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COMBATENDO O RACISMO: Brasil, África do Sul e Estados Unidos * Antonio Sérgio Alfredo Guimarães RBCS Vol. 14 n o 39 fevereiro/99 Como superar o racismo nas sociedades atu- ais, quando já não se reconhece facilmente um racista? Como enfrentar hoje, pelo menos no Brasil e nos Estados Unidos, um problema que é generi- camente desqualificado como exagero ou manipu- lação política, e que muitas vezes aparece realmen- te assim envolto? Que pontos mínimos uma agenda anti-racista deve contemplar hoje em dia? No texto que segue, faço um esforço para identificar minimamente o que podemos chamar hoje de racismo, tomando como referência empíri- ca o debate político e intelectual corrente na África do Sul, no Brasil e nos Estados Unidos. Do ponto de vista estritamente acadêmico, o texto tem ainda um caráter provisório, posto que, apesar de sugerir novos caminhos teóricos, não aprofunda a discus- são mais conceitual nem discute sistematicamente a literatura sociológica e antropológica sobre o estudo comparado das relações raciais nestes paí- ses, ficando restrito à intersecção entre os embates político e científico. Situa-se, assim, naquele espa- ço intermediário onde as idéias ganham forma mas ainda pedem por crítica para se cristalizar. O trabalho compõe-se de nove notas. A pri- meira nota demarca um terreno axiológico comum ao anti-racismo, independente da posição dos deba- tedores na dicotomia racialismo/não-racialismo. 1 A segunda esclarece o significado do termo racismo. A terceira nota procura situar sociologicamente o ra- cismo nos três países tomados como referência, fazendo um esforço para determinar a relação entre a definição dos direitos da cidadania e a definição da nacionalidade. A quarta nota explora os tipos de mecanismos que produzem e reproduzem desigual- dades sociais relevantes na distribuição de recursos e honras sociais. A quinta define melhor a especifici- dade do racismo no Brasil e a sexta, a sétima e a oitava notas discutem o movimento anti-racista hoje em dia no Brasil, Estados Unidos e África do Sul, respectivamente. 1ª nota preliminar: sobre os valores Há uma visão de sociedade e um ideal de Esta- do democráticos que parecem comuns a todos os in- divíduos e instituições que lutam contra o racismo. Tra- * Este texto, preparado para a Southern Education Foun- dation, projeto Comparative Human Relations Initiative, coordenado por Lynn Huntley Walker, integrou a série de seminários Superando o Racismo: África do Sul, Brasil e Estados Unidos no Século XXI.

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COMBATENDO ORACISMO: Brasil, África do Sule Estados Unidos*

Antonio Sérgio Alfredo Guimarães

RBCS Vol. 14 no 39 fevereiro/99

Como superar o racismo nas sociedades atu-ais, quando já não se reconhece facilmente umracista? Como enfrentar hoje, pelo menos no Brasile nos Estados Unidos, um problema que é generi-camente desqualificado como exagero ou manipu-lação política, e que muitas vezes aparece realmen-te assim envolto? Que pontos mínimos uma agendaanti-racista deve contemplar hoje em dia?

No texto que segue, faço um esforço paraidentificar minimamente o que podemos chamarhoje de racismo, tomando como referência empíri-ca o debate político e intelectual corrente na Áfricado Sul, no Brasil e nos Estados Unidos. Do ponto devista estritamente acadêmico, o texto tem ainda umcaráter provisório, posto que, apesar de sugerirnovos caminhos teóricos, não aprofunda a discus-são mais conceitual nem discute sistematicamentea literatura sociológica e antropológica sobre oestudo comparado das relações raciais nestes paí-ses, ficando restrito à intersecção entre os embates

político e científico. Situa-se, assim, naquele espa-ço intermediário onde as idéias ganham forma masainda pedem por crítica para se cristalizar.

O trabalho compõe-se de nove notas. A pri-meira nota demarca um terreno axiológico comumao anti-racismo, independente da posição dos deba-tedores na dicotomia racialismo/não-racialismo.1 Asegunda esclarece o significado do termo racismo. Aterceira nota procura situar sociologicamente o ra-cismo nos três países tomados como referência,fazendo um esforço para determinar a relação entrea definição dos direitos da cidadania e a definição danacionalidade. A quarta nota explora os tipos demecanismos que produzem e reproduzem desigual-dades sociais relevantes na distribuição de recursose honras sociais. A quinta define melhor a especifici-dade do racismo no Brasil e a sexta, a sétima e aoitava notas discutem o movimento anti-racista hojeem dia no Brasil, Estados Unidos e África do Sul,respectivamente.

1ª nota preliminar: sobre os valoresHá uma visão de sociedade e um ideal de Esta-

do democráticos que parecem comuns a todos os in-divíduos e instituições que lutam contra o racismo. Tra-

* Este texto, preparado para a Southern Education Foun-dation, projeto Comparative Human Relations Initiative,coordenado por Lynn Huntley Walker, integrou a sériede seminários Superando o Racismo: África do Sul,Brasil e Estados Unidos no Século XXI.

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ta-se da visão de um Estado baseado na igualdade dosindivíduos perante a lei e na garantia das liberdadesindividuais e de uma sociedade que garanta a igualda-de de oportunidades a todos os indivíduos.

Nas modernas democracias liberais, tal garan-tia é dada, em geral, independentemente de qual-quer característica coletiva, grupal ou atribuída,mas, em casos especiais, o Estado pode erigirpolíticas corretivas para garantir oportunidadesiguais aos indivíduos que apresentem certas caracte-rísticas grupais estigmatizadas. Segundo o credo daigualdade de oportunidades e universalidade dosdireitos humanos, qualquer diferença entre os indi-víduos só é legítima quando decorrente de caracte-rísticas individuais adquiridas. Além do mais, fazparte deste ideal democrático que, independente dodesempenho individual, todos os indivíduos sejamportadores de direitos inalienáveis à vida em socie-dade, num certo patamar de dignidade.

Sem dúvida alguma, tais ideais são genéricoso bastante para abrigar diversas correntes de pen-samento político, tanto aquelas que enfatizam asliberdades individuais, os direitos subjetivos e aspolíticas universalistas, quanto as que enfatizam asigualdades, os direitos coletivos e as políticas raci-alizadas.

Começar por lembrar tais ideais tem a vanta-gem de nos pôr, desde o início, sob um patamarcomum de crenças e valores, a partir do qualpodemos discutir e negociar nossos diferentes en-tendimentos e propostas sobre uma questão cru-cial: como combater o racismo ainda presente emnossas sociedades?

2ª nota preliminar: definindo melhoro racismo

Na história do Ocidente, a desigualdade entreos seres humanos tem-se originado de diferentesformas: pela diferença de sexo, pela conquista eocupação de terras estrangeiras, pela escravizaçãoou colonização de outros povos e, mais recente-mente, pela migração de indivíduos de outrasnacionalidades para Estados capitalistas mais ricos,na condição de trabalhadores.

A diferença entre os sexos fundou talvez aprimeira e a mais duradoura justificativa de desi-

gualdade, dando lugar à expressão de ethos sexuaisdiferentes, na maior parte das vezes em relaçãoassimétrica de poder: o masculino e o feminino. Aconquista gerou, por sua vez, a justificativa maisgeneralizada da desigualdade entre os povos (opoder faz o direito — Might is right), que funda-menta até hoje, ainda que parcialmente, os Estadose a sua soberania.

