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COLEÇÕES LITERÁRIAS

COLEÇÕES LITERÁRIAS · Federal de Santa Catarina (UFSC), realizado nos dias 5, 6 e 7 de junho de 2013.1 A escolha do tema principal, a relação entre texto-imagem-texto e a questão

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COLEÇÕES LITERÁRIAS

Patricia PeterleAndrea Santurbano

Maria Aparecida BarbosaOrg.

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2013Viveiros de Castro Editora Ltda.Rua Visconde de Pirajá, 580/ sl. 320 – IpanemaRio de Janeiro – rj – cep 22410-902Tel. (21) [email protected] – www.7letras.com.br

© 2013 Patricia Peterle, Andrea Santurbano, Maria Aparecida Barbosa

Este livro segue as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, adotado no Brasil em 2009.

Coordenação editorial Isadora Travassos

Produção editorialCristina PargaEduardo SüssekindRodrigo FontouraSofia SoterVerônica MontezumaVictoria Rabello

Imagens das páginas 27-30 (fig. 6) e p. 31 (fig. 8) © Kunstgeschichtliches Seminar Universität Hamburg, impressas sob permissão.

Imagens das páginas 30 (fig. 7), p. 31 (fig. 9), p. 32-33 © The Warburg Institute, impressas sob permissão.

Imagem da página 96 © Museu Fritz Plauman, impressa sob permissão.

Imagem da página 105 © Rodrigo Lopes de Barros, impressa sob permissão.

Imagens das páginas 157-161 © Acervo da Fundação Biblioteca Nacional, impressas sob permissão.

cip-brasil. catalogação na publicaçãosindicato nacional dos editores de livros, rj

C655

Coleções literárias / organização Patricia Peterle, Andrea Santurbano, Maria Aparecida Barbosa. - 1. ed. - Rio de Janeiro : 7Letras, 2014.

200 p. : il. ; 23 cm.

isbn: 978-85-421-0248-2

1. Literatura - História e crítica . I. Peterle, Patricia. II. Santurbano, Andrea. III. Barbosa, Maria Aparecida.

14-11368 cdd: 809 cdu: 82.09

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Sumário

Coleções e... coleções 9Patricia Peterle, Andrea Santurbano, Maria Aparecida Barbosa

A tautologia da descrição: sobre a abordagem metodológica da imagem em Carl Einstein e Aby Warburg 13

Uwe Fleckner

Carl Einstein: desativar a autonomia 35Raúl Antelo

Imagem, Imaginação, Alucinação – escritura modernista 49Maria Aparecida Barbosa

Traduzir ou mudar de casa? 57Giorgio de Marchis

Tradução e sobrevida das imagens 69Aurora Bernardini

Sobre modos de problematizar o arsenal imagético 77Rosângela Miranda Cherem

Poesia com barro: barro/co de bichos 95Ana Luiza Andrade

Arte, morte, coleção 119Alessandro Pinzani

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Esculturas verbais: a poesia de Carl Andre e Richard Long 127Sérgio Medeiros

Imprensa, moda e literatura: os impasses da modernidade no Jornal das famílias (1863-1878) 139

Sílvia Maria Azevedo

A crítica de autor e sua vida provisória: Maurício Gomes Leite e a crítica cinematográfica e literária de seu tempo 163

Jair Tadeu da Fonseca

A poesia e o jornal: como entrar no século XXI? 177Maria Lúcia de Barros Camargo

A coleção literária de Décio Pignatari em Retratos do amor quando jovem: Dante, Goethe, Shakespeare e Sheridan 187

Silvana de Gaspari

Sobre os autores e organizadores 197

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Coleções e... coleções

A presente coletânea reúne as palestras apresentadas no Colóquio Internacional Coleções Literárias: textos/imagens, organizado por um grupo de professores da Pós-Graduação em Literaturas e do Departamento de Língua e Literatura Estrangeiras da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), realizado nos dias 5, 6 e 7 de junho de 2013.1 A escolha do tema principal, a relação entre texto-imagem-texto e a questão das coleções e dos arquivos, foi um convite aos professores, pesquisadores e alunos para debaterem sobre uma questão tão atual em nossa contemporaneidade.

Literatura é imagem, e outras formas artísticas como o teatro, a pin-tura, o cinema se manifestam também por meio de imagens. De fato, a imagem nunca esteve tão presente no nosso cotidiano de forma tão crua e intensa. O debate sobre a “paixão pelo real”, desenvolvida em O século de Alain Badiou, nesse sentido conflui com os escritos de Georges Didi-Huberman e toda uma tradição desde Warburg, Bataille, Freud, Lacan, Foucault. Não se busca o todo, a sua totalidade, muito menos uma origem propulsora, a atenção está acima de tudo nos intervalos, para lembrar uma frase de Warburg, que abre um importante ensaio sobre o método de Carlo Ginzburg: “O bom Deus está nos detalhes”. A espiral, o caminho mais tortuoso substitui a linearidade. Nesse sentido, é importante recuperar um trecho de Walter Benjamin dedicado à ques-tão da origem:

Mas, apesar de ser uma categoria plenamente histórica, a origem (Ursprung) não tem nada em comum com a gênese (Entstehung). “Origem” não designa o processo de devir e desaparecer. A origem insere-se no fluxo

