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Como construir o conhecimento através do desenvolvimento de habilidades e competências 1 Paulo Afonso Caruso Ronca Hoje é sábado, e como dizia o poeta, porque é sábado, estou me preparando para uma mesa redonda a ser vivenciada, por mim e por outros cientistas, no próximo dia 28 de setembro deste ano de 2002, na 7° Mostra de Material de Divulgação e Ensino das Ciências, na Estação Ciência, da Universidade de São Paulo. O tema sobredito, apaixonante, o é ainda mais por ser novo, repleto de incertezas e de contradições. Muito se tem pensado e falado sobre habilidades e competências, a ponto de educadores e psicólogos divergirem sobre tais conceitos, tanto sobre a sua gênese, quanto sobre o seu desenvolvimento no humano. Valho-me do dicionário para iniciar estas pequenas reflexões. O velho amigo Aurélio grafa competência como o mesmo que habilidade e, hábil, como aquele que possui habilidade e competência. Noves fora: expressões sinônimas, que apontam para o mesmo sentido. Um dos primeiros questionamentos que me vem à mente quando elaboro tais reflexões, é saber qual enfoque damos aos conceitos habilidades e competência. Sob que ponto de vista iremos analisá-los? Senão vejamos: eles podem ser entendidos sob diversas e diferentes dimensões, a saber: histórica, psicológica, sociológica, política, econômica, sindicalista, legal, trabalhista, técnico-política, educacional, cognitiva e, até, psicanalista. Nesse sentido, o escritor Boff já nos diz que cada ponto de vista, avista um ponto e que meus olhos vêem a partir de onde meus pés pisam... Assim sendo, cabe-nos, de início, uma boa dose de humildade e parcimônia, pois estamos diante de um problema sério, a saber: como fundamentar e diferenciar estes 1 RONCA, Paulo Afonso Caruso. Como construir o conhecimento através do desenvolvimento de habilidades e competências. In: MATOS, Cauê (org.). Conhecimento: científico e vida cotidiana. São Paulo: Terceira Margem, 2003.

Como construir o conhecimento através do desenvolvimento de habilidades e competências

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Valho-me do dicionário para iniciar estas pequenas reflexões. O velho amigo Aurélio grafa competência como o mesmo que habilidadee, hábil, como aquele que possui habilidadee competência. Noves fora: expressões sinônimas, que apontam para o mesmo sentido.

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  • Como construir o conhecimento atravs do desenvolvimento de

    habilidades e competncias1

    Paulo Afonso Caruso Ronca

    Hoje sbado, e como dizia o poeta, porque sbado, estou me preparando para uma

    mesa redonda a ser vivenciada, por mim e por outros cientistas, no prximo dia 28 de

    setembro deste ano de 2002, na 7 Mostra de Material de Divulgao e Ensino das

    Cincias, na Estao Cincia, da Universidade de So Paulo.

    O tema sobredito, apaixonante, o ainda mais por ser novo, repleto de incertezas e de

    contradies. Muito se tem pensado e falado sobre habilidades e competncias, a ponto

    de educadores e psiclogos divergirem sobre tais conceitos, tanto sobre a sua gnese,

    quanto sobre o seu desenvolvimento no humano.

    Valho-me do dicionrio para iniciar estas pequenas reflexes. O velho amigo Aurlio

    grafa competncia como o mesmo que habilidade e, hbil, como aquele que possui

    habilidade e competncia. Noves fora: expresses sinnimas, que apontam para o

    mesmo sentido.

    Um dos primeiros questionamentos que me vem mente quando elaboro tais reflexes,

    saber qual enfoque damos aos conceitos habilidades e competncia. Sob que ponto de

    vista iremos analis-los?

    Seno vejamos: eles podem ser entendidos sob diversas e diferentes dimenses, a saber:

    histrica, psicolgica, sociolgica, poltica, econmica, sindicalista, legal, trabalhista,

    tcnico-poltica, educacional, cognitiva e, at, psicanalista. Nesse sentido, o escritor

    Boff j nos diz que cada ponto de vista, avista um ponto e que meus olhos vem a partir

    de onde meus ps pisam...

    Assim sendo, cabe-nos, de incio, uma boa dose de humildade e parcimnia, pois

    estamos diante de um problema srio, a saber: como fundamentar e diferenciar estes

    1 RONCA, Paulo Afonso Caruso. Como construir o conhecimento atravs do desenvolvimento de habilidades e competncias. In: MATOS, Cau (org.). Conhecimento: cientfico e vida cotidiana. So Paulo: Terceira Margem, 2003.

