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Fundação Alexandre de Gusmão Coleção Helio Jaguaribe Introdução ao Desenvolvimento Social Página 2 O Nacionalismo na Atualidade Brasileira Página 304 Estudos Filosóficos e Políticos Página 685

Coleção Helio Jaguaribe - FUNAGfunag.gov.br/loja/download/colecao-helio-jaguaribe.pdf · Para o pensamento clássico a sociedade era um fato natural, decorrente da natural sociabilidade

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  • Fundao Alexandre de Gusmo

    Coleo

    Helio Jaguaribe

    Introduo ao

    Desenvolvimento

    Social

    Pgina 2

    O Nacionalismo

    na Atualidade

    Brasileira

    Pgina 304

    Estudos

    Filosficos e

    Polticos

    Pgina 685

  • Introduo ao Desenvolvimento Social

  • ministrio das relaes exteriores

    Ministro de Estado embaixador luiz alberto Figueiredo machado Secretrio-Geral embaixador eduardo dos santos

    Fundao alexandre de gusmo

    Presidente embaixador Jos Vicente de s Pimentel

    Instituto de Pesquisa de Relaes Internacionais

    Diretor embaixador srgio eduardo moreira lima

    Centro de Histria eDocumentao Diplomtica

    Diretor embaixador maurcio e. Cortes Costa

    Conselho Editorial da Fundao Alexandre de Gusmo

    Presidente: embaixador Jos Vicente de s Pimentel

    Membros: embaixador ronaldo mota sardenberg embaixador Jorio dauster magalhes embaixador gonalo de Barros Carvalho e mello mouro embaixador Jos Humberto de Brito Cruz ministro lus Felipe silvrio Fortuna Professor Clodoaldo Bueno Professor Francisco Fernando monteoliva doratioto Professor Jos Flvio sombra saraiva

    a Fundao Alexandre de Gusmo, instituda em 1971, uma fundao pblica vinculada ao Ministrio das Relaes Exteriores e tem a finalidade de levar sociedade civil informaes sobre a realidade internacional e sobre aspectos da pauta diplomtica brasileira. sua misso promover a sensibilizao da opinio pblica nacional para os temas de relaes internacionais e para a poltica externa brasileira.

  • Helio Jaguaribe

    Braslia 2013

    Introduo ao Desenvolvimento Social

    As perspectivas liberal e marxista e os problemas da

    sociedade no repressiva

  • Direitos de publicao reservados Fundao alexandre de gusmo ministrio das relaes exteriores esplanada dos ministrios, Bloco H anexo ii, trreo 70170-900 Braslia-dF telefones: (61) 2030-6033/6034 Fax: (61) 2030-9125 site: www.funag.gov.br e-mail: [email protected]

    Equipe Tcnica:

    eliane miranda PaivaFernanda antunes siqueiragabriela del rio de rezende guilherme lucas rodrigues monteiroJess nbrega CardosoVanusa dos santos silva

    Projeto Grfico: daniela Barbosa

    Capa:Yanderson rodriguesFoto de Helio Jaguaribe, por ernesto Baldan.

    Programao Visual e Diagramao: Grfica e Editora Ideal Ltda.

    impresso no Brasil 2013

    Ficha catalogrfica elaborada pela bibliotecria Ledir dos Santos Pereira, CRB-1/776.depsito legal na Fundao Biblioteca nacional conforme lei n 10.994, de 14/12/2004.

    editora Paz e terra s.a., 1979.os direitos autorais desta obra foram cedidos gratuitamente pela editora Paz e terra s.a., para edio comemorativa especial em homenagem a Helio Jaguaribe.

    J24 Jaguaribe, Heliointroduo ao desenvolvimento social : as perspectivas liberal e marxista e

    os problemas da sociedade no repressiva / Helio Jaguaribe. Braslia : Funag, 2013

    297 p.; 23 cm.

    isBn: 978-85-7631-453-0

    1. sociedade - estrutura. 2. desenvolvimento social. 3. liberalismo. 4. marxismo. 5. Capitalismo. 6. Comportamento social. i. ttulo.

    Cdd 302

  • A Anna Maria Jaguaribe, sociloga danova gerao, e s suas estimulantes

    ideias radicais.

  • SUMRIO

    Prefcio ...................................................................................................11

    PARTE IPRESSUPOSTOS TERICOS

    Captulo 1Estrutura geral da sociedade ..............................................................15

    A problemtica bsica .............................................................................15

    Evoluo do conceito de sociedade ......................................................16

    Os modelos funcional e dialtico ..........................................................27

    O modelo funcional-dialtico ................................................................31

    Captulo 2Os subsistemas sociais ........................................................................37

    A perspectiva funcionalista ....................................................................37

    A perspectiva dialtica ............................................................................41

    A perspectiva funcional-dialtica .........................................................50

    Captulo 3Sentido geral do desenvolvimento social ........................................61

    O subsistema participacional .................................................................61

    Diferenciao, discriminao e dependncia .....................................66

    O problema do desenvolvimento social ..............................................70

  • PARTE IIPERSPECTIVAS E EXPERINCIAS

    Captulo 4O projeto liberal ...................................................................................77

    Anlise comparativa .................................................................................77

    A filosofia liberal .......................................................................................78

    A crise do liberalismo ..............................................................................85

    Adaptabilidade do capitalismo .............................................................96

    O Welfare State .......................................................................................106

    Captulo 5O projeto marxista .............................................................................117

    Teses centrais de Marx ..........................................................................117

    A crtica do capitalismo ........................................................................121

    Teoria da revoluo ................................................................................126

    A sociedade futura..................................................................................131

    A concepo leninista ............................................................................135

    A experincia sovitica ..........................................................................142

    PARTE III ANLISE CRTICA

    Captulo 6O modelo liberal .................................................................................155

    O capitalismo contemporneo ............................................................155

    Eficincia e capitalismo .........................................................................157

    Democracia e capitalismo ....................................................................160

    Capitalismo e justia social ..................................................................162

    Capitalismo e universalidade ...............................................................167

  • Captulo 7O modelo marxista ............................................................................175

    Termos da discusso ..............................................................................175

    Os pressupostos ......................................................................................177

    A alienao ...............................................................................................179

    Bondade natural e proletariado ..........................................................181

    Materialismo histrico e contradies internas ..............................185

    A crtica do capitalismo ........................................................................188

    Teoria da revoluo ................................................................................190

    Sociedade futura .....................................................................................192

    A teoria da prxis ....................................................................................197

    Elo mais fraco ..........................................................................................199

    Revoluo ininterrupta e campesinato ..............................................202

    O partido ..................................................................................................204

    A prxis da teoria ....................................................................................207

    Captulo 8A sociedade no repressiva ..............................................................211

    A problemtica bsica ...........................................................................211

    Dimenses do problema .......................................................................213

    Indiferena acumulao de bens ......................................................218

    Indiferena acumulao de poder ...................................................222

    Interesses e valores .................................................................................226

    Viabilidade terica e emprica .............................................................232

    O processo de transio ........................................................................237

    As sociedades subdesenvolvidas .........................................................241

    A sociedade no repressiva ..................................................................246

  • Captulo 9O horizonte histrico ........................................................................255

    Os requisitos ............................................................................................255

    Nova ordenao mundial ......................................................................259

    A alternativa histrica ...........................................................................262

    Bibliografia...........................................................................................267

    ndice de assuntos ..............................................................................287

    ndice de nomes ..................................................................................291

  • 11

    PRefcIO*

    O presente estudo foi elaborado no mbito de um projeto mais amplo encaminhado, sob minha direo geral, para a anlise da situao social brasileira. No quadro desse projeto, que inclua uma anlise da marginalidade brasileira e da atuao do setor pblico na rea social, o presente estudo constitua o momento terico dessa pesquisa. Trata-se, por isso mesmo, de um trabalho autnomo, como tal concebido e redigido, que pode ser lido com completa independncia dos estudos de carter emprico a que servia de introduo terica.

    A pesquisa a que se fez referncia foi realizada sob os auspcios da Agncia Canadense para a Cooperao Internacional, em Convnio com o Conjunto Universitrio Cndido Mendes.

    Rio de Janeiro, 1978.

    H. J.

    * N.E.: As datas e os comentrios no foram atualizados, permanecendo, portanto, fiis ao original escrito em 1978.

  • PARTE I

    PRESSUPOSTOS TERICOS

  • 15

    caPtUlO 1

    eStRUtURa GeRal da SOcIedade

    A problemtica bsica

    O primeiro problema a resolver, num estudo introdutrio sobre desenvolvimento social, orientado para determinar o que signifique tal conceito, se refere questo geral da sociedade. Sejam quais forem as precises a que se chegue, o desenvolvimento social algo que se refere, ou ao conjunto da sociedade como quando dizemos que determinada sociedade mais desenvolvida que outra ou a determinada dimenso da sociedade como quando opomos desenvolvimento social a desenvolvimento econmico. Importa, assim, inicialmente, precisar o que entendemos por sociedade.

    Que uma sociedade? Como funciona e por que se mantm o vnculo associativo?

    A pergunta pela natureza ou essncia da sociedade e pelos fundamentos que determinam, ftica e normativamente,

  • 16

    Helio Jaguaribe Estrutura Geral da Sociedade

    a ordenao social, vem das origens mesmas da cogitao sobre a condio social do homem. Uma sucinta recapitulao comparativa das mais significativas respostas dadas a tal pergunta, no curso da histria, constitui um indispensvel esclarecimento prvio para a compreenso da forma pela qual, presentemente, se encontra formulada a problemtica da sociedade1.

    Evoluo do conceito de sociedade

    Para o pensamento clssico a sociedade era um fato natural, decorrente da natural sociabilidade do homem e a ordenao social decorria da necessidade de assegurar a justia, nas relaes dos homens entre si, atravs de leis apropriadas e da superviso destas pela autoridade pblica. A plis, at a hegemonia macednica e a formao do imprio de Alexandre, era a unidade social natural para os gregos, definindo, ao mesmo tempo, o universo de sua interao social e o fundamento de seus valores.

    Aristteles observar que a plis o desdobramento natural de um processo evolutivo, que a ela chega partindo da famlia e passando pela aldeia. Os homens se mantm unidos na plis porque vinculados entre si por uma forma particular de filia e atravs da sociedade se realizam como seres humanos.

