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“Colocar o pensamento em relação imediata com o fora, · seu cigarro e foi em direção ao seu carro, ... novamente zarpar ao encontro de todo ... pois não havendo alguém que

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“Colocar o pensamento em relação imediata com o fora,com as forças do fora, em suma, fazer do pensamentouma máquina de guerra, é um empreendimento estranhocujos procedimentos precisos pode-se estudar emNietzsche.”1

1. Deleuze e Guattari, 2012a, p. 49

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Francisco N. Mosimann

Deleuze, Nietzsche e a Filosofia PolíticaA máquina de guerra sepõe contra tradição

CsO

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Capa: “Times Takes a Cigarrete” por (https://www.flickr.com/photos/zakmc/)

_______________________________________Mosimann, Francisco Norival

Deleuze, Nietzsche e a Filosofia Política: Amáquina de guerra se põe contra tradição/ FranciscoMosimann – Florianópolis: CsO, 2014.

1. Filosofia 2. Filosofia Política

________________________________________

2014Creative CommonsEditora CsOwww.editoracso.wordpress.comTelefone: (48) 9632-6169

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Introdução – Deleuze vai ao baile

Era final de tarde, Deleuze estava de gel nocabelo jogado para o lado e bem-vestido, usava um ternoazul-claro, uma calça escura e uma camisa branca. Nãoque ele se importasse tanto com a aparência, mas eleestava se sentido bem assim, autoconfiante. Acendeuseu cigarro e foi em direção ao seu carro, dirigiutranquilamente até o salão. Chegando lá ele sorriu paratodos e todas, engoliu um copo de vinho, sentia seucorpo latente, se dirigiu ao meio do salão. Lá começou asentir a música, deixou-se levar, dançava, flutuava. Erauma dança singular, intensa, era uma resposta do corpoà música, cada movimento era imprevisível. Os outroslhe lançavam olhares, “está querendo aparecer”, “elefinge que não se importa com os outros”. O ar é leve e ochão do salão é liso, Deleuze segue o fluxo e se põe adançar livremente.

“Um dia talvez o século será deleuziano” disseFoucault. Para Deleuze essa frase não queria dizer queFoucault considerava-o ‘o melhor’ filósofo ou o maisprofundo, simplesmente era o mais ingênuo e o menospreocupado com disputas filosóficas. Ou como Foucaultmesmo disse: “saltitante, dançante, diante de nós, entrenós” 2. É desse modo que nos propomos a analisar asideias de Deleuze, de modo solto, de modo dançante,sem o ‘espírito de gravidade’. Em um texto chamado“Carta a um crítico severo”, Deleuze critica esse peso,criticando também o ressentimento, o fim da alegria pelavida e o ideal policialesco. Nesse texto, Deleuze diz quehouve uma mudança de paradigma quando ele leuNietzsche, foi a partir daí que ele aprendeu a falar emseu próprio nome, dar intensidade, seguir fluxos e

2. Deleuze, 2013, p. 115-116

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experimentar, podemos dizer, que Nietzsche ensinouDeleuze a dançar.3

A proposta desse trabalho é contrapor o conceitode máquina de guerra, que se encontra no livro MilPlatôs v.5 no texto “Tratado de Nomadologia”, com atradição da filosofia política. A fonte da crítica se encontraem alguns textos, principalmente, no livro “Nietzsche e aFilosofia”, onde Deleuze dá sua interpretação deNietzsche, colocando-o contra vários pilares da tradiçãofilosofico-política pós platônica – como o pensamentonão-trágico, o medo do devir e a vontade de unidade eigualdade. Nessa perspectiva, a máquina de guerra vemcomo uma afirmação contra a unidade, contra o modeloteoremático, contra o peso e contra o devir reativo dasforças.

3. Deleuze, 2013, p. 11-22

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1. As críticas de Nietzsche

É importante, antes de entrar na máquina deguerra Deleuzo-Guattaritiana, pensar alguns pontos dacrítica de Nietzsche à tradição política.