  • dois conceitos que, historicamente, sempre foram tidos como sinnimos e que, hoje,

    quase so vistos como antnimos?

    Vivemos um momento especial nas Cincias. Ora pelas diferentes descobertas sobre

    funcionamento do crebro, ora com o advento da imagem na Medicina, ora ainda com o

    surgimento das mquinas computacionais. Enfim, estamos deslumbrados com as novas

    maneiras de entender como se constri o conhecimento e de compreender as disposies

    e interesses de nossas crianas e jovens.

    Bastou Jean Piaget e Vygotsky abrirem as portas, e eis-nos a postos, no s em busca

    de aprofundarmos as suas idias, como, tambm, para descobrirmos novas. o fascnio

    das Cincias!

    Descortinam-se diante de nossos olhos diversos e diferentes ttulos, classificaes,

    conceitos, termos arrojados ou recm-criadas concepes que, no mnimo, nos deixam

    extasiados. Veja o que nos cerca: Dez Novas Competncias para Ensinar; Os Setes

    Saberes e Outros Ensaios; Inteligncias Mltiplas; Inteligncia Emocional;

    Aprendizagem Totalizante; Programa de Enriquecimento Instrumental (PEI); Teoria da

    Aprendizagem Significativa (TAS); Transtornos e Dficit de Ateno (TDA). Assim por

    adiante, teorias surgem, todas com o objetivo de nos ajudar na tarefa da compreenso da

    mente.

    Voltando ao que nos interessa, apresentarei ao leitor algumas idias do que tenho dito e

    discutido sobre habilidades e competncia.

    No princpio da vida, vemos a mente iluminando o psicomotor, sendo as habilidades

    psicomotoras as primeiras a serem construdas pela criana, transformando-se na

    realidade que recheia a sua existncia. A criana, apossando-se de seu corpo e o

    sentindo como sua propriedade, domina-o e arrisca-se, contando com ele.

    Torna-se, pois, hbil a manej-lo, a dirigi-lo e a conduzi-lo: prensa, engatinha, senta,

    trepa, corre, cai, foge, esconde-se, pega, larga, joga, atira com fora ou beija com

    carinho. Os movimentos mentais e fsicos incitam a uma verdadeira revoluo interna

    com propores inigualveis: a criana no tem parada!

    Mais tarde, a mente iluminar o aparelho fonador, habilitando-o aquisio da

    linguagem: ela chora, berra, balbucia, emite sons indecifrveis, repete as ltimas slabas

    ouvidas e, depois, repete nomes de objetos e pessoas at, por fim, montar frases

  • completas. Os movimentos mentais e fsicos determinam uma verdadeira revoluo

    interna com propores inigualveis: a criana no pra de falar!

    Assim como quando um jovem tira a sua carteira de motorista, ele se encontra

    habilitado a dirigir, igualmente o psicomotor vai preparando a criana a movimentos

    mais complexos, mais largos e espaosos. Sentir-se habilitado sentir-se dono,

    possuidor, empreendedor, enfim, pessoa, com possibilidades concretas e virtuais de

    realizao (realizaAO). Ao essa compreendida em suas vastas dimenses: as

    psicomotoras, as afetivas, as congnitivas e, com o dever de nunca esquec-las, as aes

    sociais!

    De princpio, habilidade uma ao ou a possibilidade virtual desta.

    O Construtivismo rompe, de maneira clara e insofismvel, com a espinha dorsal da

    histria da Psicologia contada, em parte, por Pavlov, Skinner e outros Behavioristas

    que, enfaticamente, observavam o humano como receptor do mundo externo. Para eles,

    o prprio pensamento era visto como uma reao estimulada e incitada pelo exterior. De

    modo contrrio, o Construtivismo percebe a criana agindo sobre o Mundo, e somente

    com aes sobre o Mundo acontece o desenvolvimento interno.

    Da, iluminada por um lado e iluminando por outro, a mente no pra um segundo e,

    inexorvel, segue marcha, pois h muito trabalho pela frente. Dentre as suas diversas

    tarefas, talvez a mais importante seja a de habilitar o humano a criar, dimenso essa que,

    afora pensamento e linguagem, o distinguir decisivamente de outros animais ou

    mquinas.

