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Como Funciona a Democracia – Uma Teoria Etnográfica da Política –

Como Funciona a Democracia. Uma Teoria E

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Goldman, versão nova

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Como Funciona a Democracia

– Uma Teoria Etnográfica da Política –

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Como Funciona a Democracia

Uma Teoria Etnográfica da Política

Marcio Goldman

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2006

Viveiros de Castro Editora Ltda.R. Jardim Botânico 600 sl. 307Rio de Janeiro RJ CEP 22461-000

(21) [email protected]

www.7letras.com.br

© 2006 Marcio Goldman

Produção editorial

Debora FleckIsadora Travassos

Jorge Viveiros de CastroMarília Garcia

Valeska de Aguirre

Copidesque

Marcia Rinaldi de MattosMaria Eduarda Costa

Tratamento das fotos

Simone Rodrigues

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

G572c Goldman, MarcioComo funciona a democracia : uma teoria etnográfica da política /Marcio Goldman. - Rio de Janeiro : 7Letras, 2006368p. : il. ; ApêndicesInclui bibliografiaISBN 85-7577-318-6 1. Etnologia - Ilhéus (BA). 2. Ilhéus (BA)- Política e governo. 3. Ilhéus(BA)- Usos e costumes. 4. Negros - Ilhéus (BA). I. Título. 06-3451. CDD 306.098142

CDU 39(813.82)

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SUMÁRIO

Agradecimentos ........................................................................................ 9

Prólogo | Os tambores dos mortos e os tambores dos vivos ..............................13

Introdução | Antropologia da Política e Teoria Etnográfica da Democracia ......23

Capítulo 1 – 2002: MEMORIAL DA CULTURA NEGRA DE ILHÉUS ............... 53

Capítulo 2 – 1996: PESQUISA ................................................................. 93

Capítulo 3 – 1992: CENTRO AFRO-CULTURAL ....................................... 137

Capítulo 4 – 2000: ELEIÇÕES ............................................................... 191

Capítulo 5 – 1998/1999: CARNAVAL .................................................... 243

Capítulo 6 – 2004: CANDIDATURA ....................................................... 287

Bibliografia .......................................................................................... 313

Apêndices ............................................................................................. 333

Apêndice I – Glossário........................................................................... 333

Apêndice II – Entrevista ........................................................................ 339

Apêndice III – Colunas de Marinho Rodrigues no Diário de Ilhéus ...... 343

Apêndice IV – A família Rodrigues ....................................................... 351

Apêndice V – Os blocos afro de Ilhéus ................................................. 352

Apêndice VI – Eleições em Ilhéus .......................................................... 353

Apêndice VII – Mapas ........................................................................... 354

Apêndice VIII – Fotos ........................................................................... 359

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Para minha mãe e para meu pai.

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Se houve para mim uma aventura e momentos de vacila-ção em que estive submersa no medo ou no que Freuddenomina o sentimento de inquietante estranheza, issocertamente não ocorreu no encontro com o irracional.Pois me parece evidente que, se é com este que alguémdeseja se confrontar, não há necessidade de percorrer tre-zentos quilômetros: o engajamento político e as relaçõesamorosas ordinárias fornecem ocasiões mais que sufici-entes para isso.

JEANNE FAVRET-SAADA

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AGRADECIMENTOS

Versões preliminares de trechos deste livro foram apresentadas em di-versos encontros e em alguns artigos. O Prólogo e a Introdução desenvolvemtemas em parte apresentados no seminário A Antropologia e seus Métodos:O Arquivo, o Campo, os Problemas, organizado por Emerson Giumbelli epor mim durante o XXV Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação em Pesquisa e Ciências Sociais (ANPOCS), em outubro de 2001,bem como no simpósio Antropologia e Política. Representações Sociais e Pro-cessos Políticos: Problematizando os Limites da Política, coordenado por AnaRosato durante a IV Reunião de Antropologia do Mercosul (RAM), em no-vembro de 2001. Uma primeira versão escrita foi publicada sob o título “Ostambores dos mortos e os tambores dos vivos. Etnografia, antropologia epolítica em Ilhéus, Bahia”, na Revista de Antropologia (Goldman 2003).

O terceiro capítulo é um desenvolvimento de parte do que foi publica-do em Mana. Estudos de Antropologia Social sob o título “Segmentaridades emovimentos negros nas eleições de Ilhéus” (Goldman 2001b). Desenvolve,também, o que foi apresentado no fórum de pesquisa Teorias Etnográficas daSegmentaridade, coordenado por Tânia Stolze Lima e Márcio Ferreira da Silvana XXII Reunião da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), em julhode 2000.

Diversas passagens do livro foram antecipadas nos artigos “Uma teoriaetnográfica da democracia. A política do ponto de vista do movimento ne-gro de Ilhéus, Bahia, Brasil”, publicado em Etnográfica (Goldman 2000) e“An ethnographic theory of democracy. Politics from the viewpoint of Ilhéus’sblack movement (Bahia, Brazil)”, publicado em Ethnos (Goldman 2001a).Esses artigos derivavam, por sua vez, respectivamente, de apresentações reali-zadas, em 1999, no simpósio Antropologias Brasileiras na Viragem do Milê-nio (a convite de Miguel Vale de Almeida e João Leal), e no Friday MorningSeminar, do Departamento de Antropologia da London School of Economics(a convite de Peter Gow e Chris Fuller).

Além disso, temas presentes neste livro foram adiantados por ocasião depalestras e seminários: em diversas atividades do Núcleo de Antropologia daPolítica (NuAP), coordenado por Moacir Palmeira, em 1994, 1996, 1997,1998, 1999, 2001 e 2003; na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp),em 1995 e 2001, a convite de Márcio Ferreira da Silva, Sueli Koffes e Thomas

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Patrick Dwyer; na Universidade de São Paulo (USP), em 1995, a convite deAracy Lopes da Silva; no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento(Cebrap), em 1995, a convite de Omar Ribeiro Thomaz; no Instituto deFilosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS-UFRJ), em 1995, a convite de Ingrid Sarti, e em 2002, a convite de OlíviaGomes da Cunha; na Universidade Federal Fluminense (UFF), em 1997 e1998, a convite de Wagner Neves Rocha; no Departamento de Antropologiada Universidade de Coimbra, em 1999, a convite de Susana Viegas; no Ins-tituto de Desarrollo Económico Social (IDES) e no Instituto de Altos EstudiosSociales (IAES), em Buenos Aires, em 2002, a convite de Pablo Semán eRosana Guber; e na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 1997e 2004, a convite de Eduardo Viana Vargas.

Agradeço, portanto, a todos os que possibilitaram a minha participaçãonesses eventos. Além disso, e como sempre, este livro deve bastante a muitasoutras pessoas e a algumas instituições. Entre as últimas, eu gostaria de subli-nhar o papel do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social(PPGAS), Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro), cujoambiente e condições de trabalho favorecem muito a pesquisa. A partir de1997, o NuAP, coordenado por Moacir Palmeira (a quem devo a oportuni-dade de fazer parte do núcleo), passou a funcionar nos quadros do PPGAS, oque favoreceu ainda mais a pesquisa. O apoio da Financiadora de Estudos eProjetos (Finep) ao PPGAS foi a origem de parte dos recursos utilizados naspesquisas que forneceram a base para este livro. Para isso, recebi igualmenteuma parte do financiamento destinado ao NuAP pelo Conselho Nacional deDesenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) – órgão do qual tambémsou pesquisador (bolsista de produtividade científica) – e pela própria Finep.A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ)concedeu-me uma Bolsa de Auxílio à Pesquisa, entre maio e dezembro de2000, e uma Bolsa Cientista do Nosso Estado, no biênio 2003/2004, o quepermitiu o acesso a recursos suplementares fundamentais. A Coordenação deAperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) financiou minha par-ticipação em muitos dos eventos acima listados.

Ao longo do tempo, colegas (de trabalho, do NuAP e da academia emgeral), funcionários, bibliotecários, alunos, amigos e moradores de Ilhéus fo-ram contribuindo, advertida ou inadvertidamente, e de maneiras muito dis-tintas, para a elaboração deste livro. É muito difícil, hoje, recordar a contri-buição específica de cada um e, muito mais, estabelecer algum tipo de hierar-quia. Assim, e seguindo também a sugestão de Roland Barthes de não “su-

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bestimar a força do acaso para engendrar monstros”, gostaria de agradecer atodos em ordem alfabética, pedindo desculpas sinceras àqueles que, porven-tura, eu tenha esquecido de mencionar e, evidentemente, eximindo a todosde qualquer responsabilidade pelos erros que sem dúvida cometi: Adail Vi-veiros, Afonso Santoro, Agenor Gasparetto, Alberto Rocha, AlzimárioBelmonte Vieira (Gurita), Ana Claudia Marques, Ana Paula Moraes da Sil-va, Ana Rosato, Antonádia Borges, Antonio Carlos de Souza Lima, AntônioCarlos Rafael Barbosa, Antúvio Costa Ribeiro (Toinho Brother), BeatrizHeredia, Carla Regina Paz de Freitas, Carla Teixeira, Catherine Gallois, Ce-cilia Campello do Amaral Mello, Cecilia McCallum, Celso Souza Santos,César Barreira, Christina Toren, Christine Chaves, David Rodgers, DeborahJames, Dino Rocha, Don Kulick, Eduardo Lemgruber, Eduardo Viana Vargas,Eduardo Viveiros de Castro, Ellen Cristine Monteiro Vogas, Eliana Vieira,Élvia Magalhães, Emerson Giumbelli, Emília Wien, Fabíola Rohden, FedericoNeiburg, Fernanda Peixoto, Irlys Barreira, Ivonilce Gomes (Nice), JoannaOvering, João Vasconcelos, John Comerford, Jorge Luiz Mattar Villela, JoséCarlos Ribeiro, José Carlos Souza Rodrigues, José Guilherme Magnani, JoséNazal, José Sérgio Leite Lopes, Júlia Miranda, Karina Kuschnir, Levindo daCosta Pereira Jr., Lilia Valle, Líscia Fernandes, Lisonete Martins de Souza(Nete), Lourdes Cristina Araújo Coimbra, Luís Roberto Cardoso de Olivei-ra, Luisa Elvira Belaunde, Luiz Claudio Falcão de Albuquerque, MarcelaCoelho de Souza, Marcelo Silva Maciel, Marcia Rinaldi de Mattos, MarcioFerreira da Silva, Marcos Otávio Bezerra, Maria Auxiliadora Lemenhe, Ma-ria Conceição Ribeiro (Vida), Maria Consuelo Oliveira, Maria da Consola-ção Lucinda, Maria Eduarda Costa, Maria Gabriela Scotto, Maria IzabelWernersbach Moreira, Mário Gusmão, Mariza Peirano, Mary Ann Mahony,Michael Baran, Michael Kent, Miguel Vale de Almeida, Miriam Hartung,Moacir Palmeira, Moacir Pinho, Nelson Simões, Odaci Luiz Coradini, OiaraBonilla, Olívia Gomes da Cunha, Otávio Velho, Paula de Siqueira Lopes,Paulo Cesar de Menezes (Cesar), Paulo Rodrigues dos Santos, RaimundaAlencar, Renato Sztutman, Rita de Souza Santos Saraiva, Ronaldo dos San-tos Sant’Anna, Sérgio Pereira, Silvia Nogueira, Silvio Cesar Brandão(Silvinho), Simone Rodrigues, Stela Abreu, Susana Viegas, Tania Lucia Ferreirada Silva, Thereza Menezes, Tomas Martin Ossowicki, Valdir Silva, VâniaLacerda, Vincenzo Cambria, Vinicius, Wagner Neves Rocha.

Devo abrir, contudo, umas poucas exceções aos princípios acima enun-ciados e agradecer, em separado, a algumas pessoas. Em primeiro lugar, à fa-mília Rodrigues: Dona Ilza, Gildasio, Nidinha, Nete, Delson, Gilmar, Tonho,

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Gilvan, Vane, Marinho, Gilson, Vado, Ney, Neide, Bel, Alex, Carlinhos,Ceinha, Gal, Gleide, Litinha, Ninho, Noélia, Sonilda, Tourinho, e a todas ascrianças, numerosas demais para que eu possa listá-las. Sem eles este livro nãoexistiria, pois foi seu calor que sustentou minha paixão por Ilhéus ao longode tanto tempo.

A Ana Cláudia Cruz da Silva, que teve o azar de dividir o campo comseu orientador, devo muitas informações e inúmeras idéias; além disso, e comose não bastasse, ela foi, ao lado de Silvia Nogueira, uma das minhas “enfer-meiras” quando sofri um acidente no campo.

Peter Gow, Ovídio de Abreu e, principalmente, Tânia Stolze Lima, fo-ram nos últimos anos as pessoas com quem mais, literalmente, troquei idéiasa respeito deste livro – e a respeito de tudo. Mesmo sem pensar nisso, elescertamente me ajudaram a escrevê-lo.

Finalmente, a Marinho Rodrigues e Jaco Santana é quase impossível agra-decer. Além de tudo o que eu poderia dizer, eles, de verdade, me fizeram olharpara o mundo de outra maneira.

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PRÓLOGO

OS TAMBORES DOS MORTOS E OS TAMBORES DOS VIVOS

Sábado à noite, 31 de outubro de 1998, em Ilhéus, sul da Bahia, eu acom-panhava um ensaio do Dilazenze, o bloco afro em que concentrara minhapesquisa sobre as relações entre o movimento negro local e a vida política nacidade. Dona Ilza Rodrigues, a mãe-de-santo1 do Ewá Tombency Neto, o ter-reiro de candomblé ligado ao bloco, chamou-me de lado e, explicando quetinha que realizar o despacho dos assentamentos de uma filha-de-santo quemorrera recentemente enquanto ela estava em São Paulo, perguntou-me seeu poderia ajudar, transportando em meu carro os objetos rituais da falecidapara serem jogados em um rio, ou seja, o despacho. Respondi que, evidente-mente, ajudaria, e ela acrescentou que era preciso resolver tudo rapidamenteuma vez que Finados estava próximo e não era conveniente que o ritual fosserealizado após o dia dos mortos. Combinamos que, no momento adequado,ela mandaria me chamar, e lembramos, juntos, que em 1983, quando reali-zara uma pesquisa no terreiro, eu também ajudara a transportar um despa-cho. Marinho Rodrigues, um dos filhos carnais da mãe-de-santo, ogã do ter-reiro,2 um de meus grandes amigos e meu melhor informante em Ilhéus,contou-me, então, que a filha-de-santo recém-falecida era de Xangô e haviadeclarado explicitamente que, quando de sua morte, não desejava que o ritu-al completo fosse realizado; e era por isso, disse ele, que só haveria o despa-cho dos assentamentos. Ante minha surpresa, explicou-me que alguns fiéisdo candomblé fazem esse pedido, que tem que ser respeitado, uma vez quenão se deve invocar um espírito que não o deseja ser. Conversávamos aindasobre os rituais funerários do candomblé quando, por volta das sete e meia,fui chamado para estacionar o carro diante do portão do terreiro. Eu o fiz,abri o porta-malas do carro e, logo, Gilmar e Ney (ogãs, também filhos car-nais da mãe-de-santo e meus amigos) trouxeram uma grande e pesada caixaque depositaram no compartimento. Entramos no carro com duas filhas-de-santo que não reconheci naquele momento.

Partimos e os ogãs informaram a direção a seguir; falamos pouco e asduas filhas-de-santo, nada. Chegamos ao local desejado, uma ponte em umaestrada meio abandonada no antigo caminho para Itabuna. Paramos, desce-mos, abrimos o porta-malas, os ogãs pegaram a caixa e dirigiram-se, com as

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filhas-de-santo, para a ponte. Fiquei no carro esperando e olhando discreta-mente. Sobre a ponte, jogaram a caixa no rio; quando esta bateu na água,fazendo muito barulho, as duas filhas-de-santo lançaram os gritos de seus orixáse apenas nesse momento me dei conta de que estavam em transe o tempotodo. Um dos gritos era de Iansã, o outro de Ogum, dois orixás que mantêmrelações privilegiadas com os mortos. Gilmar, que é o ogã da casa encarrega-do dos sacrifícios e oferendas, entrou no mato e acendeu as velas que havialevado; em seguida, ele e Ney assopraram dentro do ouvido das filhas-de-santo,que saíram imediatamente do transe. Nesse exato momento escutei, ao lon-ge, a batida de alguns instrumentos de percussão; imaginei, primeiro, serematabaques de candomblé; depois, algum ensaio de bloco afro ou algo seme-lhante. Entramos no carro e partimos, evitando retornar pelo caminho poronde viéramos a fim de não passarmos pelo ponto em que o despacho foralançado. Voltamos para o terreiro onde, no portão de entrada, alguém nosesperava para um rápido ritual de purificação, que se estendeu, aliás, ao inte-rior do automóvel.

Assunto aparentemente encerrado, retomei a conversa com Marinho,na qual logo retornamos aos rituais funerários do candomblé. Ele contou-me que em 1994, na obrigação dos 21 anos relativos à morte de sua avó (an-tiga e famosa mãe-de-santo do terreiro), ele levara um despacho exatamenteao mesmo lugar de onde eu acabava de voltar. De repente, disse, começou “aouvir os atabaques dobrarem”, perguntando então aos demais se havia algumterreiro de candomblé por lá, ao que todos responderam que não. De voltaao terreiro, narrou o ocorrido a sua mãe e a outras pessoas mais velhas, queficaram muito contentes, já que o fato de os atabaques tocarem é um bomsinal, pois significa que os mortos estão aceitando receber em paz o espíritoou a oferenda em jogo. Senti um leve arrepio e disse a Marinho que eu tam-bém ouvira atabaques dobrarem; ele não fez nenhum comentário e mudoude assunto. Percebi, então, que os tambores que eu ouvira simplesmente nãoeram deste mundo.

Esse episódio, ligeiramente editado a partir de um trecho de meu cader-no de campo, teve seus desdobramentos. Nos dias que se seguiram ao even-to, descobri que Marinho comentara a história com diversas pessoas, inclusi-ve com seus irmãos que haviam realizado o ritual. Tanto Ney quanto Gilmarsustentaram também ter ouvido o toque, o último acrescentando que “issosempre acontecia”. De minha parte, também relatei o episódio a dois etnó-logos. Tânia Stolze Lima observou: “você está mesmo fazendo trabalho de

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campo”, acrescentando que era muito curioso que eu não lembrasse que, trêsanos antes, orientara uma dissertação de Mestrado sobre um ritual funeráriono candomblé, na qual aquilo que eu lhe contara como novidade (não o fatode ter ouvido tambores, mas simplesmente a informação etnográfica de queos mortos os tocam) era amplamente descrito e analisado (Cruz 1995). Sur-preso com minha amnésia, concordei plenamente com ela quando concluiudizendo que tanto eu quanto as pessoas do terreiro escutáramos os tamborespelas mesmas razões (Lima 1998).

Além disso, a tomada de consciência dessa estranha amnésia me obri-gou a reconsiderar algo que experimentara cerca de três semanas antes dostambores, ao reencontrar Dona Ilza após mais de dois anos sem vê-la. Eu forabuscá-la na estação rodoviária onde chegava de uma viagem a São Paulo; aoentrar de carro na rua em que se situam tanto o terreiro quanto sua residên-cia, senti vertigens que desapareceram assim que saí do local, após deixá-laem casa. Retornei ao local mais duas vezes na mesma noite, e, a cada vez queentrava na rua, as vertigens voltavam; ao sair, desapareciam. É claro que ima-ginei causas místicas, mas não levei o episódio muito a sério.

Peter Gow – a quem eu escrevera relatando a história e dizendo que elame surpreendera principalmente porque eu jamais havia experimentado ne-nhuma inclinação mística – respondeu que não acreditava ser este o pontopertinente, e relatou uma experiência semelhante que tivera no campo – entreos piro, da Amazônia peruana –, oferecendo ao mesmo tempo uma explica-ção fenomenológica e quase gestaltista para o que ocorrera conosco:

“Qual é a explicação? Por um lado, creio que Tânia esteja certa. Isso é realmen-te fazer trabalho de campo: essas experiências emanam de outras pessoas. Mashá mais. Acho que é significativo que tenha sido música o que ouvimos nosdois casos. É possível que, em estados de alta sensibilização, padrões comple-xos, mas regulares, de sons do mundo, como rios correndo ou uma noite tro-pical, possam evocar formas musicais que não temos consciência de termosconsiderado esteticamente problemáticas. Na medida em que estamos apren-dendo esses estilos musicais sem o saber, nós, sob determinadas circunstâncias,os projetamos de volta no mundo. Assim, você ouviu tambores de candom-blé, eu, música de flauta. Penso que um processo semelhante ocorre com aspessoas que estudamos. Porque eles obviamente também ouvem essas coisas.Mas eles simplesmente aceitam que esse é um aspecto do mundo, e não se pre-ocupam com isso. Todavia, continua sendo impressionante e o mistério não éresolvido por essa explicação. O que imagino é que devemos repensar radical-mente todo o problema da crença, ou ao menos deixar de dizer preguiçosa-

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mente que ‘os fulanos crêem que os mortos tocam tambores’ ou que ‘os beltranosacreditam que os espíritos do rio tocam flautas’. Eles não ‘acreditam’: é verda-de! É um saber sobre o mundo” (Gow 1998).

De toda forma, mais, ou menos, do que uma explicação, fiquei imagi-nando durante muito tempo o que fazer com essa história, como não reduzi-la a uma dessas recorrentes anedotas acerca de experiências místicas vividaspor antropólogos no campo, cujo caso paradigmático, como se sabe, é o deEvans-Pritchard (1937: 34) vendo a bruxaria entre os Azande – o que, aliás,não o impediu de escrever que “bruxas, como os Azande as concebem, nãopodem existir” (Evans-Pritchard 1937: 56).

Este livro, aliás, já se encontrava praticamente pronto quando EduardoViveiros de Castro, a quem agradeço, revelou-me a existência de uma coletâ-nea de textos a respeito desse tipo de experiência (Young e Goulet 1994). Aindaque não se trate aqui de entrar nas discussões propostas pelos organizadoresda coletânea, duas observações talvez sejam interessantes. Primeiro, é curiosoque todas as experiências descritas no livro sejam visuais ou oníricas, enquan-to a minha e a de Peter Gow tenham sido auditivas. Segundo, enquanto olivro se concentra em “transformações” provocadas, sobretudo, nas crençasespirituais dos etnógrafos pelas “experiências extraordinárias” por eles vividasno campo, preferi acentuar os efeitos que um devir-nativo pode gerar nasexperiências mais ordinárias do antropólogo, como a política, por exemplo.