1 Maiores informações sobre o evento estão disponíveis no site: <http://colecoesliterarias.blogspot.com.br/>.

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do devir como um redemoinho que arrasta no seu movimento o material produzido no processo de gênese. O que é próprio da origem nunca se dá a ver no plano do fatual, cru, manifesto. O seu ritmo só se revela a um ponto de vista duplo, que o reconhece, por um lado como restauração e reconstituição, e por outro como algo de incompleto e inacabado [...] A origem, portanto, não se destaca dos dados fatuais, mas tem a ver com a sua pré e pós-história.2

Assim, o que interessa não é aquilo que é mostrado com a luzes dos holofotes, muitas vezes ofuscantes (provocando uma certa cegueira), mas sim a intermitência, o que está escondido, os “detalhes”. Nesse sen-tido, uma das tarefas do pesquisador é escavar, identificar, organizar, elaborar seu conjunto de séries, selecionar, filtrar, deixar só aquilo que interessa ao seu olhar.

Armazenamento e recuperação são duas palavras de Andreas Huyssen, em Memórias do Modernismo, as quais delineiam o perfil do arquivo estático, imóvel, sistematizado, cujos objetos não podem e não têm como se mover, pois os dados já possuem um rótulo, que o iden-tificam, armazenam e servem, ainda, para a recuperação. Esse tipo de arquivo, que congela o documento, se afasta do ato de escavar.

Considerando o movimento em espiral, a descontinuidade, a memória está inserida na fissura, na cisão, entre passado e presente, e é esse o seu espaço por excelência, entre passado-presente e presente-pas-sado. Desse modo, ela é por definição anacrônica. Anacronismo que pressupõe não mais uma estaticidade e sim um movimento (ou movi-mentos), que compõe os fios da delicada, imbricada e complexa trama. Um tempo, portanto, que não é mais aquele lógico, da cronologia, mas se apresenta analógico, kairológico. 

Ao longo dos três dias do evento foram discutidos os seguintes temas: Movimentos e translações nas artes; Tradução e sobrevida das ima-gens; Imagens poéticas; Acervos, dispositivos, memória; Arquivos, coleções literárias e Sobrevivências. Dessa forma, 13 ensaios que compõem esse volume tratam a partir de perspectivas e olhares diversos dessa relação do texto com a imagem ou da imagem com o texto. De Carl Eistein à poesia de Carl Andre e Richard Long, aos arquivos de Maurício Gomes,

2 BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão. Tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. p. 34.

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aos impasses da modernidade nas ilustrações do Jornal das famílias (1863-1878), ao fato de considerar a própria arte como dispositivo, a questões peculiares do âmbito da tradução – quando o assunto é tradu-ção de poesia ou de imagens bem significativas e singulares –, à explo-ração de textos de João Cabral, Murilo Mendes e Osman Lins, sem falar na relação entre poesia e imprensa no século XX.

Os organizadores agradecem todo o apoio recebido dos setores da UFSC que contribuíram para a realização do Colóquio Internacional Coleções Literárias: textos/imagens e das agências de fomento Capes e CNPq, que vêm incentivando as pesquisas individuais e em grupos, além de espaços profícuos como esse em que foi possível compartilhar e divulgar o conhecimento.

Patricia PeterleAndrea Santurbano

Maria Aparecida Barbosa

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A tautologia da descrição – Sobre a abordagem metodológica da imagem em Carl Einstein e Aby Warburg

Uwe Fleckner

O objeto da historiografia da arte é a imagem, são os contextos múltiplos de sua origem e recepção, a análise de sua forma e de suas intenções. O método usado pelos historiadores da arte, independentemente de sua linha teórica, é a descrição da imagem, pois, segundo a opinião vigente, é apenas pela verbalização das formas artísticas que a mensagem visual tem acesso ao mundo das ideias, que, conforme a nossa compreensão logocêntrica do mundo, se organizam de acordo com padrões linguís-ticos. No entanto, essa caracterização um tanto sumária contradiz de forma surpreendente o método de dois representantes da história da arte que receberam uma atenção particular recentemente e serviram de inspiração decisiva da historiografia atual da arte: Carl Einstein e Aby Warburg. A minha palestra procura investigar essa contradição e locali-zar na atuação de Einstein e Warburg o que caracteriza sua abordagem teórica específica, principalmente sua maneira de lidar com a imagem através da linguagem, mas também fora da linguagem.

Se considerarmos a época em que os dois historiadores da arte viviam – Warburg nasceu em 1866 em Hamburgo, onde morreu em 1929; Einstein em 1885 em Neuwied e se suicidou na fronteira franco-espanhola fugindo do exército alemão –, podemos ver que, historica-mente, compartilhavam os anos mais importantes das suas atividades. Mesmo assim, os dois homens, que viviam em meios sociais e teóricos totalmente diferentes, nunca chegaram a se encontrar pessoalmente, apesar de haver um ponto de contato concreto entre seus círculos de atuação; mas deixamos isso para depois. Para desvelar o núcleo dos seus respectivos procedimentos teóricos, gostaria de dar, nos próximos minutos, uma olhada nas principais obras dos dois autores para analisar

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depois a essência metodológica e sua importância para a abordagem das obras da história da arte hoje.