    A possibilidade de criar uma das primeiras e mais importantes experincias vividas

    por todos os humanos. marca registrada da nossa espcie, com patente requerida junto

    Natureza e por essa concedida. Criar, exclusividade do humano, como um selo nico e

    precioso, caracterstica definida aqui como o princpio dos princpios. Expliquemo-

    nos: em cada Ser, as aes so absolutamente novas e tudo o que acontece uma

    experincia nica, qui, inovadora. Assim, quando comea a andar, ato to corriqueiro

    para os adultos, a criana o faz, sentindo-se como se fora a primeira criana, em todo o

    Universo, a andar pela primeira vez.

    Crescer requer esforo, garra, vontade e fora. Crescer difcil, por vezes, incmodo,

    conflitante, desassossegado. Mas, sem sombra de dvidas, tem o seu lado maravilhoso,

    justamente porque crescer significa construir!

  • A par disto, habilidades se desenvolvem, interiorizam-se e firmam-se no interior da

    criana, concretizando-se em aes exteriores, rotineiras e seqenciais. A tal ponto

    chega a intimidade entre habilidades e aes que, sem receio de esbarrar em uma

    tautologia, diria que no a criana que anda, mas o andar que mostra a criana; no

    a criana quem fala, mas o falar que mostra a criana e, por fim, no o humano que

    pensa, mas o pensamento que mostra o humano!

    Compreendamo-nos firmemente: habilidades so processos ntimos, singulares, nicos,

    mpares, exclusivos, incomparveis, enfim diferenciados e diferenciadores. Iniciais e

    iniciadores, revelam quem este humano e o que pode vir a ser. por elas que os

    humanos se sentem ou se reconhecem criadores; por elas h a imerso histrica,

    geogrfica e a incluso social; enfim, o humano se sente pertencente civilizao.

    Habilidade, por mais repetitiva que seja, para ser considerada consistente, no mais das

    vazes, tende a ser uma habilidade criadora. Tomemos um exemplo: o popular tenor

    Pavarotti, com a sua voz reconhecida no mundo contemporneo, est habilitado a

    cantar, desde peras at canes populares. No podemos (ainda?!) mensurar qual

    poro desta habilidade veio da herana gentica ou qual foi a construda ao longo de

    sua histria de vida. Talvez a dialtica entre essas duas possibilidades sossegue o nosso

    esprito questionador.

    Todavia, fique claro, inclusive por depoimentos dele prprio, que houve muito estudo,

    muita aprendizagem, com a presena de diversos professores; igualmente houve

    empenho pessoal e insistente dedicao, sendo que, at hoje, ele precisa continuar seus

    estudos e tomar srios cuidados para manter a voz firme e em forma.

    Portanto, habilidade precisa ser mantida e amparada em ardilosa e constante atividade.

    Isto se deve, ao fato de admitirmos que nada simplesmente repetitivo no Ser. Da

    mesma forma que, por mais parecidos que sejam, cada dia um novo dia, um dia que

    nunca existiu. Indito, ele uma experincia incerta, desconhecida, tomada de

    mistrios, de possibilidades e de criaes.

    De forma anloga, nas msicas cantadas, em cada espetculo de que participa, l est

    um Pavarotti que canta, cria e entoa o novo.

    Novo no significa, obrigatoriamente, romper com o antigo, quebr-lo, esfacel-lo, mas

    significa ser novo, estar novo, em um acontecimento ou atividade, mesmo sendo

    costumeira! O ser novo constitui-se e firma-se, no obrigatoriamente no fazer o novo

  • mas, muito mais, numa atitude ntima e existencial perante o novo, concretizando-o,

    processando-o de forma pessoal, devagarinho... devagarinho, no dia-a-dia.

    No o quotidiano que se repete enfadonhamente, mas sou eu que, se desejar, me fao

    existir novo, a cada manh. Ver os dias, os fenmenos, as coisas e cada Ser como igual

    ao de ontem, ou o mesmo de sempre, um desvio de percepo, espcie de miopia que

    distorce a realidade to mutvel e instvel. Euclides da Cunha, talvez, foi quem

    escreveu ser a mutao uma apoteose diria.

    Dia-a-dia, habilidades se renovam, podem aprimorar-se, aperfeioando a existncia de

    cada Ser. Semelhante a um artista que nunca pinta um quadro idntico, o bonacho

    tenor italiano no canta uma msica igual a outra. Assim, torna-se maravilhosa essa

    teoria do novo, aqui apresentada.

    Habilidade um projeto da mente, s vezes obscuro, pois no sabemos bem a sua

    gnese, ou s vezes visvel, porque foi historicamente construdo. Habilidade a

    inteno da mente que, colocada em ao pelo humano, transfigura-o, ajudando-o a se

    construir como personagem nico, desigual e incomparvel, digamos, nunca visto nos

    palcos da vida.

