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101 Comunicação e Sociedade, vol. 16, 2009, pp. 101-122 Com que é que se parece uma argumentação? Representações sociais do argumentar Rui Grácio 1 * Resumo: O problema da avaliação das argumentações é um dos pontos que maiores dificuldades apresenta na teorização deste campo. Independentemente da tónica que os teóricos possam colocar na dimensão descritiva ou na dimensão normativa das suas investigações, o facto é que a avaliação é uma das molas da dinâmica interactiva e, simul- taneamente, um dos corolários da argumentação como arte prática, ou seja, enquanto indissociável de tomadas de posição relativamente àquilo que nenhum conhecimento ou outra pessoa pode, verdadeiramente, decidir por nós: a construção e adopção de perspec- tivas. Considerando que nenhuma argumentação se esgota na avaliação de argumentos micro e abstractamente considerados, mas remete também para a própria representação ou imagem social do que seja «uma argumentação» – atestado, por exemplo, em frases como «se não me quer ouvir não vale a pena estarmos para aqui a argumentar» ou «assim não vale a pena; isto é um diálogo de surdos» –, procurou-se neste artigo abordar a pergunta «com que é que se parece uma argumentação?» de modo a destacarmos a importância e o peso que as representações da argumentação têm sobre o próprio acto social de argumentar e sugerir vias de enquadramento para uma reflexão sobre as com- petências argumentativas e para a ideia de uma literacia retórico-argumentativa. Palavras-chave: argumentar, argumentação, representações, unilateralidade, multilate- ralidade, competitividade, cooperatividade, interdependência, situação retórica. 1. Dialógico e dialogal O termo «argumentação» é uma daquelas palavras que, no uso corrente da linguagem, é aplicado a um vasto campo de fenómenos comunicativos. Se numa primeira e mais espontânea abordagem a ideia de argumentação, abstractamente considerada, remete 1 * Doutorando em Ciências da Comunicação pela Universidade do Minho. [email protected]

Com o que se parece uma argumentação

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    Comunicao e Sociedade, vol. 16, 2009, pp. 101-122

    Com que que se parece uma argumentao?Representaes sociais do argumentarRui Grcio1*

    Resumo: O problema da avaliao das argumentaes um dos pontos que maiores dificuldades apresenta na teorizao deste campo. Independentemente da tnica que os tericos possam colocar na dimenso descritiva ou na dimenso normativa das suas investigaes, o facto que a avaliao uma das molas da dinmica interactiva e, simul-taneamente, um dos corolrios da argumentao como arte prtica, ou seja, enquanto indissocivel de tomadas de posio relativamente quilo que nenhum conhecimento ou outra pessoa pode, verdadeiramente, decidir por ns: a construo e adopo de perspec-tivas. Considerando que nenhuma argumentao se esgota na avaliao de argumentos micro e abstractamente considerados, mas remete tambm para a prpria representao ou imagem social do que seja uma argumentao atestado, por exemplo, em frases como se no me quer ouvir no vale a pena estarmos para aqui a argumentar ou assim no vale a pena; isto um dilogo de surdos , procurou-se neste artigo abordar a pergunta com que que se parece uma argumentao? de modo a destacarmos a importncia e o peso que as representaes da argumentao tm sobre o prprio acto social de argumentar e sugerir vias de enquadramento para uma reflexo sobre as com-petncias argumentativas e para a ideia de uma literacia retrico-argumentativa.

    Palavras-chave: argumentar, argumentao, representaes, unilateralidade, multilate-ralidade, competitividade, cooperatividade, interdependncia, situao retrica.

    1. Dialgico e dialogalO termo argumentao uma daquelas palavras que, no uso corrente da linguagem, aplicado a um vasto campo de fenmenos comunicativos. Se numa primeira e mais espontnea abordagem a ideia de argumentao, abstractamente considerada, remete

    1 * Doutorando em Cincias da Comunicao pela Universidade do Minho. [email protected]

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    para uma interaco de dois ou mais interlocutores que entre si debatem, procurando justificar, negociar, contestar e polemizar2 e fazem-no, por conseguinte, atravs da aco multilateral do discurso , o facto que a classificao argumentao tambm usualmente atribuda ao discurso unilateral do orador que se dirige a um auditrio que procura persuadir. assim que, na sua concepo retrica, Perelman define a argumen-tao como o conjunto de tcnicas discursivas que permitem provocar ou aumentar a adeso dos espritos s teses que lhe so propostas (Perelman e Olbrechts-Tyteca, 1988: 5) e, no seu seguimento, Ruth Amossy, reclamando que o lugar da argumentao o discurso, prope circunscrev-la ao estudo dos meios verbais que uma instncia de locuo pe a funcionar sobre os seus auditores, tentando faz-los aderir a uma tese, modificar ou reforar as representaes e as opinies que lhes so atribudas ou, simples-mente, suscitar a sua reflexo sobre um dado problema (2006: 37).

    No entanto, como observou com pertinncia Kerbrat-Orecchioni, a partir de um ponto de vista da pragmtica interaccionista, a retrica adopta uma perspectiva dia-lgica mas monologal, ao passo que a da pragmtica interaccionista dialogal e dial-gica (2002: 191. Subl. meu). E a investigadora explica: reduzindo a noo de interac-o ideia trivial de que falamos sempre para algum, reduzimos o seu poder terico e descritivo; e mascaramos diferenas fundamentais ao assimilarmos destinatrio real e virtual, troca explcita e implcita, discurso dialogal (produzido por vrios interlocuto-res em carne e osso) e discurso dialgico (levado a cabo por um nico locutor, mas que convoca no seu discurso vrias vozes) (2005: 16. Subl. meu).

    Tomando em conta esta distino e considerando que a interaco comunicativa interpessoal a que mais se aproxima da argumentao como arte prtica no nos limitando ao tradicional enquadramento da produo de um discurso influente pro-ferido por um orador para um auditrio, mas encarando a argumentao como uma interaco circunstanciada que ocorre de argumentador para argumentador , procu-raremos descentrar a abordagem da argumentao do estudo de tcnicas de persuaso, dos esquemas argumentativos e da questo da racionalidade que geralmente lhe est associada e procuraremos encontrar uma base descritiva tendo em conta dados emp-ricos acerca da forma como os actores sociais representam o argumentar e como essas representaes influenciam as suas prprias prticas argumentativas, deixando assim em aberto um caminho possvel para se pensar o que sejam as competncias argumenta-tivas e sobre o que fazer para as promover de um ponto de vista didctico.

    2. Unilateralidade, multilateralidade e discursos circunstanciadosAinda que no recorrendo distino entre o dialgico e o dialogal nem especificidade de cada um deles, procurando no reduzir o dialgico ao persuasivo, Jeanine Czubaroff sugere que, numa situao retrica, a questo essencial no a de saber se pretende-mos influenciar ou persuadir algum, mas se procedemos monolgica ou dialogica-

    2 assim que, indo ao encontro duma acepo alargada, M. Gilbert define a argumentao como qualquer desacordo da discusso mais polida querela mais acesa (Gilbert, 1997: 30).

