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degusta ESTADO DE MINAS D O M I N G O , 2 2 D E A B R I L D E 2 0 1 2 EDUARDO AVELAR 2 MUITO prazer RAFAEL MOTTA/TV ALTEROSA Diz a lenda que lá na França galo não passa nem perto de plantação de uva e a coisa que mais assusta o bicho é garrafa de vinho. Pois é, acho que isso não é privilégio dos bípedes franceses. Por aqui, no Leste de Minas, mais precisamente pelas bandas de Caratinga, constatamos que canavial, cachaça e macarrão são inimigos públicos dos galinheiros. Você se lembra do “causo” que escrevi aqui sobre o galo Jerônimo, lá de Piacatuba (distrito de Leopoldina), que estava ensinando a vaca Revista a cantar e a subir no poleiro? E que a Revista se revoltou e subiu no telhado por que o amigo Jerônimo virou ensopado com macarrão, prato tradicional da região? Hoje, vou contar a também verídica história do Timóteo, primo longe de Jerônimo, que teve fim semelhante. Desde pintinho, ele já era diferente: ciscava pra frente e bicava tudo o que se mexia, inclusive a perna da dona Daise, mãe do Marquinho , meu aluno de culinária. Já crescidinho, e mesmo mudando de voz, Timóteo cantava que era uma beleza. Cresceu mostrando suas esporas avantajadas. Não tinha pra mais ninguém e ele se tornou autoridade na região. Sua cantoria e valentia romperam fronteiras, sua fama correu galinheiros, o que o inspirou a se tornar político, a exemplo de seu ilustre e famoso conterrâneo Agnaldo. Foi então que dona Daise, muito afeiçoada ao “artista”, acabou com as suas pretensões de ir para Brasília. Velhaco como ele só, essa ideia de Timóteo era somente para obter a imunidade parlamentar e não ir para a panela, como manda a tradição. O malandro sabia quando era domingo pelo apito do trem e lá pelas 9h subia na jabuticabeira e ficava quietinho, acomodado nas grimpas, até que a família terminasse a macarronada do almoço. Bobo nada, até dia santo (que também era dia de comilança) reconhecia, pelo pipocar de fogos já de madrugada. Nessas ocasiões, nem mesmo dormia no galinheiro, indo logo dividir a galha mais alta com os morcegos. E assim Timóteo protelou a sua sina, mas numa CPI de família foi selado o destino do galo. Marquinho, cozinheiro oficial, foi incumbido de fazer o serviço sujo e executar a sentença, para depois preparar o ensopado com aquele tradicional macarrão de tubo fabricado na cidade. E lá se foi o Marquinho atrás do Timóteo, com uma garrafa de cachaça na mão. Depois de muita luta, os dois, cansados, se assentaram na sombra da jabuticabeira, e… era uma dose pro galo e outra pro Marquinho. No fim do dia, os dois já bicudos, abraçado a Timóteo Marquinho bradava, com a voz arrastada: “Ninguém encosta no meu amigo!” Passaram-se três meses de despedida e cachaça, até que finalmente Timóteo foi pra panela, fazendo o seu último concerto acompanhado pelos macarrões compridos e aplaudido pela família da dona Daise. Como o fato foi recente, e, em respeito ao finado Timóteo, hoje vou dar uma receita diferente, do seu primo chique, o tal de coq au vin lá da França. Em uma bacia, tempere o galo ou o frango com sal, pimenta, alho, cebola, louro etc. e cubra com vinho tinto seco, deixando na geladeira por uma noite. Em uma panela, frite bacon picado e doure os pedaços do galo com um pouquinho de farinha de trigo, pondo o caldo da marinada por cima. Deixe cozinhar até ficar macio e, ao final, acrescente cogumelos frescos e creme de leite. Corrija o tempero, cozinhe um pouco mais, salpique com salsinha picada e bon apetit! A saga do g ga al lo o T Ti im mó ót te eo o Língua de pato INGREDIENTES Língua de pato; 1 cebola; 1 cenoura; 1 salsão; brocólis romanesco, brotos de rúcula, coentro e caldo de carne, galinha ou pato reduzido (o suficiente) e sal, azeite de oliva, ervas variadas e vinagre de vinho tinto a gosto. MODO DE FAZER Deixe as línguas de molho por cerca de uma hora, trocando a água ocasionalmente. Em uma panela com água e mirepoix (cebola, cenoura e salsão picados), ferva as línguas e baixe o fogo, cozinhando-as até que estejam macias. Desosse-as (a língua de pato é atravessada por um osso) e finalize-as em uma frigideira com o caldo. Branqueie o brócolis romanesco, fervendo-o em água com sal por alguns minutos (cuidado para que não perca sua cor nem amoleça demais) e transferindo-o para uma tigela com água e gelo (para interromper o cozimento). Tenha preparado um óleo verde (infusão de azeite e ervas de sua preferência). Para um óleo de salsa e coentro, branqueie as ervas (água fervente com sal durante dois minutos e tigela com água e gelo em seguida), seque-as e triture-as no liquidificador com o azeite. Resfrie a mistura e coe-a através de uma tira de musseline. Para essa receita, emulsione o óleo verde com vinagre de vinho tinto e sal. Disponha seções do brócolis romanesco cortado ao comprido, as línguas de pato douradas e glaçadas pelo caldo reduzido e o molho verde, com brotos de rúcula pontuando o prato. OBSERVAÇÕES As quantidades não estão definidas porque não há uma receita rígida, ela pode ser feita com base no paladar e no bom senso do cozinheiro. Para quem nunca provou, a língua de pato é uma carne muito delicada, com sabor suave da ave e textura agradável. Mariana acredita que precisamos nos arriscar mais à mesa, aproveitando bem os bichos que comemos: “Matar um pato para ficar só com peito e coxas é um desrespeito com o pobre animal, além de ser um desperdício gastronômico. O mesmo vale para vaca, porco, cordeiro...”