de habitá-lo. Com a área urbana nessas condições, a mulher do médico e seu grupo precisavam abrigar-se em algum lugar. Pela localização de suas casas, a que estava mais próxima era a da rapariga dos óculos escuros, portanto, para lá se dirigiram. No caminho, a busca por vestimentas e sapatos inicia o processo de recuperação da dignidade desses seres submetidos a tortura e humi-lhação. Embora não tivessem se lavado, vestir roupas limpas, ainda que improvisadas e sem se preocupar com a beleza, já causava uma transformação em sua aparência. Além disso, se predominava no manicômio uma monocromia cinzenta, a indumentária de diferen-tes tonalidades devolvia as cores ao corpo dos cegos. A mulher do

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médico ainda fez questão, dentro das possibilidades, de combinar as estampas e os modelos e de descrever a cada pessoa “que cores e que padrões levavam postos, dessa maneira, com a ajuda da imagi-nação, poderão ver-se a si mesmas” (Saramago, 2008, p.231). Um gesto tão trivial como o de trocar as vestimentas, nesse caso, é capaz de proporcionar aos cegos uma visão de si próprios e de contribuir para o resgate da autoestima.

O apartamento da rapariga estava trancado. Em todo o prédio, encontraram somente uma pessoa no primeiro andar:

A mulher do médico bateu com os nós dos dedos na porta mais próxima, houve um silêncio expectante, depois uma voz rouca per-guntou, desconfiada, Quem está aí, a rapariga dos óculos escuros adiantou-se, Sou eu, a vizinha do segundo andar, estou à procura dos meus pais, sabe onde eles estão, que foi que lhes aconteceu, perguntou. Ouviram-se passos arrastados, a porta abriu-se e apa-receu uma velha magríssima, só a pele sobre os ossos, esquálida, de enormes cabelos brancos desgrenhados. Uma mistura nauseante de cheiros bafientos e de uma indefinível podridão fez recuar as duas mulheres. A velha arregalava os olhos, tinha-os quase brancos, Não sei nada dos teus pais, vieram buscá-los no dia a seguir a terem-te levado a ti. (Saramago, 2008, p.235)

A descrição dessa moradora é tocante. Os adjetivos que acom-panham o retrato, todos de ordem depreciativa, expressam a re-pugnância diante dessa personagem: passos arrastados, velha magríssima, esquálida, cabelos brancos e desgrenhados, mistura nau-seante, cheiros bafientos, indefinível podridão. Fisicamente, sua fi-gura aproxima-se de uma caveira e os odores que dela provinham associam-na a um cadáver.

A vizinha conta que não fora levada porque se escondera na casa da rapariga. Para se alimentar, inicialmente, recolhera a comida que havia nas demais casas do edifício. Quando os alimentos se esgota-ram, ela fora obrigada a buscar outro meio para não morrer de fome:

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A morte anda aí pelas ruas, mas nos quintais a vida não acabou, disse a velha misteriosamente, Que quer dizer, Os quintais têm couves, têm coelhos, têm galinhas, também há flores, mas essas não se podem comer, E como faz, É conforme, umas vezes apanho umas couves, outras vezes mato um coelho ou uma galinha, Crus, Ao princípio acendia uma fogueira, depois habituei-me à carne crua, e os talos das couves são doces. (Saramago, 2008, p.236)

A gravidade da situação, o instinto de sobrevivência e o desejo de viver fizeram com que a velha se habituasse a matar animais e a comer carne crua. Isso explica a mistura de cheiros bafientos que sentiram a rapariga e a mulher do médico quando da vizinha se aproximaram. Essa personagem expressa o regresso dos seres humanos ao primitivismo. Tal qual os homens do período paleolí-tico, essa mulher vivia da caça de galinhas e coelhos no quintal e da coleta de plantas comestíveis. A maneira selvagem de alimentar-se fica registrada no relato do narrador ao descrever o estado em que se encontrava a cozinha:

Tinham passado já o corredor, o fedor tornara-se insuportável. Na cozinha, mal iluminada pela escassa luz de fora, havia peles de coelho pelo chão, penas de galinha, ossos, e, sobre a mesa, num prato sujo de sangue ressequido, pedaços de carne irreconhecíveis, como se tivessem sido mastigados muitas vezes. (Saramago, 2008, p.237)

Observa-se nesse fragmento um exemplo de mutilação, aponta-do por Frye como um dos traços das imagens demoníacas. A velha matava os animais e, ao que parece, ia progressivamente separando as partes, as penas, o couro, a pele, a carne, os ossos. Ainda assim, fazia um tremendo esforço para conseguir extrair da carne crua os seus nutrientes.

O pouco contato que o grupo estabeleceu com a bruxa (forma pejorativa para se referir à vizinha) os fez enxergar que sua conduta se explicava pelo medo de que os cegos pudessem fazer-lhe algum mal, roubar os animais e as plantas que lhe serviam de sustento

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– lembre-se a advertência de que não deixassem o cão devorar ne-nhuma de suas galinhas – e, principalmente, por conta da solidão em que vivia, já que toda a sua família fora levada. “Afinal a bruxa tinha sentimentos, Não era má pessoa, ter ficado sozinha é que deve ter-lhe dado cabo do juízo” (Saramago, 2008, p.240). Ela ma-nifesta sua gratidão, agradecendo a comida que o grupo lhe deixara e ainda devolvendo as chaves da casa da rapariga que estavam em seu poder.

A alimentação dos animais também se modifica diante dessa nova realidade:

E os coelhos, e as galinhas, o que é que comem, perguntou a mulher do médico, Couves, ervas, restos, disse a velha, Restos, de quê, De tudo, até de carne. Não nos diga que as galinhas e os coelhos comem carne, Os coelhos ainda não, mas as galinhas ficam doidas de satisfação, os animais são como as pessoas, acabam por habituar-se a tudo. (Saramago, 2008, p.237)

As galinhas passam a comer restos de si mesmas ou de outros animais, de modo que a carne toma parte agora em sua alimentação. Há uma transgressão da ordem comum das coisas, o que faz dessas imagens verdadeiras representações indesejáveis.

Além desse episódio, aparecem, ao longo da narrativa, outras imagens ligadas ao demoníaco no mundo dos animais, retratando--os como monstros predadores. O cão das lágrimas, que passou a fazer parte do grupo, mata uma das aves da vizinha do primeiro andar, “estava a devorar uma galinha, tão rápido tinha sido o ataque que nem um sinal de alarme teve tempo de dar” (Saramago, 2008, p.247).

Pelas ruas da cidade, observa-se que os animais, antes domés-ticos, como cães e gatos, agora recusavam afagos e caçavam em grupos. A esposa do médico depara-se com uma matilha, que tinha encontrado um novo meio de sobreviver e saciar a fome. Haviam passado os cães a alimentar-se dos cadáveres espalhados pela cida-de, disputando espaço com os corvos e urubus:

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Uma matilha de cães devora um homem. Devia ter morrido há pouco tempo, os membros não estão rígidos, nota-se quando os cães os sacodem para arrancar ao osso a carne filada pelos dentes. Um corvo saltita à procura de uma aberta para chegar-se também à pitança. [...] Tinham aparecido mais cães, havia já disputa sobre o que restava do corpo. (Saramago, 2008, p.251-252)

Os homens, que antes lhes forneciam abrigo, alimento e cari-nho, tornaram-se presas indefesas dos cachorros. O lado monstru-oso desses animais se manifesta por meio de sua aparência assus-tadora. Além da aproximação com os corvos, os cães são também comparados a hienas, animais carnívoros que, na maioria das vezes, alimentam-se de carcaças:

Não admira que os cães sejam tantos, alguns já se parecem com hienas, as malhas do pelo são como as da podridão, correm por aí com os quartos traseiros encolhidos, como se tivessem medo de que os mortos e devorados recobrassem vida para lhes fazerem pagar a vergonha de morderem em quem não se podia defender. (Sara-mago, 2008, p.233)

Surgem ainda os ratos, como já era de se esperar, por causa da sujeira em que se encontrava a cidade. Contudo, eles se converte-ram em roedores gigantes, capazes de provocar medo aos seus pre-dadores mais convencionais, os gatos. “Enormes ratazanas, duas, com que não ousam atrever-se os gatos que por aqui andam vadian-do, porque são quase do tamanho deles e com certeza muito mais ferozes” (Saramago, 2008, p.256). Os cães, às vezes, serviam-se dos ratos também para matar a fome: “farejavam por toda a parte, escarvavam no lixo, algum levava na boca uma ratazana afogada” (Saramago, 2008, p.272). Como se verifica, o reino animal, por conta da alteração no modo de vida e no comportamento habitu-al dos seres que o compõe, contribui para a representação de um mundo do não desejo, que se configura em decorrência da cegueira epidêmica.

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Quando o grupo finalmente adentrou a casa da rapariga foi pos-sível perceber o contraste entre a repugnância advinda da descrição da cozinha da moradora do primeiro andar e a ordem que ainda existia no lar da moça, no qual “a cozinha estava limpa e arrumada, o pó sobre os móveis não era excessivo” (Saramago, 2008, p.238). Encontrar o espaço nessas condições evitava que tivessem de sair à procura de um abrigo para passar a noite. O grupo poderia desfru-tar novamente do privilégio de dormir em uma casa.

Com os sanitários já utilizados até o extremo pela vizinha, a rapariga e seus hóspedes puseram-se a aliviar no quintal para não repetir a falta de higiene do manicômio. Sem água para se lavarem, limparam-se improvisadamente com ervas e pedaços de tijolos. A dona da casa, entretanto, trouxe alguns lençóis e toalhas que encontrou nos armários. “Limpemo-nos a isto, disse, é melhor do que nada, e não há dúvida de que foi uma boa ideia, quando se sentaram para comer sentiam-se outros” (Saramago, 2008, p.244). A higiene, os cuidados com o corpo, a vergonha e a manutenção de condições mínimas de sobrevivência tornam-se preocupações ainda mais veementes por parte do grupo, depois da degradante experiência da quarentena. Mesmo com uma quantidade pequena de alimentos, dividida ainda com a moradora do primeiro andar, o jantar, iluminado pela luz de duas velas, “veio a ser uma festa de família, daquelas, raras” (Saramago, 2008, p.240).

Descansados, reabastecidos, o grupo deixou o apartamento da rapariga em direção ao próximo destino, a residência do oftalmo-logista. Pode-se considerar essa passagem pela casa da moça dos óculos escuros enquanto momento apocalíptico graças à amizade, à hospitalidade, ao retorno (ainda que ínfimo) à civilidade, à união, aos laços familiares que vão se formando e à alegria, que aos poucos vão amenizando nas personagens todos os maus-tratos sofridos no manicômio.

O percurso do grupo pelas ruas da cidade faz lembrar outro ele-mento apocalíptico, a metáfora do caminho: “A utilização humana do mundo inorgânico envolve a estrada tanto quanto a cidade com suas ruas, e a metáfora do caminho é inseparável de toda a literatura

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da demanda, quer explicitamente cristã [...], quer não” (Frye, 1973, p.146). Estabelecendo-se um intertexto com a Bíblia, pode-se asso-ciar o périplo dos cegos com a caminhada do povo de Israel em dire-ção à Terra Prometida. Os israelitas, guiados por Moisés, andaram por longos anos no deserto, enfrentando fome, sede, frio e conflitos pessoais na esperança de chegar à Canaã, a terra prometida, que manaria leite e mel. Os cegos do livro de Saramago, guiados por sua matriarca, a mulher do médico, atravessavam a cidade, agora reduzida a um cenário aterrador, enfrentando também inúmeras dificuldades, mas mantendo a esperança de reencontrar suas mora-dias, seus familiares e desejando que o pesadelo da cegueira tivesse fim. Tal como os israelitas que alcançaram a Terra Prometida, os sete peregrinos iam em busca de seu paraíso improvisado, a casa do médico, onde se estabeleceriam até recobrarem a visão. Essa volta que o grupo dá pelas ruas serve ainda na narrativa para descrever as condições em que se encontrava a área urbana após o surto, uma vez que, na medida em que vão percorrendo o trajeto, a mulher do médico e o narrador vão relatando a imundície que tomou conta da cidade e a forma como tentavam sobreviver seus habitantes.

A casa do médico, cujas chaves o dono trazia consigo, não fora arrombada. Durante a permanência nessa residência se estreitam a amizade entre os membros do grupo e o sentimento de que juntos formavam uma nova família. A habitação serve-lhes de refúgio e proteção até o fim do surto e a recuperação da visão. Por estar fecha-da desde o início da quarentena, a casa parecia “como que parada no tempo e, por conseguinte, anterior à devastação. Da clausura no manicômio passa-se assim ao casulo da casa, reencontro da intimi-dade e dos cheiros próprios ou revivificados” (Seixo, 1999, p.111).

A residência, que aparentemente não tinha nada de especial, ganha uma atmosfera paradisíaca por conservar-se livre da podri-dão em que se encontrava a cidade:

Foi portanto a uma espécie de paraíso que chegaram os sete peregrinos, e tão forte foi esta impressão, a que, sem demasiada ofensa do rigor do termo, poderíamos chamar transcendental, que

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se detiveram à entrada, como tolhidos pelo inesperado cheiro da casa, e era simplesmente o cheiro duma casa fechada, noutro tempo teríamos corrido a abrir todas as janelas, Para arejar, diríamos, hoje o bom seria tê-las calafetadas para que a podridão de fora não pudesse entrar. (Saramago, 2008, p.257)

A propriedade estava limpa, um tanto organizada, uma vez que a mulher do médico, não obstante as lágrimas que lhe eram inevitá-veis, conseguiu ordenar a casa enquanto esperava que a ambulância viesse buscar o seu marido assim que ele se contaminou. Os cegos hesitaram em adentrar o local, talvez por educação, talvez porque tinham medo de sujá-lo. Para que o espaço não se convertesse em imundície tiraram à porta os calçados imundos. Ainda que o cansa-ço os martirizasse, esperaram ordens dos anfitriões para procurar um assento. Da dona da casa receberam roupas limpas. O resgate do pudor pode ser notado enquanto se desnudavam. O primeiro cego, a princípio, parecia ter vergonha de despir-se junto aos ou-tros, mas acabou por lembrar-se que só a esposa do médico tinha olhos para vê-los. A rapariga tirava lentamente a vestimenta com o rosto ruborizado e, tal qual a mulher do primeiro cego, encobria os seios e o púbis. Depois de vestidos, a voz doce da mulher do médi-co deu algumas instruções com vistas a conservar as condições de higiene, na tentativa de impedir que se repetisse ali o estado a que chegara o manicômio.

Para visualizar os companheiros, já que a luz do dia estava a apagar-se, a dona da casa acendeu uma candeia de azeite. O tímido fogo que surgia nos bicos da lamparina tinha o poder de transfor-mar a fisionomia, a aparência dos cegos. “Sob a luz suavíssima os próprios rostos encardidos pareciam lavados, brilhavam os olhos dos que não dormiam” (Saramago, 2008, p.261), não pareciam mais “simples contornos sem sexo, manchas imprecisas, sombras a perderem-se na sombra” (Saramago, 2008, p.260). Eis aí o fogo e a luz apocalípticos, que modificam a imagem fantasmagórica que apresentavam os hóspedes. Reunidos à mesa, como uma grande fa-mília que se encontra em um dia de festa, à luz da candeia, os cegos

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partilhavam os alimentos que ainda lhes restavam. A organização, o aconchego da residência e a união familiar do grupo são elementos que caracterizam a casa do médico como uma imagem apocalíptica.

Outro aspecto que chama a atenção durante o tempo em que ficam hospedados na casa do oftalmologista é o simbolismo assu-mido pela água. Recurso natural de fundamental importância para a sobrevivência de qualquer ser vivo, a água sempre esteve presente no cotidiano dos seres humanos, prestando-se a diversas funções. Além disso, ela também ocupa papel relevante nas crenças, na vida social e no imaginário das pessoas, graças ao simbolismo que lhe é atribuído. Jean Chevalier e seus colaboradores apontam que “as significações simbólicas da água podem reduzir-se a três temas dominantes: fonte de vida, meio de purificação, centro de regene-rescência” (Chevalier, 2002, p.15), temas que se combinam e que se manifestam desde tempos remotos.

A água é apresentada como fonte de vida porque é essencial para a existência dos seres vivos. Segundo Oparin, em A origem da Vida (1956), foi em porções de água que os seres vivos tiveram origem. Nos mitos da criação, a água também se relaciona à origem da vida. O Gênesis afirma que o Espírito de Deus pairava sobre as águas, quando a terra era ainda informe e vazia (Bíblia, 1998, Gênesis 1,2). Tal como o sangue circula por todo o corpo humano, a água percor-re desde os cumes das montanhas até os veios subterrâneos do solo. Opondo-se ao deserto, a chuva traz a fertilidade à terra.

O segundo tema simbólico da água apontado por Chevalier (2002, p.15) toma-a como meio de purificação, elemento que lava, limpa e purifica, transcende o plano material e atinge o espiritual. As religiões judaico-cristãs, por exemplo, recorrem à água como instru-mento de purificação ritual no batismo, que liberta o indivíduo do pecado: “por sua virtude, a água apaga todas as infrações e toda má-cula. A água do Batismo, e só ela, lava os pecados, e [...] faz aceder a um outro estado: o do homem novo” (Chevalier, 2002, p.18).

O último tema dominante diz respeito às propriedades regene-radoras da água, presentes também no Batismo, tendo em vista que nesse ato ocorre um renascimento, uma renovação psíquica e

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espiritual. Cite-se, ainda, a lendária fonte da juventude, cuja água faria rejuvenescer quem a bebesse. Montanheses do sul do Vietnã acreditam que a água também serve como medicamento, porque leva consigo as impurezas do corpo; e ainda como poção de imorta-lidade (cf. Chevalier, 2002, p.16). O próprio ciclo hidrológico insta-la o significado de um eterno retorno, de renovação, renascimento.

Essas três grandes vertentes simbólicas associadas à água apa-recem em Ensaio sobre a Cegueira relacionadas a imagens apocalíp-ticas. Na casa do médico, durante uma das refeições, o rapazinho estrábico sentiu sede. Eis que surge o simbolismo da água como fonte de vida, capaz de saciar as necessidades vitais do organismo e também como elemento regenerador ao restituir a saciedade e devolver as forças a esses indivíduos que já tanto tinham sofrido no manicômio e na caminhada até a casa em que agora se encontravam.

Querendo matar a sede do garoto, a mulher do médico trouxe--lhe água do autoclismo:

A mulher do médico aproximou o copo dos lábios do rapazinho estrábico, disse, Aqui tens a água, bebe devagar, devagar, saboreia, um copo de água é uma maravilha, não falava para ele, não falava para ninguém, simplesmente comunicava ao mundo a maravilha que é um copo de água. (Saramago, 2008, p.263)

Atacado talvez pela sede despertada pelo rapazinho ou, na con-dição de anfitrião, sentindo-se na obrigação de oferecer água tam-bém aos demais convidados, o médico lembra-se de um garrafão que devia estar guardado. A dona da casa

Colocou-o sobre a mesa, foi buscar os copos, os melhores que tinham, de cristal finíssimo, depois, lentamente, como se estivesse a oficiar um rito, encheu-os. No fim, disse, Bebamos. As mãos cegas procuraram e encontraram os copos, levantaram-nos tre-mendo. Bebamos, repetiu a mulher do médico. No centro da mesa, a candeia era como um sol rodeado de astros brilhantes. (Saramago, 2008, p.264)

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Note-se o tom de celebração presente neste trecho. Uma nova família formada por laços afetivos, reunida à mesa, utilizando copos finos para brindar não com vinho, tampouco com champanhe, mas com água, limpa e potável, da qual não sentiam o gosto desde a quarentena. Nesse brinde, numa atmosfera de irmandade – apoca-líptica, portanto – os cegos e a mulher do médico celebravam, a des-peito da cegueira que ainda não os abandonara, a existência, a vida e também o amor, a solidariedade, a união, a amizade, sentimentos estes que os uniram e facilitaram o enfrentamento das situações sombrias a que foram submetidos.

Outro elemento presente na obra relacionado ao simbolismo apocalíptico da água é a chuva, que assume principalmente a fun-ção de purificação das personagens. Um desses momentos se dá quando muitos cegos expõem seus corpos à chuva torrencial que caía. O próprio narrador demonstra espanto:

Com uma chuva destas, que pouco lhe falta para dilúvio, seria de esperar que as pessoas estivessem recolhidas, à espera de que o tempo estiasse. Não é assim, porém, por toda a parte há cegos de boca aberta para as alturas, matando a sede, armazenando água em todos os recantos do corpo, e outros cegos, mais previdentes, e sobretudo mais sensatos, sustentam nas mãos baldes, tachos e panelas, e levantam-nos ao céu generoso, é bem certo que Deus dá a nuvem conforme a sede. (Saramago, 2008, p.225)

Nota-se, nesse fragmento, uma imagem apocalíptica, porque os cegos estão a matar a sua sede, a banhar-se e limpar-se da sujeira impregnada em seus corpos e roupas e ainda a armazenar água, uma vez que, com o surto de cegueira, não encontravam mais água limpa para beber. Essa chuva fazia parte dos desejos dos cegos, como se pode observar neste outro trecho:

É verdade que não havia água para se lavarem, pena que não estivesse a chover torrencialmente, como ontem tinha chovido, sairiam outra vez ao quintal, mas agora nus e sem vergonha, rece-

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beriam na cabeça e nos ombros a água generosa do céu, senti-la-iam escorrer pelo dorso e pelo peito, pelas pernas, poderiam recolhê-la nas mãos enfim limpas e por essa taça dá-la a beber a um sedento, quem fosse não importava, acaso os lábios tocariam levemente a pele antes de encontrarem a água, e, sendo a sede muita, sofre-gamente iriam recolher no côncavo as últimas gotas, acordando assim, quem sabe, uma outra secura. (Saramago, 2008, p.244)

Contudo, ainda mais marcante que essa cena é o banho e liba-ção das mulheres na varanda da casa do médico oftalmologista. O banho é, por excelência, símbolo de purificação. Aproveitando a chuva, a mulher do médico decidiu banhar-se e lavar as roupas e calçados sujos. De repente, juntam-se a ela a esposa do primeiro cego e a rapariga dos óculos escuros:

Estão além três mulheres nuas, nuas como vieram ao mundo, parecem loucas, devem de estar loucas, pessoas em seu perfeito juízo não se vão pôr a lavar numa varanda exposta aos reparos da vizinhança, menos ainda naquela figura, [...] meu Deus, como vai escorrendo a chuva por elas abaixo, como desce entre os seios, como se demora e perde na escuridão do púbis, como enfim alaga e rodeia as coxas, talvez tenhamos pensado mal delas injustamente, talvez não sejamos é capazes de ver o que de mais belo e glorioso aconteceu alguma vez na história da cidade, cai do chão da varanda uma toalha de espuma, quem me dera ir com ela, caindo intermina-velmente, limpo, purificado, nu. [...] três graças nuas sob a chuva que cai. (Saramago, 2008, p.266)

A descrição das personagens femininas e o próprio texto dia-logam com o quadro As três graças, pintado por Rubens.2 A cena também se relaciona às Três Graças ou Cárites da mitologia grega,

2 Peter Paul Rubens (1577- 1640): pintor flamengo, que atuou durante o bar-roco europeu. Pintou retratos, cenas religiosas e mitológicas, valorizando as cores e expressando movimento e dinamismo em suas telas.

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filhas de Zeus com Herinome, filha de Oceano. Segundo Mário da Gama Kury, elas eram “divindades da beleza, que adornavam a natureza e alegravam os deuses e os homens. Moravam no Olimpo com as Musas, e passavam o tempo cantando e dançando em coros com elas” (Kury, 1992, p.69). As Graças comumente “são repre-sentadas como três irmãs que têm os nomes de Eufrósina, Talia e Aglaia, três donzelas nuas agarradas umas às outras pelos ombros” (Grimal, 1993, p.75), que teceram o manto de Harmonia. As três figuras “influenciavam todas as manifestações da inteligência e as obras de arte” (Kury, 1992, p.69). Maria Alzira Seixo afirma que há no fragmento da narrativa de Saramago “a presença dos traços essenciais do mito: filhas das águas, ligadas pelos braços que se entrelaçam, olhando em duas direções diferentes e tecendo a roupa de Harmonia” (Seixo, 1999, p.119).

As três mulheres na varanda fazem lembrar essas personagens mitológicas em virtude da amizade, da harmonia e da felicidade que as toma durante um simples banho de chuva. Tanto no mito quanto no romance as figuras femininas “ensaboam-se carinhosa-mente e pela expressão dos olhares e da boca nota-se um certo con-tentamento, carinho e afetuosidade” (Guimarães, 2007, p.6). Na narrativa, enquanto se banhavam de forma fraternal, as mulheres pareciam resgatar a alegria, a ingenuidade, desfrutando de um mo-mento lúdico, de descontração, no qual puderam esquecer os pro-blemas, rir e deixar renascer a criança que havia em cada uma. Riam como “as meninas que brincavam à cabra-cega no jardim, no tempo em que ainda não eram cegas” (Saramago, 2008, p.268). O banho delas funciona como uma espécie de purificação, de retorno à vida. A água lava seus corpos e parece remover também a “sujidade in-suportável da alma” (Saramago, 2008, p.265), levando consigo todo o sofrimento, as mágoas, as angústias, as dores e as recordações da violência sofrida no manicômio. Nessa atmosfera quase mágica, as mulheres podiam recuperar a dignidade perdida por conta de tudo que tinham sido obrigadas a vivenciar até aquele instante.

À medida que a chuva caía, as três graças também dialogavam e trocavam elogios sobre a beleza de cada uma:

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Estou feia, perguntou a rapariga dos óculos escuros, Estás magra e suja, feia nunca o serás, E eu, perguntou a mulher do primeiro cego, Suja e magra como ela, não tão bonita, mas mais do que eu, Tu és bonita, disse a rapariga dos óculos escuros, Como podes sabê-lo, se nunca me viste, Sonhei duas vezes contigo, Quando, A segunda foi esta noite, Estavas a sonhar com a casa porque te sentias segura e tranquila, é natural, depois de tudo por que passámos, no teu sonho eu era a casa, e como, para ver-me, precisavas de pôr-me uma cara, inventaste-a, Eu também te vejo bonita, e nunca sonhei contigo, disse a mulher do primeiro cego, O que só vem demonstrar que a cegueira é a providência dos feios, Tu não és feia, Não, de fato não o sou, mas a idade, Quantos anos tens, perguntou a rapariga dos ócu-los escuros, Vou-me chegando aos cinquenta, Como a minha mãe, E ela, Ela, quê, Continua a ser bonita, Já foi mais, É o que acontece a todos nós, sempre fomos mais alguma vez, Tu nunca foste tanto, disse a mulher do primeiro cego. (Saramago, 2008, p.267)

A beleza ultrapassa o físico e nos lembra que alguém pode tor-nar-se belo por suas atitudes, seus gestos:

Numa cena intensamente poética, entre a mulher do médico, a mulher do primeiro cego e a rapariga dos óculos escuros, comple-tamente despidas e expostas à chuva, “três graças nuas sob a chuva que cai” substitui a noção comum da beleza subordinada à imagem física da juventude, na qual se esgota, por um conceito novo, que se assume como inteiramente subjetivo – a beleza é essencialmente interior, emana de dentro, transpondo todas as fronteiras do corpo, e cola-se ao olhar e à alma de quem vê de fora. (Figueira, 1999, p.10)

Na imaginação das outras duas mulheres, a esposa do médico havia sido projetada como uma figura dotada de uma beleza pe-culiar, graças às ações executadas por ela em benefício dos cegos. Com uma sentença tão singela como “Tu não és feia”, a mulher do primeiro cego emociona a única que ainda conservava a visão:

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Um pronome pessoal, um advérbio, um verbo, um adjetivo, e aí temos a comoção a subir irresistível à superfície da pele e dos olhos, a estalar a compostura dos sentimentos, às vezes são os nervos que não podem aguentar mais, suportaram muito, suportaram tudo, era como se levassem uma armadura, diz-se. A mulher do médico tem nervos de aço, e afinal a mulher do médico está desfeita em lágrimas por obra de um pronome pessoal, de um advérbio, de um verbo, de um adjetivo, meras categorias gramaticais. (Saramago, 2008, p.267)

Com essa intervenção para comentar a simplicidade da frase que despertou uma profunda comoção, o narrador ressalta que, muitas vezes, não se dá às palavras o seu devido valor, tomando-as como meros elementos, meras categorias gramaticais, porém elas podem ser revestidas de uma força invulgar capaz de provocar diversas reações, nesse caso, a emoção e as lágrimas que não puderam ser contidas pela mulher do médico. Portanto, nessa cena do banho das mulheres, que pode ser classificada como apocalíptica por causa da união e da afetividade que expressam,

Saramago dá-nos assim, num registo simultaneamente lírico e distanciado (estético), a epifania da beleza feminina ligada à epi-fania da criação verbal, ambas veiculando a emoção humana da comunicação, e representando o ponto culminante da recuperação da dignidade neste texto quase inteiramente consagrado às formas várias e mais terríveis da abjeção. (Seixo, 1999, p.120)

Além de purificar os seres humanos era a chuva que higienizava a cidade, arrastando o lixo espalhado e as demais sujidades das ruas. O incêndio no manicômio foi também apagado por “uma chuvinha miúda, uma simples poalha, é certo, mas dessa vez persistente, [...] já se sabe, água mole em brasa viva tanto dá até que apaga” (Saramago, 2008, p.213). Há ainda os respingos de água da chuva que o cão das lágrimas espirra nos cegos enquanto dormiam em uma loja. Essas gotículas podem ser consideradas regeneradoras à

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medida que os faz despertar da condição de pedras, com o coração endurecido por tudo o que estavam a vivenciar, e lembrar-lhes que eram seres humanos:

Estavam a sonhar que eram pedras, e ninguém ignora o quanto é profundo o sono delas [...]. O cão das lágrimas, que não conhecia linguagem, se pôs a abanar o rabo, o instintivo movimento fê-lo recordar-se que ainda não tinha feito aquilo a que estão obriga-dos os cães molhados, sacudirem-se com violência, respingando quanto estiver ao redor, neles é fácil, trazem a pele como se fosse um casaco. Água benta da mais eficaz, descida diretamente do céu, os salpicos ajudaram as pedras a transformarem-se em pessoas. (Saramago, 2008, p.227)

A água, enquanto símbolo de purificação também está presente no episódio da cega das insônias. Depois da violência sexual sofri-da na camarata dos cegos malvados, a mulher não resistiu e veio a óbito. A esposa do médico trouxe um recipiente com água até o leito da falecida, “queria lavar a cega das insônias, limpá-la do sangue próprio e do ranho alheio, entregá-la purificada à terra” (Saramago, 2008, p.180, grifo nosso). Depois foi a vez das demais mulheres aproveitarem a água para purificar os seus próprios corpos das mar-cas que a brutalidade dos malvados lhes deixou.

A água reaparece também em algumas ocasiões em forma de lágrimas. Lembre-se do momento em que a mulher do médico sai para buscar comida, perde-se pela cidade e desaba em prantos; ou quando chora compulsivamente ao encontrar os mortos na cave do supermercado. Ainda que o choro demonstre fragilidade, constitui uma forma de desabafar, de aliviar-se do desespero e da angústia, de externar a opressão interior do indivíduo. Somente no final da narrativa, quando os cegos começam a recobrar a visão é que as lágrimas passam a ser de contentamento.

É possível que esta cegueira tenha chegado ao fim, é possível que comecemos todos a recuperar a vista, a estas palavras a mulher

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do médico começou a chorar, deveria estar contente e chorava, que singulares reações têm as pessoas, claro que estava contente, meu Deus, se é tão fácil de compreender, chorava porque se lhe tinha esgotado de golpe toda a resistência mental, era como uma crianci-nha que tivesse acabado de nascer e este choro fosse o seu primeiro e ainda inconsciente vagido. (Saramago, 2008, p.307)

O choro da mulher do médico era de alegria, de alívio, de rege-neração mental e emotiva, embora tivesse dentro de si uma impres-são de solidão, por ter sido a única a acompanhar com sua própria visão o sofrimento das vítimas da cegueira branca.

Como se pode observar, a água é um elemento múltiplo no ro-mance, ora aparece para purificar as personagens dos males que assolam o corpo e a alma, ora ela é fonte de vida, regeneradora das forças, auxílio no resgate da vida, da alegria e da esperança. Sempre dotada de cargas positivas, associando-se a imagens apocalípticas, a água que jorra das páginas de Ensaio sobre a Cegueira alivia a tensão da narrativa e marca momentos de profundo lirismo, ligados aos desejos humanos mais profundos de união, amizade, felicidade, esperança, solidariedade.

Mesmo estabelecidos na casa do médico, por vezes era necessá-rio sair em busca de alimentos. Foi numa dessas expedições que a mulher do oftalmologista entrou em um supermercado, já bastante depredado pela ação dos cegos:

Lá dentro o aspecto não era diferente, prateleiras vazias, esca-parates derrubados, pelo meio vagueavam os cegos, a maior parte deles de gatas, varrendo com as mãos o chão imundo, esperando encontrar ainda algo que se pudesse aproveitar, uma lata de con-serva que tivesse resistido às pancadas com que tentaram abri-la, um pacote qualquer, do que fosse, uma batata, mesmo pisada, um naco de pão, mesmo feito pedra. A mulher do médico pensou, Ape-sar de tudo, algo haverá, isto é enorme. (Saramago, 2008, p.219)

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Os produtos que ainda restavam estavam sendo disputados a socos e empurrões pelos cegos. Tentando localizar um depósito, onde estariam estocados os produtos destinados à reposição dos itens vendidos, ao abrir uma porta que dava acesso a uma escada, a mulher se deparou com uma escuridão profunda que teria de en-frentar para chegar aos alimentos armazenados nesse salão abaixo do andar térreo. Sendo a cave um espaço subterrâneo, é válido re-correr à ideia de Gaston Bachelard (1989, p.36-37) de que o porão, o subsolo, remete sempre inconscientemente ao irracional ou a uma lenta racionalização. É exatamente o que se observa nos desvarios que perpassam a mente da esposa do médico antes de descer as es-cadas: ela sente medo da escuridão, de se deparar com fantasmas ou mesmo com um dragão. Apesar da confusão mental, venceu todos os degraus e pôde recolher alguns suprimentos. Ao sair, decidiu não avisar aos cegos que ainda havia um estoque de comida guardado no depósito. Fechara a porta e

dizia a si mesma que o melhor era calar, imagine-se o que acon-teceria, os cegos a correrem para lá como loucos, seria como no manicômio quando se declarou o incêndio, rolariam pelas escadas abaixo, pisados e esmagados pelos que viessem atrás, que cairiam também, não é a mesma coisa pôr o pé num degrau firme ou num corpo resvaladiço. E quando a comida se acabar poderei voltar por mais, pensou. (Saramago, 2008, p.224)

Lembrava-se ela que talvez pudesse voltar ali outras vezes para reabastecer-se. Ilude sua consciência com a desculpa de que po-deria provocar inúmeras mortes na escada, disputa pelos alimen-tos, um verdadeiro tumulto que, de fato, teria grandes chances de acontecer. Contudo, o cheiro do chouriço que havia ingerido e dos alimentos que carregava suscitou nos cegos a procura pelo esconde-rijo dos produtos e fez com que alguns tentassem atacar a mulher, que teve de correr para impedir que lhe tomassem os sacos cheios

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de provisões. Nesse instante, a narrativa faz menção ao quadro A liberdade guiando o povo, de Delacroix:3

Alguém tinha deitado a mão ao último farrapo que mal a tapava da cintura para cima, agora ia de peitos descobertos, por eles, lus-tralmente, palavra fina, lhe escorria a água do céu, não era a liber-dade guiando o povo, os sacos, felizmente cheios, pesam demasiado para levá-los levantados como uma bandeira. (Saramago, 2008, p.225)

Pintada em comemoração à queda de Carlos X, decorrente da Revolução de julho de 1830, ocorrida na França, a tela retrata a imagem de uma mulher com seios descobertos, a andar sobre os corpos dos derrotados, com a bandeira da França na mão direita e uma arma na esquerda, conduzindo o grupo de revolucionários, que apoiava o liberalismo. Essa mulher, representação da liberda-de e dos ideais liberais, guia o povo em direção ao fim do estado opressor. A narrativa de Saramago se reporta a essa tela em razão da semelhança entre a figura feminina retratada e a mulher do mé-dico, ambas com roupas esfarrapadas e seios nus. Ao contrário da cena pictórica, a situação da mulher do médico não era de vitória. Nas mãos, carregava não uma arma, tampouco uma bandeira, mas sacos cheios de alimentos. Não trazia os braços levantados, por causa do peso das sacolas: a pouca força que lhe restava precisava ser poupada. Ela também guiava o povo, não uma tropa de revo-lucionários, mas um pequeno grupo de cegos e uma matilha de cães que a seguiam em virtude do cheiro da comida. Enquanto no momento histórico retratado no quadro se lutava pelo liberalismo, vislumbrando um futuro melhor, as pessoas privadas da visão no romance viviam apenas o presente, na desconfiança de que pudesse

3 Eugène Delacroix (1798-1863): pintor romântico francês. Explorou o uso de cores, luzes e sombras para retratar momentos históricos, imagens exóticas, cenas violentas e sensuais.