    A justia a norma e o objetivo bsicos da organizao poltica. Os homens, todavia, so naturalmente desiguais. A justia e a harmonia da plis, observar Plato, dependero

    1 Vide bibliografia.

  • 17

    Captulo 1

    Estrutura Geral da Sociedade

    da medida em que as atividades e o status social de cada um corresponderem sua respectiva natureza. Da a vinculao que Plato estabelecer entre sua teoria da personalidade e a estruturao sociopoltica da sociedade harmoniosa e justa. Aqueles em que predominam os interesses apetitivos devem ser empregados na produo material das coisas. Aqueles em que predominam a vontade e a impetuosidade devem constituir a classe dos guerreiros. Aqueles em que predomina a racionalidade devem constituir o estrato dirigente, cabendo a direo suprema ao rei-filsofo.

    Com a crise da plis, a partir do sculo IV a. C., gerou- -se um grave problema para a cultura clssica. Como situar a sociabilidade humana e a fundamentao dos valores morais e jurdicos ante o fato de que a entidade que os definia havia perdido sua capacidade de autogoverno e as justificativas para suas atribuies? A resposta do homem clssico foi dada pelo cosmopolitismo tico e metafsico da era helenstico-romana. Todos os homens tm dupla cidadania: a local e a universal. H uma ordem universal, tanto nas coisas da natureza como nas coisas humanas. A razo consiste na compreenso dessa ordem e no ajustamento mesma da conduta. Da surgir o conceito de direito natural, que decorre universalmente da natureza das coisas e que dar origem, no imprio romano, ao jus gentium. A justia, ainda que eventualmente ausente numa situao dada, o princpio universal que corresponde, para as relaes humanas, ao que a harmonia csmica corresponde para a natureza. J agora, porm, os homens so entendidos como essencialmente iguais, a despeito das contingentes diferenas de classe ou de etnia.

  • 18

    Helio Jaguaribe Estrutura Geral da Sociedade

    O cristianismo continuar concebendo a sociedade como fato natural. Mas vincular a ideia de justia e de autoridade a Deus e ao seu reino. Antes do pecado, os homens viviam em estado natural de graa, no que equivalia, segundo a patrstica, idade de ouro de Sneca. Depois da queda, as relaes humanas se tornaram, insanavelmente, prejudicadas pelo pecado. Somente a cidade de Deus eternamente dotada de paz e de justia. A dos homens contingente e pecaminosa. Graas ao mistrio da encarnao do Cristo, entretanto, possvel alguma justia na Terra, mas apenas na sociedade crist. O poder do imperador uma delegao do divino para assegurar essa possvel margem de justia e se legitima na medida em que se mantm fiel lei de Deus. O objetivo do Estado, com Santo Tomaz, , imediatamente, assegurar o bem comum e, mediatamente, auxiliar a Igreja na sua tarefa de salvao dos homens.

    Com a emergncia do Estado Moderno produto e expresso da primeira fase da revoluo burguesa o poder passa a ser concebido, cada vez mais, como expresso de uma soberania autossuficiente, ao mesmo tempo em que se delineiam as primeiras formulaes de uma concepo contratualista da sociedade.

    Para Maquiavel a sociedade continua sendo um fato natural, decorrente da inata sociabilidade dos homens. O poder, todavia, entendido como produto da virtu do prncipe, manejando apropriadamente instrumentos de coero e manipulao. O poder no susceptvel de enquadramento nas normas de conduta comum. Sem embargo, o bom prncipe atende (pragmaticamente) ao interesse dos sditos, minimizando a necessidade de coero.

  • 19

    Captulo 1

    Estrutura Geral da Sociedade

    Com Hobbes, entretanto, surge a necessidade da explicao contratualista da sociedade, que perdurar at Rousseau. Os homens passam de um estado de natureza, em que todos se guerreiam mutuamente, para uma sociedade civil ordenada pelo soberano. O contrato social a forma entendida em termos analticos e no histricos mediante a qual os homens escapam do terror do estado de natureza para a ordenao civil. Mas a base desta o poder do soberano. A partir de uma viso mecanicista da realidade e do homem concebido como um ser egosta movido pelo instinto de conservao o contrato social de Hobbes representa a explicao terica e normativa da ordem jurdico-poltica. Da guerra de todos contra todos se passa a um compromisso jurdico em que so preservados os interesses fundamentais de cada um vida, propriedade, liberdade individual por acordo de todos, com recproca renncia violncia individual, em troca da outorga ao soberano do monoplio da violncia.

    As guerras de religio, sobrevindo quando j se havia configurado o novo tipo de Estado absolutista, em que no funcionavam mais os contrapesos institucionais e religiosos da Idade Mdia, geraram, entre as minorias que se sentiam ameaadas na prtica de suas crenas pelo absolutismo dos prncipes, um primeiro movimento de conteno deste. Os monarcomanos valeram-se da teoria contratual da sociedade, difundida por Hobbes, para fins opostos aos deste. O contrato social no era mais visto como fundamento ftico e normativo do absolutismo do soberano. Ao contrrio, era visto como uma delegao de poderes do povo ao prncipe, dentro de certas

  • 20

    Helio Jaguaribe Estrutura Geral da Sociedade

    condies bsicas a cuja observncia estava obrigado o prncipe,

    sob pena de perder sua legitimidade.

    No famoso documento huguenote Vindicia contra Tyrannos

    se fala de um duplo contrato. O contrato de Deus com o rei e o

    povo, que outorga autoridade ao rei sobre o povo, dentro dos

    preceitos da lei divina. E um decorrente contrato entre o rei

    e o povo, pelo qual este se obriga a obedecer quele enquanto

    aquele acatar a lei divina.

    Althusius, no sculo seguinte, manter, com modificaes,

    a teoria do duplo contrato. O primeiro estipula, a partir da

    soberania popular, as condies bsicas que devem regular o

    exerccio da autoridade pelos magistrados. O segundo contm

    o juramento de fidelidade do povo aos magistrados, dentro

    daquelas condies bsicas.

    Na linha da contrarreforma os jesutas mantero, a favor

    do catolicismo e da supremacia papal, uma argumentao

    semelhante. Suarez, embora reconhecendo, com Aristteles, que

    a sociedade um fato natural, basear a autoridade do prncipe

    num contrato com o povo, fundado nos preceitos divinos. A

    violao desse contrato libera o povo do dever de obedincia.

    A ideia de um contrato social como explicao terica e

    normativa da autoridade poltica e da proteo dos direitos

    individuais foi naturalmente encampada pelo pensamento

    liberal, nas condies post-mercantis da revoluo burguesa. Na

    medida em que a expanso do modo de produo capitalista

    e a crescente ascendncia da burguesia tornavam esta mais

    exigente na defesa dos direitos individuais concebidos como

  • 21

    Captulo 1

    Estrutura Geral da Sociedade

    direitos universais do homem, mas representativos de suas necessidades de classe , tornava-se igualmente necessrio subordinar a soberania do Estado e o exerccio do poder monrquico preservao de tais direitos.

    Locke, ainda nos fins do sculo XVII, elabora as bases do pensamento poltico liberal partindo, como Hobbes, de um estado de natureza. Com Locke, este no concebido como uma guerra de todos contra todos, e sim como um estado pacfico e cooperativo, em que os direitos naturais, entretanto, por falta de definies formais e da sano dos magistrados, eram vagos e imprecisos. no interesse de explicitar os direitos de cada qual e de os regular adequadamente, pela lei e pela superviso dos magistrados, que se adota o contrato social. O poder do rei delegado pelo povo e deve ser exercido para a proteo dos direitos individuais. S dessa forma legtimo e s o poder legtimo merece acatamento.

    Com Rousseau, em meados do sculo XVIII, a teoria do contrato social, embora sempre encaminhada para a preservao dos direitos individuais, sofre uma inflexo de sentido radical. O direito de propriedade, entendido na forma ampla em que o concebia Locke, como livre disposio da prpria pessoa e de seus bens, era para este a tnica dos direitos individuais. Para Rousseau o essencial compatibilizar a liberdade individual com as exigncias da vida coletiva e da administrao da sociedade. Seu contrato social concebido como explicao e fundamentao dessa compatibilizao. Pelo contrato social os homens se obrigam a orientar suas vontades particulares de acordo com as normas da vontade geral. Esta, mais do que a

  • 22

    Helio Jaguaribe Estrutura Geral da Sociedade

    soma das vontades particulares, enquanto individuais, a que exprime o consenso dos cidados, como membros da sociedade, sempre que deliberem de forma apropriada, de acordo com os requisitos bsicos que Rousseau enumera e discute.

    Ademais de transferir a nfase dos objetivos sociais da defesa da propriedade para a da liberdade individual devidamente socializada, Rousseau introduz um outro elemento radical no pensamento liberal: a exigncia da igualdade. A desigualdade decorre das formas antissociais de propriedade privada. Tal fato, escandalosamente generalizado nas sociedades existentes, constitui uma violao de contrato social. Todos os direitos, inclusive o de propriedade, s so tal dentro da comunidade, no contra ela.

    O liberalismo posterior, da fase industrial e madura da revoluo burguesa, apoiado em Bentham e partindo de John Stuart Mill, rechaar a teoria do direito natural e do contrato social, mas absorver, como postulado dos objetivos supremos da sociedade, a defesa dos direitos individuais, mais no sentido de Locke do que no de Rousseau. O poder, no pensamento liberal no fim do sculo passado e princpios deste, se destina defesa dos direitos individuais e se legitima em tal exerccio. Na prtica, o Estado gendarme ser essencialmente o defensor da liberdade de contrato, nas condies em que esta empiricamente se exerce, ou seja, dentro de uma estrutural dependncia dos assalariados relativamente aos proprietrios dos meios de produo.

    A crtica da sociedade civil, como expresso do predomnio econmico-poltico dos detentores da propriedade, iniciada

  • 23

    Captulo 1

    Estrutura Geral da Sociedade

    por Rousseau, mas abandonada pelo pensamento liberal, foi retomada por Hegel, no mbito de sua viso dialtica da totalidade do real. A sociedade civil, para Hegel, designa as dimenses e os aspectos da sociedade global que se referem s relaes de produo, concebidas como atividades administrativas, pblicas e privadas, requeridas para a manuteno daquelas. Nesse sentido a oposio, em Hegel, entre sociedade civil e Estado, distinta da que atualmente tem uso corrente. Para o cientista poltico atual como mais adiante ser explicitado o sistema poltico se diferencia, analiticamente, do econmico. O Estado e os servios pblicos pertencem ao primeiro, enquanto as atividades produtivas fazem parte do segundo. Para Hegel a sociedade civil englobava as atividades produtivas e os servios administrativos por aquelas requeridos, pblicos ou privados. O Estado era a sntese superadora da anttese famlia-sociedade civil. O Estado era, por um lado, soberania e, por outro, a razo mediadora das contradies da sociedade civil.

