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 Instituto de Ciências Sociais Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade http://www.cecs.uminho.pt  Colonialis mo, identidade nacional e representações do “negro”  Rosa Cabecinhas Professora Auxiliar [email protected]  Luís Cunha Professor Auxiliar [email protected]  Universidade do Minho Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade Campus de Gualtar 4710-057 Braga Portugal CABECINHAS, R. & CUNHA, L. (2003). Colonialismo, identidade nacional e representações do “negro” . Estudos do Século XX, 3, 157-184.

Colonialismo, identidade nacional e representações do negro

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  • Instituto de Cincias Sociais

    Centro de Estudos de Comunicao e Sociedadehttp://www.cecs.uminho.pt

    Colonialismo, identidade nacional e representaes do negro

    Rosa Cabecinhas Professora Auxiliar

    [email protected]

    Lus Cunha

    Professor Auxiliar

    [email protected]

    Universidade do Minho

    Centro de Estudos de Comunicao e Sociedade Campus de Gualtar

    4710-057 Braga Portugal

    CABECINHAS, R. & CUNHA, L. (2003). Colonialismo, identidade nacional e representaes do negro. Estudos do Sculo XX, 3, 157-184.

  • Rosa Cabecinhas Colonialismo, identidade nacional e representaes do negro

    Resumo

    Neste artigo traamos um breve resumo da ideologia racista que se desenvolveu em

    Portugal, sobretudo a partir do incio do sculo XIX at ao 25 de Abril de 1974, com especial

    destaque ao perodo do Estado Novo por ser considerado por diversos autores o perodo mais

    marcante da ideologia racista em Portugal. Seguimos a evoluo das concepes em torno

    deste tema no meio poltico e cientfico portugueses, socorrendo-nos neste percurso de

    trabalhos efectuados por historiadores, socilogos e antroplogos. Pontualmente, fazemos

    referncia a outras fontes, nomeadamente a literatura africana de lngua portuguesa.

    Rsum

    Dans cet article nous procdons un bref rsum de l idologie raciste qui sest

    dveloppe au Portugal surtout partir du dbut du XIXe sicle jusquau 25 avril 1974, en

    particulier en ce qui concerne la priode de l Estado Novo puisquelle est considre par

    divers auteurs lpoque la plus marquante de lidologie raciste au Portugal. Nous suivrons

    lvolution des conceptions autour de ce thme dans le milieu politique e scientifique portugais

    en nous aidant, durant ce parcours, de travaux effectus par des historiens, des sociologues et

    des anthropologues. Occasionnellement, nous ferons rfrence dautres sources, en

    particulier la littrature africaine de langue portugaise.

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    Devemos organizar cada vez mais eficazmente e melhor a proteco das raas inferiores cujo

    chamamento nossa civilizao crist uma das concepes mais arrojadas e das mais altas

    obras da colonizao portuguesa.

    Antnio Oliveira Salazar, 1935

    Aos olhos desses alguns, as msicas, a dana, as lnguas, a filosofia, as religies africanas so

    coisas e coisas sem importncia. O prprio homem africano submetido a esse processo. Na

    sua mente, ns somos coisas desprezveis, destitudas do valor humano que tm todos os

    homens sobre a terra. Logicamente, deste processo de coisificao passa-se com a maior

    facilidade para a violncia e a imoralidade.

    Agostinho Neto, 1959

    O imprio colonial, a pureza bioqumica do povo portugus e o receio das ndoas

    pigmentares

    Ao desfolhar as actas do Congresso Nacional de Cincias da Populao realizado no Porto em

    1940 deparamo-nos com dois temas de suma importncia: a pigmentao e a pureza

    bioqumica da populao portuguesa. Assim, Leopoldina Paulo comea por afirmar que a

    pigmentao um dos caracteres mais importantes a considerar no estudo da populao dum

    pas (1940, p.1) e Jos Serra explica-nos porqu: a pigmentao constitui a base

    indispensvel das classificaes raciais e, s esta razo, seria suficiente para justificar o

    interesse dos estudos dos pigmentos (1940, p.1).

    Mais a diante, Aires de Azevedo assegura-nos que muito grande a pureza bioqumica da

    populao portuguesa, o que coloca o nosso povo, sob este aspecto, no mais alto lugar da lista

    das raas de tipo europeu, no deixando, todavia, de alertar: esta pureza bioqumica decresce

    de Norte para Sul, o que se explica pelas facilidades geogrficas que as raas invasoras [...] encontraram para a sua infiltrao (1940, p. 32). Tambm Pires de Lima nos alerta para o

    perigo da mistura de raas, aproveitando para enunciar os povos intrusos: os rabes, os

    Judeus e os Negros (1940a, p.42).

    Nem todas estas raas invasoras ou intrusas representam, porm, o mesmo perigo de

    degenerescncia para a populao portuguesa. De facto, se atendermos s inmeras referncias

    feitas raa negra nos congressos coloniais realizados durante o Estado Novo, facilmente se

    percebe que era desta que provinha o maior perigo.

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    Numa anlise da presena dos negros na vida portuguesa, desde os primrdios da

    nacionalidade at ao sculo XX, Jos Tinhoro (1988/1997) considera que esta presena foi

    silenciada pelo preconceito dos investigadores portugueses. Na sua obra Tinhoro recorre a

    materiais to diversos como a legislao produzida, a literatura histrica, a literatura de cordel,

    o teatro, as festas e romarias populares, a msica e a dana. O autor averigua a participao dos

    negros na vida portuguesa, especialmente no seu papel de trabalhadores no artesanato, no

    servio domstico, no campo, e nos servios mais sujos e pesados (Tinhoro, 1988/1997,

    p.107). A sua anlise remete-nos para os papis que os negros eram chamados a desempenhar

    e tambm para as representaes do negro na cultura popular, embora essa apresentao no

    seja realizada de forma sistemtica.

    Segundo o autor, a partir do sculo XIV so frequentes nos registos histricos as

    referncias ao negro, sendo a palavra usada tanto para designar mouros como africanos. A

    palavra era tambm usada como apelido identificador da cor da pele: David Negro, Pro

    Palha, Lus Mulato, Rita Malhada (Tinhoro, 1988/1997).

    Na sua reviso de literatura, Tinhoro refere que uma das questes mais presentes nas

    obras dos historiadores e dos antroplogos portugueses a de saber at que ponto os negros se

    cruzaram com os autctones da metrpole. Na opinio de Tinhoro, a maioria dos autores

    portugueses, visivelmente influenciados pelos preconceitos racistas, tomou como problema os

    possveis vestgios de ndoas pigmentares (expresso de Pedro dAzevedo, 1903) para

    concluir, quase sempre, como Mendes Correia que a proporo de negrides, mulatos ou

    negros na nossa gente metropolitana escassssima, que os Portugueses no tm afinidades

    hemticas com os negros africanos e que so reduzidssimos os vestgios das influncias

    negrticas ou simplesmente negrides na populao portuguesa actual (1938, citado por

    Tinhoro, 1988/1997, pp.405-406).

    Esta opinio de Mendes Correia partilhada por diversos mdicos que se preocuparam

    com a pureza bioqumica do povo portugus. Por exemplo, Aires de Azevedo (1940, p.32)

    defende que a influncia das raas coloniais (nomeadamente Hindu e Negra) na pureza

    bioqumica do povo portugus, praticamente nula. Pires de Lima fornece-nos uma indicao

    mais detalhada:

    No h dvida que o nosso fundo tnico provm dos Lusitanos, dos Romanos e dos Germnicos; mas

    onde quer se topam indcios de influncias estranhas. As ideias fatalistas do nosso povo derivam da

    alma dos rabes, que deixaram aqui tantas mouras encantadas; onde quer se notam sobrevivncias

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    judaicas no esprito mercantil e usurrio de tantos Portugueses; e o abominvel fado, que muitos

    consideram indevidamente como a mais tpica das canes nacionais, provm certamente da triste

    msica dos escravos negros, que herdamos das Descobertas. Com grande exagero, tem sido Portugal

    acusado, sobretudo por alemes, de albergar um povo inferior, de carcter acentuadamente negride

    (1940b, p.167).

    Como refere Tinhoro, nos discursos dos autores portugueses observam-se

    frequentemente contradies gritantes, como a que Mendes Correia cometeu numa

    conferncia, na qual, aps ter sugerido que talvez se tenha exagerado a prolificidade dos

    escravos em Portugal, citou longamente a concluso de Oliveira Martins, que o contradizia:

    "Os escravos, repugnante legado da descoberta da frica e do domnio ultramarino, punham na

    sociedade uma mancha torpe; e na fisionomia das massas, borres de cor negra, pelas ruas e praas da

    capital. Tinham-se e tratavam-se como gado. Criavam-se rebanhos de mulheres para crias, porque um

    pretinho novo, desmamado apenas, j valia 30 a 40 escudos. As negras soam ser fecundas e inavam

    as casas de negrinhos e mulatinhos, como diabos, chocarreiros, ladinos, quem no gostaria deles?"

    (citado por Tinhoro, 1988/1997, p.406).

    Na opinio de Tinhoro, a indiferena cientfica e o preconceito oficial teriam

    conduzindo ao esquecimento da dvida inegvel da nao e da gente portuguesa fora de

    trabalho e ao sangue dos negros africanos, que desde a segunda metade do sculo XV

    chegaram em grande nmero metrpole e se foram cruzando com a populao autctone

    (1988/1997, p.422).