Foi a adoção de uma visão equivocada dabiologia humana, expressa pelo conceito de “raça”,que estabeleceu uma justificativa para a subordina-ção permanente de outros indivíduos e povos,temporariamente sujeitos pelas armas, pela con-quista, pela destituição material e cultural, ou seja,pela pobreza. A transformação da desigualdadetemporária — cultural, social e política — numadesigualdade permanente, biológica, é um produtoda ideologia cientificista do século XIX. No entanto,depois de a justificativa racial ter perdido legitimi-dade científica, a suposta inferioridade cultural —em termos materiais e espirituais — de gruposhumanos em situação de subordinação2 passou aser a justificativa padrão do tratamento desigual.

O racismo, portanto, origina-se da elaboraçãoe da expansão de uma doutrina que justificava adesigualdade entre os seres humanos (seja emsituação de cativeiro ou de conquista) não pela forçaou pelo poder dos conquistadores (uma justificativapolítica que acompanhara todas as conquistas ante-riores), mas pela desigualdade imanente entre asraças humanas (a inferioridade intelectual, moral,cultural e psíquica dos conquistados ou escraviza-dos).3 Esta doutrina justificava pelas diferençasraciais a desigualdade de posição social e de trata-mento, a separação espacial e a desigualdade dedireitos entre colonizadores e colonizados, entreconquistadores e conquistados, entre senhores eescravos e, mais tarde, entre os descendentes destesgrupos incorporados num mesmo Estado nacional.Trata-se da doutrina racista que se expressou nabiologia e no direito.

Hoje, todavia, tanto no Brasil quanto na Áfricado Sul e nos Estados Unidos, esta doutrina já nãotem legitimidade social ou vigência legal: a igualda-de de direitos entre todos os cidadãos, independen-te de cor e raça, é formalmente reconhecida egarantida nesses países, tanto constitucionalmente

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quanto por leis ordinárias. Chegamos a este pata-mar por caminhos diversos, mediante histórias elutas muito diferentes, que deixaram as suas marcase imprimiram um certo sentido particular ao quechamamos hoje de racismo. A ideologia racista jánão existe mais como justificativa legal e legítima.O que, então, significa hoje racismo em nossassociedades?

Em primeiro lugar, qualquer explicação oujustificativa para diferenças, preferências, privilégi-os e desigualdades entre seres humanos baseada naidéia de raça pode, em princípio, ser consideradaracista, posto que não há base científica que possasustentar que o que chamamos de “raças” tenhamqualquer realidade metasocial ou física. Portanto,atribuir desigualdades sociais, culturais, psíquicas epolíticas à “raça” significa legitimar diferenças soci-ais a partir de diferenças biológicas.

Mas, em segundo lugar, a noção de superio-ridade ou inferioridade cultural de povos, etniasou grupos, que substituiu a noção de raça nosdiscursos oficiosos, pode também justificar desi-gualdades e diferenças que se engendram na de-sigualdade de oportunidades e de tratamento, nadesigualdade política e na interiorização do senti-mento de inferioridade por estas populações. A“cultura” pode tornar-se, assim, uma noção tãofixa e metasocial quanto a “raça”. Trata-se, nestecaso, da manipulação de um carisma racial sob ajustificativa culturalista.4

Racismo pode, ademais, referir-se não apenasa doutrinas, mas a atitudes (tratar diferencialmenteas pessoas de diferentes raças e culturas, ou seja,discriminar) e a preferências (hierarquizar gostos evalores estéticos de acordo com a idéia de raça oude cultura, de modo a inferiorizar sistematicamentecaracterísticas fenotípicas raciais ou característicasculturais). Encarado como doutrina, atitude oupreferência, o racismo pode ser combatido, dentrode certos limites, pelo desmascaramento e a desle-gitimação da idéia de raça. Neste sentido, o anti-racismo no Ocidente passou a fazer do anti-racialis-mo a pedra de toque da agenda anti-racista. Estetipo de estratégia, entretanto, é pouco eficientepara combater o racismo baseado na noção dehierarquia cultural e de cultura enquanto herançaimutável, ou seja, o estigma racial ou cultural.

Em terceiro lugar, pode-se precisar melhor oracismo, tal como se manifesta, por suas conseqüên-cias e dizer que a manutenção e reprodução dedesigualdades sociais e econômicas, por meio dosmais diferentes mecanismos, entre grupos de pesso-as identificadas como de diferentes raças, etnias oucores constituem racismo desde que operem meca-nismos de discriminação que possam ser retraçadosà idéia de raça. Tal refinamento torna-se necessáriotoda vez que as discriminações que atingem umdeterminado grupo humano, seja ou não uma etnia,não são explicitamente racialistas (usam, por exem-plo, a idéia de cor ou de cultura), mas motivadas oujustificadas por critérios a-históricos e a-sociais, taiscomo a idéia de raça, de modo que possam ser ouretraçados ou reduzidos a esta idéia. Neste sentido,o racismo pode prescindir da noção de raça, trans-mudando-se perfeitamente para operar através detropos desta noção. Neste caso, mesmo deixando deser uma doutrina, pode continuar informando atitu-des e preferências.5

Em quarto lugar, podemos ainda definir oracismo não com referência a atitudes, ações epreferências individuais, mas com relação a umdeterminado sistema social (ver, por exemplo,Blauner, 1972). Isto é possível quando gruposhumanos considerados raças ou identificados portraços raciais ou racializados (como a cor, porexemplo) são sistematicamente postos em situaçãodesvantajosa do ponto de vista econômico, políti-co, social e cultural. Neste caso, as desigualdadessociais são ditas raciais quando se encontrem e secomprovem mecanismos causais operando ao ní-vel individual e social que possam ser retraçadosou reduzidos à idéia de raça. Neste sentido, racismonão é mais uma ideologia que justifica desigualda-des, mas um sistema que reproduz tais desigualda-des. A justificativa, neste caso, pode ser cultural(inferioridade ou inadequação) ou de outro tipo. Oimportante é que grupos que se definem e sãodefinidos por meio de atributos raciais (como a cor)ocupam de modo permanente posições de poder eposições sociais assimétricas como resultado daoperação de mecanismos de discriminação. Paraque tal configuração seja correta é necessário,portanto, demonstrar que os indivíduos de raças oucores diferentes não têm as mesmas oportunidades

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de vida e não competem em pé de igualdade pelosrecursos sociais, culturais e econômicos.

Que mecanismos são estes? Bom, em primei-ro lugar, há os mecanismos que podemos chamarde psicológicos ou individuais, que consistem nacriação e manutenção de um grande percentual depessoas com baixa auto-estima em grupos queapresentem algumas características somáticas ouculturais. Tal fenômeno é possível pela sistemáticainferiorização destas características somáticas ouculturais e pela socialização destes valores empessoas pertencentes a estes grupos. Isto ocorretanto através da escolarização formal, quanto atra-vés das redes informais de informação de vizinhan-ças em pequenas comunidades.6 Em segundo lu-gar, há os mecanismos que atuam na vida cotidianaatravés da exclusão ou da discriminação direta (deindivíduos em relação a outros indivíduos), aindaque discreta, polida ou amável, das pessoas queapresentem tais características somáticas ou cultu-rais. E, em terceiro lugar, temos, finalmente, meca-nismos de exclusão e discriminação de pessoascom as características somáticas ou culturais dadasque atuam de modo quase que impessoal, median-te atributos burocratizados pelos mercados, comoos preços das mercadorias e dos serviços, as quali-ficações formais ou tácitas exigidas, as qualidadespessoais, os diplomas, a aparência etc.