    Hegel identifica, claramente, na medida em que a deteno da propriedade gera desequilbrios estruturais dentro da sociedade civil, funo de privilgios de classe e do acaso. Tais desequilbrios, moralmente injustos, constrangem a liberdade do indivduo e se constituem em obstculos ao desenvolvimento da razo. Para super-los, Hegel concebe um Estado transclassista, dotado do poder de regular os conflitos sociais segundo os interesses gerais da sociedade e no sentido de maximizar a racionalidade do conjunto.

    Esse Estado, como sntese da oposio famlia-sociedade civil, submetido, como os demais elementos da realidade,

  • 24

    Helio Jaguaribe Estrutura Geral da Sociedade

    historicidade geral do esprito. Ser desptico, na antiguidade oriental, democrtico ou aristocrtico, no mundo clssico e, com os germnicos, evoluir at a forma da monarquia constitucional. A monarquia constitucional, para Hegel, se mostra capacitada para realizar plenamente as verdadeiras funes do Estado: o exerccio da soberania sobre a sociedade civil, como uma mediao racional de suas contradies. Porque est vinculada pessoa do monarca, que no pertence sociedade civil nem a suas classes, esse tipo de Estado transcende os conflitos de classe da sociedade civil. E porque constitucional e no desptico, como as monarquias orientais, assegura a liberdade de cada qual e a compatibiliza com a vontade geral.

    Marx retoma e desenvolve, criticamente, as ideias de Hegel. Sua contribuio essencial, para a questo que se est discutindo, pode ser resumida em trs principais pontos. Em primeiro lugar, e de uma forma geral, a crtica de Marx a Hegel consistir em desidealizar as concepes deste. O idealismo de Hegel, a partir, em ltima anlise, de uma crena religiosa residual no Esprito, como realidade ltima, consistia, fundamentalmente, numa constante hipostasiao do sujeito pelo predicado. No existe a Razo Absoluta subjacente na razo particular dos homens. Existem homens, dotados de uma certa propriedade, que a razo.

    O segundo ponto essencial da crtica de Marx ser o desenvolvimento do conceito de prxis, j presente nas concepes de Hegel. Homem e natureza esto mutuamente implicados numa relao dialtica, atravs da prxis. O homem natureza que se conscientiza, no seu processo de humanizao,

  • 25

    Captulo 1

    Estrutura Geral da Sociedade

    atravs do trabalho. A contradio fundamental da sociedade civil, decorrente de uma forma de diviso social do trabalho que estrutura os homens em classes, opondo os detentores da propriedade aos que s dispem de sua fora de trabalho, consiste na alienao do trabalho, que precisamente, para a espcie humana, como prxis, sua forma de humanizao. A superao das contradies da sociedade civil consiste na desalienao do trabalho e na recuperao, pelo homem concreto, de sua liberdade e capacidade de se humanizar por sua prpria prxis.

    O terceiro ponto fundamental da crtica de Marx est representado pelo conjunto de seus estudos, desde os Manuscritos de 1848, orientados para discutir como, terica e praticamente, pode se processar a superao da alienao do trabalho. Hegel, como precedentemente se recordou, considerava que as contradies da sociedade civil poderiam e tenderiam a ser superadas atravs da mediao do Estado transclassista, cuja forma mais alta era a monarquia constitucional. Marx, opostamente, denuncia o necessrio carter de classe de todo Estado que se constitua a partir de uma sociedade de classe. A suposta classe universal de Hegel, que executaria, como um corpo de funcionrios neutros e racionais, a mediao corretiva do Estado, sob a gide do monarca constitucional transclassista, nada mais era, na prtica histrica, do que um conjunto de representantes das classes dominantes, a servio dos interesses destas e de seus prprios interesses corporativos.

    Para Marx, a superao da alienao do trabalho se daria, precisamente, pelo evanescimento do Estado. O Estado

  • 26

    Helio Jaguaribe Estrutura Geral da Sociedade

    efetivamente, como pensava Hegel, a agncia mediadora dos conflitos da sociedade civil. Apenas, exerce tal mediao por via coercitiva e manipulativa, a servio dos detentores da propriedade. So as contradies imanentes ao prprio modo capitalista de produo conducentes crescente concentrao da propriedade e crescente pauperizao das massas que terminaro, tanto econmica como politicamente, inviabilizando o sistema e o conduzindo ao seu colapso revolucionrio. O proletariado, como nica classe universal porque nica cuja existncia no postula a explorao de outras implantar, a partir de uma ditadura liberadora, um novo regime de produo, que no separe o homem de seu trabalho nem o submeta ao controle dos meios de produo e de seus detentores.

    A crtica humanstico-revolucionria da sociedade civil, implcita em Hegel (mas nele contida por seus valores conservadores) e explicitada por Marx, foi contestada pela filosofia naturalstico-conservadora de Comte. O Positivismo de Comte pode ser definido, para os fins desta sucinta resenha, por duas principais caractersticas. A primeira consiste em seu fisicalismo anti-humanista. A filosofia de Hegel era um humanismo idealista. A de Marx, um humanismo naturalista. O positivismo um fisicalismo anti-humanista, que sob a alegao de assegurar a positividade cientfica do conhecimento (entendida como o que experimentalmente confirmvel), reduz a conduta humana a um aspecto final, mais complexo, dos processos objetivos, negando a subjetividade e a intencionalidade da conscincia. As relaes sociais, por isso, so puramente objetivas e devem ser estudadas como uma fsica da interao humana.

  • 27

    Captulo 1

    Estrutura Geral da Sociedade

    A segunda caracterstica fundamental do positivismo seu conservadorismo, em relao ao status quo da ordem burguesa e, a partir da, sua postulao da ordem como fenmeno bsico da realidade e como valor supremo para a conduta. Por isso mesmo a ordem positivista concebida, dinamicamente, como comportando, por reajustamentos graduais, a realizao do progresso. O progresso uma ordem. E toda ordem comporta progresso, desde que no subvertida ou violentada.

    O pensamento liberal, na formulao mais acabada que lhe d John Stuart Mill, a dialtica de Hegel, na reviso crtica que lhe d Marx e a concepo positivista da realidade, fundada na ordem e entendendo o progresso como um aperfeioamento desta, se constituem, politicamente, como os fundamentos das ideologias liberais, radicais e conservadoras, dos fins do sculo passado aos nossos dias. Mais ainda, a linha crtico-dialtica e a postura positivista se convertem no ncleo dos dois grandes modelos de entendimento da sociedade e em princpio da realidade em geral que se confrontam teoricamente na atualidade: o modelo dialtico e o funcionalista.

    Os modelos funcional e dialtico

    As interpretaes da sociedade dadas pela teoria social contempornea tendem a ser tributrias, conscientemente ou no, de dois principais modelos: o funcional e o dialtico2.

    Essencialmente, o modelo funcional se prope a resolver o problema dos fatores determinativos do vnculo associativo

    2 Vide bibliografia.

  • 28

    Helio Jaguaribe Estrutura Geral da Sociedade

    e de sua vigncia e estabilidade, numa sociedade qualquer, a partir da coparticipao dos membros da sociedade num comum sistema de valores.

    O modelo funcional remotamente herdeiro do pensamento de Comte e, mais imediatamente, do neopositivismo que caracteriza frequentemente de forma implcita e no consciente, a linha central do pensamento anglo-americano contemporneo. A converso das premissas do neopositivismo em uma interpretao funcionalista dos processos sociais se deu atravs da antropologia, notadamente de Malinowski. Foi, entretanto, a obra de Talcott Parsons, sobretudo em sua fase inicial, de 1949 a 1960, que estruturou teoricamente o funcionalismo como um modelo explicativo do funcionamento da sociedade. Mas deve- -se a Davis uma das melhores formulaes sintticas do modelo.

    Trata-se, segundo Davis, de explicar a regulamentao social dos meios escassos. Como as necessidades do homem no sejam imediatamente atendidas pela natureza, mas exijam o emprego de algum meio para sua satisfao (tecnologia) e atendendo ao fato de que so sempre relativamente escassos os meios necessrios, o uso destes sempre regulado por um determinado regime o regime de propriedade. Tal regime, entretanto, no tende a ser igualmente observado por todos os membros da sociedade, dada a propenso, por parte dos menos favorecidos, de modific-lo ou transgredi-lo. Dada tal situao, a manuteno desse regime sempre assegurada por normas sancionadas pelo sistema poltico, atravs de meios coercitivos. Esse sistema poltico, entretanto, no consiste em violncia arbitrria, mas no sancionamento, apoiado pela fora, dos

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    Captulo 1

    Estrutura Geral da Sociedade

    valores culturais da sociedade, os quais gozam do consenso de seus membros. esse consenso que d legitimidade s normas e a sua sano pelo sistema poltico.

    Dentro dessa perspectiva Parsons entende que a sociedade se compe de quatro categorias estruturais: (1) a ordem normativa, incluindo: (1.1) valores; (1.2) normas; (2) a populao organizada, incluindo: (2.1) a coletividade; e (2.2) os papis sociais.

    Opostamente, o modelo dialtico parte do pressuposto de que o conflito, e no o consenso, a realidade ltima da vida social. A regulamentao social, por isso, produto da coero e as estruturas sociais so determinadas pela situao dos grupos na sociedade, no por valores.

    No pensamento de Marx, a interpretao dialtica e histrico-materialista da sociedade contm dois aspectos fundamentais. Um se refere determinao geral (materialismo histrico) que as foras e os modos de produo necessariamente exercem sobre as relaes de produo e a conscincia dos homens, independentemente de suas vontades, incluindo-se nas relaes de produo as normas morais e jurdicas, o regime social e suas legitimaes ideolgicas. O segundo aspecto (materialismo dialtico) se refere aos efeitos da diviso social do trabalho, assegurada por via coercitiva em todas as sociedades estruturadas em classes, em virtude dos quais uma minoria de detentores dos meios de produo exerce a dominao da sociedade e impe maioria a contingncia de trabalhar em troca do simples recebimento dos meios de subsistncia.