    Plcido Domingo, outro reconhecido tenor, possui aparelho fonador semelhante ao de

    Pavarotti, o seu pulmo processa o ar da mesma maneira e puderam at, durante a vida,

    ter tido os mesmo professores ou terem estudado na mesma escola de msica. Todavia,

    a mente de Plcido tem projetos distintos, habilitando-o diferentemente.

    Pavarotti e Plcido Domingo, dois tenores, to semelhantes e, ao mesmo tempo, to

    diferentes. O que os diferencia? As habilidades! O que os assemelha? As

    habilidades! Incrvel, dois lados da mesma moeda. To semelhante e, ao mesmo tempo,

    to distintos!

    E competncia?

    mais uma das importantes dimenses que vem diferenciar os humanos. Perceber o

    leitor que, logo de incio, vamos insistir no conceito diferenciar, fugindo, como o diabo

    da cruz, de constataes de padres de excelncia, de adjetivos como mais ou menos,

    inferior ou superior. Outrossim, perseguiremos a idia de que os humanos no so

    melhores ou piores, mas diferentemente competentes. At, poderamos arriscar,

    circunstancialmente competentes.

  • Competncia significa como o humano vai utilizar as habilidades, o que far com elas e

    como vai desenvolv-las. Mais uma vez, exemplos nos ajudam: um jogador de futebol

    pode ter habilidade, herdada ou construda, mas o que vai diferenci-lo ser, justamente,

    a competncia com a qual exercita o esporte; o mesmo vale para um cirurgio

    ortopedista que, tendo habilidade manual e consistncia terica, ir demonstrar

    competncia ao operar, irrepreensivelmente, um paciente; ou para um professor que,

    tendo a habilidade da fala e consistncia terica, desenvolve a competncia da

    comunicao ou de explicaes.

    Inata, habilidade um presente. Adquirida, uma construo. Porm, o seu

    desempenho, mais a prtica, poder se transformar em competncia, dependendo dos

    exerccios fsicos constantes e repetidos, no caso do jogador; do estudo profundo e da

    prtica constante, no caso do mdico; na constante assiduidade e estudos, no caso do

    professor. O conceito constante figura nas linhas sobreditas pois, competncia requer,

    igualmente, a perseverana, a persistncia e a pacincia. Trabalho de carpinteiro...

    Competncia ser, ento, um fenmeno a ser construdo, passo a passo, a pouco e

    pouco, dependendo, por vezes, do aprendizado. Habilidade pode ser entendida como um

    processo que flui na e da natureza (tanto fsica, como social) e, no mais das vezes,

    insistimos, diferente em cada humano. J competncia, um processo a ser aprendido

    ou ensinado; processo existencialmente custoso, difcil, demorado e rduo. O que se h

    de fazer?

    Competncia a habilidade transformada, meticulosamente amplificada e

    harmoniosamente composta no humano. Competncia o processo no qual o humano

    revela a inscrio de certas habilidades na sua dinmica existencial. Recordemos: se

    dissemos que a mente trabalhar muito para habilitar o pensamento, agora para lhe

    conferir competncia, h de se esforar muito mais.

    Numa breve ligao entre o tema da minha palestra e o pensamento, digo que ele no

    pode ser mensurado pela sua quantidade, tampouco avaliado pela sua velocidade,

    rendimento ou pelo poder de arrebatamento. Porm, a tecla na qual mais bate o

    Construtivismo a viso qualitativa, no s do desenvolvimento em geral, como do

    pensamento em particular. Neste sentido, devemos nos perguntar de que maneira

    esboamos e configuramos nossos pensamentos, como os transformamos em projetos

    pessoais ou projetos para a nossa sociedade; como, por eles, priorizamos o bem comum

  • e o colocamos em funo da comunidade. Enfim, que competncia damos ao nosso

    pensar?

    Assim sendo, o pensamento no privilgio de poucos, no concesso dos que

    estudaram, ou brilhantismo notvel de alguns que foram sorteados pelo destino.

    Reconheamos com humildade: em toda a natureza, no h dimenso que seja mais

    democrtica e democratizadora do que o pensamento.

    Para finalizar, jogo um pouco de pimenta nesta discusso, principalmente sobre aqueles

    que insistem em dar competncia um carter classificatrio. Responda-me o leitor fiel:

    Fernandinho Beira-Mar, perigoso bandido, possui habilidades? No teria ele muitas

    competncias? Ou, dizendo de outra forma, no seria ele uma pessoa competente?

    Ento...