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    mente (2007: 15). Com efeito, para esta autora, tal como para Makau e Marty (2001), a dimenso dialgica que implica no apenas competncias ao nvel da produo do discurso mas, tambm, competncias de leitura e de escuta atravs das quais, no decurso dos turnos de palavra, os participantes aferem a compreenso e manifestam interesse e respeito pela posio do outro que permite codificar a primazia da dimenso tica na argumentao. No se trata apenas dizer, como o faz a chamada escola holandesa ao enunciar a primeira regra do cdigo de conduta de uma discusso razovel, que as partes no devem impedir uma outra de apresentarem as suas teses ou de sobre elas levantarem dvidas (van Eemeren, Grootendorst, Henkemans, 2002: 182). Mais do que uma questo de liberdade formal de expresso, a dimenso tica da argumen-tao relaciona-se com a forma como conferimos ateno e interesse perspectiva do outro atravs da maneira como com ele interagimos. Neste sentido podemos dizer que a dimenso tica da argumentao se baseia na interdependncia, a qual remete, por seu turno, para uma viso descritiva da argumentao como uma co-construo levada a cabo por duas instncias dotadas de iniciativa argumentativa, sendo que o discurso pro-duzido por cada um retira tambm a sua razo de ser da interaco que mantm com o discurso do outro a propsito de um assunto em questo. Naturalmente que existem muitas formas de comunicao, mas esta interdependncia, esta aco coordenada em torno de um assunto em questo, aquilo que pode especificar a interaco argumenta-tiva e distingui-la, por exemplo, e sem necessariamente a opor, de uma conversa ou de um exerccio conjunto de raciocnio.

    A viso anteriormente apresentada profcua em dois aspectos importantes: em pri-meiro lugar porque, circunscrevendo o campo da argumentao ao domnio da mutua-lidade relacional em torno de um assunto em questo, dota-nos de uma focalizao que permite analisar as intervenes desenvolvidas na alternncia dos turnos de palavra, que caracteriza a dinmica de uma argumentao, como discursos circunstanciados. Tal possibilita que pensemos os argumentos no como entidades abstractas e isolveis, mas como recursos apresentados para lidar interactivamente com uma situao especfica de interlocuo na qual a considerao do contedo do discurso do outro um elemento essencial no s para a construo do objecto discutvel como tambm para a possvel progresso da interaco. Em segundo lugar, pe a tnica no apenas na competncia de produzir organizadamente um discurso mas, tambm, e de uma forma fundamental, na capacidade de ouvir, o que implica ver na argumentao algo mais do que um di-logo de surdos ou um debate imvel3. Como arte de ouvir ela implica, sugerem Makau e Marty, competncias especficas, a saber, a audio do contedo (destinada a organizar a informao), a audio emptica (que ajuda a estabelecer laos de compreenso e de explicitao entre os comunicadores) e a audio crtica (que consiste na avaliao da informao e das inferncias) (Makau e Marty, 2005: 60). Acrescentaramos a estas a competncia de produzir um contradiscurso, apresente-se este como refutativo, alter-nativo ou simultaneamente refutativo e alternativo. apenas com a aplicao destas

    3 As expresses Dilogo de surdos e Debate imvel fazem parte, respectivamente, de ttulos de obras de Angenot e de Doury (cf. Angenot, 2008 e Doury, 1997).

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    competncias que a interaco argumentativa se pode tornar produtiva e beneficiar das mais-valias que proporciona. Plantin (2003: 121-129) refere-as do seguinte modo: escutar os outros, integrar o que se disse no seu prprio discurso, e assim combater o ensimesmamento; e tambm duvidar, fazer a experincia da incerteza, a qual ocorre quando nos parece que os discursos antagonistas se equilibram. Naturalmente que uma viso como esta, colocando a tnica na incerteza, na dvida, no questionvel e numa matriz efectivamente pluralista em que o risco uma constante4, est longe das concepes que valorizam pragmaticamente os pontos de chegada, a produo con-sensual de decises e os resultados prticos negociados em tempo til. Se certo que podemos argumentar em funo de finalidades e visar a eficcia, o facto que antecipar o resultado real da progresso da interaco argumentativa significa quase sempre que se embarca numa relao de manipulao do outro.

    A distino entre unilateralidade e multilateralidade, a que anteriormente aludimos, pode ser explicitada da seguinte maneira. Assim:

    numa comunicao unilateral as partes em jogo esto numa situao desigual no que diz respeito iniciativa discursiva, competindo ao orador um papel activo e director e ao auditrio um papel mais passivo e de receptor5. O mesmo no acontece numa comunicao multilateral em que os participantes gozam ambos do poder da iniciativa discursiva e se podem tratar reciprocamente como argu-mentadores, o que significa uma situao de paridade quanto manuteno do assunto debatido como assunto em aberto e, efectivamente, em questo6;

    daqui decorre que numa comunicao unilateral no se verifica uma permuta dos trs papis que Plantin aponta como constitutivos da situao argumentativa (2005: 63) o lugar do proponente, o lugar do oponente e o lugar do questiona-

    4 H com efeito teorizadores, como Henry Johnstone Jr., que fazem do risco uma componente essencial nas argumentaes. Assim, escreve este filsofo, argumentar com algum olh-lo para alm do objectivo do controlo efectivo e, por isso, coloc-lo para alm do objectivo do controlo efectivo, contanto que ele seja capaz de ouvir a argumentao e saiba como que ns os estamos a considerar. Damos-lhe a opo de resistir e, assim que retiramos esta opo, deixamos de estar a argumen-tar. Argumentar correr inerentemente o risco de falhar, tal como jogar um jogo inerentemente arriscar-se a perder. Uma argumentao cuja vitria nos esteja garantida deixa de ser uma argumentao real, tal como um jogo cuja vitria esteja garantida deixa de ser um jogo real. Um argumentador versado pode sentir-se seguro de que vai ganhar uma argumentao contra algum, mas se essa certeza uma consequncia objectiva do procedimento que usa, ento esse procedimento no argumentao (Johnstone Jr., 1992: 39-40).5 Note-se que a prpria ideia de iniciativa discursiva no est desligada do ethos pr-discursivo (isto , do estatuto institucio-nal daquele que fala e das funes e posies que ocupa num determinado campo e que legitimam certas expectativas ou seja, que levam a que os outros, ou o auditrio, o imaginem dotado de um certo perfil acerca do seu discurso). Esse ethos pr-discursivo determinante na produo das condies da receptibilidade do discurso, ou disponibilidade para prestar ateno e dar ouvidos a algum. Bourdieu assinalou este facto quando escreveu que a competncia suficiente para produzir frases susceptveis de serem compreendidas pode ser insuficiente para produzir frases susceptveis de serem escutadas, frases prprias para serem reconhecidas como recebveis em todas as situaes em que falar acontece. () Os locutores desprovidos da competncia legtima vem-se excludos, de facto, dos universos sociais em que ela exigida, ou condenados ao silncio (Bourdieu, 1982: 38). Um exemplo do ethos pr-discursivo que nos nossos dias tende a proporcionar autoridade e disponibi-lidade para ser ouvido e tomado em considerao o estatuto de especialista.6 Sabemos, no entanto, que a paridade quanto iniciativa argumentativa exige que se crie espao para argumentar e implica muitas vezes coragem para afrontar a autoridade derivada de estatutos sociais que, na realidade e em termos prticos, consti-tui uma das partes como detentora da palavra legtima que, enquanto tal, pode impor limites iniciativa discursiva.

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    dor e que podem ser ocupados por qualquer dos participantes no decorrer do intercmbio para que este seja plenamente argumentativo.

    3. Perspectivas: produto, processo, procedimento, processamentoA ideia de que a argumentao tanto o discurso que algum produz, como uma inte-raco discursiva em que dois ou mais indivduos se envolvem foi alvo de teorizao por parte de D. J. OKeefe ao distinguir dois sentidos em que se pode falar de argumentao (argumentao1 e argumentao2). Assim, escreve este investigador, argumentao1 algo que uma pessoa faz (ou oferece ou apresenta ou enuncia), enquanto argumentao2 algo que duas ou mais pessoas fazem (ou em que se envolvem) (1977: 121).

