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práticas de transformação no mundo indígena Edilene Coffaci de Lima Marcela Coelho de Souza ORGANIZADORAS Brasília 2010 CONHECIMENTO E CULTURA ATHALAIA GRÁFICA E EDITORA Livro Conhecimento e Cultura.indd 1 26/4/2011 12:20:42

Coelho de Souza - DOSSIE Conhecimento e Cultura

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antropologia

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  • prticas de transformaono mundo indgena

    Edilene Coffaci de LimaMarcela Coelho de Souza

    ORGANIZADORAS

    Braslia 2010

    CONHECIMENTOE CULTURA

    ATHALAIA GRFICA E EDITORA

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  • prticas de transformaono mundo indgena

    CONHECIMENTOE CULTURA

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  • Conhecimento e cultura: prticas de transformao nomundo indgena / Edilene Coffaci de Lima, MarcelaCoelho de Souza, organizadoras. Braslia : Athalaia,2010.260 p. : il.; 23cm

    ISBN 978-85-62539-17-6

    1. Antropologia social. 2. Cultura. 3. Etnologia. 4.Povos indgenas - Brasil. 5. Patrimnio cultural. I. Lima,Edilene Coffaci de (org.). II. Souza, Marcela Coelho de(org.).

    CDD 39(81=082)

    C749

    Conselho EditorialAlcida Rita RamosJulio Cezar MelattiRoque de Barros Laraia

    Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social/UnBDepartamento de Antropologia/ICSCampus Universitrio Darcy Ribeiro Asa NorteICC Centro Sobreloja B1-34770.910-900 Braslia DFe-mail: [email protected]

    Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social/UFPRRua General Carneiro 460 6o. andar80.060-150 Curitiba PRe-mail: [email protected]

    Editora: Athalaia Grfica e EditoraReviso: Lasa TossinSecretaria: Mariana Souza SilvaProjeto Grfico e Diagramao: Cartaz Criaes e Projetos GrficosTiragem: 1000 exemplares

    Esta publicao foi financiada com recursos do projeto PROCAD/CAPES

    Etnologia indgena e indigenismo: novos desafios tericos e empricos

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  • SUMRIO

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    ApresentaoEdilene Coffaci de Lima e Marcela S. Coelho de Souza

    CONHECIMENTO

    1. Kampu, kamp, kamb: o uso do sapo-verde entre os KatukinaEdilene Coffaci de Lima

    2. Conselho de Gesto do Patrimnio Gentico:hibridismo, traduo e agncia compsitaDiego Soares

    3. O sabonete da discrdia: uma controvrsia sobre conhecimentos tradicionais indgenasJos Pimenta e Guilherme Fagundes de Moura

    CULTURA

    4. A vida material das coisas intangveisMarcela Stockler Coelho de Souza

    5. Notas sobre a poltica ritual kalapaloAntnio Roberto Guerreiro Jr.

    6. Espaos de homens e conceitos de mulheres:o feminino em escolas kaxinaw (Huni Ku)Paulo Roberto Nunes Ferreira

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    TRANSFORMAO

    7. Praxes yaminawa e xamanismo ucayalino: notas de um dilogo regionalLaura Prez Gil

    8. Beber, brincar: sobre o conhecimento despertado pela embriaguezNicole Soares Pinto

    9. O pessoal da cidade:o conhecimento do mundo dos brancos como experincia corporal entre os Karaj de BuridinaEduardo Soares Nunes

    10. Diferentes contextos, mltiplos objetos: reflexes acerca do pedido de patrimonializao da AyahuascaJlia Otero dos Santos

    Sobre os autores

    Eventos e Publicaes

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  • 7APRESENTAO

    Edilene Coffaci de Lima Marcela Coelho de Souza

    Conhecimento e cultura: prticas de transformao no mundo indgena traz contribuies de alunos e professores dos Programas de Ps-Graduao em Antropologia Social da Universidade de Braslia e da Universidade Federal do Paran, participantes do Projeto de Cooperao Acadmica Etnologia Indgena e Indigenismo, financiado pela CAPES, atravs do edital PROCAD 2007.

    Parte dos professores e alunos de ambos os Programas esteve reunida em duas ocasies. Em Braslia, em 21 de setembro de 2009, quando foi realizado o seminrio Dos quatro cantos da Amaznia: conhecimentos indgenas como prticas de transformao. Em Curitiba foi realizado o seminrio Entre a cultura e a mercado-ria: dilogos em torno dos saberes indgenas, em 27 de abril de 2010. Essas ativida-des estiveram vinculadas a uma das linhas de pesquisa especficas do convnio, Patrimnio Imaterial, Propriedade Intelectual e Conhecimentos Tradicionais.

    Estas so expresses em torno das quais vm sendo travados, j vo qua-se vinte anos, intensos debates: a Conveno sobre Diversidade Biolgica (CDB) da ONU, firmada em 1992, e o Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comrcio (Acordo TRIPS), de abril de 1994, no mbito da Organizao Mundial do Comrcio (OMC, criada em janeiro de 1995, na sequncia do acordo), so talvez os seus marcos principais no plano internacional. Outro eixo importante foram os esforos, que remon-tam dcada de 1980, no mbito da ONU, da Organizao para a Educao, a Cincia e a Cultura (UNESCO) e da Organizao Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), para o que inicialmente se formulou como proteo do fol-clore, fazendo convergir as preocupaes da primeira organizao com a prote-o do patrimnio cultural e aquelas da segunda com a aplicao dos modelos

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  • Apresentao

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    de direitos de propriedade intelectual aos recursos intelectuais tradicionais. Com a dcada dos Povos Indgenas, lanada pela ONU em 1994 (e renovada dez anos depois), a constituio do Grupo de Trabalho sobre Populaes Indgenas e do Foro Permanente de Povos Indgenas (para uma histria comentada desses desenvolvimentos, ver Carneiro da Cunha 2009), completa-se o quadro de um movimento global no bojo do qual numerosas naes do planeta foram motiva-das a reavaliar as mais diversas reivindicaes de direitos sobre todos os tipos de recurso imaterial (Hirsch & Strathern 2004:vii), e em particular aquelas reivindicaes concernentes cultura e aos conhecimentos de povos indge-nas e populaes tradicionais. Nesse movimento, vai-se da cultura dos povos indgenas como patrimnio da humanidade, essa mesma cultura, primeiro, como patrimnio da nao, e por fim como propriedade particular de cada povo (Carneiro da Cunha 2009:327), em um ciclo que pode ser repetidamente reensaiado.

    Pode-se dizer que esses debates tendem a atravessar dois registros princi-pais: de um lado, o que geralmente se descrevem como saberes ou conheci-mentos associados biodiversidade; de outro lado, o que se apreendem como expresses culturais de povos indgenas e comunidades tradicionais. O mo-delo dos direitos de propriedade intelectual (individuais, privados), referente aos direitos legais que indivduos ou corporaes tm sobre os produtos de sua criatividade, tende a se afirmar no primeiro caso; o modelo do patrimnio cultu-ral (coletivo, pblico), predomina talvez no segundo. No Brasil, essa bifurcao manifesta-se nas trajetrias paralelas da legislao: de um lado, aquela referente ao acesso aos recursos genticos, cuja histria comea com a promulgao da Medida Provisria 2186-16 de 23 de agosto de 2001, que dispe sobre o acesso ao patrimnio gentico, a proteo e acesso ao conhecimento tradicional asso-ciado, a repartio de benefcios e o acesso tecnologia e transferncia de tec-nologia para sua conservao e utilizao, e d outras providncias; de outro, aquela que trata das polticas destinadas proteo do patrimnio imaterial, iniciando-se com a edio do Decreto 3551, de 4 de agosto de 2001, que instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial e criou o Programa Nacional do Patrimnio Imaterial.

    claro que essas divisas no cessam de ser atravessadas e questionadas, num cruzamento que revela os limites das parties em que se ancoram natureza/cultura, individual/coletivo, material/imaterial, inovao/tradio , sobretudo quando se trata de caracterizar regimes de conhecimento, de criatividade, de constituio de pessoas e de coletivos, que no se pautam por elas. E no se pau-tam por elas, via de regra, os regimes de conhecimento e criatividade amern-dios, inscritos em universos de prticas e concepes que pouco tem a dever s

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    matrizes culturais que as produziram. Em um mundo em que, frequentemente, encontramos no-humanos (animais, vegetais, etc.) dotados de cultura, indiv-duos dividindo-se em partes e multiplicando-se em duplos, coletivos que fun-cionam como corpos, espritos dotados de (estranhas) fisiologias e matrias im-palpveis, e em que a criao no mais das vezes uma operao de troca, extrao ou doao entre sujeitos, em lugar da aplicao de um sujeito sobre um objeto, em um tal mundo, entende-se, as formas muito diversas que podem tomar as reivindicaes sobre recursos intelectuais tendem a evidenciar a insuficincia de nossos prprios recursos intelectuais para reavaliar essas reivindicaes.

    No obstante, em boa medida nos termos dessas parties, desses modelos, e desses conceitos, que os povos indgenas so hoje instados a formular, apresen-tar e negociar seus interesses diante do Estado e demais agncias no-indgenas. Registrar os efeitos e as respostas que emergem de um tal apuro, com seus di(tri, quadri-)lemas e as oportunidades decorrentes, o objetivo dos captulos reu-nidos aqui. Parece-nos que, tomados em conjunto, todos atestam a relevncia da questo que, como observa Crook (2007:245), tendo sido posta por Barth (2002:2) o conhecimento melhor entendido como uma coisa ou como uma relao? atravessa todo o presente debate sobre o conhecimento e a cultura e suas transformaes amerndias. Transformaes tanto mais relevantes quanto formos capazes de tom-las como verdadeiros recursos intelectuais para pensar no-vamente, para contrariar nossa persistente tendncia a privilegiar o conhecimen-to sobre os que conhecem, a recair nas armadilhas da mentalidade proprietria (Crook 2007:246), e a acreditar, apesar de todos os esforos que somos levados a fazer para sustentar a Natureza por meio da Cultura (como no caso da CBD) ou para reinscrever esta ltima na primeira (a diversidade cultural como um direito humano, isto , natural), que os limites dentro dos quais pensamos no estejam sendo continuamente ultrapassados no momento mesmo em que se procura reestabelec-los (e inversamente). O que preciso perguntar, para cada situao, : com que efeitos?