    A melhor formulao sinttica dada por Marx ao seu modelo se encontra, provavelmente, em seu famoso Prefcio

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    Helio Jaguaribe Estrutura Geral da Sociedade

    Contribuio Crtica Economia Poltica, no trecho em que, sumariando suas ideias, observa que:

    Na produo social de sua existncia, os homens entram em relaes determinadas, necessrias e independentes de sua vontade, relaes de produo essas que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento de suas foras produtivas materiais. O conjunto dessas relaes constitui a estrutura econmica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurdica e poltica e qual correspondem determinadas formas de conscincia social. O modo de produo e a vida material condicionam o processo da vida social, poltica e intelectual, em geral. No a conscincia dos homens que determina seu ser; inversamente, seu ser social que determina sua conscincia.

    Dado o princpio geral de que as foras e os modos de produo determinam as relaes sociais e a conscincia dos homens, a diviso social do trabalho, estruturada em classes, assegurando a uns a deteno dos meios de produo desde as formas mais primitivas s mais avanadas do capitalismo moderno confere a estes o domnio econmico-poltico da sociedade impondo aos demais formas alienadas e dependentes de trabalho e de vida a condio de escravo, na sociedade antiga, do servo da gleba, na medieval, do proletrio, na sociedade capitalista.

    O entendimento da ordenao social em termos de conflito e coero, e no de consenso fundado em valores comuns, tambm formulado, por vrios autores, dentro de linhas

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    Captulo 1

    Estrutura Geral da Sociedade

    conceituais no dependentes da interpretao materialista histrica de Marx. Assim ocorreu com toda a tradio do darwinismo social e das concepes do conflito fundadas na vontade de poder. Uma das formulaes mais gerais da teoria do conflito, compatvel com todas as hipteses do gnero, apresentada por John Rex.

    Segundo Rex tendem a ocorrer, em todas as sociedades, fatores diferenciadores de seus membros. Tais fatores os levam, atravs de vrias coalizes de classes e grupos, a uma final polarizao de conflito, entre os que, em ltima anlise, querem preservar a ordem vigente os que a querem mudar. Em tal situao, se a sociedade no vier a se fragmentar, ou uma das faces vence, impondo sua dominao sobre a outra, com sua decorrente ordem social e legitimidade, ou se chega a algum tipo de compromisso. No primeiro caso, os dominados tendem a se reorganizar para desafiar a ordem vigente, restabelecendo o conflito. No segundo caso, ou o compromisso rompido, restabelecendo-se a situao de conflito, ou o compromisso se estabiliza atravs da criao de uma nova ordem social, apoiada por nova legitimidade. Com essa nova ordem social, entretanto, novas formas de discriminao tendem a aparecer criando novas polarizaes, que restabelecero em novo nvel a dialtica do conflito.

    O modelo funcional-dialtico

    A interpretao da ordenao social em termos polarmente opostos, de consenso ou de conflito, vem sendo, recentemente, objeto de crescentes reservas entre diversos estudiosos.

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    Helio Jaguaribe Estrutura Geral da Sociedade

    Realmente, despida a matria, na medida do possvel, de suas implicaes ideolgicas, foroso reconhecer que cada uma das teorias apresenta importantes elementos explicativos da sociedade.

    No parece possvel, efetivamente, sustentar-se, com os funcionalistas, que a coercitividade social corresponda completamente, ou mesmo predominantemente, a um consenso geral sobre valores e que os intentos de transgredir uma dada ordem social sejam necessariamente representativos de condutas desviantes. Tampouco parece compatvel com a observao emprica, histrica ou corrente, negar na medida em que se verifiquem instituies e normas sociais dotadas de funcionalidade geral e coletiva e no apenas vinculadas a interesses de classe.

    Tive a ocasio, em outro estudo, de sustentar a necessidade terica da elaborao de um terceiro modelo explicativo da ordenao social, representando uma sntese entre o funcional e o dialtico, que denominei de modelo funcional-dialtico. E justifiquei a validade terica de tal modelo mostrando que sua capacidade explicativa continha todos os elementos positivos dos modelos de consenso e do conflito, sem as limitaes de cada um deles. Essa justificao se apoia em duas linhas convergentes de anlise: uma, de carter sociolgico-formal, ligada anlise esttica e dinmica do grupo social; a outra, de carter histrico-antropolgico, ligada anlise evolutiva das sociedades de autoridades familstica s sociedades de autoridade territorial.

    Sem repetir, aqui, as linhas de anlise de meu precedente estudo limitar-me-ei sucinta exposio dos argumentos centrais.

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    Captulo 1

    Estrutura Geral da Sociedade

    A anlise esttica e dinmica dos grupos pe de manifesto o fato de que, independentemente do grau de complexidade que ocorra nas relaes dos mesmos entre si, com as decorrentes contradies internas e margens de conflito, tende a haver num grupo interesses comuns a todos os membros. Esses interesses comuns tendem a requerer a ao coordenada dos membros do grupo para seu atendimento. As prescries de condutas coletivas feitas por membros do grupo que efetivamente paream conduzir ao atendimento dos interesses comuns tendem a ser acatadas por todos os membros do grupo, sempre que no colidam com seus interesses setoriais de maior prioridade. Essas prescries so comandos autovalidados. Revestem-se de uma autoridade funcional, que independe da autoridade formal do emitente. Os comandos autovalidados so uma comprovao dos ingredientes funcionais existentes, em princpio, em toda associao e so a base funcional de toda autoridade. A essncia funcional da autoridade o exerccio da ao coordenadora dos interesses comuns. A coexistncia, num dado grupo, de interesses comuns e interesses setoriais no comuns mas, ao contrrio, atual ou potencialmente conflitivos, no elimina a comum funcionalidade daqueles nem a bsica funcionalidade da associao grupal.

    Os grupos complexos, entretanto, no podem deixar ao acaso da espontnea emergncia de comandos autovalidados a administrao de seus interesses comuns. Da a institucionali-zao da autoridade nos grupos complexos estveis. A institu-cionalizao da autoridade, entretanto, traz consigo inerentes efeitos disfuncionais. Em termos gerais, porque o trnsito da autoridade ocasional, que se autovalida em cada caso, para a

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    Helio Jaguaribe Estrutura Geral da Sociedade

    institucional, cuja validade, em princpio, transcende a auto- acatabilidade de cada um de seus comandos, implica, indepen-dentemente de outras circunstncias, no privilegiamento do titular, qualquer que sejam as boas intenes deste e o grau de consenso do grupo. Ademais, porque, empiricamente, a forma-lizao do privilegiamento tende a decorrer de formas prvias de apropriao de privilgios e a suscitar subsequentes propen-ses privilegiantes. Da o acompanhamento coercitivo de todas as formas institucionais da autoridade e a decorrente condio conflitual dos grupos em que tal autoridade se constitua.

    A anlise histrico-antropolgica da autoridade, na evoluo das sociedades, conduz a resultados equivalentes. A autoridade surge, histrica e antropologicamente, como autorregulamentao familstica: o chefe da famlia extensa nos grupos de comum linhagem, o conselho de ancies, nos grupos tribais. O comando se exerce na linha da consanguinidade. Corresponde a uma extenso do poder do pater famlias e implica a solidariedade ativa e passiva dos consanguneos. Na forma mais ampla do gnero, que a da tribo, a autoridade exercida por acordo consensual dos chefes de linhagem, dentro de um sistema igualitrio em que ningum dispe do poder sobre gente de outra linhagem.

    O trnsito da autoridade consangunea autoridade territorial, de carter superfamilstico, somente se dar com a formao das chefaturas. E estas sempre dependero de circunstncias que permitam, a um chefe de linhagem, atrair para seu servio uma clientela de gente imigrada, que se tenha, por necessidade ou opo, desligado de seus precedentes vnculos familsticos e se haja colocado a servio de um chefe

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    Captulo 1

    Estrutura Geral da Sociedade

    de linhagem estranho prpria. Um dos requisitos para a formao de chefaturas que s ocorrem depois do neoltico a acumulao de excedentes por parte de um chefe de linhagem, que lhe permita manter a seu servio um grupo de gente desligada do trabalho produtivo e dedicada, como ajudantes e guardas profissionais, implementao das ordens de seu chefe. Outro requisito fundamental o aparecimento, em uma comunidade, de imigrantes provenientes de outras linhagens. Por no estarem vinculados solidariedade da consanguinidade de seu novo grupo, esses imigrantes podem exercer atos de violncia, por ordem de seu chefe de adoo, sobre pessoas de distinta linhagem. Com isto se gera uma sociedade desigualitria e uma autoridade de base coercitiva. Esta, por seu lado, tender a legitimar, mediante novos mitos que lhe emprestaro origem divina, o exerccio de um poder no fundado na consanguinidade. So os mitos que se encontram na origem das grandes civilizaes primrias, como a egpcia, a sumria, a maia.

    A concluso de ambas as linhas de anlise conduz a um entendimento funcional-dialtico da autoridade. A autoridade, como fenmeno social, tem origem e fundamento funcional, decorrente da necessidade de coordenao da ao coletiva, atravs de comandos que asseguram o atendimento dos interesses comuns. A necessidade de institucionalizao da autoridade, todavia, gera um correspondente privilegiamento de seu titular e suscita, dialeticamente, uma diviso social do trabalho estruturada em classes e uma preservao coercitiva dos privilgios.

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    caPtUlO 2

    OS SUbSISteMaS SOcIaIS

    A perspectiva funcionalista

    A interpretao funcionalista da sociedade, de Parsons, parte de um entendimento geral da realidade dividida em trs grandes nveis, estruturados em funo de uma relao ciberntica de alta informao, na cpula e de alta energia, na base. Esses trs nveis so:

    (1) o Transumano;

    (2) o Humano; e

    (3) o Infra-humano.

    A cada um deles corresponde um certo tipo de realidade. Ao Transumano corresponde a realidade ltima, que ser Deus ou o mbito analtico das preocupaes finais do homem. Ao nvel Humano correspondem quatro sistemas:

    (a) o Sistema Cultural;

    (b) o Sistema Social ou das sociedades;

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    Helio Jaguaribe Os Subsistemas Sociais

    (c) o Sistema da Personalidade; e

    (d) o Sistema Orgnico.

    Ao nvel Infra-humano corresponde o ambiente fsico- -orgnico. No quadro a seguir d-se uma representao grfica dessas ideias.

    Concepo Tricotmica de Parsons

    Nvel Relao Ciberntica Tipo Analtico de Realidade

    (1) TransumanoAlta Informao

    (controles)Realidade ltima

    (2) Humano

    - Sistema Cultural- Sistema Social (sociedades)- Sistema de Personalidades

    - Sistema Orgnico

    (3) Infra-humanoAlta Energia(condies)

    Meio ambiente Fsico-Orgnico

    O Sistema Social concebido por Parsons como sendo o sistema de interao humana. Quaisquer que sejam suas dimenses, seu grau de complexidade e seu regime interno, o sistema social consiste sempre de quatro elementos fundamentais:

    (1) uma pluralidade de atores;

    (2) interatuando para realizar seus fins;

    (3) atravs de certos meios; e

    (4) dentro de certas condies.