    Explorando esta distino, outros teorizadores (Wenzel, 2006: 9-26) traduziram-na para uma terminologia diferente, caracterizando no s as abordagens que se debruam sobre a argumentao1 como estando centradas no produto e as que incidem sobre a argumentao2 como estando focalizadas no processo, como referindo, ainda, as que se debruam sobre o procedimento. No seguimento destas distines, outro terico cha-mou a ateno para aquilo que designou como argumentao0 e que dirige o seu olhar analtico para a dimenso de processamento (Hample: 1992)7.

    No sendo aqui lugar para entrar em detalhes quanto a estas distines tericas, importa contudo dizer que, numa perspectiva didctica e metodolgica, elas se revelam como muito interessantes para uma introduo polidrica aos fenmenos argumentati-vos e correspondem aos sentidos mais usuais da utilizao do termo argumentao: assim, quando nos referimos aos argumentos de algum, estamos a ver a argumentao como produto; quando se diz que aqueles argumentos foram demolidores, estamos a adoptar o ponto de vista dos seus efeitos no processo; quando observamos que algum monopoliza o debate e no deixa os outros falarem, estamos a ver a argumentao de um ponto de vista do procedimento; finalmente quando olhamos para um discurso atentando na actividade cognitiva que lhe est subjacente, estamos a ver a argumenta-o de um ponto de vista do processamento.

    Este centramento em determinados aspectos explica alis a multiplicidade de defini-es tericas que podemos encontrar8. Assim, os lgicos informais tendem a ver a argu-mentao a partir da existncia de argumentos, entendendo por argumento uma tese e um ou mais conjuntos de razes oferecidas por algum para suportar a tese (Johnson e Blair, 2005: 10), sendo que este suporte implica inferncias e raciocnios que podem ser avaliados segundo os critrios da aceitabilidade das premissas, da sua relevncia e da sua suficincia. Se, como o faz Walton, considerarmos ainda que os argumentos so

    7 Escreve Hample que onde OKeefe usa fazer e ter uma argumentao para ajudar a distinguir os seus dois sentidos, eu apresentaria considerando ou inventando ou pensando atravs de uma argumentao como frases que reflectem a perspectiva cognitiva (p. 108).8 Pensamos, contudo, que importa recentrar o estudo da argumentao independentemente de contributos provenientes de vrios domnios num ncleo especfico que , para ns, o da interaco multilateral e circunstanciada dos discursos, ou seja, em que a anlise e avaliao dos argumentos no dissocivel de um estatuto de argumentador emergente da situao de interdependncia discursiva.

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    usados em contextos de dilogo que podem ser tipificados segundo as suas finalidades, ento o lgico informal olhar para a argumentao como o estudo de como modelos normativos de raciocnio so usados em diferentes contextos de dilogo (1990: 417).

    J da perspectiva que privilegia o discurso e o seu poder de influncia persuasiva, em que se inserem as definies de Perelman e de Amossy anteriormente referidas, pode dizer-se que elas se focalizam no processo de influncia.

    Do mesmo modo, a pragma-dialctica de van Eemeren e Rob Grootendorst, ao falar de um cdigo de conduta da discusso crtica (van Eemeren, Grootendorst, Henkemans, 2002: 182-183). e debruando-se essencialmente nas fases e nas regras do debate, enfatizam a dimenso do procedimento.

    Finalmente, um exemplo de uma concepo que se preocupa com o processamento a de Jean-Blaise Grize (1992), que designa a sua perspectiva de estudo como lgica natural, sendo que esta procura descrever as operaes de pensamento que permitem construir e organizar os contedos e das quais ela procura as marcas no discurso (1996: 114).

    4. Uma abordagem visual do argumentarIndependentemente da ambiguidade que possa existir, de um ponto de vista prtico, na distino entre a argumentao como produto (ponto de vista esttico), a argumenta-o como processo (ponto de vista dinmico), a argumentao enquanto procedimento (ponto de vista das regras de interlocuo) e a argumentao como processamento (ponto de vista das operaes cognitivas), o facto que, em termos de representao no imaginrio social, tal como ele se manifesta no uso e na aplicao corrente do termo, estas quatro acepes coexistem na identificao do que seja uma argumentao.

    No caso do discurso unilateral, dir-se- que este uma argumentao quando a sua construo e o desempenho discursivo do orador remetem para a postura do polemi-zador (invocando posies alheias e procedendo sua crtica e eventual refutao) ou, ainda, revelam uma intencionalidade persuasiva mais ou menos explcita. As trs ima-gens a seguir apresentadas sugerem que, ainda que apaream isoladas, as pessoas que nelas figuram esto a argumentar.

    Figura 1 Figura 2 Figura 3

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    Sublinhe-se dois denominadores comuns a estas trs imagens: por um lado, a deter-minao colocada no acto de fala e, por outro, a gestualidade especfica das mos. Com efeito, nas trs imagens a expresso dos oradores a de algum que est fortemente empenhado no seu dizer. Por outro lado, o dedo apontado (seja como acusao, sinal de desacordo e mesmo de indignao ou chamada de ateno de algum), a comple-mentaridade enftica com que a expressividade gestual das mos refora o discurso (intensificando assim a sua dimenso expressiva e persuasiva) e o vaivm vertical da mo em conjuno com o acto de comunicao (que tanto pode significar uma atitude de firmeza e uma postura resoluta, como uma eventual marcao de tpicos ou uma enumerao de aspectos decisivos por oposio aos aspectos irrelevantes) so indcios perceptivos de que quem assim comunica estar, provavelmente, a argumentar. Se, em vez de fotografias, estivssemos a ver um vdeo destes discursos, notaramos provavel-mente outras caractersticas que nos levariam a identificar o discurso como uma argu-mentao, a saber, as nfases do falar, as repeties de ideias e os refres discursivos, as variaes de velocidade no dbito verbal, as pausas estratgicas e tantos outros sinais, mas, tambm, referncias quilo que eles pensam e a manifestao de posies por oposio a outras posies, numa dialctica que articula simultaneamente a identifica-o e a diviso, para retomar dois conceitos gratos a Kenneth Burke.

    No caso da comunicao multilateral, para alm daquilo que emitido independen-temente do contedo especfico da comunicao, acrescentaramos s caractersticas anteriormente enunciadas a possibilidade de verificar que a relao de desacordo e de oposio se verifica entre pessoas especficas, ou seja, entre este(s) e aquele(s), sendo que neste caso provavelmente a dimenso adversarial da comunicao interpes-soal que parece tornar mais evidente estarmos perante uma argumentao.

    As imagens seguintes so um exemplos do que acabmos de referir.

    Figura 4 Figura 5

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    Com efeito, segundo Pamela Benoit (1992: 176-177), as pessoas reconhecem esta-rem envolvidas em, ou perante uma, argumentao quando um determinado script accionado9. Desse script, ou guio, fazem parte a percepo da existncia de um desa-cordo ou oposio entre perspectivas e, simultaneamente, um interesse mtuo das par-tes no assunto em questo. A dimenso adversarial da relao interlocutiva interpessoal apresenta-se, assim, como um dos sinais empricos atravs dos quais identificamos uma interaco como argumentao, e vai nesse sentido a definio proposta por Jacobs e Jackson quando escrevem que as argumentaes so acontecimentos discursivos de desacordo relevante baseados na irrupo de uma ruptura quanto resposta desejada numa conversao (1980: 254).