    Os artigosA diviso interna do volume e a ordem de apresentao dos textos guardam

    certa arbitrariedade, e evidentemente ningum imagina que se possa separar simplesmente conhecimento, cultura e transformao. So justamente as prticas que os imbricam. Da indissociabilidade entre os trs termos que redundam os processos que so aqui explorados a partir de diferentes ngulos disputas em torno da autoria e autoridade de conhecimentos, da realizao de rituais, elaboraes e trocas na veiculao de conhecimentos escolares e xamnicos, na

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  • Apresentao

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    elaborao e consumo de alimentos e bebidas, reflexes sobre os processos de produo cultural, entre outras coisas e de diferentes campos etnogrficos. Todos os autores tm em comum o interesse pelas transformaes que se do no apenas entre os povos indgenas, mas, sobretudo, nas concepes sobre o que vm a ser os conhecimentos e cultura indgenas, compreendendo-os como permanentemente mveis ou transformacionais, resultados de contextos e arran-jos histricos transitrios.

    Na primeira parte, Conhecimento, esto reunidos os artigos de Edilene Coffaci de Lima, de Diego Soares, e o de Jos Pimenta e Guilherme Moura Fagundes, em co-autoria. Dois deles tratam de grupos indgenas localizados no Acre, os Katukina e os Ashaninka, respectivamente de filiao lingstica pano e aru-ak. No primeiro artigo, Edilene Coffaci de Lima trata das transformaes em curso em torno do kamp, a secreo de uma perereca do mesmo nome, tradi-cionalmente usada por homens e mulheres katukina como estimulante cine-gtico e revigorante, e que, na virada deste sculo, ganhou popularidade nos meios urbanos do pas, especialmente entre ayahuasqueiros e consumidores de terapias alternativas e new age. Interessam autora justamente as repercusses dessa popularizao do kamp e os efeitos que produz na concepo que os pr-prios Katukina fazem dele, convertendo-o em emblema de sua cultura, em mo-vimentos no destitudos de contradies e conflitos. Jos Pimenta e Guilherme Moura Fagundes discorrem sobre a querela em torno dos conhecimentos asha-ninka sobre a palmeira murmuru, repassados a pesquisadores e transformados em sabonete com grande aceitao no mercado. Os autores detalham o itinerrio da pesquisa sobre os conhecimentos ashaninka acerca do murmuru, os acordos estabelecidos com os pesquisadores e scios-proprietrios da empresa Tawaya, fabricante do sabonete, e os desentendimentos que desguam na reivindicao dos Ashaninka em torno do reconhecimento de sua contribuio na pesquisa o famoso acesso ao conhecimento tradicional e na repartio dos benefcios em um processo ainda no encerrado. O artigo de Diego Soares, dedica-se ao funcionamento do Conselho de Gesto do Patrimnio Gentico (CGEN), r-go vinculado ao Ministrio do Meio Ambiente, responsvel justamente pela regulamentao do acesso aos conhecimentos tradicionais, conforme estabeleci-do a partir da Conveno da Diversidade Biolgia (CDB). Diego Soares aborda etnograficamente o funcionamento do CGEN, colocando em evidncia como se formulam as concepes sobre o que vem a ser conhecimento tradicional entre tcnicos do rgo, cientistas, empresrios e representantes das populaes tradicionais que tm assento nas reunies do Conselho. Entre outras cenas, o autor apresenta os percursos sinuosos dos processos de autorizao de pesquisas, e das iniciativas de divulgao da legislao, da formatao dos documentos que

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    instruem os processos, das negociaes que tem lugar nas variadas instncias do rgo sobre o que se define como conhecimento e o que o faz tradicional, ou o que se considera patrimnio gentico, mostrando como estas categorias, ainda que dependentes de convenes que remetem lgica do Estado, acabam por designar uma multiplicidade de objetos cientficos e culturais continuamen-te redefinidos no bojo das tradues que fazem cientistas, empresrios e povos indgenas e tradicionais.

    Cultura o ttulo da segunda parte, na qual esto reunidos os artigos de Marcela Coelho de Souza, Antonio Roberto Guerreiro Junior e Paulo Roberto Nunes Ferreira. O artigo de Marcela Coelho de Souza tem incio com uma fala de uma liderana ksdj, que se apresenta como uma crtica da objetificao da cultura: eu s queria que parassem de desmatar a terra e poluir o rio. Da nossa cultura a gente mesmo pode cuidar. A autora ir mostrar como os Ksdj, quando demandam projetos de revitalizao cultural, fazem isso me-nos como um esforo de permanecer o mesmo, e mais como uma tentativa para permanentemente se diferenciarem: dos brancos, de outros grupos indgenas e no devemos esquecer que se est na regio do Parque do Xingu mas so-bretudo de si prprios. Com os Ksdj, a autora nos convida a refletir sobre a vida de um conceito constitutivo do prprio empreendimento antropolgico: cultura. No segundo artigo, de Antonio Roberto Guerreiro Junior, o contexto etnogrfico ainda o (alto) Xingu, mas a partir dos Kalapalo e a elaborao dos rituais funerrios, os Quarup. Interessa ao autor a anlise da poltica en-redada no ritual. Nos ltimos anos no faltam brancos proeminentes interes-sados em realizar seus rituais funerrios, seus Quarup, e tais demandas tm sido ativamente cobiada pelos chefes nativos. Para que possam ser atendidas, uma complexa engrenagem sociolgica posta em funcionamento e afeta no apenas a poltica intertnica os Kalapalo e os brancos , mas tambm a pol-tica intertribal, altoxinguana, e a intra-alde, os Kalapalo entre si. Seja como for, tais efeitos no so facilmente destacveis uns dos outros, e o autor ir nos mostrar que nem devem s-los. Encerrando esta parte, temos o artigo de Paulo Roberto Nunes Ferreira, sobre os processos em curso para tratar da educao escolar entre os Kaxinaw, de lngua pano, localizados no Acre. Se em seus primeiros anos a escola kaxi foi pensada como um instrumento necessrio aos ndios para administrarem suas contas nos seringais ou para organizarem suas prprias cooperativas, atualmente vista como um meio indispensvel para se viver e atualizar a tradio. De uma perspectiva voltada ao exterior, a escola interiorizada ou familiarizada, se preferirmos pelos prprios agentes. Neste percurso, os Kaxi assumem cada dia mais completamente a organizao da

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    escola, tornando-se, no Acre, os primeiros indigenistas indgenas, como ir desenvolver o autor.

    Na terceira e ltima parte, Transformao, esto reunidos os artigos de Laura Prez Gil, Nicole Soares Pinto, Eduardo Soares Nunes e Jlia Otero dos Santos. O primeiro discute certos aspectos do xamanismo yaminawa (grupo pano do Peru) enquanto participante de um sistema xamnico regional que emerge como um produto hbrido, com aportes indgenas diversos mas tambm no-ind-genas, condutor de um dilogo em que a disparidade das premissas no impede o estabelecimento de conexes inteligveis. Se dilogos como estes dependem da capacidade de acesso a pontos de vista outros da disposio dos Yaminawa em engajar-se com lgicas estranhas sua, aceitando possibilidades imprevistas em seus prprios repertrios, levando dilogos a suas ltimas consequncias, para alm da traduo e da ressignificao, at o aceitar para si as possibilidades abertas pelo outro (Prez Gil, neste volume) , tambm dessa possibilidade que trata o artigo de Nicole Soares Pinto, a propsito da anlise da embriaguez alcanada por meio do consumo da chicha entre os Wajuru (Tupi-Tupari) de Rondnia. A embriaguez, mostra-nos a autora, operaria como um meio de aces-so a outras perspectivas, um mecanismo de passagem a outros cdigos comuni-cativos sem que se borre a diferena entre esses, sem que se perca de vista, como diz ela, o prprio fato da passagem. Que o riso seja o ndice dessa passagem, do vislumbre de um l onde se v nos parentes animais, nos animais parentes, nos consanguneos afins e vice-versa, no exclui, e pelo contrrio exige mesmo, que este riso deva entretanto tambm antecipar o retorno ao aqui como em sua fcil converso no seu oposto, a tristeza e o choro pelos parentes mortos sob o risco de que a transformao que opera se torne irreversvel, e a passagem regrida em uma descontinuidade absoluta.

    O captulo de Eduardo Soares Nunes, em um contexto bastante diferente o dos Karaj de Buridina, aldeia incrustada na cidade de Aruan (GO) , carac-terizado por uma longa e profunda experimentao indgena dos modos (d)e conhecimento dos brancos, nos devolve a questo da reversibilidade e irreversi-bilidade dessas transformaes sob uma outra forma, a saber, a que ela toma no prprio corpo dos sujeitos. Ou melhor, a que ela toma nos corpos duplos que eles constituem como stio de um virar branco (por meio inclusive de casamentos com brancos) que no vivido como perda (cultural), mas uma trajetria de conhecimento enquanto experincia corporal, trajetria que define a prpria his-tria desta aldeia.

    Por fim, se essas contribuies mantm os olhos bem firmes, como diza-mos mais atrs ser necessrio, naqueles que conhecem (em oposio a privile-giar os seus conhecimentos), o captulo de Jlia Otero dos Santos dedica-se

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    prxima volta do parafuso. Tendo como objeto o pedido de registro do uso ritual da Ayahuasca como patrimnio cultural do Brasil (feito por alguns dos grupos religiosos que a utilizam), a autora mostra como processos desse tipo necessa-riamente acabam por deslocar os modos de fazer e conhecer dos sujeitos foco explicitado da poltica pblica em questo (o programa do patrimnio imaterial) em funo de um objeto que passa a ocupar o centro da cena: no caso, a bebe-ragem. A estratgia da autora diante disso desconfiar da ideia de que se trataria de uma mesma coisa a cada vez significada diferentemente, sugerindo em lugar disso pens-la com um, ou talvez vrios, agentes no-humanos, os quais defi-nem, a cada vez, a outros e a si prprios por meio de suas variadas associaes.

    Referncias

    BARTH, Fredrik. 2002. An anthropology of knowledge. Current Anthropology 43(1):1-18.

    CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. 2009. Cultura e cultura: conhecimentos tradi-cionais e direitos intelectuais. In: Cultura com aspas e outros ensaios. So Paulo: Cosac & Naify. pp. 311-373.

    CROOK, Tony. 2007. Figures twice seen: Riles, the modern knower and forms of knowledge. In M. Harris (Ed.), Ways of knowing. New approaches in the an-thropology of experience and learning. New York/Oxford: Berghahn Books. pp. 245-265.

    HIRSCH, Eric & STRATHERN, Marilyn. 2004. Transactions and creations: property de-bates and the stimulus of Melanesia. New York/Oxford: Berghahn Books.