1.1. Primeiramente, o evento mais importante: a mortede Deus. Esse evento à primeira vista soa unicamentecomo uma contestação à igreja católica, porém há umaabrangência muito maior implícita no conceito. A mortede Deus significa uma mudança de paradigma com atradição da político filosófica, pois com ‘morte de Deus’Nietzsche diz que não existe mais – na percepção doshomens – um ponto incondicionado fora das relações deforça. Nem fé, nem razão, nada nos leva à verdadeabsoluta – uma verdade que não parte de umaperspectiva –, toda verdade tem uma boca, todaperspectiva tem um olhar humano por trás. Essacontestação da metafísica representa para Nietzsche, apossibilidade de um novo modo de conhecimento, novossujeitos de conhecimento:

De fato, nós, filósofos e ‘espíritoslivres’, ante a notícia de que ‘o VelhoDeus morreu’ nos sentimos comoiluminados por uma nova aurora;nosso coração transborda de gratidão,espanto, pressentimento, expectativa –enfim o horizonte nos aparecenovamente livre, embora não estejalimpo, enfim os nossos barcos podemnovamente zarpar ao encontro de todoperigo, novamente é permitida toda aousadia de quem busca oconhecimento, o mar, o nosso mar,está novamente aberto, e

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provavelmente nunca houve tanto ‘maraberto’4

A tradição política desde Platão – sendo popularizadapelo judaico-cristianismo – se baseou nesse pontoincondicionado para pensar o mundo. Para Nietzsche, taltradição se baseia na negação do mundo sensível. Parao homem que diz “como é horrível este mundo!” apergunta que tem ser feita é “quem é este homem? Quevida ele tem?”, pois não havendo alguém que pode teruma concepção fora de sua perspectiva, sentimentos ecorporalidade a afirmação só pode ser sobre um mundo.Imaginemos o seguinte, o homem se vê no mundo,percebe sua finitude e as dificuldades de sobrevivência,existem duas maneiras de encarar essa condição:aceitando a ideia de ser um homem pequeno nummundo imprevisível e afirmar o mundo como um todo,ou negando a condição humana e crendo na soberaniada razão humana sobre o mundo, logo, negando omundo que não está de acordo com essa razão. Nessasegunda perspectiva, qualquer vontade pessoal pode serruim para atingir a razão, afinal, se a vontade interferirteremos mais do que apenas uma perspectiva. Nesseponto, Gérald Lebrun indica que Platão e Hegelconcordam que um homem da razão tem que retirar, ou‘diminuir’, todas suas particularidades. Para issopodemos lembrar que para Platão no livro “A república”,o filósofo – que era o homem mais propício paracontemplar a verdade e governar a pólis – era umhomem ‘aculturado’, não poderia nem ter propriedades.Em Hegel, Lebrun cita o trecho de “Princípios da filosofiado Direito”:

4. Nietzsche, Gaia Ciência, §343

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Por homens cultos entendam-se emprimeiro lugar os homens aptos a fazertudo o que fazem os outros, os quenão põem em destaque suaparticularidade, a exemplo dos homensincultos, uma vez que seucomportamento se pauta pelaspropriedades universais do objeto […]A cultura é o aplainamento daparticularidade, de tal modo que ocomportamento seja conforme ànatureza da coisa 5

Apesar de Hegel não excluir completamente aparticularidade, ele utiliza a ideia de universalidade doobjeto para indicar que quanto menos particularidademais próximo o sujeito estará do conhecimento em si.Essa ideia de totalidade, mais do que uma metodologiado conhecimento, indica passos contra a ideia deperspectiva. O que deriva desse pensamento de Hegel éalgo parecido com as ideias de Platão, pois valoriza-se ointelectual que seria o homem para pensar a totalidade eo Estado se organizaria conforme ordene a razão, que émelhor contemplada pelos homens cultos.

1.2. Como dizia Nietzsche: precisamos saber o valordos nossos valores. Mas o que significa isso? Deleuzedá centralidade a essas questões de ‘sentido’ e ‘valor’,comenta sobre as críticas de Nietzsche a Kant pela faltade aprofundamento na questão do valor, fazendo dacrítica uma “meia crítica”. Muito se faz a crítica avaliandoconforme os próprios princípios estabelecidos, normal,afinal, “Nós, homens de conhecimento, não nos