    O dptico argumentativo que nos revela uma situao de conflito e de oposio poder ser assim conotado com o incio de uma situao argumentativa, podendo ns perguntar se a simultaneidade e a sobreposio das falas que as imagens exibem, tpicas das exploses emotivas, daro origem a um intercmbio mais disciplinado em termos de turnos de palavra. No teremos tambm dvidas de que, caso a interaco progrida para uma gesto mais equilibrada das emoes, menos acelerada em termos de dbito e processualmente mais ordenada quanto rotatividade das intervenes, o discurso de cada um dos participantes ser provavelmente desenvolvido como uma advocacia das suas posies. Poderemos ainda imaginar extrapolando das imagens atravs de inferncias baseadas na nossa prpria experincia de vida ou em ideais que, mais do que se centrarem na espectacularidade dramtica da oposio, valorizam a possibilidade de uma progresso que, se a fase de advocacia resultar em concesses que aproximem os intervenientes, quanto mais no seja pela disponibilidade de ouvir e de considerar o outro, ser possvel que a interaco argumentativa v transitando progressivamente de uma atitude adversarial e competitiva para uma atitude mais cooperativa, que a postura de advocacia se v diluindo progressivamente numa postura mais reflexiva, ponderada e de investigao e que o inicial assanhamento da afirmao pessoal d lugar a uma valorizao do interesse comum.

    So alis curiosos, a este respeito, os estudos sobre a argumentao levados a cabo, nomeadamente por Caroline Golder, numa perspectiva psicolingustica, e nos quais salientado que, de um ponto de vista ontogentico, se podem assinalar vrias etapas na aquisio de competncias argumentativas. Assim, se as crianas com 3 ou 4 anos apresentam j a capacidade de justificar uma tomada de posio (e embora no sejam capazes de tomar em considerao a perspectiva do seu interlocutor, sabem considerar os seus prprios interesses, utilizando como argumentos tpicos narrativas de vida:

    9 Note-se que, por exemplo, na prtica do jornalismo televisivo, a construo de certas peas reproduz vulgarmente o script da argumentao, recolhendo declaraes de vrios intervenientes sobre um dado assunto e montando-as como uma sequncia que se assemelha a uma argumentao, ou seja, onde a dissenso patente pela presena de uma sucesso de dis-cursos e de contradiscursos. tambm sabido que os media tendem a enfatizar e a dramatizar a dimenso adversarial como forma de conferirem uma espectacularidade que se reflecte ao nvel do impacto das notcias.

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    mas a mam disse..., mas em minha casa podemos...10), s entre os 16 e os 17 anos (passando entretanto por uma srie de outras fases) que so capazes de tomar em considerao, refutar os argumentos contrrios sua posio e escrever um texto coerente que integre argumentos e contra-argumentos (Golder e Pouit, 1998; Golder e Favart, 2006), o que implica um descentramento cognitivo e a real considerao do outro.

    5. Com que que argumentar se parece? Um exerccio no contexto da cultura americanaSegundo um estudo encetado por Jean Goodwin (2005a) em contexto de sala de aula, e no qual esta professora e terica procurou apurar as representaes dos alunos rela-tivamente ao argumentar, a conotao por estes expressa quanto cena argumenta-tiva foi maioritariamente negativa, sendo o argumentar associado agressividade, futilidade e tenso, ainda que no final do exerccio se tivesse verificado que a ideia de argumentar se foi progressivamente ampliando e incorporando tambm aspectos positivos11.

    O exerccio proposto por Goodwin desenvolveu-se em trs fases: a) um primeiro momento em que foi pedido aos alunos uma abordagem visual da argumentao atra-vs de desenhos, a que se seguiu uma troca dos desenhos e a colocao de trs pergun-tas aos seus autores: 1. Quem est a argumentar com quem? 2. Sobre que que esto a argumentar; 3. Quais as palavras (duas ou trs) que melhor descrevem o modo como eles esto a argumentar?; b) um segundo momento consistiu na exposio dos alunos a um conjunto de imagens, algumas evocando formas diversas de argumentar e outras no remetendo para esse acto, e no pedido para que se pronunciassem sobre elas, seja procurando denominadores comuns, seja produzindo comentrios; c) num terceiro momento, terico, os alunos foram convidados a apresentar as suas prprias vises do argumentar.

    Eis o resultado deste exerccio traduzido em trs quadros:

    10 Note-se que a evocao de tais narrativas funciona essencialmente como um quadro de legitimidade fundado no apelo autoridade. Estes exemplos vo ao encontro do paradigma narrativo proposto por Walter Fisher, para quem as normas para a avaliao da comunicao retrica no se podem cingir lgica, formal ou informal: as boas razes esto sempre, de um ou de outro modo, associados a uma narrativa (cf. Fisher, 1987, 1999).11 Note-se que esta viso da argumentao como guerra (Cf. Lakoff e Johnson, 1980) reflecte a tipicidade desta noo no contexto da cultura americana. alis face a esta perspectiva agnica que caracteriza a cultura do argumento americana, que leva a ver a realidade e as pessoas com um quadro adversarial na cabea, que a sociolinguista Deborah Tannen prope que se transite da disputa para o dilogo (cf. Tannen, 1988). Pensamos todavia que, na cultura portuguesa, as conotaes dos termos argumentao e discusso so inversas, ligando-se esta ltima agressividade e negatividade (confrontao erstica) e a primeira a uma forma mais civilizada e respeitosa, ou seja, coalescente, de interaco.

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    Quadro 1: Caracterizao inicial que os estudantes apresentaram do argumentar

    Tema: Argumentar ...

    Termos descritivos

    Esteretipos dos desenhos

    O que foi dito N. de desenhos

    Zanga Zanga/zangado, furioso, gritaria, baixo, insulto, caloroso, queixoso, cime, guerra, explosivo, mortal

    Gesticulaes, braos, fumegar, cabea, nuvem sobre a cabea, violncia fsica

    Profanao, acusaes

    37 (60%)

    Enftica Alta, animada Boca grande e aberta, raios a saltar da boca ou da cabea

    !, !!, !!! 28 (45%)

    Ftil Ftil, mesquinho, escusado, frustrante, estpido, incompreenso, sem utilidade uns para os outros, mente fechada, teimoso, opinativo

    Um muro entre as duas pessoas

    Bl, bl, bl e variantes, observaes do tipo Argumentao clnica

    21 (34%)

    Doloroso Infeliz, mau Cara triste - 12 (19%)

    Agradvel / Produtivo

    Algo amigvel, dana, troca de ideias, comunicao

    Cara alegre - 9 (14%)

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    Quadro 2: A caracterizao inicial que os estudantes apresentaram das situaes paradigmticas do argumentar

    Caso paradigmtico N. de respostas % de respostas

    Argumentao interpessoal namorado/namorada entre pares

    30(16)(14)

    48%(26%)(23%)

    Argumentao pblica 11 18%

    Violncia 9 15%

    Concepes abstractas 8 13%

    Indeterminado 4 6%

    Total 62 100%

    Quadro 3: A viso reflexiva que os estudantes apresentaram do argumentar

    Viso refl exiva N. de respostas % de respostas

    Negativa 17 27%

    Positiva 5 8%

    Mista intermdia situacional

    36(22)(14)

    58%(35%)(23%)