De toda forma, no meu caso, tratava-se de tentar conferir ao episódiodos tambores um grau de dignidade que o colocasse em relação com meu tra-balho. Ora, isso exigia, em primeiro lugar, afastar de antemão as duas expli-cações mais fáceis, que, ambas realistas a seu modo, logo interromperiam qual-quer trabalho de reflexão mais sério: a mística, que afirmaria que os tamboreseram mesmo de mortos; e a materialista, que diria que, se escutei algo, foramtambores de vivos. Na verdade, saber se os tambores que ouvi eram tocadospelos mortos (ou por alguma banda afro, ogãs de um terreiro, ou se eram ain-da efeito do vento ou outra coisa qualquer), ou mesmo o fato de acreditar ounão que o eram, não tem muita importância. O que importa é que, queren-do ou não, levei a história a sério e, bem mais do que isso, fui por ela afetado– no sentido que Jeanne Favret-Saada (1990: 7) confere à expressão. Não im-portando as razões que me levaram a ouvir os tambores (talvez até mesmoem função das tradicionais histórias de experiências místicas de antropólo-gos no campo), o fato é que o evento me atingiu em cheio, e se não da mes-ma maneira como atingiu meus amigos, ao menos com a mesma intensida-

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de. Ainda nos termos de Favret-Saada (idem: 9), a força do acontecimentopermitiu, sem dúvida, que se estabelecesse entre nós certa forma de comunica-ção, não-verbal, “involuntária e não intencional”, condição, talvez, para que outroscanais de comunicação mais discursivos e conscientes também se abrissem.

Além disso, conferir dignidade à história dos tambores dos mortos sig-nificava também ser capaz de perceber sua relação com aquilo que eu supos-tamente estava fazendo em Ilhéus – uma pesquisa sobre política –, o que du-rante muito tempo não fui capaz de fazer. O curioso é que essa percepção sóveio à minha mente três anos após o episódio, e ainda assim sob a estranhaforma de um sonho em que revivi muito realisticamente algo que efetivamenteacontecera comigo em Ilhéus apenas três dias antes dos tambores, em umanoite em tudo semelhante àquela em que transcorrera esse evento.

A confirmação de que o sonho reproduzia literalmente o que ocorreraem Ilhéus veio da leitura de meu caderno de campo, à qual procedi assim queacordei. Mas esta me revelou também que, menos de um mês antes do ocor-rido, eu conversara longamente com Marinho sobre o sirrum, o ritual fune-rário do candomblé angola.3 Ele explicara-me, então, que, em parte, tratava-se de uma luta entre os vivos e os espíritos dos mortos convidados pelo re-cém-falecido para o ritual: os vivos não podem permitir que os mortos to-quem e cantem mais alto do que eles, sob pena de os mortos invadirem omundo dos vivos, possuírem o corpo dos presentes e até mesmo matá-los.Marinho explicara, também, que não deve haver manifestação de tristeza,principalmente sob forma de choro, pois isso seria muito perigoso. Todas essasinformações estão na dissertação de Robson Cruz que eu orientara em 1995,e era tudo isso, como observara Tânia Stolze Lima, que eu havia simplesmente‘esquecido’.4 Marinho concluiu sua história, então, dizendo que felizmentenunca vira os mortos, mesmo no dia em que sua mãe avisara que os espíritosde sua avó e avô maternos estavam presentes, acenando para ele, durante umritual realizado há tempos em outro terreiro.

No episódio fielmente revivido em meu sonho, eu conversava com oprincipal político da sessão local do Partido dos Trabalhadores (PT) quandofiz algum comentário sobre uma distante batucada que escutávamos. O po-lítico respondeu algo como “eles estão fazendo batucada para não fazer nada”,o que significava, segundo uma velha fórmula que eu tão bem conhecia, quea batucada estava ligada à falta de consciência política e funcionava como umdesvio da ação política conseqüente: uma espécie de ópio do povo, como àsvezes se diz. Ademais, o fato de alguém, afinal de contas, tão próximo a mim

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em termos de concepção de política e de opções ideológicas quanto o políti-co petista sugerir que, em certo sentido, os tambores que ouvíamos eram deseres apenas semivivos (já que alienados), estabeleceu inadvertidamente umaponte entre os tambores dos mortos e os tambores dos vivos, ponte que pas-sava justamente pela política. Aliás, ao ler uma primeira versão do relato des-se episódio (Goldman 2001a), Peter Gow observou que eu era excessivamentecruel com o político petista e que isso provavelmente se devia ao fato de eleser, para mim, uma espécie de “sombra” no sentido junguiano do termo, ouseja, manifestar com clareza uma série de atributos pessoais meus dos quaiseu não gostaria muito e que tentaria reprimir. Creio que Gow tem razão eacrescento que no quadro político ilheense esse político ocupava, do meuponto de vista, uma posição respeitável.

Na verdade, quando ouvi os tambores dos mortos, eu já havia passadoquase dois meses no campo, além de outros dois em 1996 e de três no já lon-gínquo ano de 1983, quando pesquisava o candomblé – o que já me haviaensinado a admirar muito os tambores dos vivos. Pois as principais ativida-des de um bloco afro são evidentemente as musicais, e a convivência quasecotidiana com elas me fizera descobrir e admirar a música afro-baiana. Não aaxé-music, variação musicalmente empobrecida, politicamente esterilizada eexistencialmente sacrificada às exigências da mídia,5 mas aquela feita pelo IlêAiyê, pelo Olodum, pelo Muzenza e por outros blocos afro de Salvador, as-sim como pelo Dilazenze, pelo Miny Kongo, pelo Rastafiry e pelos outrosblocos de Ilhéus. Essa convivência me ensinara também que fazer música afronão era simplesmente uma forma de não fazer nada; ao contrário, essa ativi-dade é uma das dimensões essenciais dos processos de criação de territóriosexistenciais que permitem a pessoas discriminadas produzir sua própria dig-nidade e vontade de viver.

Deve-se observar, igualmente, que o fato de a afecção provocada pelostambores parecer ‘positiva’ (no sentido de que é sempre charmoso um antro-pólogo capaz de experimentar coisas místicas) não significa, de forma algu-ma, uma identificação gloriosa com os nativos, o que iria de encontro a todaminha argumentação. A reação de meus amigos de Ilhéus, vaiando e gritan-do coisas extremamente desagradáveis para dois travestis que passavam na ruaem que moram, não teve nada de charmosa. Da mesma forma, minha reaçãode medo perante dois desconhecidos que, na verdade, eram conhecidos dosmeus amigos, tampouco. No entanto, o fato de essas situações terem sido alvode comentários e, principalmente, terem provocado certos estados emocio-

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nais tanto nos meus amigos – divididos entre a indignação e a pilhéria contraos travestis, entre o divertimento e o estranhamento para comigo – quantoem mim – totalmente imobilizado entre a indignação e os laços de amizadeque me unem a meus amigos, e entre o medo de ser assaltado e a vergonha deparecer preconceituoso – pode ter sido tão importante para o estabelecimen-to de uma comunicação duradoura, profunda e involuntária quanto a histó-ria dos tambores.

Os tambores dos vivos e os tambores dos mortos fazem parte da mesmaexperiência global, e foi certamente o fato de eu ter sido afetado pelos pri-meiros que abriu a possibilidade de ouvir os segundos. Em outro sentido, con-tudo, foi talvez necessário ter escutado os tambores dos mortos para que osdos vivos passassem a soar de outra forma, já que, nesse momento, vivi umaexperiência que, sem ser necessariamente idêntica à de meus amigos em Ilhéus,tinha com ela ao menos um ponto de contato fundamental: o fato de ser totale de não separar os diferentes territórios existenciais que habitamos. Comome escreveu Peter Gow, era mesmo a noção de crença que deveria ser postaem questão, na medida em que é uma das grandes responsáveis pelas falsasdistinções que buscam separar a ‘realidade’ daquilo que em geral se denomi-na ‘imaginário’ e que, na verdade, deveria simplesmente ser chamado de ‘real’,na medida em que a realidade é sempre o efeito de um ato de criação. E nãodeixa de ser curioso observar, de passagem, que Lévy-Bruhl, autor com quemtrabalhei entre minha pesquisa sobre o candomblé e aquela acerca da políti-ca, é um crítico radical da noção de crença, propondo sua substituição peloconceito de experiência. Na verdade, é a própria distinção que não possuialcance universal, uma vez que depende de uma “definição da experiênciainconteste entre nós após um longo trabalho secular de crítica que desquali-ficou e excluiu da experiência válida as experiências místicas” (Lévy-Bruhl1949: 161-162).6 Além disso, se as principais atividades de um bloco afrosão musicais, isso não significa, é claro, que sejam as únicas. Os blocos costu-mam se envolver com a política, seja fazendo apresentações em campanhasde políticos, apoiando explicitamente algumas candidaturas ou recebendo bensou promessas em troca de votos e apoio eleitoral. É claro que, como adverteCambria (2002: 108), não se trata de imaginar que os blocos simplesmenteusem a música para fazer política, ou seja, para obter algumas vantagensmateriais. Embora isso evidentemente ocorra, também é verdadeiro que “es-ses grupos [...] usam a ‘política’ para fazer música”, ou seja, que as pequenasvantagens materiais às vezes obtidas dizem respeito precisamente às próprias

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atividades musicais (e outras) dos blocos. Mais do que isso, entretanto, trata-se, acima de tudo, de evitar o que Paul Veyne (1996: 241) denunciou comoo absurdo pressuposto do “monolitismo monoideísta” dos homens, suainverossímil “monomania”:7 como se cada grupo social, ou cada época histó-rica, pudesse se encontrar obcecado por uma questão ‘central’ – bruxaria, gado,vingança, parentesco, relações pessoais, honra, igualdade, dinheiro, religião,ou seja lá o que for. Porque, por um lado, como também escreveu Veyne (1995:15), “o homem é um ser que tem a estranha capacidade de se apaixonar porcoisas que não dizem respeito em nada a seus interesses” (propriedade antro-pológica cuja descoberta ele atribui a Simmel, que a denominaria “relaçãoobjetal”). Por outro lado, porque “a religião, a política ou a poesia podem bemser as coisas mais importantes deste mundo ou do outro sem que por issodeixem de ocupar, na prática, um lugar estreito” (Veyne 1983: 97).

Não obstante, é evidente que existe uma articulação empírica entre tam-bores e política; só que parece mais fácil levar a sério discursos outros sobre areligião ou a música do que sobre a política, assim como parece mais fácil serrelativista entre os Azande do que entre nós. Afinal, como observou MichaelHerzfeld (2001: 118), “evolutionist visions of politics die hard”, e, de fato, nãodeixa de ser impressionante o poder de resistência do evolucionismo no cam-po da política – justamente onde o estudo etnográfico das “intimidades davida cotidiana” parece mais se impor, já que os políticos “têm muito a escon-der” (idem: 125).

Apresentemos, então, a questão crucial: no mesmo sentido em que bus-camos levar a sério as músicas e religiões que estudamos, seremos efetivamentecapazes de levar a sério o que os membros dos blocos, terreiros ou outras for-mas de associação têm a dizer sobre os políticos e sobre a política? Essa é, nofundo, a ambição deste livro, e espero ter conseguido, ao menos em parte,realizá-la, apresentando aqui um relato que respeite a sensibilidade da filoso-fia política dos militantes afro-culturais de Ilhéus.

Gostaria de observar, ainda, que me parece significativo que a conversacom o político petista – que me permitiu encontrar um sentido para a histó-ria dos tambores e, principalmente, utilizá-la na direção do que poderia seruma abordagem verdadeiramente antropológica da política – tenha voltadoà minha mente em um sonho, quando este livro já estava sendo concebido.Isso, por um lado, poderia servir para colocar em seu devido lugar a hipótese,hoje na moda, de uma distância quase infranqueável entre a experiência dotrabalho de campo e a escrita etnográfica. Essa hipótese, derivada de uma con-

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cepção tímida e positivista da escrita, oculta o que qualquer escritor sabe: queo ato de escrever modifica aquele que escreve. Na antropologia, a leitura dasnotas e dos cadernos de campo, a imersão no material coletado e, principal-mente, a própria escrita etnográfica revivem o trabalho de campo, fazem comque sejamos afetados de novo.

Por outro lado, o efeito do sonho no meu trabalho revela também que,ao ser revivida no momento da escrita etnográfica, a desterritorialização so-frida no campo pode encontrar um novo solo onde se reterritorializar. Estesolo é representado em primeiro lugar, claro, pela própria etnografia, mastambém pode fazer parte da vida do etnógrafo, pois se o fato de eu ter ouvidoos tambores não parece ter alterado muito minhas relações com o sobrenatu-ral, o mesmo não pode ser dito daquelas que me ligam à política: por maisque seja difícil admitir plenamente, estou certo de que, depois de Ilhéus, estaúltima nunca mais foi a mesma para mim.

NOTAS

1 Mãe-de-santo ou pai-de-santo são os termos mais utilizados, no Brasil, para designar a prin-cipal sacerdotisa ou sacerdote de um terreiro de candomblé. Trata-se de uma tradução literaldos termos iorubá ialorixá e babalorixá. No Tombency, Dona Ilza é também chamada deNêngua de Inkice ou Mamêto Inkiceana, termos de origem aparentemente banto com omesmo significado dos anteriores. Congruentemente, uma iniciada ou iniciado no candom-blé são denominados, respectivamente, filha-de-santo ou filho-de-santo (ver, para todos ostermos do candomblé, entre outros, Cacciatore 1977).2 Ogã pode designar tanto o ocupante de algumas posições rituais masculinas (tocador deatabaque, sacrificador etc.) como um título mais ou menos honorífico concedido àqueles queauxiliam o terreiro. É uma posição masculina e aquele que a ocupa não pode ser possuídopelos espíritos. A posição feminina aproximadamente equivalente é a de equede, que, entre-tanto, não parece ser utilizada como título honorífico.3 Os fiéis do candomblé no Brasil costumam classificar os terreiros em três grandes “nações”(além de um grande números de nações menores) oriundas, em tese, das diferentes origensafricanas de seus fundadores. Assim, a nação ketu seria originária dos ioruba da Nigéria e doBenin; a gêge, dos fon do Benin, e a angola dos banto de Angola e do Congo. Há diferençasentre os terreiros que se classificam em nações distintas (e também entre os que se classificamna mesma nação), mas em Ilhéus, quase todos se consideram angola.4 Ao longo deste livro, as aspas duplas serão utilizadas como forma de marcar tanto citaçõesem geral, quanto categorias, nativas ou outras. Aspas simples serão empregadas para assina-lar tanto minhas próprias categorias como a relativização de algum termo ou expressão. O itá-lico, por sua vez, será empregado para termos em língua estrangeira e como marcador de ênfase.

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5 Em 1995, Marinho Rodrigues compôs uma música chamada Mamãe África. Parte da letradizia:

“Olha eu aquiaqui de novoreivindicando nossos direitosvai Dilazenze vaieu falei que vai, que vai vaiFazer protestoscontra o apartheidNelson Mandela negro irmãoe não apartheid nãoNão apartheid nãoié mamãe África”.

No final do ano, um cantor amigo ofereceu-se para ajudar a gravar a música em CD demoem um estúdio de Salvador. No momento da gravação, com o argumento de que o originalseria pouco comercial, ele mostrou uma nova versão, com outro título (Vai Dilazenze) e outraletra:

“Olha eu aquiaqui de novopra te abraçar, te beijarte amar do meu gostoe vai Dilazenze vaieu falei que vai, que vai vaiFazer amor é bommas não à toaeu tive a sorte de poder te encontrar numa boaE não me deixe na mãocoração, coração não se engana não”.

6 “Dizemos que eles ‘crêem’ que o mundo mítico foi real, e que o é sempre [...]. De fato, emtodos os casos desse gênero, eles não têm consciência de ‘crer’, mas de sentir, de experimentara realidade do objeto, não menos do que quando se trata dos seres e acontecimentos do mundoque os rodeia” (Lévy-Bruhl 1938:127-128). Ou, como escreveu, em linguagem bem maiscontemporânea, Paul Veyne (1983:103-104):

“O que quer dizer imaginário? O imaginário é a realidade dos outros, da mesma forma que,conforme uma expressão de Raymond Aron, as ideologias são as idéias dos outros [...], um jul-gamento dogmático sobre certas crenças de outrem”.

7 “Os homens não são monomaníacos, têm vários interesses, várias idéias ao mesmo tempo,raramente são capturados por um único grande sentimento; assim, a vida é muito cotidiana.Os homens conciliam seus centros de interesse fazendo com que se sucedam uns aos outros”(Veyne 1976:96).

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INTRODUÇÃO

ANTROPOLOGIA DA POLÍTICA E TEORIA ETNOGRÁFICA DA DEMOCRACIA

Este livro demorou demais para ser escrito e resulta de uma investigaçãoque, da mesma forma, talvez tenha durado mais tempo do que deveria. Asrazões para esse atraso, ao menos em parte, estão relacionadas a característi-cas compartilhadas com muitas pesquisas antropológicas desenvolvidas noBrasil: ritmo descontínuo do trabalho de campo e visitas relativamente cur-tas distribuídas ao longo de um amplo período de tempo. Estive em Ilhéus,pela primeira vez, em 1982; retornei, por três meses, no verão de 1983, quandorealizei a pesquisa de campo no terreiro Ewá Tombency Neto, que forneceuparte do material usado em minha dissertação de Mestrado sobre a possessãono candomblé (Goldman 1984). Nunca perdi o contato com as pessoas doterreiro ou com a cidade, mas foi apenas em 1996 que voltei ao campo pro-priamente dito, passando quase dois meses em Ilhéus por ocasião das elei-ções municipais daquele ano. Depois disso, estive lá cerca de cinco meses entre1998 e 1999, antes e depois das eleições nacionais; três meses, entre setem-bro e dezembro de 2000, por ocasião de novas eleições municipais; um mês,em dezembro de 2001; um mês, entre fevereiro e março de 2002; duas sema-nas em 2003; e duas semanas em 2004. Se somássemos tudo, mesmo abstra-indo o período mais antigo de 1983, obteríamos praticamente um ano detrabalho de campo – dividido, porém, em nada menos que cinco períodosdistintos.

Somado a essa intermitência, um pequeno acidente sofrido no campoem outubro de 2000 – que me deixou quase imobilizado por cerca de ummês – fez com que eu propusesse a Marinho Rodrigues tornar-se meu auxiliarde pesquisas, oferta que ele aceitou com alegria e desempenhou com invejá-vel competência. Por diversas razões, essa situação perdura até hoje, o que sig-nifica que recebo quase ininterruptamente informações de Ilhéus – por meiode telefonemas ou, principalmente, de longas gravações em fitas cassete –,informações estas que, dadas as admiráveis habilidades de Marinho como ob-servador, são da mais alta qualidade.

Disponho, portanto, de dados a respeito do envolvimento político domovimento afro-cultural de Ilhéus ao longo de um período de vinte anos,

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ainda que para alguns períodos essas informações sejam relativamente super-ficiais. Nesse sentido, trata-se mesmo, de uma “etnografia em movimento”, ede um “envolvimento cumulativo e de longo prazo” com o grupo estudado,no sentido que Ramos (1990: 459) confere a essas expressões.1 Mas é claro,também, que concordo plenamente com Eduardo Viveiros de Castro (1999:183-186) quando afirma que esse estilo de trabalho de campo não se opõe ao“tipo tradicional de etnografia à Malinowski” nem o dispensa, e que a idéiado campo prolongado não tem nada de mística ou de meramente ideal.

Em um registro menos acadêmico, sempre imaginei que as técnicas detrabalho de campo que, sem muito ou mesmo nenhum planejamento, aca-bei por utilizar em Ilhéus assemelhavam-se muito ao que se denomina, nocandomblé, ‘catar folha’: alguém que deseja aprender os meandros do cultodeve logo perder as esperanças de receber ensinamentos prontos e acabadosde algum mestre; ao contrário, deve ir reunindo (‘catando’) pacientemente,ao longo dos anos, os detalhes que recolhe aqui e ali (as ‘folhas’) com a espe-rança de que, em algum momento, um esboço plausível de síntese será pro-duzido. Assim, foi apenas em 2000 que realizei minha primeira entrevistagravada, à qual não se seguiram muitas outras. Da mesma forma, jamais to-mei notas na frente dos meus ‘informantes’. Por um lado, porque ninguémera apenas informante, termo infame que a antropologia compartilha com apolícia: tratava-se, muitas vezes, de amigos (com os quais eu não me sentia àvontade de agir como ‘pesquisador’) e, sempre, de interlocutores, no sentidomais abrangente, ou seja, pessoas com as quais eu dialogava, concordava ediscordava, expunha e escutava pontos de vista. Por outro lado, creio que otrabalho de campo antropológico não tem mesmo muita relação com as en-trevistas, ainda que estas possam servir como complemento das informaçõesobtidas por outras vias – mas sempre no final da pesquisa, quando o etnógrafojá possui um certo controle sobre os dados e as relações com os informantes.2

Essas outras vias sempre foram uma convivência intensa e quase cotidiana commembros do movimento negro de Ilhéus. Entretanto, dado o caráter segmen-tar deste movimento, foi preciso e inevitável que essa convivência fosse dife-renciada. Adianto desde logo, pois, que os pontos de vista sobre política queeste livro tenta recuperar, e com os quais pretende dialogar, não dizem res-peito a nenhum nativo genérico, nem negro, nem de classe popular, nemilheense, nem baiano, nem brasileiro, nem uma mistura de tudo isso. Trata-se de pessoas muito concretas, cada uma dotada de suas particularidades e,sobretudo, agência e criatividade.3

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Advirto, igualmente, que isso não tem nada a ver com nenhum tipo derevelação pós-moderna: como lembrou há tempos José Guilherme Magnani(1986: 129-130), desde 1916, Malinowski não apenas criticava o insustentá-vel pressuposto de existência de uma “opinião nativa”,4 como revelava que éjustamente a diversidade de opiniões que permite ao etnógrafo reconstituir oque denominava “fatos invisíveis” (Malinowski 1935, vol. 1: 317). A noçãode representação é de fato problemática (Magnani 1986: 127-128) e o traba-lho de campo é sobretudo uma atividade construtiva ou criativa, pois os fatosetnográficos “não existem” e é preciso um “método para a descoberta de fatosinvisíveis por meio da inferência construtiva” (Malinowski 1935, vol. 1: 317).Nesse sentido, se a história se escreve, como quer Paul Veyne (1978: cap. 85),por “retrodicção” – ou seja, por meio do preenchimento a posteriori das lacu-nas de informação possibilitado por novas descobertas e por comparação –, aetnografia malinowskiana seria, antes, da ordem de uma espécie de ‘entre-dicção’: o etnógrafo deve articular os diferentes discursos e práticas parciais(no duplo sentido da palavra, parcelares e interessadas) que observa, sem ja-mais atingir nenhum tipo de totalização ou síntese completa. Tudo se passaum pouco como na história relatada em alguma parte por Malinowski. EmTrobriand, diferentes fórmulas mágicas familiares trobriandesas são proprie-dade de distintas famílias, e cada uma possui um número limitado destasfórmulas. Acontece que, por dever do ofício, o antropólogo deve coletar omaior número possível destas, o que, nesse caso, fez de Malinowski o maiorproprietário individual de fórmulas mágicas das ilhas. Isso não significavagrande coisa, claro, uma vez que o importante é ter uma fórmula que outrosnão tenham, o que, evidentemente, não podia acontecer com o antropólo-go. De toda forma, é sempre assim que as coisas se dão no campo: nosso sa-ber é diferente daquele dos nativos, não por ser mais objetivo, totalizante ouverdadeiro, mas simplesmente porque decidimos a priori conferir a todas ashistórias que escutamos o mesmo valor.