5. Hegel apud Lebrun, 2010, p. 100, grifos meus

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conhecemos”6. Para Nietzsche a crítica tem que sercompleta, até porque crítica é uma expressão ativa deum modo de existência, afinal o relativismo não podeparalisar a vida. Deleuze retorna com a origem dosvalores, retomando a ideia de valor criado a partir dadistância e a moral escrava a partir da negação. ParaNietzsche os conceitos de fenômeno e sentidofuncionam melhor que aparência e essência, pois nofenômeno há forças e no sentido há vontade de potência,coisa que os conceitos tradicionais são suscitam.Deleuze traz a discussão da dialética em Nietzsche,contrastando com a concepção de trágico. Enquanto otrágico têm a alegria da afirmação das diferenças, adialética tem o peso insustentável da contradição. Quemtransformaria diferença em contradição? Aquele que avida lhe corroí, o detentor da moral escrava, aquele quediz Não a outra força. Nietzsche afirma a diferença, oplural, a multiplicidade, isso pode soar “arbitrário” já quea vida nesses termos tem dor, mas Nietzsche sabe dasarbitrariedades de uma preferência. Isso tudo não querdizer que as forças reativas devam ser completamenteeliminadas, apenas dominadas, afinal, elas sãoessenciais para a vida, a força reativa também é força,também vem a vontade de potência. Mas Nietzsche temapego pela inocência, pela irreverência, por isso nãopode aceitar que as forças reativas culpem as ativas, emais que culpar, decompô-las. Afinal, mesmo que asforças reativas dominem, elas não virarão ativas, apenasvão separar as forças ativas do que elas podem. Se a“consciência é essencialmente reativa” a culpa é areatividade agindo sob a força ativa. A vontade de poderé o elemento genealógico da força, é diferencial egenético, inseparável da força. O acaso seria um arqui-

6. Nietzsche, GM Prólogo, §1

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inimigo da vontade de poder? Para quem gosta doimprevisível como Nietzsche não, o acaso deixa avontade de potência mais plástica, mais metamorfósica.A vontade de potência é quem quer, a vontade depotência é quem afirma ou nega é que explode ouimplode. Ela interpreta – determinando a força que dásentido à coisa – e avalia – determinando a vontade depotência que dá valor à coisa. Já a força, que está ligadacom a vontade de potência, ou é ativa ou passiva, aforça é ação, vem da diferença de qualidade. De novo, avontade de potência interpreta, determina a força que dásentido, sendo esse sentido ativo ou reativo, e avalia,determina a vontade de potência que dá valor à coisa,seja afirmativa ou negativa. 7

7. Ver: “Nietzsche e a filosofia” de Deleuze, 1976, capítulos 1 e 2.

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2. A máquina de guerra

A história da máquina de guerra está emcompasso com a história nômade. Em “tratado denomadologia”, Deleuze e Guattari desenvolvem esse tipode ação que é essencialmente nômade. O conceito iniciade uma análise dos estudos sociológicos eantropológicos, principalmente, de Georges Dumézil ePierre Clastres. Dumézil conceitua o Estado como umaunidade composta de dois poderes ‘mitológicos’, que secontrapõe, criam tensões e se alternam, coexistindo nomesmo espaço: são as figuras do “rei-mago” e“sarcerdote-jurísta”. Esses dois poderes estão sempretensionados e se moldam conforme as situações, masuma coisa é certa, os dois atuam por oposição binária,formam uma interioridade, fazendo do Estado umestrato8. Por outro lado Clastres traz uma antropologiahistórica que rompe com a ideia de que as sociedadesprimitivas não tinham Estado não por falta dedesenvolvimento, pelo contrário, para Clastres, mesmosem uma consciência clara, os primitivos iam contra aformação do Estado. Deleuze e Guattari se diferenciamde Clastres ao dizer que “[…] o Estado sempre existiu, emuito perfeito, muito formado. Quanto mais osarqueólogos fazem descobertas, mais descobremimpérios”9, os autores então leem a atuação dosnômades primitivos não como um modo de proibir acriação do Estado, mas como um modo de atuaçãodifuso, descentralizador e de eterna linha de fuga.

A gênese da máquina de guerra é nessa tensãoação-nômade e ação-Estado. É importante ressaltar quenão se trata de uma relação dialética, o nômade apesar

8. Deleuze e Guatarri, 2012a, p. 129. Deleuze e Guatarri, 2012a, p. 24

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de ir contra o Estado não parte de uma negação dela,como vamos falar mais pra frente, principalmente noponto 2.1. Os nômades se afastam completamente doEstado, um dos principais motivos disso é como e ondeeles se movem. A máquina de guerra nômade age econhece por fluxo, na multiplicidade, algo como Bergsondescrevendo o esgrimista em uma carta para Deleuze:

Tome o esgrimista em plena ação, vejaa direção volúvel de seus movimentos,o devir que carrega seus gestos.Quando ele vê chegar a si a ponta [daespada] de seu adversário, ele bemsabe que foi o movimento da pontaque carregou a espada, a espada quepuxou com ela o braço, o braço queesticou o corpo, este alongando-se a simesmo: não dividimos como seriapreciso, e não se sabe executar umafundo senão quando se sente assimas coisas.10