    Outras / sem resposta 4 6%

    Total 62 100%

    Dois comentrios importa fazer sobre este exerccio. O primeiro para assinalar o seu interesse do ponto de vista didctico: o simples processo de reflexo sobre o argumentar acabou por transformar a imagem negativa que era inicialmente predominante, ou seja, produziu uma aprendizagem. A estratgia visual utilizada o recurso ao desenho e s imagens revelou-se tambm eficaz do ponto de vista motivacional e despoletadora de processos inferenciais realizados pelos alunos. O segundo comentrio que vem de uma concluso que a autora tira a partir de uma reflexo sobre a aplicao deste exerccio a vrias classes incide sobre a nfase colocada pelos alunos sobre as relaes entre o argumentador e a posio que este assume. Assim, mais do que sublinharem a palavra adeso (Perelman), os alunos sublinharam a seriedade, ou intenso envolvi-mento presente no acto de argumentar. Observa Goodwin: de uma forma repetida os seus ensaios dizem que as pessoas apenas argumentam quando se interessam profunda-

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    mente; que, ao argumentar, elas colocam em risco no apenas as suas opinies, mas elas prprias e as suas mais profundas convices (2005a: 90); trata-se de uma concepo, nota a autora, que vai ao encontro das concepes de Henry W. Johnstone, Jr., as quais pem em relevo a questo do Si (the emerging self) (Johnstone, Jr., 1992).

    Num outro artigo Goodwin observa tambm que parece que os alunos experien-ciam a sua iniciao argumentao como a da formao de um si (Self). Tomar uma posio colocar-se a si mesmo no mundo, um local visvel para si e para os outros. uma posio desconfortvel para se estar, e arriscada, uma vez que no h garantia que consigamos manter a postura vertical. Mas se conseguirmos, pode ganhar-se uma estabilidade justificada para consigo e para com os seus compromissos; uma disposio merecedora do nome de autoconfiana (2005b: 26; cf. 2003).

    No entanto, e uma vez que sempre possvel tentar evitar o registo argumentativo de uma interlocuo, muitas vezes preciso incentivar argumentao, ou seja, captar o outro para o debate sobre o assunto: nota a este propsito a autora que os incentivos podem ser geralmente categorizados como cenouras ou varas. Oferecendo cenouras, o argumentador tentar fazer o seu interlocutor querer fazer uma questo do assunto; o assunto em questo aparecer como desejvel, atractivo ou do interesse do outro. Ameaando com a vara, o argumentador tentar fazer com que o outro tenha de fazer disso um assunto em questo; este aparecer como algo a que o outro foi obrigado, ou forado pelas circunstncias, a encarar ou, se no a encarar, pelo menos a tentar esquivar, evitar, evadir ou contornar (Goodwin, 2002: 88).

    Tambm segundo Crosswhite (1996: 250) a argumentao no pode ser dissociada de um contexto conversacional e narrativo que torne no s possvel a interaco argu-mentativa como permita tambm a considerao e a avaliao da fora das asseres enquanto argumentos. Escreveu, por isso, que a retrica a conversa que pode ofere-cer uma compreenso de como o raciocnio argumentativo qualquer raciocnio argu-mentativo funciona.

    6. Imagens do argumentador: violador, sedutor, amanteOlhando para o papel do argumentador, Brockriede (1972) prope que o represente-mos a partir de uma metfora sexual, a qual permite descrever os tipos de atitudes que podem ser assumidas pelos argumentadores no decurso de uma interaco: a do viola-dor, a do sedutor e a do amante.

    Esquematicamente, a caracterizao de cada uma destas atitudes pode ser sinteti-zada como a seguir se apresenta no Quadro 412:

    12 Basemo-nos aqui a sntese apresentada em http://commfaculty.fullerton.edu/rgass/brockriede.htm

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    Quadro 4: Atitudes face ao argumentar

    Tipos de atitude

    Violador Sedutor Amante

    no se interessa pelo assentimento, mas pelo poder, comandos, ameaas e coaco; a relao unilateral; o interlocutor visto como uma presa a ser manipulada; o interlocutor visto como um ser inferior; despersonaliza o outro; apoia-se na agressividade verbal (insultos e ataques pessoais e ao carcter); uso da fora, autoritarismo e sanes; recurso a ameaas e a ultimatos.

    o sedutor no conquista pela fora mas pelo charme e pelo engano; a relao unilateral; indiferena perante a identidade e o valor do opositor; indiferena perante a humanidade do opositor; fomenta o ambguo e recorre sugesto e a ardis; cria a iluso de escolha; utiliza estratgias de bajulao; fomenta a convenincia do enganoso; baseia-se em raciocnios ilcitos.

    v o interlocutor como um amante e no como uma vitima; a relao multilateral; considera o interlocutor como uma pessoa; mantm a interlocuo num plano de paridade.

    Abordagens do argumentar

    manifesta desdm pelo outro e pela sua integridade; toma o outro como um objecto ou como alvo a atingir; valoriza o sucesso e desvaloriza a relao; no se expe ao risco da mudana; adopta apenas a sua prpria perspectiva sobre o assunto.

    considera o outro como igual dando relevo paridade de poder; valoriza mais a relao do que o resultado; enfatiza a cooperao sobre a competio; valoriza escolhas e decises partilhadas; expe ao risco a sua auto-estima e dispe-se a modifi car as suas avaliaes.

    Orientaes quanto aos argumentos e ao argumentar

    orientao competitiva, perder/ganhar; perspectiva adversarial em que estratgias so vistas como meios para obter fi ns; pseudo-argumentos, pretextos para ad hominems.

    viso cooperativa; objectivos partilhados; validao consensual; funo epistmica da argumentao.

    Esta viso, afirmando a importncia que as pessoas, as suas atitudes e as suas rela-es tm na transaco comunicativa, demarca-se nitidamente de uma abordagem lgica da argumentao e conduz ideia de que qualquer argumentao se desenvolve num contexto retrico e tem implcita, nas palavras de Hariman (1999: 48), uma reflexo sobre a sociabilidade da linguagem.

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    7. Argumentos, comunicao e sociedadeA mesma ideia est patente, ainda que apresentada de outro ngulo, na crtica que Willard faz utilidade do uso de diagramas como mtodo de anlise das argumen-taes, de que o padro proposto por Toulmin exemplo (cf. Willard, 1992: 239- -277). Para este terico o uso de diagramas nunca descreve a dinmica de um encontro argumentativo, que social, nem o enraizamento do sentido das asseres no seu uso circunstanciado, o qual no s inclui as pessoas dos argumentadores e as suas relaes, como possui uma dimenso simblica que no redutvel sua reconstruo lingustica como premissas cujo encadeamento susceptvel de anlise. Notou, a este propsito, Moiss de Lemos Martins que so com efeito umas tantas propriedades sociais (emis-sores e receptores legtimos, lngua e situao legtimas), no interior de um campo de posies sociais assimtricas, que do a um discurso mais ou menos fora, tornando-o deste modo mais ou menos aceitvel (2002: 100).

    Para alm do mais, tais diagramas introduzem uma dicotomia injustificvel entre emoo e razo e bom no esquecer que j Perelman e Olbrechts-Tyteca situavam a teoria da argumentao algures nos confins da lgica e da psicologia (1952: 1) , descontextualizam a dimenso psicolgica13, social e poltica da interaco e acabam por conduzir a um nvel micro de anlise pouco consonante com a forma prtica e con-versacional como realmente ela se desenrola em grande parte dos casos.