Essa ‘entredicção’, contudo, não significa que, no campo, possamos, oumesmo que devamos tentar, estabelecer o mesmo tipo de relação com todos.Se, como veremos, o movimento negro de Ilhéus é marcado pela segmen-taridade, o mesmo parece ocorrer com as relações que fui capaz de construircom seus militantes. No círculo mais restrito estariam Marinho Rodrigues eJaco Santana.6 Em seguida, distribuídos por círculos concêntricos: Dona IlzaRodrigues e seus filhos (e respectivas famílias nucleares); alguns membros daseção local do PT; outros membros do Dilazenze, do Tombency e moradores

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da Conquista; militantes negros do movimento afro-cultural; militantes ne-gros da facção “política” e alguns políticos profissionais, negros ou não; ou-tros políticos e habitantes de Ilhéus. Com algumas dessas pessoas, minhasrelações foram – algumas ainda são – muito intensas; com outras, menos; e,em alguns casos, reduziram-se a pouquíssimos encontros, alguns superficiais.

De toda forma, o estatuto a que a pesquisa que deu origem a este livrosempre aspirou foi o de uma investigação antropológica da política em Ilhéus,o que significa, creio, que sua pretensão principal é de fato a busca de um‘ponto de vista nativo’. Esta questão, como se sabe, vem sendo, nos últimosanos, objeto de uma controvérsia tão grande que exige que nela nos detenha-mos um pouco. É provável que tenha sido Clifford Geertz o principal res-ponsável por essa controvérsia, assim como pela idéia, muito difundida hoje,de que existiria uma espécie de mainstream antropológico em torno do tra-balho de campo e da etnografia. Mainstream que sustentaria, muito resumi-damente, que o trabalho de campo dependeria de uma identificação do an-tropólogo com seus nativos, o que permitiria, por um lado, captar o pontode vista desses últimos e, por outro – como viriam a acrescentar alguns dosalunos de Geertz –, representar com “autoridade etnográfica” a sociedadeestudada.

Contra essa idéia de que a etnografia seria condicionada por uma espé-cie de sensibilidade especial que permitiria ao etnógrafo pensar, sentir e per-ceber como os nativos, Geertz escreveu, em 1974, seu famoso ensaio sobre“o ponto de vista do nativo”. Aí, como se sabe, sustenta que a etnografia de-penderia mais da capacidade de se situar a uma distância média entre concei-tos muito concretos, “próximos da experiência” cultural, e conceitos abstra-tos, “distantes da experiência”, do que de uma habilidade de identificaçãoqualquer: “uma interpretação antropológica da bruxaria não deve ser escritanem por um bruxo, nem por um geômetra” (Geertz 1983: 57). Nesse senti-do, é o fato inelutável de que o etnógrafo é um observador estrangeiro, capazde apreender, como objetos, realidades para as quais os nativos são relativa-mente, mas não necessariamente, cegos, que garantiria a possibilidade daetnografia. Esta deveria consistir, pois, na investigação das mediações que seinterpõem entre os nativos e sua experiência social, possibilitando assim aanálise das diferentes formas simbólicas pelas quais os nativos se expressam.7

Confesso que essas concepções sobre o trabalho de campo e a etnografiame parecem ser mais o produto de sua crítica do que uma realidade previa-mente existente. Ao lado de coisas como o relativismo absoluto ou a autori-

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dade do antropólogo sobre o grupo que estuda, a idéia de uma identificaçãototal do etnógrafo com seus nativos parece ser uma dessas figuras muitoevocadas e jamais vistas na história da disciplina. E se o tema é de fato fre-qüentemente mencionado – seja para assinalar um risco mortal para umadisciplina com pretensões científicas, seja para celebrar os méritos de umempreendimento humanista –, ele nunca é acompanhado por exemplos con-cretos. Não obstante, o problema central aqui não é tanto que ‘virar nativo’seja impossível ou ridículo, mas que, em todo caso, é uma idéia fútil e plenade inutilidade.

As reflexões de Geertz, como também se sabe, dirigem-se a Malinowskie sua “observação participante”. Penso, contudo, que seria preciso reconhe-cer que essa noção não é assim tão clara quanto costuma parecer. A célebre“Introdução” aos Argonautas, de fato, sugere ao etnógrafo que, de vez emquando, deixe de lado máquina fotográfica, lápis e caderno, e participe pes-soalmente do que está acontecendo (Malinowski 1922: 31). É difícil, entre-tanto, acreditar que Malinowski estivesse dizendo apenas que a observaçãoparticipante consistiria em “tomar parte nos jogos dos nativos” ou dançar comeles. Ao contrário, ao converter a antiga “antropologia de varanda” (StockingJr. 1983) em trabalho de campo efetivo, Malinowski parece ter operado naantropologia um movimento em tudo semelhante ao de Freud na psiquia-tria: em lugar de interrogar histéricas ou nativos, deixá-los falar à vontade. Aobservação participante significa, portanto, muito mais a possibilidade decaptar as ações e os discursos em ato do que uma improvável metamorfoseem nativo. E como este último, em geral, e ao contrário da histérica, nãoprocura nem é levado ao gabinete do antropólogo, o trabalho de campo tor-na-se uma necessidade.

É provável, também, que as páginas de Coral gardens and their magic emque Malinowski discute “o método do trabalho de campo e os fatos invisíveisdo direito e da economia nativos” (Malinowski 1935, vol. 1: 317-340) e ex-põe suas “confissões de ignorância e fracasso” (idem, vol. 1: 452-482), assimcomo aquelas em que elabora sua “teoria etnográfica da linguagem” (idem,vol. 2: 3-74) e sua “teoria etnográfica da palavra mágica” (idem, vol. 2: 211),sejam bem mais importantes para uma justa compreensão da “mágica doetnógrafo” do que aquelas, bem mais conhecidas ou pelo menos bem maiscitadas, da “Introdução” aos Argonautas. Pois é em Coral gardens, e em tornoda noção, à primeira vista muito estranha, de “teoria etnográfica”, que Mali-nowski parece responder antecipadamente a algumas das críticas a ele formu-ladas a partir da década de 1970.

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Uma teoria etnográfica, de seu ponto de vista, não se confundiria nemcom uma teoria nativa (sempre cheia de vida, mas por demais presa às vicis-situdes cotidianas, às necessidades de justificar e racionalizar o mundo tal qualele parece ser, sempre difícil de transplantar para outro contexto), nem como que Malinowski viria a denominar mais tarde “uma teoria científica dacultura” (cuja imponência e alcance só encontram paralelo em seu caráteranêmico e, em geral, pouco informativo). Evitando os riscos do subjetivismoe da parcialidade, por um lado, e do objetivismo e da arrogância, por outro,Malinowski parece ter descoberto “o soberbo ponto mediano, o centro. Nãoo centro, ponto pusilânime que detesta os extremos, mas o centro sólido quesustenta os dois extremos num notável equilíbrio” (Kundera 1991: 78).

É importante não se equivocar aqui. A diferença entre teorias nativas,etnográficas e científicas não repousa sobre uma repartição judiciosa de errose verdades nem sobre uma suposta maior abrangência das últimas, mas sobrediferenças de recortes e escalas, de programas de verdade, como diria PaulVeyne – que diz também que tudo se resume a uma escolha entre “explicarmuito, porém mal, ou explicar pouca coisa, porém muito bem” (Veyne 1978:118), ou seja, entre a explicação histórica ou humana (“sublunar”, nas pala-vras de Veyne), que é na verdade uma explicitação, e a científica ou praxio-lógica.8 Uma teoria etnográfica, conseqüentemente, pretende explicar (nosentido de explicitar) muita coisa, e o máximo a que se pode aspirar é queisso seja feito razoavelmente bem.

Uma teoria etnográfica tem, portanto, como objetivo central elaborarum modelo de compreensão de um objeto social qualquer (linguagem, ma-gia, política etc.), o qual, mesmo produzido em e para um contexto particu-lar, possa funcionar como matriz de inteligibilidade em e para outros contex-tos. Nesse sentido, permite superar os conhecidos paradoxos do particular edo geral, assim como, talvez, os das práticas contra as normas ou das realida-des em oposição aos ideais. Isso porque se trata sempre de evitar as questõesabstratas a respeito de estruturas, funções ou mesmo processos, e dirigi-laspara os funcionamentos e as práticas.9

Assim, se o objetivo último deste livro é esboçar uma teoria etnográficada política ou da democracia, não é porque se limita a uma cidade em parti-cular, suas eleições e seus movimentos negros, deixando de lado os níveis maisgerais ou abstratos. Uma teoria etnográfica procede um pouco à moda dopensamento selvagem: emprega os elementos muito concretos coletados notrabalho de campo – e por outros meios – a fim de articulá-los em proposi-

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ções um pouco mais abstratas, capazes de conferir inteligibilidade aos acon-tecimentos e ao mundo.10 Trata-se aqui, assim, de uma tentativa de elabora-ção de uma grade de inteligibilidade que permita uma melhor compreensãode nosso próprio sistema político. Para isso, recorre-se certamente a aconte-cimentos muito concretos, mas também a teorias nativas muito perspicazes ea formulações mais abstratas quando estas se mostram úteis.

Se Malinowski foi capaz de pôr em destaque as dimensões pragmáticasda linguagem humana em geral, isso se deve, sem dúvida, ao fato de ter ela-borado uma teoria etnográfica da linguagem a partir do material trobriandês,em que a estreita vinculação entre palavra e magia permite ao pesquisadorperceber, com mais clareza do que em outros contextos, o caráter performáticoda linguagem humana. O mesmo poderia ser dito da relação entre a teoria dareciprocidade e o kula ou o potlatch, ou entre a teoria da segmentaridade e aslinhagens dos Nuer, Tallensi e Dinka.

Do mesmo modo, uma teoria etnográfica da política ou da democracia,elaborada em um contexto em que são muito menos marcados os valores,crenças e ideologias que permitem suportar, obscurecer ou neutralizar as evi-dentes contradições e disfunções de nosso sistema político, tem a virtude depoder revelar com mais clareza os efetivos modos de funcionamento dessesistema. Além disso, mas não menos importante, pode ajudar também a sus-pender os julgamentos de valor, quase inevitáveis quando um tema tão cen-tral em nossas vidas é submetido à análise.

Ecos dessas posturas malinowskianas sempre estiveram presentes nasdiscussões antropológicas relativas ao lugar da pesquisa de campo e daetnografia em sua prática. Contudo, e curiosamente, tais ecos foram mais bemelaborados fora da imaginária mainstream criticada por Geertz e, mais tarde,pelos pós-modernos, e fora de suas próprias críticas. Pois se o trabalho decampo intensivo é uma exigência da antropologia, e mesmo sem querer pa-recer nominalista demais, creio ser preciso admitir que este possui diferentesacepções na história da disciplina. Podemos imaginá-lo, por exemplo, comouma simples técnica, ou seja, como a obtenção de informações que, de direi-to, embora talvez não de fato, poderiam ser obtidas de outra forma (e é isso oque parece ocorrer na mencionada “antropologia de varanda”); ou podemosdefinir o trabalho de campo como método, o que implica que as informaçõessó poderiam ser obtidas dessa forma. No entanto, poderíamos também se-guir Lévi-Strauss e dizer que são as próprias características epistemológicasda disciplina que exigem a experiência de campo.

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“Enquanto a sociologia se esforça em fazer a ciência social do observa-dor”, escreveu Lévi-Strauss (1954: 397), “a antropologia procura, por sua vez,elaborar a ciência social do observado”. “A sociologia”, prossegue, “é estreita-mente solidária com o observador”, e, mesmo quando toma por objeto umasociedade diferente, adota o ponto de vista daquela do observador; ainda quan-do pretende falar da “sociedade em geral”, é “do ponto de vista do observa-dor” que amplia sua própria perspectiva. A antropologia, ao contrário, ela-boraria a ciência social do observado, adotando o ponto de vista do nativo ouo de um “sistema de referência fundado na experiência etnográfica [...], inde-pendente, ao mesmo tempo, do observador e de seu objeto” (ibidem). É nes-se sentido que Lévi-Strauss pôde também escrever que a distinção entre his-tória e antropologia se deve menos à ausência de escrita nas sociedades estu-dadas pelos antropólogos do que ao fato de que “o etnólogo se interessa so-bretudo pelo que não é escrito, não tanto porque os povos que estuda sãoincapazes de escrever, como porque aquilo por que se interessa é diferente detudo o que os homens se preocupam habitualmente em fixar na pedra ou nopapel”.11 A antropologia teria desenvolvido, desse modo, “métodos e técni-cas apropriados ao estudo de atividades que permanecem [...] imperfeitamenteconscientes em todos os níveis em que se exprimem” (Lévi-Strauss 1949: 32-33). É por isso que o trabalho de campo não poderia ser considerado apenas“um objetivo de sua profissão, nem um remate de sua cultura, nem uma apren-dizagem técnica. Representa um momento crucial de sua educação” (Lévi-Strauss 1954: 409). Representaria para o antropólogo, enfim, o que a “análi-se didática” costumava representar para o psicanalista: a única forma de ope-rar a síntese de conhecimentos obtidos de forma fragmentada e a condiçãopara a justa compreensão até mesmo de outras experiências de campo.

Tal concepção do trabalho de campo como uma espécie de processo (outrabalho, no sentido psicanalítico do termo) aponta para duas questões emgeral deixadas de lado tanto pelos etnógrafos, quando refletem sobre sua ex-periência, quanto por aqueles que os criticam sem nunca ter passado por esta.A primeira é que o etnógrafo também é, ou deveria ser, modificado por ela.Limitar-se, então, a comentar a posteriori os efeitos de sua presença sobre osnativos, tecendo comentários abstratos sobre seu trabalho de campo, parecerevelar uma certa sensação de superioridade: invulnerável, o antropólogo atra-vessa a experiência etnográfica sem se modificar seriamente, acreditando-seainda capaz de avaliar de fora tudo o que teria ocorrido. Melhor seria ouvir aadvertência levistraussiana: “não é jamais ele mesmo nem o outro que ele [oetnógrafo] encontra ao final de sua pesquisa” (Lévi-Strauss 1960: 17).

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Essa perspectiva a respeito do trabalho de campo e da etnografia parecearticular-se muito estreitamente com a idéia estruturalista de que cada socie-dade atualiza virtualidades humanas universais e, portanto, potencialmentepresentes em outras sociedades. O nativo, nesse sentido, não é mais pensadosimplesmente como aquele que eu fui (como ocorre no evolucionismo), oucomo aquele que eu não sou (como ocorre no funcionalismo), ou mesmocomo aquele que eu poderia ser (como ocorre no culturalismo): ele é o queeu sou parcial e incompletamente (e vice-versa, é claro).

Ora, se adotarmos um ponto de vista um pouco diferente, podemos talvezser mais diretos e dizer que o trabalho de campo e a etnografia deveriam dei-xar de ser pensados como simples processos de observação (de comportamen-tos ou de esquemas conceituais), ou como formas de conversão (assumir oponto de vista do outro), ou como uma espécie de transformação substancial(tornar-se nativo). Fazer etnografia poderia ser entendido, antes, sob o signodo conceito de devir – desde que, é claro, sejamos capazes de entender bemem que poderia consistir esse ‘devir-nativo’.12

Tentando definir de forma breve o conceito de devir, que cunhou comDeleuze, Guattari escreveu que este é um

“[...] termo relativo à economia do desejo. Os fluxos de desejo procedem porafetos e devires, independentemente do fato de poderem ser ou não rebatidossobre pessoas, imagens, identificações. Assim, um indivíduo antropologicamenteetiquetado masculino pode ser atravessado por devires múltiplos e, em apa-rência, contraditórios: devir feminino coexistindo com um devir criança, umdevir animal, um devir invisível, etc” (Guattari 1986b: 288).

Isso significa que o devir não é da ordem da semelhança, da imitação ouda identificação; não tem nada a ver com relações formais ou com transfor-mações substanciais: “não é nem uma analogia, nem uma imaginação, masuma composição de velocidades e de afetos” (Deleuze e Guattari 1980: 315).O devir, na verdade, é o movimento pelo qual um sujeito sai de sua própriacondição por meio de uma relação de afetos que consegue estabelecer comuma condição outra. Estes afetos não têm absolutamente o sentido de emo-ções ou sentimentos, mas simplesmente daquilo que afeta, que atinge, modi-fica: um devir-cavalo, por exemplo, não significa que eu me torne um cavaloou que eu me identifique psicologicamente com o animal: significa que “oque acontece ao cavalo pode acontecer a mim” (idem: 193), e que essas afecçõescompõem, decompõem ou modificam um indivíduo, aumentando ou dimi-

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nuindo sua potência (&: 310-311). É nesse sentido que existe uma “realida-de do devir-animal, sem que, na realidade, nos tornemos animal” (idem: 335).

Mas é preciso compreender, também, o estatuto das duas condições,aquela da qual se sai e aquela por meio da qual se sai. Só é possível sair, oufugir, de uma maioria; esse termo não designa, contudo, “uma quantidaderelativa maior”, mas “um estado ou um padrão em relação ao qual tanto asquantidades maiores quanto as menores serão ditas minoritárias” (idem: 356).Em outros termos, Deleuze e Guattari buscam distinguir a noção meramen-te quantitativa de maioria daquela, normativa e valorativa, do “maior” ou “ma-joritário”.13 De forma correlata, a minoria não se confunde com o minoritário,e, enquanto a primeira é apenas uma quantidade menor, o segundo é aquiloque escapa, que foge do padrão, que devém: “é preciso não confundir ‘mino-ritário’ enquanto devir ou processo, e ‘minoria’ como conjunto ou estado”(ibidem). É nesse sentido que devir-nativo, por exemplo, não significa tor-nar-se nativo, o que, se fosse possível,14 redundaria simplesmente em sair deum estado (de maioria) para cair em outro (de minoria). Mas é também nes-se sentido que percebemos que só se escapa dos estados maiores por meio dasminorias, uma vez que, por desviar do maior, toda minoria comporta umdevir-minoritário, ainda que as minorias propriamente ditas sejam, princi-palmente, apenas “germes, cristais de devir, que só valem enquanto detona-dores de movimentos incontroláveis e de desterritorializações da média ouda maioria” (idem: 134).

Um devir-nativo, portanto, implica um duplo movimento: uma linhade fuga em relação a um estado-padrão (maioria) por meio de um estado não-padrão (minoria), sem que isso signifique “reterritorializar-se sobre uma mi-noria como estado” (idem: 357), mas, bem ao contrário, ser capaz de cons-truir novos territórios existenciais onde se reterritorializar.15 O devir, assim, éo que nos arranca não apenas de nós mesmos, mas de toda identidade subs-tancial possível. E é por isso que Deleuze e Guattari (idem: 317) insistem nofato de que o devir também afeta o meio: aquilo que se devém – ou, para sermais preciso, aquilo por meio de que um devir se constitui – devém tambémoutra coisa, o que significa que o devir-nativo está relacionado a um devir-outro do nativo.16

No campo, tudo se passa como na intensa experiência de campo vividapor Jeanne Favret-Saada (197717) ao estudar a feitiçaria no Bocage francês.Não se trata simplesmente, como observou a autora, de apelar para a obser-vação participante: tendo sempre adotado uma concepção psicológica e

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racionalista da participação (como identificação ou compreensão, termos queimplicam distância e separação), a antropologia teria sido conduzida a reterapenas a observação, gerando assim uma “desqualificação da palavra indíge-na” e uma “promoção da do etnógrafo”. Ao contrário, participar – prossegueFavret-Saada – significa a necessidade de o etnógrafo aceitar ser afetado pelaexperiência indígena, o que “não implica que ele se identifique com o pontode vista indígena, nem que aproveite a experiência de campo para excitar seunarcisismo” (Favret-Saada 1990: 7). Significa, sobretudo, deixar-se afetar pelasmesmas forças que afetam o nativo, não se colocar em seu lugar ou desenvol-ver em relação a ele algum tipo de empatia. Não se trata, portanto, da apre-ensão emocional ou cognitiva dos afetos dos outros, mas de ser afetado poralgo que os afeta e assim poder estabelecer com eles uma certa modalidade derelação, concedendo “um estatuto epistemológico a essas situações de comu-nicação involuntária e não intencional” (idem: 9). E é justamente por nãoconceder “estatuto epistemológico” a essas situações que a “observação parti-cipante” é mais um obstáculo que uma solução.18

* * *

Este livro segue as contingências e as escolhas intelectuais e existenciaisque marcaram a pesquisa de que é fruto. Mas segue também aquelas (explici-tadas no segundo capítulo) que marcaram a trajetória intelectual de seu au-tor, bem como a história política brasileira recente, em relação à qual estetrabalho correu de forma estranhamente paralela. Em um encontro acadê-mico realizado no início da pesquisa, sustentei, algo pretensiosamente, que oobjetivo de um estudo antropológico sobre política deveria consistir, em úl-tima instância, na elaboração de uma perspectiva sobre nosso próprio siste-ma político equivalente àquela elaborada, por exemplo, por Evans-Pritchardpara os Nuer, que analise, assim, a democracia como parte dos ‘Western PoliticalSystems’. Perguntaram-me, imediatamente, se essa posição não seria arriscadademais, uma vez que parecia supor ou pregar algum tipo de relativização dademocracia, a qual, segundo minha interlocutora, representaria um enormeperigo ético e político.19

Essa postura, reconheçamos de início, parece inteiramente compreensí-vel no contexto brasileiro. Afinal, a história recente do país é, em geral, con-tada como uma difícil luta por sua (re)democratização. Após uma instávelexperiência democrática no pós-guerra, o país mergulhou, por mais de duas

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décadas, em uma ditadura militar, da qual só saiu, lenta e gradualmente, coma abertura política empreendida pelo próprio regime militar, que culminoucom a eleição, ainda indireta, de um presidente civil, e, em 1989, com a pri-meira eleição direta após quase trinta anos. Quis o destino que o presidenteassim eleito sofresse um processo de impedimento legal, o que, na prática,fez com que as eleições de 1994, com a escolha de um intelectual de tendên-cias social-democratas e antigo opositor ao regime militar, viessem a ser en-caradas como o verdadeiro marco da instauração plena da democracia.

O problema, como se sabe, é que Fernando Henrique Cardoso não ape-nas se aliou justamente a algumas das forças que haviam apoiado o regimemilitar, como manobrou para conseguir uma emenda constitucional que per-mitiu sua reeleição em 1998. Desse modo, argumentam alguns, a verdadeiraredemocratização aconteceria apenas em 2002, com a eleição de Luiz InácioLula da Silva – sindicalista, líder de um partido inequivocamente de esquer-da, sempre na oposição. No entanto, assim como seu antecessor, para se ele-ger, e principalmente para governar, o Partido dos Trabalhadores acabou sealiando com partidos e políticos dos quais sempre tinha buscado se diferen-ciar e, mais do que isso, implementou políticas e empregou métodos queapenas a inacreditável retórica dos políticos profissionais é capaz de conciliarcom as posições históricas do partido.

Compreende-se, assim, perfeitamente que, sobre o fundo de uma nar-rativa tecida em torno da ‘redemocratização’, mesmo aqueles que acreditamque o Brasil ainda não vive em um regime democrático perfeito desconfiemcom força de qualquer tentativa, real ou suposta, de ‘relativizar’ a democra-cia. Por outro lado, é claro que, a esse tipo de narrativa, opõem-se outras, queinsistem na postura antidemocrática assumida pelas elites e pela mídia, nasimperfeições de um sistema eleitoral ultrapassado, na inconstância dos parti-dos políticos e na falta de educação política de um povo pobre.

