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Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 9 | n. 18| Jul./Dez. 2007 139 COLISÃO DE PRINCÍPIOS: A DIFÍCIL ARTE COLISÃO DE PRINCÍPIOS: A DIFÍCIL ARTE COLISÃO DE PRINCÍPIOS: A DIFÍCIL ARTE COLISÃO DE PRINCÍPIOS: A DIFÍCIL ARTE COLISÃO DE PRINCÍPIOS: A DIFÍCIL ARTE DE DECIDIR DE DECIDIR DE DECIDIR DE DECIDIR DE DECIDIR Paulo César Nunes da Silva 1 Resumo: O presente trabalho tem como objetivo abordar as questões ético-jurídicas da decisão e a problemática do conflito de normas. Esta reflexão tem como ponto de referência o aparente conflito entre normas do Código Civil Brasileiro, do Código de Ética Médica Brasileiro e a conduta médica no tocante a vida humana e a vedação da transfusão de sangue às pessoas da religião Testemunhas de Jeová. Palavras-chave: Ética médica. Vida digna. Princípios. IMP IMP IMP IMP IMPACT OF PRINCIPLES CT OF PRINCIPLES CT OF PRINCIPLES CT OF PRINCIPLES CT OF PRINCIPLES: A DIFFICUL : A DIFFICUL : A DIFFICUL : A DIFFICUL : A DIFFICULT ART OF DECIDE T ART OF DECIDE T ART OF DECIDE T ART OF DECIDE T ART OF DECIDE Abstract: The following work has as its objective to abridge the ethic-juristic questions of the decision and the problematic of the norm conflict. This reflection has as its reference point the apparent conflict between norms of the Brazilian Civil Code, the Brazilian Medical Ethics Code and the medical conduct on what deals with the human life and the blocking of blood transfers to people of the Jehovah’s Witnesses religion. Keywords: Medical ethics. Life of dignity. Principles. 1. Introdução Na seara do biodireito, novel ramo da ciência jurídica, por vezes se verifica uma situação aparentemente conflituosa: a colisão entre o direito à vida e o direito de liberdade religiosa. Esta é uma questão polêmica que há muito tempo preocupa os profissionais da saúde e desafia os estudiosos do direito. Este dilema manifesta- se quando, por dever, estes profissionais devem salvaguardar o direito mais essencial de qualquer ser humano, a vida. Os juristas, por sua vez, sentem-se atraídos ao debate objetivando dirimir o conflito de direitos fundamentais que o tema acarreta. Diante dessas primeiras considerações, pode-se perceber quão relevante é o tema. Seus reflexos manifestam-se na vida prática, em particular pela repercussão geral das decisões tomadas. 1 Trabalho de Conclusão de Curso de Especialização em Direito, A Nova Visão do Direito Civil Aplicada ao Processo, apresentado ao Centro Universitário da Grande Dourados – UNIGRAN, sob a orientação do Professor M. Sc. Gassen Zaki Gebara. E-mail: [email protected].

COLISÃO DE PRINCÍPIOS: A DIFÍCIL ARTE DE DECIDIR · geral das decisões tomadas. 1 Trabalho de Conclusão de Curso de Especialização em ... parte geral. 3 ed. São Paulo:

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COLISÃO DE PRINCÍPIOS: A DIFÍCIL ARTECOLISÃO DE PRINCÍPIOS: A DIFÍCIL ARTECOLISÃO DE PRINCÍPIOS: A DIFÍCIL ARTECOLISÃO DE PRINCÍPIOS: A DIFÍCIL ARTECOLISÃO DE PRINCÍPIOS: A DIFÍCIL ARTEDE DECIDIRDE DECIDIRDE DECIDIRDE DECIDIRDE DECIDIR

Paulo César Nunes da Silva1

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo abordar as questões ético-jurídicasda decisão e a problemática do conflito de normas. Esta reflexão tem como ponto dereferência o aparente conflito entre normas do Código Civil Brasileiro, do Código deÉtica Médica Brasileiro e a conduta médica no tocante a vida humana e a vedação datransfusão de sangue às pessoas da religião Testemunhas de Jeová.Palavras-chave: Ética médica. Vida digna. Princípios.

IMPIMPIMPIMPIMPAAAAACT OF PRINCIPLESCT OF PRINCIPLESCT OF PRINCIPLESCT OF PRINCIPLESCT OF PRINCIPLES: A DIFFICUL: A DIFFICUL: A DIFFICUL: A DIFFICUL: A DIFFICULT ART OF DECIDET ART OF DECIDET ART OF DECIDET ART OF DECIDET ART OF DECIDE

Abstract: The following work has as its objective to abridge the ethic-juristic questionsof the decision and the problematic of the norm conflict. This reflection has as itsreference point the apparent conflict between norms of the Brazilian Civil Code, theBrazilian Medical Ethics Code and the medical conduct on what deals with the humanlife and the blocking of blood transfers to people of the Jehovah’s Witnesses religion.