    Vo no sentido desta ltima afirmao as palavras de Tito Cardoso e Cunha e de Amrico de Sousa quando, humorizando, observam: como seria caricato se uma situao argumentativa tivesse de ser interrompida a todo o tempo e vezes sem conta s para que os respectivos destinatrios, munidos de lpis, se pudessem certificar da forma lgica de cada argumento, da sua validade formal, ou mesmo da sua plausibilidade (2005: 1834-1835). Com efeito, uma tal viso teria de supor que se pode separar o contexto retrico e a persuasividade dos processos comunicativos (que incluem variveis como a contingncia dos lugares, pessoas, estatutos, relaes, cdigos de procedimento, etc.) do plano dos raciocnios. Mas o que acontece na dinmica comunicativa que os processos de influncia que conduzem a focalizar os termos do problema no so dissociveis dos raciocnios que se avanam nos termos do problema e da sua avaliao, para alm de que, como notou Hample, um dos aspectos que caracteriza os humanos a sua avareza cognitiva: no pensamos duramente se o pudermos evitar. A partir do momento que temos razo suficiente para nos satisfazer, no queremos, na realidade, ter mais (2005: 3). Perelman assinalou tambm que, associada noo de racionalidade, est um prin-cpio econmico de comodidade do pensamento prtico, que designou como inrcia

    13 Tanto Brockriede como Willard se insurgem contra esta despsicologizao dos processos argumentativos. O primeiro per-gunta: mas de que se trata quando rebaixamos [a anlise psicolgica], sabendo que um dos aspectos do estudo de qualquer transaco humana a anlise psicolgica das pessoas que a esto a realizar? (cf. Brockriede, 1972: 2). O segundo afirma que, enquanto questo descritiva, no podemos saber o sentido de uma proposio (e de toda uma argumentao) sem saber como que o comunicador se colocou perante a sua assero. Apenas podemos atribuir sentido s suas afirmaes (como afirmaes situadas) descrevendo fielmente as suas definies da situao. Por conseguinte, para propsitos de argu-mentao a finalidade de despsicologizar a argumentao um profundo erro (Willard, 1983: 155-156).

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    espiritual14 e Bourdieu (1982), por seu lado, acentuou o conceito de habitus para enfa-tizar o modo como o social toma corpo na economia das trocas lingusticas.

    Se as questes de argumentao pudessem ser reduzidas a questes de raciocnio susceptveis de formalizao, ento a argumentao poderia ser estudada apenas de um ponto de vista lgico. No entanto as questes de argumentao situam-se essen-cialmente ao nvel das perspectivas e podemos sempre reconhecer um raciocnio como vlido sem o subscrevermos ou deixarmos de apresentar reservas quanto perspectiva no interior do qual ele avanado (tens razo no que dizes, mas eu no concordo com esse modo de ver). Neste sentido pode dizer-se que, de um ponto de vista prtico, a avaliao dos raciocnios anda sempre a par de uma apreciao das perspectivas, sendo que a manifestao ou no desse apreo se traduz por uma gesto da proximidade ou da distncia entre os argumentadores. justamente esse aspecto que enfatizado na definio de retrica proposta por Michel Meyer como negociao da distncia entre indivduos a propsito de uma questo (2008: 21).

    No se deve, contudo, descurar a importncia da anlise mais filigranada das argu-mentaes, nomeadamente a sua focalizao ao nvel do raciocnio informal, sobretudo quando estas ocorrem num quadro fortemente institucionalizado, como , por exemplo, o caso do direito. Com efeito, circunscrita, neste campo, a relevncia dos discursos s questes de facto15 e s questes de direito (produo de prova e aplicao da lei) que remetem para procedimentos altamente codificados, espera-se que os advogados pro-duzam os seus discursos sob a forma de articulados, ou seja, para utilizar a classificao de Perelman, atravs de argumentos quase lgicos e, para retomar a terminologia de Burke, de acordo com uma progresso silogstica.

    De notar que a regra prtica a de que quanto mais nos focamos e concentramos, para fins de avaliao, em nveis frsicos, proposicionais e no plano do raciocnio, mais nos abstramos da sua ligao com as perspectivas e os contextos cuja suposta consi-derao assegurada ou por formas institucionalizadas e codificadas de autoridade ou pela fora que a doxa exerce nos lugares em que a argumentao encenada. Neste ltimo caso funcionamos a partir de certas perspectivas sem as problematizarmos e sem nelas pensarmos como sendo, justamente, perspectivas e sociais. A fora da doxa permite-nos esquecer isso e essa uma das principais razes do seu poder e da sua efi-ccia ao nvel da aco.

    Angenot define a doxa como o repertrio das crenas e dos lugares, das propo-sies admitidas, prprias daquilo que chamamos um estado de sociedade. A opinio recebida e comum no encerra nem a falsidade patente nem a verdade demonstrvel,

    14 Perlman escreveu, a este propsito, que o princpio de inrcia, que transforma em norma toda a maneira habitual de proceder, est na base das regras que se desenvolvem espontaneamente em toda a sociedade (...). O princpio de inrcia desempenha, assim, um papel estabilizador indispensvel na vida social. Isto no quer dizer que tudo o que est deva permanecer imutvel, mas que no h lugar para o mudar sem razo: s a mudana deve ser justificada (Perelman, 1968: 19-20).15 E no deixa de ser curioso que faa parte do decorum do procedimento dos advogados num tribunal a absteno de faze-rem perguntas consideradas como argumentativas, ou seja, que induzem a extraco de uma concluso que, ao nvel das questes de facto, devem ser apenas tiradas pelo jri ou pelo juiz face ao que apurado como facto. Os advogados vem-se, assim, nesta curiosa situao de terem de argumentar sem serem argumentativos.

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    mas qualquer coisa de mediano, de incerto, de inferior ao verdadeiro e, contudo, til: o provvel. A doxa rene no apenas as premissas sobre as coisas do mundo, ela tambm o prprio facto de que certas coisas se nomeiam e se classificam, que certas questes se colocam, so reconhecidas como objecto de debate, existem no discurso para um estado de sociedade. A este repertrio e a esta temtica junta-se um repertrio no menos contingente e varivel das regras cognitivas admitidas, aquilo que os cog-nitivistas americanos chamam, nomeadamente, Lay Epistemics, ou seja, os esquemas inferenciais da lgica informal provenientes da etno-epistemologia (2008: 64).

    A doxa caracteriza-se tambm por dar origem a esteretipos que Amossy (1991) define como o pronto-a-pensar do esprito , ou seja, a formas habituais de lidar com certos assuntos e de a eles reagir, pensando por defeito e tendendo a produzir clichs e a padronizar os quadros das conversas quotidianas. Nesse sentido, escreve Angenot, repertrio do tematizvel e do provvel num estado de direito e conjunto das regras vlidas de inferncia, a doxa pode ser compreendida como sinnimo de hegemonia no discurso social ou, pelo menos, como a componente central deste, com as suas evidn-cias, os seus totens e os seus tabus (2008: 72).

    8. O que que as pessoas pensam que esto a fazer quando esto a argumentar?Estudos empricos em contexto da cultura americanaMas, retomando a questo, o que que as pessoas comuns pensam que esto a fazer quando esto a argumentar? Esta via de investigao tem vindo a ser insistentemente desenvolvida por Dale Hample (2003: 439-477; 2005). Segundo este terico, a forma como as pessoas olham para o que esto a fazer quando argumentam importante no que diz respeito ao modo, e s competncias, de lidar com a argumentao.

    O autor prope trs nveis de enquadramento para abordar as representaes do argumentar no plano das pessoas comuns ou actores ingnuos: o nvel dos objectivos ou motivao, o nvel da conectividade entre os objectivos ou motivaes das partes envolvidas e o nvel da compreenso reflexiva da prpria ideia de argumentao.