Nas sociedades modernas atuais, o racismo,como sistema, manifesta-se e exterioriza-se apenaspor meio de duas situações: a pobreza e a não-cidadania (neste último caso, entretanto, só seenquadram hoje os imigrantes e seus descenden-tes). Tais situações podem ser constituídas e geren-ciadas por estas quatro formas gerais — os direitos,a auto-estima, a discriminação e os mecanismosformais e burocráticos —, que são os meios pelosquais são geradas e se reproduzem a situação denão-cidadania, a posição social de inferioridade e asituação econômica de subordinação.

3ª nota: o sistema racista na África doSul, no Brasil e nos Estados Unidos7

Tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos ena África do Sul, o racismo, como ideologia, foiuma forma transitória de justificativa da ordem

social da escravidão ou colonização, primeiro, edepois do colonato, servidão ou parceria. Ou seja,a subordinação e a sujeição política e econômicados negros foram, primeiro, justificadas pela con-quista e pela força dos senhores, e apenas maistarde pela inferioridade biológica e/ou culturaldos sujeitados, antes de passarem a ser justifica-das pela pobreza e pelas características indivi-duais e grupais dos sujeitados. Tem razão, nesteaspecto, Michel Foucault, mais que Louis Du-mont, quando vê o racismo como uma varianteda doutrina da guerra das raças, por sua vezherdeira da doutrina do direito como força, e nãocomo uma variante do individualismo igualitário(Dumont, 1966).

Os Estados Unidos foram, entretanto, dentreos três, o primeiro país a constituir-se como umEstado de direito e a justificar a desigualdade dosindivíduos apenas a partir de suas característicasimanentes (força, ousadia, ambição, perseverançaetc.), que emergem em situação de competição emmercados livres. Tal fato, junto com a resistência dapopulação branca em aceitar a completa igualdadede direitos dos ex-escravos, acabou por facilitar aaceitação de uma doutrina racista para justificar alimitação dos direitos dos negros. Os Estados Uni-dos abrigaram pois, por um tempo, uma dualidadede ordem jurídica num mesmo Estado de direito. Omodo completo, ainda quando dual, como sedesenvolveu tal Estado de direito foi, talvez, oresponsável pelo fato de que nos Estados Unidos oracismo, como sistema jurídico, pudesse ser facil-mente desmantelado e revertido, no âmbito dopróprio sistema jurídico, sem necessidade de umagrande transformação do sistema político, ou umareconstrução da nacionalidade. Quando a ideolo-gia do racismo deixou de ser legítima, deixoutambém, em pouco tempo, de ser legal, e o racismocomo sistema passou a ser atacado também porpolíticas públicas de correção.

Na África do Sul, os conquistadores e coloni-zadores europeus acabaram por construir um Esta-do plurinacional, isolando os povos nativos danação sul-africana e não reconhecendo os seusdireitos à cidadania. Ao mesmo tempo, o Estadonacional sul-africano instituiu subcidadanias paraincorporar de modo desigual as minorias étnicas

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(coloured e indians). O racismo foi, pois, erigidoem doutrina de Estado, regulando por completo avida econômica e política e as relações sociais. Adestruição do apartheid teve de significar, por istomesmo, um processo de reconstrução de um Esta-do propriamente nacional, onde o princípio não-racialista dos direitos humanos pudesse ser, pelaprimeira vez, instituído.

No Brasil, o racismo desenvolveu-se diferen-temente. Estará presente nas práticas sociais e nosdiscursos — um racismo de atitudes8 —, mas semser reconhecido pelo sistema jurídico e sendo nega-do pelo discurso não-racialista da nacionalidade. OEstado liberal de direito que se implanta em 1822,com a Independência, garante, a um só tempo, asliberdades individuais dos senhores e das classesdominantes e a continuidade da escravidão. Depoisda abolição, em 1888, tal dualidade de tratamentodiante da lei estende-se ao sistema de clientelismo eao colonato, que substituiu a escravidão. Ou seja, asliberdades e os direitos individuais constitucional-mente outorgados não são garantidos na práticasocial; as práticas de discriminação e de desigualda-de de tratamento continuam sendo a regra dasrelações sociais. Mas, por outro lado, as elitesbrasileiras tiveram problemas em aceitar integral-mente o racismo como doutrina e acabaram porrejeitá-lo por completo, transformando o não-racia-lismo e a miscigenação cultural e biológica emideais nacionais, que procuram integrar todos osindivíduos no Estado-nação.9 Em vista disso, osbrancos, no Brasil, foram definidos da maneira amais inclusiva possível, de modo a abarcar todos osmestiços mais próximos das características somáti-cas européias, e mesmo, no extremo, a incluir todosque usufruem dos privilégios da cidadania.

Quais os mecanismos e instituições sociaisque permitem o funcionamento do racismo comosistema não reconhecido juridicamente e apenasapoiado no racismo de atitudes?

Primeiro, alterou-se a forma de legitimaçãosocial do discurso sobre as diferenças. As explica-ções das desigualdades sociais pelas raças foramsubstituídas por explicações que usavam o concei-to de cultura, persistindo, portanto, a noção dasuperioridade da cultura e da civilização brancas oueuropéias sobre a cultura e civilização negras ou

africanas, ditas publicamente como “incultas” e“incivilizadas”.

Segundo, a noção de cor substituiu oficial-mente as raças. Através do contínuo de cor, a maiorparte da população com alguma ascendência afri-cana continuou a não se classificar como negra (oupreta), mas sim como branca ou mestiça, para oque emprega uma grande série de denominações,em que prevalece a cor “morena”, designação quese dava originalmente ao branco de cabelos escu-ros e tez mais escura.10 Esta forma de se classificarracialmente mantém intacta a estereotipia negativados negros, mas elimina desta categoria a maiorparte dos mestiços que, justamente por isso, conti-nuam a ter a auto-estima perseguida por estesestereótipos. No mercado de trabalho, principal-mente, estes estereótipos raciais se misturam aosestereótipos de classe para gerar o mecanismo deseleção conhecido como “boa aparência” (ver Da-masceno, 1998), responsável pela reprodução deboa parte das desigualdades raciais de ocupação erenda.

Terceiro, as relações raciais estão amparadasnum sistema mais amplo de hierarquização social ede desigualdade de tratamento perante a lei quecontamina todas as relações sociais. Se a segrega-ção informal dos negros foi a norma no Brasil atépouco tempo,11 pode-se dizer, sem risco de errar,que o tratamento desigual dos indivíduos perante alei é ainda hoje prática corrente e também informalno Brasil. O mesmo fenômeno de estereotipianegativa dos traços somáticos negros fundamenta omecanismo de “suspeição policial” que torna osnegros as vítimas preferenciais do arbítrio dospoliciais e dos guardas de segurança nas ruas, nostransportes coletivos, em lojas de departamento,bancos e supermercados (Guimarães, 1998).