    O historiador Valentim Alexandre, defende que o moderno Imprio de Portugal em

    frica construdo no sculo XIX, a partir da independncia do Brasil (declarada em 1822 e

    reconhecida em 1825), aps a qual o poder imperial portugus ficou significativamente

    reduzido. Foi nesse contexto, muito desfavorvel, que nasceram os primeiros projectos de

    formao de um novo Imprio, centrado no Continente Africano (1999, p.134).

    Segundo o autor, coube a S da Bandeira formular e dar expresso poltica ao mais

    consistente desses projectos - o nico que, rompendo com as prticas ento correntes,

    preconizou a abolio imediata do trfico de escravos e, a prazo, a da prpria escravatura. Para

    justificar as medidas abolicionistas, S da Bandeira recorreu aos princpios da Carta

    Constitucional que consagrava a inviolabilidade dos direitos civis e polticos dos cidados

    portugueses e concedia a cidadania portuguesa a quem tivesse nascido em Portugal ou seus

    domnios. Partindo destes princpios S da Bandeira concluiu: positivo que os habitantes

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    portugueses das provncias da frica, da sia e da Ocenia, sem diferena de raa, de cor ou

    de religio, tm direitos iguais queles de que gozam os portugueses da Europa (1873; citado

    por Alexandre, 1999, p.134).

    No entanto, apesar de traduzido em vrios diplomas legais, o abolicionismo de S da Bandeira

    encontrou mltiplas resistncias. Na verdade, na perspectiva de Alexandre (1999), a proibio

    do trfico negreiro em 1836 pouco contribuiu para a sua efectiva extino, uma vez que na

    poca os negreiros dominavam a vida econmica e poltica dos territrios africanos e, alm

    disso, a perspectiva abolicionista era tambm muito minoritria na prpria metrpole, sendo

    geralmente considerada como uma simples utopia, que poderia pr em causa a soberania

    portuguesa nesses territrios.

    Para a ideologia dominante [...] a raa negra estava irremediavelmente ferida por uma inferioridade inata: tratar-se-ia de uma populao selvagem, essencialmente indolente, inclinada por natureza embriaguez

    e ao roubo, que no conhecia nenhum dever social nem experimentava sentimento do amor famlia ou o

    do amor do prximo. Desta concepo se partia para a justificao do trfico de escravos [...], como tambm da escravatura, nica forma de, pela obrigao do trabalho, dar umas tintas de civilizao a quem,

    por outro modo, lhe seria forosamente alheio (Alexandre, 1999, p.135).

    Segundo Alexandre o predomnio desta ideologia s se esbateu na dcada de 1870, poca

    em que Andrade Corvo retomou e aprofundou alguns dos temas enunciados por S da

    Bandeira. A manifestao mais clara dessa renovao traduziu-se na lei de 29 de Abril de 1875

    que extinguiu o trabalho servil nas colnias. No mbito da poltica colonial defendeu-se a

    integrao dos povos das possesses no conjunto nacional, de preferncia por aliana com os

    chefes indgenas e preservando as instituies tradicionais africanas, nas quais via um

    embrio da vida democrtica (Alexandre, 1999, p.136).

    Para Andrade Corvo a grande maioria das populaes africanas seria susceptvel de

    progredir e civilizar-se, recuperando do seu atraso histrico. Caberia aos europeus abrir o

    caminho aos povos selvagens, mostrando-lhes as formas de domnio do homem sobre as

    foras da natureza pela cincia e incutindo-lhes uma superioridade moral da civilizao crist

    fundada na igualdade de todos os homens, na paridade de todas as raas e no progresso em

    comum de toda a humanidade (1883-1887; citado por Alexandre, 1999, p.136).

    Mas a poltica de Andrade Corvo sucumbiu rapidamente, no resistindo emergncia de

    uma forte corrente de nacionalismo populista nos finais da dcada de 1870. Nas colnias, as

    formas coercivas de trabalho e o prprio trfico de escravos impuseram-se de novo, com a

    complacncia do governo de Lisboa (Alexandre, 1999, p.136). Em rigor, as propostas de

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    Andrade Corvo nunca ultrapassaram o domnio jurdico, sendo incuas em termos prticos,

    pois, como nota Adelino Torres, apesar da denominao jurdica ou dos subterfgios

    lingusticos utilizados, uma caracterstica marcante das colnias portuguesas do sculo XIX e

    princpios do sculo XX, era a utilizao de trabalho escravo ou semi escravo (Torres, 1991,

    p.153).

    No campo ideolgico, o racismo cientfico recorreu aos tpicos recm-desenvolvidos

    pela antropologia fsica e pela psicometria (para uma reviso ver Cabecinhas, 2002). Oliveira

    Martins (1880/1953, pp.262-265) fornece-nos um exemplo:

    "Sempre o preto produziu em todos esta impresso: uma criana adulta. A precocidade, a mobilidade,

    a agudeza prprias das crianas no lhe faltam; mas essas qualidades infantis no se transformam em

    faculdades intelectuais superiores. Resta educ-los, dizem, desenvolver e germinar as sementes. [...]

    No haver, porm, motivos para supor que esse facto do limite da capacidade intelectual das raas

    negras, provado em tantos e to diversos momentos e lugares, tenha uma causa ntima e constitucional?

    H decerto, e abundam os documentos que nos mostram no negro um tipo antropolgico inferior, no

    raro prximo do antropide, e bem pouco digno do nome de homem. [...] A ideia de uma educao dos

    negros portanto, absurda no s perante a Histria, como tambm perante a capacidade mental dessas

    raas inferiores. [...] Que ser daqui por muitos sculos das raas negras? Obedecendo a leis inerentes

    existncia do homem sobre a Terra, tero desaparecido, em vez de se terem civilizado (citado por

    Alexandre, 1999, pp.136-137).

    Valentim Alexandre defende que a doutrina expressa neste texto uma ilustrao de uma

    teoria geral da histria, muito elaborada e muito coerente, que Oliveira Martins expe noutras

    obras. Na sua base, estava a ideia de uma desigualdade congnita das diversas raas

    naturais. De entre elas, a superioridade caberia raa ariana, destinada a criar a civilizao

    europeia e a dominar o mundo, submetendo ou exterminando os povos inferiores. As

    consequncias desta teoria, no domnio da poltica colonial, eram bvias. Segundo Oliveira

    Martins, seria absurda a aplicao da Carta Constitucional aos indgenas africanos, sendo a

    utilizao do trabalho forado a nica forma de criar colnias proveitosas economia nacional

    (Alexandre, 1999, p.137).

    Alexandre salienta que estas ideias tiveram larga aceitao nos meios imperiais

    portugueses. Antnio Enes (Governador de Moambique), desenvolveu o tema do trabalho

    obrigatrio, justificando o exerccio de uma compulso sobre entes quase impensantes e

    impulsivos para os arrancar ociosidade, considerando que o Estado no devia ter escrpulo

    de obrigar e, sendo assim, de forar a trabalharem, isto , a melhorarem-se pelo trabalho, a

    adquirirem pelo trabalho meios de existncia mais feliz, a civilizarem-se trabalhando, esses

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    rudes negros da frica, esses ignaros prias da sia, esses meios selvagens da Ocenia

    (citado por Alexandre, 1999, p.138), tendo participado num regulamento que consagrou de

    novo o trabalho obrigatrio em 1989. O trabalho surge aqui com matriz fundamental de uma

    vida civilizada, ideia que, como Torres demonstra, correspondia aos interesses da burguesia

    colonial. Num relatrio apresentado em 1893, Antnio Ennes procura mostrar que dada a

    suposta inferioridade natural dos africanos, eles deveriam ser compelidos a trabalhar, surgindo

    este obrigar ao trabalho no s como um direito, mas tambm como um dever dos

    colonizadores (Torres, 1991, p.167).

    Perspectiva semelhante contribua para justificar a apropriao de terras em frica, uma

    vez que aos negros no teriam a noo de propriedade, para defender a aplicao aos indgenas

    de um direito penal especfico, fortemente repressivo, que seria o nico eficaz perante povos

    selvagens, e ainda para preconizar a limitao da educao dos africanos aos mais simples

    rudimentos (Alexandre, 1999, p.138).

    ainda dentro desta perspectiva que Eduardo Ferreira da Costa (1901), no primeiro

    Congresso Colonial, apresenta uma comunicao na qual faz a apologia de um despotismo

    atenuado para governo das colnias: negao do princpio da liberdade de imprensa e do

    direito de sufrgio; e a instaurao de um regime militar, nos territrios ainda no

    inteiramente pacificados, com a concentrao de todos os poderes nas mos dos

    governadores e a utilizao de processos militares sumrios na administrao. Em qualquer

    caso, a lei aplicvel a europeus e a indgenas no poderia ser igual, pois:

    as razes antropolgicas, as razes sociais, mostrando a disparidade de caracteres tnicos, de usos e de

    instintos, e a inferioridade manifesta do selvagem, evidencia[vam] a necessidade de aplicar diferentes

    sistemas de governo a raas to diversas e de manter nas mos dos mais civilizados, como dos mais

    dignos, a tutela dos mais selvagens e primitivos, como de uma classe desgraada ou incompleta da

    sociedade humana" (Costa, 1901; citado por Alexandre, 1999, p.139).

    Para Valentim Alexandre, esta seria a doutrina dominante nos comeos do sculo XX,

    em plena poca da ocupao militar dos territrios coloniais. No entanto, algumas vozes era

    dado um maior crdito s possibilidades de civilizao da raa negra - embora sempre num

    futuro longnquo, aps uma longa evoluo. Paiva Couceiro (Governador de Angola; 1907-

    1909), apontava como objectivo final da colonizao de Angola a sua transformao numa

    grande provncia portuguesa, dando cunho nacional totalidade do seu povo, a constituir

    por portugueses do Velho Continente, pelas raas nativas e por uma percentagem

    devidamente doseada de estrangeiros adventcios. Para o integramento final de todas as

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    populaes dentro da paz, da ordem e do progresso da hegemonia portuguesa que, na sua

    perspectiva, levaria centenas de anos a realizar (1948; citado por Alexandre, 1999, p.139).