renúncia à escrita ecfrástica

Carl Einstein é o historiador da arte mais radical das vanguardas, tanto em termos políticos quanto estéticos. Com seu estudo Plástica de negro [Negerplastik] (1915), bem como sua Arte do século XX [Kunst des 20. Jahrhunderts] (1926, 3ª ed. 1931), ele se tornou, já em vida, um vanguar-dista intelectual (Figura 1). Com a Arte do século XX, o autor desenvolveu um compêndio que deve ser visto menos como uma cronologia de fatos históricos do que como um modelo histórico que mapeia o caminho da modernidade através do conceito revolucionário do espaço do cubismo rumo aos novos mitos do surrealismo. Nessa obra, o modo de análise de Einstein rompe com as fronteiras estreitas do estético, dirigindo o olhar também para a revolução político-cultural na visão do mundo e do homem no seu século. Enquanto a primeira edição do livro fornece um resumo epistemológico da apreensão cubista da realidade, a terceira oferece o manifesto de um esboço cubista-surrealista com base numa perspectiva antropológica, etnológica, psicológica e histórico-cultural.

Na edição de 1931 do seu livro, Einstein apresenta não menos que 461 reproduções, pinturas e esculturas, desenhos e gravuras impressas. E, quantas descrições de imagens encontramos nesse volume? Nem uma única! E isso não se deve ao fato de o autor ter negligenciado as obras que formam a base da sua obra; ao contrário: o livro de Einstein está cheio de caracterizações estéticas argutas das obras que conhecia muito bem por experiência própria e que havia estudado em exposições, com os marchands e nos ateliês dos artistas. Durante seu trabalho no livro, ele manifestou seu ceticismo fundamental em relação a qualquer forma de descrição de imagem e suas convicções críticas e filosóficas em rela-ção à linguagem. Numa carta de junho de 1923, endereçada a Daniel-Henry Kahnweiler, Einstein expôs os fundamentos estéticos do cubismo e suas consequências formais para a imagem e a palavra:

Já sei há muito tempo que essa coisa chamada de ‘cubismo’ ultrapassa de longe o âmbito da pintura. O cubismo só se sustenta quando se cria equi-valências psíquicas. É tão lamentável ver como os escritores com sua lírica

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e suas pequenas sugestões para o cinema ficam atrás da pintura e da ciên-cia. Já sei há muito tempo que não apenas uma transformação do olhar é possível, mas também uma transformação do equivalente verbal e dos sentimentos.1

A “transformação do olhar” aponta para a exigência decisiva da teoria de arte de Einstein, a “transformação do equivalente verbal”, de forma análoga aponta para a categoria certamente central da sua escrita literária, mas também teórico-ensaísta. O mais importante da sua obra era, em primeiro lugar, a “palavra destroçada”, isto é, a destruição do uso puramente mimético da linguagem:

A realidade da literatura é a ordem sequencial das palavras. Ora, não basta ornamentar essa sequência naturalista de forma poética ou de encobri-la com metáforas, mas deve-se [...] finalmente depreender a palavra do processo naturalista, para que não seja apenas imitação de um processo já consumado, isto é, uma tautologia supérflua, mas os acontecimentos devem ser processados da maneira que decorrem na imaginação interna.2

Einstein tem consciência da proximidade dessas reflexões linguís-ticas e epistemológicas com teorias estéticas da representação, assim como das consequências para a crítica e da historiografia da arte. Elas não apenas são desencadeadas pelas obras do cubismo, mas remontam ao mesmo tempo para a própria obra, de maneira que os textos sobre a arte se transformam no lugar de uma discussão que, bem como a pró-pria arte, aponta para relações elementares além de si mesmo: “Ficar longe da descrição, isto é, buscar uma transformação dos conteúdos das vivências, dos objetos etc. Disse para mim mesmo, que finalmente gra-ças às minhas elucubrações sobre a arte eu poderia passar a escrever essas coisas.”3

Uma vez desmascarado o conceito mimético de linguagem como uma “tautologia supérflua” e uma vez que, consequentemente, o autor

1 Carta de Carl Einstein a Daniel-Henry Kahnweiler, sem data [Juni 1923]. In: EINSTEIN, Carl; KAHNWEILER, Daniel-Henry. Correspondance 1921-1939. Marseille: Liliane Meffre, 1993. p. 139. Sobre a dimensão epistemológica do cubismo em Carl Einstein vide também QUAST, Antje. Das Neue und die Revolte. Schlüsselbegriffe der Avantgarde bei Guillaume Apollinaire und Carl Einstein (Abhandlungen zur Sprache und Literatur, Bd. 67). Bonn: Romanistischer Verlag, 1994. p. 101.

2 EINSTEIN, Carl; KAHNWEILER, Daniel-Henry. Op. cit. p. 146.3 Ibid. p. 140.

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não pode mais confiar nas possibilidades formais de uma linguagem descritiva, isso acarreta inevitavelmente grandes mudanças para qual-quer tipo de escrita no âmbito da crítica e da história da arte cujo sucesso – daquela época até hoje – depende em boa parte também da força argu-mentativa e sugestiva das descrições das obras. Einstein tem plena cons-ciência do desafio dessa consequência inicialmente perturbadora, mas também inevitável de seu ceticismo linguístico, e a transvaloração de todos os valores da linguagem e da estética leva também, em última ins-tância, a uma transvaloração da profissão do historiador da arte.