Keywords: Medical ethics. Life of dignity. Principles.

1. Introdução

Na seara do biodireito, novel ramo da ciência jurídica, por vezes se verificauma situação aparentemente conflituosa: a colisão entre o direito à vida e o direitode liberdade religiosa. Esta é uma questão polêmica que há muito tempo preocupaos profissionais da saúde e desafia os estudiosos do direito. Este dilema manifesta-se quando, por dever, estes profissionais devem salvaguardar o direito maisessencial de qualquer ser humano, a vida. Os juristas, por sua vez, sentem-seatraídos ao debate objetivando dirimir o conflito de direitos fundamentais que otema acarreta.

Diante dessas primeiras considerações, pode-se perceber quão relevante é otema. Seus reflexos manifestam-se na vida prática, em particular pela repercussãogeral das decisões tomadas.

1 Trabalho de Conclusão de Curso de Especialização em Direito, A Nova Visão do Direito Civil Aplicada ao Processo,apresentado ao Centro Universitário da Grande Dourados – UNIGRAN, sob a orientação do Professor M. Sc. GassenZaki Gebara. E-mail: [email protected].

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2. A crença como princípio

A problemática objeto do estudo se manifesta, no Brasil, de forma mais evidenteem relação aos adeptos da crença religiosa conhecida por “Testemunhas deJeová”, seguidores de Jeová (Jeová-Deus).

A religião “Testemunhas de Jeová” foi fundada por Charles Taze Russel, nascidoem 1852, nos Estados Unidos. Cresceu sob influencia religiosa. Em 1874 iniciouo seu próprio movimento religioso denominado “Religião Organizada”. Escreveuuma obra de 7 volumes, sob o título “Estudos nas Escrituras”, muito divulgadae até hoje utilizada.2

Os seus membros estão espalhados pelo mundo inteiro. Estima-se em maisde seis milhões e setecentos mil praticantes, e um número superior de simpatizantes.

As “Testemunhas de Jeová” são bem conhecidas pela sua regularidade e grandepersistência na obra de evangelização de casa em casa e nas ruas. Possuem umdos maiores parques gráficos do mundo visando a impressão e distribuição decentenas de milhões de exemplares da Bíblia e de publicações baseadas nela.

Como parte dos atos religiosos, assistem semanalmente a reuniõescongregacionais e a grandes eventos anuais, onde o estudo da Bíblia constitui aprincipal temática. A sua maioria nos “salões da Testemunhas de Jeová”, ou emreuniões de evangelização em domicílios ou locais determinados.

Ao longo da sua história, as suas crenças, doutrinas e práticas religiosas têmsido, amiúde, alvo de controvérsias. Destaca-se aqui tão somente o aspecto jurídicodas mesmas. Especialmente visadas têm sido as suas doutrinas sobre a vindaiminente de um Armagedom global, o seu trabalho intenso de proselitismo (deporta-em-porta), a sua neutralidade3 e distanciamento quanto a tradições secularesou assuntos políticos, a prática da excomunhão ou desassociação de membros(inclusive uma das formas de penalização aos que intencionalmente aceitam recebersangue de outro animal)4, a rejeição a utilização do sangue na alimentação e na

2 Disponível em: http://imwcastro.vilabol.uol.com.br/estudos/testemunhas.htm. Acesso em: 21 Dez 07.3 Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Neutralidade_das_Testemunhas_de_Jeov%C3%A1. Acesso em: 6 Jan.08.4 As Testemunhas fazem questão de ser encarados como exemplos na comunidade em que moram, incluindo nocumprimento das suas obrigações escolares, laborais e civis, evitando práticas tal como o suborno, a mentira, a fugaaos impostos, práticas comerciais desonestas, entre outras. No entanto, afirmam aderir à Lei de Deus antes que à doshomens e, assim, recusam imposições legais que violem as suas consciências treinadas segundo os ensinos bíblicosaprendidos, mesmo que isso implique a perda de privilégios de cidadania, a liberdade ou mesmo a vida. Portanto, quemviola flagrantemente os princípios que jurou defender, e não se arrepende, deve ser expulso da organização para adefesa do bom nome desta e do Nome Santo que as Testemunhas portam sobre si. Tal ação é conhecida em termosreligiosos por excomunhão, sendo usualmente empregue o termo desassociação entre as Testemunhas. Transgressõesgraves contra as suas normas morais e religiosas, tais como as referidas neste artigo, cometidas por parte de umaTestemunha podem levar à expulsão da organização, após decisão de Comissões Judicativas congregacionais. UmaComissão Judicativa, formado por pelo menos três anciãos da congregação, julga a ação pecaminosa à luz do seuentendimento da Bíblia mas, independentemente da gravidade e notoriedade do pecado perante a congregação ou a

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medicina, entre outras temáticas.Exsurge o objeto principal de nosso estudo: a proibição da transfusão de

sangue, alegando que a alma do homem está no sangue, e sendo assim, não sepode passá-la a outra pessoa, pois, neste caso, desobedece-se ao mandamento deamar a Deus com toda a alma.5 A base religiosa alegada para não permitirem sertransfundidos é obtida em alguns textos contidos na Bíblia a seguirexemplificativamente elencados.