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não haver amanhã. A mulher do oftalmologista era quem atenuava as inúmeras dificuldades provocadas pela cegueira.

Como previra, algum tempo depois a mulher regressa à cave do mesmo supermercado para reabastecer-se, porém depara-se com um acúmulo de corpos:

Estão mortos, Viste alguma coisa, abriste a porta, perguntou o marido, Não, só vi que havia fogos-fátuos agarrados às frinchas, estavam ali agarrados e dançavam, não se soltavam, Hidrogênio fosforado resultante da decomposição, Imagino que sim, Que terá sucedido, Devem ter dado com a cave, precipitaram-se pela escada abaixo à procura de comida, lembro-me de como era fácil escorregar e cair naqueles degraus, e se caiu um caíram todos, provavelmente nem conseguiram chegar aonde queriam, ou conseguiram-no e com a escada obstruída não puderam voltar, Mas tu disseste que a porta estava fechada, Fecharam-na com certeza os outros cegos, transformaram a cave num enorme sepulcro, e eu sou a culpada do que aconteceu. (Saramago, 2008, p.298)

Essa cave, situada no subsolo do supermercado, faz também alu-são ao Hades, o mundo subterrâneo dos mortos na mitologia grega, pois é em depósito de cadáveres que se converte o local. Acrescenta Nanci Geroldo Richter (2007, p.69) que os três lances da escada, “por onde se chegaria ao outro mundo” (Saramago, 2008, p.304), remetem aos três estágios da descida ao inferno, a saber, o Limbo, o Érebo e o Tártaro. Assim, esse episódio do supermercado serve à obra como uma representação da morte, que embora certa, é sem-pre indesejada pelos seres humanos:

A cave do supermercado condensa a ideia de morte, conside-rando que é escura, profunda, desconhecida – há escadas que a conduzem para sua parte interior – e é misteriosa, já que as perso-nagens não sabem o que há lá; e ela reforça a ideia de morte ao ser transformada em “sepulcro”, local onde muitos corpos de cegos estavam a putrefar, metaforizando a cave como a certeza de morte

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ao ser humano, uma vez que o fim da vida humana, de fato, é a morte. (Conrado, 2006, p.101)

O repositório do supermercado, que a princípio oferecera ao grupo do médico as provisões necessárias à sua subsistência, torna--se um espaço demoníaco por conta das mortes ocorridas, ao encon-tro estarrecedor da mulher com os cadáveres e à dolorosa sensação de que ela provocara o óbito daquelas pessoas, uma situação na qual nenhum ser humano gostaria de estar envolvido.

Ao deixar o supermercado, chocada com o que presenciara, a mulher do médico adentra também uma igreja. Apesar da superlo-tação do local, ainda assim ela encontrou um lugar para deitar-se e recuperar as energias. Ao observar o interior do templo, impressio-nou-se com o que viu: “todas as imagens da igreja tinham os olhos vendados, as esculturas com um pano branco atado ao redor da cabeça, as pinturas com uma grossa pincelada de tinta branca” (Sa-ramago, 2008, p.301). Nesse trecho da obra, a esposa do oftalmo-logista enumera as imagens sacras que estão diante de seus olhos:

Não podia ser verdade o que os olhos lhe mostravam, aquele homem pregado na cruz com uma venda branca a tapar-lhe os olhos, e ao lado uma mulher com o coração trespassado por sete espadas e os olhos também tapados por uma venda branca, [...] e estava além uma mulher a ensinar a filha a ler, e as duas tinham os olhos tapados, e um homem com um livro aberto onde se sentava um menino pequeno, e os dois tinham os olhos tapados, e um velho de barbas compridas, com três chaves na mão, e tinha os olhos tapados, e outro homem com o corpo cravejado de flechas, e tinha os olhos tapados, e uma mulher com uma lanterna acesa, e tinha os olhos tapados, e um homem com feridas nas mãos e nos pés e no peito, e tinha os olhos tapados, e outro homem com um leão, e os dois tinham os olhos tapados, e outro homem com um cordeiro, e os dois tinham os olhos tapados, e outro homem com uma águia, e os dois tinham os olhos tapados, e outro homem com uma lança domi-nando um homem caído, chavelhudo e com pés de bode, e os dois

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tinham os olhos tapados, e outro homem com uma balança, e tinha os olhos tapados, e um velho calvo segurando um lírio branco, e tinha os olhos tapados, e outro velho apoiado a uma espada desem-bainhada, e tinha os olhos tapados, e uma mulher com uma pomba, e as duas tinham os olhos tapados, e um homem com dois corvos, e os três tinham os olhos tapados, só havia uma mulher que não tinha os olhos tapados porque já os levava arrancados numa bandeja de prata. (Saramago, 2008, p.301)

Nesse fragmento, observa-se a utilização do conceito de écfrase, definido por Clüver (1997, p.42) como “a verbalização de textos reais ou fictícios compostos em sistemas não verbais”. A écfra-se consiste, portanto, em realizar uma descrição com palavras de uma obra ou objeto que não sejam construídos por meio delas. Nesse caso, a mulher do médico descreve as representações artísti-cas dos santos que estão no templo, sem mencionar seus respectivos nomes. Entretanto, a descrição de cada imagem permite, de acordo com as tradições católicas, identificar as figuras sacras às quais se faz referência. O homem pregado na cruz, por exemplo, remete indubitavelmente à imagem de Jesus Cristo. Quanto à menção de uma mulher com o coração trespassado por espadas, trata-se de Nossa Senhora das Dores, a qual é comumente retratada com o coração imaculado ferido por sete espadas, as quais simbolizam a dor, por conta da Paixão e Morte de seu Filho. A mulher a ensinar a filha a ler pode se referir a Santa Ana, que segura uma obra e traz Maria ao colo. Nessa linha, é possível identificar, uma a uma, todas as imagens evocadas no fragmento.

A maneira como os santos aparecem representados nesse rol manifesta algumas ideias, tais como a expressão de valores hu-manos, a doação da vida em favor do outro, o cuidado maternal, a proteção, a humildade, a renúncia, a luz enquanto sabedoria, o esforço, a força, a fé, o sofrimento, o martírio e a dor. Todos esses temas suscitados podem também ser identificados no romance de Saramago, no relacionamento interpessoal estabelecido entre os cegos. No geral, todos esses santos tiveram que enfrentar uma vida

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difícil e foram torturados, morrendo em circunstâncias brutais, como se nota em algumas das imagens. Se eles foram provados e tentados para que demonstrassem o seu amor a Deus, os cegos da narrativa também estavam a ser torturados e tiveram sua humani-dade testada durante o surto de cegueira, para que pudessem voltar à vida de alguma forma transfigurados. No entanto, ao ter os olhos vendados, o caráter sobrenatural dessas figuras se perde, estão tão cegas quanto os homens. São rebaixadas, portanto, à mesma con-dição em que se encontram os seres humanos. Inclusive a mulher do médico as descreve como um homem, uma mulher, utilizando um tom bastante humanizador. Nem mesmo os nomes dos santos são divulgados, uma vez que não era necessário conhecê-los, pois rogar ajuda a eles não adiantaria, estavam também impedidos de enxergar. Assim, ocorre nessa passagem a inversão de arquétipos de que trata Frye (1973, p.157). Os santos, comumente tidos como intercessores, considerados pelos cristãos católicos com exemplos de conduta e fé, ocupando uma posição elevada em relação aos homens, são destituídos de sua excepcionalidade e a eles igualados, colocados no mesmo nível.

Diante dessa cena, o médico e sua esposa começam a construir hipóteses para descobrir quem poderia ter tomado a atitude de ven-dar os olhos das imagens do templo: um desesperado da fé, prova-velmente o próprio padre, que não sabia o que dizer aos fiéis ou que perdera a crença no sobrenatural. Num ato de revolta, pressentindo possivelmente a sua vez de cegar, o presbítero cobriu os olhos dos santos para que eles também compartilhassem do sofrimento dos homens diante dessa epidemia ou para demonstrar ao povo que não ocorreria nenhum tipo de intervenção divina, pois Deus e seus santos tinham sido também acometidos pelo mal branco. Num raciocínio silogístico: o homem é imagem e semelhança de Deus (premissa maior), se o homem está cego (premissa menor), logo Deus também está cego (conclusão). Essa ideia é confirmada pelas palavras da mulher do médico: “uma vez que os cegos não pode-riam ver as imagens, também as imagens deveriam deixar de ver os cegos” (Saramago, 2008, p.302). Esse líder espiritual que vendou

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os olhos das imagens, na opinião da mulher do médico, “deve ter sido o maior sacrílego de todos os tempos e de todas as religiões, o mais justo, o mais radicalmente humano, o que veio aqui para declarar finalmente que Deus não merece ver” (Saramago, 2008, p.302). O criador não merecia ver ou por conta do mal que deixara atingir sua criação, ou porque, “subvertendo o julgamento divino de que os homens não merecem ver a Deus, por seus pecados, a justiça humana decide que Deus não merece ver pela sua ausência” (Vasco, 2001, p.158), por não tomar nenhum tipo de atitude para evitar a dor de suas criaturas. A cena faz uma crítica à religiosidade, tal como mostrado com as estruturas governamentais. Se o Estado não era capaz de resolver os problemas – já que se tratava de algo misterioso, que nem a ciência conseguia explicar – a saída era apos-tar na fé, pedir a intercessão dos santos e acreditar na intervenção de Deus, buscando, dessa forma, uma solução espiritual. Todavia, como descreve Frye na caracterização das imagens demoníacas, os deuses parecem estar distantes, indiferentes ao que acontece com os seres humanos, tão cegos quanto as pessoas. A religiosidade já não tem mais tanta eficácia, perdeu as suas forças e também não é capaz de abrir os olhos da população e despertar a compaixão, o amor fraterno, recíproco, tal como pregado pelo grande líder do cristianismo, agora de olhos vendados.

Ainda que estivessem no templo, a desconfiança entre as pes-soas aparece nesse episódio, quando um dos cegos, ouvindo a con-versa do médico e sua esposa, questiona como ela podia saber que as imagens tinham os olhos tapados e a faz jurar que estava dizendo a verdade. Espalhando-se por toda a igreja a notícia do estado em que se encontravam os santos, os fiéis, desesperados, perdem defi-nitivamente a fé:

Num murmúrio que aos poucos foi mudando de tom, primeiro incrédulo, depois inquieto, outra vez incrédulo, o mau foi haver no ajuntamento umas quantas pessoas supersticiosas e imaginativas, a ideia de que as sagradas imagens estavam cegas, de que os seus misericordiosos ou sofredores olhares não contemplavam mais

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que a sua própria cegueira, tornou-se subitamente insuportável, foi o mesmo que terem vindo dizer-lhes que estavam rodeados de mortos-vivos, bastou ter-se ouvido um grito, e depois outro, e outro, logo o medo fez levantar toda a gente, o pânico empurrou-os para a porta. (Saramago, 2008, p.303)

A necessidade de olhar para o próximo e a ideia de que existimos a partir do momento em que os outros nos enxergam e passam a nos conhecer ficam registradas na fala da mulher do médico:

As imagens não veem, Engano teu, as imagens veem com os olhos que as veem, só agora a cegueira é para todos, Tu continuas a ver, Cada vez irei vendo menos, mesmo que não perca a vista tornar-me-ei mais e mais cega cada dia porque não terei quem me veja. (Saramago, 2008, p.302)

As imagens só readquiririam sua existência quando houvesse pessoas que as olhassem e que nelas acreditassem. A esposa do oftalmologista também precisava de olhos que a vissem, tendo em vista que nossas ações, bem como a reflexão sobre nossa conduta, são movidas muitas vezes pela forma como os outros nos veem.

Se nem mesmo o sobrenatural pôde banir ou amenizar a ceguei-ra, se Deus e os santos também perderam a visão, ficava cada vez mais difícil ter esperança de que tudo pudesse se resolver. A religio-sidade, assim como a ciência, já não era capaz de oferecer resposta às inquietações humanas e à busca por sua identidade e totalidade.

Nessas condições, tal qual ocorre na analogia da experiência, diante da cegueira, os cegos necessitaram realizar o “redescobri-mento da fé por intermédio das obras” (Frye, 1973, p.155). Por mais que a situação fosse muito cruel, os infectados foram criando uma maneira de enfrentar as dificuldades, de se esforçar e trabalhar com vistas à sua sobrevivência. Sabiam os contaminados pelo mal branco que, além da fé, era preciso que cada um fizesse a sua parte, pois “a fé sem obras é morta” (Bíblia, 1998, Tiago 2,26). Pelo dese-

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jo de um dia recuperar a vista é que trabalharam, adotaram ações, organizaram-se e, sobretudo, lutaram pela vida.

A casa que pertencera ao primeiro cego também foi visitada. Nela, passara a viver a família de um escritor, o qual não quis iden-tificar-se, dizia ele que seu nome e toda a obra que produzira até então não faziam mais sentido numa terra de cegos. Tal como as imagens da igreja, a literatura só faz sentido se houver quem a pro-duza e quem a leia. Apesar disso, o homem havia improvisado uma forma de continuar a escrever, pensando na posteridade. Ele colo-cava uma folha sobre uma superfície branda e, utilizando uma ca-neta esferográfica produzia seu texto, no qual pretendia relatar esse surto de cegueira de que foi testemunha. As marcas salientes que a caneta produzia lhe proporcionavam saber onde já havia escrito, “basta que vá seguindo com o dedo a depressão da última linha es-crita, ir assim andando até à aresta da folha, calcular a distância para a nova linha e continuar” (Saramago, 2008, p.278).

Enquanto caminhavam pela cidade, o movimento nas praças espalhadas pela área urbana também chamou a atenção do médico e sua esposa. Em uma delas, a denominada praça dos anunciamentos mágicos, perceberam que

[…] havia grupos de cegos que se entretinham a escutar os discur-sos doutros cegos, à primeira vista não pareciam cegos nem uns nem outros, os que falavam viravam inflamadamente a cara para os que ouviam, os que ouviam viravam atentamente a cara para os que falavam. Proclamava-se ali o fim do mundo, a salvação penitencial, a visão do sétimo dia, o advento do anjo, a colisão cósmica, a extin-ção do sol, o espírito da tribo, a seiva da mandrágora, o unguento do tigre, a virtude do signo, a disciplina do vento, o perfume da lua, a reivindicação da treva, o poder do esconjuro, a marca do calcanhar, a crucificação da rosa, a pureza da linfa, o sangue do gato preto, a dormência da sombra, a revolta das marés, a lógica da antropofa-gia, a castração sem dor, a tatuagem divina, a cegueira voluntária, o pensamento convexo, o côncavo, o plano, o vertical, o inclinado, o concentrado, o disperso, o fugido, a ablação das cordas vocais,

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a morte da palavra, Aqui não há ninguém a falar de organização, disse a mulher do médico ao marido. (Saramago, 2008, p.284)

Nota-se nesse fragmento que o discurso estava voltado para uma visão pessimista e escatológica. Os símbolos enumerados represen-tam o fim dos tempos, do mundo e da humanidade, a destruição da Terra, a morte, a tortura, os pontos fracos, o arrependimento, o sofrimento, os desastres ecológicos, a confusão de pensamen-tos, o término da comunicação verbal. Os elementos mencionados referem-se a crenças e superstições diversas, como o cristianismo, o esoterismo, o misticismo, o folclore, entre outras. Enquanto o grupo da mulher do médico se organizava para facilitar a sobrevivência e o relacionamento interpessoal, esses cegos estavam parados nesta praça sem tomar atitude alguma, sem discutir algo útil à vida em so-ciedade, à coletividade, muito pelo contrário, anunciando que não havia mais nenhuma solução visível para a situação a que estavam submetidos. O discurso proferido, desta forma, faz “troça da ex-pectativa profética, assim como do charlatanismo e da superstição religiosa e científica, numa ladainha em tom sabiamente jocoso” (Vasco, 2001, p.175). O narrador chega a ironizar, afirmando que para completar o falatório “só tinha faltado acrescentar a cabeça do louva-a-deus e o suicídio do lacrau” (Saramago, 2008, p.288).

Essa praça também estabelece uma relação com a Ágora das ci-dades gregas da Antiguidade Clássica. A Ágora era a praça princi-pal da pólis e o espaço público por excelência, visto que nela ocorria uma espécie de feira livre. Funcionava como local de encontro das pessoas e sede para discussões políticas. Era o espaço das assem-bleias, dando a todos direito à voz e ao voto. Entretanto, Saramago cria em sua obra uma anti-Ágora, já que ali havia uma divisão clara de oradores e ouvintes. Estes últimos, porém, não participavam ati-vamente, não estavam a dar sua opinião, permaneciam em silêncio. Além disso, o discurso que ali era proclamado não estava interessa-do na criação de elos sociais nem em estabelecer uma organização que possibilitasse melhorias à sobrevivência e à convivência. Nas palavras de Sandra Aparecida Ferreira:

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O que essa praça revela, por meio da ironia, é como o elo social está despolitizado, dada a conversão da praça em picadeiro, onde o non sense grassa como semente de um surrealismo extemporâneo [...]. A praça do Ensaio sobre a cegueira reflete, portanto, a expres-são passiva de um grande mal-estar social, como um espelho em que a alienação contempla sua própria face. (Ferreira, 2004, p.117)

Com o anúncio exagerado do final dos dias, projeta-se na obra mais uma imagem demoníaca, haja vista que os cegos estão a viver um inferno existencial, creem que o seu destino é inescrutável e não encontram nenhuma perspectiva para o futuro. Essas pessoas reu-nidas perderam já toda a esperança, pois viram ruir gradativamente cada uma das estruturas que acreditaram que as sustentaria e se es-queceram de que podiam, não sem um árduo trabalho, reconstruir a sociedade a partir de seus próprios conhecimentos e experiências, sem que fosse necessário esperar uma luz que viesse de terceiros.

Em outra ocasião, ao atravessar outra praça, embora a situação fosse idêntica ao que ocorria na primeira – cegos discursando para outros cegos – verifica-se certa modificação nos assuntos colocados em pauta:

Proclamavam-se ali os princípios fundamentais dos grandes sistemas organizados, a propriedade privada, o livre câmbio, o mercado, a bolsa, a taxação fiscal, o juro, a apropriação, a desapro-priação, a produção, a distribuição, o consumo, o abastecimento e o desabastecimento, a riqueza e a pobreza, a comunicação, a repres-são e a delinquência, as lotarias, os edifícios prisionais, o código penal, o código civil, o código de estradas, o dicionário, a lista de telefones, as redes de prostituição, as fábricas de material de guerra, as forças armadas, os cemitérios, a polícia, o contrabando, as dro-gas, os tráficos ilícitos permitidos, a investigação farmacêutica, o jogo, o preço das curas e dos funerais, a justiça, o empréstimo, os partidos políticos, as eleições, os parlamentos, os governos, o pensamento convexo, o côncavo, o plano, o vertical, o inclinado, o concentrado, o disperso, o fugido, a ablação das cordas vocais, a

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morte da palavra. Aqui fala-se de organização, disse a mulher do médico ao marido, Já reparei, respondeu ele, e calou-se. (Saramago, 2008, p.295)

As pessoas reunidas, dessa vez, discutem a organização, os pro-blemas sociais, o direito de expressão, os códigos de conduta, a economia, a filosofia, os crimes, a punição, as formas de governo, as relações de posse e de poder, a situação dos espaços públicos. Nota-se também a utilização de antônimos para demonstrar que estavam raciocinando e medindo as consequências de perspectivas distintas de uma mesma ação ou conflito.

Diferente da praça dos anunciamentos mágicos, onde se pro-clamava o fim de tudo, esses cegos repensavam a estruturação da sociedade a que estavam vinculados antes do surto de cegueira. A perda da visão levou-lhes a refletir os problemas de ordem coletiva, que deveriam ser preocupação de qualquer cidadão. Não é possí-vel saber o que ocorre depois que os cegos recuperam a vista, mas pode-se pensar que esse tipo de discussão poderia provocar mu-danças. Em virtude desse levantamento de dificuldades e desafios da vida social que estavam encobertos ou para os quais se fazia vista grossa, a reunião de pessoas nessa última praça pode caracterizar-se como uma imagem apocalíptica. Verifica-se que a obra expressa, por meio desses dois discursos, duas formas distintas de enfrentar uma situação adversa: perder completamente as esperanças ou bus-car racionalmente uma maneira de vencer os obstáculos.

Contudo, a cena mais redentora da narrativa se manifesta quan-do as personagens subitamente recobram a visão, pois sabiam que esse era o momento de libertação da cegueira que os assolou. Aque-le que primeiro cegou no trânsito foi também o primeiro a ter os olhos emersos do mar de leite em que haviam sido mergulhados. Tudo se deu na casa do oftalmologista, enquanto a mulher do mé-dico nutria o espírito de todos com a leitura de um livro. O primeiro cego, de olhos fechados, teve a impressão de que a brancura de seus olhos se convertera em escuridão, obrigando-o a experimentar a cegueira comum. Amedrontado,

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abriu os olhos e viu. Viu e gritou, Vejo. O primeiro grito ainda foi o da incredulidade, mas com o segundo, e o terceiro, e quantos mais, foi crescendo a evidência, Vejo, vejo, abraçou-se à mulher como louco, depois correu para a mulher do médico e abraçou-a também. (Saramago, 2008, p.306)

E assim, sucessivamente, o homem pôs-se a abraçar a todos os companheiros, tomado por uma alegria inestimável. Ao doutor o ex-cego comunica a recuperação completa da visão e a sensação de que seus olhos enxergavam a realidade agora melhor do que antes. Mesmo diante da euforia da situação, não deixa o narrador de apon-tar o quanto o ato de enxergar era capaz de interferir e modificar o relacionamento das pessoas. Para dirigir-se ao médico, o primeiro contaminado curado preferiu demonstrar certa formalidade. Disse ele “Vejo, senhor doutor, não o tratou por tu como se tinha torna-do quase regra nesta comunidade, explique, quem puder, a razão da súbita diferença” (Saramago, 2008, p.307). Essa distância se imprimiu ao diálogo, tratando o médico por senhor doutor, mesmo depois de todas as situações abjetas que o grupo viveu. Esse fato denuncia o quanto a visão pode ser redutora, superficial e estigma-tizada, deixando-se levar pelas aparências. Ao ver o oftalmologista, o primeiro cego, ainda movido pelos hábitos anteriores ao surto, substitui a proximidade e a intimidade com que se tratavam até então por uma postura mais cerimoniosa. Essa atitude sinaliza que seria difícil para os cegos desligar-se das formas de convivência anteriores à cegueira, que ainda tinham muito a aprender e que as possíveis transformações advindas do período em que permanece-ram sem visão poderiam se manifestar gradativamente. Por outro lado, outros sentimentos pareceram se intensificar, como o amor, expresso em inumeráveis abraços que o primeiro cego dá na esposa e na disposição de tornar-se guia dela também:

Em certa altura o primeiro cego teve a lembrança de dizer à mulher que no dia seguinte iriam a casa, Mas eu ainda estou cega, respondeu ela, Não faz mal, eu guio-te, só quem ali se encontrava,

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e portanto ouviu com os seus próprios ouvidos, foi capaz de per-ceber como em tão simples palavras puderam caber sentimentos tão distintos como são os da proteção, do orgulho e da autoridade. (Saramago, 2008, p.308)

A experiência da cegueira parece ter modificado o compor-tamento do homem que outrora, sob uma profunda sensação de posse, se adiantou à esposa para declarar que ela não se prestaria aos caprichos sexuais dos cegos malvados, mesmo que fosse para ga-rantir sua própria sobrevivência. Agora ele era capaz de demonstrar sentimentos tão nobres.

Saber que um dos atingidos pelo mal branco fora curado ali-mentava a esperança dos demais. Tal como as visões de João na Ilha de Patmos sobre os acontecimentos vindouros, relatadas no livro bíblico do Apocalipse, o fato de o primeiro cego curar-se do mal da cegueira funciona como um sinal, uma previsão do futuro: se aquele que fora o primeiro a cegar agora voltara a enxergar, paulatinamen-te os demais recuperariam a vista e o surto teria fim. “Como uma corda que se partiu, como uma mola que não aguentou mais o es-forço a que esteve continuamente sujeita” (Saramago, 2008, p.308), a mulher do médico desfazia-se em pranto de alívio e de contenta-mento vendo o primeiro cego relatar que voltara a enxergar.

A segunda pessoa a ter a visão restabelecida foi a rapariga dos óculos escuros. Seus abraços foram em primeiro lugar para a mu-lher do oftalmologista, a qual lhe acolhera mesmo depois de sua traição com o médico. Em seguida, dirigiu-se ao velho da venda preta para reafirmar sua vontade de viverem juntos.

Na sequência, foi o médico quem se livrou do mal branco. Ao se reunirem para a refeição matutina, a felicidade contagiante era o principal alimento:

De festa foi o banquete da manhã. O que estava sobre a mesa, além de ser pouco, repugnaria a qualquer apetite normal, a força dos sentimentos, como em momentos de exaltação sucede sempre, tinha ocupado o lugar da fome, mas a alegria servia-lhes de manjar,

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ninguém se queixou, mesmo os que ainda estavam cegos riam como se os olhos que já viam fossem os seus. (Saramago, 2008, p.309)

Ansiosos por retomar suas vidas, cada um expressava o desejo de rever suas casas, localizar seus familiares. Lá fora a situação não era diferente, progressivamente as pessoas iam recobrando a visão. Acompanhava a alegria a sensação de que tudo o que tinham vivido não passara de imaginação:

Pela janela aberta [...] entrava o rumor das vozes alteradas, as ruas deviam estar cheias de gente, a multidão a gritar uma só pala-vra. Vejo, diziam-na os que já tinham recuperado a vista, diziam-na os que de repente a recuperavam, Vejo, vejo, em verdade começa a parecer uma história doutro mundo aquela em que se disse, Estou cego. (Saramago, 2008, p.309)

E assim os cegos pareciam acordar do pesadelo da cegueira, abandonando o inferno e passando ao paraíso, o qual precisaria ser (re)construído, de preferência, levando-se em conta a experiência vivenciada, as lições aprendidas e o abrir de olhos que a cegueira pode ter lhes proporcionado.

Os protagonistas da cegueira

Entre a população atingida pela cegueira, destacam-se sete per-sonagens, que compõem o grupo formado pela mulher do médico, o qual a narrativa acompanha com maior proximidade.

A bravura e a beleza dos heróis, o espírito paternal e a sabedoria, apontados pelo crítico canadense na descrição das imagens que pertencem à analogia da inocência, são características incorporadas à mulher do médico em Ensaio sobre a Cegueira. Ao longo da nar-rativa é ela quem parece agir como uma heroína, sendo concebida, embora não seja divina, como uma figura materna e sábia.

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Desde que soube que o marido seria levado de casa, ela se pre-parou para acompanhá-lo e simulou estar cega de forma que o mo-torista da ambulância permitisse que ela também fosse levada. No manicômio, a mulher do médico manifestava o desejo de ajudar os cegos recém-chegados. Era ela quem conduzia alguns grupos pelos corredores do prédio, alegando que, por ter sido uma das primeiras pessoas trazidas para a quarentena, já tinha aprendido o caminho.

A mulher do médico tinha também de proceder como se esti-vesse cega. Por fim, a fila lá ficou ordenada, atrás da mulher do médico ia a rapariga dos óculos escuros com o rapazinho estrábico pela mão, depois o ladrão, de cuecas e camisola interior, a seguir o médico, e no fim, a salvo de agressões por agora, o primeiro cego. Avançavam muito devagar como se não se fiassem de quem os guiava, com a mão livre tenteando o ar. (Saramago, 2008, p.56)

Nesses instantes em que a esposa do oftalmologista serve de guia aos atingidos pela cegueira, a narrativa faz alusão ao quadro A parábola dos cegos, de Pieter Bruegel,4 pintor que “retratou a realidade das pequenas aldeias que ainda conservavam a cultura medieval” (Proença, 1989, p.96).

Pieter Bruegel costumava representar em suas telas alegorias, provérbios ou parábolas. De acordo com Robert Cumming,

Os provérbios eram um meio de expressão importante na época de Bruegel, e muitas vezes eram expressos visualmente. Havia muitas gravuras com temas desse gênero, que eram baratas e cir-culavam com facilidade. [...] A obra de Bruegel resistiu ao tempo porque cada geração tem a sensação de que ela se refere às questões e à realidade de seu próprio tempo. (Cumming, 2005, p.40)

4 Pieter Bruegel (1525? – 1569): pintor da região de Flandres (atual Bélgica). Retratava cenas da vida camponesa em seus quadros. Além de paisagens, pintava também quadros que expressam as fraquezas humanas e temas mora-listas, como a representação visual de provérbios.

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No quadro em questão pode-se observar uma fila de pessoas cegas, que não sabem qual rumo tomar e, por isso, andam juntas. O indivíduo que cada cego tem à sua frente é quem guia os que o sucedem. O problema é que estão todos prestes a se lançar em um precipício. O movimento expresso na tela exprime a impressão de morte em série. A parábola, nesse caso, reside na ideia de que um cego que guia outros cegos leva todos ao abismo, conforme ensina Jesus quando fala dos fariseus: “Deixai-os. São cegos e guias de cegos. Ora, se um cego conduz a outro, tombarão ambos na mesma vala.” (Bíblia, 1998, Mateus 15,14). Em outras palavras, afirma Cumming que o quadro intenciona mostrar que “as pessoas estúpi-das têm a tendência de seguir outras que são igualmente estúpidas” (Cumming, 2005, p.41).

Como se nota, a parábola descrita no quadro do pintor flamen-go, em seu sentido conotativo, não diz respeito à cegueira conven-cional, mas a uma cegueira de ordem moral, tal como no roman-ce de Saramago. Quem mais guiava os cegos no manicômio era a mulher do médico. Sem saber que a visão dela estava intacta, os indivíduos guiados pareciam rumar sem direção e com desconfian-ça, sensação que encontra paralelo visual no quadro de Bruegel: as figuras dirigem seu olhar para direções distintas e não se mostram seguras do caminho que estão tomando. Contudo, ao contrário do pessimismo da pintura, Saramago coloca para conduzir os cegos uma vidente, que se preocupava com eles, que se mostrava muito solícita, traçando estratégias para ajudá-los com a precaução de que não descobrissem que mantinha sua visão em perfeito estado.

Além da mulher guiando os cegos, há ainda mais uma referência ao quadro quando o narrador relata que famílias inteiras perderam a visão, sem sobrar ninguém para cuidar dos contagiados: “teria de suceder-lhes o mesmo que aos cegos da pintura, caminhando juntos, caindo juntos e juntos morrendo” (Saramago, 2008, p.125). Dessa vez, o tom melancólico da pintura se repete no romance.

Outros elementos da tela também podem ser associados ao en-redo da narrativa. A ideia de um guia lembra que as camaratas tinham cegos como seus líderes. Uma delas era comandada pelo

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homem que possuía uma pistola, e, por isso, obrigava seus compa-nheiros de convívio a atender suas vontades e a concordar com suas ações. Ao contrário dessa conduta tirana, na primeira camarata o médico oftalmologista era o representante. Sempre auxiliado pela esposa, ele procurava fazer com que as decisões fossem tomadas em conjunto. Em um sentido mais amplo, o governo pode ser tomado também como um líder que estava a levar os indivíduos, pelos quais devia zelar, ao abismo, porque não sabia como agir diante do surto de cegueira. Adotou medidas retrógradas, que não deram resul-tados e demonstrou mais interesse em proteger os não infectados do que cuidar dos atingidos pelo mal branco, haja vista que sua intervenção no que acontecia no manicômio era praticamente nula.

O intertexto com a tela de Bruegel pode também manifestar uma crítica à marginalização dos doentes, prática comum durante a Idade Média. Nesse período, os cegos, leprosos e indivíduos que possuíam algum tipo de enfermidade eram considerados impuros, amaldiçoados por Deus e, por isso, ficavam à margem da sociedade, vivendo à sua própria sorte, uma vez que quem os tocasse também passava a ser impuro. De forma semelhante, os cegos de Saramago foram separados do convívio com as outras pessoas, sendo man-tidos em quarentena no manicômio. Levados de suas casas, mui-tas vezes à força, os acometidos pela cegueira branca não podiam imaginar o inferno existencial que experimentariam. Era como se tivessem caído em um abismo, com poucas e incertas esperanças de que um dia pudessem regressar à sua vida normal.