Já o Estado atua de forma sedentária, pensa a cadapasso, estabelece núcleos fundamentares ecentralizados. Enquanto o nômade atua no espaço liso(ou não-estriado), o Estado consegue apenas andar noespaço estriado, pois atua na forma de interioridade. Porisso para o Estado a concepção do sujeito é tãoimportante, é um modo de estriar os espaços a fim decriar esse viés mais universal, “[…] No Estado ditomoderno ou racional, tudo gera em torno do legislador edo sujeito”11. Tudo isso tem reflexos na ideia develocidade, pois a máquina de guerra se põe pela

10. Bergson, 201411. Deleuze e Guattari, 2012a, p. 47

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projeção, afecção e pelo fluxo, isso dá a ela uma grandevelocidade, pois como ela não tem território – “é adesterritorialização que constitui sua relação com a terra”– não é afetada pelo espírito de gravidade.

No sentido epistemológico essas característicasnômades criam, para Deleuze e Guatarri, uma “ciênciamenor” que vive em constante tensão com a “ciênciarégia” do Estado e que essa concorrência tem grandeimportância12. A ciência menor, por ser nômade, tambémé desterritorializada, por isso faz do Devir um modelo,por isso se diferencia da ideia métrica da ciência régia.Se pondo como um “elemento-problema” a ciênciamenor vai criar um modo não-técnico de pensar ascoisas, já que a técnica não é adequada para um mundoem constante Devir. Afinal, se você quisesse entenderum fenômeno, considerando sua relação de forças econsiderando sua imprevisibilidade, afirmando o acaso,será que você conseguiria fazê-lo de modo estático, demodo teoremático? Há criação pela técnica? A ciênciarégia é uma tentativa de criar uma “segurança do saber”,isso quer dizer, a ciência régia tenta eliminar a ideia doacaso, das singularidades e assim acaba criando umaciência estática. A ciência nômade é uma ciênciaexperimental, é mais aberta à arte, à criação e aoproblema. A questão das relações de forças é maisevidente na ciência nômade, já que cada fluxo estáconectado com avaliações sensíveis e se projetamsingularidades. Não que a ciência régia negue asrelações de força, mas o aspecto teoremático soareducionista nesse sentido, enquanto o aspectoproblemático da ciência régia traz cada vez maisrelações e relações singulares. No sentidoepistemológico a ciência régia teve várias “derrotas” na

12. Deleuze e Guattari, 2012a, p. 24

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contemporaneidade, sendo as criações mais relevantesfruto dessa ciência menor.

A máquina de guerra não necessariamenteobjetiva a guerra, ela não nasce para fazer guerra, ela éconsequência da organização nômade. Ela é máquina deguerra porque é autônoma e sendo autônoma ela éimprevisível e cria domínios que inevitavelmente vãocontra a homogeneidade estatal. Com a concepção deum “Estado da razão”, o Estado ganhou formasuniversalizáveis, ganhou centralidade na questão doconhecimento e daí nasce a luta maior da ciêncianômade contra a ciência régia. O Estado ao mesmotempo que tenta negar e afastar a concepção de umaciência nômade, tem que se apropriar dela paraaumentar seu poder, porém, a ciência nômade não éapenas uma ciência que produz novos saberes, étambém um modo de se fazer ciência, e esse modoexperimental o Estado não pode se apropriar. Por isso, oEstado não pode se apropriar inteiramente do aspectoestratégico e logístico da máquina de guerra nômade.Muito disso acontece pois o Estado tenta assumir umaspecto de imperium, de uma totalidade englobante epor isso tem que negar o nomadismo, já os nômadesafirmam o Devir, por isso é autônomo em relação aoEstado e essas posturas acabam se chocando.

2.1. Unidade (Igualdade) x Pluralidade (Diferença)

Esse é um ponto central na concepção damáquina de guerra. Os nômades andam em bandos,grupos, mas eles fazem do devir um modelo, logo nãobuscam a segurança da unidade. A contingência dá aplasticidade necessária para a diferenciação. ParaDeleuze e Guattari a máquina de guerra é multiplicidade

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pura, ela não se guia por medidas que delimitam a ação,ela é ação pura que se segue afecções. No livroconversações Deleuze fala sobre como o devirminoritário como um processo de potência e criação:

As minorias e as maiorias não sedistinguem pelo número. Uma minoriapode ser mais numerosa que umamaioria. O que define uma maioria éum modelo ao qual é preciso estarconforme: por exemplo, o europeumédio adulto macho habitante dascidades… Ao passo que uma minorianão tem modelo, é um devir, umprocesso. Pode-se dizer que a maiorianão é ninguém. Todo mundo, sob umou outro aspecto, está tomado por umdevir minoritário que o arrastaria porcaminhos desconhecidos casoconsentisse em segui-lo. Quando umaminoria cria para si modelos, é porquequer torna-se majoritária, e, semdúvida, isso é inevitável para suasobrevivência ou salvação (porexemplo, ter um Estado, serreconhecido, impor seus direitos). Massua potência provém do que ela soubecriar, e que passará mais ou menospara o modelo, sem dele depender.13

Na fala de Deleuze fica evidente o caráter anti-identitário, e isso corrobora com a ideia da puramultiplicidade indo no sentido da diferenciação. Afinal,“Todo pensamento é um devir, um duplo devir, em vez de

13. Deleuze, 2010, p.218

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ser o atributo de um Sujeito e a representação do todo”14.Sem a ânsia por uma unidade do sujeito, sem

exigir das pessoas que sigam um mandamento éticoúnico – afinal Deus está morto –, quem sabe possa sepensar em uma atuação política mais leve. Pois, quandose tem em um ideal de unidades igualitárias, os desviosà moral podem ser considerados como crimes. Ou seja,o fundamentalismo moralista dá um senso de gravidadee responsabilidade que tira a espontaneidade e apossibilidade de diferenciações da atuação política,criando uma espécie de “burocracia” que por mais quemuitas vezes se chame de progressista, tem o mesmoefeito do conservadorismo: tirar intensidade das ações enivelar as pessoas por baixo. Essa política denivelamento não serve para o nômade, pois ele não temterra, é um expansionista.

A máquina de guerra não nasce da negação doEstado e nem nasce para fazer guerra ao Estado. Pelocontrário, os nômades criam a máquina de guerra poruma atuação espontânea, acabam indo contra o Estadopor ter essa atuação incompatível com o Estado.Enquanto o Estado precisa da unidade, da segurança, dacoerência e previsibilidade, o nômade traz amultiplicidade, a imprevisibilidade, as afecções e osfluxos. É nesse momento em que o pensamento nômadese torna incompatível com a tradição do pensamento doEstado que nasce a máquina de guerra. Por seremessencialmente incompatível o Estado pode até capturara máquina de guerra mas dentro do aparelho do Estadoa função da máquina de guerra muda completamente, setorna apenas outra máquina ordinária. Nisso nasce omodo de atuação nômade como transgressora, não umatransgressão direcionada a alguém, nem que parta da

14. Deleuze e Guattari, 2012a, p. 53

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negação de algo, a transgressão é, inclusive, à própriaidentidade.

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3. Transgressão com ação política

A questão que Deleuze traz é: Como atuarpoliticamente de modo afirmativo, contingente e sem omoralismo do ideal policialesco? Apesar da importânciada morte de Deus, ela por si só não basta para criaratuações políticas que não partam da negação do outro,de uma vontade de unidade, de um anseio porsegurança, organização completa e uma grandenormatividade. Hoje parecemos viver em um momentoem que há uma espécie de judicialização da vida, todosquerem ser contemplados com direitos e tudo acaba seresolvendo na justiça. No artigo “Quando a potência dáprova de espírito” de Patrick Wotling15, a justiça é vistacomo um modo de espiritualização da força para que semantenham relações minimamente estáveis dentro deuma comunidade e que mantendo a vontade de potêncianão se crie um ambiente anárquico. Entretanto, nomesmo artigo Wotling descreve a “sensação de justiça”relacionada com a moralidade escrava descrita naGenealogia da Moral de Nietzsche, imaginemos aseguinte situação: Duas pessoas se relacionam, umaprática uma ação com o outro. Esse outro sem poderreagir, por ser fraco, pensa que o agente poderia, edeveria, ter agido diferente. O agente tem certeza de suasuperioridade – entendendo a relação tal como nósentendemos nossa relação com uma mosca – nãocompreendendo a dimensão do seu ato. Desse ruídonasce o ressentimento, desse sentimento nasce asensação de justiça. Essa crença, essa consciência, fazum papel regulador, determina as ações de formareativa, negando o outro. Talvez por isso Deleuze tenhadito que “a consciência é essencialmente reativa”, pois

15. Wotling, 2013.

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me parece natural que pensemos a partir de um ponto, onosso ponto de vista, quando somos afligidos é normalcreditarmos culpa ao outro, mesmo que a relação nãoseja tão simples quanto parece observando só nossoponto de vista. E então a discussão de como nãoproduzir esse processo de ressentimento e como avontade de potência pode ir contra essa espécie dejudicialização da vida são questões complexas que nosaparecem cada vez mais.