. PALADAR PRA LÁ DE APURADO Ela não é especialista em nada, mas tem uma formação única em gastronomia MÍRIAN PINHEIRO Mariana Marshall Parra, de 26 anos, sempre gostou de comer e cozinhar. Ain- da na faculdade, viu que queria – e podia – transformar isso em ofício. Trabalhou em um restaurante em Porto Alegre e pre- parou muita comida para eventos na co- zinha minúscula da casa da mãe, chegan- do a cursar um semestre de gastronomia, tudo isso paralelamente à faculdade de di- reito. Passou um semestre sem ir às aulas para poder estagiar à noite no restaurante que costumava ser seu favorito no Sul. Lo- go se deu conta de que, para viver a gastro- nomia, como sonhava, precisaria viajar, ver coisas novas, trabalhar em cozinhas de ponta. Assim que se formou em direito, embarcou rumo a Londres, para tirar o Di- plôme de Cuisine da Le Cordon Bleu. Como ocorre com muitos imigrantes brasileiros no exterior, ela também “ralou” para conquistar um lugar ao sol. Foi cozi- nheira, garçonete, caixa, gerente, mas o fascínio pela alta gastronomia, pela disci- plina, as técnicas, o nível dos ingredientes só aumentava. Percebeu que não conse- guiria trabalhar com cozinha "meia-boca". Ainda que a Cordon Bleu seja bem old school, sem dar espaço algum para im- provisos e criatividade, ela acredita que quando se começa na profissão é funda- mental um regime que se assemelhe mesmo ao Exército, com regras rígidas e hierarquia bem definida. Somente estu- dar, para Marina, não basta. Quem quer ser cozinheiro para um dia chegar a chef deve se acostumar com longas horas de trabalho, pressão, rispidez dos superiores, alto padrão de exigência e um estilo de vi- da pouco saudável. PERIPÉCIAS Em Londres, o primeiro em- prego de verdade foi no Restaurante Sau- terelle, na Royal Exchange, na área central da capital britânica: só homens ao redor, pouco espaço e doses equilibradas de hos- tilidades e gracinhas por parte dos colegas. No entanto, diz, embora exista algum ma- chismo no meio, a verdade é que há um bullying generalizado com os novatos. O truque é não levar muito a sério. No restau- rante, ficava fascinada com os ingredientes e as receitas: “Lembro-me das entregas ma- tutinas de vegetais da L. Booth, uma loja do Borough Market que vende vegetais que parecem cenográficos: cogumelos girolle, morel e trompette de la mort, alcachofras globo, ruibarbo e ervas de todos os tipos. Fazíamos pães, sorvetes, marinávamos lei- tões inteiros ”, conta. “Trabalhei com em- pratamentos modernos, nos quais as for- mas e cores naturais eram os protagonis- tas, sem porções exageradas nem exibicio- nismos de técnica.” Curiosa, saiu de lá para aprender como funcionavam as cozinhas semi-indus- triais, se bem que confesse que o real mo- tivo foi o fato de esse tipo de lugar pagar bem melhor e ter horários mais flexíveis: “O time mais embrutecido e o chef mais carrasco com quem trabalhei”, comenta. Foi para o Viajante, do chef português Nu- no Mendes, a melhor experiência profis- sional que já teve, avalia. O menu era cria- tivo, reunia as várias influências recebidas pelo chef ao longo da carreira. “A brigada era jovem, apaixonada, e o chef executivo, Ghani, era amedrontador, tinha olhos nas costas, exigente ao extremo”, conta. Lá tra- balhou com Hugo, cozinheiro português com quem se casou. O período em Londres fez com que ti- vesse certeza de que queria trabalhar com comida pelo resto da vida, mas não em restaurante. Dois meses depois esta- va no Piemonte, Itália, para cursar a Uni- versità di Scienze Gastronomiche, funda- da pelo movimento Slow Food. Estudou cada aspecto envolvido na produção e apreciação de alimentos icônicos como vinhos, queijos, cervejas, carnes curadas, azeite de oliva e chocolate, além de maté- rias que iam da antropologia alimentar às relações entre cultura pop e comida. Quando decidiu voltar ao Brasil, que- ria se dedicar a um produto de alta qua- lidade, de preferência um que lhe permi- tisse acesso a todos os estágios da produ- ção. Depois de meses de insistência, con- seguiu um estágio na Amma, marca de chocolates baiana bean to bar – a empre- sa controla desde as plantações de cacau até as barras acabadas. No caso, planta- ções orgânicas em meio à Mata Atlânti- ca, na região de Itacaré. Hoje está efeti- vada. Radicada em Salvador, ainda fica nostálgica quando pensa em Parmiggia- no, Nebbiolo, tartufo e, principalmente, pratos contendo miúdos – sangue, rins, timo, fígado, matéria-prima normal- mente rejeitada no Brasil por puro pre- conceito, mas que dá origem a pratos maravilhosos, como o que aprendeu com o chef Enrico Crippa, do Restauran- te Piazza Duomo, em Alba, na Itália, e que compartilha hoje com os leitores do Degusta. A língua de pato, ingrediente principal da receita, pode ser encomen- dada no açougue gourmet La Macelleria (fone-31-3223-6255). Mariana Parra defende a valorização de ingredientes desprezados FOTOS: MARIANA PARRA/ DIVULGAÇÃO