Quarto, o não-racialismo, parte integrante daconstrução da moderna nacionalidade brasileira, foiengenhoso e equivocadamente equacionado aoanti-racismo. De modo que, no Brasil, negar aexistência das raças significa negar o racismo comosistema. Ao contrário, reconhecer a idéia de raça epromover qualquer ação anti-racista baseada nestaidéia, mesmo se o autor é negro, é interpretadocomo racismo. Ao contrário, et pour cause, muitasmanifestações de discriminação pela cor são pe-

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remptoriamente negadas como tendo qualquer mo-tivação racial, posto que as raças não existem, masapenas as cores, tidas como características objetivas,concretas, independentes da idéia de raça; taismanifestações são mais prontamente reconhecidascomo tendo uma motivação de classe. Deste modo,o caráter ilegítimo da segregação ou discriminação éretirado. As classes no Brasil, ao contrário dosEstados Unidos, são consideradas bases legítimaspara a desigualdade de tratamento e de oportunida-des entre as pessoas.

Quinto, a situação de pobreza e mesmo deindigência em que se encontra grande parte dapopulação brasileira constitui-se, em si mesma,num mecanismo de inferiorização individual econduz a formas de dependência e subordinaçãopessoal que, por si só, seriam suficientes paraexplicar certas condutas discriminatórias. Posto quetais condutas podem ser observadas em relação anão-negros, tal fato ajuda ainda mais a dissimular oracismo, do ponto de vista das ações individuais. Omesmo argumento pode também ser utilizado paraexplicar o caráter de classe da inação dos governose das instituições com respeito às desigualdadesraciais (ver Hasenbalg, 1996; Heringer, 1996).

4ª nota: racismo como opressãosocial: os tipos de carisma e estigma

Robert Blauner (1972, p. 19) observou em1972 que “a análise racial pelos cientistas sociaistem sido moldada pelo pressuposto implícito deque a preocupação com a cor nas sociedadeshumanas é, em última instância, irracional ou nãoracional”. Tal pressuposto, continua Blauner, teriasido o responsável pelo subdesenvolvimento dateoria racial, tal como ocorrera anteriormente coma teoria da religião. Blauner propõe ainda que aracionalidade das “raças” está dada pelo conceitogeral de “opressão social”,12 que subsume a racio-nalidade das diversas formas — gênero, raça, cor,etnia, classe, casta — pelas quais os grupos sociaissão sistematicamente dominados, sujeitados, ex-plorados, abusados ou desprezados.

Nobert Elias (1998), alguns anos antes (1964),quando estudava a comunidade inglesa de WastaParva, fez as mesmas observações e, na mesma

veia weberiana, propôs que o fenômeno racialfosse estudado sobre a rubrica geral de “carismagrupal”. Seguindo estas sugestões, esboço abaixoos tipos de carismas mobilizáveis na África do Sul,no Brasil e nos Estados Unidos que podem nosajudar a compreender a situação do racismo hojeem dia.13

Como tratei acima dos mecanismos de subor-dinação racial que operam ao nível individual,redefino agora os termos do ponto de vista do tipode carisma ou estigma de grupo que afeta commaior força a população negra nos três países. Aeste respeito, quatro tipos de carisma ou estigmapodem ser diferenciados: raça, cor, etnia e classe.

“Raça” é uma forma de carisma ou estigmagrupal baseada na crença de uma herança genéticaque define o valor moral, intelectual e psicológicode um indivíduo ou de um grupo. Tal tipo decarisma parece dominante na situação social dosnegros americanos e sul-africanos ainda hoje emdia, sendo uma “categoria nativa” de uso amplo egeneralizado. Na verdade, é lugar-comum que nãose pode viver nos Estados Unidos sem pertencer auma “raça”.

“Cor” é um tipo de carisma baseado naaparência física de um indivíduo, que mede geral-mente a sua distância ou proximidade dos gruposraciais. Não se trata, todavia, de apenas uma escalade valores estéticos; ela é também uma escala devalor intelectual e moral. Nos Estados Unidos e naÁfrica do Sul opera mais ao nível individual que aonível grupal, principalmente entre os negros ame-ricanos. No Brasil, opera ao nível grupal (oficial-mente, o censo brasileiro coleta a cor das pessoaspara formar “grupos de cor”) e é a forma de carismae estigma dominante tanto para marcar as fronteirasdos grupos, quanto no interior destes grupos. Ocarisma da “raça” no Brasil raramente é evocado demodo direto pelos brancos, que preferem utilizar acor ou a etnia, sendo evocado apenas pelos negros.

“Etnia” é um tipo de carisma ou estigmabaseado na identidade cultural, regional ou nacio-nal de grupos. Parece predominante na África doSul, dada a herança do apartheid, que pretendeuencobrir suas motivações raciais pelas subdivisõesétnicas e nacionais dos negros. No Brasil, as etniasnão são em geral importantes (no que se refere à

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situação dos negros) e aparecem de uma formamodificada através de identidades regionais estig-matizadas, tais como “baiano”, “paraíba” ou “nor-destino”, e carismáticas como “sulista” ou “paulis-ta”. Nos Estados Unidos, as etnias são importantestanto no interior da população negra (os afro-latinos, por exemplo) como entre os não-negros(asiáticos e latinos).

“Classe”, tal como a emprego aqui, não é umfenômeno de ordem econômica, tal como concei-tuado por Weber, mas um carisma baseado naposse e no domínio de bens materiais e culturais.Neste sentido, “classe” define uma qualidade morale intelectual dos indivíduos e grupos. Ständ talvezfosse o conceito mais adequado para designar oagrupamento formado por este carisma, mas en-contra-se totalmente em desuso na prática socialcotidiana, substituído pelo termo “classe”, comonas locuções “uma pessoa de classe“ ou “umproduto de classe”. O carisma de classe no Brasil épredominante sobre todos os outros, posto que aeles estão associadas atitudes e condutas discrimi-natórias amplamente aceitas e legitimadas social-mente. Ademais, dadas as grandes desigualdadessociais entre brancos e não-brancos, é possíveldiscriminar abertamente os negros, mulatos ounordestinos sem se recorrer explicitamente à evo-cação dos estigmas de raça, cor ou etnia. NosEstados Unidos, onde as liberdades civis estão maisfundamentadas nas práticas sociais, discriminaçõesde classe só podem operar por meio de mecanis-mos de mercado, como o preço. Mas este não é ocaso do Brasil, onde existem certos privilégios deconduta e de sociabilidade associados à situação declasse. Por isso, nos Estados Unidos, ao contráriodo Brasil, é óbvio para alguém que foi discriminadosocialmente relacionar a discriminação ao estigmada raça, da cor ou da etnia.

5ª nota: o racismo brasileiro: suaespecificidade

O racismo brasileiro operou quase sempre,depois da escravidão, mediante mecanismos deempobrecimento, ou seja, de destituição cultural eeconômica dos negros, e mecanismos de abusoverbal, utilizando-se principalmente do carisma de

classe e de cor. Em geral, o racismo brasileiro,quando publicamente expresso, o é por meio deum discurso sobre a inferioridade cultural dospovos africanos e o baixo nível cultural das suastradições e de seus descendentes. Grosso modo, talracismo atravessou duas grandes fases: a da discri-minação racial aberta, mas informal e secundadapela discriminação de classe e de sexo, que geravauma segregação de fato dos espaços públicos eprivados (praças e ruas, clubes sociais, bares erestaurantes etc.);14 e a fase atual, quando, com adiscriminação e a segregação raciais sob fogo,apenas os mecanismos estritos de mercado (discri-minação de indivíduos e não de grupos) ou psico-lógicos de inferiorização de características indivi-duais (ou autodiscriminação) permitem a reprodu-ção das desigualdades raciais.