De uma forma ou de outra, a questão é que todas essas narrativas têmem comum o fato de serem negativas, no sentido de que as razões dos proble-mas detectados são sempre remetidas à falta de algum elemento tido comoessencial: “racionalidade, informação, tradição e organização partidárias, efi-ciência governamental, etc.” (cf. Goldman e Sant’Anna 1995: 22). Assim,parece ter sido necessário que um membro de seu grupo chegasse ao poderpara que os intelectuais começassem a perceber que podiam comportar-sepoliticamente do mesmo modo que imaginavam que apenas os eleitores co-muns fariam (justificando seu voto pelas qualidades pessoais de seu candida-

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to; racionalizando a posteriori profundas mudanças de posicionamentos po-líticos; defendendo, em nome de interesses superiores, alguns casuísmos econtinuísmos etc.). E parece ter sido igualmente necessário que um presidentede esquerda fosse eleito para que percebêssemos que suas opções podem serbem diferentes das que imaginávamos ou gostaríamos que fossem.

É no sentido da superação desses obstáculos – em parte derivados dolugar central que a democracia ocupa nos setores de nossa sociedade de que,em geral, fazem parte os intelectuais – que uma abordagem antropológica dapolítica deve caminhar. Contudo, não se trata simplesmente de relativizar,nem de crer ou não crer na democracia. Como bem observou Velho (1995:172), o “lugar de crítica” do relativismo parece bastante limitado e talvez sejamesmo necessário “relativizar” essa pretensão. Na verdade, trata-se de não seringênuo ou apologista demais, nem antropólogo de menos, e reconhecer que,sendo um sistema político como outro qualquer, o nosso também é passívelde uma análise crítica.20 Porque, por um lado, o melhor elogio que pode serfeito à democracia é mesmo o velho adágio segundo o qual ela é o pior siste-ma político existente, com exceção de todos os demais (conhecidos). Por outro,isso não modifica nada se pretendemos analisá-la como antropólogos, caben-do, então, simplesmente, a busca do melhor meio para fazê-lo, pois é eviden-te que essa análise antropológica da democracia pode ser efetuada de diferen-tes modos.

Assim, se no começo de meu trabalho de campo o objeto a ser investiga-do, de um ponto de vista antropológico, era ‘a política em Ilhéus’, isso logose transformou em ‘a política em Ilhéus a partir das relações mantidas pelomovimento negro com os políticos’, ou ‘o modo como a política partidáriaincide sobre o movimento negro da cidade’, recortes que pareciam mais ade-quados a um trabalho de antropólogo. No entanto, foi necessário um passosuplementar para perceber que havia algo a mais em jogo e que uma pesquisarealmente antropológica sobre política desenvolvida junto ao movimentonegro em Ilhéus não deveria consistir tanto no estudo desse movimento emsi ou da política na cidade, nem mesmo no estudo das relações entre ambos,mas em uma análise da política oficial na cidade orientada pela perspectivacética que o movimento negro tem a seu respeito. O que pode parecer sim-ples nuança é, na verdade, uma questão fundamental, uma vez que se apóiaem opções metodológicas e epistemológicas cruciais – ainda que inicialmen-te algo involuntárias –, as quais abriram outras perspectivas para a compre-ensão da própria política como um todo e em seu sentido mais oficial.

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Pois, se a antropologia se desenvolveu buscando estudar outras socieda-des de um ponto de vista a elas imanente, uma das dificuldades da disciplina,quando se volta para o estudo da sociedade do observador, parece ser sua in-capacidade de manter simultaneamente o descentramento de perspectiva quesempre a caracterizou e a capacidade de dar conta das variáveis sociais efetiva-mente estruturantes. Assim, para ser fiel ao primeiro imperativo, busca-se,por vezes, na sociedade do analista, fenômenos que apresentem alguma dis-tância ou alteridade em face das forças dominantes. Ou, ao contrário, ten-tando obedecer ao segundo princípio, concentra-se a investigação nos cen-tros de poder e esforça-se por reconduzir os fatos estudados a formas que aantropologia tradicionalmente privilegiou. No primeiro caso, o risco sempreà espreita é o de conferir privilégio quase exclusivo a fenômenos ou dimen-sões ‘marginais’, ou seja, incapazes de tornar inteligíveis processos de estru-turação mais amplos. No segundo, pode-se acabar adotando uma perspecti-va por demais afinada com as dominantes (provocando a perda da originali-dade da abordagem antropológica) ou passar a tratar como exótico ou inessen-cial aquilo que é estruturante. No caso dos estudos sobre política, os riscosenvolvidos são o privilégio de detalhes pitorescos, mas secundários, do envol-vimento político dos grupos estudados; a mímese da ciência política ou mes-mo do ponto de vista dos políticos; e a redução do complexo jogo político arituais, cosmologias ou formas de reciprocidade – termos que, por mais queos antropólogos se esforcem por negar, tendem sempre a enfraquecer acentralidade e a eficácia de alguns fatos quando estudados entre nós.

Foi, provavelmente, Bruno Latour quem, mais recentemente, colocouo dedo nessa ferida da chamada antropologia das sociedades complexas. Aosugerir que os antropólogos são “audaciosos com relação aos outros e tímidosquanto a si mesmos” (Latour 1994: 100), Latour denuncia o erro da antro-pologia de nossa sociedade em imaginar só poder estudar “o primitivo emnós”: o “grande repatriamento”, diz ele, “não pode parar aí” e seria precisopassar a estudar as dimensões centrais de nossa sociedade (idem: 99). O pro-blema é que, em face dessa constatação, um antropólogo tende inevitavel-mente a levantar a questão que Latour não levanta: dimensões centrais paraquem?21 Pois os militantes negros de Ilhéus podem perfeitamente reconhe-cer a importância da política no sentido em que ela afeta suas vidas, mas ja-mais concordariam em considerá-la ‘central’: a música, a religião ou o traba-lho o seriam certamente muito mais. Para permanecer fiel ao ‘ponto de vistanativo’, será preciso, então, renunciar à capacidade de conferir uma inteligi-

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bilidade mais global? Ou, para atingir uma tal inteligibilidade, será necessá-rio tratar a perspectiva nativa como simples parte do objeto e explicá-la a partirdo nosso ponto de vista tido como superior?

Observemos, também, que esse dilema aparentemente insolúvel apare-ce com força ainda maior quando abordamos dimensões que nós (quer dizer,intelectuais em geral) consideramos centrais. Isso significa que talvez fossepreciso reconhecer que se a prática mais tradicional do antropólogo costumaconfrontá-lo com situações em que, por convicção ou simples profissio-nalismo, ele deve comportar-se como um cético que se defronta com pes-soas, grupos ou mesmo sociedades inteiras concebidas por ele, em maior oumenor grau, como crentes, há situações (e o caso da política é aqui exemplar)em que tudo parece ocorrer de forma bem diferente. Quais seriam, então, osefeitos de uma inversão dessa natureza – quando nossos informantes se mos-tram céticos e os antropólogos mais ou menos crédulos, não importando, porora, que credulidade e ceticismo sejam dados objetivos, pressupostos metodo-lógicos ou mesmo projeções etnocêntricas – para o estudo de instituições,valores ou processos que o antropólogo considera centrais em sua própriasociedade?

Parece-me, assim, que uma outra possibilidade para a chamada antro-pologia das sociedades complexas seria a manutenção do foco tradicional dadisciplina nas instituições tidas como centrais e a busca, por meio de umaespécie de ‘desvio etnográfico’, de um ponto de vista descentrado. Ou seja,se, como pretende Herzfeld (2001: 3-5), a característica da antropologia é ainvestigação daquilo que é ‘marginal’ em relação aos centros de poder, é pre-ciso admitir que uma tal marginalidade poderia localizar-se não apenas nospróprios fenômenos, mas também, e talvez principalmente, na perspectivasobre eles.

Como não é difícil de imaginar, a opinião da maior parte dos membrosdo movimento afro-cultural de Ilhéus em relação aos políticos é inteiramen-te negativa. Mas aquilo que confundia ou mesmo indignava no princípio dainvestigação – as afirmativas sempre repetidas de que todos os políticos e to-dos os partidos são iguais; a certeza de que nenhum resultado eleitoral serácapaz de alterar o destino das pessoas mais humildes; o fato de que, em trocade pequenas retribuições materiais, pessoas muito pobres são capazes de vo-tar e apoiar aqueles mesmos que as exploram – pode ser utilizado de modoprodutivo. Para isso, é estritamente necessário passar a encarar as práticas na-tivas (discursivas e não discursivas) sobre os processos políticos dominantes

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como verdadeiras teorias políticas produzidas por observadores suficientemen-te deslocados em relação ao objeto para produzir visões realmente alternati-vas, e usar essas práticas e teorias como guias para a análise antropológica.

Como sugeriram Barreira e Palmeira (1998: 8), a proliferação de teoriasque encontramos no domínio dos estudos eleitorais se dá, em geral, com osacrifício das representações nativas. Mais do que isso, entretanto, talvez sejanecessário expandir o movimento teórico que, já há alguns anos, vem mos-trando a necessidade de tratar nossas teorias como representações sociais,acrescentando a ele um outro movimento, capaz de reconhecer a dimensãoreflexiva e – por que não? – teórica das próprias representações sociais. Noséculo XIX, o fato de essas teorias nativas não apresentarem, em geral, o cará-ter de sistemas fechados e coerentes talvez pudesse ser utilizado para negarsua natureza verdadeiramente teórica. Hoje, contudo – depois de até mesmoas ciências exatas e naturais terem abandonado essa noção de teoria, substitu-indo-a pela de sistemas abertos e flexíveis –, a objeção perdeu sua força e sópoderia ser mantida como preconceito injustificável.22

Além disso, no caso específico da política, uma razão suplementar po-deria ser invocada a favor da valorização das teorias nativas. Como observouMichel Foucault, uma das grandes novidades que apareceram a partir da dé-cada de 1960 foi o que ele denominou “insurreição dos saberes dominados”(Foucault 1976a: 163), seja no sentido da memória de certas modalidades deresistência que as formalizações teóricas tendem a mascarar em benefício doque consideram as únicas lutas verdadeiras (em geral aquelas travadas nosgrandes cenários de disputa eleitoral ou, no máximo, no movimento operá-rio), seja naquele da existência de saberes locais que tendem a ser desacredita-dos pelo saber oficial. O “acoplamento entre o saber sem vida da erudição eo saber desqualificado pela hierarquia dos conhecimentos e das ciências” per-mitiria, assim, a “reativação dos saberes locais – menores, diria talvez Deleuze– contra a hierarquização científica do conhecimento e seus efeitos intrínse-cos de poder” (idem: 164-165).

* * *

Em lugar de abordar a política em si mesma e por si mesma, trata-se,pois, nos termos de Foucault (1980: 101-102), de tentar decodificá-la pormeio de filtros oriundos de outros campos sociais. De certa forma, esse tra-balho de decodificação poderia ser a própria definição de uma antropologiapolítica em sentido estrito, embora a expressão venha conotando há muito

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tempo coisas bem diferentes. A própria incorporação da política como obje-to ou área da antropologia tende a ser pensada, sabe-se, como tendo ocorri-do, supostamente, apenas na década de 1940. Penso, contudo, que a questãodo poder sempre esteve no centro da antropologia, desde a própria constitui-ção da disciplina. E isso não apenas porque foram, em parte, questões de ordempolítica que motivaram os trabalhos que viriam a ser considerados fundado-res (Kuper 1988), como, principalmente, porque a antropologia se consti-tuiu a partir de uma ‘grande divisão’ separando sociedades ‘políticas’ e ‘nãopolíticas’ (ver Clastres 1974, particularmente o capítulo 1).23 As primeiras,em especial as ocidentais, dotadas de Estado, estariam territorialmente orga-nizadas e estariam fundadas em um contrato entre indivíduos livres que ce-deriam sua soberania àqueles que os representariam. As segundas, ‘sem Esta-do’, ‘primitivas’ etc., seriam organizadas na base de relações de sangue e degrupos de status apoiados sobre o parentesco, descendência, a aliança.

Tudo isso é bem sabido. Contudo, na medida em que a antropologianascente se atribuiu como objeto justamente as sociedades ‘não políticas’, deve-se sublinhar que foi a partir desse ‘isolamento’ do político (no duplo sentidode que este é delimitado e obliterado) que a antropologia construiu seus ob-jetos preferenciais: o parentesco, contraface do político nas sociedades semEstado; a religião, derivada do parentesco por meio da exogamia e do tote-mismo; e, pouco mais tarde, a economia primitiva, deduzida da exogamiapor meio da troca e da reciprocidade. Mais tarde, a antropologia poderá, dessemodo, reencontrar o político, mas definindo-o primeiramente apenas por suasfunções e, depois, por sua dispersão.

No primeiro caso – que passa por ser a fundação de uma antropologiapolítica –, temos uma definição ‘substantivista’, no sentido de que a políticaé um domínio, ou um ‘subsistema’, social específico. Quando, na década de1940, os estrutural-funcionalistas britânicos sustentaram a existência do po-lítico em sociedades desprovidas de Estado, sentiram-se ainda obrigados aencontrar uma instituição – as linhagens – que desempenharia as funçõespolíticas que, em outras sociedades, seriam preenchidas pelo aparelho deEstado. Pois é bem mais fácil denunciar os “filósofos políticos” comonormativos, evolucionistas e etnocêntricos, cantando as virtudes do “estudocientífico de instituições políticas [...], indutivo e comparativo” (Evans-Pritchard e Fortes 1940: 29-31), do que efetivamente escapar das nossas ‘fi-losofias espontâneas’, que consideram o Estado ou instituições similares comoa própria essência da política.

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A crítica a esse modelo sistêmico e ainda macroscópico não tardou mui-to e, já na segunda metade da década de 1950, seu anúncio podia ser ouvido:de Max Gluckman aos processualistas, passando por Leach e por parte da an-tropologia marxista, a idéia da política como área específica das relações so-ciais é substituída pelo princípio formalista (no sentido que o termo possuina antropologia econômica) de que a política é um aspecto de qualquer rela-ção social.24 Essa crítica, sem dúvida, possibilitou novas abordagens da polí-tica, efetuadas de um ponto de vista antropológico e sem o pressuposto deque existiria algum tipo de particularidade na política pensada como subsis-tema social específico.

Por outro lado, o caráter em geral microscópico dessa concepção de po-der não deixou de produzir estranhos efeitos. Em primeiro lugar, um certorisco de, ao ser aplicada sobre qualquer relação social, perder de vista o cará-ter estruturante da política. Ou, a fim de evitar essa armadilha, um afasta-mento da perspectiva antropológica e a busca de refúgio nos modelos macroscó-picos da sociologia e da ciência política – de quem a antropologia seria assimuma espécie de auxiliar menor.

Mais sério do que isso, entretanto, são os riscos gerados pelo caráter po-tencialmente tentacular de uma concepção formalista de política: como ob-servou Georges Balandier (1969: 25-26), ela tende quase que inevitavelmen-te a se tornar “maximalista”, o que significa confundir o político e o social(ou seja, tudo o que os seres humanos fazem). O efeito dessa confusão é pa-radoxal: enquanto as concepções substantivistas da política sempre buscaramrelacionar o que concebiam como um domínio da sociedade com suas outrasdimensões (economia, parentesco, religião etc.), o formalismo político tem amá tendência de reduzir todas essas dimensões às relações de poder e, dessemodo, a não investigar a experiência total da qual a política é apenas um as-pecto. Sob o argumento de ‘des-substancializar’ a política, assistimos assim,há algumas décadas, a uma reificação sem par do político.25

Devemos observar, igualmente, que os estudos sobre fenômenos políti-cos têm ocupado uma posição central no desenvolvimento da antropologianos últimos anos. No caso da antropologia feita no Brasil, esses estudos apre-sentaram notáveis avanços, especialmente no campo que convencionamosdenominar, a partir de meados da década de 1990, ‘antropologia da política’.O termo, cunhado por Moacir Palmeira,26 visava precisamente evitar conce-ber a política como domínio ou processo específicos, definíveis objetivamentede fora. Tratava-se, ao contrário, de investigar fenômenos relacionados àquilo

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que, ‘do ponto de vista nativo’, é considerado como política. Nesse sentido,este livro é certamente tributário desse desenvolvimento, e eu apenas acres-centaria algumas observações.

Não podemos esquecer, inicialmente, que abordar a política a partir ‘doponto de vista nativo’ não significa ficar aprisionado nas elaborações locais,mas produzir teorias etnográficas que possuam, ao menos, três objetivos. Oprimeiro é livrar-se das questões extrínsecas colocadas seja por reformadoressociais, seja por revolucionários ou cientistas políticos – já que se conhece bema relação de interdependência que parece existir entre a ciência política e onosso sistema político, em especial a democracia representativa, com suaseleições e votações. Como a economia, a ciência política nunca conseguiuresolver o dilema de ser um conhecimento teórico e crítico ou uma simplestécnica de intervenção e engenharia social. Além disso, ‘do ponto de vistanativo’, aquilo que pode ser definido como política está sempre em relaçãocom o restante das experiências vividas pelos agentes, o que evita a tentaçãoda substancialização e literalização do político. Finalmente, pode-se ao me-nos tentar evitar o uso normativo ou impositivo de categorias, projetandosobre os contextos estudados questões que não são a eles pertinentes. Nossoproblema é de tradução, não de imposição, e isso, paradoxalmente, compli-ca-se quando pesquisamos na língua que falamos e na sociedade em que vi-vemos. Política, por exemplo, parece ser, simultaneamente, um ‘objeto’ (ouuma ‘categoria nativa’) e um ‘conceito’. Na verdade, não se trata, ao menosem estado puro, de nenhuma das duas coisas, mas de um dispositivo históri-co que permite recortar, articular e refletir, de maneiras diferentes, práticas eexperiências vividas. Nossa tarefa consiste, assim, não apenas em abordarabstratamente as conceptualizações nativas, mas em apreendê-las em ato, ouseja, no contexto em que aparecem e segundo as modalidades concretas de suaatualização e utilização, levando o esforço de restituição das dimensões êmicasdas noções até as últimas conseqüências.

Em segundo lugar, uma antropologia da política deve evitar cuidado-samente as abordagens efetuadas em termos negativos – aquelas que privilegiamas faltas, ausências, ideologias e manipulações. Muitas vezes, imaginamos quea política é ou deva ser algo, e nos surpreendemos porque essa definição ouconcepção não é partilhada com os agentes, atribuindo-nos, assim, a tarefade analisar uma realidade tida como estranha simplesmente porque foi malrecortada.27 Tudo se passa como na reação de Marx aos neo-hegelianos quenão conseguiam compreender como o mundo real podia não obedecer aos

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modelos de Hegel: críticas teóricas ou ideológicas contra o estado empíricodas coisas, ou contra supostos preconceitos e estereótipos, não podem levarao abandono do real. Como observou Châtelet (1975: 33-34), ao enfatizar ocaráter etnográfico de O capital, a única solução para aqueles que não acredi-tam que “a história pode não ter razão” é a observação direta das atividadesconcretas dos seres humanos e a elaboração de etnografias. Trata-se, em suma,de reencontrar a dimensão (micro)sociológica da política e a dimensão(micro)política da sociologia, escapando tanto de uma ciência política quedá as costas para as relações sociais concretas, quanto de uma sociologia queevita encarar de frente as relações de poder.28

Finalmente, uma verdadeira antropologia da política recusa, como vi-mos, a falsa distinção entre o central e o periférico. Para isso, submete essadicotomia à perspectiva nativa, procedendo por meio da ampliação do cam-po de análise e fazendo aí entrar o que normalmente se exclui da política: osfaccionalismos, as segmentaridades, as redes sociais, certamente; mas tambémo parentesco, a religião, a arte, a etnicidade etc. Não para desvendar supostasrelações entre subsistemas relativamente autônomos; tampouco para revelarque atrás de tudo isso estariam ocultas relações de poder que ao mesmo tem-po motivariam os seres humanos e seriam a explicação de tudo o que eles fazem.A tarefa é mais modesta: evitar, como adverte José Carlos Rodrigues (1992:52, grifo do autor), que “as teorias sobre o poder se transformem em teoriasde poder”; elaborar teorias etnográficas capazes de devolver a política àquotidianidade, “essa espécie de tédio universal existente em toda cultura”(Veyne 1996: 248-250); reinseri-la na vida e evitar cuidadosamente assobreinterpretações e literalizações que, em última instância, são as armas dospoderes constituídos; finalmente, ao menos tentar vislumbrar aquilo que, porvezes de modo silencioso, escapa sempre a essa mesma quotidianidade.29

* * *

O plano de composição deste livro reflete as contingências e as escolhas,teóricas ou não, acima evocadas. Procurei evitar uma ordem cronológica linear,tratando de ‘montar’ o texto, no sentido cinematográfico do termo. Esse pro-cedimento conduziu à adoção de diferentes estilos de apresentação, depen-dendo dos materiais empregados em cada capítulo, e produziu um pouco deredundância em algumas informações apresentadas em diferentes capítulos.Assim, o primeiro capítulo situa-se em 2002 (ano de eleições nacionais, lem-bremos), no que deveria ter sido o final da pesquisa, e esboça, a partir da no-

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meação de Marinho Rodrigues para administrador do Memorial da CulturaNegra de Ilhéus, uma espécie de fenomenologia das relações entre o movi-mento negro e o poder público municipal. Para isso, utiliza basicamente even-tos públicos – que, em geral, celebram bem-sucedidos processos de captura –, pondo em contato o movimento negro com a política, bem como, e princi-palmente, os discursos e comentários que povoam tais eventos.

Em um movimento de flash-back, o segundo capítulo recua até 1996,quando a pesquisa da qual este livro se origina teve início. Partindo do papelrelativamente importante que a própria pesquisa desempenhou nas relaçõesque, naquele ano, o movimento negro manteve com o processo eleitoral, essecapítulo – empregando, sobretudo, material oriundo de reuniões e encon-tros meio públicos, meio privados – explora as articulações e manobras quefazem o dia-a-dia da política, e nas quais os movimentos de captura são en-saiados, acionados e negociados. Inspirado em um procedimento utilizadopor Alfred Hitchcock em um de seus filmes, o etnógrafo é, nesse capítulo,como que dividido em dois: da equívoca tarefa de observação participante,Paulo Rodrigues (meu auxiliar de pesquisa na época) ficou com a segundaparte, e eu com a primeira.30

O recuo cronológico prossegue no capítulo seguinte: baseado em umaespécie de trabalho de campo realizado, por assim dizer, a posteriori, busca-sereconstruir e analisar as eleições municipais de Ilhéus em 1992. Eleições que,como veremos, são tidas até hoje pelo militantes negros da cidade como fun-damentais, uma vez que, nelas, teriam desempenhado um papel central, con-tribuindo decisivamente para a vitória de um dos candidatos a prefeito emtroca da promessa da construção do Centro Afro-Cultural de Ilhéus – casoquase paradigmático dos processos de captura, os quais, como será observa-do, constituem uma espécie de fio condutor deste livro. O material utilizadonesse capítulo, conseqüentemente, provém de alguma documentação e, prin-cipalmente, da memória dos agentes – tanto aquela despertada por interro-gações diretas, quanto, em especial, aquela acionada no cotidiano como for-ma de interpretar ou justificar os acontecimentos presentes.