Coluna Muito Prazer

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Coluna Muito Prazer do dia 22 de abril de 2012.

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degustaE S T A D O D E M I N A S ● D O M I N G O , 2 2 D E A B R I L D E 2 0 1 2

EDUARDO AVELAR

2

MUITOprazer

RAFAEL MOTTA/TV ALTEROSA

Diz a lenda que lá na França galo nãopassa nem perto de plantação de uva e acoisa que mais assusta o bicho é garrafade vinho. Pois é, acho que isso não éprivilégio dos bípedes franceses. Poraqui, no Leste de Minas, maisprecisamente pelas bandas deCaratinga, constatamos que canavial,cachaça e macarrão são inimigospúblicos dos galinheiros.

Você se lembra do “causo” queescrevi aqui sobre o galo Jerônimo, lá dePiacatuba (distrito de Leopoldina), queestava ensinando a vaca Revista a cantare a subir no poleiro? E que a Revista serevoltou e subiu no telhado por que oamigo Jerônimo virou ensopado commacarrão, prato tradicional da região?

Hoje, vou contar a também verídicahistória do Timóteo, primo longe deJerônimo, que teve fim semelhante.Desde pintinho, ele já era diferente:ciscava pra frente e bicava tudo o que semexia, inclusive a perna da dona Daise,mãe do Marquinho , meu aluno deculinária. Já crescidinho, e mesmomudando de voz, Timóteo cantava queera uma beleza. Cresceu mostrandosuas esporas avantajadas. Não tinha pramais ninguém e ele se tornouautoridade na região. Sua cantoria evalentia romperam fronteiras, sua famacorreu galinheiros, o que o inspirou a setornar político, a exemplo de seu ilustree famoso conterrâneo Agnaldo. Foientão que dona Daise, muito afeiçoada

ao “artista”, acabou com as suaspretensões de ir para Brasília.

Velhaco como ele só, essa ideia deTimóteo era somente para obter aimunidade parlamentar e não ir para apanela, como manda a tradição. Omalandro sabia quando era domingopelo apito do trem e lá pelas 9h subia najabuticabeira e ficava quietinho,acomodado nas grimpas, até que afamília terminasse a macarronada doalmoço. Bobo nada, até dia santo (quetambém era dia de comilança)reconhecia, pelo pipocar de fogos já demadrugada. Nessas ocasiões, nemmesmo dormia no galinheiro, indologo dividir a galha mais altacom os morcegos.