    Quanto ao primeiro nvel, os objectivos primrios ou motivaes bsicas conducen-tes ao argumentar so, segundo as investigaes de Hample, as seguintes:

    as pessoas vem o recurso argumentao como uma coisa assegurada e natural; a motivao mais imediata pela qual se recorre argumentao essencialmente prtica e geral resolver um assunto e usualmente a partir desse objectivo mais directo que aparecem outras motivaes relacionadas com o processo de comuni-cao, nomeadamente o da influncia e da dominao sobre o interlocutor;

    quando o que motiva o domnio ou o ascendente sobre o outro, a identidade pessoal e o estatuto relacional tornam-se aspectos relevantes e sensveis na argu-mentao, a qual tende a desenvolver-se num quadro competitivo;

    outra das razes para argumentar relaciona-se com a apresentao de si prprio, o que acontece quando, por exemplo, apesar de no haver desacordo nem se

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    estar a antecipar uma situao conflitual, a pessoa ainda assim se vai desfazendo em explicaes e mais explicaes;

    uma outra motivao para argumentar a recriao, no sentido de ver o que acontece quando confrontamos, por vezes de uma forma radical, as teses dos outros. Neste caso no se trata de resolver um assunto nem de produzir uma identificao entre o que se diz e o que realmente se pensa, ou se .

    Conclui Hample: estes quatro enquadramentos so todos legtimos, mas fazem pesar restries diferentes em ambos os argumentadores (2003: 445).

    Quanto ao segundo nvel, ou seja, o da coordenao de objectivos, o terico con-cluiu que:

    muitos argumentadores designados por Barbara OKeefe como os expressi-vos no colocam a questo da coordenao, tomando como funo primeira da comunicao a possibilidade de se exprimirem;

    h tambm argumentadores que ligam os seus comportamentos argumentativos outra pessoa, seja em termos competitivos ou ersticos (ganhar/perder), seja em termos cooperativos ou coalescentes (ganhar-ganhar). No primeiro caso cria-se uma lgica de excluso, de agressividade e de hostilidade entre os participantes. No segundo, h uma tentativa de coordenar os objectivos de cada um para alm das divergncias com que se tem de viver;

    o enquadramento competio/cooperao entra tambm em aco quando os objectivos de resolver um assunto e o querer ter ascendncia sobre o interlocutor se misturam, dando origem necessidade de considerar se o que est em questo de ordem substancial ou de ordem relacional, sendo que, neste ltimo caso, o que verdadeiramente est em causa so identidades pessoais, estatutos e modos de sentir (maior intensidade emocional). De notar ainda que, para a argumenta-o progredir em direco substncia do assunto em questo, h que desperso-nalizar os termos da interaco16.

    16 alis esta interdependncia do retrico e do argumentativo que explica as oscilaes entre o ad rem e o ad persona: condena-se frequentemente a pessoa, pondo-se desse modo em causa a prpria confiana nos processos de identificao estabelecidos atravs da relao dialgica, quando os argumentos sobre o assunto no logram o reconhecimento que se con-sidera exigvel como acto de coerncia e de responsabilidade face s assunes que vo sendo avanadas. Tal situao pode tambm ser retoricamente explorada relativamente a terceiros quando a falta de confiana na capacidade de progresso dialgica leva um dos interlocutores a colocar-se numa postura adversarial que visa a desautorizao, a deslegitimao e, por conseguinte, a excluso social do outro como no digno de ser levado em considerao. O problema terico que aqui se coloca e que remete para posies filosficas de fundo e para acesas dissidncias entre os teorizadores a de proceder a uma teorizao da argumentao a partir de uma dissociao entre o ad rem e o ad hominem. Esta dissociao conduz a uma viso substancialista que tende a tratar os argumentos como coisas que possuem propriedades prprias, sendo que essas propriedades so de ordem lgica e no de ordem retrica. Pelo contrrio, para quem se recusa considerar os argumentos fora do quadro de sociabilidade em que emergem, toda a anlise dos argumentos enquanto tal conduz ao recalcamento da retrica e leva a olhar para a dimenso da persuaso como uma tcnica adicional que visa fazer passar os argumentos, mas que nada tem a ver com a sua emergncia. Esta uma crtica vrias vezes feitas por Michel Meyer para quem em retrica, nunca existe ad rem puro (2008: 109). Pelo nosso lado acrescentaramos que a despersonalizao da argumentao s propicia a sua progresso porque institui um quadro retrico centrado na obteno de uma resposta cujo interesse leva os

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    Quanto ao terceiro nvel, ou seja, o das conotaes que os argumentadores tm do argumentar, ou as situao a que aplicam o rtulo argumentao, so elas as seguintes:

    a presena de desacordo e de incompatibilidade de objectivos entre os participan-tes, independentemente do desfecho da interaco. Neste sentido a identificao de uma argumentao no se reporta, propriamente, ao uso de argumentos, mas a uma situao de oposio e de tenso;

    as probabilidades de considerar uma interaco como uma argumentao depende muito da sua intensidade: quanto mais intenso, explcito e gravoso o desacordo, mais possibilidades tem de ser classificado como uma argumentao, acontecendo o inverso quanto mais mitigado o desentendimento;

    a argumentao est assim ligada a uma componente emocional forte, a um tom de voz elevado e irracionalidade, e no propriamente oferta de razes. Est tambm associada a danos relacionais. Mais do que ser considerado como uma forma alternativa violncia, ela muitas vezes vista como um primeiro passo para ela, sendo mesmo considerada como uma forma de violncia verbal.

    Face a estas observaes, Hample concluiu que existe uma discrepncia considervel entre uma viso ingnua da argumentao e uma viso erudita da mesma. Sintetiza este contraste no seguinte quadro:

    Quadro 5: Principais contrastes sobre a forma de enquadrar a argumentao por parte de actores ingnuos e de eruditos da argumentao (Hample, 2003: 449)

    Actores ingnuos Eruditos da argumentao

    Competio Cooperao

    Agresso Assertividade

    Descontrolo emocional Oferta de razes

    Violncia Pacifi smo

    Dominao Resoluo de assuntos

    Punio pessoal Satisfao pessoal

    Danos relacionais Aprofundamento relacional

    Erstica Coalescente

    participantes a elidirem ou evacuarem determinados nveis de problematicidade, nomeadamente, os que dizem respeito s relaes de dominao que tambm esto subjacentes interlocuo.

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    9. Como vista a argumentao na cultura portuguesa? Especulaes e hipteses de trabalhoEm Portugal esto por realizar estudos empricos como aqueles que apresentmos neste artigo, os quais, como deixmos explcito, remetem para a cultura americana.

    Ainda que apenas baseado em impresses que se foram cimentando atravs da expe-rincia docente, da investigao e em diversas aces de formao, acreditamos que uma investigao sobre a representao social da argumentao poderia levar a uma caracterizao diferente daquela que foi apresentada tendo como referncia o horizonte da cultura americana. Seria eventualmente pautada pela ambivalncia e conduziria pro-vavelmente a valorizar a argumentao em certos aspectos e a desvaloriz-la noutros17. Eis um quadro que, sem ter por base um estudo emprico que me parece ser importante realizar, julgo contudo sintetizar algumas das principais incidncias da imagem genera-lizada da argumentao no quadro da ainda jovem cultura democrtica portuguesa.