O quarto capítulo avança até 2000, concentrando-se nas eleições muni-cipais daquele ano. Do ponto de vista da pesquisa, estas, simultaneamente,fechavam um ciclo aberto pelo pleito de 1996 e abriam um novo ciclo, jávoltado para as eleições de 2004. O procedimento de desdobramento doetnógrafo acabou sendo utilizado mais uma vez, já que, como observei aci-ma, um acidente deixou-me quase imobilizado por cerca de um mês e fez com

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que Marinho Rodrigues, um dos agentes mais ativos no processo de partici-pação do movimento negro na campanha eleitoral, atuasse também como pes-quisador de campo. O material empregado nesse capítulo provém, em suamaior parte, do excelente trabalho realizado por Marinho.

O quinto capítulo procede novamente a um recuo, retornando a 1998e 1999, e prosseguindo, é claro, com o mapeamento das relações do movi-mento negro com a política. Dessa feita, contudo, a descrição concentra-sena preparação, realização e resultados do carnaval de 1999 – que, do pontode vista dos militantes negros, marcou um momento fundamental na reto-mada das atividades dos blocos e grupos negros de Ilhéus. O material empre-gado nesse capítulo provém, quase que exclusivamente, do intenso trabalhode campo que realizei, principalmente junto ao Dilazenze, entre setembrode 1998 e março de 1999 (o que inclui, portanto, as eleições nacionais de1998). Ele revela, de forma muito nítida, como os processos de captura setornam imanentes às atividades de resistência, ou seja, àquelas para as quaisas pessoas direcionam suas energias e desejos.

O sexto e último capítulo (uma conclusão está fora de questão), por suavez, cobre os anos de 2003 e 2004 (este, em parte, a priori), tomando a pos-sível candidatura de Marinho Rodrigues a vereador como nó central da tra-ma descrita e analisada. Tendo passado muito pouco tempo em Ilhéus ao longodesse período, a etnografia aqui empregada foi, quase toda, realizada ‘a dis-tância’, mais uma vez por Marinho Rodrigues, consistindo basicamente nasfitas gravadas que me enviava e em longos telefonemas durante os quais euconversava com ele e com outras pessoas em Ilhéus.

Finalmente, uma série de oito apêndices visa facilitar um pouco a leitu-ra do livro. O primeiro, uma espécie de glossário de nomes próprios, preten-de evitar que o leitor se perca em uma narrativa povoada de nomes de pessoas,lugares e instituições. O segundo reproduz uma “entrevista” que enviei porescrito, em meados de agosto de 2000, ao Jornal da Cidadania, da ONGInstituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE), que me haviaencaminhado algumas questões relativas à “participação política dos jovens”.Esse apêndice explicita assim, em parte, algumas de minhas posições políti-cas que talvez não tenham ficado claras ao longo do livro propriamente dito.O Apêndice III apresenta as cinco colunas escritas por Marinho Rodriguespara o Diário de Ilhéus, entre outubro e novembro de 2003. O Apêndice IVé uma quase genealogia da família Rodrigues, tal qual apresentada por seuspróprios membros. O quinto apêndice busca mostrar, graficamente, a estru-

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tura ‘segmentar’ dos blocos afro de Ilhéus. O sexto tenta fazer o mesmo comas eleições no município entre 1976 e 2004. Os Apêndices VII e VIII, por fim,apresentam, respectivamente, alguns mapas e fotografias que talvez ajudem navisualização de algumas das pessoas e lugares que aparecem na narrativa.

O leitor observará, também, que as datas que balizam os capítulos sãoanos eleitorais, ou anos de “política”, como se diz em Ilhéus e em tantas par-tes. Como lembra Michael Herzfeld (1985: 94, 1992a: 99), a política, emgeral, e as eleições locais, em particular, oferecem uma arena privilegiada paraa observação e análise das interações sociais, uma vez que, nelas, as ações, es-colhas e negociações são efetuadas de acordo com padrões e valores que, muitoclaramente, são sempre ‘de alguém’ e ‘para alguém’. Esses momentos, dessemodo, não apenas constituem ocasiões adequadas para o acesso a inúmerasdimensões da política e da vida social em geral, como abrem múltiplas possi-bilidades narrativas, que podem destacar as causas e conseqüências das elei-ções propriamente ditas; a expressão das opiniões, interesses e valores de in-divíduos e grupos; os dados oriundos da observação direta; e, principalmen-te, a operação dos mecanismos de poder em funcionamento. Várias dessaspossibilidades serão aqui exploradas. Mas o leitor deverá, igualmente, levarem conta as conhecidas, ainda que relativas, diferenças entre eleições muni-cipais, estaduais e nacionais. Pois é sem dúvida verdadeiro que, ao menos emmunicípios do porte de Ilhéus, as primeiras parecem possuir um poder demobilização superior, dada a proximidade e o assédio por parte de candida-tos e cabos eleitorais, o maior destaque concedido às lideranças locais, a exi-gência de posicionamentos claros da parte dos eleitores, o fato de em geralterem início bem antes das campanhas propriamente ditas, e de produziremreordenamentos sociais por meio de alianças e de oposições que se articulamcom os diferentes territórios existenciais dos grupos locais. Tudo isso não devefazer esquecer, é claro, que as eleições estaduais e mesmo as nacionais estãosempre estreitamente entrelaçadas com as municipais, seja porque os políti-cos locais funcionam como cabos eleitorais de outros políticos, seja porqueusam essas eleições para aumentar seu poder no plano municipal ou para re-forçar suas bases, seja porque um político de projeção estadual ou nacionaltende sempre a possuir um enraizamento municipal.

Uma última observação antes de concluir este prólogo já extenso demais.Ao contrário de outras ocasiões (por exemplo. Goldman e Silva 1998: 29),neste livro serão utilizados os nomes próprios e os apelidos verdadeiros denativos, informantes e colegas. Em parte porque, como observou um/a parece-

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rista anônimo/a da Revista de Antropologia – a quem agradeço imensamen-te – “o emprego mecânico de nomes fictícios” raramente serve de fato “parapreservar a identidade das pessoas citadas”, servindo antes, parece-me, para aproteção do antropólogo. Assim, em sua dissertação de Mestrado, por mimorientada, Ana Cláudia Cruz da Silva modificou todos os nomes dos perso-nagens de sua etnografia – “como é de praxe e, principalmente, em função deuma ética da etnografia que exige o anonimato dos informantes” (Silva 1998:15).31 No pólo oposto, mas também em Ilhéus, Miguel Vale de Almeida (1999:132, nota 3) adverte que utiliza nomes verdadeiros: “o trabalho de campo foiconduzido sem ‘agendas escondidas’, sobre assuntos públicos e tendo os meusinterlocutores sido informados da natureza do meu trabalho”.

Não creio, contudo, que nenhuma das duas ‘soluções’ seja realmentesatisfatória. No primeiro caso, os personagens da narrativa de Silva não ape-nas ficaram algo decepcionados com a ausência de seus nomes no “livro”,como, em poucos minutos de leitura, identificaram todos os envolvidos. Nosegundo – e ainda que o autor acrescente que a opção pelos nomes verdadei-ros “comporta riscos, uma vez que as fronteiras entre o privado e o públiconão são consensuais” e que, “por esta razão censurei algumas afirmações pas-síveis de ferir suscetibilidades” (ibidem) –, é-se vítima de alguma confusão.Isso porque, por um lado, é verdade que, além de não preservar necessaria-mente qualquer anonimato, o procedimento dos nomes falsos, no limite,ameaça eliminar qualquer contribuição etnográfica de um texto.32 No casodeste livro, por exemplo, o terreiro e o bloco que servem de palco para parteda narrativa desapareceriam enquanto tal, os políticos teriam outros nomes,a própria cidade de Ilhéus não deveria existir (por que não também a Bahiaou o Brasil?), e assim por diante. Isso acabaria por acarretar a perda absolutado contexto da análise, introduzindo um artificialismo que comprometerianão apenas a leitura, mas qualquer trabalho posterior a ser realizado nessemesmo contexto.

Por outro lado, é também verdadeiro que, em certas ocasiões e para al-guns informantes, o anonimato deva ser mantido – ainda que, por vezes, elespróprios exijam, clara ou discretamente, que seus nomes sejam menciona-dos. Não creio que haja uma solução única para o problema, mas qualqueropção repousa, certamente, sobre compromissos éticos que o antropólogo deveassumir e respeitar, respondendo por sua violação, seja perante seus informan-tes, seja perante seus colegas, e também dividindo parcialmente a responsa-bilidade com seus leitores. Não creio, portanto, que o que esteja em jogo se-

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jam as “fronteiras entre o privado e o público”, tampouco que se trate deautocensura. A questão verdadeiramente central foi levada ao limite na ten-dência atual de exigir o “consentimento informado” dos nativos. Importadadas ciências biológicas (nas quais possivelmente tenha um sentido e mesmoum valor), essa exigência pressupõe alguns pontos que só podem deixar umantropólogo no mínimo cético: que, no momento mesmo da investigação, opesquisador já saiba onde deverá chegar; que exista esse ser que a antropolo-gia se dedica a exorcizar há muito tempo, a saber, um indivíduo racional, cla-ramente informado das intenções, também claras, de seu interlocutor igual-mente racional, e que, com toda a liberdade, decide concordar com a pro-posta que lhe é apresentada; finalmente, que o consentimento possa liberar oinvestigador de seus compromissos éticos (já que, no limite, qualquer coisapode ser dita uma vez de posse de um consentimento assinado).

Decidi, assim, utilizar os nomes verdadeiros e eliminar ou disfarçar emminha narrativa os eventos e juízos que, a partir da minha experiência etno-gráfica, acreditei que pudessem vir a ser considerados delicados, embaraço-sos ou mesmo ofensivos por e para meus amigos de Ilhéus. Além disso, pro-curei mostrar o texto a alguns dos envolvidos para que me apontassem o queconsideravam inadequado. Ciente de que nada disso é perfeito, peço descul-pas antecipadamente por qualquer incômodo que eu não tenha conseguidoevitar.

Peço desculpas igualmente, desta feita ao leitor. por algumas discrepân-cias que ele certamente encontrará na grafia de nomes, datas e mesmo emalguns dados tal qual apresentados por este livro e em artigos anteriores (Gold-man 2000; 2001a; 2001b). Minha única defesa é dizer que essas pequenasconfusões não são apenas minhas e parecem fazer parte constitutiva da me-mória dos indivíduos e grupos envolvidos na narrativa. Como boa parte domaterial aqui utilizado provém também dessa memória, é inevitável que elese modifique ao longo do tempo.

NOTAS

1 Foi Ramos (1990: 458-459) que sublinhou o caráter em geral descontínuo e diacrônico daspesquisas de campo realizadas por antropólogos brasileiros (ver, igualmente, Peirano 1995).2 Essa é a força e a fraqueza do primeiro trabalho escrito por Miguel Vale de Almeida (1999)sobre o movimento afro-cultural de Ilhéus. A riqueza e a diversidade dos discursos sãoregistradas, mas aparecem ofuscadas pelo fato de os últimos serem inequivocamente declara-

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ções formais de princípio, prestadas a um observador muito distante. Em seu segundo textosobre Ilhéus, Almeida (2000) parece ter percebido o problema e tentado restituir um poucoda carne e do sangue da vida local. O problema é que a simples justaposição dos discursosregistrados, notícias de jornal, correspondência pessoal do antropólogo, outras etnografias –tudo intercalado por trechos (que aparecem em outra fonte tipográfica) nos quais Almeidafornece sua interpretação do material, bem como tece considerações teóricas mais gerais –produz um resultado um pouco decepcionante. Em primeiro lugar, e mesmo que seja feito oreconhecimento das fontes, na maior parte do texto é difícil saber precisamente em que pon-to o antropólogo toma a palavra de seus informantes ou colegas. Além disso, o uso excessivode material não elaborado compromete muito a inteligibilidade que o texto pretende confe-rir, e leva o autor a não checar algumas das informações recebidas e a aceitar sem problema-tização lapsos normais dos informantes, gerando imprecisões etnográficas. Sobre o livro deAlmeida (2000), ver, também, a excelente resenha de Vasconcelos (2003).3 O que significa, também, que as versões, opiniões e interpretações nativas sobre as ativida-des dos políticos são aqui simplesmente reproduzidas, sem implicar, evidentemente, nenhumjulgamento de fato ou de valor de minha parte a respeito dos eventos e personagens aos quais sereferem.4 “Nunca se dá o caso de que os ‘nativos’ – assim, no plural – tenham alguma crença ou idéia:cada um deles tem suas próprias idéias” (Malinowski, apud Magnani 1986: 130).5 Ver, também, Veyne (1978: 22-23; 85-86).6 Jaco Santana (Jamilton Galdino Santana) é um artista plástico que se dedica à elaboraçãode lindíssimos móveis rústicos e ecológicos. Nascido em Caravelas, participou do movimen-to cultural desta cidade (ver Mello 2003), bem como da seção local do PT até 1996, quandose mudou para Ilhéus. Suas concepções e posições políticas são, no fundo, muito parecidascom as minhas, donde o fato de aparecerem pouco neste livro – ao menos de forma explícita.Porque, na verdade, Jaco foi fundamental para sua redação, não apenas em função de nossaamizade, mas também em virtude das inúmeras informações que me forneceu e das longas edivertidas conversas em que analisávamos a política ilheense e o movimento negro da cidade.7 E basta estender ao estudo dessas mediações a objeção levantada contra a possibilidade deidentificação com os nativos para que a etnografia se veja reduzida a um exercício pós-mo-derno narcisista e niilista no qual o antropólogo se limita a falar de si mesmo e da impossibi-lidade de ter acesso ao ‘outro’.8 A explicação histórica tem um sentido banal de compreensão, ou seja, pretende apenas“mostrar o desenvolvimento da intriga, fazer compreendê-lo”, enunciar o “resumo da intri-ga” (Veyne 1978: 67-68).9 Ou, nas palavras de Jacques Donzelot (1976: 172), trata-se de deixar de perguntar “o queé a sociedade, pois isto é abstrato e não leva além de um conceito geral. Pergunta-se antes:como é que nós vivemos em sociedade? Esta é uma questão concreta: onde vivemos? Comoocupamos a terra? Como vivemos o Estado?”10 Como escreveu Lévi-Strauss (1954: 398-399), em antropologia trata-se sempre de atingir“um nível em que os fenômenos conservem uma significação humana e permaneçam com-preensíveis – intelectual e sentimentalmente – para uma consciência individual que não en-

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contra jamais em sua existência histórica objetos como o valor, a rentabilidade, a produtivi-dade marginal ou a população máxima”. A esses conceitos certamente poderíamos acrescen-tar o eleitor independente, a escolha racional ou a democracia ideal.11 É por isso que o brilhante trabalho de Richard Graham (1997) sobre o clientelismo noSegundo Reinado brasileiro é tão parecido e, ao mesmo tempo, tão diferente do que fazem osantropólogos. Interessado nas perspectivas nativas sobre o poder e nos significados dados àsações políticas por aqueles mesmos que as executavam – bem como em “entender como apolítica aparecia àqueles que a exerciam” (Graham 1997: 16) –, o autor só tem acesso aosdocumentos (no caso, cartas e correspondências em geral) deixados pelas elites, o que, evi-dentemente, só permite a recuperação dos pontos de vista dominantes. Como observa Favret-Saada (1981: 336), essa talvez seja a sina do historiador, uma vez que, “nos arquivos, o ‘povo’é falado mais do que fala, aparecendo como o objeto do discurso administrativo, não comoo sujeito de um discurso autônomo”. E talvez seja preciso, como pregava Michelet, perscru-tar – mas como? – “‘os silêncios da história’, pois mutações essenciais se produzem e não sãoregistradas nos arquivos” (idem: 354). Para uma outra posição a respeito das relações entrepesquisa de campo e pesquisa em arquivos, ver Giumbelli (2002).12 Para as relações entre o modelo estruturalista e as posições de Deleuze e Guattari, verGoldman (1999: 80).13 Em geral, complementam os autores, assume-se o ponto de vista da maioria, o que “podeser visto em todas as operações, eleitorais ou outras, em que se concede o poder de escolha,com a condição de que a escolha permaneça conforme aos limites da constante” (Deleuze eGuattari 1980: 133). Sobre essa questão, ver Abreu (2003), em especial o capítulo 7.14 “Fracassaremos sempre em passar por negro ou índio, mesmo por chinês, e não é umaviagem aos mares do sul, por mais duras que sejam as condições, que nos fará transpor omuro, sair do buraco ou perder o rosto” (Deleuze e Guattari 1980: 231).15 Ver Deleuze e Guattari (1980: 128-129; 131-136; 356-361; 586-588).16 Este processo – que os autores denominam “dupla captura” (Deleuze e Parnet 1977: 8),“duplo-devir” (Deleuze e Guattari 1980: 357; 470; 644) ou “bloco de devir” (idem: 360) –talvez sirva para lançar mais luz sobre as complexas relações entre etnógrafo e nativos do queos lugares-comuns repetidos, tanto acerca da objetividade científica quanto da autoridadeetnográfica.17 Ver, também, Favret-Saada e Contreras (1981).18 Favret-Saada (1977) enumera, ainda, outros obstáculos ao trabalho do antropólogo: a si-milaridade cultural excessiva do etnógrafo com o grupo estudado; a concentração da inves-tigação nas elites; a adoção da noção de crença; a hipótese de que tudo se esclarece uma vezremetido ao ‘social’; os ideais de ‘objetividade’ e ‘cientificidade’. Não é de admirar, portanto,que seu trabalho tenha suscitado reações tanto na mídia – chegando a ser batizada de “a fei-ticeira do CNRS” (Centre National de la Recherche Scientifique) (Favret-Saada 1989: 112)– quanto na academia, onde um colega chegou a sugerir que o CNRS deveria cancelar suabolsa (Favret-Saada 1977: 287).19 Na mesma época, um colega, etnólogo, contou que ouvira dizer que eu abandonara a an-tropologia para me tornar um cientista político.

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20 No sentido preciso em que Foucault (1984a: 59) sustenta que seu trabalho sobre o aprisi-onamento visava tornar a prisão “inteligível e, então, criticável”. Fora isso, este livro preten-de adotar, sobre a política, uma perspectiva antropológica absolutamente não normativa,amoral mesmo, o que não significa, evidentemente, anti-ética.21 Tânia Stolze Lima chamou a minha atenção para este ponto crucial e, mais uma vez, a elaagradeço. Por outro lado, uma interpretação mais simpática a Latour poderia insistir, talvez,no fato de que o termo “central” deveria ser entendido no sentido em que uma estação ferro-viária, por exemplo, é dita ‘central’, ou seja, simplesmente por possuir um maior número deconexões em uma rede.22 Já em 1985, Joanna Overing observava a necessidade de modificações em nosso vocabulá-rio para nos referirmos aos saberes indígenas, deixando de falar apenas em cosmologias erepresentações ou concepções para ter a coragem de dizer filosofias e epistemologias (Overing1985: 23). Ver, também, Viveiros de Castro (2003).23 Observemos, de passagem, que as grandes divisões não se limitam ao plano ontológico, noqual afirmam a existência de ‘tipos’ distintos de sociedade. Elas podem, também, operar nosplanos epistemológico (supondo que formações sociais diferentes devam ser tratadas por sa-beres distintos) ou mesmo metodológico (em que imaginariam a existência de métodos su-postamente mais adequados para diversas formas de sociedade). Ver, também, Lima e Gold-man (1998).24 Voltaremos a esse ponto no segundo capítulo.25 Ver, em especial, Swartz et alii (1966) e Swartz (1968).26 Ver, entre outros, Palmeira (1991; 1992), Palmeira e Heredia (1993; 1995), Palmeira eGoldman (1996), Barreira e Palmeira (1998). Já em 1990, Joan Vincent intitulou a primei-ra parte de seu enorme handbook sobre antropologia política “The Anthropology of Politics”.É curioso, contudo, que ela tenha utilizado essa expressão para designar as contribuições maisantigas (até 1940) e reservado o título “Political Anthropology” para a antropologia posteri-or. Na reunião comemorativa do qüinquagésimo aniversário do Departamento de Antropo-logia da Universidade de Manchester, em 1999, um dos painéis foi denominado TheAnthropology of Politics and the Politics of Anthropology.27 Como advertem Hermet (1978: 17) e Rouquié (1978: 170), é preciso livrar-se de todo“etnocentrismo eleitoral”, em especial daquele “liberal-pluralista”, e esforçar-se por captar asrepresentações dos agentes. As análises de nosso sistema político, de fato, costumam com-partilhar com algumas representações nativas uma tendência a apreciar sistemas realmenteexistentes, confrontando-os, explícita ou implicitamente, com ‘casos’ ou ‘modelos’. Na pri-meira alternativa, costuma-se supor que, em algum lugar (nos Estados Unidos, na Escandi-návia, em um passado glorioso ou em um futuro desejado) a democracia funcionaria tal comodizem que funciona; na segunda, supõe-se um padrão ideal, o qual, mesmo que não se realizejamais, serve de parâmetro para aferir o grau de democracia dos regimes efetivamente emfuncionamento. Como lembra Palmeira (1992: 30), comparações são úteis, mas devem serefetuadas de modo preciso entre contextos estudados com a mesma profundidade etnográfica.28 Aqui parece encontrar-se o limite de alguns interessantes trabalhos escritos sobre as rela-ções entre cultura e política. Escrevendo sobre novas formas de movimentos sociais que bus-

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cam articular cultura e política, Dagnino (2000: 87), por exemplo, após observar que “existehoje no Brasil uma proliferação de microexperiências que não podem ser ignoradas, poisrevelam possibilidades importantes de mudança”, reduz imediatamente tais experiências “aoprocesso de construção de cidadania” (ibidem) e a uma “disputa entre concepções alternati-vas de democracia e da arena política” (idem: 79), quando se trata, evidentemente, de algomais profundo, de disputas em torno de concepções de vida alternativas. Da mesma forma,a tentativa de Alvarez et alii (2000: 29-30) de alargar o sentido da política, a fim de retirá-loda esfera exclusiva do Estado e estendê-lo aos movimentos sociais, esbarra na absoluta faltade atenção às formulações nativas e é sempre conduzida do ponto de vista do observador.29 Algumas etnografias recentes testemunham essa posição. Ver, por exemplo, Magalhães(1998) e Chaves (2003). Ver ainda, em especial, Borges (2004), que apresenta, de formaexemplar, a imbricação da política e da vida mais cotidiana das pessoas – reduzindo assim,etnograficamente, o alcance da bela fórmula de Norbert Elias por ela mesma citada: “a pala-vra política, meramente, desvitaliza a experiência” (Borges 2004: 13).30 Trata-se do filme Intriga Internacional (North by Northwest). Como explicou o diretorem entrevista a François Truffaut, foi necessário desdobrar o vilão do filme em três persona-gens distintos, de tal forma que um pudesse ser sedutor enquanto os outros dois dividiam ocaráter “sinistro” e “brutal” que os vilões devem necessariamente apresentar (Hitchcock eTruffaut 1986: 66). É claro que, em Ilhéus, a divisão não poderia ser nem tão completa, nemtão maniqueísta: a possibilidade de incluir até mesmo meu auxiliar de pesquisa na observa-ção só foi possível em função de um certo tipo de participação; da mesma forma, Paulo reco-lheu precioso material ao operar, muitas vezes, como observador, e, bem mais tarde, escreveuuma dissertação de Mestrado sobre o porto de Ilhéus no contexto da crise regional (Santos 2001).31 Se a dissertação de Mestrado de Ana Cláudia Cruz da Silva (1998) é aqui citada com muitomais freqüência que sua tese de Doutorado (Silva 2004, onde autora, aliás, utiliza nomespróprios verdadeiros), isso se deve ao fato de que a última foi escrita quase simultaneamentea este livro. Assim, e mais uma vez, eu gostaria de reconhecer a importância da tese de AnaCláudia para meu próprio trabalho.32 Como Silva mesmo admite, a regra do anonimato que adota: “[...] vale apenas para as pes-soas e, ainda assim, para as não muito públicas. Dadas as peculiaridades de Ilhéus, ocultarseu nome seria desmontar toda a argumentação. O mesmo acontece em relação às entidadesestudadas na cidade: trocar seus nomes provocaria a perda do sentido de uma série de formu-lações e informações importantes que se encontram no texto. Assim, torna-se muito fácil,para quem conhece um pouco o campo onde trabalhei, descobrir a quem estou me referin-do” (Silva 1998: 15 – grifo da autora).