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    Os Katukina, falantes de uma lngua pano, chamam de kamp o anfbio Phyllomedusa bicolor e outras espcies do gnero Phyllomedusa, da qual usam a secreo principalmente como um estimulante cinegtico, capaz de aguar os sentidos do caador e de livr-lo da desconfortvel condio de panema (yupa), uma pessoa azarada na caa. Com igual finalidade, vrios outros grupos ind-genas moradores do sudoeste amaznico, a maior parte deles da mesma famlia lingustica, fazem uso do kamp, que acabou se difundindo entre os seringueiros que se estabeleceram na regio a partir do final do sculo XIX, e entre os quais as aplicaes do kamp so conhecidas como injees de sapo, vacina do sapo ou como kamb, na forma como os brancos passaram recentemente a designar essa r. Para terem mais sorte na caa, ndios e seringueiros usam tambm apli-car a secreo do kamp em seus cachorros.

    Neste artigo pretendo oferecer uma descrio do uso do kamp pelos Katukina, chamando a ateno para as prticas tradicionais que tm constitudas, e, ao mes-mo tempo, refletir sobre as implicaes da difuso recente de seu uso entre popu-laes no ndias, especialmente no meio urbano. Ao final concluo que, embora de forma no totalmente desprovida de prejuzos, possvel dizer que a demanda urbana pelo kamp acabou por incrementar a demanda dos prprios Katukina, presentemente preocupados em firmarem-se regional e nacionalmente como tra-dicionais usurios e conhecedores do uso da secreo do sapo-verde.

    Antes de continuar preciso dizer que as informaes sobre o kamp aqui apresentadas foram recolhidas entre os Katukina1, fazem parte do conhecimento tradicional associado do grupo e, por isso mesmo, no podem ser utilizadas sem a prvia anuncia do mesmo.

    Kampu, kamp, kamb: o uso do sapo-verde entre os Katukina

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  • Kampu, Kamp, Kamb

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    Os Katukina somam hoje uma populao de aproximadamente 600 pessoas distribudas em duas Terras Indgenas, no rio Gregrio e no rio Campinas. A TI do rio Gregrio foi a primeira a ser demarcada no Acre e, recentemente amplia-da, conta com uma extenso de quase 188 mil hectares, que os Katukina dividem com os Yawanawa, grupo indgena que tambm fala uma lngua pano e com o qual tm estabelecida uma longa histria de contato e parentesco, dado que uma parte significativa da populao yawanawa atual aparentada a uma mulher ka-tukina que se casou com um antigo chefe poltico do grupo.

    Atualmente mora na TI do rio Gregrio a menor parte da populao ka-tukina, no mais que 70 pessoas. Todas as demais esto estabelecidas na TI do rio Campinas, com 32.624 hectares, que se localiza a cerca de 60 quilmetros de Cruzeiro do Sul a segunda maior cidade do Acre. A TI do rio Campinas cor-tada no sentido leste-oeste pela BR-364, que liga Cruzeiro do Sul a Rio Branco. Na TI do rio Campinas, os Katukina se distribuem em cinco aldeias (Campinas, Martins, Samama, Masheya e Bananeira) localizadas s margens da rodovia.

    Os Katukina, nos primeiros anos da dcada de 1970, participaram das obras de abertura da rodovia e, aps sua concluso, estabeleceram-se no local onde a maior parte de sua populao reside atualmente. De 1972, quando se concluiu a obra de abertura da BR-364, at 2000, todo o trfego de veculos era feito na estrada terra e, por essa razo, dependia das condies climticas. O trfego s era possvel nos meses de vero o perodo de estiagem, que vai de junho a outubro. Nos demais meses do ano, a rodovia era intransitvel devido s chuvas que quase diariamente caem na regio. A sazonalidade do funcionamento da rodovia garantiu por vrios anos certa reduo dos impactos da estrada na vida dos Katukina e das demais etnias indgenas localizadas na regio.

    Durante quase trs dcadas a rodovia funcionou sazonalmente, dadas as interrupes anuais do trfego de veculos logo que se iniciavam as chuvas. Contudo, no final da dcada de 1990, este quadro foi completamente alterado, pois iniciaram as obras de asfaltamento da rodovia. Em 1998, teve incio o as-faltamento da rodovia nas proximidades de Cruzeiro do Sul. Em 2002 e 2003, as obras de pavimentao avanaram sobre o territrio katukina e se estenderam at o riozinho da Liberdade. A cada ano as obras de asfaltamento que garan-tiro a ligao da capital do Acre ao vale do Juru avanam algumas dezenas de quilmetros. A pavimentao de toda a extenso que separa Cruzeiro do Sul de Rio Branco parece que demandar ainda vrios anos. Seja como for, o trajeto que separa Cruzeiro do Sul da capital tem agora vrios quilmetros as-faltados, ainda que descontinuamente, o que fez aumentar em muito o trfego

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    Edilene Coffaci de Lima

    de veculos nos meses de vero. Alm disso, a pavimentao da rodovia de Cruzeiro do Sul at o riozinho da Liberdade faz com que, ao menos neste tre-cho, o trfego de veculos seja contnuo durante todo o ano, mesmo que de forma reduzida. Os impactos sociais e ambientais do incio da pavimentao da rodovia j so evidentes na regio. Entre outras coisas que no cabem ser descritas detalhadamente aqui, o aumento do nmero de veculos transitando na rodovia levou muitas pessoas estranhas para dentro da Terra Indgena, afu-gentou os animais de caa e comprometeu significativamente a dieta alimentar dos Katukina. O impacto sobre o estoque faunstico da TI do rio Campinas ter repercusses, que abordarei no final, tambm no uso que os Katukina fazem da secreo do kamp.

    ***

    Como veremos adiante, apenas nos ltimos anos o kamp ganhou alguma notoriedade. Contudo, em 1925, o padre espiritano Constantin Tastevin havia registrado seu uso entre populaes indgenas do alto Juru:

    O exrcito de batrquios incontvel. O mais digno de ser notado o campon dos Kachinaua. [...] Quando um indgena fica doente, se torna magro, plido e inchado; quando ele tem azar na caa porque ele tem no corpo um mau princpio que preciso expulsar. De madru-gada, antes da aurora, estando ainda de jejum, no doente e no azarado produzem-se pequenas cicatrizes no brao ou no ventre com a ponta de um tio vermelho, depois se vacinam com o leite de sapo, como dizem. Logo so tomados de nuseas violentas e de diarria; o mau princpio deixa o seu corpo por todas as sadas: o doente volta a ser grande e gordo e recobra as suas cores, o azarado encontra mais caa do que pode trazer de volta; nenhum animal escapa da sua vista aguda, o seu ouvido percebe os menores barulhos, e a sua arma no erra o alvo.

    A vvida descrio do padre francs, elaborada a partir de aplicaes a que assistiu entre os ndios Kulina, adianta que a secreo do kamp usada, como dito acima, primeiramente como um estimulante cinegtico.

    Voltando aos Katukina, a quantidade de aplicaes que costumam fazer va-ria bastante no s entre eles prprios, como entre eles e os demais grupos ind-genas da regio. Dos registros existentes sobre o uso do kamp, no h dvidas de que os Katukina so hoje, de fato, os seus maiores usurios (Souza 2002). Seus vizinhos no rio Gregrio, os Yawanaw, parecem ser os mais prximos de igual--los na utilizao da secreo (Prez Gil 1999). Outros grupos indgenas, como

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    os Kaxinaw (Aquino e Iglesias 1994) e Marubo (Montagner e Melatti 1985), fazem um uso bem mais moderado do kamp.

    Os Katukina reconhecem a existncia de pelo menos quatro espcies de kamp, mas encontram com mais facilidade, e por isso mesmo fazem uso mais frequente daquela que chamam apenas de kamp ou de awa kamp, que a Phyllomedusa bicolor. Coletar o kamp no envolve quase nenhuma dificuldade, pois a espcie relativamente fcil de ser encontrada na beira dos igaps e des-loca-se, se for adequado dizer assim, de modo suave e muito lentamente como se estivesse em cmera lenta. Assim, basta durante a madrugada, prximo do amanhecer, orientar-se pelo som do kamp e peg-lo. Para colet-lo, os Katukina no o tocam diretamente, mas recolhem-no quebrando o galho de alguma rama-gem e aguardando que ele se segure nela possivelmente fazem assim porque se o tocarem, ele deve comear a expelir sua secreo.

    Levado para casa, logo depois de capturado o kamp deve ser amarrado, para que se proceda retirada da secreo de sua pele. Os Katukina esticam o animal e prendem-no, amarrando cada uma das patas em dois pedaos de pau posicio-nados na vertical e paralelamente alinhados. J amarrado, o kamp deve ser irri-tado, o que se faz normalmente cuspindo sobre ele, para que comece a expelir a sua secreo claramente um recurso de defesa. Ento, raspa-se a pele do animal com uma pequena esptula de madeira.

    Embora tambm no envolva qualquer dificuldade, a coleta da secreo do kamp, deve ser feita com delicadeza, para no feri-lo. Esse cuidado tem que ser tomado no s para preservar o espcime que poder ser coletado outras vezes para ter extrada sua secreo, mas tambm porque se acredita que algumas co-bras entre elas, a surucucu se servem da secreo do kamp para produzir o seu prprio veneno.2 Caso o kamp seja machucado durante a coleta da secreo, a pessoa que o machucou passa a correr o risco de ser picada pelas cobras irrita-das com o dano causado quele que lhe oferece a matria-prima para a produ-o de seu veneno. Encerrada a retirada da secreo3, o kamp desamarrado e solto na floresta.

    A aplicao do kampEntre os Katukina, o uso em grandes quantidades do kamp feito exclusi-

    vamente pelos jovens; homens mais velhos, mulheres e crianas utilizam-no em dosagens menores.

    Independentemente da dosagem utilizada, as aplicaes de kamp devem ser feitas nas primeiras horas da manh, ainda com o frescor da noite. Logo ao acordar, aps ter jejuado durante toda a noite, a pessoa que receber a aplicao

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    deve ingerir uma grande quantidade de caiuma (bebida de macaxeira, que os Katukina consomem sem deixar fermentar) ou, na falta desta, de gua. A apli-cao feita queimando superficialmente a pele com um pedao de cip titica e, em seguida, depositando na queimadura (chamada de ponto) a secreo do kamp diluda em gua ou saliva para desfazer a cristalizao. Para eliminar algum mal-estar fsico ou indisposies difusas, as mulheres e homens velhos aplicam na perna, na panturrilha, de dois a cinco pontos.