    Quadro 6: A imagem da argumentao na cultura portuguesa

    Razes que levam a valorizar a argumentao Razes que levam a desvalorizar a argumentao

    importante sabermo-nos exprimir e fazer compreender de uma forma estruturada o ponto de vista das nossas opinies ou a razo de ser das nossas convices e das aces delas decorrentes;

    a efi ccia de uma argumentao nunca est garantida;

    importante perceber os pontos de vistas dos outros a partir das razes que os motivam e que lhes servem de fundamento;

    a argumentao corresponde sempre a pontos de vista e a perspectivas pessoais, comportando um elevado ndice de subjectividade: ela no permite concluir de forma objectiva, nem tem meios de se impor como verdade;

    importante que a adopo de certas posies e atitudes seja motivada por razes explanveis, pois de outra forma difi cilmente se poderiam tratar as pessoas como responsveis e ligar os seus actos s determinaes de uma ordem racional ou razovel;

    a argumentao nem sempre permite saber-se ao certo se quem argumenta acredita realmente nos pontos de vista que defende, ou se apenas discorre conforme a sua convenincia e interesses: nesse sentido, a argumentao pode ser um refi nado expediente interesseiro e hipcrita que, sob uma aparncia racional, no fundo apenas visa manipular os outros;

    17 Esta ambivalncia est alis espelhada no programa de filosofia do 11. ano, cuja unidade inicial, intitulada Racionalidade argumentativa e filosofia, se desdobra em trs partes; 1. Argumentao e lgica formal, 2. Argumentao e retrica e 3. Argumentao e filosofia. de realar a natureza desta ambivalncia: por um lado, conota-se a argumentao com o discurso persuasivo, procurando valoriz-la como alternativa violncia e como essencial nas prticas de cidadania democr-tica; por outro, inicia-se a unidade temtica pela lgica e pelos seus esquemas de inferencialidade necessria e relativamente aos quais justificado falar em falcias. No entanto, quando se passa para o ponto da argumentao e da retrica, no o plano comunicacional que posto em relevo. Pelo contrrio, e apesar da apologia que feita do discurso argumentativo, foca-se a distino entre persuaso e manipulao e acaba-se, muito platonicamente alis, por subsumir a argumentao e a retrica a uma tica preconcebida pela filosofia, centrada no conhecimento e na verdade. Assim, pode ler-se no referido programa que, como corolrio do percurso desta unidade temtica, visado o reconhecimento de que toda a argumen-tao filosoficamente aceitvel deve ser regulada pela procura da verdade, tendo por finalidade o efectivo conhecimento da realidade. So tambm esclarecedores o conjunto de conceitos especficos que devem ser destacados nesta unidade programtica: sofista, filsofo, verdade, bem e ser.

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    importante para o exerccio de uma cidadania esclarecida, que no tema discutir nem tenha medo das controvrsias;

    relevante as pessoas terem o direito de argumentar e poderem apresentar os seus argumentos, mas, em termos prticos, o poder da argumentao revela-se a maior parte das vezes inconsequente;

    importante porque representa uma forma de interaco social que simultaneamente arma de aco no que diz respeito salvaguarda dos nossos interesses pessoais e defesa e afi rmao dos nossos direitos individuais e colectivos;

    a argumentao s mostra que estamos perante assuntos polmicos e controversos para os quais, no fundo, no h verdadeiras solues; uma forma de mandar vir com os outros;

    importante porque promove a acuidade do pensar crtico, suscita amplido mental na formulao de problemticas (que deve atender sempre a uma multiplicidade de pontos de vista diferentes) e acentua a dimenso estratgica do pensamento e de cada perspectiva por ele veiculada;

    a argumentao pode ser importante, mas s a demonstrao permite alcanar a certeza que verdadeiramente convence;

    importante porque uma via de lidar com as diferenas, os confl itos e as divergncias de uma forma civilizada, atravs da negociao dialgica e no atravs da violncia fsica; nesse sentido est associada a uma sociedade de direito;

    a argumentao permite exprimir pontos de vista e expor ideias, mas no tem meios de provar quem tem, de facto, razo;

    importante porque salvaguarda socialmente o direito diferena e fomenta o esprito de tolerncia e a abertura ao pluralismo.

    as argumentaes no passam de hipteses: levantam cenrios de pensamento, mas nunca conseguem mostrar com objectividade que correspondem realidade.

    De acordo com a caracterizao sugerida neste quadro, a valorizao positiva da argu-mentao remete, sobretudo, para a sua importncia do ponto de vista pessoal e de cida-dania. pois, de uma perspectiva prtica, poltica e sociolgica que ela considerada. Nela a racionalidade est essencialmente ligada noo de justia, adquirindo o argu-mentar um valor scio-simblico que a liga a valores democrticos como o pluralismo, a no-violncia, a liberdade e o direito s opinies. Reconhece-se, por outro lado, que a comunicao persuasiva no um pecado, mas uma condio, e at um imperativo.

    No entanto, e para isso remetem os motivos da sua desvalorizao, a viso da argu-mentao como arte prtica contrasta com exigncias tericas como a objectividade, a verdade, a eficcia e a certeza, as quais, por sua vez, erigem em autoridade o conheci-mento dito cientfico. Neste sentido, elas fazem eco da oposio perelmaniana entre a argumentao e a demonstrao, mas, ao contrrio de Perelman (essencialmente preocu-pado com a dimenso prtica do pensamento), conotam a primeira como parente pobre da segunda. Esta subsuno do argumentativo a critrios epistemolgicos , assim nos parece, sintoma da permanncia de uma certa nostalgia do absoluto e da persistncia do par absoluto/relativo como organizador dos nossos esquemas mentais.

    A nosso ver, esta oposio pode alterar-se caso no pensemos o absoluto e o relativo como critrios epistemolgicos mas, antes, como plos de exigncia humana que derivam das nfases que, na inevitvel dialctica dos planos formal e pragmtico que atravessam

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    a vida dos homens, tendem a colocar a tnica na orgnica das estruturas ou, pelo contr-rio, acentuar a dimenso do uso e da prtica. No primeiro caso, tendem a idealizar-se os funcionamentos e a constitu-los como fonte de normatividade ela prpria no sujeita a questionamento e, portanto, como autoridade18. No segundo, tende a desenvolver-se uma racionalidade comparativa que no se apoia numa lgica binria, regida pelo forma-lismo dos princpios da contradio e do terceiro excludo, mas por critrios de gradao cujos limites permanecem indefinidos mas, nem por isso, insusceptveis de tematizao ou ausentes na nossa vida prtica. Em ambos esto sempre em jogo manobras de nucle-arizao e de marginalizao que fazem parte da organizao do poder e da presena da autoridade que decorre da sociabilidade da linguagem, ainda que, como notou Hariman, a sociabilidade tenda a ser uma caracterstica contestada na nossa tradio intelectual. Somos pensadores sociais e suprimimos este facto (1999: 41).

    Atendendo a que a forma como os actores sociais encaram a argumentao e o argu-mentar se reflecte nas suas prticas argumentativas, esperamos com o percurso aqui apre-sentado ter contribudo para o debate e a reflexo sobre o entendimento do que sejam as competncias argumentativas artes de reclassificao? , os aspectos que devem ser considerados como nucleares numa didctica da argumentao (a comear pela trans-formao da noo de argumentao e da viso do argumentar que cada um espontane-amente tem) e sobre as caractersticas daquilo que poderamos designar como literacia retrico-argumentativa, essencial para esta arte prtica em que o argumentar consiste.

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    18 Nota Bourdieu que a formalizao produz, inseparavelmente, a iluso da sistematicidade e, atravs dela e do corte entre a linguagem especializada e a linguagem comum que opera, a iluso da autonomia do sistema (1982: 160).

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