Nessas condições, a presença da esposa do médico no manicô-mio foi de grande valia para os cegos postos em quarentena. Essa mulher, “com um tal estado de espírito, propício ao entendimento das necessidades e das circunstâncias” (Saramago, 2008, p.119), estabeleceu em sua camarata uma espécie de microssociedade para tornar mais ameno o período de isolamento e facilitar o relaciona-mento entre os cegos. Segundo Frye (1973, p.143), um dos desejos do mundo humano é conseguir organizar a convivência entre os in-divíduos de tal forma que se possa criar uma sociedade dos homens. Ainda que numa situação adversa como a quarentena forçada, a

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mulher do médico conseguiu promover algumas ações que tor-naram a camarata que ocupava mais desenvolvida que as demais. Primeiramente, podem ser observados a limpeza, os cuidados com a higiene, a facilidade no trabalho e a eficácia do método adotado:

Quanto à primeira camarata, talvez por ser a mais antiga e por-tanto estar há mais tempo em processo e seguimento de adapta-ção ao estado de cegueira, um quarto de hora depois de os seus ocupantes terem acabado de comer já não se via um papel sujo no chão, um prato esquecido, um recipiente pingando. Tudo havia sido recolhido, as coisas menores metidas dentro das maiores, as mais sujas metidas dentro das menos sujas, como o determinaria uma regulamentação de higiene racionalizada, tão atenta à maior eficácia possível na recolha dos restos e detritos como à economia do esforço necessário para realizar esse trabalho. A mentalidade que forçosamente haverá de determinar comportamentos sociais deste tipo não se improvisa nem nasce por geração espontânea. No caso em exame parece ter tido uma influência decisiva a ação pedagógica da cega do fundo da camarata. (Saramago, 2008, p.118)

Com essa atitude poderia se evitar o mau cheiro e a presença de moscas, atraídas pelo odor dos alimentos. Recolher os papéis e recipientes do chão impedia que se transformassem em obstáculos para levar à queda os cegos quando se deslocavam. A mulher havia idealizado, inclusive, um esquema para que ocorresse de forma tranquila a distribuição das refeições:

Com a experiência haviam estabelecido ali um modo bastante cômodo de fazer a distribuição, começavam por levar a comida toda para o fundo da camarata [...] e aí é que a iam buscar, aos dois de cada vez, principiando pelas camas mais perto da entrada, um direito um esquerdo, dois direito dois esquerdo, e assim sucessiva-mente, sem zangas nem atropelos, demorava mais, é certo, mas a tranquilidade compensava a espera. (Saramago, 2008, p.137)

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A camarata possuía um representante, o médico oftalmologista, escolhido quase por unanimidade pelos companheiros de quarto e ajudado pela esposa. Diferentemente do que ocorria nos aposen-tos dos cegos malvados, onde um só ditava as regras, na primeira camarata todos tomavam as decisões juntos, discutindo os pontos de vista de cada um. Mesmo diante dos problemas, não obstante as opiniões divergentes, mantinha-se o mínimo de organização e civilidade.

Antes que a camarata fosse completamente ocupada, os novos habitantes que chegavam eram convidados ao diálogo, apesar de parecerem temerosos em dar-se a conhecer:

A mulher do médico disse de modo que se ouvisse ao fundo da camarata, onde era a porta, Aqui, estamos duas pessoas, quantos são vocês. A inesperada voz fez sobressaltar os recém-vindos, mas os dois homens continuaram calados, quem respondeu foi a rapa-riga, Acho que somos quatro, estamos este menino e eu, Quem mais [...] Estou eu, murmurou, como se lhe custasse pronunciar as palavras, uma voz de homem, E eu, resmungou por sua vez, contra-riada, outra voz masculina. (Saramago, 2008, p.49)

Ainda que acanhados, os novos habitantes recebiam algum tipo de acolhimento. Saber a quantidade de recém-chegados também era uma maneira de auxiliar na acomodação dos cegos. Para ofere-cer certa autonomia aos companheiros, a mulher do médico, ciente de que a camarata possuía duas fileiras de vinte camas, uma frente à outra, discretamente, “lembrou que a maneira mais fácil de encon-trar cada um o seu sítio era contar as camas a partir da entrada, As nossas, disse, são as últimas do lado direito, a dezanove e a vinte” (Saramago, 2008, p.60).

Vale salientar ainda que a limpeza e organização que imple-mentou a mulher na primeira camarata foram encontradas em sua casa quando recebeu o grupo de cegos. Ela distribuiu os lo-cais onde cada um poderia dormir, alertou os companheiros que deveriam revezar-se e sair com ela para buscar comida, a fim de

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que aprendessem o caminho de casa e conseguissem se locomover com mais independência, e pediu que usassem um balde colocado na varanda para as necessidades fisiológicas. Tanto no manicômio quanto em sua própria casa o estabelecimento de uma espécie de microssociedade apocalíptica – porque organizada e pensada para o benefício comum – teve o objetivo de manter a higiene e facilitar a convivência.

A corda que a mulher atara à porta da camarata permitiu o re-vezamento dos cegos para buscar a comida no átrio. A esposa do oftalmologista foi também quem mais demonstrou preocupação e cuidado com os mortos e feridos, sentimentos plenamente apo-calípticos, visto que a doença e a morte são momentos nos quais o desejo humano exige apoio e solidariedade. Em primeiro lugar, há a atenção que ela e o marido dispensaram ao ladrão de automóveis, ferido pela rapariga dos óculos escuros.

Na expedição que um grupo de cegos realizou para invadir a camarata dos malvados em busca da comida estocada, verifica-se também a consideração com os feridos. A mulher do médico e mais alguns cegos, não obstante os perigos e riscos que estavam a correr, se dispuseram a voltar e resgatar os companheiros atingidos por balas, próximos do território dos inimigos.

O zelo demonstrado pela mulher para com os mortos é também um aspecto da narrativa que provoca comoção. Ela arrisca-se pe-dindo aos soldados uma pá para enterrar os cadáveres e mobiliza al-guns confinados para auxiliá-la a cavar a terra dura e abrir as covas. Mesmo o ladrão de carros, que tentara se aproveitar da rapariga, e que no início da convivência parecia bastante indomável, teve um enterro respeitável. A preocupação com o sepultamento também se deu quando foi encontrada morta à porta do prédio a vizinha da rapariga dos óculos escuros:

E agora que fazemos, vamos deixá-la aqui, Não podemos enterrá--la na rua, não temos com que levantar as pedras, disse o médico, Há o quintal, Será preciso subi-la até ao segundo andar e depois descê-la pela escada de salvação, É a única forma, Teremos forças para tanto,

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perguntou a rapariga dos óculos escuros, A questão não é se tere-mos ou não teremos forças, a questão é se iremos permitir-nos a nós próprios deixar aqui esta mulher, Isso não, disse o médico, Então as forças hão-de arranjar-se. (Saramago, 2008, p.285)

Apesar de todo o trabalho que teriam julgaram desumano deixar o corpo ali estendido. Transportaram o cadáver e envolveram-no em um lençol limpo antes de depositá-lo na cova. Há ainda o epi-sódio da morte da cega das insônias. A mulher do médico foi quem a amparou e trouxe água para limpar o corpo da falecida e para que as outras mulheres pudessem também purificar seus corpos, já que suas almas não podiam ser alcançadas. É comovente a solidariedade da cena: dividindo o nojo, a angústia, o trauma da situação vivida, estavam ali “sete mulheres nuas, a cega das insônias estendida na cama, limpa como nunca estivera em toda a sua vida, enquanto outra mulher lavava, uma por uma, as suas companheiras, e depois a si própria” (Saramago, 2008, p.181).

A solidariedade, a preocupação e a compaixão pelos feridos, o respeito pelos restos mortais e o enterro dos corpos como uma forma de ocultar o cadáver e amenizar a dor (sem pensar em crenças religiosas ou na ideia de vida após a morte) é que tornam apocalíp-ticas todas essas cenas, nas quais se destaca, sobretudo, a figura da mulher do médico.

Outro gesto nobre de sua parte era lutar para que a irraciona-lidade não tomasse conta das pessoas e as obrigasse a viver como animais. Essa mulher representa na narrativa

o que de melhor existe no ser humano, o respeito e o serviço do outro, o sacrifício e o esquecimento total de si, a generosidade sem limites que se vale da própria visão e do silêncio para tornar os outros seres menos infelizes. Tudo isso é dito e mostrado sem con-cessões sentimentalistas e sem pieguices. (Berrini, 1998, p.181)

Essa personagem teve coragem para enfrentar os soldados e também conseguia ter piedade dos delinquentes. Diante do cego

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que estava à porta da camarata dos malvados de vigia, mas que fora tomado pelo sono,

deliberadamente, a mulher do médico quis pensar que este homem era um ladrão de comida, que roubava o que a outros pertencia de justiça, que tirava à boca de crianças, mas apesar de o pensar não chegou a sentir desprezo, nem sequer uma leve irritação, só uma estranha piedade diante do corpo descaído, da cabeça inclinada para trás, do pescoço alongado de veias grossas. (Saramago, 2008, p.157)

Ela ainda acompanhou as mulheres no momento em que tive-ram de saciar os desejos sexuais dos cegos malvados em troca de comida e matou o líder dos tiranos para defender os demais con-finados de sua crueldade, embora esse ato a fizesse sentir-se uma assassina.

Para os demais internos do manicômio, a mulher do médico parecia onipresente, dotada de poderes mágicos: “Entre os cegos havia uma mulher que dava a impressão de estar ao mesmo tempo em toda a parte, ajudando a carregar, fazendo como se guiasse os homens, coisa evidentemente impossível para uma cega” (Sarama-go, 2008, p.91). Pensavam eles que “parecia impossível como esta mulher conseguia dar fé de tudo quanto se passava, devia ser dotada de um sexto sentido, uma espécie de visão sem olhos” (Saramago, 2008, p.196), porque era extraordinário seu poder de orientação.

Seu espírito maternal advinha de sua “responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam” (Saramago, 2008, p.241), por isso tomava conta dos cegos. Sabia que “ali estavam, dependiam dela como as crianças pequenas dependem da mãe” (Saramago, 2008, p.218). Graças aos seus olhos que os atingidos pela cegueira podiam considerar-se menos cegos, principalmente os que foram viver em sua casa. Ela nutria um carinho especial pelo rapazinho estrábico, gostava de contar histórias para acalmá-lo e ainda foi à procura dele quando ocorreu o incêndio.

Fora do manicômio, a conduta dessa mulher não se modificou. Abriu as portas de sua residência para receber os companheiros.

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Saía pela cidade à procura de comida, sentia-se a provedora do grupo. Ela era a visão que aqueles cegos deixaram de ter, “uma es-pécie de chefe natural, um rei com olhos numa terra de cegos” (Sa-ramago, 2008, p.245). Sendo a única a manter-se imune à epidemia, podia ter se convertido em uma autoridade, aproveitando-se da si-tuação para explorar os cegos, mas não o fez. Preferiu ser submissa e doar todas as suas forças em benefício daqueles que a cercavam. Esse espírito solidário levava os que a rodeavam a imaginá-la provi-da de uma extraordinária beleza.

Sua compreensão chega ao ponto de perdoar seu marido e a rapariga dos óculos escuros, mesmo tendo assistido a traição. A prova de que a mulher do médico não guardava mágoas se expressa no tratamento afetuoso que dispensava à moça, no gesto de aceitá--la em seu grupo e de convidá-la a viver em sua própria residência.

Não obstante todos esses atos de heroísmo que conferem à figu-ra da mulher do médico uma aura quase divina, parecendo um tipo idealizado, “um ser excepcional, diferente e acima dos demais, [...] uma espécie de ser humano muito especial, pouco comum” (Ber-rini, 1998, p.136), ela também possuía defeitos, demonstrava seus momentos de fraqueza, o que a torna essencialmente humana. Du-rante a quarentena, muitas vezes pensou em revelar que mantinha intacta a visão, assim poderia resolver inúmeros conflitos, organizar a convivência, ser efetivamente guia dos cegos, auxiliá-los no que precisassem, todavia deixou-se levar pelo medo de transformar-se em uma escrava, conforme lhe prevenira o marido:

Pensa nas consequências, o mais certo é que depois tentem fazer de ti uma escrava, um pau-mandado, terás de atender a todos e a tudo, exigir-te-ão que os alimentes, que os laves, que os deites e os levantes, que os leves daqui para ali, que os assoes e lhes seques as lágrimas, gri-tarão por ti quando estiveres a dormir, insultar-te-ão se tardares […]. Alguns irão odiar-te por veres. (Saramago, 2008, p.134)

Vendo a imundície em que se transformava o manicômio a cada dia que se findava, a mulher justificava-se com a ideia de que pôr

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tudo aquilo em ordem não era trabalho para uma só pessoa, suas forças não seriam suficientes, por isso se fingia cega. Mesmo diante de injustiças, como a desproporcional divisão dos alimentos feita pelos próprios confinados, ela se calou, temendo que “o mínimo que lhe poderia acontecer seria ver-se transformada em serva de todos, o máximo talvez fosse converterem-na em escrava de al-guns” (Saramago, 2008, p.93). Houve momentos em que se sentiu covarde por causa de sua omissão; em outras ocasiões, acreditou ter tomado atitudes drásticas, que lhe fizeram carregar remorso, como a sua decisão de matar o chefe dos malvados ou quando não revelou a ninguém que encontrara o depósito do supermercado.

A mulher do médico também se sentia muito mal por ser a única a ter olhos para ver as misérias humanas. Era “como se estivesse por trás de um microscópio a observar o comportamento de uns seres que não podiam nem sequer suspeitar da sua presença, e isto pa-receu-lhe subitamente indigno, obsceno” (Saramago, 2008, p.71). Não podia compartilhar com ninguém sua condição. Às vezes, tomava-lhe

uma fadiga infinita, uma vontade de enrolar-se sobre si mesma, os olhos, ah, sobretudo os olhos, virados para dentro, mais, mais, mais, até poderem alcançar e observar o interior do próprio cérebro, ali onde a diferença entre o ver e o não ver é invisível à simples vista. (Saramago, 2008, p.157)

Apesar de tudo, ainda que não tivesse feito o máximo que podia, ainda que mentisse aos demais que era tão cega quanto eles, foi o comportamento da mulher do médico que tornou mais tolerável a vida dos que a cercavam.

Num mundo de trevas brancas, a mulher do médico transporta a luz, por isso é a voz da lucidez, que se manifesta desde logo no fingimento da cegueira. Ela é mesmo a própria lucidez (atente-se na raiz etimológica da palavra), aquela que proclama: “meu Deus, a luz existe e eu tenho olhos para a ver, louvada seja a luz” (p.223)

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e também aquela que reconhece e recusa o caos em que os outros estão imersos. Através da lucidez dos seus olhos, os companheiros vão tomando consciência da oposição a uma condição histórica desprovida de sentido, de futuro. (Lima, 1999, p.419)

Por ser fonte de luz para os cegos e por toda a sua atuação, esta personagem ocupa um lugar de destaque no conjunto da obra de Saramago:

A personagem que aqui se constrói na mulher do médico é duma envergadura imponente, mesmo em contexto saramaguiano. Se as heroínas de Saramago sempre brilharam pela segurança inte-rior, pela sageza, pela capacidade de comando, nesta “mulher do médico” essas qualidades são mais que notáveis no indivíduo: são elas que conduzem uma comunidade na travessia do inferno. (Venâncio, 2000, p.73)

Os olhos da esposa do médico formavam, na concepção do velho da venda preta, o fio que ainda unia os cegos à humanidade, aos valores e aos sentimentos que os faziam verdadeiramente humanos. Tendo resguardado o dom “da visão, fato que em si a singulariza diante de todos a quem ajuda a sobreviver, e o da dissimulação” (Costa, 1999, p.142), foi esta mulher que se manteve firme diante do horror da situação, não se deixou abater pelas dificuldades e pensou nos outros mais que em si mesma. Talvez por ter resistido à desumanidade, por ter agido pensando no bem comum, tenha sido a única a não perder o sentido da visão. A despeito de suas fraque-zas, ela manteve consciência pessoal, preocupou-se com seus seme-lhantes – embora estranhos – e em benefício deles agiu, decidiu e transformou o meio que a circundava.

O médico oftalmologista integrou obviamente o grupo conduzi-do por sua esposa. Foi ele quem atendeu em seu consultório os que vieram a ser os primeiros contagiados e quem alertou as autoridades sobre o surto. No manicômio, foi designado representante de sua camarata, missão que tentou cumprir da melhor maneira possível,

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sentindo-se fracassado em algumas ocasiões nas quais não conse-guiu atender efetivamente os interesses de seus colegas de quarto, o que ocorreu, por exemplo, quando tentou solicitar medicamentos aos soldados, mas teve de voltar atrás, pois fora ameaçado de morte; ou ainda, no momento em que reclamou aos cegos malvados uma quantidade maior de alimentos para sua camarata, porém, tendo uma pistola apontada para o seu pescoço, regressou junto aos com-panheiros, sem sucesso.

Ao longo de toda a narrativa, a mulher do médico manteve com o marido uma forte relação de cumplicidade, compartilhando com ele muitas de suas angústias. Estavam sempre a trocar confidências, a conversar, a refletir sobre a situação vivida. A relação do casal foi, em parte, abalada pela traição do oftalmologista com a rapariga dos óculos escuros. Entretanto, a mulher do doutor decidiu relevar a in-fidelidade, dadas as circunstâncias em que se encontravam: presos em quarentena, sem nenhum tipo de privacidade, ele, cego e sem perspectiva de cura; ela, assistindo a objeção e guardando segredo de que conservava a visão.

Outro integrante do grupo era o rapazinho estrábico. Na ana-logia da inocência, Frye destaca que “entre as figuras humanas as crianças são preeminentes, e assim a virtude une-se estreitissi-mamente à infância e ao estado de inocência” (Frye, 1973, p.152). Embora privadas da visão as pessoas se vejam desamparadas, asse-melhando-se a crianças que necessitam de alguém que delas tome conta, o rapazinho estrábico atua como o representante infantil da narrativa. Ao chegar ao manicômio, o garoto lamentava a separação da família, “o rapazinho chorava, chamava pela mãe, e era a rapa-riga dos óculos escuros quem fazia por sossegá-lo, Já vem, já vem, dizia-lhe” (Saramago, 2008, p.48). O clamor pela mãe demonstra a fragilidade dessa criança.

Desde o início, a rapariga, que também tomou parte no grupo da mulher do médico, tornou-se a tutora do menino. Tentava sem-pre acalmá-lo, “tinha empurrado a sua [cama], certamente para estar mais perto do rapaz, se ele precisasse de consolo, de que lhe enxugassem as lágrimas pela falta de uma mãe perdida” (Saramago,

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2008, p.152) e renunciava parte de sua comida para saciá-lo quando os alimentos já não eram suficientes:

O rapazinho estrábico, claro está, que sempre acabava de comer antes que a rapariga dos óculos escuros recebesse o seu quinhão, do que vinha a resultar que uma parte do que devia ser dela terminava invariavelmente no estômago do mocinho. (Saramago, 2008, p.137)

Quando os cegos malvados exigiram a entrega de bens em troca de comida, a rapariga assumiu o posto de mãe do garoto e tranqui-lizou-o, afirmando que pagaria pelos dois. Entre os integrantes de seu grupo, o menino também tinha privilégios, uma vez que as crianças são mais frágeis e menos resistentes que os adultos: “O pouco que havia para comer deram-no ao rapazinho estrábico, os outros teriam de esperar pelo reabastecimento” (Saramago, 2008, p.271). Um forte exemplo de inocência e ingenuidade do garoto está no momento em que saem em busca de calçados. O rapazinho

teve de contentar-se com uns sapatos de desporto sem finalidade definida, Que coincidência, diria a mãe dele, lá onde esteja, a alguém que lhe tivesse ido contar o sucedido, é exatamente o que o meu filho teria escolhido se pudesse ver. (Saramago, 2008, p.231)

Em meio ao caos que o cercava, o jovem nem se preocupava com a cegueira, maravilhava-se com os sapatos novos: “Ao rapazinho estrábico basta-lhe a satisfação de levar calçados os sapatos com que sempre sonhou, nem chega para o entristecer o fato de não poder vê-los” (Saramago, 2008, p.233).

A rapariga dos óculos escuros, que tanto se afeiçoou ao rapazi-nho, também demonstrava um grande apego por seus pais, reve-lando sua sensibilidade ao longo da narrativa. Logo no início, ao apresentar a personagem, o narrador sugere que se trata de uma prostituta, o que se confirma quando acompanhamos um de seus encontros com um cliente, que termina de forma constrangedora, visto que a rapariga, durante o programa, percebe-se cega e sai nua

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e aos gritos pelo hotel, enquanto o seu parceiro tentava fugir para evitar o escândalo. Como se isso não bastasse, teve ainda de enfren-tar a humilhação de um policial que quis saber “se ela dispunha de dinheiro para o táxi, Nesses casos o Estado não paga, avisou” (Saramago, 2008, p.36).

Levada ao manicômio, a rapariga foi assediada pelo ladrão de carros:

O ladrão, estimulado pelo perfume que se desprendia dela e pela lembrança da ereção recente, decidiu usar as mãos com maior proveito, uma acariciando-lhe a nuca por baixo dos cabelos, a outra, direta e sem cerimônias, apalpando-lhe o sexo. Ela sacudiu-se para escapar ao desaforo, mas ele tinha-a bem agarrada. Então a rapariga jogou com força uma perna atrás, num movimento de coice. O salto do sapato, fino como um estilete, foi espetar-se no grosso da coxa nua do ladrão, que deu um berro de surpresa e de dor. (Saramago, 2008, p.56)

Do coice resultou uma ferida na perna do ladrão. A moça, arre-pendida, teve humildade e decidiu reconciliar-se com o homem, o qual, prontamente, a perdoou e reconheceu que também tivera sua parcela de culpa. À medida que o romance se desenvolve e que o narrador se aproxima daquela a quem apresentou como prostituta, a forte sensibilidade da jovem vai, aos poucos, transparecendo. Além do seu pedido de desculpas ao ladrão e do espírito maternal que despertou pelo rapazinho, a rapariga demonstra um imenso amor por seus genitores:

Não sei como estarão os meus pais, disse, esta sincera preo-cupação mostra como são afinal infundados os preconceitos dos que negam a possibilidade da existência de sentimentos fortes, incluindo o sentimento filial, nos casos, infelizmente abundantes, de comportamentos irregulares, mormente no plano da moralidade pública. (Saramago, 2008, p.212)

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DAS LETRAS ÀS TELAS 143

Quando consegue regressar à casa com a ajuda da mulher do médico, ela mantinha em seu coração o desejo de rever os pais:

Chamava, Mãezinha, paizinho, e ninguém vinha abrir, os dimi-nutivos carinhosos não abalavam a realidade, ninguém lhe veio dizer, Minha querida filha, até que enfim chegaste, já pensáva-mos que nunca mais te veríamos, entra, entra, e esta senhora é tua amiga, que entre, que entre também, a casa está um bocadinho desarrumada, não repare, a porta continuava fechada, Não está ninguém, disse a rapariga dos óculos escuros, e desatou-se a chorar encostada à porta, a cabeça sobre os antebraços cruzados, como se com todo o corpo estivesse a implorar uma desesperada piedade, não tivéssemos nós aprendido o suficiente do complicado que é o espírito humano, e estranharíamos que queira tanto a seus pais, ao ponto destas demonstrações de dor, uma rapariga de costumes tão livres, embora não esteja longe quem já afirmou que não existe nem existiu nunca qualquer contradição entre isto e aquilo. (Saramago, 2008, p.234)

Ao recobrar a visão, a primeira ideia que surge à moça é deixar um bilhete à porta de sua casa informando onde ela estava para que seus pais pudessem encontrá-la. Como se pode notar nos fragmen-tos anteriores, o narrador se surpreende diante da preocupação ex-cessiva com os pais que a rapariga manifestava, como se, por conta de seus hábitos sexuais livres, por assim dizer, não fosse possível que ela adotasse um comportamento filial tão expressivo. Além disso, essa jovem que entregava o corpo em troca de dinheiro tam-bém passou a ter pudor de despir-se completamente, mesmo entre cegos, e conseguiu estabelecer com a mulher do médico uma relação fraternal, apesar de ter-se deitado com o oftalmologista à vista de sua esposa. A despeito disso, ambas tratavam-se como mãe e filha.

É digno de nota ainda o amor desinteressado que a rapariga pas-sou a nutrir pelo velho da venda preta, outra personagem integrante do grupo que passou a viver na casa do médico. O ancião chegou ao manicômio nas últimas levas de cegos. Trouxe consigo um rádio

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que propiciou, por um curto período, certo contato com o mundo exterior por meio das notícias e alguns momentos em que todos paravam para ouvir música, tendo a sensibilidade aguçada:

Era uma canção, uma canção sem importância, mas os cegos foram-se aproximando devagar, não se empurravam, paravam logo que sentiam uma presença à sua frente e ali se deixavam ficar, a ouvir, com os olhos muito abertos na direcção da voz que cantava, alguns choravam, como provavelmente só os cegos podem chorar, as lágrimas correndo simplesmente, como de uma fonte. (Sara-mago, 2008, p.121)

O velho por vezes também foi a voz da experiência, apoiando a mulher do médico e dispondo-se a ajudar, apesar de sua idade avan-çada. Sua aproximação à rapariga se deu já no manicômio:

Foi afinal, numa noite destas, meter-se por sua própria vontade na cama do velho da venda preta, que a recebeu como chuva de Verão e cumpriu o melhor que podia, bastante bem para a idade, ficando por esta via demonstrado, mais uma vez, que as aparências são enganadoras, e que não é pelo aspecto da cara e pela presteza do corpo que se conhece a força do coração. (Saramago, 2008, p.170)

Na casa do médico, mesmo às cegas, o velho espreitou o banho das três mulheres na varanda:

Ouviu-as entrar, sabia de onde vinham, o que tinham estado a fazer, como haviam estado nuas, e se sabia tanto não era porque de repente lhe tivesse voltado a visão e ido, pé ante pé, como os outros velhos, espreitar uma Susana no banho, mas três, cego estivera, cego continuava, apenas assomara à porta da cozinha e de lá ouvira o que elas diziam na varanda, os risos, o ruído da chuva e das cha-padas de água, respirara o cheiro do sabão, depois voltara para o seu sofá [...]. (Saramago, 2008, p.268)

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DAS LETRAS ÀS TELAS 145

Neste trecho, a narrativa faz menção explícita ao quadro Susana no Banho, de Tintoretto,5 e estabelece um intertexto com a história de Susana, relatada no capítulo 13 do livro bíblico de Daniel: ela era uma jovem honesta, casada com Joaquim, cuja casa era frequentada por dois anciãos, os quais se apaixonaram por Susana e ficavam a espreitá-la nos seus passeios no jardim. Certo dia, enquanto ela se banhava no pomar, os velhos revelaram-lhe seu interesse, porém a moça se recusou a ceder a seus desejos. Enraivecidos, inventaram ter visto Susana no jardim com outro homem. Se comprovada a traição, a jovem seria penalizada com a morte. Entretanto, o profeta Daniel, julgando o caso, perguntou separadamente a cada um dos anciãos debaixo de qual árvore Susana esteve a se banhar. Cada um deu uma resposta distinta, o que provou que estavam mentindo e que era injusta a acusação. Os dois homens acabaram mortos em decorrência do falso testemunho.

Saramago relembra o quadro e o episódio de Susana por conta do fato de o velho da venda preta, assim como os anciãos, ter ido sondar, sem ser notado, o que as mulheres estavam a fazer na varan-da. Semelhante àqueles que admiravam a beleza de Susana, o velho da venda preta também demonstrava interesse por uma das mulhe-res, a rapariga dos óculos escuros. Ao contrário da figura feminina do quadro, que não nutria nenhum sentimento pelos homens que a espiavam, a moça de Ensaio sobre a Cegueira foi gradativamente aproximando-se do velho da venda preta e por ele se apaixonou. Facilitou esse contato o tempo em que estiveram instalados na casa do oftalmologista, quando puderam conhecer-se melhor. Em certa ocasião, sabendo que o velho estava banhando-se, a rapariga aju-dou-o a lavar-se sem dizer uma só palavra. Foi durante esse banho que se deu a união calada entre o casal: ele, já velho, cego, solitário; ela, uma mulher jovem, bonita, atraente, embora a cegueira não permitisse a nenhum dos dois ter um retrato exato do outro. Em

5 Jacopo Robusti Tintoretto (1518-1594): pintor maneirista italiano. Retratou cenas mitológicas e também pintou afrescos em capelas e palácios. Suas obras são marcadas pelo trabalho intenso com as cores e os efeitos de luz.

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silêncio, ambos parecem ter deixado de lado os seus próprios pre-conceitos, o dele de acreditar-se velho demais para apaixonar-se, o dela de deixar-se aventurar pela paixão, diferentemente das vezes que cobrara para se deitar com alguém e, sobretudo, porque se tra-tava agora dos sentimentos de um homem maduro. A proximidade que se estabelece entre os dois encoraja o velho, posteriormente, a declarar-se para a jovem, mostrando-se disposto a enfrentar o que fosse necessário para ter a rapariga ao seu lado, abrindo mão, inclusive, de recuperar a vista, só para poder estar perto da moça, que questiona:

E por que queres tu viver comigo, Esperas que o diga diante de todos eles, Fizemos uns diante dos outros as coisas mais sujas, mais feias, mais repugnantes, com certeza não é pior o que tens para dizer-me, Já que o queres, então seja, porque o homem que eu ainda sou gosta da mulher que tu és, Custou assim tanto a fazer a declaração de amor, Na minha idade, o ridículo mete medo, Não foste ridículo, Esqueçamos isto, peço-te, Não tenciono esquecer nem deixar que esqueças, É um disparate, obrigaste-me a falar, e agora, E agora é a minha vez, Não digas nada de que te possas arre-pender, lembra-te da lista negra, Se eu estiver a ser sincera hoje, que importa que tenha de arrepender-me amanhã, Cala-te, Tu queres viver comigo e eu quero viver contigo, Estás doida, Passaremos a viver juntos aqui, como um casal, e juntos continuaremos a viver se tivermos de nos separar dos nossos amigos, dois cegos devem poder ver mais do que um, É uma loucura, tu não gostas de mim, [...] Gosto o suficiente para querer estar contigo, e isto é a primeira vez que o digo a alguém, [...] A mulher que eu então era não o diria, reconheço, quem o disse foi a mulher que sou hoje. (Saramago, 2008, p.291)

A rapariga afirma nesse fragmento ser uma nova mulher, dife-rente da que fora antes, aceita o ancião como parceiro, e ambos pas-sam a viver como um casal. Essa relação supera a busca pela beleza física e a diferença de idade e valoriza o sentimento que um sentia

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DAS LETRAS ÀS TELAS 147

pelo outro. Embora com a visão recuperada, a moça confirma seu compromisso de viver com o velho: “Olha-me bem, sou eu a pessoa com quem disseste que irias viver, e ela respondeu, Conheço-te, és a pessoa com quem estou a viver, afinal há palavras que ainda valem mais do que tinham querido parecer” (Saramago, 2008, p.308). Co-meçando juntos uma vida nova, o ancião e a rapariga deixam para trás seus medos, o julgamento negativo que faziam de si próprios e tantos outros preconceitos.

Além dessas personagens, há ainda a presença de um cachorro na narrativa, o cão das lágrimas, que também se hospeda na casa do oftalmologista. Na analogia da inocência, no que tange ao mundo dos animais, Frye aponta que “os mais óbvios são a ovelha e os cor-deiros pastoris, ao lado dos cavalos e cães de caça da estória roma-nesca, em seus aspectos mais brandos, de fidelidade e dedicação” (Frye, 1973, p.153). Exemplar, neste sentido, é a lealdade desse cão que se converte no mascote do grupo. A mulher do médico o conheceu quando saíra a buscar comida para seus companheiros e se perdera pela cidade. Vendo-a chorar, o animal aproximou-se dela para consolá-la:

Os cães rodearam-na, farejam os sacos, mas sem convicção, como se já lhes tivesse passado a hora de comer, um deles lambe--lhe a cara, talvez desde pequeno tenha sido habituado a enxugar prantos. A mulher toca-lhe na cabeça, passa-lhe a mão pelo lombo encharcado, e o resto das lágrimas chora-as abraçada a ele. (Sara-mago, 2008, p.226)

Cumprindo o atributo que lhe dão de melhor amigo do homem, o cachorro passou a seguir a mulher do médico e servir-lhe de companhia. Para proteger o grupo que o adotou transformava--se em “um animal áspero e intratável” (Saramago, 2008, p.230), posicionava-se como um vigia à porta, ladrava furiosamente quan-do alguém se aproximava. Andava junto de seus companheiros, seguindo-os tranquilamente. Caminhava “ora adiante ora atrás, como se tivesse nascido para cão de rebanho, com ordem de não

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perder nenhuma ovelha” (Saramago, 2008, p.256). Dessa forma, também ajudava a guiar os cegos.

O cão das lágrimas, por perceber o sofrimento da mulher do médico e passar a dedicar sua vida a ela, ganhava vitalidade como recompensa, diferenciando-se dos demais cães, que pareciam hie-nas à caça de cadáveres, com pelos que expressavam a podridão, andando com os quartos traseiros encolhidos, com uma aparência que fazia crer que estavam na iminência da morte. O animal de estimação do grupo, pelo contrário, não se misturou mais à matilha que vagava pelas ruas, tampouco se alimentava dos corpos espalha-dos pelas vias. Quando necessitava saciar sua fome fora do horário da refeição dos humanos, era no lixo que ele tentava encontrar algo para se alimentar, “estas montanhas de lixo encerram tesouros ini-magináveis, tudo está em buscar, revolver e achar” (Saramago, 2008, p.272). Quando saía sozinho, procurava não se afastar dema-siado da casa do médico.

Nota-se a sua fidelidade quando escolheu seguir aquela a quem adotara como dona em vez de saborear sozinho uma galinha que acabara de atacar no quintal da vizinha da rapariga:

Entre a consciência de haver cometido um delito e a percepção de que a criatura humana a quem protegia se ia embora, o cão das lágrimas só duvidou um instante, imediatamente se pôs a escarvar no chão mole, e antes que a velha do primeiro andar assomasse ao patamar da escada de salvação a farejar a fonte dos ruídos que lhe estavam entrando em casa, ficava enterrada a carcaça da galinha, disfarçado o crime, reservado para outra ocasião o remorso. O cão das lágrimas esgueirou-se pela escada acima, roçou como um sopro as saias da velha, que nem se apercebeu do perigo que acabara de passar por ela, e foi pôr-se ao lado da mulher do médico. (Saramago, 2008, p.247)

Se os cegos sofreram um processo de animalização durante o surto de cegueira, o cão das lágrimas, em oposição, acompanhando esse grupo parece ter passado por um processo de humanização.

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Quando viu a mulher do médico descompensada, aos prantos, de-pois de se deparar com a cave do supermercado convertida em um depósito de corpos, foi o cachorro que, compreendendo a situa-ção, conseguiu por intermédio dos latidos e investidas um lugar para que ela descansasse dentro de uma igreja superlotada. O cão também se compadecia diante dos cadáveres espalhados nas ruas, como quando encontrou o corpo de um homem em decomposição, entalado entre dois carros. O cachorro “aproxima-se, mas a morte intimida-o, ainda dá dois passos, de súbito o pelo encrespou-se-lhe, um uivo lacerante saiu-lhe da garganta” (Saramago, 2008, p.295). O próprio narrador, inclusive, atesta a personalização do animal, “o mal deste cão foi ter-se chegado tanto aos humanos, vai acabar por sofrer como eles” (Saramago, 2008, p.295).