Assim, o grande problema para o combate aoracismo no Brasil consiste na eminência de suainvisibilidade, posto que é reiteradamente negadoe confundido com formas de discriminação declasse. Como, então, o movimento negro tem sidocapaz, historicamente, de tornar o racismo umproblema, ou seja, como o movimento negro temconseguido tornar visível o racismo no Brasil?

6ª nota: o movimento social dosnegros no Brasil — o anti-racismo

A mobilização coletiva dos negros brasileirosneste século começa com a Frente Negra15 dosanos 30, ativa primeiramente em São Paulo, quetem como alvo principal a luta contra a segregaçãoespacial e social dos negros, que ocorre sistemati-camente através da discriminação racial informal eilegal, mas corriqueira.

A ideologia nacionalista de integração e assi-milação que impregnava a Frente Negra deixou defora desta mobilização a defesa das formas culturaisafricanas como o candomblé e a umbanda, vistascomo resquícios primitivos, apesar de cultuadaspela elite intelectual brasileira branca, principal-mente romancistas e antropólogos.

O Teatro Experimental do Negro, ativo prin-cipalmente no Rio de Janeiro nos anos 50, ampliaráa agenda anti-racista no Brasil, incluindo, de formaincisiva, a luta contra a introjeção do racismo pela

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população negra, principalmente a introjeção doideal de embranquecimento, dos valores estéticosbrancos e da detração da herança cultural africana.A ideologia predominante no movimento aindaserá, entretanto, nacionalista e integracionista. Aidéia de que somos uma só nação e um só povo écasada com a negação das raças como realidadefísica e com a busca de uma redefinição do Brasilem termos negro-mestiços. Guerreiro Ramos (1957,3a parte), principalmente, buscará negar a existên-cia de uma questão negra no Brasil, preferindo falarde uma questão popular — o negro, no Brasil, é opovo brasileiro — e de uma patologia do brancobrasileiro, que se acreditaria europeu e branco,quando não seria nem uma coisa nem outra.

Apenas nos anos 80, depois do período dita-torial, quando a idéia integracionista de “democra-cia racial” se transforma numa ideologia oficial e asinstituições negras são banidas, o movimento negropassa a assumir cada vez mais um discurso racialis-ta16 e multicultural. Os dois alvos anteriores — aluta contra a segregação e a discriminação racial ea luta pela recuperação da auto-estima negra — sãoagora reinterpretados pelo ideário multiculturalista,em que se revaloriza a herança africana, procuran-do desvencilhá-la das adaptações e dos sincretis-mos com a cultura nacional brasileira. Ademais,abre-se uma outra frente de luta, esta contra asdesigualdades raciais. Ou seja, além das discrimina-ções raciais cometidas individualmente, passa-se acombater também a estrutura injusta de distribuiçãode riquezas, prestígio e poder entre brancos enegros. Esta frente, descolada agora de qualquerideário monocultural e universalista — como osocialismo —, irá desembocar, mais tarde, na rei-vindicação de políticas corretivas, compensatóriasou afirmativas voltadas para a população negra.

Neste ponto, fazem-se necessárias duas ob-servações. Primeiro, apesar de ter ocorrido umamudança ideológica na mobilização dos negros, aagenda ou programa delineado nesta mobilizaçãome parece ideologicamente neutro, ou seja, podeconviver com as mais diferentes tendências ideoló-gicas do movimento negro. Tal agenda pode serresumida a um combate anti-racista em três frentes:(a) recuperação da auto-estima negra através damodificação de valores estéticos, da reapropriação

de valores culturais, da recuperação de seu papelna história nacional, do avivamento do orgulhoracial e cultural; (b) combate à discriminação racialatravés da universalização da garantia dos direitose das liberdades individuais, incluindo os negros,os mestiços e os pobres; (c) combate às desigualda-des raciais através de políticas públicas que estabe-leçam, no curto e médio prazos, um maior equilí-brio de riqueza, de prestígio social e de poder entrebrancos e negros.

A segunda observação refere-se às enormesdificuldades encontradas pelas instituições anti-ra-cistas para a mobilização coletiva dos negros. Taisdificuldades têm recebido dois tipos de diagnósti-cos: ou se trata o movimento negro como ummovimento de classe média, distante dos interessesdo povo (este mais interessado na sobrevivênciamaterial),17 ou se trata o movimento negro comopresa de equívoco ideológico (ver Hanchard, 1994).Não creio que nenhum destes diagnósticos sejacorreto per si, no sentido de explicar de modoexclusivo o relativo fracasso da mobilização negra.O que eu vejo como principal dificuldade para umamobilização coletiva dos negros no Brasil? Deixem-me explicar.

Dentre as formas de legitimação da subordi-nação de um povo ou de uma etnia, ou raça ouclasse social estão: (a) o poder militar demonstradopelos conquistadores; (b) o carisma racial, de corou étnico (justificativa biológica ou cultural); (c) odesempenho socioeconômico e cultural dos indiví-duos (a pobreza e sujeição como “prova” de inferi-oridade). Pois bem, as formas de resistência àsubordinação que conhecemos envolve sempre:(a) solidariedade familiar; (b) solidariedade étnica;(c) solidariedade racial; (d) solidariedade de classe.Todas elas sendo muito mais eficientes quandocapazes de conformar um arco de alianças emtorno de alguma ou mais de uma destas formas desolidariedade. Todas elas pressupondo algum tipode mobilização carismática que conduza à criaçãode identidades sociais.

Ora, no Brasil, a mobilização de classe temsido a forma mais bem-sucedida de mobilizaçãopopular justamente pelo fato de que certos privilé-gios de tratamento diante da lei e as desigualdadesde oportunidade de vida estão mais visível e

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verbalmente ligados às distinções de classe.18 Nãoé de estranhar, portanto, que boa parte dos negrosse sinta mais atraída por sindicatos e mesmo parti-dos políticos de esquerda do que por instituiçõesnegras (Andrews, 1998). Ademais, o carisma da cor,amplamente utilizado no Brasil para a monopoliza-ção de oportunidades de vida, opera sobre umabase largamente individual, fazendo com que até odesenvolvimento de solidariedades familiares se dêno sentido de apoiar mais fortemente os membrosmais claros da família (tal como ocorre comumentecom os de gênero masculino) do que o conjunto deseus membros. Deste modo, a solidariedade racialé bem mais difícil de se mobilizar no Brasil do quena África do Sul ou nos Estados Unidos, posto quese sobrepõe à família de modo não cumulativo; domesmo modo, a solidariedade étnica no Brasil,além de restrita a certos espaços de imigração, nãoestá tão amplamente correlacionada a raça, comona África do Sul.