    Esta ideia de integrao nacional ser continuada por Norton de Matos (Governador de

    Angola; 1912-1915, 1921-1923). Os seus planos tinham como elemento essencial fomentar a

    emigrao metropolitana para frica, nica forma de transformar o ultramar no

    prolongamento da nacionalidade, brilhante receptculo da nossa lngua, campo vastssimo

    expanso da nova civilizao [...] abenoada pelos povos primitivos que a Histria nos

    entregou para os elevarmos at ns (1926; citado por Alexandre, 1999, pp.139-140). Uma vez

    estabelecida a hegemonia da civilizao nacional, processo que duraria sculos, seria ento

    possvel a fuso das raas em presena. No entanto, durante as geraes mais prximas, a

    conservao do domnio portugus exigiria uma rigorosa separao racial, de modo a evitar a

    diluio dos elementos de civilizao (Norton de Matos, 1926; citado por Alexandre, 1999,

    p.140).

    Ter sido a necessidade de consolidar o espao colonial e de o desenvolver

    economicamente que ter suscitado um inqurito etnogrfico em 1912, bem como, no mesmo

    ano, a criao do Museu Etnogrfico de Angola e Congo (Cf. Pereira, 1986, p.201). Nessa

    linha, a aco de Norton de Matos em Angola, parece ter contribudo para estimular o interesse

    pelo conhecimento dos povos nativos das colnias. Foi criado o Servio dos Negcios

    Indgenas, cuja principal funo consistia na codificao dos usos e costumes indgenas

    (cf. Pereira, 1986, p.202). No entanto, a crise gerada pela I Guerra Mundial acabaria por

    contribuir seriamente para um notrio refluxo no entusiasmo pelos projectos coloniais.

    Estado Novo, vocao civilizadora dos portugueses e representaes do negro

    A emergncia do Estado Novo marcou uma inverso nesta poltica colonial com o

    retorno arrumao simplificadora das sociedades em duas esferas distintas civilizadas

    vs. primitivas - exigindo a conceptualizao de mecanismos capazes de atenuar as diferenas

    pela absoro gradual da civilizao por parte daqueles que eram supostos no a possurem.

    Esta poltica dar lugar elaborao de diversos projectos assimilacionistas que Moutinho

    (1980, p.49) no hesita em designar por aco etnocidria, na medida em que fazia tbua rasa

    das culturas dos povos colonizados (Cunha, 2001).

    Na opinio de Alexandre, estaramos perante uma concepo fortemente etnocentrica,

    muito marcada pelo nacionalismo exacerbado que, desde o ltimo quartel de Oitocentos,

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    tomara a quase totalidade das elites polticas portuguesas (1999, p.140). Um dos aspectos

    fundamentais subjacentes a esta ideologia era a ideia de uma finalidade ou de uma misso a

    cumprir por Portugal no ultramar, como portador dos valores universais da civilizao face aos

    povos primitivos (Alexandre, 1999; Cunha, 2001). Este esprito de misso foi uma das

    ideias fortes do Estado Novo e viria a ser expresso formalmente no Acto Colonial de 1930.

    No incio do Estado Novo, o imprio est beira da falncia, sendo a sua importncia

    muito maior no plano poltico e ideolgico do que no campo econmico (Rosas, 1994,

    p.131). Pode mesmo dizer-se que, embora no plano poltico e jurdico se expresse a inteno

    de promover o desenvolvimento econmico, parece ser mais ao nvel simblico que o imprio

    assume a sua verdadeira importncia (Cunha, 1994).

    Um breve olhar pela legislao produzida na primeira fase do Estado Novo, ajuda-nos a

    perceber tanto o esforo de desenvolvimento, quanto o apelo ao imprio como factor de

    mobilizao nacional. Braga da Cruz afirma no ser possvel entender cabalmente o

    nacionalismo autoritrio do salazarismo sem uma referncia sua dimenso colonial, no s

    porque o colonialismo do Estado Novo foi um colonialismo nacionalizador, mas tambm

    porque o prprio nacionalismo foi intrinsecamente determinado pela situao colonial (citado

    por Silva, 1989, p.141).

    Em 1926 so publicadas as Bases Orgnicas da Administrao Colonial, onde se vinca a

    necessidade de remodelar a administrao colonial. Pela primeira vez fala-se de imprio

    colonial, o que evidentemente denota a importncia estratgica que tal ideia comeou a

    assumir, e em 23 de Outubro aprovado o Estatuto Poltico, Civil e Criminal dos Indgenas

    pelo Decreto n12533 (Rosas e Brando de Brito, 1996, p.320).

    Aprovado pelo decreto n. 28570 de 8 de Julho de 1930 e tornado constitucional em

    1933, o Acto Colonial exemplifica de forma clara o desejo de reafirmao do pas atravs da

    revalorizao das colnias: da essncia orgnica da Nao Portuguesa desempenhar a

    funo histrica de possuir e colonizar domnios ultramarinos e de civilizar as populaes

    indgenas que nelas se compreendam (Art. 2; Silva, 1989, p.118).

    Durante o Estado Novo realizaram-se diversos congressos coloniais onde cientistas,

    acadmicos, polticos, militares e religiosos expuseram e debateram as teses sobre a misso

    civilizadora do povo portugus e as prticas a implementar nos territrios coloniais para

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  • Rosa Cabecinhas Colonialismo, identidade nacional e representaes do negro

    aproximar da civilizao os diversos povos indgenas, sob a hegemonia dos valores

    portugueses.

    Lus Cunha (2001) analisou a documentao produzida no mbito de dois eventos

    concretos particularmente marcantes durante este perodo: a Exposio Colonial do Porto

    (1934) e a Exposio do Mundo Portugus em Lisboa (1940). Relativamente ao primeiro

    destes eventos, de salientar, por um lado, o discurso de exaltao do imprio e, por outro, a

    sua tnica pedaggica. Atravs da exposio procurou-se cativar interesses e vocaes, mas

    sobretudo demonstrar a verdadeira dimenso e vocao do pas. A exposio da vastido

    geogrfica da nao permitiria negar a sua pequenez europeia, evidenciando o valor da

    alma missionria e civilizadora portuguesa. Neste sentido, face ameaa de outras potncias

    coloniais europeias que cobiavam o solo portugus, pretendia-se evidenciar os direitos

    histricos e morais de possuir um imprio e legitimar as expectativas de um novo ciclo

    poltico com vista consolidao destes direitos (Cunha, 2001, p.95).

    Armindo Monteiro (Ministro das Colnias; 1931-1935), considerado o principal

    propagandista da ideia imperial na primeira fase do Estado Novo, retoma e d fora aos temas

    da vocao colonial do pas, e da especial capacidade do povo portugus para lidar com as

    populaes indgenas do ultramar, ideias muito generalizadas em Portugal desde a poca da

    partilha de frica (Cunha, 2001, p.95).

    Na sesso inaugural da Exposio Colonial, Armindo Monteiro procurou precisamente

    vincar o carcter imperial da nao portuguesa, defendendo que, apesar das suas limitaes

    econmicas, Portugal estava a conseguir realizar uma obra vlida porque possua uma

    verdadeira vocao colonial, exercitada por sculos de contacto com povos longnquos. Esta

    predestinao histrica ou pesada tarefa abraada por Portugal fez com que se acrescentem

    territrios ao mundo e novos povos recebam as luzes da civilizao (Salazar, 1935, p.237).

    Sintetizando o material relativo a este evento, Cunha salienta aquela que poca era a

    imagem dominante dos indgenas:

    Seres que conservam do primitivismo a nota extica, os nativos que a Exposio Colonial mostra

    apresentam-se docilizados, convenientemente submetidos aos desejos de uma autoridade superior,

    sem que, todavia, se tenham tornado j seres plenamente civilizados, pois importa fazer notar que

    [como se defendia numa publicao associada ao evento],dum selvcola, que s conhece o ritmo

    sensual do seu batuque e a simplicidade primeva da sua esteira, no se faz, de golpe, um cidado

    (2001, p. 100).

    11

  • Rosa Cabecinhas Colonialismo, identidade nacional e representaes do negro

    Assim, as imagens e os discursos sobre os indgenas produzidas no mbito da Exposio

    Colonial devem ser entendidos como prova de dois factos convergentes: a sua pacificao,

    que os tornou sbditos do estado portugus; e a necessidade de os fazer ainda evoluir no

    sentido da aquisio de uma cidadania plena (Cunha, 2001, p.100).

    No nmero especial que a revista Civilizao dedica exposio, os indgenas so

    desprovidos da palavra, mas constituem o essencial da ilustrao da revista, onde se evidencia

    a sensualidade de corpos seminus ou o exotismo das roupas e adornos. Assim, pela

    imagem que o discurso do colonizado se constri, num processo onde o olhar de quem domina

    estabelece as regras decisivas do processo de comunicao. Neste sentido o autor afirma que

    fica elucidado de forma clara que possuindo uma imagem, o indgena no parece possuir

    ainda uma alma e essa ausncia remete-o inevitavelmente ao silncio (Cunha, 2001, p.101).

    De referir ainda que nas diversas conferncias proferidas a bordo do Cruzeiro de Frias

    que levou jovens portugueses a visitar as colnias, os conferencistas nunca atribuam relevo

    diversidade dos nativos, sendo estes sempre designados genericamente por pretos, do

    mesmo modo que o universo de prticas culturais se reduz quase sempre ao sedutor batuque.