Por último, é preciso lembrar que foi abraçada ao cão das lá-grimas que a mulher do médico chorou quando viu que os cegos paulatinamente recobravam o sentido da visão:

O cão das lágrimas veio para ela, este sabe sempre quando o necessitam, por isso a mulher do médico se agarrou a ele, não é que não continuasse a amar o seu marido, não é que não quisesse bem a todos quantos se encontravam ali, mas naquele momento foi tão intensa a sua impressão de solidão, tão insuportável, que lhe pare-ceu que só poderia ser mitigada na estranha sede com que o cão lhe bebia as lágrimas. (Saramago, 2008, p.307)

Diante do desaparecimento da cegueira, a esposa do médico pôde trocar a figura de um ser inabalável pela de alguém que tivera mantido uma grande resistência mental e que agora se sentia alivia-da, pois acabara seu martírio de ser a única a enxergar a abjeção de-corrente do surto. Por isso se derramava em pranto, consolada pelo cão, que se conservou fiel, não abandonando seus novos amigos.

Por fim, o primeiro cego e sua esposa completam o grupo da mulher do médico. Ele fora o primeiro indivíduo afetado pela ce-gueira, perdera a visão enquanto dirigia em meio a um trânsito frenético. Nas ações do casal podem-se perceber algumas situações

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comuns e típicas apontadas por Frye (1973, p.155) como represen-tativas da analogia da experiência. No primeiro cego, por exemplo, observa-se a desconfiança diante dos desconhecidos, que se ma-nifesta na suspeita de que o transeunte que o trouxera até em casa planejasse roubar-lhe.

A atitude da esposa do primeiro cego também demonstra a ten-dência do ser humano de julgar sem saber o que de fato aconteceu. Ao chegar do trabalho, desconhecendo que o marido estava cego, ela se zanga por ver a casa desarrumada e o marido deitado no sofá:

Ia resmungando, com uma irritação que não procurava dissi-mular, Bem o poderias ter feito tu, em lugar de te deitares para aí a dormir, como se não fosse nada contigo. (Saramago, 2008, p.17)

Ciente da fatalidade que ocorrera com o esposo, a reação da mulher foi a mais comum que poderia ocorrer, pensou ela que deve-riam buscar um especialista. “A primeira coisa que temos de fazer é falar com um médico dos olhos” (Saramago, 2008, p.18). Outro aspecto típico que ela apresenta é o desejo impulsivo de vingança no momento em que se sofre algum prejuízo. Descobrindo o roubo do veículo, desejou que “o malandro cegasse também, [...] E lhe roubassem tudo quanto tenha” (Saramago, 2008, p.20).

Por meio do casal, verifica-se também a tendência dos indiví-duos a não querer demonstrar aos outros suas fraquezas. Ainda que privado da visão, o primeiro cego vangloria-se da saúde de seus olhos ao afirmar ao doutor que nunca precisara usar óculos. Sua esposa também o adverte para que aja com naturalidade com os vizinhos e com o taxista, sem deixar que ninguém percebesse a sua cegueira.

Separados quando o primeiro cego é levado à quarentena, o re-encontro do casal no manicômio constitui uma cena comovente. Um caminha em direção ao outro, orientando-se pela voz. Quando se aproximam, cumprimentam-se com abraços e beijos intensos.

Vale ressaltar também o gesto do primeiro cego, que, sem guar-dar mágoas, se dispôs a ajudar no enterro do homem que, passan-

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do-se por um bom samaritano, roubou-lhe o carro. O narrador aproveita esse momento para tecer uma reflexão sobre a morte e lembrar o quanto ela é capaz de despertar compaixão e de amenizar ou fazer cessar a raiva brutal que um indivíduo sente por outro:

Perante a morte, o que se espera da natureza é que percam os rancores a força e o veneno, é certo que se diz que o ódio velho não cansa, e disso não faltam provas na literatura e na vida, mas isto aqui no fundo, a bem dizer, não era ódio, e de velho nada, pois que vale o roubo de um automóvel ao lado do morto que o tinha rou-bado, e menos ainda no mísero estado em que se encontra, que não são precisos olhos para saber que esta cara não tem nariz nem boca. (Saramago, 2008, p.86)

Mesmo que durante o isolamento o primeiro cego e sua esposa tenham se mantido um tanto distantes ou até mesmo se desenten-dido quando ele tentou impedi-la de acompanhar as mulheres à camarata dos malvados para pagar pelas refeições, nota-se que, ao recobrar a visão o casal compartilhou a felicidade, demonstrando uma forte afetividade e dando pistas de que a crise que atravessa-ram, talvez em decorrência da cegueira, pudesse ter chegado ao fim.

A conquista da sobrevivência desse grupo parece ter se dado graças à habitação de um espaço animístico, manipulado pelo des-tino. Salienta Frye que “o mundo inocente nem é totalmente vivo, como o apocalíptico, nem morto pela maior parte, como o nosso: é um mundo animístico, cheio de espíritos elementares” (Frye, 1973, p.154). Na narrativa em análise, há uma série de coincidências que dão a impressão de que o destino estava a favor dos protagonistas e, por isso, auxiliava a mulher do médico e seu grupo. Basta observar que os pacientes do oftalmologista foram reunidos na mesma ca-marata. Mesmo o velho da venda preta, que chegara ao manicômio passado alguns dias do início da quarentena, conseguiu se hospedar ali. “Por um feliz acaso, obviamente prometedor de consequên-cias no futuro, havia uma cama, a única” (Saramago, 2008, p.119). Chama a atenção o fato de que as pessoas que estavam no consultó-

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rio do oftalmologista no dia em que o primeiro cego por lá apareceu são exatamente as mesmas que compuseram o grupo da mulher do médico, que não deixou de enxergar, tomou aos seus cuidados os pacientes do marido e por eles sentia-se responsável.

Há que se lembrar também a sorte de não ter sido arrombada a residência do médico, onde se estabeleceram; e o privilégio de se en-contrar um supermercado, cujo depósito não tinha sido descoberto e de onde a mulher retirou alimentos que sustentaram o grupo por um bom tempo.

Parece ainda obra do destino o encontro da mulher com um mapa justamente quando ela entrava em desespero por estar per-dida na cidade e não saber regressar à loja onde deixara os seus companheiros:

Quando enfim levantou os olhos, mil vezes louvado seja o deus das encruzilhadas, viu que tinha diante de si um grande mapa, des-ses que os departamentos municipais de turismo espalham no cen-tro das cidades, sobretudo para uso e tranquilidade dos visitantes, que tanto querem poder dizer aonde foram como precisam saber onde estão. Agora, estando toda a gente cega, parece fácil dar por mal empregado o dinheiro que se gastou, afinal há é que ter paciên-cia, dar tempo ao tempo, já devíamos ter aprendido, e de uma vez para sempre, que o destino tem de fazer muitos rodeios para chegar a qualquer parte, só ele sabe o que lhe terá custado trazer aqui este mapa para dizer a esta mulher onde está. (Saramago, 2008, p.226)

Além do mapa, a mulher também foi presenteada pelo destino com o cão das lágrimas, que encontrou nesse momento e que a ela dedicou sua fidelidade, não mais a abandonando. Todas essas “disposições do destino, mistérios dos arcanos” (Saramago, 2008, p.119) amenizaram de alguma forma os sofrimentos da mulher do médico e dos cegos que a acompanharam durante o período em que estiveram privados da visão.

Por meio da convivência e das vicissitudes que gradativamente vão se operando no grupo, a narrativa retrata o despertar de uma

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nova visão sobre a vida, bem como os valores que servem para so-lidificar a relação entre os homens: a amizade, a solidariedade, a compaixão, a generosidade, a fraternidade, a partilha, o amor e, essencialmente, o olhar sobre o outro, que talvez seja a melhor ma-neira de conhecer a si próprio.

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3 A literAturA e o cinemA:

convergênciAs e divergênciAs

Um filme é uma escritura em imagens.

Jean Cocteau

A literatura e o cinema em contato

Uma das parcerias interartísticas mais notórias talvez seja a es-tabelecida entre a literatura e o cinema. Desde que a sétima arte veio à luz, inúmeros filmes foram buscar inspiração em narrativas literárias e transformaram muitas delas em roteiros cinematográ-ficos. O elemento fundamental comum a ambos, que possibilita a aproximação, é a estrutura narrativa, pois tanto um texto em prosa quanto um filme, em última instância, apresentam uma história que ocorreu a alguém (personagem) em um determinado momento (tempo) e local (espaço). Se por um lado essas duas manifestações artísticas apresentam esses pontos de encontro e se mostram bas-tante próximas, por outro, não se pode esquecer que ambas são artes autônomas, dotadas de regras próprias de produção e recep-ção, ou seja, cada uma possui a sua identidade.

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A literatura é a arte que utiliza a palavra como matéria-prima para compor um espaço, descrever um tempo, criar personagens, dar voz a uma entidade capaz de contar uma história, projetar ima-gens, transfigurar o mundo que nos cerca. O cinema, por sua vez, é, por excelência, a arte da imagem em movimento,

uma arte heterogênea que soma características básicas das outras modalidades de arte existentes, um autêntico compósito que sin-tetiza em si mesmo, entre outras coisas: a plasticidade da pintura, o movimento e o ritmo da música e da dança, a (pseudo)tridimen-sionalidade da escultura e arquitetura, a dramaticidade do teatro e a narratividade da literatura. (Brito, 2006, p.135)

Se todas as construções literárias são resultantes essencialmente do trabalho com o signo linguístico, a arte cinematográfica, por sua vez, é plural, tanto do ponto de vista dos traços que incorpora de outras artes, quanto da diversidade de elementos que mobiliza. Entram em cena na produção de filmes a montagem, a sonoplas-tia, a interpretação dos atores, a cenografia, o figurino, as posições da câmera, a iluminação, o enquadramento das imagens. Por essa razão, diferentemente do labor solitário de um escritor, o cine-ma é uma arte coletiva, consequência do trabalho de um grupo de profissionais, sob a supervisão de um diretor, que dialoga com a equipe, orienta os atores, discute, modifica, analisa, aceita e refuta sugestões. Randal Johnson ainda enfatiza que os instrumentos pos-tos à disposição no trabalho literário contrapõem-se aos múltiplos elementos levados em conta na sétima arte:

Enquanto um romancista tem à sua disposição a linguagem verbal com toda a sua riqueza metafórica e figurativa, um cineasta lida com pelo menos cinco materiais de expressão diferentes: ima-gens visuais, a linguagem verbal oral (diálogo, narração e letras de música), sons não verbais (ruídos e efeitos sonoros), música e a pró-pria língua escrita (créditos, títulos e outras escritas). Todos esses

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materiais podem ser manipulados de diversas maneiras. (Johnson, 2003, p.42)

Tal como a produção, a recepção de uma obra literária e outra fílmica também se distingue. Dependendo da extensão de um livro, na maioria das vezes é impossível concluir sua leitura de uma só vez. Nesse processo, é permitido interromper a leitura, voltar algu-mas páginas para relembrar algum fato, reler a apresentação de uma personagem, buscar um detalhe essencial para a compreensão da narrativa que não foi captado. Além disso, podem-se pular alguns parágrafos ou capítulos inteiros, ler primeiro o desfecho e depois retornar à abertura ou ao desenvolvimento da história, enfim, o leitor pode adequar a leitura ao seu gosto e às suas necessidades. Quando se assiste a um filme, as interrupções são mais incomuns e até mesmo impossíveis, se pensarmos na exibição em salas de cine-ma. Diferentemente da apreciação de um livro, a duração média de uma produção cinematográfica é de duas horas, a fim de não cansar o espectador, elevar a sua tensão ao grau máximo em direção ao des-fecho do filme e ainda evitar pausas. Por causa dessa limitação do tempo, a clareza torna-se um fator fundamental para impedir a falta de compreensão. Na leitura de um romance, ao contrário,

o tempo está a nosso favor, não se trata de uma experiência pura-mente cronológica, em que outra pessoa determina o nosso ritmo, mas sim de uma experiência reflexiva. [...] Ler um trecho, colocar o livro de lado, refletir a respeito do que foi lido, algumas vezes reler uma página, tudo isso faz parte do prazer da leitura. A linguagem em si nos dá tanto prazer quanto a própria história. (Seger, 2007, p.31)

Enquanto na leitura de obras literárias o leitor encontra a voz do narrador para mediar a história, conduzir-lhe ao longo do texto, dialogar, esclarecer alguma situação, divagar e manifestar suas im-pressões diante dos fatos – embora nem sempre o narrador seja uma figura completamente confiável – no contato com um filme, salvo algumas exceções, a história é transmitida por meio das imagens

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que são projetadas, o que causa a impressão de que o cinema exibe uma representação direta da realidade. Sabemos, entretanto, que essa ausência de mediação é apenas aparente, pois o que assisti-mos é uma seleção de imagens combinadas por meio da monta-gem, ou seja, há por trás do filme alguém que julgou conveniente ocultar determinadas cenas e mostrar outras, seguindo uma ordem pré-definida.

O cinema presentifica os acontecimentos. As ações ocorrem diante de nossos olhos, independentemente se dizem respeito a eventos pretéritos ou a previsões do futuro. Yuri Lotman assinala que, “em qualquer arte ligada à visão e aos signos icônicos, só existe um tempo artístico possível: o presente” (Lotman, 1978, p.136). O semioticista russo ainda acrescenta que “mesmo tendo consciência do caráter irreal do que se desenrola diante de si, o espectador vive--o emocionalmente como um acontecimento real” (Lotman, 1978, p.25). Com essa afirmação, Lotman toca em outra característica marcante do cinema: a criação do efeito do real, o desejo de mostrar--se representação fiel da realidade ou dela aproximar-se ao máximo.

Na leitura de uma obra literária, vamos montando um retrato das personagens de acordo com as descrições físicas e psicológicas oferecidas, bem como criamos uma imagem mental para as refe-rências espaçotemporais nas quais as ações se desenvolvem. Ainda que a narrativa tome figuras reais como personagens ou mencione espaços do mundo que nos cerca e que nos são conhecidos, o retra-to imaginativo que idealizaremos nem sempre corresponderá aos elementos factuais. No cinema, a imaginação fica prejudicada em razão das imagens já prontas que atravessam nossa retina. Nesse as-pecto, o cineasta espanhol Pedro Almodóvar crê que “na literatura há mais amplitude para contar uma história, mais elementos. O fato de em um filme ter que se ver o que se está contando me parece que provoca certa limitação narrativa” (Almodóvar, 2007, p.137). Para alguém que assiste a uma adaptação de um texto literário esperando encontrar tudo tal e qual estava no livro, o filme pode ser desapon-tador, pois as imagens projetadas serão distintas daquelas que ele evocou durante a leitura.

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Além da aparente inexistência de mediação e da presentificação dos fatos, também concorrem para a criação da ilusão de realidade no cinema a utilização de seres humanos reais para interpretar as personagens e ainda a similaridade entre os espaços que nos cercam e aqueles mostrados na tela, os quais podem, inclusive, mimeti-zar lugares empíricos, referências ou pontos turísticos conhecidos mundialmente, facilmente identificáveis, que estamos acostuma-dos a ver pela televisão ou que já os visitamos, como o Cristo Re-dentor no Rio de Janeiro, a Torre Eiffel na França.

Assim, a composição de um texto literário e de uma obra fíl-mica exigem, cada qual, um tratamento diferente por parte de seu público:

O contar exige do público um trabalho conceitual; o mostrar solicita suas habilidades decodificadoras perceptivas. No primeiro, imaginamos e visualizamos um mundo a partir das marcas pretas nas páginas brancas enquanto lemos; no segundo, nossa imagina-ção é apropriada enquanto percebemos, e então damos significado a um mundo de imagens, sons e palavras vistas e ouvidas no palco ou na tela. (Hutcheon, 2011, p.178)

Nota-se assim que, embora aproximados pela intenção de apre-sentar ao leitor/espectador uma história, a literatura e o cinema mantêm também suas especificidades, pois os mecanismos de fun-cionamento são distintos. Em síntese, aquela faz parte dos gêneros destinados a contar histórias, ao passo que este integra os gêneros que além de contar, almejam também mostrá-las.

Se estruturalmente a literatura e o cinema guardam algo em comum, para além de suas especificidades, o contato entre ambas as artes pode aumentar quando uma obra literária é adaptada para o cinema, quando as personagens e suas peripécias trocam a narrativa pela projeção cinematográfica. A adaptação é o “ponto nevrálgico em que as duas modalidades de arte se tocam ou se repelem, se aca-salam ou se agridem” (Brito, 2006, p.143).

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As adaptações já se tornaram parte do nosso convívio e não se restringem apenas à transformação de obras literárias em produ-ções cinematográficas, elas estão “nas telas da televisão e do ci-nema, nos palcos do musical e do teatro dramático, na internet, nos romances e quadrinhos, nos fliperamas e também nos parques temáticos” (Hutcheon, 2011, p.22). Ao contrário do que possa parecer, as adaptações existem desde longa data. A pesquisadora canadense Linda Hutcheon, no esforço de criar uma teoria da adap-tação, aponta que a prática de adaptar já fazia parte do cotidiano dos vitorianos. Shakespeare levou para o palco histórias pertencentes à sua cultura. Ésquilo, Racine, Goethe e da Ponte conferiram novas formas a histórias consagradas (Hutcheon, 2011, p.15-22).

A fim de comprovar a presença das adaptações de obras lite-rárias para o cinema e o seu sucesso nos meios cinematográfico e televisivo, Linda Seger assinala que entre os filmes vencedores do Oscar e do Emmy, dois grandes prêmios cobiçados por artistas do cinema e da televisão,

85% dos premiados pelo Oscar na categoria melhor filme são adaptações.45% de todos os filmes feitos especialmente para TV [conhecidos nos EUA como movie-of-the-week, m-o-w] são adaptações, e 70 % dos ganhadores do Emmy vêm desses filmes.83% de todas as minisséries são adaptações, e 95% das minissé-ries vencedoras do Emmy são escolhidas dentre essas adaptações. (Seger, 2007, p.11)

João Batista de Brito ainda complementa registrando que “na história do cinema o número de adaptações ultrapassa de muito a quantidade de filmes com roteiros originais” (Brito, 2006, p.143). Como se pode notar, as adaptações já se firmaram no gosto do pú-blico e estão cada vez mais expandindo seu espaço.

Se consultarmos o verbete adaptar nos dicionários, entre as acepções possíveis encontram-se ajustar, amoldar, alterar, tornar adequado. São exatamente tais procedimentos que o adaptador co-

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loca em prática ao escolher uma obra literária para transformar em um filme. Baseando-se no texto que lhe serve de ponto de partida, o adaptador obrigatoriamente deverá realizar modificações para que a adaptação aconteça. É impossível fazer uma reprodução fiel da história, e nem é esse o propósito, como aponta José Carlos Avellar:

O que tem levado o cinema à literatura não é a impressão de que é possível apanhar uma certa coisa que está num livro – uma história, um diálogo, uma cena – e inseri-la num filme, mas, ao contrário, uma quase certeza de que tal operação é impossível. A relação se dá por meio de um desafio como os dos cantadores do Nordeste, em que cada poeta estimula o outro a inventar-se livre-mente, a improvisar, a fazer exatamente o que acha que deve fazer. (Avellar, 1994, p.124)

Assim, a produção de uma adaptação é fruto do desejo do tra-dutor de reler, alterar, transformar, a seu modo, uma determinada obra. É dele o papel de seleção do que deverá ser aproveitado ou não da obra tomada como ponto de partida. Dessa forma, é necessário o

reconhecimento de que uma total correspondência nunca pode ser alcançada. Qualquer tradução oferecerá, inevitavelmente, mais do que o texto original oferece, e também menos. O sucesso de um tradutor não dependerá somente de sua habilidade e criatividade, mas também das decisões sobre o que será eliminado e sobre o equivalente que precisa ser encontrado. (Clüver, 2006, p.116)

Em síntese, a adaptação consiste, portanto, em tomar o texto base e ajustá-lo a outro suporte, usando os recursos próprios da nova mídia, buscando equivalências e fazendo as modificações que forem necessárias. Nessas circunstâncias, por conta de diversas transformações, perdas e ganhos que o texto-fonte sofrerá, a obra adaptada resultará sempre em uma recriação.

Como se trata de duas artes distintas, literatura e cinema, com suas próprias leis, com recursos estéticos que lhes são peculiares,

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na perspectiva do linguista Roman Jakobson, ocorre o que ele de-nomina tradução intersemiótica ou transmutação, operação resul-tante da “interpretação dos signos verbais por meio de sistemas de signos não verbais” (Jakobson, 2010, p.81). Obviamente, no termo tradução está expresso o deslocamento dos componentes de uma determinada arte para outra. Além disso, pensar em tradu-ção remete à ideia de recriação, reformulação desses componentes, pois nem tudo que existe em uma modalidade artística pode existir em outra, tampouco os elementos podem manter-se exatamente iguais, principalmente quando ocorre a transposição entre artes de naturezas distintas, como o são a literatura e o cinema, sendo a primeira predominantemente verbal e a segunda formada por múltiplos aspectos, dentre os quais está o verbal, que nem sempre é o mais eminente. Como é sabido, toda tradução “inevitavelmente altera não apenas o sentido literal, mas também certas nuances, associações e o próprio significado cultural do material traduzido” (Hutcheon, 2011, p.9).

No termo intersemiótica, o prefixo de origem latina inter (entre) marca a relação estabelecida entre as artes que serão colocadas em contato mediante a tradução; semiótica, por sua vez, provém da raiz grega semeion (signo), é, em linhas gerais, a ciência que estuda os signos. Com o propósito de definir os principais fundamentos e proporcionar uma visão panorâmica do que venha a ser a semiótica, Lúcia Santaella assegura que a língua que utilizamos para falar, escrever, comunicar está tão profundamente integrada ao nosso ser, que muitas vezes somos impedidos de perceber que ela não é a única forma de linguagem que nos cerca:

É tal a distração que a aparente dominância da língua provoca em nós que, na maior parte das vezes, não chegamos a tomar cons-ciência de que o nosso estar-no-mundo, como indivíduos sociais que somos, é mediado por uma rede intrincada e plural de lingua-gem, isto é, que nos comunicamos também através da leitura e/ou produção de formas, volumes, massas, interações de forças, movi-mentos; que somos também leitores e/ou produtores de dimensões

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e direções de linhas, traços, cores... Enfim, também nos comuni-camos e nos orientamos através de imagens, gráficos, sinais, setas, números, luzes... Através de objetos, sons musicais, gestos, expres-sões, cheiro e tato, através do olhar, do sentir e do apalpar. Somos uma espécie animal tão complexa quanto são complexas e plurais as linguagens que nos constituem como seres simbólicos, isto é, seres de linguagem. (Santaella, 1986, p.11)

Diante dessa perspectiva, a linguagem verbal é apenas uma das variadas formas de linguagem existentes. Podemos falar em lingua-gem matemática, dos surdos-mudos, de trânsito, dos computado-res, entre tantas outras. Todas elas são formadas por um sistema de signos, ou seja, unidades compostas por um significante (a parte material, concreta, física do signo) e um significado, o qual é so-cialmente construído e adotado pela população. As modalidades artísticas podem ser consideradas também um sistema de signos, compostas, cada qual, por elementos que lhe são próprios. O que se modifica, porém, quando tratamos das artes, é que o significado conferido a cada signo artístico, estético, pode não ser único, ele varia de acordo com seu interpretante, com o tempo e o local em que é interpretado. Entretanto, apesar dessa abertura, nem todas as significações são possíveis, elas precisam estar fundamentadas nos elementos oferecidos pelas obras. Assim, na pintura, teríamos um sistema de signos formado pelas cores, formas, traços, linhas, perspectiva, textura. Na música, poderíamos falar de tom, rimas, harmonia, notas, ritmo. Na literatura estão as diferentes figuras de linguagem, o ritmo, a disposição do texto nas páginas, descrição, forma de discursos, formas de narração. O cinema, como já disse-mos, envolve luzes, posicionamento de câmera, atuação, enquadra-mento, sonoplastia etc.

Se os sistemas sígnicos se diferenciam, reside aí mais uma jus-tificativa para a diferença estrutural que existe entre uma narrativa literária e um filme nela baseado. Por mais que, hipoteticamente, a história contada em ambos seja exatamente a mesma, a forma de apresentação será modificada. Para se ter uma ideia, uma descrição

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que no livro ocupa páginas e páginas e dentro da qual o narrador chama a atenção para determinados detalhes que serão importan-tes para o desenvolvimento do enredo pode, no filme, ser exibida por uma única tomada e de forma neutralizada, sem que o espec-tador tenha tempo de atentar-se para os pormenores. Em Ensaio sobre a Cegueira, por exemplo, Saramago utiliza vários parágrafos para descrever o manicômio, onde são enclausurados os cegos. Em Blindness, poucas tomadas, alguns segundos e o rápido percurso da câmera pelo ambiente são suficientes para apresentar ao espectador o local escolhido para a quarentena.

Portanto, se transpor uma obra de natureza verbal, como um texto literário, para um sistema de signos não verbal, como o cine-ma, requer alterações dessa ordem, isso significa que o trabalho do tradutor é também criativo e que a transposição resultará em uma recriação:

Tradução de textos criativos será sempre recriação, ou criação paralela, autônoma porém recíproca. Quanto mais inçado de difi-culdades esse texto, mais recriável, mais sedutor enquanto possibi-lidade aberta de recriação. Numa tradução dessa natureza, não se traduz apenas o significado, traduz-se o próprio signo, ou seja, sua fisicalidade, sua materialidade mesma (propriedades sonoras, de imagética visual, enfiam tudo aquilo que forma, segundo Charles Morris, a iconicidade do signo estético, entendido por signo icônico aquele “que é de certa maneira similar àquilo que ele denota”). O significado, o parâmetro semântico, será apenas e tão somente a baliza demarcatória do lugar da empresa recriadora. Está-se, pois, no avesso da chamada tradução literal. (Campos, 1976, p.24)

Apesar dos traços criativos, não se pode ignorar que a obra to-mada como ponto de partida e sua transposição, embora autôno-mas, “estarão ligadas entre si por uma relação de isomorfia: serão diferentes enquanto linguagem, mas como os corpos isomorfos, cristalizar-se-ão dentro de um mesmo sistema” (Campos, 1976, p.24). Em outras palavras, alguns traços da narrativa literária ne-

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cessariamente serão mantidos para que a narrativa fílmica possa ser considerada uma adaptação.

Já que não pode existir correspondência total entre as obras, já que a transposição intersemiótica consiste em “criar uma nova rea-lidade dentro de uma outra linguagem” (Brasil, 1967, p.56), exigir fidelidade de um filme ao texto literário que lhe serviu de base (ou ainda em qualquer outro tipo de transposição entre meios distintos) é um disparate. Contudo, para que se chegasse a essa conclusão, foi necessário um longo percurso de discussões.

Durante muito tempo as pessoas não tinham a compreensão de que a literatura e o cinema são duas linguagens distintas e exigiam que a adaptação fosse fiel à obra que lhe deu origem. A questão chegou a ser polêmica: de um lado estavam aqueles que criticavam as adaptações pela falta de fidelidade ao original; de outro, aqueles que acreditavam que os adaptadores precisavam de liberdade para exercitar o seu processo criativo. Somente com o passar dos anos e com o avanço das pesquisas, foi possível desmistificar pensamentos como o de Brasil, o qual declara “que a aproximação de uma obra literária a um processo cinematográfico afim deixa claro a marca de duas linguagens que nunca se encontram” (Brasil, 1967, p.27), e esclarecer que o cinema e a literatura apresentam, sim, pontos de convergência, porém são modalidades artísticas autônomas que, para além das semelhanças, se valem de elementos estéticos pró-prios. É por essa razão que, em alguns casos, “romances geniais dão péssimos filmes, e histórias fracas, filmes geniais” (Dourado, 2007, p.53), pois tudo dependerá da manipulação que o cineasta fará das ferramentas que tem à sua disposição. Além disso, é inconcebível supor que exista

uma leitura “correta” e “única” para o texto literário, cabendo ao adaptador descobrir o verdadeiro sentido do texto e transferi-lo para uma nova linguagem e um novo veículo. Essa visão nega a própria natureza do texto literário, que é a possibilidade de suscitar interpretações diversas e ganhar novos sentidos com o passar do tempo e a mudança das circunstâncias. (Guimarães, 2003, p.95)

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Nesse sentido, um único texto literário pode suscitar adaptações diferentes, dependendo da interpretação e do relacionamento que cada adaptador travar com o texto.

Muitos fatores influenciam na decisão de se produzir uma adap-tação de uma obra literária. Em primeiro lugar, espera-se que o texto literário tenha um público já estabelecido que vá comparecer às sessões de cinema. Uma adaptação poderá ser um tributo, uma homenagem a determinado texto ou escritor, uma crítica à socieda-de, à cultura, a posições políticas, o desejo de retratar uma deter-minada época registrada em uma narrativa, de resgatar um texto esquecido, entre outros. Diante de tantas motivações, fica evidente que a adaptação “é uma forma de repetição sem replicação” (Hu-tcheon, 2011, p.17), seu apelo para o público está “na mistura de repetição com diferença, de familiaridade com novidade” (Hutche-on, 2011, p.158), no fato de “repetir sem copiar, de incorporar a diferença na semelhança, de ser de uma só vez o mesmo e Outro” (Hutcheon, 2011, p.230).

Sem a devida compreensão da inovação presente nas adaptações, muitas vezes elas são vistas como inferiores aos textos nos quais se inspiram. Em um ato comparativo, a tendência é dar preferência ao texto original em detrimento da obra adaptada. Entretanto, essa visão é um tanto equivocada, pois, como lembra Hutcheon (2011, p.13), inspirar-se ou derivar de outro texto não é necessariamente motivo para que a adaptação seja julgada secundária, subsidiária ou inferior, assim como falar em texto original pode ser arriscado, visto que “contar histórias é sempre a arte de repetir histórias” (Benjamin, 1994, p.90). Os próprios escritores dividem-se quanto à aprovação de adaptações. Alguns as depreciam, alegando que as obras literárias sofrem uma simplificação quando transpostas para o cinema. Virginia Woolf (1926, p.309), por exemplo, muito ciosa do texto literário, adota posição intolerante, ao afirmar que os fil-mes são parasitas que tomam a literatura como presa e vítima. Eles deveriam não procurar imitá-la, mas explorar aquilo que não pode ser expresso tão somente por meio das palavras. Outros escritores, em especial os mais contemporâneos, tentam transpor para a litera-

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tura as técnicas cinematográficas e alguns deles ainda desenvolvem suas narrativas nos moldes cinematográficos, de forma que possam facilmente ser transferidas para a mídia audiovisual. Tais autores, aos olhos de Tânia Pellegrini, estão empreendendo mudanças na narrativa literária em função da incorporação das técnicas visuais, ao promover

uma crescente sofisticação das técnicas de representação (monó-logo interior, fluxo de consciência, desarticulação do enredo, frag-mentação, descontinuidade, desaparecimento do narrador etc.) que, paradoxalmente, envolve uma crescente simplificação da lin-guagem, no sentido de que ela vai aos poucos se despindo cada vez mais de seus acessórios qualificadores (figuras, advérbios, adje-tivos etc.) para dar lugar à substancialidade absoluta de nomes e ações, numa tentativa de imitar/representar a imagem visual na sua objetividade construída. (Pellegrini, 2003, p.28)

Ponderando opiniões contrastantes entre escritores que apoiam ou não as adaptações, Jorge Amado, que teve muitas de suas obras levadas ao cinema e à televisão, resume a questão, declarando que

do ponto de vista do autor, nenhuma adaptação será total e com-pletamente aquilo que ele desejaria que fosse, pelo simples fato de que são formas de comunicação inteiramente diferentes [...] O tra-balho que ela fizer será bom na medida em que for uma recriação. (Amado, 2007, p.101)

Além disso, as adaptações nem sempre são tomadas como tal ou como secundárias, elas podem ser tidas como texto primeiro quando o espectador não atentar para o fato de que se trata de uma adaptação baseada em uma obra literária. Também acontece de se apreciar primeiramente a adaptação e em seguida o texto que lhe deu origem, ou ainda ter acesso a apenas um deles, o que prova que obra fonte e obra adaptada são independentes e relacionam-se em forma de sintagma e não de paradigma, isto é, não existe entre

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elas uma hierarquização. Dessa maneira, quando uma adaptação é produzida, os cineastas não devem contar com o conhecimento público do texto em que ela se baseia. Muitos filmes resultantes de adaptações fracassam por serem “aleijados”, apoiados pela “mu-leta literária” (Brito, 2006, p.76), porque sua compreensão pelo espectador depende do conhecimento da fonte, a obra literária, caso contrário, a apreciação será prejudicada. Tal fato impõe ao tradutor a necessidade de encontrar um ponto de equilíbrio, de sorte que a adaptação demonstre algum tipo de ligação com o texto que lhe deu origem, mas também alcance seu grau de independência.

Quando se cogita produzir uma adaptação, além das dificulda-des em transpor o texto para outra linguagem, aponta Seger (2007, p.24) que o aspecto comercial é um dos fatores que pode viabilizar ou não a filmagem. É obvio que a publicação de um livro também perpassa questões econômicas e mercadológicas, porém, no cine-ma, elas são levadas ao extremo por conta das inúmeras ferramentas (móveis para cenários, figurino, iluminação etc.) e profissionais que são mobilizados (cinegrafistas, diretores, atores, maquiadores, figurantes, músicos, editores, entre outros). O filme, como qual-quer outro produto comercial, precisa ser lucrativo, pois o montan-te arrecadado deve ser suficiente para o pagamento de toda a equipe envolvida, das inumeráveis despesas decorrentes da produção e ainda resultar em lucro. Portanto, antes de se aprovar a realização do filme são levados em conta o investimento, a rentabilidade, os riscos de perda, o público a que se destina e se a proposta condiz com sua preferência. Em muitos casos, opta-se por contratar ce-lebridades para atuar e um diretor já consagrado a fim de que a repercussão seja maior, interessando a imprensa e favorecendo a criação de resenhas críticas. A recepção é, desta forma, fundamen-tal para concretizar a produção de um filme, seja ele resultante de uma obra literária ou não. Nesse sentido, a narrativa adaptada pode sofrer profundas transformações com vistas a agradar a massa de espectadores.

André Bazin (1991, p.93) destaca que muitos espectadores de adaptações vão em seguida fazer a leitura da obra que foi adaptada.

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Cientes disso, as editoras também se beneficiam com as adaptações para expandir seu lucro, “publicam novas edições de obras adapta-das no mesmo período de lançamento da versão cinematográfica, e invariavelmente colocam fotos dos atores ou de cenas do filme na capa” (Hutcheon, 2011, p.57). Na esteira do filme, muitos produ-tos podem ser lançados, explorando-se a imagem das personagens, principalmente quando a adaptação pretende atingir o público in-fantil: surgem linhas de material escolar, brinquedos, camisetas, bonés, adesivos, jogos eletrônicos etc.