    Kingsley Davis sustentar que todas as sociedades, inclusive as animais, tm, necessariamente, de dar atendimento a um certo nmero de funes bsicas, como condio de sua autopreservao. Essas funes so as seguintes:

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    Captulo 2

    Os Subsistemas Sociais

    I. Manuteno da populao

    a) Proviso de alimentos

    b) Proteo da incolumidade fsica

    c) Reproduo de novos organismos

    II. Diviso de funes entre a populao

    III. Solidariedade de grupo

    a) Motivao de contato entre os membros

    b) Motivao de mtua tolerncia e de resistncia contra estranhos

    IV. Perpetuao do sistema social

    Para Parsons, a partir dos requisitos cibernticos necessrios para que um sistema autoajustvel se mantenha e atinja seus objetivos, qualquer sistema social tem de dar atendimento a quatro funes bsicas:

    (1) manuteno do padro;

    (2) integrao;

    (3) realizao de objetivos; e

    (4) adaptao.

    De acordo com sua teoria sobre o sistema geral de ao, as quatro funes so preenchidas, respectivamente, pelo sistema cultural, pelo sistema social, pelo sistema de personalidade e pelo organismo.

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    Helio Jaguaribe Os Subsistemas Sociais

    No caso especfico da sociedade, Parsons diferencia as seguintes macrofunes:

    (1) as funes de manuteno do padro, desempenhadas pelos processos de institucionalizao cultural, atravs de intercmbios de fronteira com o sistema cultural suprassocietal;

    (2) as funes integrativas, desempenhadas pela comunidade societal; e

    (3) e (4) as funes de realizao de objetivos e de adaptao desempenhadas, intrassocietalmente, pelos subsistemas polticos e econmicos, respectivamente.

    Para o entendimento da Teoria de Parsons necessrio levar em conta, como se observa no seu modelo tricotmico da realidade, que a realidade humana concebida como diferenciada analiticamente, no empiricamente em quatro sistemas, que mantm entre si intercmbios de funes.

    O sistema social um sistema de atores. Sua funo bsica a integrao coordenada dos papis sociais. Estes se subdividem em econmicos e polticos. Suprassocietalmente, o sistema cultural assegura os valores que permitiro a manuteno do padro social. Infrassocietalmente, os sistemas de personalidade e orgnico o homem concreto proporcionaro os indivduos que assumiro papis sociais. Os impulsos que fazem marchar o sistema social provm de algo que analiticamente est por debaixo dele, os homens concretos, dotados de personalidades (que internalizam valores e hbitos) e de energia e apetites organsticos. Os padres que asseguram a estabilidade social e a

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    Captulo 2

    Os Subsistemas Sociais

    preservao da identidade coletiva do grupo so proporcionados, suprassocietalmente, pelo sistema cultural, mas socialmente institucionalizados, atravs das normas morais e jurdicas e da internalizao de tais valores pelas conscincias individuais.

    No quadro a seguir se esquematizam essas ideias centrais de Parsons:

    Sistema de ao de Parsons

    Nvel da Realidade Humana

    Tipo Analtico Funo Bsica

    Suprassocietal Sistema Cultural Fundamentao Valorativa

    Societal

    Sistema SocialSubsistema Econmico

    Subsistema Poltico

    Integrao de PapisProduo de UtilidadesProduo de Efetividade

    InfrassocietalSistema de Personalidade

    Sistema Orgnico

    Internalizao de ValoresDesempenho de Papis

    Impulsos Vitais

    Centrais para a perspectiva funcionalista so:

    (1) a tese da convalidao ltima da legitimidade das sanes pelo consenso social no plano dos valores; e

    (2) a tese da interdependncia harmnica e funcional dos subsistemas, no nvel do sistema social, e deste com os sistemas cultural e de personalidade, por motivos de carter macrofuncional: as necessidades de autopreservao do conjunto dos sistemas humanos.

    A perspectiva dialtica

    No fcil, evidentemente, reduzir o complexo pensamento de Marx, distribudo por uma enorme massa de textos, a um breve conjunto de proposies definitrias dos aspectos bsicos

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    Helio Jaguaribe Os Subsistemas Sociais

    de seu entendimento da realidade, em geral, e da sociedade, em particular. Todas as tentativas desse gnero correm o inevitvel risco de simplificaes deformantes e de arbitrariedade na seleo de temas e teses.

    Admitidos os inevitveis percalos de tal intento sugiro, com a correspondente quota de risco, que se pode caracterizar a perspectiva central de Marx que se apresentar neste estudo como paradigma da perspectiva dialtica a partir de quatro linhas fundamentais. Essas linhas envolvem:

    (1) uma concepo epistemolgico-ontolgica que se pode designar como um humanismo naturalista de carter dialtico;

    (2) uma concepo antropolgica caracterizada pela ideia da autorrealizao do homem atravs da prxis;

    (3) uma interpretao histrico-sociolgica da sociedade usualmente designada por materialismo histrico e fundada numa certa concepo das relaes dialticas entre as foras de produo e as relaes de produo; e

    (4) uma teoria da histria e, fundada nela, uma prxis poltico-revolucionria, baseada na concepo da autodestruio de todos os sistemas sociais por fora de suas inerentes contradies, mas dentro de um processo tendente crescente dominao da natureza pelo homem e conducente final liberao social e natural deste.

    Situado ante o problema filosfico do conhecimento e da natureza da realidade face crtica de Hume e soluo transcendental de Kant, com a decorrente perda da possibilidade

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    Captulo 2

    Os Subsistemas Sociais

    de conhecimento da coisa em si Marx opta, com Hegel, por uma interpretao unificante da relao sujeito-objeto, que restaure a apropriao cognitiva deste por aquele. Mas nega tanto a verso idealista de Hegel, para quem o Esprito toda a realidade e o conhecimento, em ltima anlise, uma autognose, quanto validade de um tratamento meramente terico do conhecimento, desligado da prxis da autorrealizao humana.

    Homem e natureza, para Marx, se implicam dialeticamente, num processo permanente de humanizao da natureza e da naturalizao do homem. Por isso Marx considerava sua prpria posio como um naturalismo ou humanismo consistentes, distinta tanto do idealismo como do materialismo. Como dir nos Manuscritos Econmicos e Filosficos:

    O homem diretamente um ente natural. Como ente natural, e como ente natural vivente, ele , por um lado, dotado de poderes e faculdades naturais, que nele existem como tendncias e habilidades, como impulsos. Por outro lado, como um ente natural, objetivo, dotado de corpo, de capacidade de sentir, ele um ente sofredor, condicionado e limitado, como os animais e as plantas. Os objetos de seus impulsos existem fora dele como objetos independentes dele, mas, sem embargo, eles so objetos de suas necessidades, objetos essenciais que so indispensveis ao exerccio e confirmao de suas faculdades3.

    Por outra parte, Marx no considerava vlida uma abordagem puramente terica da relao do conhecimento. Como declara na 2a Tese sobre Feuerbach:

    3 In: 3o Manuscrito, XXVI cf. Karl Marx, Early Writings, Thomas Burton Bottomore, pp. 206-207, Nova York, McGrow-Hill, 1964.

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    Helio Jaguaribe Os Subsistemas Sociais

    A questo concernente na medida em que o pensamento humano possa pretender alcanar a verdade objetiva no terica, mas prtica. O homem deve comprovar a verdade, i.e., a realidade e o poder, o estar aqui de seu pensamento, na prtica. O debate sobre a realidade ou no realidade do pensamento que esteja isolado da prtica uma questo puramente escolstica.

    A antropologia de Marx parte de um entendimento do homem como dotado de natureza prpria, com propriedades permanentes, embora historicamente complementvel, dis- tintamente de uma concepo puramente historicista do homem. A natureza ou essncia do homem se caracteriza, para Marx, por trs principais ordens de atributos:

    (1) os atributos de carter constante, dados pela espcie, que compreendem as propriedades fsico-anmicas permanentes, com seus impulsos bsicos;

    (2) os de carter relativo, compreendendo as necessidades adquiridas pelo homem de acordo com as circunstncias scio-histricas; e

    (3) a caracterstica do homo faber inerente essncia humana, que conduz o homem a completar e autoconfigurar sua prpria natureza, atravs de sua prxis.

    Esta ltima caracterstica diferencia a natureza humana das formas no humanas da natureza. A natureza no humana dada, como tal, de uma vez por todas. A natureza humana s dada em parte, na medida em que apresenta alguns atributos constantes e se caracteriza pela necessidade de fazer coisas e de se autofazer. Mas s se completa no processo constante,

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    Captulo 2

    Os Subsistemas Sociais

    individual e histrico, da autorrealizao do homem. Ou, em suas palavras: O conjunto que se denomina de histria mundial nada mais do que a criao do homem por seu prprio trabalho, e a emergncia da natureza para o homem; ele assim tem a irrefutvel evidncia e prova de sua autocriao, de sua prpria origem4.

    Essa autorrealizao do homem essencialmente o processo de seu trabalho, mediante o qual, fazendo as coisas de que depende sua existncia individual e social, se faz a si mesmo.

    O trabalho suposto ser o processo de autorrealizao do homem porque o atributo especfico deste. Na sociedade de nossos dias o trabalho no desenvolve o homem, mas o emascula. Em vez de adicionar ao homem dimenses de criatividade e de ampliar sua humanidade, o processo de trabalho na sociedade de hoje degrada o homem condio de mercancia e o produto de seu trabalho, que por natureza a realizao fenomnica da conscincia ativa do homem, imprimindo-se no mundo externo, torna-se senhor do homem 5.

    Da a importncia que tem, para o pensamento de Marx, o fenmeno da alienao. O conceito de alienao j era fundamental para a filosofia de Hegel. Para este, entretanto em consonncia com sua concepo idealista da realidade , a alienao era um estado de esprito, do qual se saa por outro estado de esprito. Para Marx a alienao uma situao real,

    4 Early Writings, p. 166.

    5 Idem, ibid., p. 138.

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    Helio Jaguaribe Os Subsistemas Sociais

    que s se pode superar por modificaes na realidade. Para Marx, a essncia da alienao consiste num duplo estranhamento do homem: a separao do homem do produto de seu trabalho e a separao do homem do prprio processo de produo. Assim ocorre que a alienao aliena o homem, ao mesmo tempo, de si mesmo, como indivduo e como ente da espcie, e dos outros homens. A desalienao do homem , por isso mesmo, a condio necessria para sua autorrealizao e ser a meta central da obra e da vida de Marx.