No seu livro sobre Georges Braque, de 1934, que, com razão, pode ser considerado como um tratado de teoria da arte que ultrapassa seu tema propriamente dito, Einstein transfere seu ceticismo linguístico à linguagem da historiografia da arte, sobretudo à função da écfrase na análise de obras das Artes Plásticas. Com palavras incisivas, Einstein exige a renúncia à escrita ecfrástica em geral, privando assim o histo-riador da arte, assim como o crítico da arte, da base tradicional de sua atividade científica ou ensaística:

Encobriram e blindaram as imagens com descrições. As obras de arte são asfixiadas pelas palavras da moda e o seu lado descomunal é envelhecido pela terminologia usual. Depois, a paráfrase que anestesia pela sua bana-lidade é transmitida de forma infecciosa e mecânica para outros mono-motivos <sic> – sífilis das palavras – e, assim, transborda a monografia de clichês, um exemplo constrangedor de uma inércia comercialmente agitada; nomes, números e adjetivos podem ser trocados, o resto sempre cabe, como num calendário perpétuo.4

O próprio Einstein não queria ser um daqueles “coiffeurs da descri-ção” ou “decoradores frágeis de palavras”, que “ignoravam que as pala-vras nunca conseguem traduzir uma vivência ótica de forma satisfató-ria e verdadeira”.5 Seu ceticismo é articulado diante de um conceito de linguagem que se contenta com a descrição da obra de arte, sendo que o importante seria adaptar a obra à própria posição intelectual, ou seja,

4 Id. (a tradução de vérole des mots é “sífiles de palavras”); sobre o problema da ecfrase em Einstein compare com NEUNDORFER, German. Kritik an Anschauung. Bildbeschreibung im kunstkritischen Werk Carl Einsteins (Epistemata. Würzburger wissenschaftliche Studien. Reihe Literaturwissenschaft, Bd. 453). Würzburg: Königshausen & Neumann, 2003.

5 Ibid. p. 253.

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“obrigar a imagem a se integrar na própria visão pré-estabelecida.” Mas a incapacidade da linguagem de reproduzir uma obra das artes plásticas de forma adequada e sensível também não é superada mediante esse procedimento notável – porém também questionável – o “abismo ine-xorável entre a fala e a imagem”, o motivo do ceticismo de Einstein em relação à linguagem, não é superado.6

Einstein tinha que criar sua linguagem entre a literatura e a ciência a partir do nada. As exigências que fazia à sua própria obra eram per-feitamente comparáveis com as exigências feitas ao seu livro A arte no século XX, uma vez que, neste caso também, tratava-se de reproduzir ver-balmente processos diacrônicos e de processar literariamente observa-ções concretas. A solução que permite a Einstein libertar a historiografia da arte da aporia do ceticismo linguístico consiste num entrelaçamento sui generis de um estilo descrito e um estilo que descreve.7 Assim, por exemplo, Einstein reage à arte de Vincent van Gogh com o páthos de uma linguagem solene (“trata-se de obrigar a terra à identidade com o homem por uma questão de misericórdia”), sendo que sua caracteriza-ção da pintura neo-impressionista é marcada por uma condução orna-mental da frase (“linhas horizontais anunciam tranquilidade, curvas em ascensão jubilam alegria, linhas em queda designam luto”).8 Se as pintu-ras de Fernand Léger são evocadas com construções sintáticas elípticas, estruturadas por um ritmo duro (“um totemismo energético e industrial; homem – fusil – folha – mapa”), a elaboração verbal do capítulo sobre o expressionismo alemão apresenta uma linguagem que lembra, em sua dicção e na formação das palavras, as experiências literárias dessa época (“E ainda se gabam das bordas numa aspereza de grosseiro abandono.”)9

Em todos os seus textos sobre a arte e, consequentemente, também na sua principal obra historiográfica, Einstein faz jus ao seu próprio

6 Id.7 Vide sobre isso HERDING, Klaus. Immer auf der flucht vor einem bindenden milieu: Carl

Einstein. Merkur. Deutsche Zeitschrift für europäisches Denken n. 46, p. 717-725, p. 721, 1992; _____. Carl Einstein: Toujours à refuser les astreintes d’un milieu déterminé. Revue germanique internationale n. 2, p. 151-164, 1994.

8 EINSTEIN,  Carl.  Die Kunst des 20. Jahrhunderts (Edição Uwe Fleckner e  Thomas W. Gaehtgens). Berlin: Fannei & Walz, 1996. p. 55 e p. 62 (aqui Einstein traduz do tratado de Paul Signac D’Eugène Delacroix au néo-impressionisme de 1899).

9 Ibid. p. 153 e p. 208.

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veredito de não admitir a descrição tautológica dos fatos observados. De fato, o leitor de A arte do século XX não encontra nenhuma descrição de imagem, mas, mesmo assim, as obras e grupos de obras tratados sempre se apresentam de forma nítida diante de seus olhos. O objetivo da forma peculiar de linguagem do livro é a evocação indireta da obra de arte; sua intenção é de despertar no leitor não apenas as propriedades estilís-ticas, mas também o teor formal e visionário das pinturas e esculturas por meio de analogias literárias. A função dessa estratégia é o desen-volvimento de uma forma de linguagem que absorva traços formais da respectiva arte, convidando o leitor e observador das reproduções a transferir as estruturas do texto às imagens. Nessa operação, o texto se depreende da obra particular, sendo ao mesmo tempo testemunho da observação, da visão do autor, sem se tornar um “descritor de obras”, que, de acordo com Einstein em 1934, “ao invés de sofrer uma visão pró-pria, utiliza os rostos formados por outros como corrimão.”10 Mas a lin-guagem de Einstein não procura reproduzir a obra de arte por meio da linguagem – muito pelo contrário: para o autor, a visão vivenciada, ou até mesmo “sofrida”, é, antes, motivo para criar uma obra literária em si mesma e confia a um leitor ativo a tarefa de conjugar a impressão visual com a impressão de leitura, pois A arte do século XX foi publicada – assim como muitos outros livros e artigos do autor – com um excelente material ilustrativo: o texto subjetivo do autor entra numa relação com-plementar com a história objetiva das imagens, que consiste em repro-duções cuidadosamente selecionadas e cronologicamente dispostas, de maneira que o leitor, enquanto instância mediadora, só poderá gerar o verdadeiro texto através da leitura do texto e das imagens, uma espécie de meta-texto que associa aspectos visuais e intelectuais.