Diante da transposição da linguagem literária para a fílmica, das diferentes preocupações no processo de produção e de recepção de uma narrativa e de um filme e dos diversificados recursos com os quais a literatura e o cinema constroem suas composições, as obras literárias sofrem modificações, leves ou radicais, ao serem adapta-das. Essas transformações são de responsabilidade dos adaptadores e delas poderá depender o sucesso ou fracasso da adaptação. Brito (2006, p.12-20) destaca algumas das operações comumente adota-das durante a elaboração de uma adaptação.

A primeira delas e a mais recorrente é a redução. Os adapta-dores, após uma leitura atenciosa e um estudo do texto, deverão realizar uma seleção do que deverá ou não ser incorporado ao filme, pois, por causa da delimitação do tempo (em torno de duas horas), nem tudo poderá integrar a produção cinematográfica; muitos su-benredos, acontecimentos secundários e passagens que não estão ligadas tão intimamente à principal linha de ação dramática do texto de partida serão descartados. Ademais, é preciso lembrar que a linguagem verbal tem muitos momentos de prolixidade, os quais serão deixados de lado, já que a linguagem visual é muito mais direta. Cabe esclarecer que aqui o tempo todo estamos pensando na adaptação de romances, pois, no caso da produção de um longa--metragem baseado em um conto, o efeito seria inverso, o adapta-dor deveria realizar inúmeros acréscimos.

Se alguns elos da narrativa serão suprimidos, o filme terá de encontrar estratégias para não deixar que a corrente dos aconteci-mentos se desfaça e que os fatos pareçam isolados, sem nenhuma

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ligação entre si. Nesse sentido, todos os elementos acrescentados para compensar o que foi perdido constituirão o que o crítico chama de adição.

O terceiro procedimento sinalizado por Brito é o deslocamento. Nem sempre as cenas inicial e final do filme correspondem exata-mente à abertura e desfecho do livro adaptado. A ordem dos acon-tecimentos pode ser alterada. Para ilustrar, podemos dizer que se trata de um deslocamento o ato de deixar para o meio ou final do filme acontecimentos que se deram no início do livro.

A última operação é a transformação, que pode manifestar-se de duas formas distintas, como simplificação ou ampliação. Dois diálogos, por exemplo, que se deram diegeticamente em dias dife-rentes e espaços distintos, podem ser simplificados, fundidos e con-centrados em uma única cena, em um só local. Características das personagens excluídas, para não provocar um excesso de figuras, podem ser transportadas para aquelas que serão atuantes no filme. Contrariamente, uma determinada personagem com alto grau de complexidade no romance será ampliada, desmembrada em duas na adaptação. Como se nota, faz parte da tarefa do adaptador “es-colher, cortar e combinar personagens” (Seger, 2007, p.149). Todos esses procedimentos fazem com que os adaptadores sejam, em pri-meiro lugar, interpretadores e depois criadores. Além disso, eles podem expandir suas fontes consideravelmente. Um filme baseado em um texto literário relativamente antigo pode dialogar com obras de arte de seu tempo e não ficar preso unicamente aos intertextos utilizados pelo escritor quando produziu o livro.

Além dessas operações destacadas por Brito, o texto literário quando, transposto para o cinema, pode sofrer alterações no tempo e no espaço nos quais a história se desenrola. O ritmo certamente será modificado, uma vez que o cinema possui uma duração de certa forma determinada, enquanto a narrativa literária pode pro-telar os fatos e utilizar com maior facilidade momentos reflexivos e digressivos, aguçando, dessa maneira, a expectativa do leitor e criando a tensão para os pontos fortes da história. A focalização também poderá ser alvo de mudanças. Ao contrário de uma voz

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narrativa que relata a história em um romance, o filme, na maioria das vezes, opta por exibir a trama por meio das imagens transmi-tidas pela câmera, adotando, para isso, a perspectiva de uma ou várias personagens, que nem sempre são aquelas que tinham desta-que no texto literário. A adaptação cinematográfica pode, portanto, engrandecer o papel de uma figura que era secundária no romance.

Outro ponto que pode ser modificado é o contexto. “Uma adap-tação, assim como a obra adaptada, está sempre inserida em um contexto – um tempo e um espaço, uma sociedade e uma cultura; ela não existe num vazio” (Hutcheon, 2011, p.192). As circunstân-cias que cercam a produção e recepção de ambas as obras serão dis-tintas. Entre a publicação do texto literário e o lançamento de sua adaptação cinematográfica pode haver certo intervalo de tempo. Os valores vigentes no período em que o texto literário foi escrito, as preocupações, os interesses dos espectadores podem já não ser os mesmos do momento de idealização da adaptação. O adaptador chega muitas vezes a atualizar a linguagem, as ideologias e princí-pios transmitidos pela narrativa que está a adaptar a fim de atingir o seu público contemporâneo. Os olhares do escritor e do cineasta também diferem, provocando mutações no texto fonte:

Escritor e cineasta não têm exatamente a mesma sensibilidade e perspectiva, sendo, portanto, de esperar que a adaptação dialogue não só com o texto de origem, mas com o seu próprio contexto, inclusive atualizando a pauta do livro, mesmo quando o objetivo é a identificação com os valores nele expressos. (Xavier, 2003, p.62)

A interpretação conferida à obra literária e à sua adaptação também será influenciada pelas experiências de fruição dos lei-tores e espectadores. Cada um, com sua trajetória de leitura, seus valores, seus conhecimentos, a época em que vive, poderá dar uma interpretação distinta seja ao texto literário, seja à produção cinematográfica:

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A circunstância de produção não é necessariamente aquela da circunstância de consumo. As obras de arte têm sido interpretadas diferentemente em épocas diferentes devido não só à circunstância de interpretação (o contexto num sentido amplo, incluindo a pro-dução literária e filosófica da época), mas também à ideologia do intérprete. (Johnson, 1982, p.34)

Não se pode deixar de mencionar aqui os benefícios apontados com relação à produção de adaptações. Bazin (1991, p.86) acredita que o cinema revigorou a popularidade da arte, graças ao seu al-cance, transitando pelas diferentes camadas sociais. As adaptações, em especial dos grandes clássicos da literatura, fazem com que o público tenha acesso, mesmo que indireto, a essas grandes obras. Vale lembrar que, nas séries escolares iniciais, quando a criança está se familiarizando com a leitura, assistir a uma adaptação pode ser importante, do ponto de vista educacional, para incentivá-la a ler o livro que serviu de base para o filme. Para Glória Maria Palma, a leitura dialógica entre filmes e narrativas ficcionais pode ainda “ampliar o conceito de leitura, redimensionar a função do sujeito--leitor, dinamizar e atualizar as formas de aquisição dos conheci-mentos literários e percorrer um caminho de interdisciplinaridade” (Palma, 2004, p.12), levando o indivíduo a expandir sua sensibili-dade estética.

A favor de ou contra adaptações cinematográficas baseadas em obras literárias, não se pode ignorar a relação existente entre a literatura e o cinema e nem deixar de perceber que “a adaptação nunca é meramente uma cópia: ambos, fonte e adaptação, estão enredados em múltiplos repertórios, gêneros e intertextualidades” (Stam, 2008, p.466), o que coloca fora de cogitação a exigência de fidelidade ao texto de partida. Cada meio tem suas regras próprias, suas convenções, o que inevitavelmente provocará mudanças, de maneira que “a adaptação pode se tornar uma outra forma de ver, ouvir e pensar o romance, mostrando aquilo que não pode ser re-presentado a não ser através do filme” (Stam, 2008, p.468). Além disso, as traduções intersemióticas

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nos mostram as possibilidades e limitações inerentes aos dois siste-mas de signos. Elas nos alertam para o poder significante dos recur-sos sintáticos e outros recursos estruturais disponíveis em cada um, e nos conscientizam das diferenças nos códigos estéticos e códigos sociais. (Clüver, 2006, p.130)

Cabe, portanto, aos leitores e espectadores, bem como aos crí-ticos, ter a percepção da especificidade de cada manifestação artís-tica e compará-las de forma consciente, observando seus pontos de encontro e desencontro, a fim de que haja uma iluminação mútua entre as artes, enriquecendo a compreensão umas das outras.

A representação da cegueira e a transposição das personagens

A ideia de produzir uma adaptação baseada em Ensaio sobre a Cegueira surgiu a Fernando Meirelles assim que a obra de Saramago foi publicada no Brasil, em 1996. Impactado pela narrativa, o dire-tor tentou, sem sucesso, comprar os direitos para o filme. O autor se mostrou resistente e negou a proposta. Conta o escritor português: “Houve um tempo em que eu respondia que não queria ver a cara das minhas personagens quando me chegavam pedidos de adap-tação de romances meus ao cinema” (Saramago apud Meirelles, 2010, p.7). Em 2006, coincidentemente, Meirelles recebeu um convite do produtor canadense Niv Fichman e do roteirista Don McKellar para dirigir um longa-metragem que tomava como ponto de partida um dos romances de José Saramago. Sem saber de qual obra se tratava, dias depois de aceitar a oferta, chegou-lhe o roteiro em inglês de Blindness, a transposição de Ensaio sobre a Cegueira para o cinema.

Um dos primeiros desafios enfrentados no processo de transpo-sição da narrativa para o meio audiovisual foi a maneira de repre-sentar a cegueira branca na estética do filme. Tratada na narrativa como “mar de leite”, “mal branco”, “nevoeiro”, “insondável brancu-

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ra”, “treva branca” e “brancura luminosa”, na produção cinemato-gráfica a cegueira se configura por meio de diferentes recursos. Em primeiro lugar, há uma tentativa de aproximar o espectador da sen-sação de estar cego. Para tanto, ocorre a utilização de imagens des-focadas, mal enquadradas e superexpostas, que embaçam a visão de quem assiste, causando-lhe a impressão de que há um entrave impedindo que as cenas sejam vistas com nitidez.

A cor branca, que caracteriza a inusitada cegueira, é profun-damente explorada no filme, construído com brilho e iluminação muito intensos. Os espaços são iluminados em excesso, as per-sonagens, em algumas ocasiões, estão trajando alguma peça com tom que se aproxima do branco, cor que se sobressai também nos móveis que compõem os cenários, bem como nas paredes e pisos. Muitas vezes, as luzes impedem a visualização de algum detalhe da imagem, como a vista da janela da casa do primeiro cego, tomada completamente pela claridade.

O branco serve, inclusive, como recurso para a transição de cenas. No momento em que a mulher do médico deseja boa noite ao marido, por exemplo, de repente a tela embranquece (13:54). Segundos depois, vamos descobrir que a câmera está captando o piso de uma farmácia na qual a rapariga dos óculos escuros compra um colírio para tratar sua conjuntivite. Na cena em que essa jovem fica cega, o reflexo das lentes de seus óculos (15:43) é que faz a passagem para a sequência seguinte. Quando o ladrão de carros abandona o veículo roubado ao primeiro cego, é a luz alta de um automóvel (10:31) que torna branca a tela até a próxima cena, a qual exibe a consulta do rapazinho estrábico. Em A vision of Blindness, cenas extras que acompanham o filme, contam o diretor de fotogra-fia César Charlone e o supervisor de efeitos especiais André Waller que a brancura que invade a tela em algumas cenas foi produzi-da colocando-se o monitor de um laptop numa sala escura, onde também estava uma tigela com leite. Movimentava-se o líquido do recipiente e se filmava o reflexo que as imagens presentes no monitor projetavam na superfície do leite. Em alguns momentos dessa filmagem, houve ainda o acréscimo de fumaça branca. Dessa

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forma, foi possível conseguir imagens da cor branca em movimen-to, dotada de uma textura orgânica, bastante imprevisível, como ocorre no instante em que o título do filme é exibido ao espectador.

Toda essa iluminação intensa contrasta-se, porém, em algumas ocasiões, com cenas escuras, as quais se manifestam principalmente durante a quarentena no manicômio, uma experiência sombria para todos os que ali foram enclausurados, por conta das más condi-ções de sobrevivência, da violência e das dificuldades enfrentadas naquele local, o que justifica as imagens enegrecidas. A escuridão prevalece em momentos como o abuso sexual das mulheres ou a cena da morte do líder dos malvados. Tal contraste entre claro e escuro também se associa ao fato de existir uma cegueira branca que contradiz a manifestação comum de cegueira negra. Além disso, a descrição de cegos como “vagas sombras” (Saramago, 2008, p.75) é materializada no filme por meio de imagens nas quais os atores aparecem representados na tela por vultos, opondo-se à luminosi-dade que os cerca.

Outro procedimento intimamente ligado à cegueira, utilizado na composição fílmica, é o uso de vidros, espelhos e reflexos. No início do filme, enquanto o ladrão de automóveis conduz o primeiro cego à sua casa, a tela é tomada sucessivas vezes pelos reflexos do vidro do carro (03:38). Quando ambos estão à espera do elevador, vemos o diálogo a partir de imagens espelhadas e, finalmente, assim que adentram a residência, há um vidro que se coloca entre a câme-ra e as personagens. Os espelhos e reflexos podem evidentemen-te relacionar-se ao mito de Narciso, jovem que morreu depois de apaixonar-se por sua própria imagem refletida na água. A ceguei-ra que se manifesta na narrativa de Saramago atinge aqueles que contemplam apenas a sua própria figura, esquecendo-se de seus semelhantes. O espelho também “simboliza o saber, o autoconhe-cimento, a consciência, como também a verdade e a clareza” (Lexi-kon, 1978, p.87). Cada cego atingido pelo mal branco parece ter a consciência voltada para si próprio e demonstra ter esquecido que, muitas vezes, é na alteridade que está a chave para alcançar o conhe-cimento pleno de nós mesmos. Descobrimo-nos na relação mútua

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existente entre os reflexos que projetamos nas outras pessoas, as quais, por sua vez, projetam reflexos também em nós. É possível pensar também, por outro lado, que os espelhos representam não o egocentrismo excessivo, mas a falta de reflexão sobre si mesmo, sobre as próprias atitudes.

O dicionário de símbolos Herder Lexikon (1978, p.88) apon-ta ainda que em expressões idiomáticas é frequente encontrar o olho ou o rosto utilizados com a conotação de espelho da alma. Tal associação se manifesta no romance, quando reflete o médico “levei a minha vida a olhar para dentro dos olhos das pessoas, é o único lugar do corpo onde talvez ainda exista uma alma” (Sarama-go, 2008, p.135). Essa ideia é retomada pela adaptação, na medida em que explora profundamente o uso de espelhos e vidros relacio-nados à visão, ao olhar. Nos reflexos neles projetados é onde partes de muitas cenas são assistidas pelo espectador. É o que ocorre, por exemplo, enquanto a rapariga dos óculos escuros desce o elevador (16:51). Vê-se no vidro a projeção das pessoas que a acompanham e imagens externas ao prédio, dos edifícios vizinhos. Parte da con-versa entre o médico e sua esposa, quando ele comenta que está cego (17:40), também é mostrada por conta de um espelho. Mais uma amostra está no instante em que a recepcionista do oftalmo-logista fala ao telefone, quando chegam dois homens e exigem que ela abandone o consultório (19:40). A câmera inicialmente capta o reflexo da mulher no vidro e depois segue em travelling1 lateral para exibir sua imagem real.

Além disso, em várias tomadas a câmera posiciona-se atrás de um vidro, de uma parede, grade ou cerca, entre outros obstáculos, de forma que tais elementos passem a funcionar como mediado-res entre nosso olhar e o que se coloca diante de nossos olhos. Na certeza de estarmos tão lúcidos, pensamos manter contato direto com a realidade, porém tais barreiras surgem como um elemento

1 Segundo Journot (2009, p. 147), o travelling consiste no deslocamento da câmera pelo espaço, que pode se dar de diversas maneiras: para a frente, para trás, de cima para baixo, de baixo para cima, lateral ou circularmente.

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intermediário de nossa visão, uma trava que impede que tenhamos conhecimento pleno da realidade. Em uma cena, em particular, o filme desafia o espectador quanto à precisão e integridade de sua visão. Quando o rapazinho caminha pelo refeitório, nem ele, tam-pouco quem o assiste, percebe a existência de uma mesa, pois ela não está visível na tela, aparecendo apenas quando o garoto choca--se com o móvel, projetando um som agudo, que assusta o menino e o espectador. Tal cena, a partir desse artifício, questiona se somos capazes de ver tudo o que nos cerca.

Ainda associada à cegueira, está a recorrência de cenas em que são captadas em close-up2 as mãos das personagens, como acontece quando o primeiro cego procura a cadeira para sentar-se durante a consulta com o oftalmologista (08:47), ou quando se dá o seu reencontro com sua esposa no manicômio (30:23). O tato serve de orientação àqueles que perderam a visão. Daí o apreço por tomadas que se restringem a exibir as mãos das personagens. São comuns ainda sequências em que a câmera se aproxima do rosto, dos olhos dos cegos, já que eles podem ser reveladores de quem somos, pois se tornaram em “uma espécie de espelhos virados para dentro, com o resultado, muitas vezes, de mostrarem eles sem reserva o que estávamos tratando de negar com a boca” (Saramago, 2008, p.26).

Todas essas estratégias utilizadas na composição do filme enfa-tizam com propriedade a cegueira descrita na narrativa de Sarama-go. Esses recursos permitem, portanto, que a cegueira branca ganhe uma representação visual.

O trabalho desenvolvido com a sonorização da adaptação tam-bém merece destaque. Para contar essa história cujo tema central é a cegueira, a equipe investiu no campo sonoro, tendo em vista que, quando se perde a visão, a audição é um dos sentidos que tem seu uso intensificado, os cegos passam a guiar-se, entre outras formas, pelos sons que os rodeiam. No romance de Saramago, algumas pas-sagens demonstram a percepção auditiva das personagens, como

2 Plano em que a câmera focaliza o rosto de uma figura humana ou um detalhe qualquer que ocupa toda a tela.

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ocorre com o primeiro infectado, que interpreta os acontecimen-tos a partir dos ruídos. Para ter certeza de que o ladrão de carros se fora, teve de ouvir o barulho do elevador. Quando sua esposa propõe ligar para um oftalmologista, “ele ouvia a mulher passar rapidamente as folhas da lista telefônica, fungando para segurar as lágrimas, suspirando” (Saramago, 2008, p.18).

Na idealização do filme, o diretor afirma em Diário de Blind-ness, blog sobre a produção do longa-metragem, que sua ideia era “trabalhar com timbres desconhecidos, com o intuito de colocar o espectador num universo sonoro tão novo quanto o mundo da ce-gueira” (Meirelles, 2008). Para ele “orquestra, quartetos de cordas, pianos ou violões, por serem muito usados no cinema, nos falam de emoções de um mundo mais conhecido, e neste filme a música deveria levar o espectador para outro lugar” (Meirelles, 2008). A fim de alcançar tal objetivo, todo o repertório musical do filme, que conta com faixas essencialmente instrumentais, ficou a cargo dos músicos Marco Antônio, Paulinho, Arthur e Décio, que formam o grupo mineiro Uakti, cujo estilo vinha ao encontro do objetivo de Meirelles. Uakti produz suas composições musicais a partir de instrumentos inusitados, fabricados artesanalmente pelos próprios músicos com canos de PVC, madeira, tampas de panela, cabos de ferramentas, garrafas de água, sandálias havaianas, entre outros. Embora à primeira vista pareça rústico, agregam-se recursos digi-tais aos sons obtidos por meio de tais instrumentos.

Uma trilha sonora não convencional como esta colabora para ocasionar um estranhamento ao espectador, o qual é tomado por sons que não lhe são familiares, projetando-o, assim, para outro espaço, tal como desejava o cineasta brasileiro. Além disso, ela se confunde muitas vezes com os demais sons que acompanham as cenas, dada a similaridade entre os instrumentos usados pelo Uakti e os demais efeitos sonoros do filme. Um exemplo disso fica claro em um trecho da entrevista concedida por Marco Antônio à pes-quisadora Kira Santos Pereira, que realizou um estudo sobre a gê-nese audiovisual da adaptação:

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Na abertura do filme, quando o primeiro cego não pode mover o carro, os outros motoristas, irritados, tocam as buzinas. Para a música nessa parte, optei por usar um instrumento que tem alguma semelhança com o som de buzinas de carro. A sonoridade desse instrumento vai surgindo de dentro do som das buzinas e segue até a parte em que o primeiro cego é abandonado no meio da rua e seu carro roubado. (Pereira, 2010, p.77)

Nesse caso, os ruídos que simulam as buzinas dos carros se con-fundem com a música de timbre agudo que ajuda a compor a tensão da cena. Dessa forma, as composições musicais do filme atuam em conjunto com a edição de todos os demais sons.

Na mixagem do som, em algumas sequências, o diretor de-monstra apreço por utilizar faixas musicais que destoam do tom das cenas, criando um contraste que provoca uma desestabilização sensorial. Pouco antes da morte do ladrão de carros, os soldados que estavam de plantão naquela noite ouvem a canção A lua é testemu-nha (1965), interpretada pelo duo Cascatinha e Inhana (50:55). A música trata de um casal que jurou amor, mas, por algum motivo, distanciou-se. Tempos depois, porém, os enamorados se reencon-tram. No entanto, a jovem está casada com outro e, mesmo que chore pela ausência do amado, promete ser fiel ao atual esposo. Como se nota, não há na letra da canção nenhuma relação com o acontecimento principal da cena, o ladrão executado com tiros à queima roupa. A sensibilidade da canção opõe-se à crueldade do ato do soldado.

Além do trabalho visual para representar a perda da visão, a cegueira branca também ganha uma identificação sonora. A cada vez que uma das personagens cega, emite-se um “plim”, um ruído de apenas uma nota musical, similar ao som produzido por um sino. Esse recurso funciona como uma indicação da contaminação pelo mal branco.

Observa-se também que a percepção sonora não se limita às imagens enquadradas na tela. Kira Pereira (2010, p.64) sinaliza que nem sempre as imagens exibidas são correspondentes aos sons emi-

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tidos. Na abertura do filme, enquanto são transmitidos os nomes dos patrocinadores da produção cinematográfica, já podem ser ou-vidos os ruídos provenientes de um movimentado trânsito urbano. Enquanto a câmera focaliza a alternância das cores do semáforo ou o primeiro cego dentro do carro, são projetados barulhos de apitos, motores, buzinas e gritos, que são sons do entorno das imagens fixadas no quadro.

Há uma cena em que se nota o predomínio do som sobre a ima-gem, que se dá quando a mulher do médico adentra o depósito do supermercado (1:33:10). A plena escuridão desse porão é repassada ao espectador, uma vez que a tela fica completamente negra. Nesse instante, fica a cargo dos sons contar o que está acontecendo. Ou-vem-se os passos da mulher, explorando, por conta do tato, o local e os ruídos provocados pelas embalagens que ela manipula (sons de plásticos, líquidos e metais), à procura de produtos comestíveis. As imagens regressam apenas quando ela localiza uma caixa de fósforos e acende um dos palitos, o qual devolve a visão à mulher do médico, bem como a quem assiste ao filme. Nessa passagem, a sucessão de ruídos recria a cena na mente dos espectadores. Outro momento semelhante é o da violência sexual praticada pelos cegos malvados (1:13:37). Em razão de tamanha atrocidade, as imagens são escurecidas. As personagens tornam-se sombras, vultos para dar destaque às vozes, aos gemidos, gritos, à respiração intensa e às agressões físicas que as mulheres sofreram. Neste caso, os sons são os principais responsáveis por transmitir a hediondez da cena.

Ademais, percebe-se a utilização de intensidades sonoras di-versificadas ao longo da adaptação. De um lado estão os sons fortes advindos do trânsito, de tiros, do megafone dos soldados, das grita-rias, do microfone em que o líder dos malvados usa para ditar as re-gras, do vídeo gravado pelo governo. De outro, há sons mais suaves, do sussurro entre as personagens, dos passos, da respiração e dos gemidos dos cegos. Sem falar na trilha sonora que, ora atua como fundo musical, ora destaca-se e fica em primeiro plano, e por vezes, omite-se. “Essas nuances, aliadas intrinsecamente à montagem de imagem e à narrativa, conduzem com eficiência o espectador por

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diversas emoções – expectativa, medo, tensão, aflição, vazio, triste-za” (Pereira, 2010, p.71).

Ao estudar o design sonoro do filme, Débora Regina Opolski (2009, p.63) pontua que há três grandes blocos associados ao de-senvolvimento da trama. O primeiro deles corresponde à repre-sentação da vida movimentada da cidade antes do recolhimento. Apresenta-se o trânsito, de onde provêm sons dos carros, de sire-nes, de apitos. Em toda essa parte, anterior à quarentena, ocorre a utilização de sons de motores e equipamentos eletrônicos, mesmo nos ambientes internos. No consultório do oftalmologista, durante o atendimento ao primeiro cego, ouvem-se ruídos de buzinas, de automóveis e o toque do telefone. Na casa do médico, onde sons de grilos estabelecem um clima de ambientação natural, mais tranqui-lo, são projetados sons de roncos de motores, mesmo que de forma suave. Está aí também o ruído de uma batedeira, que prejudica o diálogo do casal em cena. Trata-se, portanto, de uma cidade baru-lhenta, o que, simbolicamente, impede que as pessoas se comuni-quem e ouçam com clareza umas às outras.

O tempo em que as personagens passam encerradas no ma-nicômio constitui o segundo bloco sonoro do filme. Dessa vez, até desaparecer, o som do trânsito fica cada vez mais distante, o que representa o afastamento das personagens da vida agitada na cidade. A paisagem sonora durante o isolamento é marcada pela movimentação humana (passos, vozes, suspiros, beijos, choro e gemidos) e também pelo som do ambiente, como o das goteiras – tendo em vista que os encanamentos ficam expostos – e do rangido das camas, portas e portão, que caracterizam o espaço como um lugar antigo e insalubre.

O regresso dos confinados à cidade abre o terceiro bloco sonoro do longa-metragem. Os efeitos dessa fase são mais sutis, afinal, o trânsito deixou de existir e as pessoas não estão mais amontoadas no mesmo espaço, como era no manicômio, perambulam pela exten-são da cidade. A atenuação sonora relaciona-se ao alívio dos cegos por recuperar a liberdade. No entanto, continuam sendo emitidos ruídos decorrentes das ações humanas (vozes, passos, tropeções,

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esbarrões em obstáculos, rompimento de embalagens) e do espaço em que os cegos estão (papéis voando pelas ruas). Nos ambientes internos em que o grupo se abriga, quase não há mais interferências dos sons externos. Essa

paisagem sonora mais silenciosa favoreceria uma escuta mais inte-riorizada para aqueles que estão mais próximos, coincidindo com o trecho da narrativa onde há uma aproximação entre os persona-gens, que passam a constituir uma família. (Pereira, 2010, p.69)

É o que se passa principalmente na casa do oftalmologista, onde predominam os room tones3 e uma escuta detalhada de cada gesto ou movimento das pessoas ali hospedadas. O som de grilos dá a dimensão novamente de uma ambientação natural e amena.

Apesar das falas das personagens e de todos os recursos sonoros envolvidos na produção, em algumas ocasiões, a adaptação cede es-paço ao silêncio. Segundo Assis Brasil (1967, p.102), os momentos mudos de um filme podem funcionar como um elemento dramáti-co. Este é o caso de Blindness. Em algumas cenas, o silêncio ganha sentido na medida em que representa o estado calado, reflexivo, em choque dessas personagens infectadas pela cegueira. Na chegada de um grupo de cegos ao manicômio, um deles se desorienta. Impa-ciente, um soldado dispara (43:29). Nesse instante, o filme suspen-de o som por alguns segundos para representar o impacto e o susto que o tiro causou nas personagens. Quando o velho da venda preta termina o relato do estado em que se encontrava a cidade, em uma cena quase muda, exceto pelo “plim da cegueira” repetido algumas vezes, vê-se o rosto dos cegos refletindo possivelmente sobre o caos e as transformações que a epidemia provocara. Ademais, é preciso lembrar que “a alternância das palavras e do silêncio é conduzida com vistas ao maior efeito da imagem” (Brasil, 1967, p.83). Nes-

3 Segundo Opolski (2009, p. 106), room tones (tom da sala) consiste no “som do ambiente gravado sem a presença de diálogos ou ruídos”.

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ses ínterins em que se cessam os diálogos e os sons, o filme chama atenção exclusivamente para o que está sendo captado pela câmera.

Todos esses aspectos apontados demonstram o cuidado com a edição do som e com a expressão musical. Com essa proposta de uma trilha sonora experimental, minimalista e com instrumentos difíceis de serem identificados, a desorientação dos contaminados transfere-se ao espectador, “a música age sobre os sentidos como fator de aumento e aprofundamento da sensibilidade” (Martin, 2005, p.153), cumprindo seu papel, sem que se torne algo pura-mente ornamental, sem que se deixe “servir para tapar os buracos sonoros, nem para comentar exteriormente os sentimentos e as imagens” (Brasil, 1967, p.84). A sonorização, portanto, chama atenção do espectador e cria mais uma nuance inusitada no filme, aliando-se à estranha cegueira, que acomete a população.

Outro aspecto relevante quando se analisa uma adaptação cine-matográfica é a transposição das personagens. Curiosamente, em-bora se trate de uma narrativa alentada – o que pressupõe riqueza de detalhes – são escassas as descrições físicas das personagens, ao passo que suas características psicológicas estão diluídas no texto, apresentando-se paulatinamente. Além disso, os habitantes da ci-dade atingida pela cegueira não têm seus nomes próprios divulga-dos no romance. O narrador se reporta às personagens valendo-se de perífrases, as quais, em sua maioria são compostas por algum qualificativo relacionado à visão (primeiro cego, rapariga dos óculos escuros, velho da venda preta, rapazinho estrábico), ligando-se, por-tanto, ao tema central da obra, ou ainda aos papéis que ocupam na sociedade (médico, mulher do médico, ladrão de carros, motorista, atendente de farmácia). Dessa forma, as perífrases funcionam como uma maneira de censurar os que julgam seus semelhantes a partir de sua aparência e de criticar aqueles que enxergam o outro apenas como um agente que desempenha funções sociais, alguém despro-vido de um nome, ou seja, de sua identificação, de suas característi-cas particulares, que o distinguem dos demais seres humanos.

A narrativa do autor português também deixa claro que a ceguei-ra retratada, ao escolher suas vítimas, não leva em conta o sexo, a

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idade, a classe social. Tornam-se cegos homens e mulheres, jovens e idosos, ricos e pobres, pessoas que desempenham atividades bem ou mal vistas de acordo com os valores sociais adotados. Esse aspecto da ausência de nomes a própria narrativa discute. Acredita-se que eles tornaram-se uma referência inútil depois do surto de cegueira:

[...] nem nos lembramos sequer de dizer-nos como nos chamamos, e para quê, para que iriam servir-nos os nomes nenhum cão reco-nhece outro cão ou se lhe dá a conhecer pelos nomes que lhes foram postos, é pelo cheiro que identifica e se dá a identificar nós aqui somos como uma outra raça de cães, conhecemo-nos pelo ladrar, pelo falar, o resto feições, cor dos olhos, da pele, do cabelo, não conta, é como se não existisse. (Saramago, 2008, p.64)

O nome e as características físicas não eram mais capazes de servir à identificação de ninguém. O reconhecimento de qualquer indivíduo se dava agora pela fala, pelos ruídos, e odores, tal qual ocorre com espécies animais que não possuem o sentido da visão muito desenvolvido. Arremata a questão o escritor que afirma: “Os cegos não precisam de nome, eu sou esta voz que tenho, o resto não é importante” (Saramago, 2008, p.275). Essa opção por destituir as personagens de seus nomes também nos leva a pensar que, muitas vezes, a nossa cegueira está em não nos dar a conhecer ao outro completamente, não deixar que o outro saiba realmente quem somos.

Na fase de produção do romance, Saramago menciona a decisão de não dar nome aos atuantes da narrativa:

Decidi que não haverá nomes próprios no Ensaio, ninguém se chamará Antônio ou Maria, Laura ou Francisco, Joaquim ou Joa-quina. Estou consciente da enorme dificuldade que será conduzir uma narração sem a habitual, e até certo ponto inevitável, muleta dos nomes, mas justamente o que não quero é ter de levar pela mão essas sombras a que chamamos personagens, inventar-lhes vida e preparar-lhes destinos. Prefiro, desta vez, que o livro seja povoado

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por sombras de sombras, que o leitor não saiba nunca de quem se trata, que quando alguém lhe apareça na narrativa se pergunte se é a primeira vez que tal sucede, se o cego da página cem será ou não o mesmo da página cinquenta, enfim, que entre, de fato, no mundo dos outros, esses a quem não conhecemos, nós todos. (Saramago, 1998, p.101)

No entanto, o escritor percebe ao longo da redação do texto que não seria possível construir uma narrativa tão despersonalizada. Se os nomes não seriam revelados, os traços psicológicos e os sentimentos dos infectados, sim, precisariam ser descritos para conferir verossi-milhança a essas figuras. Comenta o autor a esse respeito que

Uma coisa seria querer fazer um romance sem personagens, outra pensar que seria possível fazê-lo sem gente. E esse foi o meu grande equívoco quando imaginei o Ensaio sobre a cegueira. Tão grande ele foi que me custou meses de desesperante impotência. Levei demasiado tempo a perceber que os meus cegos podiam pas-sar sem nome, mas não podiam viver sem humanidade. Resultado: uma boa porção de páginas para o lixo. (Saramago, 1998, p.332)

A estratégia de ocultar informações, como o nome das persona-gens, também se faz presente na indefinição do tempo e do espaço da narrativa, visto que não sabemos quando nem onde se deu a epidemia. Esse procedimento confere à obra um caráter universal, uma vez que nos faz pensar que a situação inusitada posta diante de nossos olhos pode/poderia acontecer em qualquer tempo, em qualquer lugar e com qualquer indivíduo.

A escassez de características das personagens que, por um lado, parece aumentar a liberdade na seleção dos atores para a produção cinematográfica, por outro, surge como desafio para o diretor do filme, pois

o que, na mente do leitor, era jogo imaginativo, quase sempre vago, tem de manifestar-se agora como ‘realidade’ audiovisual, precisa,

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totalmente determinada nos pormenores, [...], o que [...] exige o ato criativo da individualização e definição radicais, da escolha entre um sem-número de possibilidades. (Rosenfeld, 1973, p.27)

Em outras palavras, as várias maneiras como as personagens eram concebidas pelos leitores convergem, no cinema, para uma representação única, já que elas ganham o rosto de um ator/atriz. Ao escolher o elenco, Fernando Meirelles encontra uma brilhante solução, que intensifica a universalização da obra de Saramago. No filme, a mulher do médico é loira, a rapariga dos óculos escuros é morena, o primeiro cego e sua mulher são japoneses e o velho da venda preta, por sua vez, é negro. Estão aí representados indiví-duos fisicamente distintos, pertencentes a etnias diferentes, mas que se aproximam por causa da contaminação pela cegueira. A diversidade étnica, curiosamente, manifesta-se também no grupo de produtores do filme: há brasileiros, norte-americanos, japoneses e latino-americanos.