No livro do Gênesis (9:3-4): “Todo animal movente que está vivo pode servir-vos de alimento. Como no caso da vegetação verde, deveras vos dou tudo.Somente a carne com sua alma - seu sangue - não deveis comer.”

No Levítico (17:10) destaca-se outra restrição semelhante: “Quanto qualquerhomem da casa de Israel ou algum residente forasteiro que reside no vosso meio,que comer qualquer espécie de sangue, eu certamente porei minha face contra aalma que comer o sangue, e deveras o deceparei dentre seu povo.”

Ainda na mesma linha de pensamento, nos Atos dos Apóstolos (15:19-21)encontram outra fundamentação. Além dos dispositivos destacados, já existe umafarta bibliografia a respeito desta questão, sendo que a maioria divide-a em duasabordagens básicas: o paciente capaz de decidir moral e legalmente e o pacienteincapaz com a vontade suprimida por seus familiares/responsáveis.

Em suma, pelos diversos casos semelhantes ocorridos, envolvendo acomunidade médica, estes revestem suas decisões de cautelas jurídicas,principalmente por dizer respeito a tratamento que visa salvar a vida do própriopaciente, impedidas por restrições de ordem religiosa.6

Ao continuar a reflexão, importa avançar um pouco sobre o direito brasileiro,em particular a sua normatização no atual Código Civil e no Código PenalBrasileiro.

comunidade local, a expulsão só ocorre nos casos em que se estabelece que o transgressor não demonstra genuínoarrependimento por insistir na prática continuada do pecado, por não lamentar o erro ou por não reparar os eventuaisdanos provocados a terceiros. Por exemplo, a jogatina, extorsão, calúnia, furto, embriaguez, uso não medicinal dedrogas, tabagismo, fornicação, homossexualidade, poligamia, casamento incestuoso, violência de qualquer espécie,assassínio, interrupção voluntária da gravidez, abuso sexual de menores, entre outros pecados de natureza bíblica, sãoconsideradas transgressões sérias da Lei de Deus, passíveis de desassociação caso o errante não demonstrearrependimento. Ao se informar a congregação local sobre a desassociação de um dos seus membros, os erros cometidospelo transgressor nunca são mencionados por respeito à sua privacidade e também pela obrigação moral e legal deguardar confidência por parte dos anciãos.Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Normas_morais_das_Testemunhas_de_Jeov%C3%A1#Desassocia.C3.A7.C3.A3o_e_Dissocia.C3.A7.C3.A3o>.Acesso em: 24 dez 07.5 Disponível em:http://imwcastro.vilabol.uol.com.br/estudos/testemunhas.htm. Acesso em: 21 Dez 07.6 “Sem dúvida, o sangue exerce funções essenciais para a vida. É por isso que a comunidade médica fez da transfusãode sangue uma prática comum ao tratar pacientes que perderam sangue. Muitos médicos diriam que esse uso do sangueé o que o torna tão precioso. No entanto, as coisas estão mudando na área da medicina. Em certo sentido, há umarevolução silenciosa em andamento. Ao contrário do que acontecia antigamente, hoje em dia muitos médicos e cirurgiõespensam duas vezes antes de aplicar uma transfusão de sangue. Por quê?” In: http://www.watchtower.org/t/200608/article_01.htm. (Sítio oficial das Testemunhas de Jeová) Acesso em 25 dez 07. (grifos nossos)

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3. Atos de Disposição do próprio corpo no Código CivilBrasileiro

Para se obter uma melhor compreensão do problema, observa-se que o CódigoCivil Brasileiro (Lei nº 10.406/02) dedica um capítulo específico sobre os Direitosda Personalidade e nele, inserem-se os atos de disposição do próprio corpo, inverbis:

CAPÍTULO IIDOS DIREITOS DA PERSONALIDADE,

Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição dopróprio corpo, quando importar diminuição permanente daintegridade física, ou contrariar os bons costumes. Parágrafo único. Oato previsto neste artigo será admitido para fins de transplante, naforma estabelecida em lei especial. (grifamos)

O insigne Professor Sílvio de Salvo Venosa leciona acerca do direito ao própriocorpo: “O princípio geral é que ninguém pode ser constrangido a invasão de seucorpo contra sua vontade. Quanto aos atos de disposição do próprio corpo, hálimites morais e éticos que são recepcionados pelo direito”7. (Grifamos)

Carlos Roberto Gonçalves é mais taxativo com relação à supremacia da vida,e aduz:

“A vida humana é o bem supremo. Preexiste ao direito e deve serrespeitado por todos. É bem jurídico fundamental, uma vez que seconstitui na origem e suporte dos demais direitos. Sua extinção põefim à condição de ser humano e a todas as manifestações jurídicas quese apóiam nessa condição8. O direito à vida deve ser entendido comodireito ao respeito à vida do próprio titular e de outros9.