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CAPÍTULO 1

2002: MEMORIAL DA CULTURA NEGRA DE ILHÉUS

No dia 6 de dezembro de 2002, Jabes Ribeiro nomeou Gilmário Rodri-gues Santos para o cargo de administrador do Memorial da Cultura Negra deIlhéus, no litoral sul da Bahia.

Jabes, como é conhecido na cidade, era, naquele momento, e pela ter-ceira vez, prefeito de Ilhéus: eleito, primeiramente, em 1982 para um man-dato de seis anos; em 1996 venceu novamente as eleições; e foi reeleito noano 2000 – o que significa que, ao longo de 22 anos, governou a cidade porquatorze. Se acrescentarmos que, entre 1989 e 1992 – enquanto Jabes ocu-pava a Secretaria Estadual do Trabalho no governo Waldir Pires e, depois, umacadeira de deputado federal –, Ilhéus foi governada por um correligionário,João Lírio, podemos concluir que Jabes comandou a política ilheense pordezoito dos últimos 22 anos.

Gilmário Rodrigues Santos – Marinho, como é conhecido por todos –era, nesse momento, o presidente do Grupo Cultural Dilazenze e ex-presi-dente do Conselho das Entidades Afro-Culturais de Ilhéus (CEAC ouCEACI). O Dilazenze faz parte de um conjunto de grupos autodenominados“blocos afro”. Organizados nos moldes dos de Salvador (dos quais o Ilê Aiyêe o Olodum são provavelmente os mais conhecidos), esses blocos, além dedesfilarem no carnaval, possuem outras funções, que vão desde pólo deaglutinação de jovens negros em busca de diversão até o que denominam “tra-balho social” com comunidades carentes. Marinho, além de ter sido um dosfundadores do Dilazenze em 1986, era presidente do grupo desde 1988 eparticipava – como vice-presidente, presidente e diretor – dos conselhos deentidades afro desde que o primeiro fora criado em 1989, o que significa queestá no centro do movimento negro de Ilhéus há quase 20 anos.1

A cerimônia, simultaneamente de nomeação e posse, ocorreu na Asso-ciação Desportiva 19 de Março, situada na rua de mesmo nome, transversalà Avenida Itabuna, o mais importante acesso rodoviário a Ilhéus. A Rua 19de Março fica em local relativamente próximo ao centro da cidade e é, aomesmo tempo, um dos inúmeros caminhos que conduzem ao bairro daConquista, uma das principais áreas de concentração da população negra de

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Ilhéus e sede da maior parte dos grupos que compõem o movimento negroda cidade, inclusive o Dilazenze.

Fundada na década de 1960, a Associação 19 de Março é administradapor membros da família negra que a criou e que até hoje é sua proprietária.Trata-se, aparentemente, do único remanescente dos vários clubes de dominóexistentes no passado em Ilhéus. O dominó é um jogo extremamente popu-lar em todo o sul da Bahia, e a 19 de Março ainda organiza torneios, contan-do hoje, dizem, com aproximadamente novecentos associados (que já teriamsido quase 1.800). Além dos campeonatos, costuma ser servida, aos sábados,uma famosa feijoada, regada a cerveja e, é claro, jogo de dominó. O clubepromove também bailes e serestas, mas a verdade é que nenhuma dessas ati-vidades é realizada com a freqüência que supostamente tinham no passado.Nem a família que fundou e dirige a associação, nem seus associados – todos,em sua esmagadora maioria, membros da enorme população negra e pobrede Ilhéus –, possuem recursos para uma boa manutenção do próprio prédio,que se achava bastante abandonado quando, em maio de 2000, a Prefeituradecidiu arrendar e reformar o andar térreo do sobrado – o mais danificado eonde nada mais acontecia – para aí instalar o recém-criado Memorial daCultura Negra de Ilhéus.2

A criação desse Memorial, bem como a nomeação de um dos principaislíderes do movimento negro de Ilhéus para administrá-lo, constituem umaespécie de ponto culminante de um longo processo iniciado quase dez anosantes, quando, por ocasião da campanha para as eleições municipais de 1992,prometeu-se e desejou-se o que era então conhecido como Centro Afro-Cul-tural de Ilhéus. Esse processo, de alguma forma, condensa as relações entreparte do movimento negro da cidade e os políticos que a governam e, nessesentido, serve como uma espécie de laboratório em que é possível observar,de forma mais geral, como se dão concretamente as relações entre políticosde todas as esferas e eleitores de todos os tipos. Em outros termos, a históriado Memorial oferece a oportunidade de observar e analisar parte do funcio-namento empírico do nosso sistema político, a democracia representativa. Eé disso, em última instância, que trata este livro.

A cerimônia de nomeação e posse do administrador do Memorial foiacompanhada por diversas autoridades municipais, por políticos governistase por membros do movimento negro de Ilhéus. Os discursos proferidos naocasião, bem como as tramas que antecederam e sucederam o evento, reve-lam bem que o que estava em jogo não se limitava – nem temporal, nempoliticamente – ao ato que estava sendo formalmente realizado. Desde o co-

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meço, o prefeito Jabes Ribeiro assumiu pessoalmente o comando da cerimô-nia: de microfone em punho, convidou para a mesa as pessoas que deveriamcompô-la, e deu imediatamente início a seu discurso, no qual, logo após assaudações de praxe, declarou que “a única coisa que não posso fazer é desar-ticular o movimento afro de Ilhéus”. Vale a pena, pois, reproduzir, ligeira-mente editado, o discurso do prefeito:

“O carnaval do próximo ano já está definido e organizado. O espaço do movi-mento afro, o espaço dos movimentos organizados, é fundamental. É a voltado carnaval de rua, das nossas raízes, e isso está ligado a toda a nossa história.A partir daí, surgiu a idéia de transformarmos este espaço em um espaço dedi-cado a um encontro de todos aqueles que têm uma relação próxima com estacultura tão importante no nosso país, no nosso estado e no nosso município.Estamos começando, e cabe ao Conselho das Entidades Afro-Culturais a com-petência de ir buscar lá fora os recursos, de articular, de dar as condições paraque isso funcione. Eu quero então dizer a vocês que estou muito satisfeito eque nós vamos assinar hoje aqui dois atos: um protocolo de intenções queobjetiva dar uma demonstração clara de que queremos continuar na parceria etrabalhar com o CEAC. Esse protocolo vai autorizar a assinatura de um con-vênio que será assinado em janeiro, já que, em função da lei de responsabilida-de fiscal, não podemos assinar um convênio no mês de dezembro, final doexercício orçamentário. Esse convênio será de doze meses, naturalmente pror-rogáveis, mas tudo vai depender muito da gestão e da unidade de vocês, dacapacidade de somar. Porque quando a gente soma, a gente ganha; quando agente divide, a gente perde. É nesse sentido que vou pedir ao secretário queleia o protocolo de intenções para assinarem o prefeito de Ilhéus e o presidentedo CEAC:‘Protocolo de intenções: O Município de Ilhéus e o Conselho das EntidadesAfro-Culturais, representados, respectivamente, pelo prefeito Jabes Ribeiro epelo presidente Jacks Rodrigues dos Santos, resolvem firmar o presente proto-colo de intenções para assinatura de convênio com vigência a partir de janeirode 2003, objetivando estimular o resgate da cultura afro nos seus mais diver-sos aspectos, afirmando a contribuição africana na formação de nossa brasilidadee procurando efetivamente construir uma sociedade democrática, justa e soli-dária, onde haja emprego e renda para todos, respeito à dignidade humana,sem qualquer tipo de preconceito de cor, de religião e de nacionalidade. Ilhéus,6 de dezembro de 2002’.Também vamos assinar um decreto que só está sendo assinado agora em fun-ção da autorização da Câmara dos Vereadores – e quero aqui, mais uma vez,ressaltar o papel, a importância, da nossa bancada, pois eu só posso assinar issoaqui depois que a bancada aprovou a reforma administrativa que dá condições

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à criação de cargos, porque cargo só pode ser criado por lei. Esse decreto aten-de a uma decisão do CEAC, tomada em uma reunião que tivemos aqui, queindicou para ser administrador do Memorial da Cultura Negra nosso compa-nheiro Gilmário Rodrigues Santos, conhecido como Marinho. No convênioque vamos fazer, também colocaremos à disposição o nome do professor LuizCarilo para ajudar nas promoções da coordenação do projeto, nas oficinas,enfim, naquele trabalho que a gente quer que aconteça aqui. Porque não adiantater o Memorial e não ter nada. Nesse momento, eu vou assinar o decreto emque o governo de Ilhéus indica Marinho Rodrigues Santos para o cargo deadministrador do Memorial. Esse é um cargo comissionado, portanto é umcargo de confiança do prefeito.Eu torço e espero que este espaço aconteça, que ele dê certo. Enquanto eu forprefeito, vou ajudar, esteja prefeito, esteja aqui, esteja em outro lugar, eu vouter isso aqui como uma coisa que começou conosco, com o apoio de genteimportante, gente que gosta que as coisas ocorram em Ilhéus. É bom lembrarque nesse Memorial tivemos a presença do senador Antônio Carlos, do gover-nador eleito Paulo Souto, de César Borges. O que eu espero é que o CEAC –e o CEAC são todas as entidades, certo? – tenha a competência que já temdemonstrado naquilo que tem feito para, em nome da unidade, ter capacidadede elaborar projetos, propostas de defesa dos interesses da nossa comunidade”.

Com essa conclamação à unidade e ao trabalho, Jabes Ribeiro passou apalavra ao presidente do Conselho das Entidades Afro-Culturais, Jacks Rodri-gues, que, em poucas palavras, agradeceu ao prefeito, parabenizou o admi-nistrador Marinho Rodrigues (com quem não tem qualquer relação de pa-rentesco) e declarou sua enorme felicidade em ver se “realizar um sonho” depoisde apenas um ano de sua gestão à frente do Conselho: “porque isto aqui é umsonho, um sonho para todas as entidades, que estavam desagregadas”. Jacksaproveitou, também, para agradecer ao chefe da Divisão de Esportes, “pro-fessor Gurita, que é negro e é um advogado do CEAC, e que em muitas reu-niões ouve o pessoal dizer que ele é ‘advogado dos negões’. E é mesmo!” Gurita,que também participa do movimento negro, agradeceu silenciosamente e Jacksencerrou seu discurso sustentando que “a parceria com a Prefeitura está dan-do certo e jamais vai se acabar!”

Nesse momento, houve certa movimentação para desfazer a mesa, en-cerrando a cerimônia e dando início à apresentação do balé do Dilazenze eao coquetel. Adriana Ribeiro, esposa do prefeito, lembrou, entretanto, que onovo administrador não apenas desejava, como devia dizer algumas palavras.Marinho Rodrigues, após agradecer ao prefeito por sua nomeação e posse,lembrou que o “cargo é de grande importância e de uma responsabilidade

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muito grande” e adotou o mesmo tom de busca da unidade do final do dis-curso de Jabes e da intervenção de Jacks:

“Essa responsabilidade não é só minha, mas minha, do presidente do CEAC,dos presidentes das entidades filiadas ao CEAC, de todos nós. Porque a lutafoi nossa e a indicação foi feita por vocês. Porque vocês viram em mim umapessoa da confiança de vocês. Espero que eu realmente possa atender aos anseiosde todos vocês, com toda a humildade, com toda a experiência que adquiri emquase 20 anos de movimento negro de Ilhéus, movimento que já está comple-tando 25 anos em nossa cidade, desde a fundação do bloco Lê-Guê DePá, dobloco Miny Kongo, desde as pessoas baluartes da cultura afro na nossa cidade.Pessoas como Mário Gusmão e Veludo, fundador do Miny Kongo, que nãoestão mais junto a nós; pessoas que ainda estão do nosso lado, como o profes-sor Carilo, que, de repente, depois de tantos anos, volta a trabalhar com omovimento cultural da nossa cidade. Pessoa a quem eu agradeço por ter meajudado a ser o que eu sou hoje. Porque foi no início do Lê-Guê DePá, acom-panhando minha mãe, que está presente aqui, que eu aprendi muito. LuizCarilo, pessoa que admiro desde essa época, pela sua seriedade, sua sincerida-de, pelo profissionalismo em tudo o que faz. Então, tenho certeza que, comtoda a humildade, vamos conseguir transformar esse Memorial da CulturaNegra em um espaço vivo, ativo, trazendo atividades que realmente possamdar, não só ao turista, mas principalmente às pessoas da nossa cidade, um es-paço de lazer, entretenimento e comercialização – porque as lojinhas estão aí,vão funcionar de segunda a sábado. O restaurante também, com comidas típi-cas, show folclórico. Enfim, nós pretendemos transformar isto aqui em umespaço vivo, um espaço atuante. Prova disso é que vamos ter agora uma peque-na apresentação do espetáculo Ifá, do Balé Afro do Dilazenze, para abrilhantaresta noite, que é uma noite muito importante e vai ficar marcada na históriado movimento afro-cultural de Ilhéus. Muito obrigado”.

Antes da apresentação do balé do Dilazenze, o prefeito ainda teve tem-po para lembrar que “em verdade” fora Adriana Ribeiro, sua esposa, a “gran-de defensora do projeto” do Memorial, pedindo a todos uma salva de palmaspara ela, e anunciando o balé, cuja apresentação deveria ser acompanhada,concluiu, “tomando uma cervejinha e comendo um sarapatelzinho”.

* * *

Sublinhemos, então, os pontos enfatizados por todos os participantesmais ativos na cerimônia. São estes pontos que permitirão acompanhar a redetemporal e política da qual a nomeação de Marinho faz parte, assim como

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justificar as longas transcrições. Observemos também, preliminarmente, quea nomeação faz parte de temporalidades e políticas relativamente heterogê-neas, as quais deverão, adiante, ser exploradas em sua heterogeneidade.

O prefeito, como vimos, fez questão absoluta de ressaltar a importânciada unidade do movimento afro de Ilhéus, evocando o CEAC; enfatizou, igual-mente, a importância do “Carnaval Cultural”3 da cidade; ao nomear Mari-nho, frisou que seu nome havia sido indicado pelo próprio movimento ne-gro; evocou a história recente do Memorial, mencionando o nome de im-portantes políticos que por lá haviam passado; e ofereceu o nome de LuizCarilo para “ajudar” na administração. Os pontos mencionados pelo novoadministrador (e, em parte, pelo presidente do CEAC) foram quase os mes-mos, ainda que, é claro, com ênfases diferentes: história do movimento ne-gro de Ilhéus, importância do CEAC, histórico do Memorial e elogios a LuizCarilo.

Como toda cerimônia, a nomeação do administrador do Memorial daCultura Negra de Ilhéus apresenta pelo menos dois aspectos complementa-res: foi um ato performativo, no qual Marinho Rodrigues efetivamente pas-sou a ocupar um cargo de confiança; e um ato simbólico (no sentido fraco dotermo), no qual uma série de relações, conflitos, manobras, desejos e poderesforam, ao mesmo tempo, representados e disfarçados sob a linguagem for-mal dessas celebrações. Trata-se então, inicialmente, de reconstituir o con-junto das tramas que conduziram e foram encenadas na cerimônia – recons-tituição que, espero, começará a tornar mais inteligível para o leitor o cenáriocompleto que está aqui sendo apresentado e, em parte, analisado.

A primeira coisa a lembrar é que, se a Associação Desportiva 19 de Marçoexiste desde meados da década de 1960, e se o movimento negro apareceuem Ilhéus no início da década de 1980,4 foi apenas em maio de 2000 que aperspectiva de esse “espaço” ser utilizado para as atividades dos grupos negrosda cidade começou a ser aventada. Mais precisamente, essa possibilidade foilevantada pela primeira vez, salvo melhor juízo, no dia 2 de maio de 2000,por ocasião de uma reunião entre o secretário municipal de administração eos dirigentes dos blocos afro. Marinho Rodrigues foi então convidado parauma nova reunião a fim de discutir o assunto. Esta nunca chegou a realizar-se, mas três dias mais tarde, em um encontro sobre outro tema, um alto fun-cionário do setor de turismo da Prefeitura (que, em Ilhéus, é administradopor uma empresa, a Ilheustur, que também trata da área dita “cultural”) faloude uma “casa de cultura afro” a ser implementada na 19 de Março. Mesmo o

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estranho nome “Memorial” foi sugerido pelo secretário (em acordo comGurita), e, quando os dirigentes negros argumentaram que algo como “Casada Cultura Negra de Ilhéus” seria melhor, ouviram que o nome já havia sidodivulgado e que, portanto, era melhor que permanecesse inalterado.

No dia 19 de maio, a Prefeitura organizou uma cerimônia de assinaturade um contrato de aluguel do andar térreo da Associação, montando, paraisso, um palanque diante do prédio. Algumas faixas foram colocadas em frenteao local: “Obrigado Jabes pelo Centro de Cultura Negra” (assinada pelos“moradores da Avenida Itabuna”); “Memorial da Cultura Negra: Resgate ePromoção do Mundo Afro”; “Jabes é Axé” (assinada pelas “entidades afro”);e assim por diante. Na presença de dirigentes das entidades negras, de váriossacerdotes do candomblé, de secretários municipais e de diversos vereadores,o prefeito Jabes Ribeiro anunciou solenemente a assinatura do contrato. “Tudoisso começou em 1997, quando nós resgatamos o Carnaval Cultural de Ilhé-us”, lembrou Jabes, que prosseguiu afirmando que esse resgate

“[...] afirmou Ilhéus pela sua história, pela sua cultura, pela força da sua gente.Ilhéus gosta dos trios elétricos, Ilhéus gosta dos grandes cantores que aqui vêm,do Ilhéus Folia, mas Ilhéus gosta mesmo é do Carnaval Cultural, quando opovo, como verdadeiro artista, desfila pelas ruas, mostrando a nossa raça, a nossaforça, a nossa energia, a inteligência dos ilheenses construída ao longo de todauma história. Carnaval Cultural de 97, Carnaval Cultural de 98, CarnavalCultural de 99, Carnaval Cultural de 2000, os blocos afro, os afoxés, enfim, abeleza da cultura construída ao longo de tantos anos. A cultura que veio daÁfrica, dos nossos ancestrais, dos nossos antepassados, a cultura da raça negra,que representa aquilo que há de mais forte, poderoso, na cultura deste país.Mas nós não podíamos ficar apenas no Carnaval Cultural, era preciso mais,era preciso avançar mais. Eu solicitei ao secretário de administração, que pilo-tou de forma competente o Carnaval Cultural, que nós pudéssemos reunir todosos que participam desse carnaval, que representam aquela beleza que a gentevê nos blocos, nas manifestações mais espontâneas, mais bonitas, que entusias-mam toda a população. Era preciso reunir este pessoal não apenas no carnaval,mas o ano inteiro. Tivemos a sensibilidade desse grande ilheense, desse lídercomunitário, desse homem simples, mas rico do ponto de vista de seus ideais,da sua vontade de ver Ilhéus crescer, que é nosso amigo Esmeraldo, a quempeço uma salva de palmas, para que aqui, na Associação Desportiva 19 deMarço, que sempre esteve à disposição das boas causas, pudéssemos satisfazera necessidade de termos um espaço para que a cultura de Ilhéus, expressa portodos os movimentos afro, pudesse ter seu espaço, ter seu local. Porque tenhocerteza de que, se o Carnaval Cultural de 2000 foi um sucesso, o de 2001 será

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muito mais brilhante a partir dessa iniciativa. E aqui, na 19 de Março, eu que-ro dizer a vocês todos que o que eu puder fazer para ajudar a fortalecer vocês eufarei. Para que vocês, quando cheguem na avenida, possam entusiasmar, mui-to mais ainda do que já têm feito até agora, os ilheenses e os turistas. Defendera cultura é um dever de qualquer governo, defender a cultura é um compro-misso com a vida, com a história, com o passado, com o presente e com o fu-turo. Eu espero que os blocos que aqui estão, os pais-de-santo, mães-de-santo,essas mulheres que fazem a história de Ilhéus e constroem a cultura de Ilhéuscom a sua arte, com sua religião, com sua fé, com sua força [...]. Nesse sanguecorre o sangue das origens de tantos e tantos que aqui construíram esse nossopaís. Portanto, nós vamos dizer aos turistas que venham a este espaço assistir,participar, prestigiar essa riqueza que Ilhéus tem e que precisa mostrar cadavez mais. Eu quero, ao assinar esse termo de convênio entre o Município deIlhéus e a Associação Desportiva 19 de Março, quero ler apenas a cláusula pri-meira, que diz que ‘o objetivo do presente convênio é a utilização da sede daAssociação 19 de Março por entidades que representam a cultura negra de Ilhéuse constituirão o memorial desta, ao mesmo tempo que se incumbirão depesquisar e resgatar a cultura em suas diversas manifestações, e a história, sem-pre objetivando a promoção social e política de nossos descendentes afro’. Estaé a cláusula fundamental deste convênio que assino. Parabéns, Ilhéus! Viva acultura negra! Viva o movimento afro! Vocês têm o meu apoio, o meu com-promisso permanente”.

Após alguns agradecimentos, proferidos pelos proprietários da Associa-ção Desportiva 19 de Março e por duas representantes de terreiros de can-domblé, a palavra foi passada a Marinho Rodrigues, que, na qualidade derepresentante dos blocos afro de Ilhéus (e, nesse momento, presidente doCEAC), lembrou que a cidade possuía uma “tendência para a questão afro,para a questão dos blocos afro”, chamou o local de “Casa de Cultura” e agra-deceu ao prefeito, dizendo que esperava que

“[...] juntos possamos explorar, no bom sentido do termo, este espaço, e queele realmente venha a nos dar muito proveito. Quero agradecer, então, em nomede todos os grupos afro de Ilhéus. E também agradecer a uma outra pessoaque, ao lado dos dirigentes dos blocos afro, tem sido um dos grandes baluartesdesse movimento, nosso amigo professor Gurita, um dos grandes responsáveispor este convênio e um dos grandes responsáveis também pela organização doCarnaval Cultural, que é uma grande vitória do movimento afro-cultural deIlhéus. Muito obrigado, prefeito Jabes Ribeiro! Parabéns!”

Observemos, contudo, de passagem, que, em sua segunda e curta inter-venção, destinada a encerrar o evento, o prefeito reconheceu o estado ainda

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precário do espaço cedido, anunciando que a Prefeitura providenciaria a lim-peza e as reformas necessárias. Essas palavras prenunciavam, na verdade, o fatode que, além das duas cerimônias já mencionadas, outras “inaugurações” doMemorial da Cultura Negra de Ilhéus estavam por vir.