    Por exemplo, Jorge Brutas Cardoso enfatiza a ingenuidade e criancice dos pretos, que

    apreciam ainda as bugigangas berrantes (1935, p.303). Mais tarde, Marcelo Caetano, Director

    Cultural do referido cruzeiro, salientou a importncia deste evento na formao moral e

    patritica de potenciais novos administradores, cuja aco mais valiosa seria o domnio das

    almas (1936, p.379).

    Os Trabalhos do 1 Congresso Nacional de Antropologia Colonial (1934) oferecem-nos

    uma clara demonstrao do saber antropolgico da poca sobre os indgenas. A ttulo

    meramente ilustrativo iremos referir algumas das comunicaes apresentadas na seco de

    Psicologia.

    A comunicao de Mendes Correia, sobre o valor psico-social comparado das raas

    coloniais apresenta os resultados de um inqurito no qual se procurava estabelecer um ndice

    de eficincia racial (1934, p.386) baseado numa adaptao do mtodo de Poteus e Babcock2.

    2 Poteus e Babcock (1925) efectuaram um inqurito a 25 pessoas (administradores de fazendas,

    industriais, mdicos e educadores sobre alguns caracteres psico-sociais dos trabalhadores agrcolas e industriais) sobre as qualidades de vrios grupos raciais do Hawai (japoneses, chineses, portugueses, hawaianos, filipinos e porto-riquenses). Sobre os resultados do referido inqurito, Mendes Correia refere: de passagem, registemos que os portugueses ficaram dum modo geral abaixo dos japoneses e chineses. A verdade que os ditos autores e os juizes de certo norte-americanos como aqueles no mostram muita simpatia por ns... (p.385). No

    12

  • Rosa Cabecinhas Colonialismo, identidade nacional e representaes do negro

    O inqurito foi efectuado junto de 27 portugueses (missionrios, oficiais do exrcito, mdicos,

    funcionrios e outras profisses), que deveriam expressar a sua opinio sobre vrias qualidades

    (aptido para o trabalho, impulsividade, moralidade, sugestibilidade, auto-controle, capacidade

    de deciso, previdncia, tenacidade, inteligncia global e educabilidade) das seguintes raas

    puras: negros da Guin, negros de So Tom e Prncipe, negros de Angola e Congo,

    Mucancalas, negros de Moambique, Indianos, Chineses de Macau e Timor, e Timorenses

    (p.388).

    Tendo presente que o reduzido nmero de respostas recebidas no permitia concluses

    definitivas, os resultados do inqurito no deixavam, no entanto, de fornecer algumas

    indicaes teis. Por exemplo, os bantos manifestavam aptido para o trabalho mas eram

    pouco previdentes, no que eram acompanhados pelos negros da Guin e pelos timorenses.

    Quanto educabilidade e a inteligncia global imperava o desacordo entre os informantes,

    tendo alguns deles considerado os portugueses metropolitanos em desvantagem face aos

    chinas e aos negros da Guin! Talvez por isso, Mendes Correia reconheceu a heterogeneidade

    complexa das populaes das nossas colnias e salientou a necessidade da utilizao de

    processos cientficos mais directos e seguros do que o de Poteus e Babcock para o

    conhecimento do valor psico-social das populaes, como certos mtodos antropolgicos e

    psicotcnicos (p.393).

    Foram precisamente os resultados obtidos atravs de mtodos psicotcnicos mais

    rigorosos que foram apresentados por Leite Costa na comunicao seguinte, sobre a

    avaliao mental dos indgenas de Angola. A autora aproveitou a presena dos indgenas na

    exposio colonial para atravs dos testes de Burt3 (adaptados dos testes de Binet-Simon)

    comparar o nvel mental destes com os das crianas metropolitanas, tendo concludo o

    seguinte: os indgenas de Angola [tm] um nvel mental correspondente ao das crianas europeias entre os 6 e 13 anos (1934, p.493).

    deixa de ser curioso que o reconhecimento do etnocentrismo dos americanos no tenha levado o autor a reflectir sobre o etnocentrismo espelhado nas suas prprias concepes.

    3 No podemos deixar de dar um exemplo dos referidos testes: Teste tambm valioso para se formar um diagnstico mental o da construo de uma frase com trs palavras dadas. Este teste, que as crianas entre 10, 11 e 12 anos satisfazem de uma maneira mais ou menos completa, construindo com as trs palavras dadas uma frase com duas ideias distintas ou duas frases distintas, ou numa s frase distinta, no foi compreendido por nenhum dos indgenas. Nenhum foi capaz de compreender aquilo de que se tratava, nem mesmo os mais pretensiosos. As palavras dadas foram porto, dinheiro, rio com os quais uma criana da metrpole de 8 anos [...] formulou no Porto passa um rio que trs muito dinheiro. Leite Costa salienta que apenas um angolano foi capaz de escrever, mas trs frases distintas, o que no satisfazia o critrio do teste: 1) Porto uma cidade, segunda capital de Portugal e onde se encontram os barcos; 2) Dinheiro moeda destinada a trocos com objectos; 3) Rio contm gua para consumo do homem (Leite Costa, 1934, p. 399, sublinhados nossos).

    13

  • Rosa Cabecinhas Colonialismo, identidade nacional e representaes do negro

    A caracterizao dos negros como crianas grandes uma das ideias mais recorrentes

    durante este perodo, ilustrada na seguinte afirmao de Santos Jnior:

    No posso deixar de dizer que a alma indgena moambicana , no conjunto, infantil. Inegavelmente,

    nos testes de inteligncia e em muitas atitudes, surgem marcadas caractersticas infantis. Mas temos de

    reconhecer que h muito de complexo, de evoludo e de misterioso naquela alma. (1940, p.28).

    Mas o paternalismo com que os nativos so encarados apenas uma das faces do

    relacionamento colonial. O seu contraponto o temor da selvajaria que marca o indgena.

    Joo de Figueiredo (Governador da Provncia do Niassa), a partir das informaes fornecidas

    pelas Misses Catlicas, salientou a dimenso perigosa, difcil de controlar ou disciplinar. O

    feiticeiro encarnaria o lado selvagem dos povos colonizados: horroroso ser humano,

    repugnante indivduo mata gente para comer carne humana (Figueiredo, 1939, p.25). Outra

    dimenso considerada igualmente incontrolada e perigosa a da sexualidade (Cunha, 2001,

    p.125).

    Torna-se por isso necessrio orientar os indgenas nos rumos difceis da civilizao,

    contrariando a sua dimenso marcadamente perigosa. O caminho que o selvagem deve trilhar

    significa um afastamento face a um primitivismo que ora grosseiro e violento, ora irracional

    e incompreensvel, mas representa tambm a perda da ingenuidade infantil frequentemente

    atribuda aos indgenas (Cunha, 2001, p.125).

    Numa breve anlise das teses apresentadas neste congresso podemos constatar que estas

    espelham aquilo que cientistas anglo-saxnicos procuravam demonstrar cientificamente

    desde o sculo XIX em relao a outras minorias raciais e tnicas, e que, como j referimos,

    incluam os Europeus do Sul, e especificamente os portugueses (e.g., Poteus e Babcock, 1925).

    De salientar, no entanto, o seu carcter anacrnico j que grande parte das comunicaes

    apresentadas se debruava na antropologia fsica (estudo do crnio, dos nervos, dos

    msculos, da estatura, do ndice torcico, do ndice ceflico, do ndice esqueltico, do ngulo

    de insero da orelha, etc.) e na biologia tnica (os grupos sanguneos dos indgenas, os

    problemas causados pela mestiagem, etc.) numa altura em que noutros pases europeus e nos

    EUA a antropologia fsica j era seriamente contestada. Esta tentativa de conhecimento das

    caractersticas fsicas, psicolgicas e sociais dos diferentes tipos de indgenas visava sobretudo

    14

  • Rosa Cabecinhas Colonialismo, identidade nacional e representaes do negro

    um melhor aproveitamento da mo-de-obra disponvel no vasto imprio, e no um

    reconhecimento da heterogeneidade dos diferentes povos.

    Sintetizando alguns dos aspectos fundamentais do relacionamento da metrpole com os

    povos dos territrios colonizados, podemos destacar: a negao do princpio da autonomia; a

    misso de converter, ensinar e proteger o indgena; e a unidade do imprio. neste quadro

    que se alicera o itinerrio de aco poltica especificamente orientado para as colnias,

    atravs do qual se procura consolidar essa unidade, pela converso do indgena aos valores

    imanentes alma humana (Cunha, 2001, p.105). Ao impor uma lngua, uma f e uma

    histria superiores, Portugal fazia-os participar da sua prpria identidade rejeitando a

    poltica de segregao, adoptada por outros pases coloniais (Vieira Machado, 1936).

    Num trabalho com j alguns anos, Cunha procurou mostrar que a anlise do processo

    colonial no plano poltico e cientfico insuficiente para compreender todo o fenmeno j que

    em grande parte deixa na sombra a natureza das relaes sociais que o sustentam (Cunha,

    1994, p.3). Com o objectivo de descortinar essas relaes sociais, isto , averiguar quais os

    actores e quais os papis que a cada um cabe desempenhar para o sucesso do

    empreendimento colonial, esse autor empreendeu uma anlise sobre A imagem do Negro na

    Banda Desenhada do Estado Novo (Cunha, 1994).