O autor ainda traz, exemplificativamente, a Constituição Federal, o CódigoCivil e o Código Penal em uma série de artigos que salvaguardam a vida humanaem detrimento de todos outros bens juridicamente relevantes, assim comopunições para àqueles que não impuserem a devida superioridade à vida dentretais bens.

A Lei nº 9.434 de 1997, que trata da retirada de tecidos, órgãos e partes docorpo da pessoa falecida indica que nos casos de impossibilidade do doentemanifestar sua vontade, tais decisões estão afetas à autorização escrita de qualquerparente maior, da linha reta ou colateral até o 2º grau; no entanto, a recusa do

7 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: parte geral. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2005. p. 157.8 FRANCISCO AMARAL, Direito Civil. Cit. p. 254. In: GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: volume1: Parte geral. 2 ed. Rev. Atual. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 162.9 MARIA HELENA DINIZ, Curso. Cit. Vol 1, p. 120. In: op. cit. p. 162.

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paciente, ou dos familiares em submeter o primeiro à transfusão de sangue suplanta

a barreira da doação de órgãos, invadindo o direito à própria sobrevivência

humana, tendo o profissional médico a obrigação de realizar o tratamento,

independentemente de autorização.

A fim de melhor observar o dever de o médico submeter o paciente a

tratamento que vise salvar sua vida em iminente risco, traz-se a baila o art. 146, §

3º, I, do Código Penal Brasileiro:

“Art. 146 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça,

ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a

capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o

que ela não manda: Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou

multa. § 3º - Não se compreendem na disposição deste artigo: I - a

intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente

ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de

vida...” (grifamos)

De forma mais aprofundada Caio Mário da Silva Pereira, leciona sobre a

questão de poder ou não um paciente se recusar em receber sangue alheio, por

motivo de convicções filosófica e religiosa, in verbis:

“a questão deve ser levada à Justiça, a quem cabe decidir, resguardandoa responsabilidade do médico, que opinará se a transfusão de sangueé indispensável à sobrevivência do paciente”. Lembra ainda que, “casosjá houve, dramáticos, em que individuo recusa receber sangue alheio,para si ou para pessoa de sua família”, aduzindo que “ a matéria, peladisparidade de posições, permanecerá ainda no campo opinativo,aguardando novos elementos, científicos ou jurídicos, como um

problema do Direito no segundo milênio”.10

E se o paciente estiver em iminente riso de morte? Carlos Roberto Gonçalves11

em sua obra trouxe importante decisão prolatada pelo Tribunal de Justiça de SãoPaulo, na Apelação 123.430.4-4-00- Votorantim/Sorocaba, 3ª Câmara de DireitoPrivado, do relator Desembargador Flávio Pinheiro.

No caso, uma jovem que dera entrada no hospital, inconsciente e necessitando

de aparelhos para respirar, encontrando-se em iminente risco de morte, estado

comatoso, foram utilizados procedimentos médicos de recuperação e, também,

transfusões de sangue. Posteriormente, uma vez recuperada, ingressa com ação

de reparação de danos morais contra o hospital e o médico. Afirmou ela em

juízo, que, por questões religiosas, preferia a morte a receber transfusão de sangue.

10 Direito Civil: alguns aspectos de sua evolução. p. 33. In: GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro:volume 1: Parte geral. 2 ed. Rev. Atual. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 166-167.

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Juntou, também, prova de que foi apresentado ao médico, por outra pessoa,

documento que vedava a terapia da transfusão.

Entendeu o Tribunal supramencionado, ao confirmar a improcedência da ação,

que à apelante, embora o direito de culto lhe fosse assegurado pela Lei Maior,

não era dado dispor da própria vida, de preferir a morte a receber a transfusão

de sangue, “a risco que se ponha em xeque direito dessa ordem, que é intangível

e interessa também ao Estado, e sem o qual os demais, como é intuitivo, não tem

como subsistir”.12

O Código Civil, em consonância com a Constituição Federal art. 1º, III, e 5º,

III, e demais legislações nacionais e até internacionais proíbe a disposição do

próprio corpo quando esta disposição puder prejudicar a vida do ser humano.