Meirelles também dá espaço na adaptação a uma personagem secundária do romance, o atendente de farmácia. Na narrativa, essa figura se manifesta quando o narrador relata o instante em que a rapariga vai até uma drogaria:

Entrou numa farmácia a comprar o medicamento que o médico tinha receitado, decidiu não se dar por achada quando o empregado que a atendia falou do injusto que é andarem certos olhos cobertos por vidros escuros. Observação que, além de ser impertinente em si mesma, o ajudante de farmácia, imagine-se, contrariava a sua convicção de que os óculos escuros lhe conferiam um ar de capitoso mistério, capaz de provocar o interesse dos homens que passam, e eventualmente retribuí-lo, se não se desse hoje, a circunstância de haver alguém à sua espera. (Saramago, 2008, p.31)

Na adaptação o discurso indireto do narrador nesse fragmento foi transposto sinteticamente para o discurso direto, originando o seguinte diálogo:

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Atendente da farmácia – Ora, ora... Qual é o grande segredo? Está se escondendo de quem?

Rapariga dos óculos escuros – De idiotas como você.4 (Blind-ness, 2008, cap.2)

O que difere na atuação dessa personagem no filme é que por meio dela expressa-se mais um tipo de cegueira bastante comum em nossa sociedade, o preconceito racial. Quando o líder dos mal-vados discursa exigindo pertences para pagar a comida, um dos cegos conversa, indignado, com o atendente de farmácia (56:57):

Homem cego – Isso não está certo.Atendente da farmácia – O que podemos fazer?Homem cego – Não há nada a fazer. Atendente da farmácia – Podemos nos unir e dizer não.Homem cego – Vamos nos unir. Não vou dar minhas coisas só

porque um preto mandou.Atendente da farmácia – Não sabemos qual é a raça dele.Homem cego – Eu sei pelo tom de voz.Atendente da farmácia – Vá se danar.5 (Blindness, 2008,

cap.6)A ironia dessa cena reside no fato de que não era negro o chefe da

terceira camarata, como supunha o cego, mas sim o era o atendente de farmácia com quem falava. O jovem tenta amenizar a situação, aconselhando ao outro a não fazer julgamentos precipitados e fica sem coragem para revelar ao seu interlocutor a cor de sua pele. Ele

4 Pharmacist’s assistant – Well, well. What’s the big secret? What are you hiding from? Woman with dark glasses – Jerks like you.

5 Blind man – This is wrong, man. Pharmacist’s assistant – It’s wrong, but what else can we do? Blind man – There’s nothing to do. Pharmacist’s assistant – We can stick together and just tell them “no”. Blind man – We’re going to stick together. I’m not giving my stuff up because

a nigger says I have to. Pharmacist’s assistant – Hey, we don’t know what race he is, man. Blind man – I can tell by his voice. Pharmacist’s assistant – Fuck you.

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se afasta do companheiro para impedir de ser tocado, como se pelo tato fosse possível identificar sua tonalidade dérmica.

O atendente de farmácia é quem também recebe na adaptação a missão de sugerir que algumas mulheres se voluntariassem para passar a noite com os malvados, quando estes fizeram essa exigên-cia em troca dos alimentos (1:08:42). No romance, diz o narrador que essa proposta foi feita por um dos confinados, sem revelar de quem se tratava.

O destino da personagem também foi modificado. Enquanto na narrativa, o jovem perde a vida durante a expedição à camarata dos malvados com vistas a resgatar os alimentos lá estocados, na produção cinematográfica, ele sai do manicômio junto com o grupo da mulher do médico, mas perde-se de seus companheiros em uma esquina (1:30:00), recordando o comentário do narrador do roman-ce, que menciona que era muito comum os grupos ganharem ou perderem integrantes.

Outra adição que se vê no filme é o desenvolvimento de um drama entre o primeiro cego e sua esposa. Em primeiro lugar, por se tratar de um casal interpretado por japoneses, há ocasiões em que dialogam na língua japonesa, destoando do restante da produção, gravada em inglês. A mulher do primeiro infectado é apresentada no filme com uma agressividade aflorada. Quando chega a casa, vê um jarro quebrado e encontra o marido dormindo no sofá (06:28), diz: “Veja isso, não podia ter limpado antes de se deitar? Está me ouvindo? Não sou sua empregada6” (Blindness, 2008, cap.1). Ape-sar disso, ela demonstra preocupação com seu cônjuge e o acompa-nha ao oftalmologista. Enquanto o doutor prescreve algo, ela exibe precipitadamente um comportamento grosseiro (09:00), por meio de uma conversa que não existe na narrativa de Saramago:

Mulher do primeiro cego – É uma receita?Médico – Não, é uma orientação para o hospital.

6 Look at this. You couldn’t have cleaned it up before you lay down? Are you even listening? I’m not your maid.

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Mulher do primeiro cego – Sei como chegar ao hospital. Não preciso de orientação.

Médico – Não é para você, mas para os funcionários. Assim, saberão o que fazer quando seu marido chegar.7 (Blindness, 2008, cap.2)

Quando a recepcionista do consultório exige que o paciente, mesmo cego, assine a guia de consulta (09:30), a mulher toma a mão do marido, faz-lhe escrever um X no papel e informa, ríspida, que não possuíam carro, por isso não precisavam do carimbo para o estacionamento.

Emocionante é o reencontro do casal no manicômio (30:23). No livro, essa passagem é bastante cinematográfica:

É a minha mulher, a minha mulher, gritou o primeiro cego, onde estás, diz-me onde estás, Aqui, estou aqui, dizia ela cho-rando e caminhando trémula pela coxia, com os olhos arregalados, as mãos lutando contra o mar de leite que por eles entrava. Mais seguro, ele avançou para ela, Onde estás, onde estás, agora mur-murava como se rezasse. Uma mão encontrou a outra, no instante seguinte estavam abraçados, eram um corpo só, os beijos procura-vam os beijos, às vezes perdiam-se no ar porque não sabiam onde estavam as faces, os olhos, a boca. (Saramago, 2008, p.66)

O filme aproveita com propriedade o direcionamento que dá o romance. A câmera toma inicialmente a perspectiva da mulher. À medida que ela caminha, o espectador vê as mãos dela procurando no ar o esposo, o qual aparece em uma imagem desfocada. Assim que se achega, o casal sorri, se abraça e se beija.

7 First Blind man’s wife – So, is that a prescription? Doctor – No, I’m actually writing directions for the hospital. First Blind man’s wife – I know how to get to the hospital. I don’t need

directions. Doctor –They’re not for you. They’re for the staff. So they know what to do

with your husband when he arrives.

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Em uma das refeições, o filme mostra a mulher do primeiro cego bastante desolada e presa em seus pensamentos (33:00). Quando as mulheres se propõem a pagar a comida, satisfazendo os desejos sexuais dos malvados, o casal se confronta:

Primeiro cego – Não. Façam como quiserem, mas minha esposa fica.

Mulher do primeiro cego – Não sou diferente das outras.Primeiro cego – O quê?Mulher do primeiro cego – Farei o que elas farão.Primeiro cego – Que história é essa? Só fará o que eu mandar!

Pare com isso!Mulher do primeiro cego – Não. Não me dê ordens.Primeiro cego – Não há nada pior. É nojento! De jeito nenhum!Mulher do primeiro cego – De agora em diante não vai comer.8

(Blindness, 2008, cap.8)

A frieza com o marido se manifesta na cena em que estão senta-dos perto de uma fogueira, acesa para queimar as embalagens e os restos de alimento (35:54). Essas circunstâncias levam o primeiro cego a relembrar uma celebração de Ano Novo no templo, quando o casal começou a se aproximar:

Gosto dessa sensação de calor no rosto e do cheiro também. Você gostava... Lembra daquele Ano Novo quando fomos ao Tem-plo? Havia tanta gente esperando na fila. Fazia frio. O fogo ceri-

8 First Blind man – Well, you do whatever you like, but my wife is going nowhere.

[…] First Blind man’s wife – I’m not different than the rest. First Blind man – What? First Blind man’s wife – I’ll do what they do. First Blind man – You’ll do what I tell you to do! Stop! First Blind man’s wife – Don’t! Don’t order me. First Blind man – There’s nothing worse. No, it’s disgusting. First Blind man’s wife – From now on you don’t eat.

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monial estava perto da fila. Quando chegamos perto dele, um dos lados do nosso corpo ficou aquecido. Foi tão bom! Nem nos conhe-cíamos muito bem. E também...9 (Blindness, 2008, cap.5).

O cego fala de olhos cerrados, para sentir o calor do fogo e tam-bém para dar a impressão de que está trazendo à memória a lem-brança do episódio que narra. Enquanto isso, a câmera mostra um espaço que separa o casal no banco em que estão sentados, simboli-zando o distanciamento entre os dois. A mulher conserva-se quase imóvel, com uma fisionomia séria, o seu rosto está voltado para o lado contrário de que fala o homem. Ela permanece calada até interromper o marido e dizer que não queria ouvir, não conseguia fingir, era incapaz de simular que estava tudo bem. O manicômio não era um local romântico, propício para recordar o passado, a tra-jetória do casal até o momento presente. A fim de deixar isso claro, a câmera mostra, inclusive, que os dois estavam diante de um muro bastante alto e cercados de lixo.

Com relação a essa cena, conta o diretor: “Havia um texto no roteiro, mas o Yusuke me pediu para substituí-lo por uma história real de uma experiência que ele viveu com a Yoshino, que aconteceu também na frente de uma fogueira” (Meirelles, 2010, p.78). Yusuke e Yoshino são os atores que interpretam o casal e que estavam na-morando na época das gravações. Aí está um exemplo do processo de criação coletiva de um filme. A cena se modificou a partir da sugestão do intérprete.

O grande problema dessa relação conflituosa, ausente no ro-mance, estava na forma como se restituiria a harmonia do casal. A solução veio com uma cena simples, mas original. Próximos da lareira que há na casa do médico, mais uma vez perto do fogo, com um enquadramento muito semelhante à cena do muro, a mulher

9 I like the warm feeling on my face. The smell too. You used to like it... Remem-ber that New Year’s when we went to the Shrine? There were so many people waiting in line. It was cold. The ceremonial fire was near the line. When we got close to it our bodies were warmed on one side. It felt good. We didn’t even know each other very well. And so…

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do primeiro cego diz ao marido: “Lembro-me daquele Ano Novo. Fazia frio, mas eu não me importava”10 (Blindness, 2008, cap.13). Observa-se brotar um leve sorriso no rosto do casal. Essa cena foi também uma contribuição de Yusuke, visto que até então só ha-viam aparecido sugestões de situações clichês: sexo, um diálogo para pedir desculpas ou discutir a relação. Contudo, a reconcilia-ção definitiva surge quando o primeiro cego recobra a visão. Ele abraça e beija a esposa. Ambos parecem profundamente felizes e entrosados.

O relacionamento entre o oftalmologista e sua esposa também entra em crise ao longo do filme, de uma forma mais intensa do que acontece na narrativa. Na primeira cena do casal (11:35), a mulher está utilizando uma batedeira, enquanto o médico tenta contar do caso raro que lhe apareceu no consultório. O doutor tem a sensação de que sua interlocutora não está tão atenta ao que ele diz e, por isso, parece um pouco ofendido. A cena sugere inclusive a superio-ridade do médico em questão de conhecimento, quando a mulher tenta discutir a etimologia e o significado da palavra agnosia e acaba falando bobagem. Apesar do carinho com que a mulher trata o ma-rido, dispondo-se a acompanhá-lo mesmo sem ter sido contagiada, no manicômio acontecem alguns desentendimentos entre o casal. Em uma das cenas, enquanto estão deitados, o doutor tenta conven-cer a esposa de que ela não é responsável por todos ali confinados (27:39). Ele se aproxima para acariciá-la, mas ela sai para dar uma volta. Quando o ladrão de carros é morto (51:42), logo depois de ter dito à mulher do médico que sabia que ela não tinha perdido a visão (48:32), a esposa do oftalmologista se culpa por não ter feito nada e levanta a hipótese de contar a todos que podia enxergar, porém acaba sendo repreendida pelo marido, pela razão de que, na opinião dele, se transformaria em uma escrava. Entretanto, o que mais inco-modava o médico era viver com sua mulher um relacionamento que se assemelhava ao de uma enfermeira e seu paciente, ou de uma mãe e seu filho, como expressa uma de suas queixas (52:37):

10 I remember that New Year’s. It was cold, but I didn’t mind.

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Médico – Falo de nós. Nós!Mulher do médico – Como assim?Médico – Você me veste, dá banho, limpa minha bunda. Pelo

amor de Deus! Já é duro pensar em você como...Mulher do médico – Como? Como o quê?Médico – Como esposa. E não como minha mãe. Ou uma

enfermeira.Mulher do médico – Terá de se acostumar. Não tenho esco-

lha.11 (Blindness, 2008, cap.7).

O doutor sente-se mal por depender da mulher para trocar a roupa, para alimentar-se e para execução de tantas outras ativida-des cotidianas que antes podia desempenhar sozinho. Talvez todo esse clima entre o casal tenha motivado a traição do médico com a rapariga dos óculos escuros. Talvez por isso também a mulher tenha aceitado tão facilmente essa traição do marido, mesmo tendo pre-senciado o momento em que ele esteve junto da moça. Por conta do adultério, possivelmente o doutor decidiu não influenciar a opinião da esposa quando ela aceitou oferecer seu próprio corpo aos malva-dos em troca de comida.

O doutor, além disso, recrimina a mulher no momento em que ela narra que matou o dono da pistola. Mesmo fora do manicômio, o ressentimento entre eles prossegue. Quando a mulher sai para procurar alimento, a princípio pretendia ir sozinha, mas aceitou a companhia do marido, com a justificativa de que ele ajudaria a carregar os produtos. Apesar de dizer a ela que sentia sua falta, a esposa manteve-se distante do marido, dando-lhe um beijo frio

11 Doctor – I’m talking about us. Us! Doctor’s wife –What? Doctor – You dressing me, bathing me, wiping my ass. For Christ sakes! It’s

hard enough to think of you as... Doctor’s wife – As? As, as... what? Doctor – As a wife. Instead of my mother. Or...or a nurse. Doctor’s wife –Well, you’ll just have get used to it, won’t you? ‘Cause I

don’t... I don’t have any choice.

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na porta do supermercado. A situação somente se ameniza após o regresso ao lar. Depois das tentativas do médico de restabelecer a harmonia entre o casal, finalmente a reconciliação plena se expressa numa cena de sexo (1:48:43), em que o doutor declara: “Eu vejo você. Quando toco em você assim, vejo seu rosto. Tão lindo. Isso é tudo de que eu preciso me lembrar”12 (Blindness, 2008, cap.13).

O terceiro casal dentro do grupo é formado pela rapariga dos óculos escuros e pelo velho da venda preta. Ao contrário dos outros dois que sofrem um distanciamento, essa dupla vai paulatinamen-te se aproximando. Enquanto o grupo discute quem teria venda-do os olhos dos santos, as mãos do ancião e da rapariga se tocam (1:41:30). A caminho da casa do médico, a jovem tenta dar-se a co-nhecer fisicamente, todavia o velho deixa claro que não lhe importa sua aparência (1:42:37):

Rapariga dos óculos escuros – Vinte e sete. 1,60 m. Cabelos escuros. Olhos castanhos.

Velho da venda preta – Eu não quero saber como você é.Rapariga dos óculos escuros – Mas como podemos nos

conhecer?Velho da venda preta – Eu conheço aquele lado seu que não

tem nome. É isso que somos, não?.13 (Blindness, 2008, cap.12)

Esse diálogo vem logo em seguida do instante em que o grupo passa por uma antiga escola de piano. Ressoa, nesta hora, a sinfonia da Cantata 156, de autoria do alemão Johann Sebastian Bach (1685-1750), compositor que teve problemas com sua visão e terminou a vida completamente cego. O músico mineiro Flávio Venturini criou

12 I see you. When I touch you like this, I see your face. So beautiful. It’s all I need to remember.

13 Woman with dark glasses – Twenty seven. Five four. Black hair. Brown eyes. Man with black eye patch – I don’t wanna know what you look like. Woman with dark glasses – But how can we know each other? Man with black eye patch – I know that part inside of you with no name.

And that’s who we are, right?

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uma letra para essa melodia sob o título de Céu de Santo Amaro. A canção, em síntese, exprime a voz de um eu-lírico que se descobre apaixonado, declara o seu amor e relata a força do sentimento que une o casal. Tal como esse eu-lírico, na casa do médico, o velho da venda preta revela seu interesse pela rapariga, depois que ela dá indícios de que o sentimento era recíproco. A moça ajuda o velho a banhar-se e elogia-lhe (1:44:34): “Você é um homem e tanto”14 (Blindness, 2008, cap.12). Isso encoraja o homem a revelar seu de-sejo de viver com ela. Ao contrário do livro, em que a moça aceita o pedido, no filme, o fato fica em suspense, não é possível saber se essa relação realmente se concretizou, pois não temos nenhum gesto ou resposta por parte da rapariga. A boa relação que continua a existir entre os dois depois da declaração do velho leva a crer que eles iniciaram um relacionamento.

A condição de heroína da mulher do médico apresenta-se tam-bém no filme, embora com menos força. Ainda que ela continue a ajudar as pessoas no manicômio, confeccione o fio de Ariadne e proteja seu grupo como uma fêmea defende seus filhotes – como se nota quando, agressiva, impede que outro grupo entre na loja onde abrigou seus companheiros ou quando defende as sacolas com suprimentos alimentícios ao sair do supermercado – parece mais humanizada na adaptação. Não se vê tanta organização em sua ca-marata, como descreve a narrativa. A estratégia de ordenar a distri-buição dos alimentos também não aparece na adaptação. Pelo con-trário, quando o médico traz as caixas de comida, disponibilizadas pelos malvados, observa-se uma confusão entre os cegos (1:02:27). A mulher também se descuida enquanto caminha com seus com-panheiros pela cidade, deixando que o atendente da farmácia se separasse do grupo. Como se vê, na transposição da narrativa para o cinema, essa personagem perde parte de sua aura sobrenatural.

Outra mudança que ocorre no filme associa-se ao chefe dos cegos malvados, interpretado por Gael García Bernal. Como vimos, essa personagem apresenta-se de forma tirânica na narra-

14 You’re plenty of a man, baby.

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tiva, durante a quarentena. Na adaptação, esse homem aparece atuando como barman no restaurante do hotel por onde passa a rapariga. Enquanto o velho da venda preta narra o que estava se passando lá fora, vemos o dono da pistola perder a visão e resistir aos que queriam agarrá-lo até o reencontrarmos no manicômio. Embora no romance seja uma figura brutal e agressiva, há no filme algumas cenas que destoam desse comportamento e lhe conferem uma pitada de humor misturado à ironia, o que transmite a imagem de alguém que não tem consciência do que faz. Quando o médico apresenta-se à terceira camarata como representante eleito de um grupo de confinados, o barman, com tom de deboche, proclama-se rei da ala 3 (47:00), anunciando que ali estava instaurado o regime monárquico e informa que seus súditos iriam comer antes de pensar nos mortos a ser enterrados, contrapondo-se propositadamente ao pedido do doutor de definir urgentemente o destino dos cadáveres. Em outra passagem, numa sala do manicômio, não existente no romance, utilizada provavelmente quando se desejava dar alguma instrução coletiva aos internos no tempo em que ali ainda funcio-nava um sanatório, o líder da terceira camarata destrói um dos mo-nitores que exibia periodicamente a gravação do governo. Esse ato representa, simbolicamente, a transferência do poder sobre o local, que passa do Estado para o chefe dos malvados. As regras seriam ditadas agora pelos ocupantes da ala 3 e não mais pelas autoridades governamentais. Parodiando o discurso que o Estado os obrigava a ouvir, o dono da pistola anuncia:

Atenção! Atenção! Atenção! Nunca mais ouviremos a voz desse imbecil. Nós mandamos agora. Sou o Rei da Ala 3. As coisas vão mudar por aqui. Número 1: Se querem comer, terão de pagar por isso. É basicamente isso. E agora para o “gran finale” uma canção que vem do fundo do meu coração [...].15 (Blindness, 2008, cap.7).

15 Attention! Attention! Attention! That’s the last we’re gonna hear from that asshole. We’re taking over this shit hole now. I’m the King of Ward Three. And there’s gonna be a lot of changes around here. Number 1: If you wanna

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Na sequência, ele canta “I just called to say I love you”, refrão de uma das músicas de Stevie Wonder, cantor cego de nascença. A referência à canção é irônica, pois a personagem faz uma exigência aos demais cegos que intensificará os problemas de convivência e, em seguida, canta que os ama. Meirelles menciona que

O vilão cruel ficou parecendo um trapalhão que havia fumado três baseados, completamente alheio ao sofrimento que provocava ao seu redor. Um cara mais irresponsável do que perverso e tal-vez por isso mesmo até mais assustador. […] O espectador deverá detestá-lo por suas atitudes, mas, ao mesmo tempo, poderá ter alguma simpatia pelo seu tom de moleque descompromissado. (Meirelles, 2010, p.74)

Ao contrário do que pensa o diretor, esse lado cômico, se assim podemos dizer, do chefe da ala 3, só aumenta mais a crueldade dessa figura, que parece se divertir fazendo o mal aos confinados das demais camaratas.

Outra atitude inusitada desse líder é o momento em que encon-tra um esmalte entre os pertences que lhe foram entregues. Em vez de continuar a avaliar os objetos, interrompe o que está fazendo para pintar as próprias unhas. Se essas cenas parecem suavizar ou até mesmo tornar irreal a tirania desse homem, em outros instantes ele explicita sua vilania, sem deixar transparecer qualquer vestígio dessa imagem de um jovem inofensivo, que apenas deseja atenção. Ele atira sem piedade, dita as ordens com tom ameaçador, enfren-ta os que questionam sua postura arbitrária, ameaça “estourar os miolos” dos confinados e, como um animal feroz que devora voraz-mente suas presas, promete “arrancar os mamilos” das mulheres que não o satisfizerem plenamente ou decidirem enfrentá-lo.

O grupo dos vilões também recebe no filme uma identificação sonora por meio dos bastões que utiliza ao percorrer os corredores

eat, you’ll have to pay for it. And that’s pretty much it, I guess. Okay, and now, for our “gran finale” a little song that comes from the bottom of my heart […]

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do manicômio, anunciando, assim, aos demais cegos a sua presen-ça. O som metálico que essas bengalas emitem

Tem um timbre cortante, agressivo, que no caso do filme parece traduzir com mais eficiência a sensação de violência física e moral retratada. De qualquer forma, é de suma importância o fato de os vilões da estória terem associado a si um ruído representativo de seu poder. Dessa maneira, ampliam sua presença física até os limites da propagação sonora, e lembram aos personagens cegos e ao público a sua força e agressividade, mesmo em momentos nos quais não os vemos e a violência não é mostrada. (Pereira, 2010, p.74)

A cena em que o ladrão de carros é levado para casa por um po-licial que o encontra cego na rua sofre também uma modificação na produção cinematográfica. Na narrativa descreve-se que

Ao ladrão do automóvel levou-o um polícia a casa. Não podia o circunspecto e compadecido agente de autoridade imaginar que conduzia um empedernido delinquente pelo braço, não para o impedir de escapar-se, como em outra ocasião teria sido, mas sim-plesmente para que o pobre homem não tropeçasse e caísse. Em compensação, já nos é muito fácil imaginar o susto que levou a mulher do ladrão quando, abrindo a porta, se encontrou pela frente com um polícia de uniforme que trazia filado, assim lhe pareceu, um decaído prisioneiro, a quem, a avaliar pela triste cara que trazia, devia ter sucedido algo pior que ser preso. Por um instante, pri-meiro pensou a mulher que o seu homem havia sido apanhado em flagrante delito e que o polícia estava ali para passar busca à casa, ideia esta, por outro lado, e por muito paradoxal que pareça, bas-tante tranquilizadora, considerando que o marido só roubava auto-móveis, objetos que, pelo seu tamanho, não podem ser escondidos debaixo da cama. Não durou muito a dúvida, o polícia disse, Este senhor está cego, tome conta dele, e a mulher, que deveria ter ficado aliviada porque o agente, afinal, vinha apenas de acompanhante, percebeu a dimensão da fatalidade que lhe entrava em casa quando

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um marido desfeito em lágrimas lhe caiu nos braços dizendo o que já sabemos. (Saramago, 2008, p.35)

No filme, a esposa do ladrão não deixou que o marido se ex-plicasse, foi tomada completamente pelo medo de ver o cônjuge acompanhado de um policial. Ela abre apenas uma fresta da porta:

Mulher do ladrão – Posso ajudar?Policial – Esse homem diz ser seu marido. Ele não consegue

enxergar.Mulher do ladrão – Não quero saber o que ele fez. Pode dar

a volta e...Ladrão – Abra essa maldita porta!Mulher do ladrão – Policial, eu não conheço esse homem.Ladrão – Esqueça-o. Deixe-me entrar.Policial – Tudo bem.Mulher do ladrão – Saia, desgraçado!16 (Blindness, 2008, cap.2)

A presença de um representante da lei possivelmente fez a mu-lher acreditar que o marido fora flagrado praticando alguma ativi-dade ilícita. Ela não dá atenção para a informação de que o homem perdera a visão. O ladrão hesita em ser levado, mas sai arrastado pelo policial, que deve tê-lo encaminhado ao manicômio.

Quanto à rapariga dos óculos escuros, fica evidente no filme que se tratava de uma prostituta. Diferentemente do romance, no qual iria se encontrar com alguém já conhecido, na adaptação ela vai ao encontro de um estranho. Dá a entender que trabalhava para uma agência de prostituição, pois comunica ao parceiro que, caso

16 Thief’s wife – Can I help you? Policeman – This man says he’s your husband. He can’t see. Thief’s wife – I don’t care what he’s done! You can just turn around… Thief – Just open the fucking door! Thief’s wife – Officer, I don’t know this man. Thief – Forget, he’s a cop! Let me in. Policeman – All right. Thief’s wife – Get out! Fucker!

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se importasse com o fato de que ela não pudesse tirar os óculos, contataria outra garota.

Outro detalhe trabalhado no filme é a fusão de personagens. Na narrativa de Saramago, menciona-se que uma confinada da segun-da camarata do lado direito foi quem se atreveu a punir os malva-dos, colocando fogo na barricada de colchões que protegia a entrada do quarto dos delinquentes. No filme, essa função é atribuída à recepcionista do consultório do oftalmologista. É ela quem sai sor-rateiramente da primeira camarata com o isqueiro que escondera e provoca o incêndio no manicômio.

Se a população de toda a cidade perdeu a visão, para a produção cinematográfica foram necessários muitos figurantes com a função de representar os cegos que superlotaram o manicômio e que vaga-vam pelas ruas. Mesmo sendo apenas coadjuvantes, essas pessoas receberam um tratamento especial pela equipe do filme. A fim de evitar que a tela fosse tomada por atores caminhando com braços estendidos, parecendo zumbis, foi oferecida a todo o elenco uma oficina comandada pelo preparador Christian Duurvoort. Todos tiveram os olhos vendados com o objetivo de simular a cegueira e experimentar novas formas de percepção. Vieram em seguida algumas indicações das estratégias que podiam ser utilizadas no papel de cegos. Sem a venda nos olhos, atores e figurantes foram desafiados a transmitir naturalidade na atuação. Em depoimento, conta o preparador:

Em menor ou maior grau experimentamos no nosso cotidiano os efeitos da cegueira apontados no filme: desorientação, fragili-dade, irritação, depressão, perda de contato com a realidade, difi-culdade de convívio em grupo e solidão. (Meirelles, 2010, p.43)

Dessa forma, essa oficina contribuiu para que atores e figuran-tes, vivendo essa experiência, pudessem aprimorar sua interpreta-ção, tanto no que tange aos deslocamentos que teriam de fazer ao longo do filme, quanto às sensações que precisariam transmitir aos espectadores.

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Como se observa por meio dessas considerações sobre a trans-posição das personagens, a adaptação parte do que o romance ofere-ce, aproveita muitas de suas características, mas também cria novas situações e novos destinos.

As referências espaçotemporais e a focalização

Na narrativa de Saramago, outro aspecto digno de nota é a forma como se constrói o tempo. O narrador não nos informa quando a história se passa. Não há, nesse sentido, nenhuma marcação tempo-ral específica. No entanto, é possível estabelecer algumas hipóteses de que não se trata de uma época muito distante da nossa, a começar pela descrição da cidade afetada pela cegueira. Tomemos o seguinte trecho como exemplo:

O disco amarelo iluminou-se. Dois dos automóveis da frente aceleraram antes que o sinal vermelho aparecesse. Na passadeira de peões surgiu o desenho do homem verde. A gente que esperava começou a atravessar a rua pisando as faixas brancas pintadas na capa negra do asfalto [...] Os automobilistas, impacientes, com o pé no pedal da embraiagem, mantinham em tensão os carros, avan-çando, recuando, como cavalos nervosos que sentissem vir no ar a chibata. Os peões já acabaram de passar, mas o sinal de caminho livre para os carros vai tardar ainda alguns segundos, há quem sus-tente que esta demora [...] é uma das causas mais consideráveis dos engorgitamentos da circulação automóvel, ou engarrafamentos, se quisermos usar o termo corrente. (Saramago, 2008, p.11)

Esse excerto constitui a abertura do romance, o primeiro conta-to do leitor com o texto. Saramago revela nos Cadernos de Lanzarote o quanto exige de si mesmo na preparação dos parágrafos iniciais de suas obras e relata o trabalho que teve com a produção do primeiro capítulo do livro em análise, que tardou um mês para estar pronto:

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Continuo a trabalhar no Ensaio sobre a cegueira. Após um prin-cípio hesitante, sem norte nem estilo, à procura das palavras como o pior dos aprendizes, as coisas parecem querer melhorar. Como aconteceu em todos os meus romances anteriores, de cada vez que pego neste, tenho de voltar à primeira linha, releio e emendo, emendo e releio, com uma exigência intratável que se modera na continuação. É por isto que o primeiro capítulo de um livro é sempre aquele que me ocupa mais tempo. Enquanto essas poucas páginas iniciais não me satisfizerem, sou incapaz de continuar. Tomo como um bom sinal a repetição desta cisma. (Saramago, 1998, p.101)

As primeiras linhas de Ensaio sobre a Cegueira descrevem o trânsito congestionado de uma metrópole, cujos motoristas dirigem impacientes, tornando selvagem o tráfego, de modo que o narrador chega a compará-los com cavalos. É exatamente nesse momento, à espera do sinal verde do semáforo, que a cegueira faz sua primeira vítima, atingindo um dos condutores. Ainda em relação à cida-de, observa-se, quando os cegos saem do manicômio, que há um grande número de veículos batidos ou abandonados e de edíficios e estabelecimentos comerciais servindo de abrigo para os conta-minados. Essa descrição cria, portanto, a imagem de uma cidade desenvolvida, um centro urbano metropolitano muito próximo dos que conhecemos, o que nos leva a inferir que o tempo em que esse espaço foi abalado pela epidemia imita o nosso tempo, é como se a história se desenrolasse perto dos nossos dias.

Outra omissão temporal observada diz respeito à duração do surto. Não se sabe quantas horas, quantas semanas, quantos meses se passaram entre a perda e a recuperação da visão do primeiro cego. Os infectados e o leitor perdem a noção do tempo. Inicialmente, a mulher do médico ainda acompanhava as horas em seu relógio. Em certa ocasião, ela informa ao marido que era 1h30. Algumas cenas depois, chora e se desespera, pois esquecera de dar corda ao relógio.

Apesar de não especificar com exatidão a duração da epidemia, a tradução cinematográfica do romance cria, contudo, alguns re-

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cursos para marcar o transcorrer do tempo. Um deles está associa-do às imagens de uma fruteira na casa do médico oftalmologista. Logo que o doutor e sua esposa deixam sua casa com destino ao manicômio, a câmera fixa frutas frescas sobre a mesa. Quando o casal consegue regressar à residência, depois do incêndio no local de recolhimento, a mesma fruteira volta a ser captada, porém, dessa vez, as frutas estão passadas, ressequidas. O antes e o depois dessa fruteira permitem supor que o período de quarentena não foi muito longo, pois as frutas ainda não estavam com seu processo de de-composição muito avançado. Para evidenciar essa ideia de duração breve, filma-se também um jarro, cujas flores acabaram de secar.

Outra evidência que sugere o curto período em que as pessoas permaneceram infectadas pelo mal branco é o fato de que, ao dei-xarem o manicômio, os cegos ainda encontravam alimentos nas prateleiras dos supermercados, o que não aconteceria caso houvesse se passado um longo tempo.

Para indicar a rapidez com que se alastrava a cegueira e mostrar que de fato se tratava de uma grave epidemia, o filme conta com uma cena que, embora dure poucos segundos, é capaz de expressar a contaminação que crescia de forma avassaladora. Veem-se flashes do momento em que algumas pessoas perdem a visão em diferentes circunstâncias (19:17): trabalhando à frente de um computador, fazendo compras em um supermercado, saindo de um estabeleci-mento ou tentando atravessar a rua no meio de um tráfego intenso.

Dentro do manicômio, sinalizam a passagem do tempo a osci-lação entre claridade e escuridão, representando a transição entre dias e noites; a repetição e desgaste da gravação que contém as re-gras de organização, que caracteriza a imutabilidade do cotidiano; e o próprio aspecto físico das personagens: a barba e os cabelos crescem, a roupa se converte em farrapo. Além desses recursos, há uma tomada que exprime de forma primorosa o transcorrer dos dias. A câmera capta um dos corredores do sanatório em vários momentos e agrupa em uma única cena essas imagens por meio de

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um cross-fade.17 Em todas elas vê-se a atuação da mulher do médico, que carrega roupas e lençóis, levanta os caídos, conduz uma fila de cegos, arranca um antigo fio de energia para preparar uma espécie de corda que ajudaria no deslocamento dos confinados, tenta lim-par o chão e recolher o lixo e, ao final, para, pensativa, com olhar cansado, exausta. À medida que essas ações da mulher são mos-tradas, o corredor também se transforma, começa a ser tomado por móveis e objetos, lixo, roupas, excrementos. A luz que incide sobre o ambiente sofre uma diminuição gradativa. As paredes brancas passam a apresentar manchas de sujeira. Nos poucos segundos que dura essa cena, o filme consegue expressar simultânea e sinteti-camente o espírito solidário da mulher do médico, a passagem do tempo e a degradação do espaço.

Exprimir aspectos variados por meio de uma única cena, como ocorre nessa que acabamos de descrever, contribui para a econo-mia do tempo, evitando que o filme se prolongue excessivamente. Outro procedimento utilizado em Blindness, sob essa ótica, é o jogo entre o que se ouve e o que se vê. No momento em que a rapariga percorre o corredor do prédio em direção ao apartamento onde vai se encontrar com seu cliente, ouve-se o diálogo que se deu entre os dois quando já estava no quarto (15:07). Em outro episódio, enquanto assiste-se a mulher do oftalmologista discar o número do hospital para que o marido falasse com o diretor clínico, a conversa telefônica já está sendo ouvida pelo espectador (19:00). Além da economia de tempo, essas cenas também estabelecem uma inversão na ordem dos acontecimentos, sobrepondo falas não corresponden-tes às imagens mostradas e antecipando o que virá na sequência.