    Da anlise de revistas infantis (especialmente, o Papagaio e o Mosquito), procurou ter

    em conta duas dimenses: a representao pictrica (a imagem das personagens) e a aco

    desenrolada (o comportamento atribudo e/ou realizado pelas personagens). O objectivo foi

    analisar as continuidades e as transformaes das representaes do negro que acompanharam

    os acontecimentos histricos, ou seja, testar at que ponto estes condicionaram o modo de

    representar o negro nesse universo particular das revistas infantis e juvenis. De salientar que a

    caracterizao efectuada tende a sublinhar a coexistncia de duas imagens do negro, as quais

    traduzem o suposto processo civilizador do Homem Branco: a transformao do negro

    selvagem num negro civilizado, isto , assimilado. Mas os negros, mesmo quando civilizados,

    surge(m) quase sempre em posio de subalternidade face ao branco (so frequentemente os

    criados) ou, pelo menos, integrados numa disciplina que o colonizador define [...]

    caracterizando-se antes de mais por uma fidelidade estrita ao seu patro (Cunha, 1994,

    pp.27-28).

    15

  • Rosa Cabecinhas Colonialismo, identidade nacional e representaes do negro

    Ao nvel pictrico os elementos mais salientes da dicotomia selvagem - assimilado4 so:

    o grau de nudez das personagens, oscilando entre a quase nudez e o uso de roupas claramente

    modernas (p.27); e o contexto situacional que as envolve, a selva ameaadora ou o

    contexto urbano, e mesmo quando este no existe o ambiente natural surge docilizado, como

    por exemplo quando o africano nos surge protegido pelas misses (p.28). Mas sobretudo ao

    nvel dos comportamentos que se opera a diferenciao.

    A construo da especificidade identitria do negro acentua-se atravs do uso de

    designaes em termos genricos (preto, selvagem, etc.). Quando so atribudos nomes s

    personagens negras tambm notrio o reforo dessa especificidade, que efectuado ora

    acentuando a marca distintiva da cor (Juca Alcatro, Neca Choa, Z Escarumba, Z Preto, Z

    Pretinho, Farrusco, etc.5) ora invocando, ironicamente, o seu contrrio atravs do uso da

    antonmia (Bola de Neve, Arminho, etc.) (p.30). Algumas expresses remetem ainda para a

    esfera da animalidade (guerreiros selvagens, maus como escorpies, berro selvagem,

    filho das matas, etc.) sendo estas acompanhadas de imagens onde negros e macacos

    praticamente se no distinguem (Cunha, 1994, p.30).

    A propsito da participao do negro na natureza indmita, de salientar uma

    interessante ambiguidade:

    se por um lado o negro surge enquadrado harmoniosamente com a natureza que o envolve [...] por

    outro frequente apontar-se a sua inpcia para enfrentar as ameaas prprias da selva. Basta notar

    como a aco dos brancos causa espanto e admirao [...], sendo mesmo solicitada quando a ameaa se

    torna incomportvel pelos indgenas [...]. O negro [...] aparece sempre, mesmo quando no seu prprio

    contexto, numa posio de inferioridade face ao branco, que munido de instrumentos e saberes que a

    "civilizao" lhe forneceu, se mostra capaz de dominar com eficcia a natureza inspita que o negro

    teme apesar de nela se inserir (Cunha, 1994, p. 30-31).

    Ou ainda:

    Impondo-se e dominando um meio natural que no o seu, o branco define as regras de acesso ao

    que se apresenta como o saber justo e verdadeiro, aquele atravs do qual os comportamentos sociais se

    devem orientar. A educao mostra-se o instrumento eficaz e necessrio, seno para o negro perder a

    sua noo de inferioridade, pelo menos para aceder ao limiar da civilizao. Transformados pela

    4 De referir ainda uma terceira categoria, transversal dicotomia selvagem/civilizado, a

    representao caricatural ou grotesca em que o negro surge como veculo de comicidade (Cunha, 1994, p.27).

    5 Esclarece-se que Escarumba significa pessoa de raa negra e Choa sinnimo de carvo.

    16

  • Rosa Cabecinhas Colonialismo, identidade nacional e representaes do negro

    educao surgem ento os pretos de alma branca [...], criaturas que, moldadas pelas misses, eram

    capazes de cometer aces inesperadas atendendo sua raa por exemplo expressando bondade

    espontnea e desinteressada (Cunha, 1994, p.31).

    Porm, no tanto ao nvel tcnico que a educao expressa a sua mxima importncia,

    mas na transformao espiritual: pela sujeio da alma ao rigor de uma disciplina

    civilizadora, que o negro se liberta, quer dizer, que a alma se lhe branqueia (p.31). A

    educao apresenta-se portanto como o meio indispensvel para aspirar a um novo nvel de

    civilizao. A imagem positiva do negro surge frequentemente associada a uma boa

    prestao escolar (por exemplo: Os quatro pretinhos espertos so muito aplicados na escola,

    sempre sossegados e atentos s lies do professor), isto , est dependente da participao do

    africano nos critrios de civilizao definidos pelo colonizador (Cunha, 1994, p.31-32).

    Sintetizando, ao negro selvagem so associados traos negativos: agressividade

    (associada aco guerreira); perigosidade (associada s prticas de feitiaria); voracidade

    (associada ao canibalismo); e ainda inabilidade e ignorncia. Em contrapartida, ao negro

    assimilado so associados traos positivos: prestabilidade, submisso, heroicidade,

    esperteza/inteligncia e habilidade. De salientar que a inteligncia/esperteza s se expressa de

    forma clara, ainda que restrita, pela participao no universo do Homem Branco (Cunha, 1994,

    p.33-34). Assim, a construo de uma imagem positiva do negro um mero reflexo da

    interiorizao de um modo de ser que definido num universo simblico comum, mas de

    recursos polarizados para os diferentes actores (Cabecinhas, 2002, p.89).

    De salientar ainda que a imagem do negro veiculada na banda desenhada infantil variou

    em funo do perodo histrico. At ao incio dos anos quarenta predomina a imagem de:

    um negro embrutecido, enredado em prticas perigosa e quase a-humanas, como a agressividade

    gratuita ou o canibalismo. Quando no a agressividade a imperar os negros tendem a aparecer como

    uma espcie de crianas grandes, facilmente controladas pela inteligncia do branco civilizado [...],

    mas ainda nessa situao fica a ideia de uma inferioridade intransponvel, mas que parece residir mais

    numa espcie de natureza racial, que o acesso educao apenas belisca sem jamais remover

    (Cunha, 1994, p.80).

    Antes da II Guerra Mundial predomina a imagem do negro selvagem, enquanto que

    depois desta a do negro assimilado que predomina, acompanhando assim a mudana que se

    17

  • Rosa Cabecinhas Colonialismo, identidade nacional e representaes do negro

    efectuou a nvel internacional na perspectivao das diferenas raciais (de referir que

    algumas das revistas correspondiam a tradues de edies estrangeiras). No ps-guerra

    predomina uma imagem positiva do negro, ainda que esta dependa da aceitao dos valores da

    civilizao, expressando-se esta aceitao na submisso e lealdade face ao branco.

    Aparentemente a distncia entre o branco e o negro deixa de ser intransponvel, mas fica

    condicionada submisso do segundo ao universo do primeiro. Pode assim dizer-se que em

    nenhum destes momentos histricos se coloca em causa uma representao do negro marcada

    pela dominao (Cunha, 1994, p.80).

    De notar que a dicotomia entre os negros selvagens e os assimilados tem o seu

    paralelismo com uma alterao do estatuto do indgena, introduzida legalmente pelo Decreto

    de Lei n. 39 666 de 20 de Maio de 1954 que distinguia entre os indgenas e os assimilados:

    Pode perder a condio de indgena e adquirir a cidadania o indivduo [de raa negra] que comprovar satisfazer as cinco condies: 1) Ter mais de 18 anos; 2) Falar correctamente a lngua portuguesa; 3)

    Exercer uma profisso, uma arte ou um ofcio que lhe d um rendimento necessrio sua subsistncia e

    de seus familiares ou das pessoas que esto a ser cargo; 4) Ter bom comportamento e ter adquirido a

    instruo e os hbitos pressupostos para a aplicao integral do direito pblico e privado dos cidados

    portugueses; 5) No ter sido considerado refractrio no servio militar ou desertor (Art. 56; citado por

    Barradas, 1991, p.74).

    Nesse sentido, o cumprimento das exigncias feitas a quem quisesse adquirir o estatuto

    de assimilado e dessa forma a cidadania, obrigaria o candidato a participar do universo

    cultural do colonizador, dir-se-ia mesmo que a integrar-se nele (Cunha, 1994, p.19) Se se

    considerar a figura do assimilado como um elemento de aferio do sucesso da misso

    civilizador do colonialismo portugus, fica clara a sua ineficcia, visto que a percentagem de

    assimilados era bastante reduzida.

    Por exemplo, em Angola, segundo os censos de 1940 e 1950 a percentagem de negros

    assimilados era apenas de 0,7% (24 221 em 1940 e 30 089 em 1950). Esta percentagem era

    bastante superior para os mestios: 82,9% (23 244) em 1940 e 88,8% (26 335) em 19506

    (Bender, 1976/1980, p.216-218). Assim, a aquisio do estatuto era em grande medida uma

    questo racial, j que a percentagem de assimilados entre os mestios era muito mais elevada

    6 Segundo os censos de 1940 a populao total de Angola era constituda por 3 665 829 negros, 28

    035 mestios e 44 083 brancos e nos censos de 1950 por 4 036 689 negros, 29 648 mestios, e 78 826 brancos (Bender, 1976/1980, p.216).