Vê-se, portanto, pelo que acabo de dizer, queo carisma racial não pode ser utilizado pelo movi-mento negro brasileiro apenas para a mobilizaçãocoletiva, ou seja, que a construção da identidadenegra não serve primordialmente para a mobiliza-ção política, tal como ocorre nos Estados Unidos. Autilização do carisma racial no Brasil tem sido muitomais eficaz para reforçar a auto-estima negra — ouseja, no combate à introjeção de valores racistas —do que no enfrentamento político do sistema deracismo. A identidade racial no Brasil tem-se forma-do e continuará se formando contornando as soli-dariedades familiares ou comunitárias, não tendo,portanto, o efeito cumulativo natural que apresentanos Estados Unidos ou na África do Sul. Por isso, osnegros brasileiros encontram seus potenciais alia-dos seja no campo das classes, seja no plano da lutamais básica pelo respeito aos direitos inalienáveisdos seres humanos.

A mobilização do carisma racial passa, por-tanto, paradoxalmente, a ser peça fundamental doprocesso democrático brasileiro. E algo que sópode ser feito pelo movimento negro. Se a demo-cracia na Europa ou nos Estados Unidos se estabe-leceu pela negação das diferenças raciais e étnicasnão essenciais à cidadania, em países regidos poresta ideologia democrática e universalista, que

impede que tais diferenças sejam nomeadas, masonde subsistem privilégios materiais e culturaisassociados à raça, à cor ou à classe, o primeiropasso para uma democratização efetiva consistejustamente em nomear os fundamentos destes pri-vilégios: raça, cor, classe. Tal nomeação racialistatransforma estigmas em carismas. Longe de ter umfeito desagregador sobre a nacionalidade, comoquerem os que temem o racialismo, ou um efeitopolítico revolucionário, como querem os que te-mem o não-racialismo, a mobilização do carismade raça tem, no Brasil, um efeito muito maiscircunscrito, apesar de fundamental: possibilitar,contornando solidariedades familiares e comunitá-rias, a transformação de experiências individuais deinsubordinação em atos de resistência coletiva.

O fato, todavia, é que existem queixas gene-ralizadas, à esquerda e à direita, contra o isolamen-to político do movimento negro e contra sua restritacapacidade de mobilização das massas e de repre-sentação de seus interesses.

Mas, o isolamento do movimento negro, quan-do existe, tende a ser rompido, tanto para cimacomo para baixo, ou seja, tanto em relação aosnegros bem-sucedidos de classe média alta quantoem relação aos negros pobres, à medida que os seuspontos programáticos comecem a fazer sentido paraestes públicos. Este fato, eu acho, não depende daideologia política específica do movimento.

Têm razão aqueles que afirmam que o movi-mento negro não arregimenta porque o seu discur-so, para o povo negro, se parece com os discursosdos perdedores (Andrews, 1998; Twine, 1998; Bur-dick, 1998) ou dos aproveitadores. Ou seja, segun-do o pensamento popular, quando não se tem forçapara mudar uma situação, melhor ficar calado doque se expor à desmoralização através de queixasimpotentes (Twine, 1998). Tal situação, entretanto,está mudando nas duas pontas. Por um lado, omovimento tem-se apropriado cada vez mais dodiscurso liberal dos direitos universais, da igualda-de de oportunidades e igualdade de tratamento,abrindo uma importante frente de luta no plano dosdireitos e da implementação de uma ordem jurídicaigualitária. Este deslocamento discursivo tem pro-piciado a aproximação de setores negros de classemédia mais conservadores, que identificavam o

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movimento anterior com as ideários esquerdistas.Por outro lado, o movimento pelos direitos huma-nos, os serviços de SOS Racismo (Carneiro, 1998),as comunidades carnavalescas que mobilizam ocarisma negro, e até mesmo o movimento pente-costalista, segundo John Burdick (no prelo), têmampliado a experiência popular com o tratamentoigualitário em espaços públicos e aumentado osentimento de auto-estima de seus respectivospúblicos, o que torna plausível as denúncias dediscriminação e abuso racial para os ouvidos debrancos e negros igualmente.

Parece-me ser em outra frente, na frente deluta contra as desigualdades raciais — e não namobilização do carisma racial para construção daidentidade negra — que o movimento anti-racistaenfrenta as maiores dificuldades no Brasil. Isto pordois motivos. Primeiro, porque a sociedade brasi-leira não reconhece o racismo, seja de atitudes, sejade sistema, como responsável pelas desigualdadesraciais no país. Segundo, e como conseqüência,porque as próprias desigualdades raciais são vistascomo desigualdades sociais de classe, que afetam oconjunto da sociedade brasileira e são provocadaspelo imperialismo, o subdesenvolvimento econô-mico, a pobreza etc. Assim, seja para fazer face àdiscriminação e à estigmatização social, seja paratentar reverter as desigualdades raciais, o movi-mento negro enfrenta um senso comum fortementeestabelecido. Um senso comum criado e reproduzi-do por dois aspectos já apontados: o gradiente decor, que transforma todos os brasileiros, mesmo osde ascendência negra mais próxima, em partícipesativos do sistema de estigmatização dos mais escu-ros; e a prática generalizada da desigualdade detratamento ou, se preferirem, de personalização dotratamento.19

7ª nota: as dificuldades do anti-racismo nos Estados Unidos

Que dificuldades enfrenta hoje o anti-racismonos Estados Unidos? Sem querer fazer glosa gratui-ta, diria que a preocupação americana hoje é nãoser, no futuro, um outro Brasil, em termos raciais.

De fato, os ativistas anti-racistas nos EstadosUnidos, desde os anos 70, passaram a se defrontar

com os mesmos argumentos brandidos no Brasilpelos liberais, progressistas e nacionalistas, desdesempre: (a) que o racismo pertence ao passado deescravidão e segregação legal e que, portanto, nãoé algo importante no presente; (b) que a melhormaneira de enfrentar o racismo sobrevivente éignorá-lo, posto que se trata apenas de resquício deum passado que será inelutavelmente superadopelo modo de vida moderno; (c) que a melhortática para combater o racismo é apagar de nossasmentes a noção de “raça”, proscrevendo-a; (d) queo melhor que um negro tem a fazer é agir como umindivíduo, desembaraçando-se dos familiares ouvizinhos que ficaram para trás; (e) que qualquerpolítica pública, para ser anti-racista, precisa seruniversalista e color-blind.

Tais argumentos ganham força crescente nosEstados Unidos à medida que os anos passam e queas políticas de ação afirmativa, adotadas a partir dosanos 60, mostram-se impotentes para reverter asituação de desigualdade racial na educação, noemprego, na renda, na saúde, na moradia etc. Porum lado, tais políticas não-universalistas, quandoatingem mais de uma geração, passam a conflitarcom os ideais liberais e democráticos de igualdadede tratamento e de oportunidades. Por outro lado,o desempenho medíocre dos negros, em média,em testes escolares e a situação de violência urbanaa que estão submetidos nos guetos e nas inner-cities atestam que a população negra americanaestá submetida a formas de racismo muito maisindiretas e próximas das que atingem o negrobrasileiro. Não apenas o racismo de atitudes, gostose preferências, que quebra a auto-estima da popu-lação negra, mas o racismo sutil que se manifestaem distinções e discriminações baseadas em statussocial e em situações de classe.