Na revista Documents, que Carl Einstein editou de 1929 até o início de 1931 em Paris, foram confrontadas contribuições acima de qualquer fronteira de gênero e consideradas como parte de uma his-tória da arte que ele definiu como “combate de todas as experiências óticas”11 (Figuras 2-3). Em cooperação com Georges Bataille, ele criou com sua revista um fórum para aqueles artistas surrealistas que não

10 Ibid. p. 257 (Georges Braque).11 Vide FLECKNER, Uwe. Der Kampf visueller Erfahrungen. Surrealistische Bildrhetorik

und photographischer Essay in Carl Einsteins Zeitschrift “Documents”. In: Begierde im

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faziam parte do círculo de André Breton. Longe dos manifestos ortodo-xos, Einstein operava desde então com conceitos básicos que associavam aspectos estéticos com aspectos etnológicos e antropológicos: alucina-ção, metamorfose, arcaísmo. A remitização da modernidade postulada por ele devia dar forma figurativa às forças que, vindo da profundidade da história, mas também da profundidade da psique humana, procu-ravam um caminho para a luz da arte. Einstein esperava da arte do seu século aquela revolta contra a fatalidade da morte, que, enquanto ato proto-existencialista, fundamentava sua esperança em relação a liberta-ção do homem.

Principalmente as ilustrações passam ao leitor da revista uma impressão imediata de sua variedade temática e metodológica. Adotou-se, como princípio editorial, uma retórica sobre as imagens na qual se encontravam obras de arte e artefatos de épocas e nações diver-sas em combinações constantemente renovadas e surpreendentes: havia obras de culturas extintas ao lado de obras de vanguarda, obras da alta cultura ao lado das curiosidades da cultura trivial ou popular.12 Embora os Documents conseguiam realizar com uma certa perfeição o programa específico de combinar temas e ilustrações de áreas diversas em suas relações múltiplas, esse procedimento experimental não foi inventado e testado apenas nessa revista. Ele poderia ser remontado – mas isso levaria longe demais neste momento – ao almanaque comparatista de imagens do Cavaleiro azul [Der blaue Reiter, 1912], e poderia ser acom-panhado através de muitas revistas de arte e cultura até meados do século XX. Vamos dar uma olhada em alguns exemplos particularmente interessantes dos Documents. Assim, no caderno nº 5 de 1929, duas notas anônimas, que falam de uma exposição de saltérios irlandeses, assim como do legado do bizantinista Georges Schlumberger na Biblioteca Nacional, são acompanhadas de ilustrações que ocupam, respectiva-mente, a metade de uma página (Figuras 4-5). A essas ilustrações foram associadas, de forma livre e sem qualquer relação com o texto, obras contemporâneas da mão de Paul Klee, para assim apresentar ao leitor

Blick. Surrealistische Photographie (hrsg. v. Uwe M. Schneede). Hamburg: Hamburger Kunsthalle, 2005. Ausstellungskatalog, p. 22-31. 11 März 2005 bis 29 Mai 2005.

12 A segunda edição da revista sai somente em 1931, embora seja datada como segundo ano de edição.

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as características estéticas comuns.13 A pintura Palhaço [Clown; 1929; propriedade particular] esboça, como a miniatura irlandesa do século X, um conceito de corpo plano, acentuado por elementos coloridos e ornamentos internos; a pintura Louco pequeno em transe [Kleiner Narr in Trance; 1929; Museu Wallraf-Richartz, Colônia] mostra uma dissolu-ção gráfica do volume corporal, cuja linguagem formal é comparada à representação à maneira de sinais na moeda russa reproduzida.

No caderno nº 6 de 1930, o ensaio “Têtes et crânes” de Ralph von Koenigswald é ilustrado por um conjunto de imagens no qual são relacionados uma máscara da Nova Caledônia, duas cabeças do ritual tsantsa da América do Sul e um recorte de Judite e Holofernes [Judith und Holofernes; 1535; Museu da História da Arte, Viena] de Lucas Cranach (Figura 6). Nesses casos, o arranjo dado às reproduções da revista consiste em pequenos ensaios de imagens, que contam com a participação ativa dos leitores e observadores, fazem comentários, por exemplo, sobre a continuidade dos problemas formais nas artes e expli-cam regularidades estéticas, iconográficas ou culturais. Uma vez mais, a retórica insólita de Einstein ao comentar as imagens se baseia em um ceticismo profundo em relação às possibilidades de representação pelo menos da linguagem descritiva, que, em sua opinião, é fadada ao fra-casso diante do poder da expressão imagética. Num dos textos-chave dos Documents, nas “Notas sobre o cubismo” [“Notes sur le cubisme”], de junho de 1929, que, num plano epistemológico podem ser lidas como texto programático, ele expressa abertamente essas dúvidas metódicas para o âmbito da história da arte: “Quanto ao método minucioso que consiste na descrição de imagens, observamos que, devido à estrutura da linguagem, a simultaneidade da imagem é desmembrada e a impressão causada por ela é destruída pela heterogeneidade das palavras.”14 Assim, Einstein chega à conclusão categórica de o abismo entre a linguagem e a