    18

  • Rosa Cabecinhas Colonialismo, identidade nacional e representaes do negro

    do que entre os negros. A distino entre indgenas e assimilados e a sua estreita ligao

    com a questo racial poder estar na origem do desenvolvimento em Angola de uma

    hierarquizao da cor da pele (preto retinto/negro, preto fulo/mulato/cabrito, etc.) com

    grande impacto na estruturao social da sociedade e cuja influncia ainda visvel nos dias

    de hoje (Delgado, 1997, p.19).

    Luso-tropicalismo, propaganda colonial e multiracialidade da nao portuguesa

    No ps-guerra verifica-se um estreitamento dos laos entre a economia de Portugal e a

    das colnias africanas e a emigrao da populao da metrpole para os territrios de frica

    ganha expresso significativa. Para tal ter contribudo o desenvolvimento econmico, a

    melhoria das condies sanitrias nas colnias e a insistente propaganda da ideia imperial

    levada a cabo pelos aparelhos ideolgicos do Estado Novo (Alexandre, 1999, p.141).

    Por outro lado, a progressiva autonomia e independncia de pases anteriormente

    colonizados por potncias europeias tornava o sistema colonial portugus cada vez mais

    anacrnico e adensavam-se as ameaas externas sobre ele. Face a este novo contexto, o Estado

    Novo procede a uma inflexo da sua poltica: em 1951 foram abolidas as designaes de

    imprio colonial e de colnias, at ento utilizadas nos textos oficiais, sendo substitudas

    pelas de ultramar e provncias ultramarinas. Estas provncias formariam com a metrpole

    um Portugal uno do Minho a Timor (Correia, 1999, p.139). No entanto, manteve-se no

    ultramar o estatuto dos indgenas que retirava grande maioria dos africanos o direito de

    cidadania. Este s seria abolido em 1961, aquando de um conjunto de reformas efectuadas por

    Adriano Moreira, entre as quais se destaca a abolio do trabalho obrigatrio (Alexandre,

    1999, p.143).

    Segundo Alexandre (1999), esta mudana jurdica e institucional corresponde adopo

    do luso-tropicalismo como doutrina oficial pelo regime, teoria formulada pelo socilogo

    brasileiro Gilberto Freyre (1933/1992). Analisando a formao da sociedade brasileira, Freyre

    realava os efeitos benficos do processo de miscigenao biolgica e cultural que ocorrera na

    Brasil, valorizando o papel dos portugueses nesse processo dada a sua predisposio para lidar

    com os povos dos trpicos:

    "A singular predisposio do portugus para a colonizao hbrida e escravocrata dos trpicos, explica-

    a em grande parte o seu passado tnico, ou antes, cultural, de povo indefinido entre a Europa e a frica.

    Nem intransigentemente de uma nem de outra, mas das duas (Freyre, 1933/1992, p.80).

    19

  • Rosa Cabecinhas Colonialismo, identidade nacional e representaes do negro

    O passado histrico dos portugueses explicaria tambm o carcter religioso e no

    etnocntrico da colonizao portuguesa, transmissora de valores universais e no

    especificamente nacionais (Alexandre, 1999, p.142). O resultado final da presena de

    Portugal nos trpicos seria a criao de uma civilizao luso-tropical fundada na fuso de

    elementos dos vrios povos.

    Apesar de ser conhecida em Portugal j nos anos 30, a teoria do luso-tropicalismo foi, na

    altura, recebida com reservas pelo regime devido, por um lado, sua apologia da mestiagem7

    e, por outro, porque a noo de fuso dos contributos culturais das diversas raas no se

    coadunava com o quadro conceptual, ao tempo dominante em Portugal, que se fundava na

    oposio entre povos civilizados e povos primitivos ou selvagens (Alexandre, 1999,

    p.142). Como este autor salienta, num contexto poltico e social europeu onde o princpio da

    assimilao fora substitudo por uma cada vez maior autonomia e mesmo independncia, era

    fundamental encontrar justificao para a conservao de um distinto relacionamento de uma

    metrpole com os espaos africanos que tutelava. O luso-tropicalismo apresentou-se ento

    como o instrumento adequado afirmao da especificidade que o colonialismo portugus

    necessitava. De recordar que ainda nos anos quarenta o discurso dos responsveis polticos era

    marcado pelo desejo de contrariar a miscigenao. Por exemplo, Marcelo Caetano afirmava em

    1945:

    "Num s ponto devemos ser rigorosos quanto separao racial: no respeitante aos cruzamentos

    familiares ou ocasionais entre pretos e brancos, fonte de perturbaes graves na vida social de europeus

    e indgenas e origem do grave problema de mestiamento, grave, digo, seno sob o aspecto biolgico,

    to controvertido [...], ao menos sob o aspecto sociolgico" (1945; citado por Barradas, 1991, p.73).

    A partir dos anos 50 assiste-se a uma notria transformao na nfase com que a relao

    do colonizado-colonizador pensada e enfatiza-se a multiracialidade:

    7 Quanto miscibilidade, nenhum povo colonizador, dos modernos, excedeu ou sequer igualou

    nesse ponto os portugueses. Foi misturando-se gostosamente com mulheres de cor logo ao primeiro contato e multiplicando-se em filhos mestios que uns milhares apenas de machos atrevidos conseguiram firmar-se na posse de terras vastssimas e competir com povos grandes e numerosos na extenso de domnio colonial e na eficcia da ao colonizadora. A miscibilidade, mais do que a mobilidade, foi o processo pelo qual os portugueses compensaram-se da deficincia em massa ou volume humano para a colonizao em larga escala e sobre reas extensssimas (Freyre, 1933/1992, p. 84). Mais frente acrescenta: a mulher mulata tem sido a preferida dos portugueses para o amor, pelo menos para o amor fsico. [...] Com relao ao Brasil, que o diga o ditado: Branca para casar, mulata para f..., negra para trabalhar (p.85).

    20

  • Rosa Cabecinhas Colonialismo, identidade nacional e representaes do negro

    "A maneira de ser portuguesa, os princpios morais que presidiram aos descobrimentos e colonizao

    fizeram que em todo o territrio nacional seja desconhecida qualquer forma de discriminao e se

    hajam constitudo sociedades pluriraciais, impregnadas do esprito de convivncia amigvel, e s por

    isso pacficas" (Salazar, 1961, p.18).

    A demonstrao da especificidade portuguesa constitua um dos pilares fundamentais

    para sustentar a conservao de um modelo de colonizao cada vez mais desajustado das

    prticas seguidas por outros pases europeus. Mal acabou a II Guerra Mundial o governo

    portugus procurou apagar da legislao os indcios mais evidentes de discriminao racial

    (Alexandre, 1999). Porm, a representao do negro mudou mais superfcie que em

    profundidade, tendo permanecido o paternalismo, que devia continuar a ser exercido sobre os

    povos das provncias ultramarinas (Cunha, 1994, p.22).

    A ecloso das guerras coloniais nos territrios africanos (Angola, 1961; Guin-Bissau,

    1963; Moambique, 1964; ver Correia, 1999), ter conduzido acentuao do recurso ao mito

    do luso-tropicalismo pelo regime e introduo de reformas importantes que, no entanto, no

    tiveram grande expresso no terreno (Alexandre, 1999, p.143).

    Colonianismo, luso-tropicalismo e as desigualdades raciais na perspectiva dos africanos

    Vamos agora referir brevemente alguns depoimentos de Mrio Pinto de Andrade e

    Agostinho Neto, antes do eclodir das guerras coloniais, sobre a forma como estes dirigentes

    nacionalistas das ex-colnias portuguesas percepcionaram o colonialismo portugus. Nos

    escassos documentos a que tivemos acesso evidente uma crtica ao terreno movedio da

    luso-tropicalogia (Pinto de Andrade, 1958/2000, p.43) e uma constante referncia aos

    malefcios do processo de assimilao a que foram sujeitos os povos africanos (Cf. Pinto de

    Andrade, 1958/2000, 1961/2000; Neto, 1959/2000). Por exemplo, Pinto de Andrade refere:

    No caso portugus a assimilao traduziu-se sempre praticamente por uma desestruturao dos

    quadros negro-africanos e a criao de uma elite, quantitativamente reduzida. Ela apresenta-se como a

    receita mgica que conduziria o indgena depois das trevas da ignorncia at luz do saber. Uma forma

    de passagem do no-ser ao ser cultural, para empregar a linguagem hegeliana (1961/2000, p.58).

    Mais adiante, salientando a perda de autenticidade dos povos africanos, refere:

    21

  • Rosa Cabecinhas Colonialismo, identidade nacional e representaes do negro

    O peso do assimilacionismo sofrido por todos pesava sobre os ombros. Com efeito, no somente nos

    dvamos conta de todo o artifcio da nossa formao intelectual mas igualmente da dificuldade para

    nos encontrarmos a repensar pelos nossos prprios meios os valores negro-africanos. Era preciso rasgar

    o vu que nos obnubilava, para permanecermos ns mesmos (1961/2000, p. 63).

    Na mesma linha de ideias, Agostinho Neto (1959/2000) critica o facto de as lnguas

    tradicionais no serem faladas nas escolas nem nos meios de comunicao social, apenas

    encontrando guarida em sorridentes e paternais caadores do extico (p. 49), fazendo com

    que a cultura angolana no se possa desenvolver. E acrescenta:

    mais triste que espantoso que uma grande parte de ns, os chamados assimilados, no sabe falar

    ou entender qualquer das nossas lnguas! E isto tanto mais dramtico quanto certo que pais h que

    probem os filhos de falar a lngua dos seus avs. claro, quem conhece o ambiente social em que

    estes fenmenos se produzem e v dia a dia o desenvolvimento impiedoso do processo de

    coisificao no se admirar de tanta falta de coragem. Este desconhecimento das lnguas que impede

    a aproximao do intelectual junto do povo cava um fosso bem profundo entre os grupos chamados

    assimilados e indgenas (1959/2000, p. 51).