4. Princípios Constitucionais correlacionados4. Princípios Constitucionais correlacionados4. Princípios Constitucionais correlacionados4. Princípios Constitucionais correlacionados4. Princípios Constitucionais correlacionados

4.1 Princípio do direito à vida

Com relação ao direito à vida, Caneviva é claro em dizer: “a garantia à vida éplena, irrestrita, posto que dela defluem as demais, até mesmo contra a vontadedo titular, pois é contrário ao interesse social que alguém disponha da própriavida”.13

A Constituição Federal, de forma não menos esclarecedora trouxe em seubojo, no art. 5º, caput, “que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquernatureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país ainviolabilidade do direito à vida...” (grifamos), impondo à vida superioridade emface dos demais direitos, já que desse direito deflui os demais, sendo este pré-

requisito aos demais.

4.2 Princípio da liberdade religiosa4.2 Princípio da liberdade religiosa4.2 Princípio da liberdade religiosa4.2 Princípio da liberdade religiosa4.2 Princípio da liberdade religiosaA Constituição de 1988 prevê, em vários dispositivos, a liberdade de crença e

11 op. cit. p. 167.12 TJSP, Ap. 123.430.4-4-00 - Votorantim/Sorocaba, 3ª Câmara de Direito Privado, rel. Des. Flávio Pinheiro. E namesma ação, em seu voto, o Des. Waldemar Nogueira Filho menciona o ensinamento de Canotilho e Vital Moreira,trazido à colação por Frederico Augusto D’Ávila Riani (O direito à vida e a negativa de transfusão de sangue baseadana liberdade de crença, Revista Imes, ano 1, n. 1, jul./dez. 2000): “Os direitos fundamentais só podem ser restringidosquando tal se torne indispensável para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”,e que, “no fundo, a problemática da restrição dos direitos fundamentais supõe sempre um conflito positivo de normasconstitucionais, a saber entre uma norma consagradora de certo direito fundamental e outra norma consagradora deoutro direito ou de diferente interesse constitucional. A regra de solução do conflito é a máxima observância dosdireitos fundamentais envolvidos e de sua mínima restrição compatível com a salvaguarda adequada do outro direitofundamental ou outro interesse constitucional em causa” (Fundamentos da Constituição. Coimbra Editora, 1991). p.134. In: op. cit. p. 167. (grifamos)13 CANEVIVA, Walter. Direito Constitucional Brasileiro. SP: Saraiva, 1981. p. 168.

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culto, impondo inclusive àqueles que, por restrição filosófica ou religiosa não

puderem prestar o Serviço Militar obrigatório, deste estará isento, desde que

sejam submetidos a prestação alternativa. Daí deduz-se que o legislador constituinte

de 1988, concedeu ampla proteção ao princípio da liberdade religiosa, não

preterindo umas, em detrimento de outras, até porque o modelo de Estado

adotado foi o de Estado laico ou leigo (desprovido de religião oficial).

Repetindo a lição de Alexandre de Moraes, “[...] a religião é um complexo de

princípios que dirigem os pensamentos, ações e adorações do homem para com

Deus, acaba por compreender a crença, o dogma, a moral, a liturgia e o culto.”14

No mesmo sentido ele reitera que, “O constrangimento à pessoa humana, de

forma a constrangê-lo a renunciar sua fé, representa desrespeito à diversidade

democrática de idéias, filosofia e a própria diversidade espiritual”15.

4.3 Princípio da dignidade da pessoa humana (vidadigna)

A Constituição Federal de 1988, em seu art. 1º, caput, aduz: “A RepúblicaFederativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípiose do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e temcomo fundamentos: ... III - a dignidade da pessoa humana...”16

Maria Helena Diniz17 leciona sobre o princípio, com ênfase no estudo do

biodireito, dessa forma:

“Os bioeticistas devem ter como paradigma o respeito à dignidade da

pessoa humana, que é o fundamento do Estado Democrático de

Direito (CF, art. 1.º, III) e o cerne de todo o ordenamento jurídico.

Deveras a pessoa humana e sua dignidade constituem fundamento e

fim da sociedade e do Estado, sendo o valor que prevalecerá sobre

qualquer tipo de avanço científico e tecnológico. Conseqüentemente,

não poderão bioética e biodireito admitir conduta que venha a reduzir

a pessoa humana à condição de coisa, retirando dela sua dignidade e

o direito a uma vida digna.” (grifamos)

A dignidade da pessoa humana é um valor interno de cada indivíduo, pertinente

ao campo moral e espiritual, estritamente individual, que goza de proteção da

14 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral. 8 ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 119.15 Op. cit. p. 119.16 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm. Acesso em: 6 Jan. 08.17 Miguel Reale, Pluralismo e liberdade, São Paulo : Saraiva, 1963, p. 63 e 80 (Cap. 2, nota 57) apud Maria Helena Diniz,op. cit., p. 17, nota 43. In: RALA, Eduardo Telles de Lima. A bioética aplicada no processo civil brasileiro: uma análiseà luz do princípio da dignidade da pessoa humana. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 402, 13 ago. 2004. Disponível em:<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5571>. Acesso em: 06 jan. 2008.