13 Vide ANONYM. Le legs Schlumberger au Cabinet des médailles. Documents. Archéologie – Beaux-Arts – Ethnographie – Variétés. Paris: Jean Michelle Place, n. 1, p. 285-287 (figuras), 1929.

14 EINSTEIN, Carl. Notes sur le cubisme. Documents. Doctrines – Archéologie – Beaux-Arts – Ethnographie. Paris: Jean Michelle Place, n. 1, p. 146-159, 1929. Sobre a rejeição das descri-ções como técnica literária («Rien n’est comparable au néant de celles-ci») vide também BRETON, André. Premier Manifeste du Surréalisme. p. 8-75, p. 19. Sobre a crítica linguís-tica de Einstein vide RUMOLD, Rainer. Painting as a Language. Why Not? Carl Einstein in Documents. October, n. 107, p. 75-94, 2004.

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imagem, entre a obra de arte e sua abordagem literária ser insuperável: “O problema capital é a diferença entre duas categorias, entre aquela da imagem e aquela da linguagem.”15

É exatamente essa abordagem comparatista dos arranjos surrea-listas e associativos do texto e da imagem na revista Documents que corresponde à disposição dos livros da Biblioteca Warburg de Estudos Culturais em Hamburgo, que seu fundador definiu pela “lei da boa vizinhança”.16 Por isso, não é por acaso que encontramos tanto Erwin Panofsky quanto Fritz Saxl, os colegas e colaboradores de Warburg, na lista dos autores dos Documents, mesmo se, em última instância, a coo-peração esperada não trouxe frutos editoriais.17 Segundo suas próprias palavras, Einstein havia acompanhado e apreciado muito as inovações metodológicas da Biblioteca Warburg. Por esse motivo, ele solicitou a Saxl, já em janeiro de 1929, ou seja, alguns meses antes da publicação do primeiro caderno, contribuições do círculo de Hamburgo: “Acompanhei com grande interesse seus trabalhos, assim como as publicações do seu Instituto. Eu teria muito prazer se pudesse se estabelecer entre o Sr., seu Instituto e a nossa revista, uma ligação. São principalmente seus métodos de pesquisa que despertaram o meu maior interesse e gostaria de aco-lher trabalhos de vocês; por exemplo tratando do homem como micro-cosmo, sobre representação simbólica de corpos, sobre signos zodiacais e horóscopo.”18 O editor dos Documents mostrou, portanto, que estava muito bem informado sobre as atividades dos colegas de Hamburgo, e Saxl lhe enviou com muita presteza uma seleção de textos já publicados para Paris, entre outros o texto Idea de Panofsky (1924), assim como um manuscrito que estava no prelo. Além disso, ele, por sua vez, pediu infor-

15 EINSTEIN. Notes sur le cubisme. Op. cit. p. 147.16 Vide GOMBRICH, Ernst H. Aby Warburg. Eine intellektuelle Biographie. Hamburg:

Europäische Verlagsanstalt, 1992. p. 436.17 Vide Documents. Doctrines – Archéologie – Beaux-Arts – Ethnographie, Impressum im

zweiten Heft, November 1929; somente Verzeichnis astrologischer und mythologischer illustrierter Handschriften des lateinischen Mittelalters (1927) de Saxl foi incluído como texto da revista; vide LEIRIS, Michel. Notes sur deux figures microcosmiques des XIVe et XVe siècles. Documents. Doctrines – Archéologie – Beaux-Arts – Ethnographie. Paris: Jean Michel Place, n. 1, p. 48-52, 1929.

18 Carta de Carl Einstein a Fritz Saxl, 30 Januar 1929 (London. Warburg Institute), citação conforme Joyce, 2003 (Carl Einstein in Documents), p. 230; sobre troca epistolar entre Einstein e Saxl vide ibid. p. 38 e p. 230.

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mações sobre a possibilidade de trazer para o conhecimento dos leitores franceses o “posicionamento geral e o método” da Biblioteca Warburg através de um resenhista da revista.19 Assim, a ampliação almejada das fronteiras do território tradicional dos temas e métodos da história da arte e principalmente as novas formas de uma iconologia comparativa levaram, pelo menos por um tempo curto, a um intercâmbio intelectual entre duas personalidades tão distantes como Saxl e Einstein.