    Agostinho Neto salienta que a assimilao um processo complicado e sempre

    doloroso visto que:

    o assimilado um indivduo que se encontra entre dois mundos. Desenraizado, sem laos que o

    unam ao seu povo, sem a sua lngua, sem os meios de realizar a sua vida conforme a sente, no se

    encontra tambm no mundo europeu, cujos costumes adoptou, cuja lngua fala, cujos hbitos pratica,

    sem que todas essas caractersticas culturais sejam de facto sentidas, sem que faam parte do seu eu

    (1959/2000, p.52).

    Mas seria esta perspectiva crtica do luso-tropicalismo e da colonizao portuguesa

    patente nos discursos dos lderes nacionalistas africanos partilhada pelos africanos em geral

    durante este perodo? A resposta a esta questo muito difcil, dada a exiguidade das fontes de

    que dispomos. A ttulo meramente ilustrativo vamos referir algumas cartas dos leitores

    publicadas na Voz Africana8, entre 1962 e 1970, compiladas em livro por Jos Capela

    (1971/1974)9.

    8 Jornal peridico moambicano publicado em lngua portuguesa, dada a proibio de publicar nas lnguas locais, sem autorizao prvia, o que limitava seriamente a participao dos africanos, como ilustra o seguinte testemunho: Fiquei muito satisfeito com o jornal Voz Africana mas tenho me dvida. Porque os nossos leitores no escrevem em lngua africana? Eu vejo as figuras dos africanos mas as palavras escrita em portugus; Quer dizer que a nossa lngua no se podem

    22

  • Rosa Cabecinhas Colonialismo, identidade nacional e representaes do negro

    Como refere Capela, nas cartas os leitores discutem os assuntos e problemas do dia-a-

    dia, sendo frequentes as crticas s injustias sociais e desigualdades raciais. Frequentemente

    os leitores referem que so insultados nos locais de trabalho sendo tratados por pretos como se

    no tivessem nome prprio10. A este propsito um leitor fornece uma reflexo interessante

    sobre a problemtica das designaes raciais e o que elas significam:

    Africano um indivduo nascido na frica, assim como um europeu, um indivduo nascido na

    Europa. [...] Ora neste mundo de Deus e dos homens, h simplesmente quadro raas principais. Deus l sabe porque fez isso; mas deu a cada uma das raas um Vasto Territrio, que chamado pelos homens,

    de Continente. Africano deu a frica, europeu deu a Europa, Asitico deu a sia e Americano deu a

    Amrica. [...] Temos agora um problema, de (preto e branco). Raa africana o que tem a pele escura, cabelos em carapinhados, etc. e europeu o que tem a pele clara, cabelos coridos e compridos, etc.

    Sentimos ser ofena [chamar preto] porque mesmo o nativo africano, no to preto como muitos europeus exageram; assim como um europeu, no to branco como se julga. [...] Para evitar dessabor sentimentos de muitos, e haver agrado a todos, na famlia Portuguesa, era conveniente esquecermos

    estas duas purnncias, de (preto e branco). Acho que ficava muitssimo bem, chamar s africano e

    europeu, conforme a diviso como Deus tinha determinado (in Capela, 1971/1974; pp.105-106).

    Relativamente s desigualdades raciais as maiores queixas prendem-se com os baixos

    salrios, as arbitrariedades e a falta de condies para os negros controlarem os seus destinos

    pessoais, como refere o leitor seguinte:

    Meu querido menino neste mundo no h dinheiro para ns os pretos s para brancos e mulatos. Eu

    estou a trabalhar numa casa sou casado com 4 filhos e tenho mais de 4 classe na mesma casa trabalha

    um saloio sem classe nenhuma e ganha o dobro do meu vencimento com direito casa eu tenho casa

    alugada, preto no mundo portugus no tem valor o que dizes sobre a cidadania que hoje esta para toda

    a gente at as galinhas isto tampa para o preto se s assimilado no ganhas como assimilado mas o

    saloio vem l donde vem ganha o triplicado dum estudante preto e se falares vai preso pela Pide tudo

    pela nao nada contra a nao neste mundo no h nada para o preto. [...] Meu menino neste mundo s

    escrever-se? No era melhor cada leitor escrever a sua lngua? [...] Temos vrias lnguas; chiteve, chimanhica, changana, chinhambane, chissena, echuabo, etc., etc. Se cremos escrever nos jornais como o Dirio de Moambique e Notcia, podemos escrever em lngua portugus, mas no Voz Africana, para nos africanos sempre podemos-nos falar nossas histrias em lngua africana (in Capela, 1971/1974, pp.137-138). 9 Na compilao das cartas foram respeitadas com exactido a ortografia, a sintaxe e a pontuao

    originais. Infelizmente as datas em que foram publicadas as cartas no constam da compilao. 10 Relatando um caso em que um trabalhador foi insultado pelo encarregado por estar a falar com um colega, um leitor refere o seguinte: Disse ele para o trabalhador seu filha da P. Preto de merda macaco co o que estais a falar com aquele co amigo como voc bicho (in Capela, 1971/1974, p.92).

    23

  • Rosa Cabecinhas Colonialismo, identidade nacional e representaes do negro

    h propaganda e ameaas e mortes nos calabouos h prises neste mundo nem deixam entrar os padres

    para poder falar com cristos dizem que no nosso governo no h distino racial isto pura mentira

    no h no beber e nas nossas filhas mas no trabalho no saloio h grande diferena. Todo o preto tem

    que chorar para pai do Cu que ele no tem escolha [...]. Em nome dos padres pretos peo que publique esta carta no vosso jornal pelo amor de Cristo men (annimo in Capela, 1971/1974, p.135).

    Outro leitor, relatando como perdeu o emprego por ter ficado cinco dias doente, denuncia

    a facto de os negros serem tratados como animais, aspecto presente em inmeros

    testemunhos:

    sai por motivo de doente de lombrigas passei 5 dias at melhorar quando fui apresentar ao servio

    tinha encontrado o rapaz a trabalhar no meu lugar ainda eu pedi licena ao patro at fiz contrato com

    ele mas no pensa nada disso s pensa mandar emboras. [...] verdade todos os europeus no confiaram-nos que os Africano tambm sentem qualquer coisa de doi, nada esto pensar de ns

    parecido como animais sobre nosso cor negro por isso que no temos valor com os europeus porque

    eles tm cor branco (in Capela, 1971/1974, p.95).

    No entanto, a maioria das crticas dos leitores recai sobre os mistos, dado o desprezo

    por estes em geral manifestado para com a sua ascendncia negra (Capela, 1971/1974, p.10).

    Por exemplo, um leitor refere o seguinte:

    E quanto ao dio que o sr. se refere que o preto que odeia o misto, por ser filho de branco, pois o

    contrrio, o misto que odeia ao preto, repare bem; por isto: Nos grandes Pases do Mundo, o preto

    sobressai mais que o misto, uma cor pura, genuna, por isso h grande perferncia nela. Sabe-se de

    fonte limpa, que o preto feito por outro preto igual e uma preta, digamos: Casal preto, ao passo que o

    misto, no, ou o pai branco, a me preta, ou preto e a me branca ou mista. O misto no

    reconhecido pelo pai, nunca amigo dos brancos, odeia a me por ser preta, e odeia o pai, por ter-se

    metido com uma preta, de contrrio, teria a cor do pai. (in Capela, 1971/1974, p.104).

    Por seu turno, os mestios e/ou assimilados procuram demarcar-se dos pretos e

    apresentam as razes de tal demarcao:

    eu sou portugus, porque a terra em que nasci portuguesa, e sou assimilado. Conheo algumas

    razes que nos fazem negar da nossa raa. o seguinte: os brancos ou que seja os europeus, procuram

    sempre o esforo de nos civilizarem e mantermos como gente, mas teimosamente ns negamos a ideia.

    Negamos pois, porque no cumprimos as ordens. Quantas e quantas vezes somos considerados como

    animais, pelos nossos maus efeitos. Somos verdadeiramente animais, pois que o servio que

    executamos dos prprios animais. No somos civilizados quanto civilizao e quanto higiene

    24

  • Rosa Cabecinhas Colonialismo, identidade nacional e representaes do negro

    andamos muito porcos. E os outros nem querem trabalhar, confiante somente no roubo, arrancar aos

    que trabalham, etc. Porm, o assimilado que conhece o que civilizao, no lhe convm se manter no

    grupo dos incivilizados. como um que no gosta de se meter no grupo dos roubadores ou dos

    bandidos, caso que no seja um desses. [...] ser assimilado no apenas para ganhar melhor como o amigo diz, no certamente, mas sim para facilitar as coisa. O amigo j sabe que no ter profisso

    sem ser primeiro assimilado? E j sabe que no casa sem ser assimilado? (in Capela, 1971/1974,

    p.145).

    Mas, como denuncia o leitor seguinte, os caminhos da civilizao so muito difceis de

    trilhar para quem se encontra em to precrias condies:

    Eu estou a trabalhar na Beira a ganhar 400$00. Mas tenho famlia, quero pagar imposto [...]. Eu digo que por isso os outros no pagam imposto porque recebem pouco, alm de recebermos pouco

    dinheiro os impostos j foram aumentados j so 290$00 a 400$00 quanto que fica? Renda da casa

    so 120$00 comida gasto 200$00 por ms e quero tambm vesturios chega esse dinheiro? por isso

    os outros ficam nos caminhos a bater um a outro e outros roubam sobre isso pode passar dia inteiro a

    sofrer fome logo pensa ir roubar. E os portugueses esto a nos obrigar a ser civilizados como podemos

    ser civilizados, no temos meio de fazer civilizados (Muchanga, 19 anos, dactilografo in Capela,

    1971/1974, p.114).