O espaço, assim como o tempo e as personagens, também não nos é revelado. A obra não informa o nome da cidade ou do país que sofre a epidemia de cegueira. Essa indeterminação do cenário contribui para a universalização da história. Qualquer espaço urba-

17 Cross-fade (fundido encadeado): sobreposição de cenas, “a imagem seguinte surge gradualmente, ao mesmo tempo que a primeira imagem se desvanece, havendo uma sobreposição temporária das duas” (Pupo, 2011, p. 171).

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no poderia ser evocado para representar esse ambiente. Sobre esse aspecto, comenta Saramago em uma entrevista a João Céu e Silva:

Creio é que há certos problemas no mundo que tocam a toda a gente, não a um país A ou a um país B. […] Tenho de dizer que me sinto mais à vontade nesse aspecto de abstração com um lugar não identificado, porque no fundo o que se trata ali não é de fazer cita-ções sobre as personagens ou comparações entre elas, ou aquelas que são personagens de outras alturas, ou figuras da vida real, trata--se simplesmente de querer mostrar um conflito, um problema e desenvolvê-lo com personagens que são, todos eles, criados no livro. (Silva, J., 2008, p.305)

Como se nota, a escassez de traços identificadores para as per-sonagens e a genérica indicação das categorias espaçotemporais re-fletem a universalidade do tema exposto, de sentimentos e reações que se aplicam à humanidade em geral. Na opinião de Ana Maria Figueira

A ausência de marcadores de tempo, de espaço e de identidade tem como consequência a criação de um pano de fundo em que as fronteiras entre a realidade e a ficção se diluem, tornando-se quase imperceptíveis. A libertação da narrativa da prisão temporal, da integração espacial e das marcas de identidade pessoal produz um retrato perturbador, simultaneamente intemporal e transversal da condição humana. (Figueira, 1999, p.4)

Seguindo a mesma orientação do romance, o filme não expli-cita o nome da cidade afetada pela cegueira. Tal qual ocorre na narrativa, a produção cinematográfica destaca apenas três grandes núcleos onde se passam as ações, os quais estão profundamente relacionados à trama. O primeiro deles é a cidade, na fase em que aparecem os primeiros casos da estranha cegueira. Baseando-se nas evidências que oferece o texto, Meirelles reconstrói a história em um grande espaço urbano, cheio de edifícios, simulando um centro

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metropolitano e reproduzindo com propriedade o trânsito intenso. Corroborando a ideia de que tudo acontece em um tempo muito próximo do nosso presente, os automóveis que atravessam nos-sos olhos são modelos semelhantes aos que circulam entre nós, os edifícios são verdadeiros arranha-céus, a tecnologia também se faz presente: celular, computador, elevador, televisão, micro-ondas, equipamentos oftalmológicos, grande número de veículos, móveis com design moderno etc.

As cenas do filme foram gravadas em Toronto (Canadá), São Paulo (Brasil) e Montevidéu (Uruguai). Contudo, não há qualquer indicação de quais episódios se passam em cada uma das três cida-des. Tem-se, assim, um espaço ficcional criado a partir da junção de três espaços reais, conjugados para expressar um único local. Por meio desse procedimento, a cidade afetada pelo surto conserva-se, portanto, desconhecida. Essa configuração do espaço pode repre-sentar, em sentido alegórico, todos os lugares, qualquer ambiente urbano. Por outro lado, a fusão também pode criar uma conota-ção insólita, projeta-se um cenário incomum, misteorioso. Assim, nasce um lugar que é todos e nenhum ao mesmo tempo.

A ligação entre esses três espaços não se dá apenas no nível da montagem de cenas gravadas em lugares distintos, eles se imbri-cam, inclusive, em uma mesma imagem. Marta Noronha e Sousa aponta que “quanto aos cenários geográficos, tentou-se encontrar locais pouco marcados, e alterar os mais reconhecíveis através de efeitos especiais. [...] Por vezes, se misturam, em cenários de uma cidade, elementos de outra” (Sousa, 2012, p.84). É o que acontece quando a mulher do médico deixa o supermercado. Há um plano de uma rua, gravado em Montevidéu (1:36:02), no qual são inseridos, ao fundo, alguns edificios de Toronto.

Depois de confirmado o crescimento do número de cegos, tanto o filme quanto a narrativa transmudam-se para o segundo núcleo, um antigo manicômio, onde se instaura uma quarentena. As cenas desse bloco foram rodadas nas antigas instalações onde funcionava uma prisão em Guelph, cidade próxima a Toronto. Essa escolha foi bastante adequada, pois o manicômio passa a caracterizar-se como

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um ambiente carcerário. O formato de labirinto que possuía o local relatado na narrativa manifesta-se na primeira volta que a mulher do médico dá, fazendo uma espécie de inspeção. É impossível com-preender geograficamente a divisão desse espaço, de modo que o espectador sofre uma profunda desorientação. Os que acabavam de perder a visão e foram ali enclausurados passavam a ter uma percepção fragmentada do ambiente, resultante principalmente do uso do tato e da audição. No romance, embora o local de recolhi-mento também seja labiríntico, a distribução das salas parece ser um tanto mais clara: há uma porta principal, um corredor que dá acesso a duas alas (com três camaratas cada uma) – onde ficariam os prováveis infectados e os já cegos – e os espaços compartilhados por todos os confinados, os sanitários, o refeitório e o pátio. No filme, o manicômio ganha alguns andares, a fim de retratar o grande núme-ro de cegos e a tentativa de isolar a todos no mesmo local.

O alto-falante que transmite as instruções aos confinados no ro-mance transforma-se, na produção cinematográfica, em um vídeo gravado na forma de um pronunciamento oficial de uma autorida-de, exibido nos televisores de cada camarata. Essa nova configu-ração ironiza ainda mais a maneira pela qual se estabelecia o con-tato com os cegos. As próprias personagens questionam “que tipo de idiota faria um vídeo para cegos em quarentena”18 (Blindness, 2008, cap.2). Ao contrário da narrativa, onde essas determinações do alto-falante são reiteradas, ora na íntegra, ora em partes, no filme, as orientações vão sendo exibidas gradativamente, consoante às cenas associadas às respectivas regras impostas. Essa disposição permite que a imagem transmitida negue o vídeo, mostrando a ineficácia da imposição de disciplina por meio de ordens expressas em uma gravação audiovisual. Um dos exemplos está no momento em que ouvimos a informação de que cada ala possuía um telefone para comunicação com o mundo externo em casos de emergência (32:53). Acompanha essa instrução uma cena que retrata uma das refeições dos cegos. A mulher do médico os vê se alimentando e fica

18 What kind of an idiot would play a video in a quarantine for the blinds.

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preocupada com as poucas porções que estavam sendo fornecidas para um grupo crescente de confinados. Ela tenta usar o referido telefone para avisar que a comida disponibilizada era insuficiente e solicitar um kit de primeiros socorros, porém não há ninguém do outro lado da linha para atendê-la ou para retornar a mensagem que ela deixa gravada.

As precárias condições de higiene são destaque no filme. A cada episódio percebe-se que o ambiente está cada vez mais sujo. Além da degradação do espaço metonimizada pelo corredor, mencionada anteriormente, há outras tomadas que parecem ter a intenção de revelar a imundície do espaço. Em uma delas, a câmera aproxima-se do chão captando as fezes, urina, roupas e papéis espalhados pelo caminho. Ao fazer isso, vemos também entre os excrementos um travesseiro, dinheiro e uma carteira cheia de documentos, na qual um dos internos, inclusive, chega a pisar enquanto caminha. Esses elementos, o travesseiro, os documentos e o dinheiro, representam, nessa ordem, a perda do conforto, da identidade e dos valores, igno-rada, muitas vezes, pelos reclusos. Pelas imagens do local, nota-se também que o manicômio era uma instalação bastante antiga e que estava inutilizada já há um bom tempo.

A animalização das personagens, bastante presente no romance, comparece ao filme. A comparação dos cegos com carneiros que vão ao matadouro é transformada em uma das cenas que compõem a adaptação. Enquanto o velho conta aos companheiros o que pôde acompanhar antes de ser levado para a quarentena, há uma ima-gem que mostra os infectados sendo embarcados em um caminhão (39:21), como se fossem animais a serem transportados. Pouco adiante, há outra cena em que chega ao manicômio um caminhão transportando cegos (42:22). Essas pessoas são obrigadas a atra-vessar o pátio sozinhas, seguindo apenas as orientações dadas à dis-tância por um soldado. Caminham apertadas, desorientadas, caem, empurram-se e pisoteiam-se. Da multidão sai um rumor de vozes. Provavelmente, há “uns que choram, outros que gritam de medo ou de raiva, outros que praguejam” (Saramago, 2008, p.112). Um dos cegos perde-se da fila e pede ajuda, contudo acaba morto por um

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tiro certeiro de um dos vigilantes, o que aumenta a confusão. O tra-tamento dado a essas cenas permite a associação desses indivíduos a um bando de animais que aguardam ser abatidos.

O filme também se apropria da opressão vivida no manicômio, convertido em uma prisão. Quando entra na ambulância, o médico é obrigado a entregar o celular (20:35), o que impediria o seu conta-to com o mundo externo, assim que fosse internado. O veículo que o leva junto com sua esposa é escoltado pela polícia (21:13), como se estivesse transportando criminosos. O espaço tem portões resis-tentes, muros altos, grades nas janelas. Os confinados são vigiados pelos soldados do exército, que são extremamente rudes e autoritá-rios. Há cenas que chocam o espectador, como a da insensibilidade quando o médico e sua esposa pedem medicamentos para tratar o ferimento do ladrão e são ameaçados de morte (31:46). Por conta de sua agressividade, os vigilantes se transformam na tela em uma mancha negra, em vultos distorcidos. Assistimos também à morte brutal do ladrão de carros (51:42), que faz um tremendo esforço para pedir ajuda, e também ao assassinato de um recém-chegado que solicitava que alguém o guiasse. Atiram desnecessariamente alegando zelar pela ordem do local e demonstram uma profunda indiferença, não se envolvendo com os problemas que surgem entre os confinados. Diz a mulher do médico: “O que está acontecendo? Não comemos há três dias”19 (Blindness, 2008, cap.8), ao que o soldado responde “Demos a comida que tínhamos. Deviam ter racionado. O problema é de vocês”20 (Blindness, 2008, cap.8). Esse distanciamento que os vigilantes mantêm dos cegos é exposto por meio do afastamento que exigem dos internos quando chegam até a porta do manicômio para entregar a comida, bem como do mega-fone, instrumento que utilizam para se comunicar com os internos. Na maioria das vezes, ouve-se apenas a voz off21 dos soldados, suas imagens não são vistas, o que caracteriza a impessoalidade dessas

19 What’s going on? We haven’t eaten in three days! 20 We gave you all the food we have. It’s up to you to ration it. 21 A voz off de um filme “consiste na voz de alguém que está relacionado com a

ação, mas que não está na imagem” (Pupo, 2011, p. 111).

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figuras. O som alto e potente das instruções que os guardas trans-mitem também é representativo do seu poder sobre os confinados.

Além do medo dos soldados, os cegos ainda enfrentam as chan-tagens e desmandos dos malvados. Depois de entregar os bens que traziam consigo em troca de alimentos, o rei da ala 3 exige mulhe-res. A cena da violência sexual é uma das mais tocantes do filme. Pressionadas, as mulheres dirigem-se à ala dos delinquentes, cien-tes do que lhes esperava. Por meio de imagens mal iluminadas, observa-se que são humilhadas, maltratadas, repreendidas quando manifestam algum tipo de resistência e agredidas pelos homens, que as obrigam a fazer todas as suas vontades. As poucas falas que se ouvem são compostas por expressões chulas. A cega das insônias do romance é apelidada de “peixe morto” no filme. Ela perde a vida nesse episódio. Sua purificação na produção cinematográfica apro-xima-se bastante da descrição que consta na narrativa. Assistimos o corpo da mulher ser carregado e limpo pelo trabalho coletivo das mãos de suas companheiras, que purificam-na do sangue alheio. Saramago comoveu-se bastante com essa cena do abuso sexual. Comenta ele:

Nunca esquecerei a tremenda emoção que experimentei ao ver passar por trás de uma janela, em fila, as mulheres que vão pagar com os seus corpos a comida que lhes havia sido sonegada, a elas e aos seus homens. Essa imagem resume, para mim, todo o calvário da existência da mulher ao longo da História. (Meirelles, 2010, p.7)

O escritor também dá sua opinião sobre a forma com que o filme expõe a violência, perpetrada não somente às mulheres, mas tratan-do dos diversos constrangimentos físicos e morais que a adaptação vai projetando:

Enquanto eu estava a ver o filme senti que há ali dois tipos de violência: a violência que as imagens mostram e uma espécie de violência, a subterrânea, que não se manifesta porque não há maneira nenhuma de manifestá-la e que, se eu não me equivoco,

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é o que incomoda o espectador. Porque àquilo que o ecrã mostra já o espectador está habituado – entra-nos em casa a violência, o sangue e a tortura todos os dias – mas não a essa espécie de violência latente. […] Ela está lá e oprime o espectador que, segundo a sua maior ou menor resistência, a aguenta ou não. (Silva, 2008, p.390)

Apesar da força dessa cena do abuso sexual e do choque que causa aos espectadores, o filme não consegue representar o “rea-lismo feroz” (Candido, 1989, p.211) do romance, a maneira crua e brutal empregada na narrativa para descrever o estupro coletivo. O episódio é apresentado de modo mais intenso no texto literário, graças ao relato pormenorizado das ações por parte do narrador. Obviamente que o filme opta por escurecer, velar as imagens para evitar altos índices de censura. Outro caso semelhante é o encontro dos corpos amontoados na cave do supermercado descrito de forma impactante no livro. O longa-metragem, nesse caso, não chega a fazer menção desse acontecimento.

Mesmo com o cuidado no tratamento das imagens, essa cena do estupro das mulheres, antes da montagem final, foi uma das mais criticadas nos test screenings:22

Até o meio do filme senti que a plateia estava comigo, então veio a primeira cena de estupro, quando umas 16 mulheres levantaram e saíram. “Será que passamos do ponto, me perguntei?”.Veio então a segunda cena de estupro e mais 42 (!) mulheres deixaram o cinema. “Sim passamos do ponto!”, respondi para mim mesmo. (Meirelles, 2010, p.133)

As razões pelas quais o longa-metragem não foi bem avaliado nesse teste estavam relacionadas à intensidade: cenas de estupro fortes, longas e excessivas, filme intenso, difícil de assistir. Por esse motivo, esse episódio foi amenizado, para permitir que as pessoas

22 Momento em que, antes de ser lançado, um filme é projetado a um grupo de pessoas, as quais respondem a uma avaliação sobre a produção ao final da sessão.

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não desistissem de apreciar a produção até o último segundo. Ape-sar dos cortes realizados, os representantes da imprensa que assisti-ram ao filme no Festival de Cannes ainda sentiram-se incomodados com a intensidade das cenas, conforme atesta o jornal O Estado de São Paulo: “Filme é bem recebido pela imprensa, mas sem palmas calorosas” (Guerra, 2008); “Filme baseado na obra de Sarama-go recebe resposta fria na 1ª exibição para jornalistas em Cannes” (Merten, 2008); “Blindness, que no Brasil vai se chamar Ensaio sobre a Cegueira, é bom, sobretudo muito bem-feito [...], mas não é um filme fácil” (Merten, 2008). A despeito do estranhamento, “o diretor brasileiro Fernando Meirelles e sua equipe foram recebidos com mais de cinco minutos de aplausos” (Guerra, 2008), quando exibido para os jurados e o público em geral.

Outra cena violenta retratada no filme é a execução do dono da pistola (1:21:37). Há algumas passagens tanto no romance como na adaptação que expressam o acentuado conflito que se forma entre o rei da ala 3 e a mulher do médico, a qual acompanha os passos abu-sivos do líder dos malvados até não mais suportar e decidir tomar uma atitude drástica, assassinando-o. A arma do crime é uma te-soura, que fora recolhida do meio dos pertences da rapariga dos óculos escuros, escondida e depois pendurada em uma das grades para onde a mulher do médico mira, dando a entender que planeja algo. As cenas em que aparece a tesoura vão criando certo suspense e já indiciando que tal objeto seria utilizado contra seus opositores. Outro indicador de como tudo aconteceria está na história que a esposa do oftalmologista conta ao rapazinho estrábico (1:18:35), logo depois que as mulheres de sua camarata foram violentadas e enquanto ouve o anúncio de que a ala 2 prestaria os serviços naque-la noite. Num diálogo não existente no romance, a mulher conta ao menino a história de um garoto incomum, dotado de poderes mágicos, entre os quais estava a façanha de ficar invisível. Tal qual esse jovem, essa mulher era o único ser incomum dentro do mani-cômio, era a única que conservara a visão e que podia dar um fim aos desmandos dos cegos atrozes. Ela toma, portanto, a tesoura que guardara, entra cuidadosamente – quase de forma invisível – na

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ala dos malvados, enquanto estavam entretidos com as mulheres, e tira a vida do líder com um golpe certeiro em sua garganta. Além disso, não se deixa intimidar pelas ameaças do cego contabilista de não fornecer mais comida. Ela inverte o jogo e informa que os seus companheiros é que iriam recolher a comida a partir de então.

Embora seja uma cena forte, conta Meirelles que a mesma pla-teia do test screening, que se admirou com o estupro, vibrou com a morte do chefe dos malvados, “explodiu em aplausos e gritos de well done assim que a tesoura da Julianne Moore entrou na garganta do Gael” (Meirelles, 2010, p.133). O fato é facilmente explicável. Ainda que o ato praticado pela mulher do médico seja igualmente cruel e desumano, os espectadores, tomando partido dos cegos sub-jugados, encararam o assassinato como um gesto de justiça contra os desmandos. Dificilmente vemos essa mulher como uma assassi-na nesse instante, pelo contrário, ela é tida como uma heroína, que libertou os companheiros do jugo dos delinquentes.

A estadia no manicômio termina algumas cenas depois desse episódio da morte do dono da pistola. A ex-secretária do consul-tório médico ateia fogo na barricada de colchões feita na porta da camarata dos malvados. A expedição com o objetivo de resgatar os alimentos estocados no quarto dos delinquentes, que deixa mortos e feridos no romance, reaparece no filme, todavia não se concretiza. Quando os invasores se aproximam da ala 3, o fogo já começara a se alastrar. O incêndio obriga os confinados a regressar às ruas.

A cidade pós-quarentena é o terceiro e último grande espaço em que se desenrola a narrativa e o filme. À medida que o grupo vai percorrendo as ruas, a câmera vai exibindo por meio de várias to-madas as condições degradantes do ambiente urbano: veículos ba-tidos, destruídos ou transformados em dormitórios; estabelecimen-tos comerciais e residenciais deteriorados; lixo, ratos, excrementos e pessoas compartilhando o mesmo território; cegos deslocando-se sozinhos ou em grupos, sem rumo; água e comida sendo disputa-das, cães alimentando-se dos cadáveres humanos espalhados pelos cantos. Não há mais nenhum tipo de ordem ou de governo, cada qual luta por si.

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Tendo deixado os companheiros em uma loja abandonada, ela sai com o marido à procura de alimentos. Ao contrário da narrativa, na qual o grupo percorre vários espaços (prédio da rapariga, casa do escritor, praças), na adaptação o deslocamento restringe-se a uma visita a um supermercado e a uma igreja. No supermercado, destaca-se a reconstrução de um lugar em plena desordem em razão da ação dos cegos que insistem em procurar ali ainda algo para matar a fome. O filme transforma em imagem a descrição contida no romance sobre esse ambiente. Nesse estabelecimento é que se passa a descoberta do depósito na parte subterrânea, numa cena contada unicamente pelos sons, conforme comentado anteriormen-te, quando se discutiu a relevância dos ruídos e da trilha sonora para a composição de Blindness. O retorno a esse supermercado – quan-do, na narrativa, a mulher se depara com a morte de muitos cegos, acidentados na escada, enquanto tentavam localizar o estoque de alimentos – foi deixado de lado na produção cinematográfica.

No templo, assim como no romance, a mulher se depara com vitrais e imagens de santos com os olhos vendados ou cobertos por pinceladas de tinta branca. O diferencial dessa cena está num discurso que não consta no texto de Saramago, proferido por um sacerdote, enquanto a mulher contempla as imagens. Esse líder espiritual tenta ver com bons olhos o surto de cegueira, assentando sua argumentação na conversão do apóstolo Paulo, que ocorreu depois que perdera a vista a caminho de Damasco, quando uma luz resplandecente inundou seus olhos. O padre não nega sua religião, pelo contrário, transmite aos fiéis uma mensagem de esperança. Ele imagina que a epidemia tenha vindo para modificar o comporta-mento das pessoas, como acontecera com Paulo, quando recobrou a visão e passou a defender o cristianismo, em vez de perseguir os cristãos como costumava fazer.

O momento do encontro da mulher do médico com o cão das lá-grimas também se modifica. No romance, ela se perde pela cidade. Enquanto chora, o animalzinho se aproxima dela para consolá-la. Na produção cinematográfica, essa passagem é suprimida. O cão das lágrimas achega-se à mulher enquanto ela observa uma matilha

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de cães devorando vorazmente um homem morto. Esse cachorro, em especial, passa pelo cadáver sem demonstrar nenhum interesse e vai em direção à esposa do oftalmologista, que o acolhe e o abraça. O cão lambe-lhe a face a fim de confortar a mulher.

A cena em que os cegos saem às ruas para banhar-se na chuva é uma das poucas do filme em que a expressão dos pesados constran-gimentos advindos da cegueira dá lugar a um momento de leveza. A água purificadora da chuva escorre sobre seus corpos e sacia a sede dos contagiados. É um dos raros momentos em que vemos o abraço fraternal entre as pessoas e o sorriso no rosto das personagens.

Esse clima harmônico irá predominar na casa do oftalmologista, que se manteve intocada durante todo o período em que seus pro-prietários estiveram no manicômio. Nesse espaço o grupo estreita os laços a ponto de parecer uma família. Na convivência tentam resgatar valores humanitários, como a solidariedade e a união, que foram ofuscadas diante da necessidade de lutar pela sobrevivência e de resistir às atrocidades a que foram submetidos. Ali eles substi-tuem as roupas e calçados imundos por vestes limpas, uma ação vi-sível que reflete uma alteração no interior das personagens. Despir--se era como desfazer-se de todas as angústias que o mundo exterior lhes fizera carregar. Colocar roupas limpas simbolizava revestir-se de novas forças, de esperança, de disposição para uma convivência pacífica, completamente oposta ao que experimentaram durante a quarentena. Essa espécie de purificação e renovação completa-se com a cena do banho das mulheres na varanda. O filme aproveita, com poucas modificações, o diálogo entre elas relatado no romance, no qual uma elogia a beleza da outra, enquanto lavam-se mutua-mente sob a chuva que cai. Os enquadramentos dessa cena, com poucas exceções, captam o busto, especialmente o rosto das mu-lheres, para destacar a expressão facial delas, o sorriso, os gestos de carinho, a doçura na voz e nos movimentos, a cumplicidade.

A união entre o grupo se manifesta também durante uma das refeições. A mesa é preparada, as pessoas partilham os alimentos que ainda lhes restavam. A bebida que acompanha o jantar é água limpa, servida em taças. O médico propõe um brinde à família ali

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reunida. A despeito de parentescos consanguíneos, aquela era uma família alicerçada na amizade, no relacionamento afável, na hospi-talidade. Uma refeição cotidiana transforma-se em ambos, roman-ce e filme, em uma ocasião especial, nesse encontro fraternal entre o médico, sua mulher e os cegos que acolhe em sua casa.

A cena em que o primeiro cego recupera a visão também se de-senvolve na residência do oftalmologista. Diferentemente da narra-tiva, na qual a vista é recobrada à noite, quando o grupo ouve uma história antes de dormir, no filme, esse acontecimento se passa no período matinal, o que transmite a ideia de que livrar-se da cegueira representa despertar para um novo dia, para uma nova vida. Du-rante o café da manhã, a câmera capta o leite contido na xícara do primeiro cego. Enquanto a mulher do médico despeja o café nesse mesmo recipiente, o homem subitamente volta a enxergar. Esse gesto aparentemente simples reveste-se de uma forte expressivida-de, na medida em que representa o fim da epidemia, o momento em que se desfaz o “mar de leite”, que a cor branca abandona os olhos daquele que primeiro deixou de ver. Para não deixar dúvidas de que a personagem estava curada, a câmera adota por alguns segundos a perspectiva do olhar desse homem, que observa ao seu redor e re-vela aos companheiros que está enxergando novamente. No livro, o final do surto é sugerido com mais ênfase, pois o narrador nos conta que o médico e a rapariga, que cegaram imediatamente depois do primeiro cego, recobraram também a visão. A adaptação prefere mostrar a alegria do grupo e deixa à voz over23 do velho da venda preta a missão de interpretar essa felicidade. A euforia coletiva era resultante da seguinte reflexão: “Naquele momento o mesmo pensamento ocorreu a todos: Ele foi o primeiro a ficar cego, talvez todos recobremos a visão. A comemoração não era inteiramente por ele”24 (Blindness, 2008, cap.14). O filme se encerra com a impres-

23 Voz que “se superpõe às imagens e cujo foco emissor é indeterminado ou se encon-tra em outro espaço frente ao observado pela câmara” (Xavier, 1997, p. 128).

24 At that moment the same unspoken thought occurred to everyone: He was the first to go blind. Perhaps we will all regain our sight in turn. So the celebration was not entirely selfless.

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são da mulher do médico de ter também cegado. Da varanda, ela olha o céu e vê tudo branco. Entretanto, quando a câmera faz um travelling vertical, do céu para o chão, simbolizando o deslocamen-to do olhar da mulher, vê-se que ela continuava a visualizar a cidade lá embaixo.

No romance de Saramago quem apresenta a história é o nar-rador, o qual não participa dos acontecimentos, não atua como personagem, relata tudo por meio de uma perspectiva externa, o que o faz ser classificado como heterodiegético, de acordo com as categorias sistematizadas por Genette (1979, p. 244). Complemen-tando essa ideia, é possível afirmar que se trata, além disso, de um narrador onisciente intruso, segundo as tipologias de Norman Frie-dman (1967, p. 119). Onisciente porque tem acesso à consciência das personagens, sendo capaz de exibir seus pensamentos; intruso porque, não se contentando apenas em narrar, apetece-lhe ainda discutir e julgar o que conta. Na verdade, o narrador adota um jogo de aproximação e distanciamento: relata as ações e aproxima-se das personagens para explicitar ao leitor seus pensamentos e sentimen-tos. Em seguida delas se distancia, centrando-se em si mesmo para discutir e julgar o que conta. Esse caráter judicativo é conseguido a partir do uso de diferentes recursos. Um deles é a digressão. Logo no início do texto, ao destacar o remorso do ladrão de carros por ter furtado o automóvel de um cego, o narrador aproveita a ocasião para discorrer sobre os momentos em que a consciência pesa:

A consciência moral, que tantos insensatos têm ofendido e mui-tos mais renegado, é coisa que existe e existiu sempre, não foi uma invenção dos filósofos do Quaternário, quando a alma mal passava ainda de um projecto confuso. Com o andar dos tempos, mais as atividades da convivência e as trocas genéticas, acabamos por meter a consciência na cor do sangue e no sal das lágrimas, e, como se tanto fosse pouco, fizemos dos olhos uma espécie de espelhos vira-dos para dentro, com o resultado, muitas vezes, de mostrarem eles sem reserva o que estávamos tratando de negar com a boca. Acresce a isto, que é geral, a circunstância particular de que, em espíritos

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simples, o remorso causado por um mal feito se confunde frequen-temente com medos ancestrais de todo o tipo, donde resulta que o castigo do prevaricador acaba por ser, sem pau nem pedra, duas vezes o merecido. Não será possível, portanto, neste caso, deslindar que parte dos medos e que parte da consciência afligida começaram a apoquentar o ladrão assim que pôs o carro em marcha. (Saramago, 2008, p.26)

Outro procedimento que se percebe na postura do narrador é o seu caráter judicativo acompanhado de doses de ironia. Quando conta que a rapariga marcava encontros amorosos e recebia dinhei-ro em decorrência deles, declara:

poder-se-ia incluir esta mulher na classe das denominadas prostitu-tas, mas a complexidade da trama das relações sociais, tanto diurnas como noturnas, tanto verticais como horizontais, da época aqui des-crita, aconselha a moderar qualquer tendência para juízos peremptó-rios, definitivos […] Sem dúvida, esta mulher vai para a cama a troco de dinheiro, o que permitiria, provavelmente, sem mais considera-ções, classificá-la como prostituta de fato, mas, sendo certo que só vai quando quer e com quem quer, não é de desdenhar a probabilidade de que tal diferença de direito deva determinar cautelarmente a sua exclusão do grêmio. (Saramago, 2008, p.31)

O narrador primeiro julga a moça como uma prostituta, de forma categórica (“sem dúvida”), mas depois se arrepende e tenta ironica-mente ponderar melhor, amenizar a sua suposição (“provavelmen-te”), porém nada altera a afirmação que já foi feita. Em alguns mo-mentos, suas conclusões resultam em provérbios e ditados populares. Quando o primeiro cego rejeita a companhia de seu bom samaritano até a chegada de sua esposa, conclui o narrador que “o cego, julgando que se benzia, partiu o nariz” (Saramago, 2008, p.26). Desconfiado de que o homem pudesse lhe subtrair algo, o cego mandou embora seu bom samaritano. Se houvesse aceitado que ele permanecesse em sua casa, talvez tivesse evitado o roubo do veículo. Tanto o narrador

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quanto as personagens demonstram apreço pelo uso de frases feitas, ora com seu sentido habitual, ora negando-o de forma irônica. Apa-recem ao longo do texto ditados como “quem não tem cão caça com gato” (Saramago, 2008, p.268), para dizer que se os cegos não podiam tomar banho, limpariam-se com toalhas; “o pior cego foi aquele que não quis ver” (Saramago, 2008, p.283), que remete à percepção me-cânica da realidade; “na terra dos cegos quem tem um olho é rei” (Sa-ramago, 2008, p.103), ironizado na narrativa, pois a única a enxergar se tornou serva e não rainha, foi obrigada a assistir a hediondez hu-mana; “água mole em brasa viva tanto dá até que apaga” (Saramago, 2008, p. 213), para falar da chuva fina que cessou o incêndio, nesse caso o ditado foi adaptado para o contexto. Segundo Elizabeth Del Nero Sobrinha Luft

Uma frase feita serve como estereótipo de determinada concep-ção de mundo e modo de agir, e, fora de seu contexto, pode se trans-formar em instrumento de reflexão, possibilitando a projeção de outros valores para as figuras que a compõem, instaurando novos temas. (Luft, 2008, p.94).

Por meio dessas frases, o narrador e as personagens vão demons-trando o imaginário coletivo para ratificá-lo, ou, especialmente, para refutá-lo, ironizá-lo e criticar a forma de pensar das pessoas. Em algumas ocasiões, há frases que soam como uma espécie de máxima ou aforismo, como “A voz é a vista de quem não vê” (Sara-mago, 2008, p.120); “Dentro dos olhos das pessoas é o único lugar do corpo onde talvez ainda exista uma alma” (Saramago, 2008, p.135). Essas sentenças fazem uma síntese ou generalização de algo. O narrador é também afeito a comparações bastante imagéticas: compara o remorso com uma consciência com dentes para morder, associa os cegos que se chocam a formigas no carreiro e assim por diante. Além disso, investe em descrições detalhadas, com o intuito de levar o seu ouvinte/leitor a visualizar a cena. Ele explora a sines-tesia e apresenta suas próprias sensações. Observe-se a descrição da ferida na perna do ladrão de carros:

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A perna tinha um aspecto assustador, inchada toda por igual desde a coxa, e a ferida, um círculo negro com laivos arroxeados, sanguinolentos, alargara-se muito, como se a carne tivesse sido repuxada de dentro. Desprendia um cheiro ao mesmo tempo fétido e adocicado. (Saramago, 2008, p.75)

A voz narrativa inicia com um julgamento subjetivo (“aspecto assustador”), traça em seguida uma visão panorâmica da perna, bem como das condições e extensão da ferida e termina utilizando dois adjetivos para descrever o cheiro proveniente do ferimento (fétido e adocicado), associados aos sentidos do olfato e do paladar. Em algumas passagens, tamanha é a descrição das ações que os fragmentos se convertem em verdadeiras cenas cinematográficas, como ocorre no difícil deslocamento do ladrão até o portão ou no instante em que a mulher do médico é conduzida pela voz de um soldado para pegar uma pá no pátio do manicômio.

O narrador também vai ao largo do relato criando hipóteses, fazendo conjeturas e interpretando as cenas que apresenta. Quando supõe que as pessoas estão sonhando imagina que “talvez vissem no sonho aquilo com que sonhavam, talvez dissessem, Se isto é um sonho, não quero acordar” (Saramago, 2008, p.76). O vocábulo talvez, duplamente utilizado, marca o caráter de incerteza, de pos-sibilidade de ser real o que está pressupondo. Note-se também que essa voz adota em certos momentos a perspectiva dos contaminados pelo mal branco, com o propósito de reproduzir suas sensações, como ocorre quando relata a impressão de que os olhos dos cegos se tornaram sóis embaciados ou ainda quando assegura que o ladrão não sentia mais a perna, apenas a dor.

Todas essas considerações descrevem a construção do narrador, que se aproxima do leitor como um humilde contador de histórias e vai gradativamente mostrando sua verdadeira face por meio de distintos procedimentos que emprega. Adota diferentes pontos de vista, cala-se para dar voz às personagens cujos pensamentos é capaz de invadir e revelar, expõe os fatos e faz questão de julgá-los, seja de forma irônica e crítica ou com espanto e indignação. Des-

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creve, compara, interpreta, conjetura, levanta hipóteses, sintetiza, conclui e confere sentido ao que narra diante dos olhos do leitor, com quem compartilha suas expectativas, seus valores, a impressão que tem de cada personagem, suas inquietações diante do surto de cegueira. Ao incorporar às suas falas a primeira pessoa do plural (nós), a voz narrativa aproxima-se mais facilmente do leitor, que se deixa conduzir por ela, indigna-se com as situações descritas e passa a torcer pela cura dos cegos. Dessa forma, o narrador revela verda-des recônditas das personagens e vai além da simples visão, porque auxilia na construção dos sentidos e toma pelas mãos o leitor, sendo o seu guia pelo mundo da cegueira.