E assim Timóteo protelou a sua sina,mas numa CPI de família foi selado odestino do galo. Marquinho, cozinheirooficial, foi incumbido de fazer o serviçosujo e executar a sentença, para depoispreparar o ensopado com aqueletradicional macarrão de tubo fabricadona cidade. E lá se foi o Marquinho atrásdo Timóteo, com uma garrafa decachaça na mão. Depois de muita luta,os dois, cansados, se assentaram na

sombra da jabuticabeira, e… era umadose pro galo e outra pro Marquinho.No fim do dia, os dois já bicudos,abraçado a Timóteo Marquinhobradava, com a voz arrastada:“Ninguém encosta no meu amigo!”

Passaram-se três meses de despedidae cachaça, até que finalmente Timóteofoi pra panela, fazendo o seu últimoconcerto acompanhado pelosmacarrões compridos e aplaudido pelafamília da dona Daise.

Como o fato foi recente, e, emrespeito ao finado Timóteo, hoje voudar uma receita diferente, do seu primochique, o tal de coq au vin lá da França.Em uma bacia, tempere o galo ou ofrango com sal, pimenta, alho, cebola,louro etc. e cubra com vinho tinto seco,deixando na geladeira por uma noite.Em uma panela, frite bacon picado edoure os pedaços do galo com umpouquinho de farinha de trigo, pondo ocaldo da marinada por cima. Deixecozinhar até ficar macio e, ao final,acrescente cogumelos frescos e cremede leite. Corrija o tempero, cozinhe umpouco mais, salpique com salsinhapicada e bon apetit!

A saga doggaalloo TTiimmóótteeoo

LLíínngguuaa ddee ppaattoo

INGREDIENTES

Língua de pato; 1 cebola; 1 cenoura; 1 salsão; brocólisromanesco, brotos de rúcula, coentro e caldo de carne,galinha ou pato reduzido (o suficiente) e sal, azeite deoliva, ervas variadas e vinagre de vinho tinto a gosto.

MODO DE FAZER

Deixe as línguas de molho por cerca de uma hora,trocando a água ocasionalmente. Em uma panela comágua e mirepoix (cebola, cenoura e salsão picados),ferva as línguas e baixe o fogo, cozinhando-as até queestejam macias. Desosse-as (a língua de pato éatravessada por um osso) e finalize-as em umafrigideira com o caldo. Branqueie o brócolis romanesco,fervendo-o em água com sal por alguns minutos(cuidado para que não perca sua cor nem amoleçademais) e transferindo-o para uma tigela com água egelo (para interromper o cozimento). Tenha preparadoum óleo verde (infusão de azeite e ervas de suapreferência). Para um óleo de salsa e coentro, branqueieas ervas (água fervente com sal durante dois minutos etigela com água e gelo em seguida), seque-as etriture-as no liquidificador com o azeite. Resfrie amistura e coe-a através de uma tira de musseline. Paraessa receita, emulsione o óleo verde com vinagre devinho tinto e sal. Disponha seções do brócolisromanesco cortado ao comprido, as línguas de patodouradas e glaçadas pelo caldo reduzido e o molhoverde, com brotos de rúcula pontuando o prato.

OBSERVAÇÕES

As quantidades não estão definidas porque não há umareceita rígida, ela pode ser feita com base no paladar eno bom senso do cozinheiro. Para quem nunca provou,a língua de pato é uma carne muito delicada, com saborsuave da ave e textura agradável. Mariana acredita queprecisamos nos arriscar mais à mesa, aproveitando bemos bichos que comemos: “Matar um pato para ficar sócom peito e coxas é um desrespeito com o pobreanimal, além de ser um desperdício gastronômico.O mesmo vale para vaca, porco, cordeiro...”.

PPAALLAADDAARR

PRA

LÁ DE

AAPPUURRAADDOO

Ela não é especialista

em nada, mas tem uma

formação única em gastronomia

MÍRIAN PINHEIRO

Mariana Marshall Parra, de 26 anos,sempre gostou de comer e cozinhar. Ain-da na faculdade, viu que queria – e podia– transformar isso em ofício. Trabalhouem um restaurante em Porto Alegre e pre-parou muita comida para eventos na co-zinha minúscula da casa da mãe, chegan-do a cursar um semestre de gastronomia,tudo isso paralelamente à faculdade de di-reito. Passou um semestre sem ir às aulaspara poder estagiar à noite no restauranteque costumava ser seu favorito no Sul. Lo-go se deu conta de que, para viver a gastro-nomia, como sonhava, precisaria viajar,ver coisas novas, trabalhar em cozinhas deponta. Assim que se formou em direito,embarcou rumo a Londres, para tirar o Di-plôme de Cuisine da Le Cordon Bleu.