Ao mesmo tempo, a preferência dada aosnegros mais claros e mais próximos fenotipica-mente ao ideal estético branco volta a se instalarmais abertamente e a ser também reincorporadapor parte crescente da população negra america-na, ameaçando reverter conquistas importantes domovimento negro dos anos 50, 60 e 70.20 Talsituação é tão mais perigosa quanto maior é adiversificação étnica da população negra america-na, principalmente a diversidade étnica e racial da

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população latina nos Estados Unidos e a popula-ção crescentemente importante de mestiços assu-midos. E isto não apenas porque estes migrantestrazem interiorizados escalas estéticas e axiomáti-cas diferentes das desenvolvidas nos anos 60, masporque têm, de fato, identidades raciais baseadasem cor e não em raça.

Ou seja, é como se, à medida que os EstadosUnidos rotinizam as conquistas dos direitos civisdas minorias, principalmente dos negros, ficassemmais próximo do sistema racista brasileiro: igualda-des formais; mecanismos de discriminação racialembutidos em escalas de preferência e de statusamplamente aceitas; rituais sociais de negação doracismo e de esquecimento do passado; reprodu-ção da desigualdade racial mediante mecanismosde mercado e tratamento social baseado em statuse prestígio.

Ademais, assistimos hoje nos Estados Unidosà emergência de formas intelectualmente refinadasde justificativas do racismo, tais como o chamado“racismo racional” (De Souza, 1995), além da acei-tação e veiculação corrente pela mídia do velhoargumento sobre a superioridade ou a inferioridadeda cultura de certos povos, etnias ou grupos.Assistimos também, nos Estados Unidos, à retoma-da crescente do conceito biológico de raça, nãoapenas pelas ciências médicas e biológicas, mastambém por psicólogos e jornalistas, que o utilizammesmo para explicar as desigualdades raciais, sen-do tal emprego amplamente aceito socialmente.21

Diante das convergências entre o racismobrasileiro e norte-americano, e diante da escaladadeste tipo de racismo que não se quer racista, queagenda comum se pode traçar para o combate doracismo em nossas sociedades?

As populações negras, no Brasil e nos Esta-dos Unidos, foram presas, no passado, a ummapa que pode ser desenhado assim: primeiro,apegaram-se ao movimento iluminista contempo-râneo, que negou validade à noção biológica deraça; segundo, aceitaram, todavia, ainda que inte-riormente, o estigma da inferioridade cultural desuas origens e as renegaram; terceiro — e aqui háduas vias alternativas —, no Brasil, tiveram osdireitos à cidadania aceitos e buscaram escapar,através da noção de cor, ao estigma racial, sendo,

entretanto, perseguidas por ele; e nos EstadosUnidos, lutaram pelos direitos à cidadania e osobtiveram; quarto, viram a vitória dos direitoscivis esvair-se das mãos, posto que as desigualda-des raciais continuaram a aumentar.

Do mesmo modo, o movimento social negrorecente, nos dois países, seguiram, grosso modo,uma mesma trilha: (a) mobilização do carismaracial para fazer face ao estigma racial e aosmecanismos de introjeção do racismo; (b) lutacontra a discriminação racial e contra as atitudesracistas; (c) luta pela reversão das desigualdadesraciais mediante políticas afirmativas.

As duas últimas décadas de luta contra asdesigualdades raciais nos Estados Unidos, por meiode políticas de ações afirmativas, mostram, todavia,os limites desta agenda. Mostram, principalmente,o entranhamento do racismo nas nossas socieda-des, tanto entre brancos quanto entre negros. Seriaesta dificuldade devida ao fato de serem os negrosminorias demográficas e políticas no Brasil e nosEstados Unidos? A África do Sul parece, a esterespeito, um caso totalmente diverso.

8ª nota: o que a África do Sul podeensinar

A África do Sul enfrenta hoje o desafio dereconstruir-se como nação e como Estado. Sendoum país africano, boa parte de seus habitantes tevesuas etnias fortemente consolidadas durante o apar-theid; ademais, uma parte considerável de suapopulação é de origem européia (afrikaner e ingle-sa, principalmente) e asiática (indiana, principal-mente). É, portanto, um país multirracial e multiétni-co. Se o povo sul-africano escolheu construir umEstado não-racialista, o que é coerente com ouniversalismo que deve presidir a lógica das rela-ções sociais e políticas numa democracia, resta-lhe,todavia, definir o que é uma nação africana moder-na. A África do Sul não pode, por um lado, definir-secomo um prolongamento da Europa, como o Brasile Estados Unidos fizeram, sob pena de alienar agrande maioria de sua população africana; mas nãopoderá também definir-se segundo as tradiçõesafricanas mais provincianas, ignorando mais de trêsséculos de contato e transformação cultural. O que é

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uma moderna nação africana? Como abrigar nestanação as diferentes etnias e diferentes tradiçõesculturais que compõem hoje a África do Sul?

Acredito que a África do Sul poderá nosindicar um modelo de nação multicultural, multi-étnica e não-racialista de fundamental importân-cia para a agenda anti-racista no Brasil e nosEstados Unidos. De um lado, no plano do Estadoe dos direitos, tem-se a tarefa gigantesca de rever-são das desigualdades raciais acumuladas histori-camente pelo colonialismo, pela escravidão, pelasegregação e pelo racismo; de outro lado, noplano da identidade social, tem-se a tarefa nãomenos colossal de construir uma identidade naci-onal que não desmereça ou anule as identidadesétnicas e que não traga embutida em si o racismode atitudes e de preferências que está entranhadonas identidades nacionais européias e americanas,do Norte e do Sul. Se conseguir isto, a África doSul estará não apenas preservando a auto-estima,o potencial criativo e a competitividade de suapopulação negra, mas também sinalizando o ca-minho para as novas nacionalidades do séculoXXI.

Conclusão: para uma agendaintegrada do anti-racismo

Para efeitos analíticos, pode-se pensar umaagenda anti-racista em três dimensões: o Estado, anação, os indivíduos.

No nível do Estado, a principal preocupaçãodeve ser a busca de garantias para as liberdades eos direitos individuais, independente de qualquerfiliação identitária ou carismática — sexo, raça,religião, etnia, cor, classe. A declaração deste prin-cípio, inclusive o não-racialismo, já consta nascartas constitucionais dos três países; trata-se, por-tanto, de obter garantias legais e práticas para o seucumprimento, principalmente no Brasil e na Áfricado Sul.

O princípio do não-racialismo do Estado,todavia, não significa que legislações especiais —com escopo temporal e alvos precisos — nãopossam ser desenhadas para atacar formas prevale-centes e duradouras de opressão social. Para isso énecessário que se leve em consideração as formas

efetivas de construção de privilégios22 nas trêssociedades. Nos Estados Unidos, a mobilização docarisma racial é tão efetiva que faz com que osbrancos, independente de sua classe, se beneficiemda opressão racial; no Brasil, o carisma da cor émobilizado conjuntamente com a classe, fazendocom que os brancos pobres estejam numa situaçãomais próxima dos negros e mestiços que dosbrancos de classe média; na África do Sul, o carismaracial está associado também ao carisma étnico.Estas diferentes constelações de opressão fazemcom que as políticas públicas corretivas ou de açãoafirmativa tenham de se diversificar: no Brasil, paradar conta das populações pobres de diversas cores;na África do Sul, para dar conta das etnias africanas.Ademais, no Brasil e na África do Sul há umacondição preliminar: garantir o respeito aos direitoshumanos de todos os cidadãos e o igual tratamentode todos perante as leis.