    Diferentemente, se o objetivo aguar os sentidos para empreender uma caada, um rapaz pode chegar a receber mais de cem pontos de kamp alguns velhos dizem hoje que chegaram a receber trezentos pontos quando ainda eram jovens , que formam uma fileira que se inicia no pulso de um dos bra-os, percorre o peito at alcanar o umbigo, de onde segue, no lado contrrio, at alcanar a extremidade do outro brao. Mesmo que seja corrente a ideia de que essa super-dosagem a mais indicada para tornar um homem um exmio caador ou para retirar-lhe a panema (yupa), a prtica evidentemente responde a idiossincrasias pessoais. H um homem que nunca experimentou kamp como estimulante cinegtico, o que quer dizer que o usou apenas em doses menores. Ele tambm nunca caou e supre sua famlia com peixes. H outros homens que fizeram a super-aplicao do kamp uma nica vez, logo que iniciaram suas atividades como caador, ainda jovens. Depois disso, limitaram-se a receber as dosagens menores. Por ltimo, existe um grupo que de tempos em tempos recor-re ao kamp para garantir uma performance mais vantajosa na caa, recebendo entre 20 e 100 pontos. Nos intervalos entre as aplicaes esses homens rece-bem tambm as dosagens menores. Os homens que periodicamente recebem aplicaes de kamp exibem em seus braos e peito pequenos crculos esbranqui-ados, simetricamente alinhados, marcas evidentes das queimaduras feitas para aplicarem a secreo do sapo-verde.

    A resistncia de alguns homens aplicao da super-dosagem do kamp de-ve-se creditar, sobretudo, aos efeitos que tm de suportar: por volta do dcimo ponto a boca fica amarga, uma sensao de calor invade o corpo e os olhos e a boca comeam a inchar. Para suspender os efeitos indesejveis que as aplicaes proporcionam, o mais indicado banhar-se.

    Cheguei a ver certa vez mais de noventa aplicaes no peito e nos braos de um homem, mas ele mesmo admitiu que seria possvel dobrar este nmero se suportasse fazer duas fileiras de aplicaes. Ele s havia feito uma o que, aos olhos de alguns, j era um exagero.

    Sempre que se faz um grande nmero de pontos, os homens desmaiam por volta do vigsimo e os demais so feitos enquanto eles esto inconscien-tes. So seus familiares e o prprio aplicador que, um pouco mais tarde, os

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    acodem, levando-os para banharem-se no igarap mais prximo, suspenden-do assim os efeitos txicos da secreo do kamp. Contam os mais velhos que antigamente os homens faziam as queimaduras em seus braos e peitos e ti-nham o kamp esfregado diretamente sobre elas.4 O efeito era imediato e eles tombavam no cho inconscientes. Acordavam j dentro do igarap, socorrido por algum parente.

    O efeito desagradvel mais comum promovido pela entrada da secreo do kamp na corrente sangunea o vmito. Mesmo a aplicao de poucos pontos induz os vmitos, que servem, dizem os Katukina, para eliminar as impurezas que se acumulam no corpo. Justamente para tentar conter ou amenizar os efeitos colaterais que a aplicao deve ser feita ao alvorecer. Com o sol alto, segundo vrios Katukina experimentados no uso da secreo, os efeitos indesejveis da aplicao so potencializados.

    Fora do contexto da caa, com maior ou menor frequncia, homens e mu-lheres fazem uso do kamp. Desde muito cedo, entre o primeiro e o segundo ano de vida uma criana comea a receber o kamp, quase sempre por inicia-tiva dos avs. Nesta idade, a criana recebe apenas um ou dois pontos. A partir, aproximadamente, dos seis anos de idade as crianas podem receber de dois a cinco pontos nos braos ou nas pernas. Este uso moderado do kamp feito para aliviar indisposies e fraquezas diversas, que tiram o nimo das pessoas para o desempenho das atividades mais simples, e que os Katukina conceituam como tikish, palavra traduzida como preguia. Ainda que se queira debelar o incmodo fsico que tais indisposies causam, o uso do kamp determinado muito mais pela avaliao moral que se faz do des-nimo que proporcionam.

    A preguia tem para os Katukina uma significao extremamente negativa. Afinal de contas, o comportamento preguioso , antes de tudo, antissocial. Ao se deixar dominar pela prostrao, importa menos o fato de o preguioso no cumprir as tarefas que lhe seriam cabveis do que o fato de que ele no se engajou na teia social que une as pessoas residentes numa mesma localidade. A avalia-o sumamente negativa que os Katukina fazem da preguia foi j identificada em outros grupos de lngua pano. Como Erikson (1996) bem observou entre os Matis, a falta de zelo caracterstica do estado de chekeshek (preguia) perce-bida como uma ausncia de reao ao estmulo social, uma resposta negativa ao imperativo social, antes que como um torpor sui generis. Tanto mais vlida essa afirmao se considerarmos que, entre os Katukina, homens e mulheres aplicam o kamp como antdoto antipreguia, em distintas partes do corpo: os homens aplicam-no nos braos e tronco e as mulheres, nas pernas. A derrubada de grandes rvores para o preparo do roado exige braos fortes e a rotina quase

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    diria da colheita e, sobretudo, do transporte da macaxeira (s vezes, tambm dos filhos) requer fora nas pernas.

    Os aplicadores de kampComo estimulante cinegtico ou como antdoto antipreguia, o kamp deve

    ser aplicado por uma segunda pessoa, por algum que no padea do mal que se quer debelar. Assim, no qualquer homem que pode aplicar o kamp num caador empanemado, tem de ser um caador bem-sucedido. Como se o caador trouxesse inscrito em seu prprio corpo a sua condio, a sua boa sorte, e pudesse transferi-la para outros. Nii, filho de um rezador, sempre procurou Kene para to-mar kamp, preterindo o seu prprio pai, um rezador experiente que, comenta--se, jamais tocou numa espingarda e, portanto, jamais matou qualquer bicho. Do mesmo modo, uma mulher tida como trabalhadeira que zela por sua casa e pelo terreiro que a cerca, cuida bem dos filhos e sempre tem caiuma para servir aos visitantes, entre outras coisas quem dever fazer a aplicao do emtico numa jovem preguiosa. Existe a possibilidade de autoaplicao, mas reservada ape-nas s pessoas mais velhas. Para os Katukina, o kamp est situado em um sistema maior, que vincula a eficcia da substncia s qualidades morais do seu aplicador.

    O elo que se estabelece entre aquele que aplica a substncia do kamp, o aplicador, e aquele que a recebe deve ser duradouro e o desejvel que seja definitivo. Assim, de uma perspectiva masculina, um jovem rapaz quando vai receber, como caador, sua primeira aplicao de kamp deve escolher quem ser seu aplicador como indicado acima, um homem que se destaca nesta atividade, quase sempre de uma gerao acima da sua. Caso a aplicao lhe traga boa sorte, voltar a procurar o mesmo aplicador outras vezes, possivelmente por toda a vida. Ainda que no haja uma formalizao desta relao entre aquele que apli-ca o kamp e aquele que recebe a aplicao , muitas vezes os homens me falaram dela como se fosse definitiva. Ao contrrio, caso a aplicao no traga a boa sorte esperada, o jovem caador continuar tentando encontrar o seu aplicador ideal, aquele capaz de lhe transferir todas as qualidades cobiadas para a prtica da caa. A escolha do aplicador ideal faz-se pelo teste emprico: o sucesso na caada logo aps a aplicao que vai indicar o futuro retorno ao mesmo aplicador. No raro que um jovem caador tenha mais de um aplicador de kamp a quem recorrer de tempos em tempos.

    No h exatamente especialistas na aplicao da secreo do kamp entre os Katukina. Do que foi exposto acima evidente que os caadores mais bem-su-cedidos so os mais requisitados como aplicadores e acabam, de fato, sendo re-conhecidos tambm como tal. De todo modo, o conhecimento acerca do kamp

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    (seus hbitos, comportamento, a tcnica de coleta da secreo, da aplicao etc.) pblico, no se concentra nas mos de uns poucos.

    De certa forma, possvel dizer que os bons caadores do passado so os apli-cadores de kamp do presente e, por sua vez, os atuais caadores sero no futuro os mais requisitados aplicadores de kamp. Dos atuais aplicadores de kamp que conheci, todos foram unnimes em apontar os seus prprios aplicadores como as pessoas que lhes transmitiram os conhecimentos necessrios para aprenderem a fazer a aplicao em outras pessoas.

    O Kamp hojeO pouco segredo que se faz do kamp provavelmente explica a difuso de

    seu uso entre os no-ndios entre os seringueiros ao longo do sculo passa-do e entre a populao urbana, nacionalmente, no incio deste sculo.5 Nos ltimos anos, o uso do kamp ganhou as pginas de vrios jornais e revistas de circulao regional e nacional sendo que outrora as informaes sobre a Phyllomedusa sp. estiveram restritas s publicaes acadmicas. Em 2001, uma reportagem publicada numa revista editada pelo governo do Acre, a Outras Palavras, detalhadamente descrevia seu uso entre os ndios, particularmen-te entre os Katukina, e seringueiros (Lopes 2001). Na sequncia, em 2002, o uso do kamp foi divulgado em um programa de reportagens de uma gran-de emissora de televiso nacional. Em 2003, um renomado jornalista carioca (Ventura 2003) publicou um livro sobre Chico Mendes (e sobre o Acre, 15 anos aps a morte do lder-seringueiro) em que um dos captulos sugestiva-mente intitulava-se O quente agora o kamb, no qual descrevia o uso da secreo do sapo-verde na cidade de Rio Branco. Pode-se dizer que aquele foi mesmo o ano do kamp, pois pelo menos treze matrias sobre ele foram publi-cadas em jornais de circulao diria na capital do Acre.6 Em abril de 2004, o uso crescente e indiscriminado do kamp para diversas finalidades, tido como uma substncia particularmente eficaz na cura de enfermidades para as quais a medicina ocidental no tem tido sucesso em tratar, levou a Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria (Anvisa) a proibir a propaganda do kamp, que vinha sendo feita principalmente a partir de um domnio eletrnico registrado na internet. Em 2004 o kamp continuou a ser notcia nos jornais acreanos e em outubro do mesmo ano foi a vez de uma revista de circulao nacional (Bezerra 2004) estampar em sua capa a foto de um kamp nas mos de um ndio katuki-na. A matria de capa trazia uma extensa descrio do uso tradicional e dos efeitos da aplicao do kamp entre os ndios, e denunciava a biopirataria na Amaznia. Em abril de 2005, o kamp foi notcia em um dos maiores jornais

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    do pas (Lages 2005), mas o foco da matria agora era outro: tratou-se do uso crescente da secreo do sapo-verde em clnicas de terapias alternativas fre-quentadas, segundo a matria, principalmente por estudantes, profissionais liberais e artistas da capital paulistana.