Deleuze e Guattari nos trazem em “tratado denomadologia” uma espécie de ideia sobre a nossarelação com o mundo, por isso é difícil separar aepistemologia, psicologia e antropologia num trabalhodesse. É um modo de pensar o mundo afirmativamente,partindo da morte de Deus (1.1) e da contingência eperspectiva dos valores (1.2). Há a necessidade de umavida – e, consequentemente, de uma atuação política –sem má consciência, espírito de gravidade, idealpolicialesco, que leva Deleuze a revisitar Nietzsche emseus escritos para repensar uma politica essencialmenteafirmativa. Mas por que nômades? Me parece que onomadismo bem entendido soa como um modo de vivervivendo, Devindo, no sentido de ter fundamentos massem uma espécie de fundamentalismo que parece muitocomum na sociedade em que vivemos, pois temos anecessidade de um território e temos uma insatisfaçãoque mal entendemos. Contrapomos o individualismo como coletivismo, em que um caso vivemos só para nóstendo um direito natural e no segundo caso temos quesofrer por todos e retirar nossos interesses de jogo, paramim as duas concepções me parecem um poucopesadas, no sentido que uma você vive só para si e emoutra você vive só para a totalidade. O coletivismo podeser também uma espécie de atomismo se essa ideia de

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totalidade comum for levada muito a sério, talvez ai hajamenos espaço para diferença e para afecções, paradiferenciações de modo geral.

Outro paradigma que se encontra em grande parteda atuação política é o da não-vontade própria ao pensara política. Isso nasce em Platão em a sua “República”,essa ideia de não-vontade própria se associa com umabusca pela verdade em si. Modernamente é Rousseauque dá uma nova roupagem republicana para a ideia ecria uma moralidade em que se excluem os interessesparticulares para no final chegarmos a uma “vontadegeral” que fosse bom para a comunidade como um todo.Numa perspectiva Nietzschiana é difícil pensar dessaforma, pois se o mundo é visto de dentro, quando seexcluem os interesses próprios não sobra nada, emesmo a vontade de pensar somente no todo é umavontade própria. Isso fortalece essa ideia consensualistae racionalista, que vai contra uma ideia de afirmação dasdiferenças e dos próprios fluxos e Devires. Quando ohomem crê que já não está mais agindo conforme suavontade e por um bem, e sim pela vontade geral e o bemem si, ele tende a virar um fundamentalista, semperceber que está defendendo uma moral específica,acredita que os outros que tem “inteligência” e não lheseguem são maus. Isso cria uma repulsa para com osposicionamentos contrários, podendo ser essa repulsaaté física, afetando o “anjo” como diz Nietzsche: “Acaminho de tornar-se “anjo” (para não usar palavra mais dura) o homem desenvolveu em si esse estômagoarruinado e essa língua saburrenta, que lhe tornaramrepulsivas a inocência e a alegria do animal, e sem sabora própria vida – de modo que por vezes ele tapa o narizdiante de si mesmo, e juntamente com o papa Inocêncio

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III prepara, censura no olhar, o rol de suasrepugnâncias”16.

Quando penso em espaço estriado e açãotransgressora me vem à cabeça o filme “Clube deCompras Dallas” de Jean-Marc Vallée, onde um homemprocurando manter sua vida e sua saúde tem que baterde frente com o Estado e seu espaço estriado. Remédiospermitidos eram aqueles testados, calculados, medidos,entretanto até o momento nenhum desses remédiospoderia ajudá-lo Eis então que ele abre uma linha defuga, encontra um médico no México que foi expulso dosEstados Unidos que lhe salva com remédios nãoautorizados na sua terra. Depois isso vai desenvolvendoos tratamentos cada vez mais, aumentando o número deremédios conforme vai vendo pesquisas e observandoos resultados. Isso não implicou num total desapego,como se ele usasse qualquer coisa – afinal ele viapesquisas, testava –, mas ele precisou sair do espaçoestriado, buscar linhas de fuga e criar umaalternatividade para conceber novas formas derelacionamento com o mundo. A necessidade desuperação e de afirmação também levou ele a observaras contingências do mundo, o que lhe fez perder seuaspecto conservador e enxergar o mundo com maisolhos, entendendo que ele era um pequeno homem numgrande mundo e que os seus valores as vezesprecisavam de flexibilidade para ele ter uma convivênciamais plena com as coisas. Não necessitou que eletransgredisse apenas o espaço estriado estatal, mastambém o espaço estriado do próprio ser.17