De toda forma, a primeira página do jornal Diário de Ilhéus (com con-tinuação na página 4) anunciava, no dia 23 de maio de 2000: “Memorial daCultura Negra de Ilhéus vai se tornar realidade”. Dois meses mais tarde, oMemorial ainda era chamado por quase todos de “19 de Março”, mesmo tendopassado por algumas poucas obras. Parte do espaço interior havia sido con-sertada, a fachada pintada, com sua parte superior coberta por desenhos comtemática “afro”: figuras estilizadas tentando lembrar as divindades do candom-blé, instrumentos e adereços dos orixás, contornos humanos negros em posi-ção de dança, e assim por diante. Ainda que, visto de fora, o prédio parecessepronto para ser utilizado, a parte interna ainda estava muito longe de apre-sentar qualquer condição de ocupação imediata.

Foi nessas mesmas condições, contudo, que, no dia 23 de julho de 2000,o Memorial, ou “19 de Março”, foi palco do lançamento da candidatura deAlzimário Belmonte Vieira ao cargo de vereador na Câmara Municipal deIlhéus. Esse é, na verdade, o nome de batismo do professor Gurita, a quem,como vimos, tanto Jacks quanto Marinho agradeceram profundamente emseus discursos por ocasião de cerimônias realizadas no Memorial.

Gurita é um homem negro, de cerca de 35 anos, com curso superior,professor de educação física em diversas escolas da região. É sobrinho do prin-cipal responsável pela Associação Desportiva 19 de Março e, desde 1997,ocupava o cargo de chefe da Divisão de Esportes da Secretaria Municipal deEducação de Ilhéus.5 Sua nomeação para esse cargo resultou diretamente deuma participação política iniciada no começo da década de 1990. Guritaingressara na política no PT de Ilhéus, mas, em 1995, deixara o PT para in-gressar no PTdoB, partido nanico que fazia parte do grupo político de RúbiaCarvalho, que pretendia concorrer à Prefeitura da cidade no ano seguinte.Com a candidatura inviabilizada por motivos aos quais retornarei, Rúbiapassou a apoiar Jabes Ribeiro, caminho seguido também por Gurita, aindaque, oficialmente, seu partido estivesse do lado de outro candidato a prefei-to, Roland Lavigne. Candidato a vereador, Gurita obteve 354 votos nas elei-ções de 1996, número insuficiente para elegê-lo (obteve a quarta suplênciada coligação de que fazia parte o PTdoB), mas alto o bastante para credenciá-lo a um cargo de segundo ou terceiro escalão na administração municipal.

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Já na campanha de 1996, Gurita havia buscado apresentar-se como re-presentante do movimento negro de Ilhéus – ou ao menos do setor dessemovimento que se intitula “afro-cultural”. A tarefa não era das mais fáceis,uma vez que sua participação no movimento afro-cultural era relativamenterecente, posterior a seu envolvimento com a política partidária. Essa situaçãodava margem a comentários não muito elogiosos por parte dos militantes afro-culturais: que Gurita era “um negro que vivia metido com os brancos”, quese relacionava mais com os “barõezinhos” do que com os membros dos blo-cos, que se aproveitava da participação efetiva de um irmão, já falecido, paraaproximar-se dos grupos afro, e assim por diante. Por outro lado, a evocaçãodo nome desse irmão, a aproximação com um dos blocos que estavam pres-tes a encerrar suas atividades,6 a “ajuda” prestada a outros blocos em dificul-dades e o esforço para colocar-se como mediador entre o movimento negro ea candidatura de Jabes Ribeiro eram as estratégias usadas por Gurita a fim deobter o reconhecimento de sua suposta condição de candidato do movimen-to afro-cultural de Ilhéus.

Esse reconhecimento acabou não ocorrendo, já que, como veremos, omovimento dividiu seu apoio entre vários candidatos. No entanto, o fato dealguns dos principais blocos afro da cidade terem optado por aderir à candi-datura derrotada de Roland Lavigne (ao lado, certamente, do fato de Guritapertencer a uma camada sociocultural muito acima da média dos militantesnegros)7 fez com que, após a vitória eleitoral de Jabes Ribeiro, Gurita passas-se a funcionar como importante intermediário nas relações entre a Prefeiturae o movimento negro de Ilhéus – e esse é o sentido da expressão “advogadodos negões”, usada por Jacks Rodrigues para cumprimentá-lo, e que tem ori-gem, diz-se, em ironias lançadas sobre ele por membros da administraçãomunicipal da cidade.

As novas eleições municipais de 2000 constituíam, portanto, a ocasiãopara que Gurita voltasse a tentar o cargo de vereador – desta vez concorrendopelo PSDB – e para que, mais uma vez, buscasse ser o candidato do movi-mento afro-cultural da cidade. Nesse sentido, o fato de sua candidatura tersido lançada do Memorial da Cultura Negra – espaço que ele se orgulhava deter ajudado a obter – era uma conseqüência quase necessária de todo o con-texto político em que estava envolvido, além de marcar sua candidatura como selo do movimento negro. Não foi casual, portanto, que, durante a ceri-mônia de lançamento da candidatura, o prefeito de Ilhéus, candidato à ree-leição, tenha sustentado que o Memorial deveria vir a representar, em seu se-gundo mandato, o que o “resgate do Carnaval Cultural” da cidade teria

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significado no primeiro: o reconhecimento da importância do movimentoafro-cultural de Ilhéus e o principal ato de apoio por ele prestado a esse mo-vimento e a toda a população negra da cidade (cerca de 85% do total).

O lançamento da candidatura de Gurita à Câmara dos Vereadores con-tou com a presença de alguns políticos, de seu substituto à frente da Divisãode Esportes da Secretaria de Educação (e um dos coordenadores de sua cam-panha), de uma representante de um dos colégios onde Gurita é professor deeducação física e do próprio prefeito de Ilhéus. A mesa foi composta por es-sas pessoas, além de Marinho Rodrigues (como representante dos grupos afro,dos quais seis se fizeram presentes na cerimônia) e do principal proprietárioda 19 de Março (tio do candidato). Em meio a mais de cem pessoas e de fai-xas que diziam coisas como “Neste o povo acredita. Para vereador Gurita”,este último fez questão de dizer que “como tio que não poderia faltar na cam-panha: esta casa está aberta para todos os políticos, mas fiquem sabendo quenossa preferência é Gurita”. Marinho, por sua vez, em um discurso algo in-flamado, que arrancou muitos aplausos dos presentes, elogiou Gurita, queteria representado muito bem o movimento negro durante o tempo em queestivera na Prefeitura; acrescentou que a eleição de Gurita, ao lado da reelei-ção de Jabes Ribeiro, certamente ajudaria o desenvolvimento do ProjetoBatukerê, projeto social que o Dilazenze vinha desenvolvendo com criançasda Conquista naquela ocasião; prosseguiu dizendo esperar que Gurita fizessejus à confiança que os grupos afro estavam nele depositando; e concluiu agra-decendo ao prefeito pelo Memorial, que, em breve, estaria entrando em fun-cionamento: “foi o primeiro prefeito que cumpriu o que prometeu”.

Jabes Ribeiro, por sua vez, fez questão de sublinhar o depoimento deMarinho como demonstração de que Gurita era mesmo o verdadeiro repre-sentante do movimento afro-cultural. Prometeu transformar Ilhéus no segun-do pólo afro-cultural da Bahia e mencionou o resgate do Carnaval Culturalcomo um dos grandes feitos de seu mandato. Retirou-se, contudo, antes dodiscurso de encerramento feito pelo candidato, no qual sobraram agradeci-mentos às várias entidades que o estariam apoiando e relatos de suas conquis-tas nas áreas do esporte e da cultura. Finalmente, Gurita comunicou que haviasido decidido, em seu comitê de campanha, que Marinho Rodrigues deveriaser o encarregado de lidar com os representantes do movimento afro-culturale dos terreiros de candomblé.

No dia 27 de agosto, um mês após o lançamento de seu nome comocandidato a vereador, Gurita promoveu um café-da-manhã de apoio a sua can-didatura, também realizado no Memorial da Cultura Negra. Cafés da manhã

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como ocasiões para a manifestação de apoio eleitoral são atos políticos muitocomuns nas campanhas em Ilhéus, ao menos desde 1996. No café promovi-do por Gurita, além de seus colaboradores diretos, estavam presentes os prin-cipais dirigentes do movimento afro-cultural da cidade – entre eles, MarinhoRodrigues, que compareceu acompanhado por boa parte de sua grande fa-mília e por diversos membros de seu bloco, o Grupo Cultural Dilazenze –,secretários municipais, alguns outros políticos e o próprio prefeito de Ilhéus,acompanhado de sua esposa.

Havia várias mesas espalhadas pelo salão do segundo andar do prédio da19 de Março, já que o térreo continuava inutilizável, e nelas diferentes gru-pos se sentavam. Marinho foi convidado pelo prefeito para sentar-se a seulado, e conversou com ele, em voz baixa, durante quase toda a cerimônia.Conversa que, é claro, girava em torno das próximas eleições e da campanha,mas principalmente em torno daquelas para a Prefeitura e não da de Guritapara vereador. Jabes Ribeiro disse a Marinho que estava sentido falta de seuapoio “na guerra”, e que todos sabiam que são aqueles que estão nessa guerraos que, após a vitória, terão “a melhor fatia do bolo”. Marinho respondeu que“para ir à guerra é preciso ser convocado” e que até aquele momento isso nãoacontecera. Jabes avisou-o, então, que, a partir daquele instante, devia diri-gir-se diretamente a ele, sem a necessidade de nenhum intermediário, avisoque não deixava de ser curioso, ao ser anunciado em um ato de apoio à can-didatura de alguém que justamente buscava se apresentar como representan-te do movimento negro e, portanto, como seu mediador junto à administra-ção municipal.

Os discursos que se seguiram exibiram o tom habitual, mas uma peque-na surpresa não deixou de ocorrer no discurso de abertura proferido pelocandidato a vereador: Gurita apresentou Marinho como coordenador de suacampanha, embora, apenas cerca de um mês antes – quando Marinho espe-rava ser escolhido para essa função – houvesse anunciado o nome de outrapessoa, um funcionário da Divisão de Esportes, cuja chefia era ocupada exa-tamente por Gurita. Por outro lado, no discurso de encerramento do café-da-manhã, o candidato voltou a falar de Marinho, mas dessa vez como “umdos coordenadores da minha campanha”.

* * *

No início de setembro de 2000, o Memorial da Cultura Negra de Ilhéushavia se tornado, de uma forma ou de outra, um ponto de referência para os

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militantes do movimento negro e para alguns outros setores da cidade –embora muitos ainda o denominassem “19 de Março”. Prova disso é que otradicional Comício das Mulheres – organizado, aparentemente, desde a pri-meira eleição de Jabes Ribeiro, em 1982 – foi realizado, justamente, na fren-te do prédio do Memorial. A regra básica desse comício é que, com exceçãodo próprio candidato, apenas mulheres podem subir ao palanque e ter direi-to à palavra. Dessa feita, uma das oradoras foi exatamente a esposa de Gurita,o que confirmou a difundida opinião de que este estaria com muito prestígiojunto a Jabes e à coordenação de campanha do PSDB, a despeito do fato desua mulher trabalhar nas campanhas de Jabes desde 1996.

No dia 7 de setembro, Roland Lavigne, principal candidato de oposi-ção, realizou um comício na Conquista, mais precisamente na Praça SantaRita, espaço tradicionalmente utilizado para isso naquele bairro. Esse comí-cio, entretanto, foi apenas o ponto culminante de uma série de atos eleitoraisque tiveram início com uma caminhada que começou precisamente na fren-te do prédio do Memorial. Depois disso, o movimento afro-cultural decidiurealizar uma caminhada de apoio à candidatura de Jabes Ribeiro, marcando-a para o dia 21 de setembro.

As caminhadas também são atos eleitorais e políticos comuns em Ilhéus,e esta deveria percorrer todo o centro comercial da cidade para terminar emfrente ao Memorial, onde seria realizada uma apresentação artística de diver-sos blocos afro. No final das contas, apenas a caminhada foi efetivamenterealizada, e ainda assim contando com um contingente de pessoas bem me-nor do que se imaginava. A apresentação no Memorial foi cancelada, supos-tamente em virtude da impossibilidade de contar com um sistema de someficiente, já que as duas aparelhagens disponíveis para a campanha estariamsendo utilizadas em eventos realizados no mesmo momento em outros locais.

Passadas as eleições de outubro de 2000, nas quais Jabes Ribeiro foireeleito para a Prefeitura de Ilhéus com 33.775 votos (46,44% dos votos vá-lidos) e Gurita – apesar de ter obtido 625 votos (contra os 354 de 1996) –mais uma vez não conseguiu se eleger para a Câmara, o Memorial foi, enfim,oficialmente inaugurado. As obras de recuperação, na verdade, ainda estavamlonge da conclusão (o que aconteceria apenas bem mais tarde), mas, apesardisso, decidiu-se aproveitar o Dia Nacional da Consciência Negra para a re-alização da cerimônia, tanto que, marcada inicialmente para o dia 17 de no-vembro, uma sexta-feira, a inauguração acabou sendo transferida e realizadano dia 20 de novembro de 2000. Essa cerimônia de criação e inauguraçãoformais do Memorial da Cultura Negra de Ilhéus foi em tudo semelhante

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àquelas já abordadas. Marinho Rodrigues, que inicialmente fora convocadopara organizar o evento, acabou sendo substituído por um subsecretário domunicípio – com quem teve um pequeno desentendimento ao saber da contra-tação de dois grupos de pagode para se apresentarem na cerimônia (um de-les, aliás, ligado ao pai de Gurita).

O curioso é que, após a inauguração do Memorial, quase nada aconte-ceu por cerca de um ano e meio. Parte das obras de recuperação foi concluí-da, e o andar térreo do prédio era precariamente utilizado por academias decapoeira e para algumas aulas de dança afro, o que, em tese, não tinha qual-quer relação com o Memorial ou o CEAC. Ao longo de todo o ano de 2001,entretanto, falou-se muito do Memorial, da retomada das obras, da liberaçãode verbas por parte da Prefeitura e, principalmente, de quem poderia vir a sero administrador da nova instituição. O nome mais citado, sem dúvida, era ode Marinho Rodrigues, mas a administração era um cargo bastante cobiça-do. Não apenas pelo prestígio que se estimava ser por ele conferido, mas tam-bém porque se imaginava que o salário do cargo girasse em torno de R$1.000,00, valor que não parecia nada desprezível em uma cidade onde o de-semprego, especialmente entre a população masculina negra, é altíssimo e ospoucos postos disponíveis costumam oferecer “um salário” (ou seja, um salá-rio mínimo) como remuneração. Prova disso é que mesmo um dos irmãos deMarinho – que já trabalhara na Prefeitura, fora candidato a vereador algunsanos antes, estava desempregado há muito tempo, e de quem logo voltarei afalar – tentou obter o cargo.

Já quase no final de 2001, no dia 18 de novembro, o espaço do Memorialfoi mais uma vez utilizado para um evento relacionado ao Dia Nacional daConsciência Negra. Desta feita, o ato consistiu em uma feijoada destinada amarcar o encerramento de um campeonato de futebol organizado pelo CEAC,com recursos da Prefeitura, como parte das comemorações da Semana de Zumbi.

* * *

Foi, entretanto, em 2002 – ano eleitoral novamente, observemos – quea já algo longa história do Memorial da Cultura Negra de Ilhéus foi definida,ainda que provisoriamente. Logo depois do carnaval, a nova diretoria doCEACI havia decidido promover uma cerimônia no Memorial, destinada àentrega do Primeiro Troféu CEACI de Cultura Negra, que deveria homena-gear pessoas que se teriam destacado nas atividades do movimento negro dacidade ou no apoio a este.

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O atual Conselho das Entidades Afro-Culturais de Ilhéus corresponde,na verdade, à terceira ou quarta variante das repetidas tentativas dos gruposque compõem o movimento negro da cidade de estabelecerem uma instân-cia que reúna e represente todos eles. A tentativa inicial, que instituiu umConselho também usualmente chamado de CEACI, remonta a 1990 e, apa-rentemente, teve uma duração curta e instável. No bojo das eleições munici-pais de 1992, a segunda tentativa de estabelecer o Conselho foi empreendi-da. Esses eventos serão detidamente analisados no próximo capítulo e, porora, basta assinalar que a presidência desse segundo CEACI não apenas ade-riu a uma das candidaturas a prefeito, como obteve o apoio de todos os gru-pos que compunham o Conselho, acenando com um acordo que envolviajustamente a construção do que era então conhecido como Centro Afro-Cultural de Ilhéus, primeira versão do Memorial da Cultura Negra.

O Centro jamais foi construído, ainda que os candidatos apoiados pelomovimento negro tenham vencido essas eleições. Interpretando esse fracassocomo uma “traição” perpetrada pela presidência do CEACI contra as entida-des que o compunham – que teriam sido, pois, manipuladas política e eleito-ralmente –, os dirigentes dos blocos dissolveram, na prática, o Conselho etrataram de constituir uma nova entidade, que recebeu o mesmo nome daanterior, mas passou a ser conhecida pela sigla CEAC. Essa pequena variaçãosempre serviu para marcar a diferença desse novo Conselho em relação aoanterior, definitivamente comprometido com os acontecimentos das eleiçõesmunicipais de 1992. Devemos observar, ainda, que, se a primeira diretoriado novo Conselho foi eleita em 1997 (congregando quinze grupos contra osdez dos Conselhos anteriores), sua constituição teve início no ano anterior,ano eleitoral mais uma vez – processo que foi descrito com detalhes por AnaCláudia Cruz da Silva (1998: 89-111) e que será analisado no terceiro capí-tulo deste livro.

Por ora, basta dizer que o mandato da diretoria, com duração de doisanos, terminaria em 1999, mas foi prorrogado tacitamente por mais dois anos– já que aparentemente não houve qualquer ato mais formal objetivando aprorrogação –, encerrando-se no início de 2001. Foi apenas aí que o presi-dente em exercício,8 Marinho Rodrigues, convocou novas eleições, empre-gando, contudo, uma estratégia muito utilizada, na política de todos os ti-pos, quando se deseja, ao mesmo tempo, cumprir uma obrigação legal oumoral e não a ver realizada: não tomou nenhuma das medidas concretas vi-sando à efetivação do pleito. O processo ficou assim paralisado até que PauloCesar de Menezes (Cesar), presidente do Bloco Afro Rastafiry, coordenador

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de organização e, na prática, vice-presidente do Conselho, decidiu assumir arealização das eleições, marcando data e local (o pequeno bar que possuía naépoca) para as mesmas.

Apenas uma chapa, encabeçada pelo próprio Cesar, apresentou-se e ob-teve a maioria dos votos. O presidente em exercício, entretanto, não estavanada satisfeito com o processo que, imaginava, visava retirar do grupo ao qualpertence, o Dilazenze, o comando do Conselho. Argumentando que as elei-ções se teriam realizado de forma irregular – em local inapropriado e sem ocalendário correto –, Marinho conseguiu a anulação do processo e a realiza-ção de novo pleito. Tempo suficiente para que articulasse outra chapa, emque aparecia como candidato a vice-presidente Ney Rodrigues, seu irmão,mestre de bateria e vice-presidente do Dilazenze. Para candidato a presiden-te, Marinho lançou o nome de Jacks Rodrigues, dirigente de um bloco afromuito pequeno e quase em processo de extinção, o D’Logun. Com um pre-sidente fraco e com um vice de seu próprio grupo, Marinho certamente ima-ginava manter o controle do CEAC, o que supostamente não ocorreria comuma diretoria encabeçada pelos outros dois grandes blocos da cidade, oRastafiry e o Miny Kongo (do qual se originava o candidato a vice-presiden-te da chapa encabeçada por Cesar, do Rastafiry). Nesse processo, Marinhocontou com o auxílio de Gurita:

“Eu fiz toda a articulação de montagem da chapa: indiquei Jacks como presi-dente e conversei com os grupos que tinham confiança em mim, pedindo quevotassem nele; enquanto isso, Gurita conversou com os grupos que ele ajuda epediu votos para Jacks. Mas hoje, tanto Gurita quanto eu admitimos que nãofoi a melhor escolha e que nós somos responsáveis pela situação em que o Con-selho está. Então nós temos que tomar uma providência”.

O problema, como se pode adivinhar pela fala de Marinho, é que, comoocorre freqüentemente em política, em todos os níveis, as coisas não se pas-saram exatamente como Marinho planejara e esperara. A chapa por ele arti-culada venceu as eleições, mas, assim que empossado, Jacks Rodrigues tratoude buscar uma ligação direta com a Prefeitura municipal – articulada por in-termédio de Gurita, que continuava ocupando a Divisão de Esportes da Se-cretaria Municipal de Educação. Desse modo, Jacks buscou realizar uma sé-rie de eventos, contando, para isso, com o apoio, inclusive financeiro, da Pre-feitura. Em troca, e aproveitando o fato de 2002 ser novamente ano eleitoral,ofereceu abertamente a adesão do CEACI à chapa apoiada pelo prefeito deIlhéus: Paulo Souto, para governador; Antônio Carlos Magalhães e César

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Borges, para o Senado; Fábio Souto, para deputado federal; e Joabes Ribeiro(irmão do prefeito e vereador mais votado nas eleições municipais de 2000),para deputado estadual. E o pior, do ponto de vista de Marinho, é que tudoisso foi efetuado com o apoio explícito de boa parte da diretoria do Conse-lho, inclusive do vice-presidente Ney Rodrigues.

Marinho discordava de todos esses encaminhamentos: formalmente, ale-gava que eram efetuados sem qualquer consulta aos membros do CEACI e àsentidades que o compunham; politicamente (no sentido da ‘grande políti-ca’), sustentava que a diretoria do Conselho vinha sendo extremamente iná-bil, oferecendo apoio sem qualquer garantia de retribuição para o órgão e paraos blocos, e sem qualquer garantia de vitória da chapa apoiada, uma vez queas eleições ainda estavam muito distantes. Do ponto de vista da política in-terna do movimento afro, contudo, parecia haver mais coisas em jogo. A partirdo final do carnaval de 2002, Marinho dera início a uma série de denúnciascontra alguns membros da diretoria do CEACI, acusando-os de desvio, embenefício próprio, de parte das verbas cedidas pela Prefeitura para a realiza-ção de eventos pelo Conselho. Essas denúncias e acusações passaram por umprocesso crescente de divulgação e publicidade, culminando com sua apre-sentação em jornais e rádios de Ilhéus – que em geral as divulgaram por meiode entrevistas realizadas com os dois lados envolvidos na questão – e seu en-caminhamento à administração pública da cidade (que preferia, é claro, nãose envolver no assunto).9

É curioso observar que, nesse processo, Marinho acabou se reaproxi-mando de Cesar, do Rastafiry, que ele havia preterido, no momento de suaprópria sucessão à frente do CEAC, em benefício de Jacks Rodrigues, e queagora o apoiava incondicionalmente nas denúncias contra a nova diretoria.Finalmente, os dois, acompanhados por mais alguns blocos menores, propu-seram a destituição da diretoria do Conselho e, ao não serem bem-sucedidos,fundaram uma nova associação, a Abase (Associação dos Blocos do Sul e Ex-tremo-Sul Baianos). Além disso, passaram sistematicamente a se referir aoConselho das Entidades Afro-Culturais de Ilhéus como “CEACI”, estabele-cendo retoricamente uma ligação com os “traidores” de 1992 e um distancia-mento perante o CEAC, presidido por Marinho entre 1997 e 2001.