    Com bastante frequncia os Katukina apareciam como protagonistas destas reportagens. Da Amaznia maior metrpole brasileira, o kamp, junto com os Katukina, ganhou fama nos primeiros anos do sculo XXI.

    Antes disso, desde a dcada de 1940, um farmacologista italiano, Vittorio Erspamer, liderava uma equipe de pesquisadores dedicados ao estudo de peles de anfbios e dos peptdeos que nelas se encontram. Em 1985, Erspamer publicou um estudo sobre as peles das espcies de Phyllomedusa e concluiu que elas eram abundantes em peptdeos, especialmente a pele da Phyllomedusa bicolor apresen-tava uma elevada concentrao de peptdeos ativos. A partir de 1989, multipli-cam-se os estudos sobre esses peptdeos e aparecem as primeiras patentes.7

    Voltando aos Katukina, em abril de 2003 ano em que se publicaram pelo menos 13 matrias sobre o kamp em jornais acreanos os Katukina encaminha-ram ento Ministra Marina Silva uma carta solicitando que o Ministrio do Meio Ambiente (MMA) coordenasse um estudo sobre o sapo-verde. A ministra acolheu a solicitao e teve incio no MMA a elaborao de um projeto de pes-quisa envolvendo antroplogos, bilogos moleculares, mdicos e herpetlogos, entre outros profissionais. A expectativa, de ndios e pesquisadores, era que tais estudos pudessem contribuir para regulamentar o uso do kamp por no-ndios e, ao mesmo tempo, assegurar benefcios econmicos para seus usurios tradi-cionais.8 Dado que outras populaes indgenas tambm usam o kamp, o proje-to demandado pelos Katukina ao MMA foi planejado para ser desenvolvido en-tre eles prprios e entre os Yawanaw e Kaxinaw, abrangendo paulatinamente outros detentores tradicionais dos conhecimentos sobre o sapo-verde.

    ***

    Como no poderia deixar de ser, tamanha divulgao das propriedades, be-nefcios e vantagens, reais ou imaginrias, das aplicaes do kamp entre os no--ndios ricocheteou entre os Katukina. Agora havia brancos, muitos deles, inte-ressados em experimentar, usar e comercializar o kamp.

    No cenrio regional, repercusses sociais e polticas desse protagonismo dos Katukina no que diz respeito ao kamp aparecem e afetam as relaes intert-nicas e tambm as relaes dos Katukina com membros de agncias governa-mentais e no governamentais. Em Rio Branco, em janeiro de 2005, no foram

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    poucas as vezes que ouvi, de primeira ou segunda mo, que lideranas de outros grupos indgenas estariam contrariadas com os Katukina pelo fato de estarem se firmando, na regio e nacionalmente, como os legtimos conhecedores do kamp. Havia, inclusive, a desconfiana (e a previsvel insatisfao) de que o MMA de-senvolveria o projeto exclusivamente entre eles. Talvez no seja excessivo dizer que furtivamente havia uma crtica ao monoplio do kamp pelos Katukina. Monoplio, diga-se de passagem, que os Katukina no exercem, visto que o primeiro a aplicar kamp em paulistanos foi um seringueiro, Francisco Gomes, que viveu entre os Katukina na dcada de 1960, entre os quais aprendeu a fazer uso da secreo da r. Hoje um de seus filhos faz aplicaes em Braslia, mas diz ter clientes em vrias capitais brasileiras.9 No mais, alm dos Katukina, h ndios de outras etnias, tambm oriundas do Acre como os Kaxinaw , apli-cando kamp em moradores da cidade de So Paulo.

    O suposto monoplio katukina ainda menos exercido no Acre, onde a co-mercializao da aplicao de kamp tem envolvido menos os ndios que local-mente parecem no ter tanto espao para comercializar a aplicao da secreo e muito mais os brancos. Alm disso, at onde pude saber, os adeptos de religies ayahuasqueiras, como o caso do Santo Daime e da Unio do Vegetal, tm feito amplo uso e divulgao do kamp dentro e fora do Acre.

    ***

    De volta s aldeias, uma das primeiras repercusses que a fama do kamp entre os no-ndios acabou promovendo foi justamente em torno da existncia de especialistas katukina na aplicao da secreo. Inicialmente alguns jovens foram requisitados para fazerem aplicaes em no-ndios que os visitavam nas aldeias da TI do rio Campinas ou na cidade de Cruzeiro do Sul, da qual bastan-te prxima, e mesmo em lugares mais distantes, como em So Paulo. A concep-o katukina de que a secreo do kamp veicula no apenas suas propriedades bioqumicas per se, mas tambm as qualidades morais daquele que o aplica, no difcil imaginar, escapou completamente aos usurios no-ndios e facilitou a difuso da aplicao. Afinal, qualquer katukina, independentemente de seus atributos morais, tornou-se ento habilitado a aplic-lo, pois passou a ser re-quisitado para tanto ao menos entre os no-ndios, pois entre os Katukina o regime de aplicao tradicional permanece em vigor.

    Ao mesmo tempo, a demanda urbana, sobretudo aquela vinda dos grandes centros, pela secreo do sapo verde aproximou o kamp do xamanismo. Uma tentativa, feita em 2003, de levar um velho rezador10 katukina para So Paulo, para aplicar kamp em clientes de uma clnica de terapias alternativas, fracassou,

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    mas d uma ideia das transformaes que o uso do kamp por no-ndios aca-bou promovendo. Em maro de 2005, um katukina, filho do rezador mencio-nado acima, apresentou uma palestra sobre o kamp no I Encontro Brasileiro de Xamanismo, realizado na cidade de So Paulo. No ms de abril, proferiu a mesma palestra em pelo menos quatro clnicas de terapias alternativas na capital paulistana e tambm na capital mineira. Aps as palestras eram feitas aplicaes nos interessados em conhecer o kamp. No material de divulgao das aplica-es de kamp em So Paulo, consta que a secreo do sapo-verde atua sobre a intuio, os sonhos, a terceira viso, o inconsciente e os bloqueios que impedem o fluxo de energia vital. O vocabulrio usado sugere claramente que o kamp passa por um processo de xamanizao no meio urbano.

    Entre os Katukina, ao contrrio do que ocorre entre outros grupos de lngua pano que tambm usam a secreo do sapo-verde, como o caso dos Yaminawa11, os especialistas xamnicos no so mais habilitados do que outras pessoas a apli-carem o kamp. Se eventualmente o aplicam, fazem-no muito mais por seus atri-butos morais, como foi exposto acima, do que por quaisquer credenciais xamni-cas que ostentem. O exemplo das transformaes recentes no uso da secreo da Phyllomedusa fica ainda mais ilustrativo quando se sabe que o rezador que iria a So Paulo fazer as aplicaes o mesmo homem, sobre o qual escrevi acima, que nunca tomou kamp e, portanto, nunca frequentou a floresta em busca de caa.

    Voluntria ou involuntariamente a valorizao estrangeira do kamp acabou promovendo alguns jovens katukina condio de especialistas na aplicao da secreo e xamanizando-a. Essas transformaes recentes causam certa estra-nheza aos Katukina, pois, em alguma medida, subvertem a forma tradicional de aplicao. Primeiramente, porque o que chancela um homem a ser um aplicador de kamp seu desempenho como caador, no como mero manipulador da se-creo do sapo-verde. Igualmente, o que chancela uma mulher como aplicadora seu bom desempenho nas atividades que so prprias de seu gnero. A eleva-o de alguns rapazes ao posto de especialistas em kamp entre os brancos cria zonas de atritos entre os prprios katukina, pois o kamp passou a ter valor de mercado. Em segundo lugar, ainda da perspectiva nativa, causa estranheza que entre os brancos as aplicaes de kamp estejam sendo feitas sem o devido jejum noturno e a qualquer hora. Em poucas palavras, de forma distanciada da prtica que tem culturalmente constituda.

    parte as incongruncias e os descompassos entre a forma nativa e a forma neoxamnica de uso da secreo do kamp, a demanda urbana do kamp tem en-tre os Katukina outras repercusses, possivelmente to surpreendentes quanto as j descritas.

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    Uma delas que o uso do kamp, nos ltimos anos, aumentou muitas vezes no s entre os brancos, mas entre os prprios Katukina. Em minhas ltimas permanncias em campo, muitas pessoas, jovens e adultos, exibiam em seus bra-os cicatrizes recentes das aplicaes. No que, em anos anteriores, o uso do kamp estivesse em decadncia, mas era feito com mais discrio e com maior intervalo entre as aplicaes. De certa forma, parece-me bastante possvel que a cobia dos brancos pelo kamp, parte os problemas poltico-econmicos que encerra, elevou a autoestima dos Katukina. Agora eles exibem em seus corpos as queimaduras, nas quais foi depositada a secreo do kamp, como quem exibe parte de seu prprio conhecimento. A euforia chegou a ponto de um rapaz de aproximadamente 35 anos, que nunca havia tomado o kamp (o nico que co-nheci), criar coragem e receber algumas aplicaes do emtico, apesar de seus fortes efeitos colaterais. O rapaz foi o nico que conheci que nunca caou, e nem pretende iniciar-se agora nesta atividade. Ele disps-se a receber o kamp para experimentar o bem-estar que as pessoas relatam aps a aplicao e que tem tanto atrado os brancos. A curiosidade dos brancos acabou por despertar sua prpria curiosidade.

    No resta dvida de que os Katukina elevaram o kamp condio de sinal diacrtico um marcador vistoso da identidade do grupo. Mais que uma subs-tncia capaz de livrar homens e mulheres de condies negativas, como o azar na caa ou indisposies e fraquezas diversas (entendidas como preguia), o kamp tem facilitado aos Katukina a afirmao positiva de sua identidade.