    A terceira linha fundamental da perspectiva marxiana, concernente determinao das relaes de produo pelas foras de produo, a que se tornou mais universalmente conhecida e a mais compartilhada pelas diversas escolas de filiao marxista.

    Esse conceito bsico do pensamento sociolgico de Marx uma contrapartida, no plano da teoria da sociedade, de sua epistemologia e de sua antropologia. Assim como o conhecimento um processo de interao dialtica entre o homem e a natureza e assim como a natureza do homem se autorrealiza pela prxis humana (entendida essencialmente como trabalho), assim as relaes de produo so determinadas pelas foras produtivas.

    Essa noo bsica de Marx determinar seu entendimento da estrutura da sociedade. A imposio, sociedade, de uma diferenciao analtica entre macrofunes e seus correspondentes subsistemas sociais como os subsistemas econmico e poltico no teria relevncia para Marx e se lhe apresentaria como mascarando as verdadeiras diferenciaes da sociedade. A linha de clivagem das diferenciaes sociais,

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    Captulo 2

    Os Subsistemas Sociais

    para Marx, a que separa as atividades e processos de carter estrutural, que so os envolvidos na produo material de bens e servios e as atividades e processos regulatrios das condutas coletivas, como normas e instituies morais e jurdicas e suas ideologias legitimadoras.

    Pela institucionalizao da diviso social do trabalho e decorrente criao de classes sociais, os detentores dos meios de produo assumiram o controle econmico-poltico da sociedade. Os modos de produo, entretanto, variam com o desenvolvimento das foras produtivas. Da energia animal e humana se passa ao aproveitamento das foras naturais, como o vento e os rios, se passa mquina a vapor, etc. Essas transies alteram as relaes de produo, com consequentes modificaes dos detentores de privilgios e de seu regime. Quando as relaes de produo, que exprimiam e regulavam um certo estgio das foras produtivas, se tornam um empecilho para a operao das foras de produo, em novo estgio evolutivo, processa--se, por uma forma ou outra, um reajustamento das relaes de produo aos novos modos de produo e correspondente estgio de desenvolvimento das foras produtivas.

    A quarta linha fundamental da perspectiva marxiana, correspondente teoria da histria de Marx, uma decorrncia de suas posies bsicas precedentemente referidas.

    Imediatamente, a teoria da histria de Marx resulta de sua concepo sobre a estrutura e a superestrutura da sociedade. O processo histrico o processo de acumulao e de resoluo de contradies entre o desenvolvimento das foras produtivas e suas regulaes institucionais. Quando estas se tornam

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    Helio Jaguaribe Os Subsistemas Sociais

    incompatveis com um novo estgio de desenvolvimento das foras produtivas, ocorrem mudanas histricas de carter qualitativo. Ademais, entretanto, a teoria da histria de Marx exprime sua antropologia e reflete, implicitamente, seus valores ticos e uma no formulada filosofia do progresso, herdeira da Ilustrao e de Rousseau, embora concebida em termos dialticos e no de forma linear.

    Em ltima anlise, Marx concebe a histria da espcie humana como um largo processo comportando trs etapas. A primeira etapa corresponde fase de hominizao do homem e conduz formao de sociedades tribais basicamente igualitrias, reguladas por um comunismo primitivo. Essa fase final da primeira etapa uma fase em que o trabalho humano no alienado, porque o homem no est nem separado do produto final de seu trabalho nem separado do prprio processo produtivo. Dado o nvel extremamente elementar das foras produtivas, entretanto, o homem se encontrava sujeito ao arbtrio da natureza e a conscincia humana no adquiria, ainda, um entendimento racional da realidade.

    A segunda etapa, passando por vrias fases, se caracterizava pela apropriao dos meios de produo por grupos privilegiados do despotismo oriental ao escravismo clssico, ao feudalismo e, finalmente, ao capitalismo. Essa etapa est marcada, de um lado, por formas crescentemente racionais e eficazes de produo e de dominao da natureza notadamente a partir da revoluo burguesa e, de outro lado, pela crescente alienao do homem, convertido em mercancia e totalmente separado do processo produtivo. As contradies que se acumulam, em

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    Captulo 2

    Os Subsistemas Sociais

    cada fase, entre as foras produtivas e as relaes de produo

    desembocam, na fase final dessa etapa, a capitalista, numa

    simplificao da sociedade. Esta passa a se polarizar entre um

    grupo cada vez menor de detentores dos meios de produo e

    um grupo, cada vez maior, de trabalhadores que s tem a vender

    a prpria fora de trabalho.

    A caracterstica especial de que se reveste o capitalismo, em

    sua forma final, consiste no fato de que a imensa maioria dos

    homens conduzida a um estado, o proletrio (ou assemelhvel)

    que, diversamente das outras classes, historicamente ou

    contemporaneamente, no depende para sua existncia da

    explorao de outros. O capitalismo est condenado, como

    todos os regimes fundados na alienao, a acumular insanveis

    contradies entre as relaes de produo e as foras

    produtivas. Marx dedicar a maior parte de sua obra anlise

    dessas contradies. Diversamente, entretanto, do que ocorreu

    no passado por exemplo, nos trnsitos do escravismo clssico

    ao feudalismo, ou deste ao capitalismo as contradies que

    conduziro o capitalismo ao seu final colapso no transferiro

    o poder a uma classe que dependa da explorao de outras.

    O proletariado e no a burocracia de Hegel a verdadeira

    classe universal. A transferncia do poder ao proletariado,

    atravs de uma revoluo que conduza ao seu colapso poltico

    um capitalismo socioeconomicamente j exaurido, implantar,

    depois de uma fase temporria de reorganizao da sociedade,

    um regime, ao mesmo tempo, altamente racional e produtivo e

    totalmente desalienado.

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    Helio Jaguaribe Os Subsistemas Sociais

    A perspectiva funcional-dialtica

    Distintamente das precedentes, que vm sendo objeto de elaborao e discusso desde o sculo XIX6, a perspectiva funcional-dialtica uma posio terica emergente. Datam dos ltimos anos os primeiros intentos expressos de formulao de um modelo funcional-dialtico da sociedade e da dcada de 1950 os primeiros trabalhos de Schumpeter e de Gurvitch, implicando tal modelo.

    As bases sobre que assenta a perspectiva funcional- -dialtica podem ser reduzidas a trs linhas centrais7. A primeira se refere ao entendimento da sociedade como forma e unidade bsicas da vida humana associativa constituindo, como tal, uma associao naturalmente funcional. A segunda concerne diferena analtica e emprica entre a autoridade autovalidade, de carter consensual, e a autoridade institucionalizada, tendencialmente coercitiva. O trnsito de uma a outra, historicamente, ocorreu com a transformao das formas naturais da autoridade, baseadas na consanguinidade, em formas institucionais, territorialmente delimitadas, baseadas na combinao entre poder coercitivo e mito legitimizante. A terceira linha bsica da perspectiva funcional-dialtica a que, a partir de uma diferenciao analtica das macrofunes sociais e de seus respectivos subsistemas, nega o fato de que um dos subsistemas, como o econmico, por exemplo, tenha,

    6 Essa afirmao, relativamente ao modelo funcionalista, se refere s implicaes do mesmo, con-tidas nas obras de Saint Simon e Comte.

    7 Para uma exposio mais sistemtica da teoria funcional-dialtica, Cf. meu estudo, Sociedade, Mudana e Poltica, S.P., Ed. Perspectiva, 1975, notadamente os Captulos 1 e 4.

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    Captulo 2

    Os Subsistemas Sociais

    necessariamente, um carter estrutural, enquanto outro, como o cultural, tenha, necessariamente, carter superestrutural, este sendo determinado por aquele. Opostamente, o modelo funcional-dialtico se baseia na interdependncia circular dos subsistemas entre si. Nenhum dos subsistemas sociais , per se, necessariamente estrutural ou superestrutural8. Transformaes estruturais podem originar-se em qualquer dos subsistemas. Dado o princpio de congruncia, na relao dos sistemas entre si, as transformaes estruturais ocorridas em um deles, ou se transmitem aos demais, ou no subsistiro, ou, ento, produziro efeitos disruptivos da sociedade.

    Historicamente, em funo das crenas vigentes, dos estilos de vida e dos modos de produo, um dos subsistemas pode tender a exercer maior influncia do que os outros. Tal ocorre, por exemplo, com o subsistema cultural nos perodos configurativos das grandes religies. Tal ocorre, com o econmico, os perodos de inovao tecnolgica. Ou com o poltico, em fases de grande concentrao ou de grande transformao do poder.

    Relativamente perspectiva funcionalista, a funcional- -dialtica aceita o carter basicamente funcional da ordenao social, na medida em que, histrico-antropologicamente, a origem e o fundamento da autoridade tm carter consensual. Mas nega que um suposto consenso valorativo seja, ftica e normativamente, o fundamento da ordenao social nas sociedades estruturalmente diferenciadas, como as sociedades de classe. Relativamente perspectiva dialtica, a funcional-

    8 O subsistema participacional, sem embargo, tende a ter carter derivado, relativamente aos de-mais, salvo nas sociedades familsticas.

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    Helio Jaguaribe Os Subsistemas Sociais

    -dialtica aceita o carter basicamente coercitivo e conflitual das formas institucionalizadas da autoridade e das sociedades correspondentes. Mas nega que as foras de produo necessariamente determinem as relaes de produo, ou, com maior preciso analtica, que o subsistema econmico seja, per se, estrutural e determinante dos demais.

    Feita essa sucinta exposio das linhas centrais da perspectiva funcional-dialtica, importa agora apresentar, de forma igualmente esquemtica, como se delineia o entendimento da sociedade, a partir de tal perspectiva. Como, em relao ao objetivo central deste estudo, a discusso dos modelos da sociedade seja, apenas, um pressuposto terico necessrio para a anlise do problema do desenvolvimento social, no teria sentido intentar, ainda que sumariamente, apresentar as vrias interpretaes da realidade social que se tenham, com maior ou menor explicidade, situado no mbito da perspectiva funcional--dialtica9.

    Nas linhas a seguir limitar-me-ei a uma brevssima referncia aos meus prprios pontos de vista sobre a matria, remetendo aos leitores para um estudo anterior em que se discute o assunto mais amplamente.