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Constituição de 1988, sendo de suma importância a ponto de ser elevado a

categoria de Princípio Fundamental Constitucional, além de sua previsão na

Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, pela Assembléia Geral

das Nações Unidas, assinada pelo Brasil.18

4.4 Princípio da proporcionalidade ou darazoabilidade

Quanto à evolução do princípio da Proporcionalidade ou da Razoabilidadeseu surgimento na órbita jurídica inicialmente ocorreu no direito administrativocomo meio de proteção dos direitos individuais contra a atuação abusiva doPoder Público.

Somente após a Segunda Guerra Mundial, principalmente sob a influência dodireito alemão, o princípio foi elevado a categoria constitucional, desempenhandoimportante papel na defesa dos direitos fundamentais.

Nesse aspecto, o princípio concretizou-se como importante instrumentoassegurador dos direitos fundamentais em diversos países, inclusive no Brasil,muitas vezes até considerado como sendo “la propria esencia de los derechos

fundamentales”.19

Quando temos “o conflito entre direitos e bens constitucionalmente protegidosresulta do fato de a Constituição proteger certos bens jurídicos... que podem vira encontrar-se numa relação de conflito e colisão. Para solucionar-se esse conflito,[...] a doutrina aponta diversas regras de hermenêutica constitucional em auxílioao intérprete.”20

Por esse motivo, a aplicação do princípio da Proporcionalidade ou daRazoabilidade, por importar na tomada de decisão, necessariamente, e na restriçãode direitos ou interesses juridicamente relevantes, conduz à concreta avaliaçãonão apenas a respeito da legalidade dos meios e dos fins perseguidos, mas tambémda adequação desses meios à consecução dos propósitos desejados pela sociedade

organizada em torno da Constituição Federal.

Como pudemos evidenciar, estes princípios se manifestam dentro dos

diferentes ramos do direito, sobretudo no biodireito, permitindo a resolução da

antinomia constitucional ora proposta (direito à vida e direito à liberdade religiosa)

pode ser sanada com a perfeita aplicação deste instrumento constitucional, de

acordo com cada caso em análise.

18 Dados extraídos de: MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral. 8 ed. São Paulo: Atlas,2007.19 ALEXY, 1997. p. 144. In: PUHL, Adilson Josemar. O princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade. São Paulo:Editora Pilares, 2005.20 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral. 8 ed. São Paulo: Atlas, 2007. p.3-4.

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5. Código de Ética Médica Brasileiro e Princípios5. Código de Ética Médica Brasileiro e Princípios5. Código de Ética Médica Brasileiro e Princípios5. Código de Ética Médica Brasileiro e Princípios5. Código de Ética Médica Brasileiro e Princípioséticos do biodireitoéticos do biodireitoéticos do biodireitoéticos do biodireitoéticos do biodireito

5.1 Código de Ética Médica Brasileiro

No Código de Ética Médica, regulamento maior do profissional médico noBrasil, temos no Capítulo I - Princípios Fundamentais, no artigo 2º, o seguintetexto: “Art. 2° - O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano,em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de suacapacidade profissional.”

No mesmo regulamento, temos alguns dispositivos que proíbem osprofissionais médicos de se recusarem a “salvar” vidas, in fine:

Capítulo V - Relação com Pacientes e Familiares, É vedado ao médico:Art. 56 - Desrespeitar o direito do paciente de decidir livrementesobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo emcaso de iminente perigo de vida. Capítulo IV - Direitos Humanos, Évedado ao médico: Art. 46 - Efetuar qualquer procedimento médicosem o esclarecimento e consentimento prévios do paciente ou deseu responsável legal, salvo iminente perigo de vida. (grifamos)

O Conselho Federal de Medicina se manifestou, em 26 de setembro de 1980,através de uma resolução nº. 1021, especificamente sobre a questão da transfusãode sangue em Testemunhas de Jeová.

A Constituição Brasileira de 1988 propõe a liberdade de crença paratodo cidadão. Quando a situação envolve menores de idade ou outrospacientes tidos como incapazes, como por exemplo uma pessoaacidentada inconsciente, a questão ganha outras conotações, pois opapel de proteger o paciente, apesar da vontade expressa de seusresponsáveis legais pode ser ampliado. A questão que pode ser levantadano caso de adolescentes é até que ponto eles não podem serequiparados, desde o ponto de vista estritamente moral, aos adultos,quanto a sua opção religiosa. O Estatuto da Criança e do Adolescente,em seu artigo 17, lhes dá o direito de exercerem sua liberdade deculto, garantindo igualmente o respeito a esta manifestação. Este mesmoEstatuto permite que, em caso de adoção, o menor com doze ou maisanos possa também se manifestar. Por que este consentimento tambémnão pode ser ampliado para esta questão? Muitas vezes as equipes desaúde solicitam à Procuradoria da Infância e Adolescência que busqueautorização judicial para a realização do procedimento, através dasuspensão temporária do pátrio poder.