Como ocorre com muitos imigrantesbrasileiros no exterior, ela também “ralou”para conquistar um lugar ao sol. Foi cozi-nheira, garçonete, caixa, gerente, mas ofascínio pela alta gastronomia, pela disci-plina, as técnicas, o nível dos ingredientessó aumentava. Percebeu que não conse-guiria trabalhar com cozinha "meia-boca".Ainda que a Cordon Bleu seja bem oldschool, sem dar espaço algum para im-provisos e criatividade, ela acredita quequando se começa na profissão é funda-mental um regime que se assemelhemesmo ao Exército, com regras rígidas ehierarquia bem definida. Somente estu-dar, para Marina, não basta. Quem querser cozinheiro para um dia chegar a chefdeve se acostumar com longas horas detrabalho, pressão, rispidez dos superiores,alto padrão de exigência e um estilo de vi-da pouco saudável.

PERIPÉCIAS Em Londres, o primeiro em-prego de verdade foi no Restaurante Sau-terelle, na Royal Exchange, na área centralda capital britânica: só homens ao redor,pouco espaço e doses equilibradas de hos-tilidades e gracinhas por parte dos colegas.No entanto, diz, embora exista algum ma-chismo no meio, a verdade é que há um

bullying generalizado com os novatos. Otruque é não levar muito a sério. No restau-rante, ficava fascinada com os ingredientese as receitas: “Lembro-me das entregas ma-tutinas de vegetais da L. Booth, uma loja doBorough Market que vende vegetais queparecem cenográficos: cogumelos girolle,morel e trompette de la mort, alcachofrasglobo, ruibarbo e ervas de todos os tipos.Fazíamos pães, sorvetes, marinávamos lei-tões inteiros ”, conta. “Trabalhei com em-pratamentos modernos, nos quais as for-mas e cores naturais eram os protagonis-tas, sem porções exageradas nem exibicio-nismos de técnica.”

Curiosa, saiu de lá para aprender comofuncionavam as cozinhas semi-indus-triais, se bem que confesse que o real mo-tivo foi o fato de esse tipo de lugar pagarbem melhor e ter horários mais flexíveis:“O time mais embrutecido e o chef mais

carrasco com quem trabalhei”, comenta.Foi para o Viajante, do chef português Nu-no Mendes, a melhor experiência profis-sional que já teve, avalia. O menu era cria-tivo, reunia as várias influências recebidaspelo chef ao longo da carreira. “A brigadaera jovem, apaixonada, e o chef executivo,Ghani, era amedrontador, tinha olhos nascostas, exigente ao extremo”, conta. Lá tra-balhou com Hugo, cozinheiro portuguêscom quem se casou.

O período em Londres fez com que ti-vesse certeza de que queria trabalharcom comida pelo resto da vida, mas nãoem restaurante. Dois meses depois esta-va no Piemonte, Itália, para cursar a Uni-versità di Scienze Gastronomiche, funda-da pelo movimento Slow Food. Estudoucada aspecto envolvido na produção eapreciação de alimentos icônicos comovinhos, queijos, cervejas, carnes curadas,azeite de oliva e chocolate, além de maté-rias que iam da antropologia alimentar àsrelações entre cultura pop e comida.

Quando decidiu voltar ao Brasil, que-ria se dedicar a um produto de alta qua-lidade, de preferência um que lhe permi-tisse acesso a todos os estágios da produ-ção. Depois de meses de insistência, con-seguiu um estágio na Amma, marca dechocolates baiana bean to bar – a empre-sa controla desde as plantações de cacauaté as barras acabadas. No caso, planta-ções orgânicas em meio à Mata Atlânti-ca, na região de Itacaré. Hoje está efeti-vada. Radicada em Salvador, ainda ficanostálgica quando pensa em Parmiggia-no, Nebbiolo, tartufo e, principalmente,pratos contendo miúdos – sangue, rins,timo, fígado, matéria-prima normal-mente rejeitada no Brasil por puro pre-conceito, mas que dá origem a pratosmaravilhosos, como o que aprendeucom o chef Enrico Crippa, do Restauran-te Piazza Duomo, em Alba, na Itália, eque compartilha hoje com os leitores doDegusta. A língua de pato, ingredienteprincipal da receita, pode ser encomen-dada no açougue gourmet La Macelleria(fone-31-3223-6255).

Mariana Parra defende a valorizaçãode ingredientes desprezados

FOTOS: MARIANA PARRA/ DIVULGAÇÃO