    O aumento do uso do kamp entre os Katukina nos ltimos anos torna-se ainda mais surpreendente quando se sabe que coincide com a diminuio da atividade de caa. Se kamp e caa sempre andaram juntos, como agora tomam rumos distintos? Os primeiros anos deste sculo, nos quais o kamp ganhou notoriedade nacional, coincidem com o incio das obras de asfaltamento da BR-364 no trecho que separa Rio Branco de Cruzeiro do Sul. A rodovia atravessa por dezoito quilmetros, de leste a oeste, a TI do rio Campinas. Como escrito no incio, dos grupos indgenas da regio, os Katukina foram seguramente o mais impactados pela pavimentao da rodovia, que teve incio no final da dcada de 1990, e viu decrescer vertiginosamente seu estoque de caa. Hoje os homens se dispem a receber aplicaes de kamp para aliviarem indisposies diversas, para se sentirem vigorosos, no necessariamente para se embrenharem na mata procura de caa. Foi preciso certa reviso das formas tradicionais do uso do kamp para adequ-las s condies atuais. As aplicaes do kamp persistem, porm em menor nmero agora, mais condizentes com suas atuais condies ecolgicas. Qualquer pessoa admite que nem trezentas aplicaes de kamp faria, nos dias de hoje, um homem ser bem-sucedido em suas expedies de caa como

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    foram outros caadores em tempos passados. O kamp outrora ajudava-os a ob-ter uma percepo mais fina do ambiente: a ouvir o mnimo rudo de animais deslocando-se na floresta, a farej-los a distncia, a enxergarem-nos camuflados entre arbustos e ramagens, alm de permitir uma viso precisa para no errarem a mira de suas armas como h 80 anos registrou o missionrio francs citado no incio. Para que tal percepo to acurada dos mnimos sinais deixados pelos bichos possa, de fato, persistir preciso antes que eles existam na mata, se eles no existem, h pouco a fazer. A possibilidade de os Katukina continuarem a fazer suas superaplicaes de kamp para empreenderem caadas s se d na Terra Indgena do rio Gregrio, distante de centros urbanos e apenas indireta-mente afetada pelas obras de pavimentao da rodovia que corta toda a TI do rio Campinas.

    Como espero ter deixado claro, a observao anterior no encerra, contudo, qualquer nota pessimista sobre a persistncia do uso do kamp entre os Katukina. As atuais condies ecolgicas fizeram decrescer o nmero de pontos que cada pessoa se dispe a receber de uma nica vez, visto que os animais de caa ra-reiam atualmente na TI do rio Campinas. De todo modo, a existncia da TI do rio Gregrio atualmente assegura no s uma reserva de estoque faunstico, qual os Katukina de fato recorrem em suas visitas de vero aos parentes, mas tambm, indiretamente, como uma reserva de uso do kamp como estimulante cinegtico. Alm disso, no h qualquer dvida de que a valorizao do kamp pelos brancos, moradores de cidades prximas ou de distantes centros urbanos, acabou por incrementar o uso feito pelos prprios Katukina, para no falar de outros grupos indgenas da regio.12 O nmero de pontos feitos a cada apli-cao decresceu, mas a frequncia das aplicaes aumentou. Agora os Katukina tm as marcas das aplicaes em seus corpos tambm como provas da antigui-dade e da continuidade do uso que fazem da secreo do sapo-verde, que querem cada vez mais como seu.

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    Notas

    Apresenta-se aqui uma verso ligeiramente modificada do artigo publicado, sob o mesmo ttulo, na Revista do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, nmero 32, 2005, pp. 254-267. O ttulo pretende dar conta tanto das diferentes formas de falar e grafar o nome da Phyllomedusa sp. quanto da diversidade dos usos que, contemporaneamente, se tem feito da sua secreo. A grafia como kampu corresponde ao modo kaxinaw de designar as espcies de Phyllomedusa. Aos Katukina cor-responde a grafia kamp, com acento tnico na ltima slaba. Nenhum dos dois grupos tem ainda padronizada sua grafia (um trabalho que os grupos indgenas comearam a fazer h pouco tempo com o apoio da Comisso Pr-ndio do Acre), de modo que podem estar grafando diferentemente um mesmo som. No que diz respeito forma kamb, entendia-a, at pouco tempo atrs, como uma tentativa de aportuguesamento da palavra katukina por parte dos brancos que agora esto usando e divulgando a secreo do sapo-verde. Contudo, o antroplogo Terri Valle de Aquino (com. pes-soal, 2005) ouviu de Raimundo Luiz (um velho yawanaw) que kamb seria a forma antiga como os Katukina designavam as espcies de Phyllomedusa, a palavra inclusive consta de uma antiga msica katukina. Isso faz os fatos ainda mais interessantes, pois, neste caso, os brancos estariam retomando a forma arcaica como os Katukina designavam o sapo-verde. Agradeo evidente-mente sem responsabiliz-los pelos erros e imperfeies a Bia Labate e Terri Valle de Aquino a leitura de uma verso anterior e a disponibilizao de informaes.

    1Iniciei minha pesquisa com os Katukina, das Terras Indgenas do rio Campinas e do rio Gregrio, no Acre, em 1991 e, desde ento, passei diversas temporadas em campo.

    2 Uma evidncia deste consrcio entre o kamp e as cobras peonhentas seria o fato de que, ao contrrio do que fazem com outros anfbios, as cobras cospem o kamp, ao invs de engoli-lo.

    3 Dada a fragilidade da legislao brasileira no que se refere proteo dos conhecimentos tradicionais como analisam Azevedo e Moreira (2005) , optei por omitir detalhes tcnicos da coleta da secreo do kamp. O que foi aqui registrado est amplamente difundido em outras publicaes.

    4 Os Katukina mencionam ainda duas outras formas de uso do kamp. Uma delas inclua as-pirar a secreo cristalizada. Trituravam-na e aspiravam, como se fosse rap , mas sem mistur-la com tabaco. Os Katukina podiam tambm ingeri-la. Neste caso, o kamp era colocado dentro de um recipiente com gua e agitado. Ele expelia sua secreo dentro dgua. Ento era retirado dali e a secreo diluda em gua era bebida. Atualmente, as duas formas de uso do kamp, que atendem exclusivamente a fins cinegticos, foram abandonadas. Velhos katukina ainda vivos dizem que chegaram a cheirar a secreo do kamp, mas no a ingeriram. Esta ltima forma teria entrado em decadncia h mais tempo. Os Yawanaw tambm usavam cheirar e beber da secreo do kamp, conforme Prez Gil (1999: 93-4).

    5 Para maiores informaes sobre o incio da difuso do uso do kamp em grandes centros urbanos, ver Lopes (2000) e Lima e Labate (2008).

    6 Agradeo ao antroplogo Marcelo Piedrafita Iglesias a gentileza de ter me cedido seu arqui-vo sobre a presena do kamp na imprensa.

    7 Este pargrafo resume de modo bastante breve os estudos farmacolgicos feitos sobre as propriedades das peles das espcies do gnero Phyllomedusa e reproduz as informaes contidas em Carneiro da Cunha (2005). Uma verso mais detalhada da histria das pesquisas bioqumicas sobre a Phyllomedusa bicolor pode ser encontrada em outro artigo da mesma autora, ver Carneiro da Cunha (2009).

    8 Fao referncia aqui ao Projeto Kamp: integrando o uso tradicional da biodiversidade pesquisa cientfica e ao desenvolvimento tecnolgico, organizado pelo Ministrio do Meio Ambiente atendendo demanda de proteo de seus conhecimentos sobre a utilizao do kamp encaminhada pelos Katukina. A realizao do referido projeto interrompeu-se entre 2007 e 2008, em virtude, entre outras coisas, da falta de acordo com os cientistas. Sobre as repercusses do Projeto Kamp entre os Katukina ver Martins (2006) e Lima (2009).

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    9 Conforme consta na matria intitulada Cobiado veneno publicada no site O Eco em 03 de abril de 2005: http://arruda.rits.org.br/ .

    10 Os Katukina diferenciam seus especialistas xamnicos: existem aqueles que eles traduzem como rezadores (shoitiya) e pajs (romeya). Para maiores detalhes sobre a atuao de ambos, ver Lima (2000).

    11 Os Yaminaw recebem aplicaes de kamp das mos do koshuiti, cf. Calvia (1995).12 Em 2005, fui informada, em Cruzeiro do Sul, de que outros grupos indgenas da famlia

    lingustica pano que moram na regio, como os Nuquini, os Poyanaw e os Arara, estavam reto-mando o uso do kamp que haviam abandonado h dcadas.

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    Durante o sculo XX, com a institucionalizao da cincia no Brasil, antro-plogos, bilogos, farmacuticos, bioqumicos e botnicos, entre outros, cons-tituram laos de reciprocidade (negativa ou positiva) com as populaes locais da Amaznia. Dentro desse contexto, eles sempre tiveram acesso aos elementos que constituem a territorialidade dos povos indgenas e tradicionais: os seus recursos naturais (plantas, animais, paisagens etc.) e os saberes associados ao manejo nativo desses bens.Mais recentemente, com o questionamento das im-plicaes ticas dessas relaes, teve incio um movimento de reconhecimento dos direitos intelectuais e territoriais das populaes locais (levado a diante, in-clusive, por muitos desses pesquisadores) que culminou no debate internacional sobre o valor dos conhecimentos tradicionais associados para a conservao da biodiversidade, tema que se inseriu numa agenda de debates sobre assuntos correlatos: oestatuto jurdico dos recursos genticos, a repartio de benefcios e os direitos intelectuais. Esse debate culminou na promulgao da Conveno so-bre a Diversidade Biolgica (CDB), em 1992, acordo internacional que instituiu trs princpios fundamentais que passaram a servir de referncia internacional: a soberania dos Estados-Naes sobre os seus recursos genticos; o princpio de preservao dos conhecimentos tradicionais associados ao manejo da biodiver-sidade1; e a repartio de benefcios em caso de acesso. Desde ento, os pases signatrios tm buscado cada um ao seu tempo e sua maneira colocar em prtica esses princpios por meio da promulgao de legislaes nacionais.

    A instituio do Conselho de Gesto do Patrimnio Gentico (CGEN), em 2001, como a instncia governamental responsvel simultaneamente pela formulao e aplicao de diretrizes jurdico-governamentais que se referem a

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    A inveno jurdico-governamental do Patrimnio Gentico e dos CTA:

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    esse tema2, tem afetado mais ou menos a vida tanto dos pesquisadores como das comunidades indgenas e tradicionais da Amaznia. Apesar do surgimento de redes e grupos de pesquisa voltados para o entendimento dos efeitos da regula-mentao na vida dos povos indgenas e as suas formas de agenciamento, exis-tem poucos estudos etnogrficos sobre os cientistas e as instituies governa-mentais responsveis pela traduo dos princpios da CDB e sua transformao em legislaes nacionais. Sabemos muito pouco sobre a prtica dos pesquisado-res que atuam nos pases signatrios da CDB (como o Brasil) e a forma como as suas relaes com as populaes locais foram ou no afetadas3. Sabemos menos ainda sobre como vem ocorrendo a concepo desses dois novos objetos jurdi-co-governamentais o patrimnio gentico e os conhecimentos tradicionais associados (CTA) no cotidiano dos rgos governamentais.