A restrição à realização de transfusões de sangue pode gerar no médico uma

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dificuldade em manter o vínculo adequado com o seu paciente, ambos têmdiferentes perspectivas sobre qual a melhor decisão a ser tomada, caracterizandoum conflito entre a autonomia do médico e a do paciente. Uma possível alternativade resolução deste conflito moral é a de transferir o cuidado do paciente paraum médico que respeite esta restrição de procedimento, sob a égide dos Direitosda Dignidade da pessoa humana.

Os seguidores desta denominação religiosa - Testemunhas de Jeová - estãomuito bem organizados para auxiliarem as equipes de saúde no processo detomada de decisão; existem Comissões de Ligação com Hospitais, que sãoconstituídas por pessoas que se dispõe a irem aos hospitais e prestarem a devidaassessoria, visando o melhor desfecho possível ao caso. A Comissão de Ligaçãode Hospitais dispõe de um cadastro de médicos que pode ser útil em tais situações,sobretudo no tocante às técnicas permitidas ao tratamento das Testemunhas deJeová.

5. Princípios éticos do biodireito

Princípios são regras obtidas através das concepções do certo ou errado deuma dada sociedade, dessa forma, após uma série de barbáries que ocorreramno mundo e, principalmente nos Estados Unidos, em 1974 foi instituída umaComissão norte-americana visando a proteção dos direitos humanos na pesquisabiomédica que culminou com a publicação do Belmont Report, em 1978, ondesurgiram os princípios da beneficência, da autonomia e da justiça, e decorrentedo primeiro o da não maleficência.21

a) beneficência

O princípio da beneficência decorre do termo “bonum facere”, significando ofazer o bem para o paciente.22 Esse princípio nos conduz ao juramento deHipócrates, a “pai da medicina”, que prevê, aos profissionais da saúde, a condutamoral de fazer o bem e promover o bem-estar.

b) não maleficência

21 RAMOS, Cesar Augusto. Eutanásia: aspectos éticos e jurídicos da morte. Florianópolis: OAB/SC Editora, 2003. p.73.22 Francesco Bellino, Fundamentos da bioética: aspectos antropológicos, ontológicos e morais. Trad. Nelson SouzaCanabarro. Bauru : EDUSC, 1997, p. 198. In: RALA, Eduardo Telles de Lima. A bioética aplicada no processo civilbrasileiro: uma análise à luz do princípio da dignidade da pessoa humana. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 402, 13ago. 2004. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5571>. Acesso em: 06 jan. 2008.

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O princípio da não maleficência, de acordo com a professora Adriana Diaféria,

propõe a obrigação de não infligir dano intencional. Deriva da máxima da ética

médica “primum non facere.”23 E da mesma forma do princípio anterior, denota o

dever daqueles profissionais de não fazerem o mal.

c) autonomia

A autonomia é a união dos radicais autos, eu e nomos, lei. Significa a capacidadedo ser humano desenvolver suas próprias leis e submeter-se a elas. Entende-seque o ser humano é capaz de fazer suas próprias escolhas e suas opções. Portanto,o princípio da autonomia é um dos mais novos na ética médica e pretendedemonstrar que ao paciente do tratamento médico é dada a opção de escolha

sobre seu destino terapêutico.24

d) justiça

O Relatório Belmont, de 1978, abarcou o seguinte conteúdo ao princípio dajustiça: “Quem deve receber os benefícios da pesquisa e os riscos que dela acarreta?Está é uma questão de justiça, no sentido de ‘distribuição justa’ ou ‘o que émerecido’.”25 A professora Adriana Diaféria também pesquisou acerca desseprincípio e concluiu que,”seria uma visão de justiça distributiva, onde a visão dejustiça compensatória não é muito utilizada pelos bioeticistas, principalmente pelos

anglo-saxões, quem entendem este princípio de forma diversa.”26

6. Jurisprudência sobre o tema

Destacam-se as seguintes decisões:

STJ. RHC 7785 /SP RECURSO ORDINARIO EM HABEAS CORPUS1998/0051756-1. DESCABIMENTO, TRANCAMENTO DE AÇÃOPENAL, HOMICIDIO, REU, MEDICO, TESTEMUNHA DE JEOVA,RESPONSABILIDADE, IMPEDIMENTO, TRANSFUSÃO DESANGUE, HIPOTESE, DENUNCIA, DESCRIÇÃO, CRIME EM TESE,INEXISTENCIA, PROVA INEQUIVOCA, ATIPICIDADE, CONDUTA,FALTA DE JUSTA CAUSA, NECESSIDADE, DILAÇÃOPROBATORIA. 27EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. TRANSFUSÃO DE

23 Idem. In: op. cit.24 Op. cit.25 RAMOS, Cesar Augusto. Eutanásia: aspectos éticos e jurídicos da morte. Florianópolis: OAB/SC Editora, 2003. p.77.26 The Belmont Report: Ethical Guidelines for the Protection of Human Subjects. DHEW Publications, (OS) 78-0012,Washington, 1978, apud Adriana Diaféria, op. cit., p. 88-89. In: op. cit.