    Identidade nacional e representaes do negro: universalidade versus especificidade

    A partir dos materiais analisados e das snteses fornecidas pelos autores que citamos

    torna-se claro que os traos atribudos aos negros remetem para uma forte ligao natureza:

    so crianas grandes, incapazes de dominar os seus impulsos e de tomar conta de si prprios

    e, embora possam manifestar certa esperteza, so privados de inteligncia. A imagem dos

    negros oscila entre a atraco do extico (o batuque, as danas, os corpos sensuais) e a repulsa

    (agressivos, perigosos, feiticeiros, com uma sexualidade descontrolada). Quando assimilados,

    isto , dominados e disciplinados, manifestam alguns traos positivos, mas estes s se

    expressam pela sua submisso ao sistema de valores do Homem Branco, a sua dependncia e

    obedincia. So-lhes destinados papis subordinados, ligados execuo e no concepo de

    algo, uma vez que podem imitar mas so incapazes de criar. Os negros so considerados

    essencialmente como fora de trabalho, mas tambm podem ser fonte de divertimento e

    entretimento para o Homem Branco.

    Sintetizando, estaramos perante seres limitados a um modo de ser especfico, que

    mesmo depois de civilizados, permaneceriam fora da histria universal (Amncio, 1998;

    25

  • Rosa Cabecinhas Colonialismo, identidade nacional e representaes do negro

    Chombart de Lauwe, 1983-1984; Guillaumin, 1972). De salientar ainda que segundo a

    ideologia vigente durante o Estado Novo estaramos perante raas inferiores, por essncia e

    no por acidente histrico sendo parte delas votadas extino, por insusceptveis de

    aperfeioamento (Alexandre, 1999; itlico nosso).

    Bem diferente a representao sobre os portugueses expressa pelos autores que durante

    este perodo se dedicaram a descrever a identidade nacional (e.g., Dias, 1950/1990; Leo,

    1960/1992). Por exemplo, Jorge Dias define a personalidade base do povo portugus da

    seguinte forma:

    "o portugus um misto de sonhador e de homem de aco, ou melhor, um sonhador activo, a que

    no falta certo fundo prtico e realista [...]. O portugus , sobretudo, profundamente humano, sensvel,

    amoroso e bondoso, sem ser fraco. No gosta de fazer sofrer e evita conflitos, mas, ferido no seu

    orgulho, pode ser violento e cruel. [...] fortemente individualista, mas possui um grande fundo de

    solidariedade humana. O portugus no tem muito humor, mas um forte esprito crtico e trocista e uma

    ironia pungente (Dias, 1950/1990: 145-146).

    Assim para Jorge Dias a singularidade do portugus define-se essencialmente pela

    versatilidade de carcter que, como salienta Moutinho, tem como preocupao no deixar

    nada de fora (1980, p.90). Especial importncia dada extraordinria capacidade de

    adaptao dos portugueses, que explica o carcter sui generis da colonizao portuguesa:

    H no Portugus uma enorme capacidade de adaptao a todas as coisas, ideias e seres, sem que isso

    implique perda de carcter. [...] curioso que o Portugus se adapta a outro ambiente cultural to bem

    que parece ter sido assimilado [...]. A capacidade de adaptao, a simpatia humana e o temperamento

    amoroso so a chave da colonizao portuguesa. O portugus assimilou adaptando-se. Nunca sentiu

    repugnncia por outras raas e foi sempre relativamente tolerante com as culturas e religies alheias

    (Dias, 1950/1990, p.156).

    De salientar que para Jorge Dias esta maleabilidade no significa negar ou sequer

    diminuir as singularidades do povo portugus. Na mesma linha de ideias Cunha Leo refere-se

    nao portuguesa, to permevel ao universo como universalizante (Leo, 1960/1992,

    p.149). Para este autor a valorizao do que alheio nao traduz uma plasticidade nica,

    que permite a adaptao sem que o indivduo se dissolva (1960/1992, p.187). Assim, o gosto

    pelo que estranho e extico nada tem de ameaador para a identidade nacional, traduzindo-

    se, pelo contrrio, em realizaes histricas. Para este autor o povo portugus teria propenso

    26

  • Rosa Cabecinhas Colonialismo, identidade nacional e representaes do negro

    para deixar a sua marca no mundo: O nosso povo s rende na justa medida do seu valor, se

    possudo do esprito de misso. Quando pode ultrapassar-se em algo de nobre e universal

    (Leo, 1960/1992, p.138).

    Para Jorge Dias a mentalidade complexa dos portugueses resulta da combinao de

    factores diferentes e, s vezes, opostos (Dias, 1950/1990: 146). Para o autor este

    temperamento paradoxal explica os perodos de grande apogeu e de grande decadncia da

    histria portuguesa (Dias, 1950/1990: 146). De notar ainda que esta sntese de contrrios d

    origem a um quadro excessivamente heterogneo (Dias, 1961, p.121; sublinhado nosso).

    Podemos destacar duas ideias muito recorrentes durante o Estado Novo sobre a

    identidade nacional: por uma lado, a especial capacidade de adaptao dos portugueses e, por

    outro, a complexidade da sua maneira de ser. Se o objectivo dos autores analisados

    apresentar Portugal como entidade singular e inconfundvel (Cunha, 2001, p.58), constata-se

    tambm o gozo da diferena (Loureno, 1990, p.10). Assim, a originalidade dos

    portugueses parece definir-se pelo seu carcter universal e transcultural (Cunha, 2001, p.70).

    A universalidade dos portugueses (cujas caractersticas lhes permitem mltiplas formas

    de realizao e de expresso), ope-se especificidade dos negros (cujas caractersticas lhes

    impe um destino comum e indiferenciado). Este , na nossa opinio, o elemento fundamental

    do sistema simblico que estamos a analisar:

    Enquanto aos portugueses so abertos todos os caminhos e diludas todas as fronteiras, aos outros (os

    negros) destinado um papel especfico num lugar com fronteiras bem delimitadas [...]. Assim a complexidade dos portugueses ope-se simplicidade dos negros, e a heterogeneidade dos primeiros

    homogeneidade dos segundos (Cabecinhas, 2002, p.98).

    A revoluo de 25 de Abril de 1974 provocou mudanas profundas na poltica interna e

    externa portuguesa. O fim da guerra colonial e a descolonizao tornou-se um dos imperativos,

    sendo frequentes as manifestaes de ruas gritando o slogan nem mais um s soldado para as

    colnias (Vieira, 1999, p.171). As negociaes para o reconhecimento da autonomia dos

    diversos territrios comearam de imediato, tendo sido reconhecida a independncia das

    diversas ex-colnias africanas entre 1974 e 1975: Guin-Bissau (10 de Setembro de 1974;

    tinha sido proclamada unilateralmente em 1973, mas no reconhecida por Portugal),

    Moambique (25 de Junho de 1975), Cabo Verde (5 de Setembro de 1975), So Tom e

    27

  • Rosa Cabecinhas Colonialismo, identidade nacional e representaes do negro

    Prncipe (12 Setembro de 1975), e Angola (11 de Novembro de 1975). (ver Correia, 1999 para

    uma reviso detalhada).

    A soberania indiana sobre Goa, Damo e Diu, integrados na Unio Indiana a 17 de

    Dezembro de 1961, foi reconhecida em 15 de Outubro de 1974. O enclave de Macau

    continuou sob administrao portuguesa at 20 de Dezembro de 1999, altura em que foi

    devolvido China. Quanto a Timor-Leste, a 28 de Novembro a Fretilin proclama

    unilateralmente a independncia, mas a 7 de Dezembro a Indonsia anexa o territrio, que

    passa a ser considerado a sua 27 Provncia. Esta anexao nunca ser reconhecida por

    Portugal (que corta relaes diplomticas com a Indosnia) nem pela ONU. Em consonncia

    com os resultados de um referendo promovido pela ONU, Timor-Leste viria a tornar-se um

    Estado Independente a 20 de Maio de 2002.

    Na opinio de Miranda (2001, p. 15) a perda das ex-colnias no feriu a imagem

    nacional e Loureno (1990, p.22) refere que estamos perante uma estranha permanncia no

    seio da mudana porque o imprio permanece no nosso imaginrio. Na mesma linha de

    ideias, Alexandre (1999, pp.143-144) considera que o mito do luso-tropicalismo no se

    dissipou com a queda do Imprio, continuando a circular de forma difusa. Segundo o autor

    esta persistncia deve-se, por um lado, ao peso avassalador dos aparelhos ideolgicos do

    Estado Novo na formao das mentalidades, com consequncias a longo prazo e, por outro,

    ao paralelismo entre o luso-tropicalismo e algumas das ideias de fundo do nacionalismo

    portugus (a capacidade colonizadora, a faculdade de relacionamento harmonioso com os

    povos de outras raas, a misso civilizadora do pas).

    At que ponto a imagem do negro que se construiu durante o perodo colonial continua

    presente nas representaes dos jovens portugueses de hoje, nascidos depois de Abril de 1974?

    At que ponto os traos associados ao povo portugus e aos negros persistem? At que ponto

    as antigas dicotomias continuam a estruturar o pensamento colectivo? At que ponto as

    fronteiras simblicas permanecem? Esse o assunto de um prximo artigo.

    28

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