Quando uma obra literária é adaptada para o cinema, o roteirista e o diretor precisam decidir se haverá ou não a manutenção do dis-curso do narrador. No filme Memórias Póstumas (2001), baseado no livro de Machado de Assis, o diretor André Klotzel optou por utilizar dois atores para representar, respectivamente, o narrador Brás Cubas, que conta sua própria história, e a personagem Brás Cubas, que presentifica os fatos narrados. O defunto na função de narrador, interpretado por Reginaldo Faria, invade a tela para con-versar com o espectador, relatar os acontecimentos e fazer uma re-flexão sobre sua existência, à medida que as ações são revividas por Petrônio Gontijo, no papel de Brás Cubas vivo. Na análise que faz desse filme, Robert Stam (2008, p.178) destaca que o Brás Cubas mais velho, moribundo, observa o Brás mais jovem da interiorida-de do quadro, ambos coexistem lado a lado. O narrador é capaz de interromper a cena para comentar a ação. Klotzel incorpora em sua adaptação as digressões e autoconsciência do romance porque não considera tais elementos como meramente reflexivos e estáticos.

No caso da adaptação de Ensaio sobre a Cegueira, o narrador tão atuante e suas reflexões foram deixados de lado a fim de que o es-pectador não tivesse um guia para conduzi-lo durante o tempo em que acompanha a epidemia da cegueira branca. A história é contada pela câmera, por meio das imagens organizadas pela montagem do filme. No entanto, afirma Paulo Emílio Salles Gomes que “a estru-tura do filme frequentemente baseia-se na disposição do narrador

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em assumir sucessivamente o ponto de vista (aí, não físico, mas intelectual) de sucessivas personagens” (Gomes, 2009, p.107). Isso quer dizer que a câmera nem sempre apresenta a história de forma neutra, o que ela nos mostra possivelmente está contaminado pela perspectiva de alguma personagem.

Para captar as imagens de sua produção, Meirelles emprega um método que resulta no uso de quatro câmeras distintas. Apesar de parecer abusivo, essa estratégia impedia que as cenas precisassem ser repetidas inúmeras vezes, conseguia ângulos diferenciados, que po-deriam ser extremamente úteis à montagem final. Estavam em uso:

1. uma câmera Vista Vision (64mm), usada em externas para obtenção de imagens definidas e estáveis, sob ângulos predeterminados; 2. a chamada câmera A (35 mm), responsável por contar a histó-ria, ou seja, “mostrar o lugar onde estão os atores, cobrir os diá-logos e as reações dos personagens, deixando claras as intenções da cena” (Meirelles, 2010, p.98); 3. a câmera B (35 mm), que grava a história de forma indireta, por trás, por reflexos, sombras, closes, enquadramentos não convencionais4. a câmera C (16 mm), que não possui operador fixo, fica amar-rada no set de filmagem e capta tudo ao acaso.Para contar a história apresentada pelo filme a partir das ima-

gens obtidas por essas quatro câmeras foi adotada uma perspectiva bipartida. Se no romance o narrador é quem conduz a narrativa, na adaptação, o espectador acompanha o insólito surto de cegueira por meio do que capta a câmera objetiva e da voz do velho da venda preta.

No geral, é a câmera objetiva que mostra os fatos. O filme abre--se, como já mencionamos, com imagens em close-up da alternância das luzes vermelha e verde de um semáforo. Simultaneamente, são emitidos sons de veículos, que, por vezes, atravessam rapidamente a tela. De repente, a câmera exibe em plongée25 o trânsito intenso de uma cidade. Mais uma vez a cor verde autoriza a passagem de uma

25 Tipo de enquadramento em que a câmera filma um objeto de cima para baixo.

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fila de motoristas, porém um deles, num piscar de olhos, ou melhor, num fechar e abrir do sinal, sente-se impossibilitado de prosseguir e declara-se cego aos que se aproximam. Do centro da cidade, a história se transfere para a casa do primeiro cego e de lá, ele e sua esposa dirigem-se a um consultório de oftalmologia, cujos pacien-tes que aguardam consulta serão contaminados pela cegueira. Daí em diante a câmera segue cada uma das personagens para mostrar o momento em que perdem a vista. Cegam consecutivamente o ladrão que furtou o carro ao primeiro cego, a rapariga dos óculos escuros, o médico oftalmologista e o rapazinho estrábico. Antes que os habitantes dessa cidade possam dar-se conta do que está aconte-cendo, o espectador deduz que se trata de uma epidemia, graças à movimentação da câmera de um espaço a outro, deslocamento que também simboliza o contágio pela cegueira. Nesses primeiros vinte minutos de filme, as cenas apresentam um ritmo bastante acele-rado, justamente porque a intenção é sinalizar o surto, bem como as personagens que se destacarão entre os cegos, tendo suas ações acompanhadas até o final do filme. Diferentemente do romance em que o narrador vai explicitando o que está acontecendo, a adaptação deixa ao espectador a tarefa de inferir os fatos a partir da sucessão de imagens.

Em seguida, uma ambulância, conduzida por homens vestindo roupas de proteção, óculos, luva e máscaras, vem buscar o oftalmo-logista à sua casa e acaba levando também a esposa do médico, que diz perder a visão naquele instante. O rosto da mulher enquadra--se na cruz da porta do veículo, prenunciando o sofrimento que os esperava.

Os contaminados pela cegueira, tal qual no romance, são le-vados para um prédio onde funcionou um manicômio. Durante a quarentena, a câmera objetiva continua em uso, porém, nota-se que há uma recorrência de cenas em que ela acompanha principalmente as ações da mulher do médico, que guia os cegos. Durante todo o confinamento, as cenas mostradas se concentram apenas nas de-pendências do manicômio. O ritmo do filme sofre uma desacelera-ção e a objetividade das cenas iniciais dá lugar a traços de subjetivi-

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dade dos reclusos, especialmente da única que se manteve imune ao mal branco. Ao lado da câmera objetiva, tem-se a utilização da voz over do velho da venda preta em dois momentos. Um deles se dá quando conta aos demais confinados o que estava acontecendo para além dos muros do manicômio, a partir do que acompanhara antes de chegar ali e do que ouvira pelo rádio que trouxera consigo. A voz é invocada para dar informações do estado em que se encontrava a cidade, explicar a opção pela quarentena por parte do governo e as vãs tentativas dos estudiosos de encontrar uma cura para esse mal jamais visto. A estratégia de colocar uma personagem a narrar para as demais é bastante eficaz, pois seu relato é ouvido também pelo espectador. Com o retrato desolador que se lhes apresenta, os cegos dão-se o direito de aproveitar o rádio e ouvir uma música. Nesse instante diz o velho “E durante a duração da música, o reino dos cegos se espremeu ao redor de um rádio AM”26 (Blindness, 2008, cap.5). Essa fala certamente é dirigida somente a quem assiste ao filme. No final da adaptação, a voz over do velho aparece outra vez, quando o primeiro cego recupera a visão:

Naquele momento o mesmo pensamento ocorreu a todos: Ele foi o primeiro a ficar cego, talvez todos recobremos a visão. A comemoração não era inteiramente por ele. Nos próximos dias, nas próximas semanas, ninguém dormiria de tanta ansiedade. Eles veriam de novo. Desta vez iriam realmente ver. Quem seria inse-guro a ponto de se prender ao cobertor da cegueira? Quem seria tão tolo a temer que sua intimidade fosse se perder? E essa mulher, que estava tão estranhamente calada e que havia suportado tal fardo e que agora estava, de repente, livre? Ela já podia imaginar as vozes da cidade gritando “eu posso ver!” Estou ficando cega, pensou.27 (Blindness, 2008, cap.14)

26 And for the length of the song the “Kingdom of the Blind” shrank to the circle of an AM radio.

27 At that moment the same unspoken thought occurred to everyone: He was the first to go blind. Perhaps we will all regain our sight in turn. So the celebration was not entirely selfless. The next days, the next weeks would therefore be

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Como se pode observar, a voz tem uma forte ressonância do narrador do romance. É capaz de revelar o que estava se passando na mente de todos os cegos e levantar algumas questões. Por fim, volta-se para a mulher do médico, destaca suas emoções e a sen-sação de que chegara a sua vez de perder a visão. No entanto, era apenas impressão.

Quando o grupo sai do manicômio, a câmera objetiva continua a conduzir o filme, dando prioridade para as situações que envolvem a mulher do médico. Como se observa, portanto, a câmera objetiva é que predominantemente conta a história na tela do cinema, subs-tituindo o narrador do romance, que subsiste apenas na voz over do velho da venda preta.

Por se tratar de uma narrativa extensa, obviamente muitas cenas precisaram ser suprimidas ou sofreram algum tipo de transforma-ção. Omitiu-se na construção do roteiro a passagem pela casa da rapariga e, por conseguinte, o encontro com a vizinha do primeiro andar; o diálogo com o escritor, instalado na casa do primeiro cego; a visão das praças; o retorno ao consultório médico. Todas essas cenas, se incluídas na transposição cinematográfica, prolongariam demasiadamente a duração do filme, que consegue sustentar-se sem elas. Reduzem-se a uma única visita as duas vezes que a mu-lher do médico vai à cama do ladrão de automóveis para verificar o estado da ferida na perna do homem. O enterro dos mortos, ação que se repete mais de uma vez no romance, é aproveitado em ape-nas uma das cenas da transposição. Embora rápida, essa cena é suficiente para informar ao espectador que os próprios confinados eram obrigados a enterrar os cadáveres. É importante perceber que o primeiro cego, que teve seu carro furtado pelo ladrão é a pessoa que solidariamente conduz o corpo do gatuno para a cova.

sleepless with anticipation. They would see again. This time they would really see. But who would be so timid as to cling to this blanket of blindness? Who would be so foolish as to fear that its intimacies might be lost? And what of this woman who is now so strangely silent, who has born such a terrible weight and is now so suddenly free? Already she could imagine the voices of the city, shouting ‘I can see’. I’m going blind, she thought.

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A invasão da camarata dos malvados, que na narrativa ocorre logo após a morte do líder dos malvados, é deixada, no filme, para as últimas horas de permanência no manicômio. Na verdade, o as-salto aos cegos da terceira camarata nem chega a acontecer, pois os invasores encontram a ala 3 tomada por fumaça, dando meia volta a fim de escapar do incêndio.

No que tange ao aspecto verbal, a adaptação aproveitou-se bas-tante das falas das personagens que já existiam na narrativa, mas teve de fazer algumas alterações e eliminações. Em primeiro lugar, é preciso lembrar que o roteiro do filme foi produzido a partir da tradução de Ensaio sobre a Cegueira para o inglês, realizada por Giovanni Pontiero. Esse fato já provoca algumas modificações, quanto ao estilo do escritor português e ao uso de ditados e expres-sões próprios da língua portuguesa. A língua japonesa é também acrescida ao longa-metragem nas cenas de diálogos entre o primeiro cego e sua esposa.

Algumas passagens do romance aparecem de forma resumida no filme. Toda a discussão dos dirigentes do governo sobre o que fazer com os contaminados, as hipóteses aventadas dos locais onde pudessem recolher os infectados não se manifesta diretamente na tela do cinema. Essas informações são dadas de maneira objetiva quando o velho da venda preta narra o que se passou no início do surto e comenta:

Nas primeiras 24 horas, foram centenas de casos, dizem. Sem-pre igual. Sem dor. Um mar branco. A reação do governo foi, como sabem, decisiva. A primeira das quarentenas improvisadas. Mas esse sanatório abandonado dava uma imagem negativa.28 (Blind-ness, 2008, cap.5)

28 In the first 24 hours there were hundreds of cases or so, the rumor says. All the same. No pain. A sea of white. The Government’s response, as you know, was decisive. The first of the make shift quarantines. But this descommissioned sanitarium didn’t make ideal public relations.

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Algumas falas sofrem modificações, mas apresentam sentido equivalente ao romance. A sensação de estar no meio de um nevoeiro ou de um mar de leite, relatada pelo primeiro cego no livro, é descrita por essa mesma personagem na produção cinematográfica da seguin-te forma: “Tem movimento. Como partículas. Como um brilho num mar branco. É como nadar em leite”.29 (Blindness, 2008, cap. 1)

Informações que no romance são transmitidas pelo narrador, no filme são dadas pelas próprias personagens, uma vez que o longa--metragem é contado quase exclusivamente pelas imagens, sem que haja uma voz constante para conduzir o espectador. É o que ocorre com a passagem em que o narrador conta que a mulher do médico fabricara uma corda para auxiliar a locomoção dos cegos. Essa notícia é dada aos confinados pelo oftalmologista: “Temos uma linha que liga uma ala à outra. É uma inovação feita por minha esposa”30 (Blindness, 2008, cap. 4).

Pensamentos das personagens, aos quais temos acesso por conta da voz narrativa, concretizam-se em falas na adaptação. Quando o ladrão anuncia que iria deitar-se, conta o narrador que, “pelo tom foi como se tivesse querido avisar, Virem-se para lá que eu vou-me despir” (Saramago, 2008, p.55). No filme, ele adverte em voz alta “Senhoras, fechem os olhos. Vou tirar a roupa”31 (Blindness, 2008, cap. 3).

As longas descrições que o narrador faz dos espaços resultam em uma única tomada no filme, que é capaz de dar ao espectador as dimensões de cada ambiente. O estado em que se encontram as per-sonagens, as sensações que a voz narrativa descreve são transmuta-das no filme para a atuação dos atores, para sua expressão corporal, principalmente pelos sentimentos que podem ser depreendidos por suas faces.

29 There’s a movement to it. Like light particles. Like light shining through a sea of white. It feels like I’m swimming in milk.

30 We’ve a guide line that connects all the wards to each other. It’s an innovation made by my wife.

31 Everyone close your eyes, ladies. I’m gonna take off my clothes now.

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O momento em que alguns diálogos acontecem no enredo do romance muda para outra ocasião da trama, no filme. A conver-sa do médico com o primeiro cego, alegando ter sido covarde por não enfrentar o líder dos malvados acontece no longa-metragem com a rapariga dos óculos escuros. O filme faz essa mudança para aproximar a moça do oftalmologista, quando este está bastante fra-gilizado, sentindo-se fracassado. Durante essa cena, o médico trai a esposa com a rapariga.

No meio das imagens que sucessivamente vão contando a his-tória ao espectador, são inseridas também algumas referências à pintura. Alguns quadros ganham vida no filme, como é o caso de Parábola dos cegos, retratado nos instantes em que a mulher do mé-dico conduz os cegos pelo manicômio e também nas ruas – embora aí não seja um cego a guiar outros cegos. A representação das três graças é evocada na adaptação, durante a cena em que as mulheres se banham na varanda. Além dessas telas, o filme reproduz, com poucas modificações, algumas obras de Lucian Freud.32 Quando os internos se juntam para ouvir uma canção no rádio do velho da venda preta, mostra-se uma sucessão de imagens dos indivídu-os que habitam a camarata. Entre elas estão um homem deitado, vestindo uma calça escura e uma camiseta cinza (42:02), e uma mulher nua, de bruços, com a cabeça voltada para o lado (42:12), que evocam, respectivamente, os quadros Benefits supervisor slee-ping (1995) e Night Portrait, Face down (1999-2000), pintados por Freud. Outra pintura desse mesmo artista aparece quando a mulher do médico sai para procurar comida, no instante em que a câmera capta um homem deitado com um cachorro (1:31:05). A cena re-presenta a tela Double Portrait (1985).

O estilo de Lucian Freud é marcado pela produção de retratos e pela representação de corpos nus, retratados como figuras incômo-das e cruas, sem nenhuma preocupação de transmitir sensualidade

32 Lucian Freud (1922-2011): pintor alemão, naturalizado inglês e neto do psi-canalista Sigmund Freud. Adepto do figurativismo (em oposição ao abstracio-nismo), Freud pintava principalmente retratos e figuras nuas.

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ou beleza. Essas gravuras, integradas ao filme, expressam a tristeza e a prostração dos seres acometidos repentinamente por um mal que parece não ter cura e que os obriga a modificar profundamente suas vidas. A adaptação, portanto, aproveita algumas referências pictóricas já presentes no romance e ainda busca novas telas para estabelecer um diálogo.

Todo esse percurso pelos diversos mecanismos utilizados na elaboração do filme demonstra a diferença da composição de ima-gens na literatura e no cinema, apontadas por Johnson (1982, p.11-12). Enquanto no texto literário a imagem é sempre uma construção mental, conceitual e simbólica, em um filme, ela se transforma em uma representação visual, que expõe uma realidade física e reveste--se de uma percepção direta, contínua e icônica da realidade. É por isso que

um filme não é pensado e, sim, percebido. Eis porque a expres-são humana pode ser tão arrebatadora no cinema: este não nos pro-porciona os pensamentos do homem, como o fez o romance durante muito tempo, dá-nos sua conduta ou seu comportamento, ele nos oferece diretamente esse modo peculiar de estar no mundo, de tra-tar as coisas e aos semelhantes, que permanece, para nós, visível nos gestos, no olhar, na mímica e que define com clareza cada pessoa que conhecemos. (Brasil, 1967, p.87)

Blindness congrega os elementos propriamente cinematográfi-cos para transmitir, por meio de imagens em movimento, os efei-tos ocasionados pela perda do sentido da visão. A transposição do romance para uma nova mídia também torna possível a percepção de que o processo de tradução intersemiótica traz como exigência “repensar a configuração de escolhas do original, transmutando-as numa outra configuração seletiva e sintética” (Plaza, 2010, p.40). Foi o que fez a equipe responsável pelo filme: verificou a constru-ção da narrativa e buscou formas de expressão capazes de transmiti--la em um suporte audiovisual: a cegueira recebe uma representa-ção visual e sonora, as personagens ganham novas características e

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são expostas a novas situações, o transcorrer do tempo fica marcado em algumas cenas, o espaço se atualiza, o narrador e suas conside-rações são substituídos quase inteiramente pelas imagens captadas pela câmera. Dessa maneira, nota-se que traduzir requer um olhar atento para a obra tida como base com vistas à seleção de elementos e, em seguida, escolha de artifícios, de recursos estéticos capazes de expressá-los. Isso faz com que o filme de Meirelles não seja apenas uma reprodução do romance, mas possa ser considerado como um trabalho de intepretação e recriação.

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considerAções finAis

Por meio das análises apresentadas é possível perceber a im-portância das imagens e o papel que elas desempenham tanto na literatura quanto no cinema. No texto literário, contribuem para a plurissignificação, para o estabelecimento de associações e auxiliam na representação mental que o leitor irá processar durante o ato da leitura. No cinema, as imagens constituem matéria-prima para as produções, possuem também poder figurativo e evocador, contudo despertam reações imediatas, graças à visualidade das cenas. En-quanto na literatura “os estímulos emotivos vêm após os leitores atravessarem uma verdadeira cortina de operações semânticas e sintáticas guiadas por signos, materializados em palavras e organi-zados em conceitos” (Pellegrini, 2003, p.120), no cinema, as ima-gens surgem prontas diante de seus olhos, pois simulam uma repro-dução fotográfica da realidade, de modo que “são os próprios seres e as próprias coisas que aparecem e falam, dirigem-se aos sentidos e falam à imaginação” (Martin, 2005, p.24). Assim, em cada uma dessas duas modalidades artísticas, as imagens estabelecem pactos distintos de interação com seu público, leitores e espectadores.

Na leitura de Ensaio sobre a Cegueira, realizada no segundo capítulo, verificou-se a presença das três categorias de imagens propostas por Northrop Frye como arquétipos da literatura – de-

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moníacas, apocalípticas e analógicas. Tais imagens participam ati-vamente da configuração temática e estética da obra de Saramago.

As imagens demoníacas respondem pelo estado caótico descrito na narrativa a partir do aparecimento de uma cegueira epidêmica e representam um mundo completamente rejeitado pelo desejo hu-mano. Pouco a pouco, o romance evidencia os efeitos causados pela perda da visão: uma cidade totalmente devastada e desprovida dos traços civilizadores; um governo burocrático e opressor, despre-parado para agir em situações de emergência, que se comunica de forma autoritária com os cidadãos, adota medidas retrógradas e não presta assistência adequada aos cegos; a inutilidade do progresso tecnológico; a ciência e a religião impossibilitadas de oferecer um caminho alternativo; as ações abusivas e repressoras dos soldados do exército, os conflitos entre cegos transformados em prisioneiros em um manicômio, convertido em labirinto e em campo de exter-mínio; a falta de higiene e a animalização dos homens; o desapareci-mento de valores humanitários, a perda de esperança, a violência, a dor, a humilhação e a morte. Um conjunto forte de imagens evoca-doras de condições humanas nefastas.

Além de compor um quadro ignóbil, as imagens demoníacas prestam-se ainda a dirigir críticas a diversos segmentos da socieda-de – como as instituições governamentais e religiosas – e a despertar uma reflexão sobre as relações interpessoais, o comportamento instintivo, primitivo e irracional do homem, capaz de transformar a civilização em barbárie.

Se as imagens demoníacas revelam uma visão desencantada da vida, por outro lado, a narrativa não deixa de expressar algum tipo de esperança, manifestada por meio das imagens apocalípti-cas, as quais retratam o mundo idealizado pelos homens, no qual todas as suas vontades e desejos podem ser realizados, os indivídu-os mantêm uma postura íntegra e solidária. Constituem momen-tos apocalípticos do romance a preocupação com mortos e feridos por parte de alguns cegos; a harmonia que envolve os membros do grupo formado pela mulher do médico, fazendo-os parecer um único indivíduo; a hospitalidade que a rapariga oferece em sua casa

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aos hóspedes; a tentativa de organização que se nota na reunião de infectados em uma das praças; a chuva purificadora e, de maneira especial, a convivência na casa do oftalmologista: a partilha durante as refeições, o brinde celebrativo, o banho das mulheres na varanda, o restabelecimento de laços afetivos, a organização, o espírito cole-tivo e a recuperação da visão.

As imagens apocalípticas, portanto, são passagens comoventes, bastante poéticas, que emocionam o leitor e suspendem momenta-neamente a gravidade da situação e as perplexidades projetadas na narrativa para expressar que, apesar de tudo, ainda é possível acre-ditar na solidariedade, na união, na amizade, no espírito altruísta.

As imagens analógicas posicionam-se entre esses dois mundos extremados, o demoníaco e o apocalíptico, aproximando-os da ex-periência humana. Nas personagens encontram-se características que tendem para a representação apocalíptica, como o heroísmo e o instinto maternal da mulher do médico, que se sobrepõe às suas ações reprováveis, pois, na maior parte do tempo, ela luta contra a desumanidade, tenta estabelecer uma organização que minore o caos, fazendo todo o possível para tornar mais tolerável a vida no manicômio; a inocência infantil do rapazinho estrábico; a sabedoria que se manifesta na figura do velho da venda preta; a fidelidade plena do cão das lágrimas.

Em contrapartida, os sentimentos demonstrados pelos cegos estão mais alinhados ao mundo demoníaco: a tristeza profunda, a sensação de estar só e habitando um labirinto, a raiva, a impaciên-cia, a desconfiança, a vingança, o hábito de esconder as fraquezas, entre outros. Nesse sentido, as imagens analógicas transmitem com clareza que o ser humano é capaz de praticar ações louváveis, mas também de cometer atos condenáveis.

A cegueira, que serve de ponto de partida para a narrativa, as-sume, por meio de sua caracterização não convencional – branca, contagiosa, assintomática e jamais vista – um caráter metafórico, mais que isso, alegórico, no texto de Saramago. As imagens proje-tadas no texto são mecanismos para discutir, no fundo, a conduta humana. O individualismo, o egoísmo, o egocentrismo, a violência

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e a agressividade, a sensação de ter uma visão absoluta de tudo o que está ao redor, a incapacidade de olhar para o outro e a falta de solidariedade são as principais causas da cegueira que assola a hu-manidade e afeta os olhos da razão.

Corroborando a ponderação de Henri Agel, que afirma ser mais fácil descobrir o sentido do próximo “por meio do insólito do que sob a poeira dos contatos quotidianos” (Agel, 1963, p.58), a obra de Saramago submete as personagens a uma experiência desumaniza-dora, que constitui “o estranhamento necessário para distanciar os homens da rotina e obrigá-los a observar de um modo novo o que parecia aceite como natural” (Cerdeira, 2000, p.255).

A perda da visão desestabiliza a estrutura social em vigência, provoca uma reviravolta na vida das personagens, obrigando-as a enfrentar o inferno existencial, a romper com a alienação e a lutar contra a abjeção, deixando transparecer “o que de mais egoísta, obscuro e cruel existe nos subterrâneos da condição humana” (Reis, 2012, p.67).

Ao largo da análise de Ensaio sobre a Cegueira enfatizaram-se referências à pintura na narrativa de Saramago, feitas de forma ex-plícita, porém sutil, uma vez que aparecem “incorporadas ao tecido narrativo e fazendo parte dele naturalmente” (Gomes & Teixeira, 2010, p.93). O leitor precisa estar atento, pois elas podem passar despercebidas. Em outros casos, a narrativa utiliza a écfrase para descrever as pinturas de maneira indireta, como ocorre com a repre-sentação dos santos na igreja pela qual passa a mulher do médico. Além das telas, a obra também estabelece uma relação intertextual, entre outros textos, com a Bíblia e com a mitologia clássica, que já haviam sido apontadas por Frye como fortes influências para a literatura ocidental.

As imagens presentes no texto do autor português são também responsáveis pelo efeito de verossimilhança da obra e permitem ao escritor explorar realidades distintas, colocá-las em contato, utilizar figuras de linguagem e traçar descrições pormenorizadas, propi-ciando ao leitor a visualização das cenas. Por conta de todos esses recursos, o romance estabelece variadas camadas de significação,

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ou seja, “numa narrativa cuidada do ponto de vista lógico-semân-tico faz emergir nós romanescos de intensa trama moral, ideológica e implicitamente judicativa, que constituem um livro de sentido decisivo e acutilante” (Seixo, 1999, p.121). Portanto, todas essas considerações comprovam que as imagens projetadas na obra são parte da sua estrutura composicional, contribuem para a exposição do tema abordado, demonstram o trabalho com o signo linguístico e constituem elementos fundamentais para a configuração estética da narrativa.

O caráter imagético de Ensaio sobre a Cegueira, além da estrutura narrativa, foi mais um mecanismo facilitador da aproximação entre literatura e cinema e talvez tenha sido o responsável por despertar o desejo de se reproduzir a história de Saramago no meio cinema-tográfico, onde as imagens em movimento constituem o principal elemento. Toda a riqueza semântica do romance é reconstituída no filme por meio de recursos próprios do suporte audiovisual.

Como vimos, a tradução intersemiótica do livro foi buscar os mecanismos de expressão de que dispunha a arte cinematográfica para levar o estranho surto às telas do cinema, já que “o processo tradutor intersemiótico sofre a influência não somente dos proce-dimentos de linguagem, mas também dos suportes e meios empre-gados, pois que neles estão embutidos tanto a história quanto seus procedimentos” (Plaza, 2010, p.10).

Resgatando as operações que Brito (2006, p.20) destaca na adap-tação de uma narrativa para o cinema, percebe-se que Blindness realiza algumas transformações. A primeira delas é a representação estética que a cegueira ganha no filme. Em vez de simplesmente mostrar com os diálogos e o desenvolvimento da história que se trata de uma trama decorrente de um surto de cegueira, a equipe decidiu inserir no longa-metragem também uma dimensão visual e sonora que enfatizasse a inopinada perda da visão. As cenas ex-ploram a iluminação e a cor branca, caracterizadora da cegueira da narrativa, e fazem uso do negro, para dar o tom trágico e evocar, por contraste, a cegueira habitual. O filme utiliza de forma recorrente espelhos, vidros e reflexos, que estão associados à visão e também

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à ideia de ver o outro, de enxergar a si mesmo na alteridade, de colocar-se no lugar do próximo. As imagens desfocadas e os enqua-dramentos incomuns remetem-se à forma como vemos as coisas, como se nossos olhos estivessem embaçados ou houvesse uma trava impedindo a visão plena.

Quanto ao aspecto sonoro, a cegueira recebe no filme um toque característico que representa a contaminação. A trilha musical é composta por instrumentos que produzem timbres desconhecidos, desorientando o espectador da mesma forma como as personagens ficam desorientadas sem a visão. Os demais efeitos de sonorização (ruídos) ganham destaque, já que a audição é um sentido bastante aguçado nos cegos. Os sons, inclusive, são os principais condutores da história em algumas cenas e, ainda, ajudam a expressar as vicis-situdes pelas quais passam a cidade e seus habitantes.

A adição também foi um dos mecanismos adotados pelo filme. Na transposição das personagens, Blindness dá espaço para uma personagem secundária do romance com a finalidade de acrescen-tar uma cena que expressa mais um sintoma da cegueira, o precon-ceito racial. São criadas novas situações para estabelecer uma crise conjugal entre o primeiro cego e sua esposa. Os desentendimentos entre o oftalmologista e sua mulher são intensificados. O chefe dos malvados ganha um contorno satírico. Algumas personagens ter-minam com um destino diferente do relatado no romance.

O filme adiciona alguns mecanismos que transmitem ao es-pectador, mesmo que de forma vaga, uma dimensão temporal da história, sugerindo que a epidemia não transcorreu por um período muito longo. Há também a preocupação de exprimir o passar do tempo, o crescimento vertiginoso da contaminação e a rapidez com que a cidade e o manicômio se degradam. Com relação ao espaço, o longa-metragem mantém-se muito próximo aos três núcleos cen-trais do livro: o manicômio, a cidade antes e depois do surto. En-tretanto, na construção do espaço urbano, ao fundir cenas gravadas em três cidades, que se misturam inclusive em uma única imagem, consegue-se levar ao cinema a universalização do espaço existente

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na narrativa, da mesma maneira que a diversidade física e étnica dos atores preserva a universalização das personagens.

Deslocamentos da ordem das ações são mais sutis, mas aparecem em Blindness. Enquanto, no romance, o primeiro cego descreve ao ladrão a sensação de estar cego antes que alguém se disponha a levá-lo para casa, no filme, essa conversa ocorre enquanto o ladrão dirige o carro do primeiro infectado. Alguns diálogos, na adapta-ção, são antecipados ou postergados com relação ao ponto em que ocorrem na narrativa.

A redução foi um procedimento recorrente adotado no processo de tradução da obra para o cinema. As instruções do alto-falante, transmitidas no filme por meio de um vídeo, são abreviadas, falas das personagens são resumidas, acontecimentos reiterados no ro-mance manifestam-se uma única vez no longa-metragem, muitas passagens da narrativa são suprimidas no roteiro (a visita à casa da rapariga, o encontro com a velha do primeiro andar e com o escri-tor, a visualização das praças, a cave do supermercado convertida em sepulcro etc.). O narrador participativo do livro – que além de relatar os fatos, emprega variados recursos para discutir e comentar a história – é deixado de lado no filme, transferindo às imagens captadas pela câmera objetiva a tarefa de contar e mostrar a epide-mia de cegueira e suas consequências. Em dois momentos, apenas, observa-se na adaptação a voz over do velho da venda preta funcio-nando como uma espécie de voz narrativa, próxima do romance.

O filme mantém alguns intertextos já presentes no texto lite-rário, a tela da Parábola dos cegos ou o quadro d’As três graças, por exemplo, e acrescenta outros, as pinturas de Lucian Freud, mais próximas de nosso tempo, sem falar no diálogo oculto que o longa--metragem estabelece com toda a tradição cinematográfica que o antecede.

Todos esses aspectos apontados demonstram a pluralidade de elementos que compõem as imagens no cinema. Elas são resul-tantes de uma confluência de fatores: iluminação, cenografia, fo-calização, trilha sonora, representação dos atores, linguagem oral. Apesar de todas as aproximações existentes entre a literatura e o

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cinema, como a capacidade de fabulação, a estrutura narrativa, a criação de imagens, a diferença dos meios materiais de expressão de um romance e de um filme, mesmo que contem a mesma história, impede a busca pela fidelidade. A tradução intersemiótica, como a que ocorre com Ensaio sobre a Cegueira e Blindness,

determina escolhas dentro de um sistema de signos que é estranho ao sistema do original. Essas escolhas determinam uma dinâmica na construção da tradução, dinâmica esta que faz fugir a tradução do traduzido, intensificando diferenças entre objetos imediatos. A tradução intersemiótica é, portanto, estruturalmente avessa à ideo-logia da fidelidade (Plaza, 2010, p.30).

O filme dirigido por Meirelles busca ferramentas do meio cine-matográfico a fim de retratar a insólita cegueira e seus efeitos. Para isso, vai ajustando, amoldando, alterando e tornando adequadas ao suporte audiovisual as situações selecionadas no romance. Por meio desse trabalho, apropria-se da narrativa de Saramago, faz dela uma releitura e, ao mesmo tempo, confere-lhe uma ressignificação.

Na comparação de Blindness com Ensaio sobre a Cegueira, no-ta-se que predominam no filme mais convergências do que di-vergências com a obra literária. O longa-metragem preserva uma forte aproximação com o romance (principalmente com a fábula), mantendo seus elementos fundamentais e tentando aproveitar o máximo possível das leituras que o texto oferece. Em síntese, “o adaptador busca o equilíbrio entre preservar o espírito do original e criar uma nova forma” (Seger, 2007, p.26).

Esse acercamento entre a adaptação e o texto tomado como ponto de partida talvez se deva pela responsabilidade de levar ao cinema a obra de um autor consagrado, ganhador de um prêmio Nobel e que se manteve resistente em liberar os direitos de seu romance para uma produção cinematográfica. Contudo, José Sara-mago se mostrou satisfeito com a tradução intersemiótica de Ensaio sobre a Cegueira e afinado com a concepção de que uma adaptação constitui-se como uma recriação. Quando o longa-metragem foi

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apresentado ao escritor, ele o assistiu mudo e sem demonstrar rea-ções. Sobre esse momento, conta Meirelles:

Deu tudo errado, pensei. Toquei seu braço levemente e lhe falei que não precisava comentar nada naquele momento, mas, então, com uma voz embargada, ele me disse, pausadamente: “Fer-nando, eu me sinto tão feliz hoje, ao terminar de ver este filme, como quando acabei de escrever o Ensaio sobre a cegueira”. [...] Na conversa e no jantar que se seguiram, ele disse que não considera o filme um espelho de seu trabalho e que nem poderia ser assim, pois cada pessoa tem uma sensibilidade diferente. Gostou da expe-riência de ver algo que conhecia, mas que, ao mesmo tempo, não conhecia. (Meirelles, 2010, p.140)

Blindness mostra-se, portanto, como uma tradução intersemió-tica bem-sucedida, que soube dar aos elementos da narrativa uma configuração adequada ao meio audiovisual, tornou-se mais uma produção importante na carreira de seu diretor e ainda contribuiu para a divulgação da obra do escritor português. Tanto o filme de Meirelles quanto o romance de Saramago, por meio da projeção de imagens, desestabilizam a visão e a percepção do leitor/espectador, convidando-o a pensar sobre suas próprias atitudes, seus valores, revelando a possibilidade de ver além das aparências. Ambas as obras, portanto, descortinam a nossa visão e nos desafiam a enxer-gar o mundo e as relações sociais com outros olhos.

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SOBRE O LIVRO

Formato: 14 x 21 cm Mancha: 23,7 x 42,5 paicas

Tipologia: Horley Old Style 10,5/14

EQUIPE DE REALIZAÇÃO

Coordenação Geral Atarukas Studio

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DAS LETRAS ÀS TELASA TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA DE ENSAIO SOBRE A CEGUEIRACLEOMAR PINHEIRO SOTTA