    Neste ensaio, pretendo apresentar reflexesinicias sobre uma etnografia re-alizada no CGEN, no ano de 2008. Os eventos que antecederam a instituio do CGEN j foram amplamente comentados na literatura especializada e no sero objetos de discusso neste texto4. Da mesma forma, no pretendo avaliar ou dis-cutir se esse rgo deveria ou no existir ou como ele deveria ser, mas apresentar ao leitor uma descrio etnogrfica do seu funcionamento e contribuir, desta forma, para um melhor entendimento da maneira como os princpios da CDB vm sendo traduzidos e aplicados pelo governo brasileiro.

    Este estudo etnogrfico se insere em uma reflexo mais ampla sobre as formas modernas de governamentalidade5. Pretendo descrever os elos media-dores que permitem a transposio do mundo l fora para o mundo interno do Conselho, onde as diretrizes so concebidas e as autorizaes concedidas. Veremos aqui que essa transposio envolve um deslocamento de sentidos per-meado por prticas de traduo que objetivam a realidade de forma a confor-m-la lgica da governamentalidade, transformando uma multiplicidade de objetos plantas, extratos, enzimas, saberes e prticas culturais em objetos jurdico-governamentais: o patrimnio gentico e os conhecimentos tra-dicionais associados. Nesse processo, como veremos, atuam diversos atores humanos e no-humanos em um movimento de transformao/translao por meio do qual a relao histricaentre pesquisadores brasileiros e comunidades locais v-se reescrita em documentos que circulam no CGEN. Esse movimento permite que essa instituio possa agir distncia da mesma forma que as Centrais de Clculo mencionadas por Latour (2000) ao fornecer os elementos necessrios para a inveno jurdico-governamental da regulamentao e dos objetos que esto sendo regulamentados.

    Este ensaio foi escrito a partir da proposta de seguir as associaes que nos le-vam de uma localidadepara outras localidades,tempos eagncias. Essa atividade

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    pode tomar a forma de uma redequando a transferncia de informaes envol-ve certa parcela de transformao, o que ocorre quando abordamos os elos in-termedirios sejam eles humanos ou no humanos como mediadores. Essa perspectiva est diretamente relacionada a uma determinada forma de pensar o Estado, na qual este no surge como uma coisa um objeto fixo e localizado (em termos institucionais ou geogrficos) , mas como um espao heterogneo marcado pelo encontro de tcnicas, discursos e prticas que, na maioria das ve-zes, possuem uma relao tensa entre si. Conforme afirmou Aretxaga (2003), a iluso mistificadora de um centro de poder chamado Estado deve ser desco-berta para que as relaes de poder e saber que esto na origem do exerccio de governo nas sociedades modernas possam ser analisadas a partir de uma aborda-gem etnogrfica. Assim, no estou interessado no Estado enquanto instituio, mas nas problemticas governamentais que esto para alm do Estado e nas for-mas de governamentalidade que so forjadas por uma rede de atores muito mais ampla e heterognea (Rose e Miller 1992, 1995).

    Em um primeiro momento, vou descrever cenas que retratam situaes que ocorrem no cotidiano do CGEN, acompanhando o trabalho realizado por uma diversidade de atores em diferentes espaos-tempos: uma reunio do plenrio do Conselho; os eventos de divulgao do novo marco regulatrio; a participa-o dos especialistas na aplicao e concepo dos instrumentos jurdicos; e a elaborao de um pedido de autorizao por um pesquisador-usurio. Apesar das cenas retratarem uma multiplicidade de situaes, elas esto interligadas em rede, fornecendo uma viso etnogrfica de como a regulamentao vem sendo pensada e aplicada pelo governo brasileiro. Na concluso, apresentarei uma dis-cusso sobre ontologia que ainda pretendo desenvolver melhor no futuro, o que torna este texto um ponto de partida ainda em aberto.

    O Plenrio do CGENAlm de conceber as suas diretrizes, o CGEN precisa aplic-las em casos

    concretos que so analisados nas plenrias. Essas reunies costumam ocorrer uma vez por ms, na sede da instituio, em Braslia. Participam dessas reunies os membros do Conselho6, a equipe tcnica do Departamento de Patrimnio Gentico e uma pequena plateia composta por pesquisadores, empresrios e pes-soas interessadas no tema. A nossa histria tem incio em uma dessas plenrias, mais precisamente, em uma reunio realizada em 2008.

    Entre os processos que estavam sendo avaliados nessa plenria, encontramos o nosso fio de Ariadne: um pedido de autorizao de acesso ao Patrimnio Gentico e ao Conhecimento Tradicional Associado para fins de bioprospeco

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    requerido por um pesquisador de uma universidade federal da regio Norte. Na ocasio, a conselheira-relatora do processo, umapesquisadora da Embrapa, havia preparado a sua relatoria por escrito e fez circular esse documento entre seus colegas. Os membros do plenrio tambm dispunham de um relatrio deno-minado Nota Tcnica resultado da traduo, feita pelo tcnico responsvel, de quatro pastas gigantescas com mais de duas mil pginas, na qual foi inscrita a tramitao do pedido de autorizao. O kit de documentos tambm acompanha-va resolues, orientaes tcnicas, decretos, a Medida Provisria e uma cpia da CDB. Os conselheiros j haviam analisado essa documentao e feito algumas anotaes. Todas aquelas Notas, sejam as suas prprias ou as que foram escri-tas por terceiros, representavam a sua referncia principal para votar e deliberar sobre o pedido de acesso. Afinal, diferente do funcionrio do DPG, dos inte-grantes do Comit de Avaliao de Processos (CAP) e da Conselheira-Relatora, eles no tiveram acesso ao processo e foram obrigados a confiar nas tradues feitas por terceiros para tomar suas decises. As suas anotaes pessoais, por ou-tro lado, faziam parte de mais um movimento de traduodos pontos ambguos de toda aquela documentao.

    Conforme a apresentao oral da relatora e as notas tcnicas e pareceres en-tregues aos conselheiros, o pedido de autorizao era referente a uma pesquisa realizada por pesquisadores das reas de farmcia, botnica e bioqumica, cujo objetivo principal era a produo de fitoterpicos a partir de plantas medici-nais usadas por uma comunidade de ribeirinhos localizada na regio do alto rio Amazonas. O projeto previa a realizao de um levantamento etnofarmacol-gico, a coleta das plantas medicinais e a conduo de testes farmacolgicos em uma rede de laboratrios. O Termo de Anuncia Prvia e os Contratos de Repartio de Benefcios firmados com o representante poltico da comunida-de tinham sido anexados ao processo e os pareceres do Comit de Avaliao de Processos, do tcnico do DPG e da conselheira-relatora eram favorveis concesso da autorizao.

    A votao foi realizada logo aps a apresentao do parecer da relatora e o pedido foi aprovado por unanimidade. Aquele era o final de um longo trajeto, no qual diversos elementos humanos e no-humanos atuaram como mediado-resde uma deciso do Conselho, publicada no dia seguinte no Dirio Oficial da Unio, na forma de Deliberao, documento assinado pelo Ministro do Meio Ambiente. Nos dias seguintes, uma autorizao seria enviada para o pesquisador requerente. Desta forma, dava-se fim a um longo processo de tramitao do pe-dido de autorizao no DPG: uma longa trajetria de dois anos, tendo em vista que o caso foi considerado exemplar por ser o primeiro pedido de autorizao de acesso para fins de bioprospeco envolvendo conhecimentos tradicionais

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    associados. Conforme me explicou mais tarde uma funcionria do DPG, aquele caso tinha sido usado como referncia para pensar controvrsias que ainda no haviam atingido um consenso no Conselho. Da mesma forma, os encami-nhamentos tomados durante a tramitao desse processo serviram de referncia na anlise de outros pedidos semelhantes.

    ***

    Neste ensaio, busco analisar o CGEN a partir da sua materialidade prti-ca,7 com nfase no papel desempenhado pelos documentos e outros objetos que perpassam todas essas redes (plantas, substncias, enzimas etc.), elementos no--humanos que geralmente so percebidos como simples coadjuvantes. Ao anali-sar essa cena, que retrata uma reunio do Conselho, percebemos a importncia dos textos e documentos na constituio do sujeito-conselheiro: esses materiais fazem parte da performance burocrticaque os constituem enquanto sujeitos de um determinado tipo. Da mesma forma que o homo-economicus existe de fato, mas no como um agente no-histrico e, sim, como o resultado de um processo de configurao8, podemos dizer que os atores governamentais no so entida-des abstratas, mas subjetividades construdas em rede. Isso significa que com-petnciaou capacidade so qualidades adquiridas por meio da incorporao de plug-ins que nos permitem ver e ter uma opinio sobre determinado assunto9. Sem os instrumentos de coleta, processamento, clculo e inscrio das informa-es, os atores so incapazes de planejar e decidir sobre fenmenos que esto distantes do lugar onde as suas decises so tomadas e qualquer ao organizada seria impossvel (Callon 2002: 191). Um aspecto importante que caracteriza o papel desempenhado pelos conselheiros e pelos documentos que eles so, si-multaneamente, apenas um elo numa rede mais ampla de coisas e pessoas, como tambm a expresso da rede em ao, em um tempo-espao determinado.

    Oficinas e Eventos de Divulgao da LegislaoA plateia, composta por 51 representantes de comunidades tradicionais e in-

    dgenas provenientes de 16 estados do Brasil, aguardava em silncio o incio de uma pea de teatro encenada por funcionrios do DPG. O palco improvisado no salo principal do Centro de Formao Vicente Canhas, instncia do Conselho Indigenista Missionrio, no dispunha de qualquer recurso de cenografia, alm de quadros retratando eventos histricos do Movimento Indgena. Os atores improvisados tambm no dispunham de qualquer figurino, apesar de contarem com um diretor especialista em teatro do oprimido.

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    A primeira cena da pea retratou a conversa entre um pesquisador do setor de biotecnologia com um diretor de uma grande multinacional. O empresrio, num tom autoritrio, mandou seu funcionrio ir at a comunidade e percor-rer suas florestas em busca de plantas medicinais. O pesquisador aceitou as or-dens sem questionamento e se despediu. Na sua sada, o empresrio esbravejou que ele precisava ter um retorno imediato dos recursos investidos na expedio cientfica.

    A segunda cena retratou o mesmo pesquisador percorrendo florestas imagi-nrias. Ele procurava por plantas medicinais e chegou a recolher algumas amos-tras, que foram etiquetadas e armazenadas conforme os procedimentos de coleta botnica, para depois serem transportadas at o seu laboratrio. Chegando l, ele conduziu inmeros testes de atividade biolgica com o auxlio de poderosas mquinas, passou certo tempo tentando evidenciar a composio bioqumica das espcies coletadas, mas sem chegar ao resultado esperado.