Deleuze se afasta da ideia de sujeito,principalmente da ideia essencialista de uma identidade

16. Nietzsche, GM II, §717. Jean-Marc Vallée – Clube de Compras Dallas

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inerte ao ser. O nômade “trai” sua identidade a todomomento, transgride, se desterritorializa fugindo dasubjetivação da “máquina abstrata”. Isso cria umapolítica que foge um pouco do ideal (mega) identitário,presentes em alguns movimentos políticos. Judith Butler,por exemplo, polemiza com o movimento feminista aopropor uma atuação não tão “fundamentalista” domovimento. Como Nietzsche, Butler parece trazer aimprecisão e falta de segurança por botar em questão,desconstruindo, alguns pressupostos que os integrantesjulgam importantes para a funcionalidade do corposocial. A proposta é de uma tensão entre o fundamento ea transgressão, algo que parece paradoxal, mas como amáquina de guerra vive em tensão com o Estado, osfundamentos têm que admitir sua contingência para quehaja transgressão, como Butler parece sugerir: "Isso nãoquer dizer que não há fundamento, mas sempre que háum, haverá sempre um afundamento, uma contestação.Que esses fundamentos existam apenas para seremquestionados é o risco permanente do processo dedemocratização. Recusar essa disputa é sacrificar oímpeto democrático radical da política feminista"18

Ainda na questão da identidade, o músico DavidBowie soa como um grande transgressor. No início dosanos 70, Bowie aparece com um personagem chamado“Ziggy Stardust”, um alienígena, andrógeno que além denão ser desse mundo trazia a problemática daidentidade, inclusive em sua aparência. A dúvida “podeum homem se produzir como homem e mulher aomesmo tempo?” era algo que botava em questão anecessidade de um fundamentalismo do sujeito. Bowieparecia mesmo um nômade, chegando a declarar:“quando me canso das minhas expressões,

18. Butler – Fundamentos contingentes

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maneirismos, aparência, me dispo deles e visto umanova personalidade”19. Diferente do que muito seespecula, essa dinâmica e esse “pôr o sujeito emquestão” não trouxe apenas uma efemeridade eindiferença, trouxe também transgressão e um poder dediferenciação muito grande. Até hoje Bowie é adoradoem vários movimentos LGBTs, muito devido ao fato deter botado esse sujeito em questão e ter aberto umalinha de fuga para a possibilidade de diferenciação emuma sociedade moralista, e não fez isso na negação dodiferente, mas sim gozando de sua própria diferençaperante os outros “pobres mortais”.

Não dá para mensurar o impacto da obra deNietzsche nas posturas de Bowie, o que se sabe é quena época do “Ziggy Stardust” ele estava muitoinfluenciado, principalmente pela imagem de Zaratustra,onde em músicas como “Oh your pretty things” e“Quicksand” fazem referências a um “homo superior” emcontraposição ao “homo sapiens”20. Independente domérito das interpretações de Bowie da obra deNietzsche, é visível como há a busca de uma superaçãoda mediocridade humana nas letras de várias músicasnesse início de carreira. Em 1976 Bowie dá umaentrevista para a Playboy proclamado-se um apoiador dofascismo. Na entrevista ele diz que as pessoas “não sãobrilhantes” e mesmo dizendo que querem liberdadedeixam Nietzsche de lado para seguir a Hitler.21

Deleuze e Guattari, mencionam o perigo dodesenvolvimento de um corpo sem órgãos fascista.Foucault no prefácio do “Anti-Édito”22 explica como ter

19. Santos – O que é pós-moderno20. Bowie Songs – https://bowiesongs.wordpress.com/?s=nietzsche21. Bowie Golden Years - http://www.bowiegoldenyears.com/articles/760900-playboy.html22. Deleuze e Guattari – 1997, prefácio

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uma vida não fascista, entre alguns pontos podemosencontrar problemáticas no pensamento/atuação doBowie em 1976. Foucault aponta: “Libere a ação políticade toda forma de paranoia unitária e totalizante”, apesarde Bowie ter se aproveitado da ideia de superação, eletambém ficou fascinado com a ideia de uma “nova raça” -tornando-se paranoico, além disso continua Foucault:“Não utilize o pensamento para dar a uma prática políticaum valor de verdade”, Bowie acabou legitimando aspráticas políticas fascistas em prol de um pensamento“evolucionalista”. Outro ponto é que nas entrevistasdessa época Bowie – que estava no auge do seu uso dedrogas – parecia estar em um mundo particular, diferentedo que recomenda Deleuze e Guattari:

É necessário guardar o suficiente doorganismo para que ele serecomponha a cada aurora; pequenasprovisões de significância e deinterpretação, é também necessárioconservar, inclusive para opô-las a seupróprio sistema, quando ascircunstâncias o exigem, quando ascoisas, as pessoas, inclusive assituações nos obrigam; e pequenasrações de subjetividade, é precisoconservar suficientemente para poderresponder à realidade dominante.Imitem os estratos. Não se atinge oCsO e seu plano de consistênciadesestratificando grosseiramente.23

Bowie passava por uma época conturbada de sua vida,há relatos que dizem que após Bowie ir para Berlim em1976 houve um choque de realidade ao perceber a real

23. Deleuze e Guattari – 2012b, p. 22

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dimensão do fascismo na Europa e ter visto seu nomerelacionado com o racismo e o nacionalismo, tendodepois se desculpado pelas afirmações. O aparenteafastamento com a filosofia de Nietzsche parece estarfortemente relacionado com essas passagensconturbadas em que Bowie se relacionou com ofascismo, entretanto creio que podemos pensar a épocado “Ziggy Stardust” como uma época de um pensamentosadio de Bowie perante os escritos de Nietzsche,trazendo em suas letras e postura uma autoafirmação,busca da superação e uma fuga ao sujeito posto demodo fundamentalista.

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Conclusão

Esse trabalho tentou – talvez de forma desconexa– trazer alguns aspectos aos quais Deleuze, em sualeitura de Nietzsche e em seu trabalho com Guattari, seafasta da tradição da filosofia política, trazendo um modode atuação política diferente do habitual desde Platão.Os conceitos de ressentimento, má consciência ereatividade, presentes no livro “Genealogia da Moral” deNietzsche, parecem ter sidos marcantes no modo deDeleuze de pensar a política. Disso derivaram outrosquestionamentos, como a questão do sujeito ou aquestão de como fazer a luta sem ser mais um dentro damoral escrava. Deleuze parece ter achado nos nômades– e Deleuze considera Nietzsche um nômade, vide otrecho da capa desse trabalho – o modo de pensamentoafirmativo que poderia trazer um modo de atuaçãopolitica afirmativo, logo, essencialmente ativo.

Nessa perspectiva o Devir toma papel central nafilosofia de Deleuze, quem se abre pro Devir se torna umgrande jogador de dados – dando um aspecto dionisíacoà ação24 –, com isso algo muito caro também a Deleuze:a criação. A criação é diferenciação e Deleuze procurana afirmação do Devir um modo de transgressão quepossa agir de modo a expandir a vida, de viver naintensidade. Por isso que o trabalho trouxe algunsexemplos artísticos, pois a arte é um modo de atuaçãocriativo, transgressor, como diz Deleuze: “também osmovimentos artísticos são máquinas de guerra”25. Algunsmovimentos políticos e artísticos trazem a

24. Ver: Deleuze, Nietzsche e a Filosofia, cap. I – 8 e 11, 1976.25. Deleuze, 2010, p. 216.

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problematização do sujeito – como citado nos exemplosde Butler e Bowie – que se torna importantíssimo parauma ação afirmativa e que saia do papel das categoriashistóricas para trazer uma relação menosfundamentalista, onde possa afirmar as contingências esempre expandir os modos de relação com o mundo.

A partir de Deleuze não há outra forma de pensaro mundo que não por uma aceitação do Devir, noslançarmos para o desconhecido, com alguma prudênciamas sem medo, para trairmos a nós mesmos e criarmos.Talvez seja isso que Deleuze chama de “Devirrevolucionário do ser”, uma desertificação do própriodeserto, a afirmação da contingência como um todo, aimpossibilidade de prever ou medir tudo, a afirmação daprópria transgressão como modo de vida, ou seja, ter oDevir como modelo. Assim a política poderá ser vistasem o espírito de gravidade, sem o mal estar estomacal(sem órgãos?) e como um modo fortalecedor e ativo deinteragir com mundo.

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Referencias:

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Santos, J.F. – O que é pós-moderno. São Paulo: Ed.Brasiliense, 1987.

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