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SANGUE. TESTEMUNHA DE JEOVÁ. RECUSA DETRATAMENTO. INTERESSE EM AGIR. Carece de interesseprocessual o hospital ao ajuizar demanda no intuito de obterprovimento jurisdicional que determine à paciente que se submeta àtransfusão de sangue. Não há necessidade de intervenção judicial,pois o profissional de saúde tem o dever de, havendo iminenteperigo de vida, empreender todas as diligências necessárias aotratamento da paciente, independentemente do consentimento delaou de seus familiares. Recurso desprovido. (Apelação Cível Nº70020868162, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator:Umberto Guaspari Sudbrack, Julgado em 22/08/2007).28

MANDADO DE SEGURANÇA - TRANSFUSÃO DE SANGUE -TESTEMUNHA DE JEOVÁ - PACIENTE VÍTIMA DE ACIDENTEDE TRÂNSITO - MEDIDA AUTORIZADA PELO JUÍZO DIANTEDA SITUAÇÃO DE EMERGÊNCIA - MEIO NÃO UTILIZADO NAINTERVENÇÃO CIRÚRGICA POR DESNECESSIDADE - FALTADE INTERESSE PROCESSUAL. Relator: Des. Josué de OliveiraPublicação: 26/04/2005. Nº Diário: 1031. 29

Conclusão

É razoável que o direito permita a recusa de certo indivíduo à realização dedeterminado tratamento terapêutico, qual seja, transfusão sanguínea, imprescindívelà preservação de sua vida, por convicções religiosas?

O crescente uso de alternativas médicas às transfusões de sangue vemdemonstrando que atender ao caso das Testemunhas de Jeová não é algo fora darealidade.30 De fato, a compreensão por parte da equipe médica, ao invés docombate, é o caminho para a solução. Na solução do conflito, os tribunaisdevem serenamente analisar se vale à pena desconsiderar a consciência (a qualdesfruta de proteção constitucional, por ser singular o direito à vida digna), o queaniquilaria a autonomia do paciente como ser humano (princípio bioéticos daAutonomia). Devem-se levar em consideração, também, os riscos das transfusõese o impacto emocional advindo do desrespeito à intimidade e a dignidade dapessoa, independente do cunho religioso, pois se relacionam diretamente ao seudireito constitucional à vida com dignidade31.

Do mesmo modo, foi constatado que respeitar a opinião e a decisão do paciente(ainda que sua visão seja diferente da do médico) é um ato beneficente (princípiobioético da beneficência). Todo profissional tem que trabalhar com a realidadede que nem sempre seus pacientes concordarão com o seu modo de pensar. Por

27 Disponível em: <www.stj.gov.br>. Acesso em: 21 dez 07.28 Disponível em: <www.tj.rs.gov.br>. Acesso em: 21 dez 07.29 Disponível em: <www.tj.ms.gov.br>. Acesso em: 21 dez 07.30 “Ante o manancial tecnológico à disposição da medicina, faz-se necessário fixar o momento a partir do qual autilização de meio ordinário de terapia passa a extraordinário em pacientes em fase terminal de vida...” In: RAMOS,Cesar Augusto. Eutanásia: aspectos éticos e jurídicos da morte. Florianópolis: OAB/SC Editora, 2003. p. 81.

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isso, é necessário ao profissional da saúde a abertura às novas formas de pensar,buscando sempre aprimorar seus conhecimentos, sobretudo quando envolveaspectos de cunho religioso, bem como os reflexos jurídicos que possam advirda intervenção dele.

Sem o intuito de pôr termo à questão, esse trabalho buscou exprimir osprincipais aspectos que norteiam as posições contrárias e a favor, sobretudo emcasos de iminente risco à vida, que goza de superioridade em face de todos osprincípios constitucionalmente protegidos.

Por fim, destacamos a existência de um conflito aparente de princípiosconstitucionais, o direito à vida e a liberdade religiosa, que deve ser dirimido coma adequada aplicação do princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade,como alternativa mais correta a ser adotada, analisando cada caso conforme arealidade do paciente, da família, lideres religiosos, estado físico e perigo de morte,e todos os demais fatores recorrentes acerca do assunto.

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31 Já se teve o relato de pessoas, Testemunha de Jeová, que após passarem por transfusão de sangue, e se recuperaremfisicamente, foram rechaçadas de sua comunidade e do seio familiar, provando que para esta pessoa a vida física nãomais importava, perdendo por completo seu direito a uma vida digna. (relato extra-oficial de uma Testemunha de Jeováque não quis se identificar, 25 abr 07)

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