    A breve anlise estrutural da sociedade que se vai apresentar nas linhas a seguir parte de uma concepo dicotmica da realidade no mbito da qual se situa a sociedade.

    9 Importa assinalar na medida em que Jrgen Habermas, em um dos seus ltimos trabalhos (Le-gitimation Crisis, Ed. Beacon Press, 1975), se aproxima extremamente das posies que sero a seguir brevemente referidas.

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    Captulo 2

    Os Subsistemas Sociais

    No quadro abaixo se esquematiza, graficamente, essa concepo dicotmica.

    Concepo dicotmica da realidade e situacionamento da sociedade

    Nvel Relao Ciberntica Tipo analtico da realidade

    I. HumanoAlta Informao

    - Civilizao sistema de sentidos fundamentais;- Sociedades sistema de interao;- Seres humanos sistema de ao; e

    - Objetos humanizados repertrio de objetos significativos.

    II. No Humano

    Alta Energia(Condies)

    - Natureza viva sistema de processos adaptativos; e

    - Natureza fsica sistema de processos objetivos.

    A sociedade um sistema de interao humana, a partir do desempenho de papis sociais. Importa diferenciar as civilizaes, como um sistema de sentidos ou significaes fundamentais, que abrangem sociedades distintas e se prolongam por um perodo temporal de vigncia superior ao das sociedades, das atividades culturais que se exercem no mbito de cada sociedade e correspondem, analiticamente, ao seu subsistema cultural. Sem dar aqui maior elaborao a essa complexa questo, pode-se tornar clara a diferena com a ilustrao de dois exemplos. Na dimenso do espao, Inglaterra, Frana, Alemanha e Estados Unidos, fazem parte, atualmente, entre outros pases, da civilizao ocidental contempornea, constituindo cada um desses pases, sem embargo, uma sociedade nacional prpria, com sua respectiva cultura e correspondente subsistema cultural. Na dimenso do tempo, h consenso entre os estudiosos no sentido de considerar como

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    Helio Jaguaribe Os Subsistemas Sociais

    integrantes da civilizao ocidental os pases europeus da Alta Idade Mdia at a era Napolenica, no curso de um perodo que vai do sculo VI a princpios do XIX, ao longo do qual se formam e se desfazem muitas sociedades, at a final configurao das naes modernas.

    Fica, assim, a sociedade situada, no mbito da realidade humana, como um sistema de interao atravs de papis sociais, sob a gide eidtico-axiolgica de uma dada civilizao, no nvel suprassocietal, e compreendendo um conjunto de atores, que desempenham os vrios papis e constituem, no nvel infrassocietal, os seres humanos.

    A anlise de qualquer sociedade, do bando paleoltico emergente sociedade ps-industrial de nossos dias, revela o fato de que a totalidade dos papis sociais e das atividades correlatas corresponde a quatro macrofunes sociais:

    (1) cultural;

    (2) participacional;

    (3) poltica; e

    (4) econmica.

    Essas quatro macrofunes consistem, analiticamente, na produo e alocao de certos tipos de bens, servios e valores que denominaremos, genericamente, de valuveis. A essas quatro macrofunes sociais correspondem, analiticamente, quatro subsistemas, que designaremos pela mesma denominao precedentemente enumerada.

    Utilizando, metaforicamente, a analogia do organismo de um animal superior; em que se diferenciam um sistema digestivo,

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    Captulo 2

    Os Subsistemas Sociais

    um respiratrio, um circulatrio, etc., a sociedade assegura as condies e atividades requeridas pela vida humana associativa atravs de subsistemas analiticamente especializados em cada uma das macrofunes essenciais. Distintamente do organismo, entretanto, em que as relaes entre os subsistemas e o sistema orgnico so empiricamente diferenciadas, atravs das especializaes celulares, as diferenciaes macrofuncionais, nas sociedades, so de carter analtico, assim como os respectivos subsistemas. Empiricamente, a sociedade sempre um conjunto inter-racional de papis exercidos por atores que so seres humanos individuais. No quadro seguinte se d uma representao grfica das noes precedentemente expostas.

    Os valuveis produzidos e alocados por cada subsistema se exprimem e medem atravs de um meio prprio. O meio de transmisso de crenas e smbolos a cultura. O significado de atores, papis e respectivo status se exprime e mede por seu prestgio. Os comandos produzidos pelo subsistema poltico se exprimem e medem em termos de poder. Os bens e servios dotados de utilidade econmica se exprimem e medem em termos de dinheiro.

    A esses quatro meios prprios, que denominaremos de primrios, por serem os que imediatamente correspondem a cada macrofuno, se adiciona um quinto meio, a influncia. A influncia aquilo que tem quem tem algo. um meio secundrio, porque exprime a intercambialidade dos demais meios entre si. Quem tem dinheiro pode comprar cultura, prestgio ou poder. Quem tem poder pode impor a obteno de dinheiro, de cultura e de prestgio. Prestgio d acesso ao poder,

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    Helio Jaguaribe Os Subsistemas Sociais

    cultura e ao dinheiro. Isto significa que cada meio d acesso ao seu valuvel especfico e, por intercambialidade, ou seja, por ser portador de influncia, d acesso a outros valuveis.

    Ademais de comportar, analiticamente, quatro subsistemas, a sociedade se apresenta como um sistema dotado de profundi-dade, com um nvel de base e um nvel de cpula. As atividades sociais, ademais de se diferenciarem, horizontalmente, por suas macrofunes, tambm se diferenciam, verticalmente, por serem regulatrias ou reguladas. No plano de base, temos as vrias formas de interao social. Atos de compra e venda, atos religiosos ou culturais, etc. No plano superior, temos regimes que determinam de que forma so praticados os vrios atos e quem tem competncia para pratic-los. No quadro a seguir se indica, graficamente, relativamente aos quatro subsistemas, a diferen-ciao entre o nvel de cpula, ou situacional e o de base, ou ope-racional.

    Macrofunes, subsistemas sociais, valuveis e meios

    Macrofunes, subsistemas e valuveisMeios

    Primrios Secundrios

    1. Cultural: produo e alocao de smbolos de:

    Crenas factuaisCrenas valorativasCrenas normativas

    Smbolos expressionais

    Cultura Influncia

    2. Participacional: criao e alocao afetiva

    AtoresPapisStatus

    Prestgio Influncia

    3. Poltico: produo e alocao de:

    Comandos Poder Influncia

    4. Econmico: produo e alocao de:

    Utilidades Dinheiro Influncia

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    Captulo 2

    Os Subsistemas Sociais

    Planos estruturais societais e sistemas macrofuncionais

    Planos estruturais e sistemas macrofuncionais

    CULTURALSistemas de produo e alocao de smbolos;Crenas factuais;Crenas de valores; eCrenas Normativas e Smbolos Expressionais.

    PARTICIPACIONAL Sistema de produo e alocao afetiva, avaliativa e ldica de:Atores; ePapis.

    POLTICOSistemas de produo e alocao de comandos sancionveis.

    ECONMICOSistema de produo e alocao de utilidades.

    Nveis de profundidade

    1. NVEL SITUACIONALApresentando uma certa ordem social c/ diferenciao entre camadas:A) SUPERIORB) MDIAC) INFERIOR

    REGIME DE VALORESSupondo certas crenas e baseado em um certo regime de participao legitimador:A) Formuladores e intrpretes de smbolos;B) Divulgaes de smbolos; eC) Consumidores de smbolos.

    REGIME DE PARTICIPAOSupondo, legitimado por, e induzindo, um certo regime de valores e manifestao diferenciao de famlia, geracional e social:A) STATUS superior;B) STATUS mdio; eC) STATUS inferior.

    REGIME DE PODERSupondo um certo regime de participao e de valores e sancionando, correspondentemente, com um certo regime de propriedade e a ordem social em geral:A) Tomadores de Deciso;B) Executores de Deciso; eC) Governados.

    REGIME DE PROPRIEDADESupondo um certo regime de participao e de valores e sancionando por um certo regime de poder:A) Controladores de meios de produo;B) Gerentes e tcnicos; eC) Trabalhadores.

    2. NVEL OPERACIONALOrganizaes formais e informais.

    IGREJASInstituies legitimadoras;Escolas;Instituies de Pesquisa e Divulgadoras; eGrupos religiosos, cientficos, humansticos e artsticos.

    FAMLIASGeraes;Instituies de STATUS;Instituies ldicas;Grupos de jogos;Grupos de esportes;Grupos de companheirismo.

    ESTADOPoderes e agncias do Estado;Partidos e Instituies polticas; eGrupos polticos.

    FIRMASInstituies econmicas;Grupos formais de interesse; eGrupos econmicos informais.

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    Helio Jaguaribe Os Subsistemas Sociais

    Intercmbio insumo-produto societal de valuveis essenciais

    Subsistemas

    Subsistemas Produtos

    Insumos Culturais

    Participacional Poltico Econmico

    Cultural Crenas e Smbolos

    FormuladoresDivulgadores

    Crentes

    Sancionamento

    de valores

    Facilidades deinstalaes e de

    operao

    Valores integrativos

    Legitimidade

    Institucionalizao; orientao cientfico-

    tecnolgica (ou mgico-religiosa).

    Participacional

    Valores integrativosAtoresPapisStatus

    Ordem internaDefesa externa

    Facilidades de consumo

    FormuladoresDivulgadores

    Crentes

    Tomadores de deciso

    ExecutoresGovernados

    ControladoresGerentes

    Trabalhadores

    Poltico

    Legitimidade

    Tomadores dedeciso

    ExecutoresGovernados Comandos

    Solvncia

    Sancionamento de valores

    Ordem internaDefesa externa

    Ordem legalServios pblicos

    Econmico

    Institucionalizao:Orientao cientfico-

    tecnolgica (ou religiosa)

    ControladoresGerentes

    Trabalhadores

    Ordem legal

    Servios pblicos

    Facilidades de instalao e operao

    Facilidades de consumo

    Solvncia Mercadorias

    Os quatro subsistemas esto estruturalmente inter- -relacionados. O produto de cada um constitui um insumo bsico dos outros. por essa razo que os subsistemas esto vinculados entre si pelo princpio de congruncia, precedentemente j mencionado. No quadro a seguir se indica, graficamente, a inter--relao de insumo-produto existente no intercmbio entre os quatro subsistemas.