    Alguns meses depois, conforme informou o narrador da histria, o nos-so personagem-pesquisador contou para seu chefeque, infelizmente, nenhuma substncia nova havia sido encontrada. O empresrio gritou novamente que muito dinheiro tinha sido investido na expedio, explicou ao seu subordina-do que a sua empresa no poderia investir milhes em pesquisas sem chegar a qualquer resultado e concluiu dizendo que eles precisavam descobrir algo que pudesse ser traduzido em patentes e produtos. O personagem-pesquisador e seu chefe saram de cena.

    Enquanto isso, na comunidade, conforme apresentou o narrador da histria, Dona Maria mandou seu filho ir at a casa de Anastcia pedir para ela algum remdio para curar a doena que afligia seu neto. Dois funcionrios do DPG entraram em cena. Um deles desempenhava o papel da Comadre Anastcia, conhecedora dos remdios do mato, enquanto o outro lhe relatava a doena do sobrinho, pedindo informaes sobre plantas que poderiam ser usadas para curar a sua molstia. Anastcia lhe repassou algumas folhas de uma erva que ela cultivava em seu canteiro de plantas medicinais. Os atores saram de cena e o narrador anunciou que a me do menino preparou um ch com as folhas e em poucos dias ele j estava curado.

    A cena seguinte teve incio com o pesquisador percorrendo trilhas abertas no interior da mata. Em determinado momento, ele percebeu um morador da comunidade mais prxima coletando algumas plantas e se aproximou pedindo informaes. Apresentou-se e contou uma longa histria sobre o seu trabalho de pesquisa. O outrohomem expressou a sua perplexidade diante daquela lin-guagem esquisita, colocou as plantas que trazia nas mos numa sacola, virou as costas e saiu andando sem dar a menor satisfao. O pesquisador insistiu,

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    explicando que o conhecimento da comunidade era fundamental para encontrar medicamentos que poderiam salvar milhes de vidas. Sem entender muito bem o que estava acontecendo, o outro homem falou que no sabia que as plantas da floresta tinham dono e que estava levando aquela planta para sua esposa, pois um dos seus filhos estava com dor de estmago. O pesquisador insistiu novamente, explicando que a comunidade teria um retorno econmico quando o novo medicamento fosse introduzido no mercado ou, caso ele preferisse, ha-via uma verba reservada para a compra das plantas e para o pagamento de um mateiro que pudesse lhe acompanhar. Um pouco assustado com a situao (ser que ele estava fazendo algo errado?), o outro homem se indagava sobre que conhecimento era esse que ele tinha e que parecia interessar tanto aquele pes-quisador. Os dois homens saram caminhando pela floresta e a pea acabou com a voz oculta do narrador: O que voc faria numa situao como esta?.

    A plateia aplaudiu. A diretora tcnica do DPG entrou em cena e abriu a palavra aos participantes. Seguiu-se um breve silncio. Como ningum se ma-nifestou, a diretora perguntou se algum j havia vivenciado uma situao se-melhante. O cacique de uma comunidade indgena Kaingang pediu a palavra e explicou que, na sua aldeia, as coisas no funcionavam assim, pois somente os kuj (xam) so conhecedores dos venh kagta (remdios do mato) e responsveis por seu uso em rituais e curas. Uma senhora negra, proveniente de uma comuni-dade quilombola do Maranho, afirmou que j havia recebido a visita de muitos pesquisadores que pretendiam registrar as plantas conhecidas e usadas na comu-nidade e finalizou observando que, onde mora, muito comum o emprstimo de plantas para vizinhos e parentes. Seguiram-se outras falas de participantes ind-genas e de comunidades tradicionais, que relataram histrias de pesquisadores que passaram por suas comunidades. Na medida em que as pessoas relatavam suas histrias, ficou evidente que a encenao no havia contemplado a diversi-dade de situaes vivenciadas pelos participantes da oficina.

    O evento teve continuao tarde, com a organizao de Grupos de Trabalho para discutir e propor modificaes na minuta da nova legislao. A diretora tcnica do DPG props que os grupos fossem organizados aleatoriamente, o que foi explicitamente refutado pelos participantes indgenas. Apesar de reconhece-rem as comunidades quilombolas e tradicionais como parceiros importantes na reivindicao de direitos, eles afirmaram que existiam questes mais especficas relacionadas dinmica dos saberes indgenas. Os tcnicos do DPG ficaram decepcionados, pois defendiam a ideia de que grupos de trabalho mistos seriam mais eficientes na construo de um sistema comum de repartio de benefcios e de conduo de anuncia prvia em caso de acesso aos conhecimentos tradi-cionais associados. Os participantes indgenas, no entanto, insistiram na ideia

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    e acabaram se reunindo em separado dos demais. Desta forma, foram formados dois GTs compostos por participantes de comunidades quilombolas e tradicio-nais e um terceiro composto pelos participantes indgenas.

    O acompanhamento dos GTs revelou que o chamado processo de regula-mentao implicava uma srie de desentendimentos lingusticos que, naquela ocasio, emergiram, por um lado, na imposio de uma linguagem jurdica de difcil entendimento para os participantes do evento e, por outro, na insistn-cia dos representantes das comunidades em discutir questes mais amplas as quais, segundo os representantes do governo - no faziam parte da discusso. As atividades desenvolvidas durante a oficina foram permeadas por uma luta constante em torno das palavras usadas para descrever as coisas includas nessa imensa biblioteca chamada sociobiodiversidade: neste caso, o jogo de nomeao simblica dos novos objetos concebidos pelo CGEN o patrimnio gentico e os CTA apontava para uma pedagogia oculta de difcil entendimento. O mais impressionante, talvez, que a diferena cultural e lingustica foi anulada, durante a oficina, por um tempo governamental que exigia dos protagonistas da histria a anulao da complexidade da traduo em detrimento da razo de Estado: nada de ontologia, apenas imposies epistemolgicas.

    ***

    H milhares de quilmetros dali, uma funcionria do DPG deu incio ao seu trabalho de divulgao da legislao de acesso em alguma instituio de ensino e pesquisa do Norte do pas. A tcnica estava em pnico diante de uma plateia de cientistas que, apesar de a terem convidado para participar do seu congresso, no viam a sua presena no evento com bons olhos. Ela havia preparado uma apresentao em PowerPoint e deu incio ao seu trabalho de traduode noes jurdicas e governamentais para cientistas que viviam em um mundo povoado por substncias, enzimas e entidades microscpicas. No somente a tcnica no conhecia todos os pormenores do marco regulatrio, motivo pelo qual ela man-tinha consigo uma espcie de apostila com dezenas de resolues e deliberaes, como tambm entendia muito pouco da linguagem dos cientistas.

    A soluo para tanto despreparo profissional de algum que tinha ingres-sado h pouco tempo neste mundo de documentos foi seguir religiosamente a histria retratada na sua apresentao, composta por uma srie de eventos des-critos em ordem cronolgica: a assinatura da CDB (1992); a discusso legislativa (1993-2001); o evento envolvendo a assinatura de um contrato com a Novartis, multinacional do setor farmacutico (2001); a edio da MP e a criao do CGEN (2001); e a lenta formulao e reformulao dos dispositivos jurdicos do

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    Conselho (2001-2008). Essa histria j havia sido repetida muitas vezes a ponto de se tornar uma espcie de mito de origem da regulamentao e auxiliava-a a traduzir em poucas palavras eventos que ocorreram antes e que, de certa forma, explicavam a sua presena naquele congresso.

    Assim que finalizou a sua fala, a funcionria teve que responder a uma srie de questionamentos sobre a validade da legislao e do prprio Conselho. Ao mesmo tempo em que buscava defender o seu trabalho e a atuao dos seus colegas do DPG, sabia, pessoalmente, das contradies existentes na legislao e compreendia a recepo hostil doscientistas. Enquanto ouvia o relato de pes-quisadores sobre situaes absurdas vivenciadas por eles na relao com o que chamavam burocracia governamental, a funcionria mal conseguia esperar o momento de voltar para Braslia. Afinal, o que ela poderia fazer para responder ou mudar a situao? No seu mundo, que tambm o mundo do CGEN, os tcnicos deveriam atuar como tcnicos, aplicando as diretrizes sem question--las. Por outro lado, esses personagens ocultos da mquina estatal continuavam tendo que dar conta de demandas polticas, inquietaes e divergncias ticas alm de sua competncia.

    ***

    Os eventos descritos na segunda cena retratam uma parte importante do trabalho desenvolvido pelos tcnicos do DPG: a divulgao da legislao de acesso nos diferentes setores da sociedade civil que, de alguma forma, foram afetadospelo novo marco regulatrio. Esse trabalho destinado tanto para as comunidades tradicionais e indgenas como para os cientistas e instituies empresariais envolvidas de alguma forma em atividades de acesso ao patri-mnio gentico e/ou aos CTA. No caso das comunidades, a divulgao vem sendo feita atravs de oficinas de qualificao, sendo que, entre 2005 e 2008, foram realizadas 37 oficinas em diferentes regies do Brasil, contando com a participao de cerca de 1500 pessoas, todos eles representantesde comuni-dades indgenas e tradicionais. No caso dos cientistas, os tcnicos do DPG participaram como palestrantes, entre 2003 e 2008, em 219 eventos promo-vidos por ONGs e instituies de ensino e pesquisa. A realizao do trabalho de divulgao da legislaotem sido uma ao constante do CGEN desde sua criao, acompanhando o crescimento do nmero de autorizaes concedidas por essa instituio. Isso revela que esse rgo governamental no s depende da participao tanto das comunidades quanto dos cientistas para ter efic-cia, como tambm revela que essa participao implica a capacidade do CGEN detraduziros objetos do seu marco regulatrio o Patrimnio Gentico e

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    Hibridismo, traduo e agncia compsita

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    o CTA para um pblico composto por pessoas que falam outras lnguas e vivem em mundos diferentes.

    Assim, existem trs pontos que eu gostaria de observar sobre os eventos descritos nos pargrafos anteriores. O primeiro que os documentos no so os nicos instrumentos utilizados para objetivar eventos, coisas e pessoas. No caso das oficinas de consulta pblica que acompanhei, a pea de teatro aju-dou os tcnicos do DPG a expressar um evento fictcio que, de certa forma, representa uma espcie de mito de origem da regulamentao do acesso: a biopirataria. Apesar de regras e diretrizes serem elaboradas para regulamentar as situaes de acesso, elas so concebidas tendo como referncia situaes hipotticas. A pea foi construda a partir de uma generalizao do que seria a dinmica de produo e circulao de saberes nas comunidades, tendo como referncia um modelo to abstrato quanto a noo de CTA. A questo que o processo governamental trabalha com a necessidade