a estrutura argumentativa polífona e polifocal das imagens

Desde a recuperação de Warburg em meados dos anos 20, a Biblioteca das Ciências Culturais havia se transformado num palco de apresenta-ções experimentais, nas quais o historiador da arte agora experimentava exclusivamente, no lugar de publicações de livros e artigos, suas pesqui-sas revolucionárias, tornando-as públicas pelo menos para um pequeno círculo de pessoas. Ao lado do seu famoso Atlas Mnemosyne, que perma-neceu fragmentário, ele criou nessa época mais que uma dúzia de séries de imagens que acompanhavam suas conferências: o meio didático do quadro de imagens com suas possibilidades múltiplas de combinação substituía, nas últimas conferências de Warburg, a linearidade unidi-mensional da linguagem pela simultaneidade visual.20 Embora Warburg recorresse à forma histórica do atlas como meio da ordenação do saber, há de se observar que os atlas em sua forma tradicional tiveram pouca influência nos seus métodos didáticos, pois os atlas enciclopédicos ou especializados não haviam desenvolvido uma argumentação imagética própria: sua aparência era definida por uma disposição simples, em sua maioria simétrica, por séries justapostas ou sequências contínuas; elas ilustravam conceitos lineares e evolucionistas e renunciavam a qualquer relação complexa entre as imagens (Figura 8). Mesmo quando publi-cadas com comentários reduzidos, visavam o sistema referencial de uma historiografia fixada na linguagem que não narrava os contextos

19 Carta de Fritz Saxl a Carl Einstein, 2 Februar 1929 (London. Warburg Institute), citação conforme Joyce, 2003 (Carl Einstein in Documents), p. 231.

20 Sobre esses projetos de quadros vide WARBURG, Aby. Ausstellungen und Bilderreihen (edit. Uwe Fleckner e Isabella Woldt). Berlin: Akademie Verlag, 2012 (Gesammelte Schriften, Bd. II.2).

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históricos por meio da imagem. Limitavam-se a colocar à disposição as fontes visuais de temáticas variadas a um grande público, a expor o saber da época de forma empirista e positivista, sem transcendê-lo. O impulso mais importante que partiu dos atlas da época para Warburg deve ter consistido na descoberta das possibilidades de um compara-tivismo metodicamente mais ousado, que estava longe de ser esgotado, e de poder desenvolver essa descoberta nas próprias conferências com exposição, assim como no Atlas Mnemosyne, indo muito além das publi-cações já existentes.21

Se considerarmos, por exemplo, o quadro nº 5 da sua conferên-cia “A função da Antiguidade sobrevivente na formação de uma sim-bólica energética” (1927; “Die Funktion der nachlebenden Antike bei der Ausprägung energetischer Symbolik”), que havia ministrado para a comemoração do aniversário de 60 anos do seu irmão Max, temos um quadro tipicamente warburguiano diante dos nossos olhos (Figura 9).22 Num fundo preto estão expostas doze obras, a maioria delas mostrando peças selecionadas em reprodução fotográfica. Para tratar do tema cen-tral, a iconografia relacionada com a morte de Orfeu, Warburg reuniu outras representações de cenas que apresentam o corpo humano em situações tensas de luta e de conflito, entre elas o grupo Laocoonte (Musei Vaticani, Roma), motivos da chamada Briga pela calça [Hosenstreit] da Europa do Norte e do Sul, uma Punição de Amor [Bestrafung Amors] do círculo de Baccio Baldini, a pintura Infanticídio de Belém [Bethlehemitischer Kindermord de Domenico Ghirlandaio; S. Maria Novella, Firenze], além de um desenho das figuras para tornar os con-tornos dos seus gestos mais visíveis, assim como a cena de uma batalha do século I, que foi reutilizada no Arco de Constantino. Mediante sua seleção de formatos diferentes, Warburg separou claramente as repro-duções principais das secundárias, sendo que a variedade dos motivos foi controlada pela expressividade comum das imagens montadas. A distensão física e psíquica é representada, por um lado, na modalidade patética da Antiguidade, por outro lado à maneira de uma comédia no

21 Vide FLECKNER, Uwe. Ohne Worte. Aby Warburgs Bildkomparatistik zwischen wissens-chaftlichem Atlas und kunstpublizistischem Experiment. In: WARBURG, Aby. Op. cit. p. 1-18.

22 Vide WARBURG, Aby. Op. cit. p. 115.

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caso da “Briga pela calça”, para depois documentar, mediante exemplos do começo do Renascimento, o trabalho com imagens heterogêneas, sendo que as obras de Dürer marcam uma espécie de situação liminar. Surgiu assim uma constelação altamente interessante que, através de uma transferência geográfica e histórica dos motivos visa a mostrar o problema da domação da passionalidade.

Esse quadro de imagens pode ser visto como uma visualização exemplar da pathosformel de Warburg, uma vez que recebe seus impul-sos de cenas muito agitadas que entram ao mesmo tempo nas profun-dezas das relações dialéticas entre a arte da Europa do Norte e aquela da Europa do Sul. Não se trata de uma encenação de uma sequência cronológica, ou até teleológica, ou de qualquer outra forma linear da Antiguidade ao Renascimento, mas de um diagrama abrangente de cor-pos carregados de energia que gera a suposta bipolaridade e multipola-ridade do desenvolvimento histórico por meio de confrontações ime-diatas e constantemente renovadas, tornando visível a gênese a partir do mito com sua excitação passional até chegar na parábola conforme a sofrósina cristã e apresentando aos seus observadores o “simbolismo energético” de uma Antiguidade sobrevivente. Quanto à composição isso significa que Warburg não criava uma combinação paratática de seus exemplos, mas um confronto tenso entre as imagens, o que evi-dencia uma certa proximidade com a fundamentação antropológica da história da arte formulada por Carl Einstein na mesma época (cf. o “combate de todas as experiências óticas”).