    Concluindo esta sucinta exposio da estrutura da sociedade, dentro da perspectiva funcional-dialtica, pode-se

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    Captulo 2

    Os Subsistemas Sociais

    observar, em sntese, que o carter naturalmente funcional da sociedade, a despeito dos elementos coercitivo-conflitais que caracterizam as formas diferenciadas de sociedade, se reflete na interdependncia das relaes de insumo-produto que se manifesta entre os subsistemas. Por outra parte, cabe observar na medida em que, por causa das bases coercitivas sobre as quais assenta a ordenao social das sociedades diferenciadas, o princpio de congruncia, que regula a compatibilidade, entre si, dos regimes dos subsistemas, assenta sobre a imposio, pelo subsistema poltico, por via coercitiva, dos regimes de valores, de participao, de propriedade e do prprio regime de poder, que integram, em conjunto, o regime social.

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    caPtUlO 3

    SentIdO GeRal dO deSenvOlvIMentO SOcIal

    O subsistema participacional

    O subsistema participacional, como foi precedentemente indicado, o locus analtico da produo e alocao, por via afetiva, avaliativa e ldica, de atores, papis e status.

    O subsistema participacional o sistema social em sentido estrito. Tambm pode ser designado como o sistema social do sistema social. Essa condio decorre do fato de que, analiticamente, suas macrofunes bsicas so as de configurar e regular a associao primria da vida humana associativa, que a famlia. A sociedade humana surge, histrico- -antropologicamente, atravs da integrao, na famlia nuclear, da dada sexual homem-mulher com a dada maternal me--filhos. E a sociedade se expande atravs da constituio da famlia extensa, das linhagens, dos cls e das tribos.

    Em todo esse processo o subsistema participacional exerce, analiticamente, as funes que asseguram sua configurao e

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    Helio Jaguaribe Sentido Geral do Desenvolvimento Social

    expanso. Por vnculos afetivos biopsicologicamente inatos na espcie, se processa a formao das dadas homem-mulher e me--filhos, cuja integrao na famlia nuclear, concomitantemente com a hominizao do homem, est ligada ao desenvolvimento da capacidade de compartilhar os alimentos, de colaborar na coleta de comestveis e na caa, assim como na autodefesa do grupo familiar. Esse processo, que evolui concomitantemente com o desenvolvimento da capacidade de produzir instrumentos e de intercomunicao pela linguagem, conduz especializao de papis no mbito da famlia. Da se origina a autoridade natural do pater familias, que se expandir com o desenvolvimento da famlia extensa e suas sequelas. Ao mesmo tempo tambm se desenvolve, por via ldica, o sentido do jogo e todas as dimenses gratuitas da vida humana associativa.

    Todos os subsistemas sociais so, analiticamente, produtores dos papis correspondentes s suas macrofunes: papis econmicos, culturais, polticos. O subsistema social produz papis sociais em sentido estrito, como os relacionados com a famlia e a gerao e, nas sociedades diferenciadas, os que envolvem as formas gerais de relacionamento com a sociedade civil. Ademais, o subsistema social, a partir da dada homem-mulher, situada como tal, analiticamente, em nvel infrassocietal, produtor de atores para a sociedade. Estes sero, inicialmente, atores de papis familiares. Na medida em que se diferencia a sociedade familstica da sociedade geral, esta receber daquela os atores requeridos por seus diversos tipos de papis econmicos, polticos e culturais.

    Conjuntamente com os papis, os subsistemas sociais, de acordo com seus respectivos regimes, estabelecem relaes

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    Captulo 3

    Sentido Geral do Desenvolvimento Social

    hierrquicas entre os papis e seus atores, distribudas segundo

    trs nveis: o de elite, o de subelite e o de massa. Na sociedade

    familiar primitiva os papis de pai, de me e de filho so,

    respectivamente, de elite, subelite e massa. Tais diferenas de

    nvel, entretanto, no constituem classes, nas sociedades no

    diferenciadas, por conservarem carter funcional e geracional.

    Na famlia extensa, na linhagem, no cl e na tribo, os ancios

    avs e bisavs constituem um conselho de ancios, enquanto

    os pais ativos administram as respectivas famlias, com a ajuda

    das mes e os filhos asseguram a implementao das vrias

    tarefas. O carter funcional-geracional dessa estratificao

    impede sua rigidificao em classes e assegura, aos filhos de

    hoje, os futuros papis de pai e de ancio.

    Nas sociedades diferenciadas declina a importncia geral

    dos papis familiares. O subsistema participacional passa a

    operar, analiticamente, em dois nveis distintos:

    (1) o nvel primrio da famlia; e

    (2) o nvel secundrio da sociedade civil.

    A famlia passa a transferir atores adultos para a sociedade

    civil. Estes, sem perder seus papis familiares especficos (de

    filho adulto, de pai, de av) passam a exercer, cumulativamente,

    diversos outros papis, correspondentes aos demais subsistemas

    sociais. Estes ltimos, que se encontravam, na sociedade

    familstica, subsumidos no subsistema participacional (embora,

    analiticamente, sempre diferenciveis), passam a visibilizar

    suas respectivas particularidades, na medida mesma em que se

    diferencia a sociedade global.

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    Helio Jaguaribe Sentido Geral do Desenvolvimento Social

    fundamental, para o entendimento da sociedade, compreender-se que no trnsito da sociedade familstica para a diferenciada, a perda da importncia absoluta e relativa dos papis familsticos que se internalizam no microssomo familiar acompanhada por uma hierarquizao das famlias na sociedade civil. Na sociedade familstica, como precedentemente se mencionou, a hierarquizao entre nveis de elite, subelite e massa, era funcional-geracional. Nas sociedades diferenciadas, essa hierarquizao se rigidifica e adquire sentido de diferenciao de classe10.

    A consequncia dessa hierarquizao de classe a de que, em lugar de elites, subelites e massas funcionais, que correspondiam a diferenciaes de papis familsticos, entre famlias basicamente igualitrias, se passa a ter uma sociedade basicamente inegualitria, composta por famlias de diferente hierarquia social, independentemente do papel familstico e da gerao a que pertenam os indivduos. So as famlias e seus respectivos membros que se encontraro, agora, em nvel de elite, subelite e massa, dentro de um regime de participao que envolve a sociedade global e perptua, em princpio, de gerao a gerao, essa diferenciao social.

    At a emergncia do mundo moderno, a hierarquizao de classes diferenciando famlias de elite, subelite e massa, implicava, para seus respectivos membros, um status correspondente para todos os seus papis sociais. Patrcios, plebeus e escravos, na antiguidade clssica, nobres, burgueses

    10 Vide os estudos sobre classes sociais na bibliografia.

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    Captulo 3

    Sentido Geral do Desenvolvimento Social

    livres e servos da gleba, na Idade Mdia. Os papis decorrentes dessas diferenciaes eram por elas homogeneamente afetados. Todas as atividades sociais de um patrcio ou de um nobre tinham nvel de elite, como tinham nvel de massa todas as atividades de um escravo ou servo da gleba.

    Com o desenvolvimento da revoluo burguesa e a emergncia da sociedade de massas, surgiu, no mbito dos quatro subsistemas, uma especializao relativa dos nivelamentos sociais. Uma pessoa, numa sociedade industrial contempornea, pode ser, como lder de um sindicato obreiro ou presidente de um importante grmio popular, participante da elite poltica, permanecendo econmica, cultural e socialmente, em nvel de massa. Um professor universitrio tende a participar da elite cultural, podendo permanecer, econmica, poltica e socialmente, membro da massa.

    importante assinalar, sem embargo, que as sociedades contemporneas, embora havendo logrado segmentar o monolitismo dos nivelamentos sociais, tais como subsistiram at o ancien rgime, no conduziram ainda, em nenhum pas, inclusive nos que se autodenominam de socialistas, superao da hierarquizao social bsica das famlias. O horizonte probabilstico de nivelamento social de um indivduo, no atinente ao seu regime de participao na sociedade civil, continua basicamente determinado por sua procedncia familiar. Nas sociedades capitalistas, as classes sociais so, predominantemente, integradas por membros oriundos de famlias da mesma classe. Nas sociedades ditas socialistas as ocupaes manuais, por um lado e as tcnico-gerenciais, por

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    Helio Jaguaribe Sentido Geral do Desenvolvimento Social

    outro lado, tendem a ser exercidas notadamente no que se refere para as primeiras por pessoas oriundas de famlias que j tinham tais ocupaes.

    Diferenciao, discriminao e dependncia

    A diferenciao social, precedentemente analisada, no um processo puramente arbitrrio. Histrico-antropologicamente, a expanso da sociedade familstica ultrapassou os limites de equilbrio do sistema e suscitou crescentes contradies entre as necessidades coletivas e a forma familstica de organizao e administrao da sociedade.

    Na medida em que se multiplicavam as linhagens e se expandia a populao das sociedades tribais, graas aos ganhos de produtividade da revoluo neoltica, resultavam cada vez menos satisfatrios os antigos processos de coordenao dos interesses comuns. No se lograva uma direo administrativamente eficiente e politicamente unificada. A autoridade, repousando sobre o consenso dos chefes de linhagem, atuava sobretudo de forma arbitral, na composio de agravos. Estes, frequentemente, conduziam a conflitos entre linhagens, pondo em risco a sobrevivncia das tribos. E a distribuio de funes e tarefas, entre os membros da sociedade, determinada por critrios tradicionais e opes voluntrias, impedia maior especializao ou uma eficiente interveno corretiva por uma deciso de cpula.

    A transio da autoridade familstica para a institucionalizada, atravs da instaurao das chefaturas, dependeu, como j foi mencionado, da acumulao de excedentes

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    Captulo 3

    Sentido Geral do Desenvolvimento Social

    patrimoniais por certos chefes de linhagem, juntamente com o surgimento de movimentos migratrios intertribais, que permitiram a formao de uma clientela no consangunea a servio daqueles chefes11. Tal fato traduz uma evidente diversificao da situao patrimonial das famlias, no fim dos perodos tribais, atribuvel, provavelmente, a fatores naturais. Essa diversificao, todavia, enquanto no institucionalizada pela criao de nobrezas e realezas, permanecia no plano das situaes de fato. A formao das chefaturas e, com estas, a institucionalizao e rigidificao de situaes de classe, converteu as diferenciaes em situaes de jure, fundadas no prprio regime de participao e contribuiu para intensific-las.

    As sociedades diferenciadas, sem embargo dos aspectos negativos da diviso de classes, lograram ntidos ganhos de eficincia, no seu processo de ordenao interna e no seu relacionamento com o meio ambiente e as demais sociedades. A autoridade deixou