Ao nível da nação, parece-me que o grandedesafio do século XXI será a reconstrução dasnacionalidades em bases pluriculturais e pluriétni-cas. Os ideais de assimilação e de integração doEstado-nação terão de ser substituídos pela integra-ção ao nível do Estado (dos direitos) e por umapolítica de valorização das diversas etnias e heran-ças culturais dos grupos sociais que hoje compõema população de qualquer país. Ao invés da equaçãodo século XIX (um Estado= uma nação= uma raça=uma cultura), teremos: um Estado= várias herançasculturais= várias raças= várias etnias. Não que não sepossa desenvolver uma cultura cívica particular,mas tal cultura não pode significar a negação dasdiversas heranças e tradições culturais que formamuma nação (ver Appiah, 1998). Do mesmo modo, onão-racialismo a este nível não faz sentido. Se existediscriminação e preconceito raciais, a melhor ma-neira de combatê-los é dando oportunidade paraque estigmas se transformem em carismas. O com-bate ao racismo pressupõe tanto a garantia dasliberdades individuais e da igualdade de tratamento(ao nível do Estado) quanto a garantia da positivida-de das identidades grupais (ao nível dos indiví-duos), sendo neutro ao nível da nacionalidade.

Ao nível dos indivíduos e de suas identidadesgrupais, o anti-racismo deve visar aos estigmasraciais (de cor, raça e classe, no Brasil; de raça e

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cor, nos Estados Unidos; de raça e de etnia, naÁfrica do Sul). Isto significa interferir nas políticaseducacionais dos governos, mas também fortaleceras instituições que possam, pelo combate à discri-minação racial e de cor e pela revalorização ereinterpretação das heranças culturais, sustentar aauto-estima das populações negras.

Todos sabem, entretanto, que esta agendagenérica ou qualquer outra, para ter alguma viabi-lidade, precisa ser acordada e negociada em cadaEstado nacional, a partir de um amplo arco dealiança política. A força política do movimentonegro em cada país é, pois, uma preliminar univer-sal (mas ultrapassa o objeto destas notas).

NOTAS

1 “Racialismo” é usado por mim com o sentido de “crençana existência de raças humanas”, o que, em princípio,não constitui racismo, ou seja, não significa acreditar nainferioridade moral, intelectual ou cultural de algumaraça. Os significados do termo “racismo” desenvolvomais adiante no texto.

2 A situação de subordinação voluntária mais correntenos dias de hoje é aquela que se dá pela via daimigração ilegal para países mais desenvolvidos, àmargem dos direitos universais da cidadania.

3 Ver a este respeito Arendt (1951) e Foucault (1997).

4 “Carisma”e “estigma” serão usados neste texto com osentido sociológico que lhes foi emprestado por MaxWeber e definido posteriormente por Nobert Elias(1988), como “um pleito bem-sucedido de um grupo agraças e virtudes superiores, através de um dom eterno,em comparação a outros grupos, condenando-os efeti-vamente a qualidades adscritas coletivamente comoinferiores e como atributos eternos.”

5 É o que os europeus chamam de racismo sem raça. Ver,entre outros, Miles (1993) e Turguieff (1987).

6 Diz Nobert Elias: “[…] uma das muitas armas pelas quaiso grupo superior defende suas reivindicações carismá-ticas e mantém os estranhos e proscritos em seu lugar éo mexerico [gossip]” (Elias, 1998, p. 107).

7 Análises comparativas do sistema racial dos três paísesforam feitas recentemente por Anthony Marx (1998) eGeorge Fredrickson (1998). Ver também Michael Ban-ton (1967) e Pierre van der Berghe (1967). Análisescomparativas entre a África do Sul e o Brasil foram feitaspor Fernando Rosa Ribeiro (1993). As comparaçõesentre Estados Unidos e África do Sul são mais numero-sas, dentre as quais se sobressaem os estudos de GeorgeFredrikson (1981 e 1995).

8 Isso não significa que o racismo de atitudes não possaser legitimado por leis, como o foi nos Estados Unidose África do Sul.

9 Este é um tema bem estudado no Brasil. Tal dificuldadedas elites brasileiras foi atribuída à matriz culturalportuguesa e católica, à grande miscigenação e conse-qüente incorporação de mulatos às elites, dada a escas-sez demográfica, etc. Ver Freyre (1933) e Skidmore(1976), entre outros.

10 Hoje em dia, apenas entre 5% (censo) a 10% (pesquisasamostrais) da população brasileira se denomina negraou preta. John Burdick (1998) chama corretamente aatenção para o fato de que o percentual de negros quese definem como tal no Brasil é grande, apesar do modocomo é reportado pelos sociólogos. No meu caso, o“apenas” na frase acima significa tão-somente que umgrande número de pessoas que seriam classificadas poroutros, mais claros, como negros não se classificamassim, mas como “pardos”.

11 France Winddance Twine (1998) detecta, através deentrevistas, que numa pequena cidade do interior doRio de Janeiro, a prática de segregação dos negrosdurou até, praticamente, as discussões da AssembléiaConstituinte, em 1987, que criminalizou o racismo.

12 “Opressão social é um processo dinâmico pelo qual umsegmento da sociedade consegue poder e privilégioatravés do controle e exploração de outros grupos, quesão literalmente oprimidos, ou seja, sobrecarregados epuxados para os níveis mais baixos da ordem social.”(Blauner,1972, p. 22).

13 As sugestões de Elias não se chocam com o modo comoFrederick Barth (1969) ou Thomas Eriksen (1993) trata-ram a etnicidade ou mesmo como Everret Hughes(1994) a tratou em 1948. Entretanto, Elias apresenta avantagem de remeter a teorização de raças, etnias eoutras formas de criação de outsiders ao âmbito geral dasociologia weberiana. Ver também os esforços de Ban-ton (1987) e, mais recentemente, de Peter Wade (1997).

14 Tal segregação está bem documentada pela literaturaantropológica e sociológica, que, entretanto, em algunscasos, preferiu observar que alguns negros influentesfuravam tal segregação. Ver, entre outros, Pierson(1942), Azevedo (1955) e, recentemente, Twine (1998).

15 Informações e interpretações sobre a Frente NegraBrasileira encontram-se principalmente em Bastide eFernandes (1955) e Leite (1992). Ver também Bacelar(1996).

16 Racialista no sentido de evocar o carisma da raça negrae de visar à formação de uma identidade racial negra.

17 Ver, nesta tradição, entre outros, Costa Pinto (1953) eAndrews (1998).

18 Os estudos sobre as mobilizações operárias no Brasiltambém mostram que valores morais, como a dignida-de, têm maior importância que interesses materiais parao sucesso das mobilizações. Ver, a este respeito, Abra-mo (1990).

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19 “Personalização” é um termo que nos remete maisprontamente aos aspectos mais sociólogicos, não ape-nas jurídicos, da desigualdade de tratamento. Ver arespeito Da Matta (1990).

20 Ver, entre outros, Bell Hooks (1994).

21 O livro de Richard Herrnstein e Charles Murray, The Bellcurve, vendeu cerca de milhares de cópias e mereceumais de uma resenha elogiosa em jornais prestigiososnos Estados Unidos.

22 “Defino privilégio em termos de uma vantagem injusta,uma situação preferencial, ou primazia sistemática nabusca de valores sociais (seja dinheiro, poder, posição,educação ou qualquer outra coisa).” Blauner (1972, p.22).

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