Se no caso aqui analisado se trata de um quadro relativamente sim-ples, outros exemplos mostram a complexidade que Warburg conseguia desenvolver. Não apenas o número imenso das reproduções num espaço reduzido – a maioria dos quadros da série sobre Manet e a Antiguidade italiana [Manet und die italienische Antike] apresentam mais que 50 peças –, também a heterogeneidade dos meios usados, assim como as composições densificadas ao extremo representam desafios considerá-veis, uma vez que, de um modo geral, faltam as explanações de Warburg, pois, na maioria dos casos, ele fazia seus comentários livremente na frente dos seus quadros (Figura 10).23 Mas o layout das suas séries de

23 Ibid. p. 367.

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imagens mostra sobretudo a sutileza das ideias que Warburg tecia em suas apresentações. Em alguns quadros com imagens muito próximos uns dos outros, podemos identificar diferentes clusters, concentrações baseadas em determinado motivo, sendo que as reproduções podem ser combinadas para todos os lados, de modo que o foco do observador muda sua direção constantemente para novos campos de interesse. Em algumas ocasiões, Warburg alcançava as estratégias de argumentação dos seus quadros mediante uma direção das imagens que pode ser com-parada de forma fecunda com os recursos do cinema (sequência de cor-tes, plano geral, close-up, retrospectiva), sendo que não há como excluir a possibilidade de que o historiador da arte desenvolveu as respectivas técnicas independentemente das suas experiências com o cinema, que não eram muito abrangentes (Figura 11).24

Resumindo, pode-se dizer sobre a retórica de imagens dos qua-dros de Aby Warburg que ela procura convencer o observador com uma estrutura argumentativa não apenas polífona mas também polifo-cal, cujos efeitos dificilmente podem ser reduzidos a um denominador comum.25 Nesses quadros se encontram arranjos de uma quantidade de exemplos da Antiguidade até a arte contemporânea, cuja sintaxe própria não segue nenhum preceito verbal: embora haja ocasionalmente linhas horizontais de imagens ou colunas verticais, estas são interrompidos muitas vezes por linhas que mostram relações abertas. São encenados percursos de determinados motivos, assim como suas inversões, um material descontínuo entra em colisão, a montagem reúne elementos imagéticos homogêneos e heterogêneos, e o conceito warburguiano da contrariedade polar da história cultural se expressa em muitos quadros pela disposição do material em perspectivas que chegam a ser contradi-tórias. O fato de Warburg ter composto as mesmas imagens em confi-gurações continuamente renovadas e de ter alterado alguns quadros de

24 Sobre o significado do filme para a concepção de movimento e especialmente para a sequencialidade no Mnemosyne-Atlas de Warburg vide MICHAUD, Philippe-Alain. Aby Warburg et l’image en mouvement. Paris: Macula, 1998; Hensel, 2011, p. 127; vide também SIEREK, Karl. Foto, Film und Computer. Aby Warburg als Medientheoretiker. Hamburg: EVA, 2007.

25 Sobre a maneira de argumentação em quadros plurais vide GANZ, David; THÜRLEMANN, Felix (edit.). Das Bild im Plural. Mehrteilige Bildformen zwischen Mittelalter und Gegenwart. Berlin: Reimer, 2010 (Bild + Bild, Bd. 1).

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uma exposição para a outra para serem apresentados durante o trabalho no Atlas Mnemosyne novamente em outras versões, demonstra uma vez mais o caráter experimental de seu método.

Embora o percurso do olhar através das respectivas constelações de imagens não possa ser arbitrário, ele também não é prescrito de forma clara e sobretudo não é unidimensional, ou cronológico, diri-gido para uma meta predefinida do conhecimento. O olhar caminha da maneira que as formas imagéticas caminham, de acordo com a posição de Warburg, pelo espaço e pelo tempo, sendo que as contradições da história são respeitadas na disposição específica do material visual e até ganham destaque em seu caráter inevitável. O fato de essas constelações visuais serem apresentadas num fundo preto, não é, de maneira alguma, um aspecto secundário: como um passepartout, o suporte monocromá-tico separa as respectivas peças, chamando ao mesmo tempo a atenção para a proximidade particular – ou a colisão imediata – de duas ou três reproduções quando a distância entre as peças é intencionalmente redu-zida, de maneira que as centelhas de novas ideias podem passar “entre as linhas”. Estamos lidando aqui com descarregamentos de energia que também encontramos algumas vezes nos gestos enérgicos dos desenhos esquemáticos de Warburg, principalmente quando se trata de esboços espontâneos (Figuras 12-13). Enquanto formações abertas do saber, as séries de imagens do historiador da arte de Hamburgo possuem tanto uma dimensão epistêmica quanto estética, seu layout visa a compreen-são intelectual e sensível.

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Tanto as formas de publicação de Carl Einstein quanto as apresen-tações de Aby Warburg se fundam num profundo ceticismo em rela-ção à linguagem – algo muito significativo, uma vez que ambos devem ser considerados como os maiores artistas da linguagem de sua época. Em sua qualidade de historiadores da arte, entenderam que o traba-lho com fenômenos imagéticos não pode ser feito através de uma sim-ples transferência das impressões visuais para o âmbito da linguagem. Consequentemente, procuram fazer falar a própria imagem, fundando, mediante esse ato emancipador – cada um à sua maneira, porém na