A Abase, na verdade, nunca chegou a funcionar realmente, nem a existirformalmente. Essa inexistência relativa, assim como a impugnação do pro-cesso eleitoral do CEAC em 2001 e as acusações feitas contra a diretoria doCEACI em 2002, chamam a atenção para um tipo de relação bastante espe-cial mantida pelo movimento afro-cultural de Ilhéus com o que poderíamos

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denominar, para as necessidades da causa, codificações jurídicas ou legais. Seobservarmos com cuidado, as irregularidades praticadas pela diretoria doCEACI, o estatuto do CEAC supostamente violado e a própria existência daAbase, não possuem qualquer estatuto formal. As regras e estatutos costumamser estabelecidos em reuniões e encontros, mas, mesmo quando registradosno papel, tendem a possuir uma existência de ordem puramente retórica. Eisso tanto no sentido de que permanecem apenas na memória e no discursode algumas pessoas, quanto no de que sua aplicação efetiva depende da forçaretórica daqueles que os acionam. Assim, a razão que fez com que as viola-ções dos estatutos do CEAC e das regras do CEACI nunca tenham tido qual-quer conseqüência prática mais grave, e que a Abase nunca tenha chegado afuncionar é a mesma. Aqueles que acusavam a diretoria do CEACI e que, porisso, fundaram a nova Associação nunca tiveram força suficiente para amea-çar de fato os diretores do Conselho e, ao mesmo tempo, não chegaram aimplementar, na prática, a entidade, que permaneceu existindo apenas noplano discursivo.

Na verdade, é sempre a relação com o Estado (em suas diversas instâncias)que acaba cristalizando ou fornecendo certo grau de consistência às regras eassociações que o movimento afro-cultural de Ilhéus não se cansa de criar.Voltarei a esse ponto; por enquanto, basta assinalar que é mais fácil compre-ender agora por que, em seu discurso na cerimônia de posse de MarinhoRodrigues como administrador do Memorial da Cultura Negra, o prefeitode Ilhéus insistiu tanto na necessidade de unidade do movimento negro dacidade e no risco de sua desarticulação. Se, conjunturalmente, Jabes Ribeirobuscava apenas evitar a eclosão de conflitos latentes (o que poderia eventual-mente perturbar a cerimônia), de um ponto de vista mais estrutural pode-ríamos dizer, talvez, que o prefeito tentava ratificar a existência de um órgãocom o qual a Prefeitura, ou seja, o Estado, poderia legitimamente se relacionar.

Entretanto, e apesar desses esforços, as tensões e conflitos existentes nointerior do movimento afro-cultural de Ilhéus voltaram a se manifestar porocasião da entrega do Primeiro Troféu CEACI de Cultura Negra em 16 deabril de 2002. Planejada e organizada pela diretoria do Conselho, em conta-to direto com o chefe da Divisão de Esportes da Secretaria Municipal de Edu-cação e com a Secretaria Municipal de Administração (que, formalmente, é aresponsável pelo Memorial), a realização da cerimônia só foi comunicada aosdirigentes das entidades negras às vésperas do evento –, ainda que, como cos-tuma ocorrer em uma cidade como Ilhéus, rumores sobre o acontecimentoviessem correndo alguns dias antes da data da cerimônia. E foi apenas um dia

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antes do evento que as entidades receberam seus convites: personalizados eintransferíveis, apenas seis deles foram entregues em mãos, em envelopes la-crados, a cada dirigente de entidade.

Se esses procedimentos não são nada usuais nas atividades do movimentonegro de Ilhéus, mais incomum ainda foi o fato de que, na porta do Memo-rial, seguranças contratados pela Prefeitura realmente só permitiam a entra-da daqueles que dispunham dos convites. Estes anunciavam o “Primeiro Troféude Cultura Negra”, enquanto os jornais locais haviam divulgado a entrega do“Primeiro Troféu CEACI de Cultura Negra”; em entrevista à televisão, porsua vez, Jacks Rodrigues havia comunicado a concessão do “Troféu Desta-ques do Carnaval”, uma homenagem aos melhores blocos do carnaval de 2002.

Toda essa confusão, aliada a um atraso de quase três horas – exagerado,mesmo para os padrões ilheenses –, deixava a todos muito “desimpacientes”,como se costuma dizer nos bairros mais populares da cidade quando se dese-ja enfatizar que a impaciência passou de um limite razoável. A irritação só fezaumentar quando a chegada do prefeito e de sua comitiva – provenientes deoutra cerimônia, em um auditório no centro da cidade, na qual Jabes Ribeiroanunciara os candidatos que apoiaria nas eleições de outubro – confirmou assuspeitas de que o atraso se devia apenas ao fato de que era a chegada dessesconvidados que a diretoria do CEACI aguardava para dar início à entrega dostroféus.

Apresentada por um locutor de uma das rádios locais – filiado ao PFL,partido pelo qual Joabes Ribeiro se lançara candidato a deputado estadual –, acerimônia teve início com a convocação de uma “mesa”. Se esse é um proce-dimento comum em solenidades dessa natureza, a composição dessa mesa nãoseguiu o padrão usualmente empregado em Ilhéus: composta pelo prefeito,sua esposa, seu irmão, pelo candidato a deputado federal Fábio Souto, doissecretários municipais e pelo prefeito de uma cidade vizinha, a mesa não con-tava com nenhum representante do movimento negro da cidade. Ou, nostermos mais explícitos de Marinho Rodrigues, “não tinha um negro sentadoà mesa, e não tinha representante das entidades sentado à mesa”.

Pior do que isso, dos 25 troféus distribuídos, apenas seis foram entre-gues a blocos afro que haviam desfilado no carnaval, e dois ou três a pessoasde alguma forma ligadas ao movimento negro – como Gurita e Dona IlzaRodrigues, mãe de Marinho e importante mãe-de-santo de candomblé emIlhéus. Todos os outros troféus foram entregues a políticos, ocupantes de cargospúblicos ou administrativos e empresários: o prefeito, sua esposa, seu irmão,Fábio Souto, locutores de rádio, o dono da então maior empresa de ônibus

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da cidade, a estação local de televisão, e assim por diante. Alguns comenta-vam, com ironia, que o próprio presidente do CEACI devia ter em casa umtroféu para premiar a si mesmo mais tarde. E Marinho Rodrigues concluíaassim sua avaliação da entrega do Primeiro Troféu CEACI de Cultura Negra:

“Então, os dirigentes de blocos, aqueles que realmente fazem a cultura, quemantêm essa cultura viva, foram lá só para bater palmas e, pior, para bater palmaspara os brancos, que estavam sentados na mesa com os negões aplaudindo eeles recebendo os troféus que, na verdade, deviam ser entregues aos dirigentesdos blocos. O evento tinha sido pensado por nós, mas Jacks roubou a idéia dogrupo, o que politicamente, para ele, foi bom!”

Do outro lado da mesa, entretanto, outras coisas pareciam estar em jogo.O prefeito, vimos, chegava de um ato público em que anunciara os candida-tos que apoiaria nas eleições de outubro: a dobradinha formada por seu ir-mão Joabes Ribeiro, como candidato a deputado estadual, e por Fábio Souto(deputado estadual e filho do senador Paulo Souto) para deputado federal;Antônio Carlos Magalhães e César Borges para o Senado; e Paulo Souto paragovernador. Nenhum candidato à Presidência da República fora menciona-do, mas todos sabiam, ou viriam a saber, que Jabes apoiava Ciro Gomes. A“aliança” com Fábio Souto parecia estratégica aos olhos do prefeito. Evocan-do sempre as “relações históricas dos Souto com Ilhéus” – a esposa de PauloSouto era da “região”; ele mesmo morara na cidade durante alguns anos desua juventude; finalmente, logo após as eleições municipais de 2000, FábioSouto transferira seu título eleitoral para Ilhéus, ensejando a hipótese de quepretendia candidatar-se à Prefeitura da cidade –, Jabes procurava exibir a seueleitorado a força que possuiria nos planos estadual e nacional. Por outro lado,buscava mostrar a seus aliados o poder eleitoral de que disporia em Ilhéus e,para isso, o Memorial e os grupos negros da cidade pareciam perfeitamenteadequados. O que significa que, mais do que indagar se o investimento noMemorial visava obter votos, ou resultava de fato nestes, deveríamos suporque se trata de uma espécie de operador por meio do qual o prefeito se torna-va visível para seus aliados ‘de cima’ e para seus eleitores ‘de baixo’. Votos po-dem, certamente, provir dessa operação, mas ela parece ser suficientemente im-portante em si mesma.10

Assim, após as saudações de praxe e depois de, mais uma vez, lembrar aimportância do Carnaval Cultural de Ilhéus – bem como sua própria impor-tância na revitalização do mesmo –, o prefeito anunciou solenemente a reto-mada das obras do prédio do Memorial e convidou o presidente do CEACI

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a assinar, com ele, um “protocolo de intenções” entre o Conselho e a Prefei-tura, protocolo que tinha por

“[...] objetivo formalizar uma parceria para o desenvolvimento dos projetossociais, visando a integração social e cultural do Movimento Negro de Ilhéusatravés de oficinas, concursos de dança e música do gênero. Ao CEAC competeceder o espaço, dar o apoio administrativo e terminar os projetos, enquanto oMunicípio de Ilhéus, através da Fundação Cultural de Ilhéus, finca o compro-misso de planejar, organizar, divulgar os projetos culturais e atividades lúdicas,recreativas e esportivas do CEAC. E por estarem assim acordadas, as partesassinam o presente protocolo de intenção em duas vias de igual teor na presen-ça das testemunhas”.

Lido o protocolo, Jabes convidou Joabes Ribeiro e Fábio Souto paraassinarem como testemunhas, e para proferirem algumas palavras. Finalizandoa cerimônia, Jacks Rodrigues lembrou que

“[...] é uma honra muito grande. Nós estamos querendo desenvolver a culturanegra de Ilhéus e nós não vamos abaixar a cabeça e não vamos parar. Este pre-feito está sendo o primeiro a nos apoiar. Nós temos que mostrar a nossa com-petência, nós temos que mostrar para o povo lá fora que nós não trabalhamossó no carnaval, nós trabalhamos no dia-a-dia, toda hora. Então, nós temos queter uma cultura forte, não só no carnaval, mas desenvolvendo um trabalho. Aminha preocupação e a preocupação dos diretores das entidades afro é que esseMemorial da Cultura Negra vá em frente. Essa obra vai ser tocada para a fren-te, mas vai ser tocada com uma parceria forte, com uma parceria entre o CEACI,os grupos negros e a Prefeitura. Nós precisamos, sim, da ajuda do deputadoestadual e futuro deputado federal Fábio Souto, precisamos porque aqui exis-te a segunda melhor cultura negra do Estado da Bahia, aqui existe a maior re-sistência afro-cultural da região. Então, nós precisamos, sim, de sua força lá naCâmara dos Deputados, e precisamos de uma força maior do grande represen-tante aqui de Ilhéus, Joabes Ribeiro, porque esse povo que está aqui é que fazesse movimento cultural aqui da nossa Bahia. Então, nós temos que lutar deparceria, de mãos dadas, mostrando que isso aqui é organizado por negros eque o negro também é organizado, o negro também é civilizado e o negro tam-bém tem consciência e tem cultura. Por isso, prefeito, vamos a essa parceriapara sermos fortes. Muito obrigado”.

No dia 7 de maio, Gurita e o prefeito concederam uma entrevista emum programa de rádio intitulado “Ilhéus cada vez melhor”, programa que,de acordo com praticamente todos em Ilhéus, é financiado pela Prefeitura.

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Ambos falaram do Memorial: Gurita sustentou tratar-se de um “espaço dacidadania”, que serviria de palco para projetos visando “tirar meninos e meninasda rua”, desenvolver atividades para a terceira idade e abrigar academias de ca-poeira que desenvolvem trabalhos com crianças e adolescentes; além disso, oespaço deveria servir para reuniões comunitárias dos moradores dos bairrospróximos. Mais ainda do que o chefe da Divisão de Esportes da SecretariaMunicipal de Educação, o prefeito Jabes Ribeiro buscou realçar a importân-cia da preservação da cultura negra em Ilhéus. Mencionou, como sempre secostuma fazer nessas ocasiões, a revolta dos escravos do Engenho de Santana11

e o que ela significava em termos da “valorização da raça negra em Ilhéus”;ressaltou que o Memorial – com suas lojinhas de artesanato, restaurante decomida típica, oficinas de dança, música e artes plásticas – seria extremamen-te importante não apenas para a preservação e divulgação da cultura negra,como também para a vida cultural de Ilhéus como um todo e para os turistasque visitam a cidade. O apresentador do programa, por sua vez, fez questãode frisar a importância histórica de Jabes Ribeiro na luta pela preservação dacultura negra em Ilhéus e o fato de o prefeito ter acabado de receber o TroféuCEACI de Cultura Negra, prova do reconhecimento dessa importância porparte do movimento negro da cidade.

As obras no prédio da 19 de Março, de fato, foram retomadas, mas ape-nas no dia 28 de junho de 2002 o Memorial da Cultura Negra de Ilhéus foioficialmente inaugurado. Essa inauguração que em tudo prolongava o climae o estilo das inúmeras cerimônias que, anteriormente, haviam sido realiza-das no espaço do Memorial, desde maio de 2000, e que convém, talvez, reca-pitular sinteticamente (acrescentando já alguns eventos ainda não abordados):

2/5/2000: Reunião dos dirigentes negros com o secretário municipal de ad-ministração: pela primeira vez, fala-se em usar o espaço da AssociaçãoDesportiva 19 de Março para atividades do movimento negro de Ilhéus;

05/05/2000: Reunião dos dirigentes do Dilazenze com um diretor da Ilheus-tur, que fala sobre o Memorial, por ele chamado de “Casa de Cultura Afro”;

19/5/2000: Assinatura do contrato de aluguel com a Associação Desportiva19 de Março;

23/7/2000: Lançamento da candidatura de Gurita a vereador no prédio daAssociação Desportiva 19 de Março;

20/11/2000: Primeira inauguração do Memorial;

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18/11/2001: Feijoada, realizada após campeonato de futebol que fazia partedas comemorações da Semana da Consciência Negra;

16/4/2002: Entrega do Primeiro Troféu CEACI de Cultura Negra;

28/6/2002: Reinauguração do Memorial;

06/12/2002: Nomeação de Marinho Rodrigues para o cargo de administra-dor do Memorial da Cultura Negra de Ilhéus.

No dia 29 de junho de 2002, o jornal Correio da Bahia, de Salvador,publicava: “ACM comemora os 468 anos de fundação de Ilhéus”; “Chapamajoritária do PFL prestigia homenagem do prefeito Jabes Ribeiro ao gover-nador Otto Alencar”; e “ACM, César e Paulo Souto caminharam com o pre-feito e o governador pelas ruas de Ilhéus”:

“Os candidatos do PFL e dos partidos aliados ao Senado, Antônio CarlosMagalhães e César Borges, e ao governo do estado, senador Paulo Souto, acom-panharam ontem o governador Otto Alencar e o prefeito Jabes Ribeiro (PFL)nas festividades dos 468 anos de fundação da cidade de Ilhéus. As comemora-ções foram marcadas pela entrega de uma série de obras realizadas pelo governodo estado em parceria com a Prefeitura, e por uma homenagem ao governa-dor, que foi agraciado com a Comenda da Ordem do Mérito de São Jorge dosIlhéus.Em seu discurso, ACM aproveitou o aniversário da cidade para fazer umahomenagem ao povo de Ilhéus. O candidato do PFL ao Senado destacou per-sonagens ilustres que a cidade deu ao Brasil e ao mundo, como o escritor JorgeAmado, o comandante da Sexta Região Militar, general Luiz Henrique MouraBarreto, o empresário Vagner Keeper e o senador Paulo Souto, que, emboranão tenha nascido no município, viveu toda infância e juventude na cidade.‘Esta é uma terra linda e querida que todos querem viver. Eu dizia ontem: sealgum dia me quiserem exilar para algum lugar, a minha preferência é Ilhéus’,afirmou.O povo ilheense fez uma grande festa para receber os candidatos da coligaçãoAção, Competência e Moralidade, comparecendo em peso ao aeroporto dacidade e acompanhando, em carreata, a comitiva para os locais das inaugura-ções. ‘Com essa demonstração de carinho, nota-se que Ilhéus já escolheu paragovernador um homem que se fez filho desta terra, pelo seu trabalho, pelo seuamor e pela sua dedicação ao povo daqui, que é Paulo Souto. Já escolheu tam-bém outros dois baianos que vão para o Senado trabalhar por Ilhéus, pela Ba-hia e pelo Brasil, César Borges e eu’, afirmou ACM.O candidato pefelista ao Senado destacou a importância do município para odesenvolvimento do estado e garantiu que, no que depender do governador

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Otto Alencar, Ilhéus continuará a ter a posição de destaque que sempre teve naBahia. ‘Por isso fiz questão de assistir a esta homenagem prestada ao governa-dor Otto Alencar e, ao mesmo tempo, mostrar o nosso programa de obras paraessa terra. Temos assistido bastante esse município e vamos atender ainda mais,porque essa terra merece mais do que isso’, disse”.

Na verdade, 28 de junho é o dia em que se comemora o aniversário daelevação de Ilhéus à categoria de cidade, ocorrida em 1881. Feriado munici-pal, a data foi utilizada no ano eleitoral de 2002 como ocasião para a realiza-ção de uma série de inaugurações e eventos que contaram com a participaçãonão apenas de políticos locais, como também de alguns que ocupavam car-gos nos planos estadual e federal. Assim, uma grande comitiva provenientede Salvador chegou à cidade logo pela manhã, comandada pelos políticos aque faz alusão o Correio da Bahia, e incluindo uma coorte de deputados fede-rais e estaduais, de candidatos a esses mesmos cargos, imprensa de todos ostipos, policiais, seguranças etc. Entre eles, é importante destacar a presençade Fábio Souto, bem como o fato de que Antônio Carlos Magalhães secandidatava à mesma cadeira a que acabara de renunciar, visando evitar umacassação resultante de um processo envolvendo o que ficou conhecido como“escândalo do painel eletrônico”.

O objetivo principal da visita consistia, pois, na inauguração de uma sé-rie de obras (a Praça J. J. Seabra, onde fica a Prefeitura, e que fora reformada;a Biblioteca Municipal, que, finalmente, ganhara sede própria no antigo Co-légio General Osório; parte do “quarteirão Jorge Amado”, conjunto de pré-dios e ruas no centro da cidade que, mais uma vez, passara por reformas arqui-tetônicas, urbanísticas e de restauração), bem como na concessão da ComendaSão Jorge dos Ilhéus. Por volta do meio-dia, a comitiva acabou se dirigindopara o Memorial da Cultura Negra de Ilhéus a fim de participar de sua reinau-guração, ou de “mais uma inauguração”, como diziam os membros do movi-mento negro12 – fato a que o jornal de Salvador não fez qualquer menção eque o prefeito de Ilhéus explicaria, mais tarde, dizendo que fora “o própriosenador Antônio Carlos Magalhães” que decidira a ida ao Memorial, tendoinclusive, para isso, adiado diversos compromissos importantes em Salvador.

A cerimônia de reinauguração, entretanto, parecia ter sido preparada comanterioridade e, sem dúvida, levando em conta a presença dos políticos deSalvador e de Brasília. Quatro reuniões preparatórias foram organizadas pelosecretário de administração, e delas participaram, além do titular da secreta-ria, Adriana Ribeiro (esposa do prefeito, representando a Fundação Cultural

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de Ilhéus), Gurita (como representante da Secretaria de Esportes e Cidada-nia), dirigentes de algumas das entidades afro-culturais, o tesoureiro e o pre-sidente do CEACI.

A primeira reunião, em especial, transcorreu em clima muito tenso, jáque foi realizada durante os conflitos no Conselho e as tentativas de afasta-mento de seu presidente. O secretário de administração, contudo, logo expli-citou que o encontro deveria tratar unicamente da reinauguração do Memo-rial, e que a Prefeitura não pretendia, de maneira alguma, interferir nos as-suntos internos do CEACI. De toda forma, os conflitos impediram a indica-ção dos dois nomes do Conselho que, ao lado de dois representantes da Pre-feitura e de um da Associação 19 de Março, deveriam compor a comissãoexecutiva do evento.

Planejou-se, assim, um pequeno “cortejo” composto por membros detodos os blocos e demais entidades afro de Ilhéus, o qual, partindo das ime-diações do Memorial deveria chegar até o prédio a fim de participar da “lava-gem” de suas escadas.13 Além da música executada pelos percussionistas nocortejo, haveria um grupo de pagode tocando na entrada do Memorial, idéiarecusada pelos dirigentes dos blocos, que não costumam considerar os gru-pos de pagode parte do movimento afro-cultural nem representantes da músicaafro, mas que, como em outros eventos realizados no Memorial, acabou sen-do imposta pelo secretário de administração, que costuma encerrar essas dis-cussões dizendo que “pagode também é coisa de negão!”.14

Jacks Rodrigues sugeriu – dizendo ser este um pedido direto do prefeito– que fossem concedidos cinco troféus, no estilo do Troféu CEACI de Cul-tura Negra, às principais personalidades presentes. Marinho foi peremptoria-mente contrário à idéia e aproveitou para dizer tudo o que pensava do TroféuCEACI. A ‘solução’ foi considerar os troféus uma homenagem prestada peloMemorial e incumbir a comissão executiva do evento de entregá-los. Por ou-tro lado, Marinho conseguiu que os pequenos compartimentos destinadosaos blocos afro no interior do Memorial para que comercializassem “artesa-nato”, “material promocional” e outros produtos a eles relacionados (chama-dos de “boxes”) fossem liberados já para a reinauguração, podendo tambémexibir pequenas exposições fotográficas contando a história dos grupos.

Dos sete boxes, quatro haviam sido destinados às entidades tidas como“maiores” ou “mais importantes” (que, na verdade, são três – Dilazenze, MinyKongo e Rastafiry; mas o Zambi Axé, que mantém relações estreitas comGurita, também acabou sendo contemplado), um para o Zimbabuê, Raízes

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Negras e Danados do Reggae, um para o Leões do Reggae, Guerreiros de Zulue Malês, e o último, sob pressão do secretário de administração, para a Asso-ciação dos Terreiros de Candomblé – que nem mesmo existia na época, masque, de acordo com o secretário, estaria em processo de constituição e deve-ria ocupar um espaço no Memorial.

Assim, no dia 28 de junho, por volta do meio-dia, e após as inaugura-ções e comendas, a “comitiva de ACM”, como todos a designavam, chegouao Memorial. Pouco antes, tal qual planejado, um pequeno cortejo formadopor quase uma centena de percussionistas dos blocos afro, baianas de terrei-ros de candomblé e grupos de capoeira marchou das proximidades do prédioaté as escadas que dão acesso ao Memorial. Ao contrário do combinado, en-tretanto, a lavagem das escadas não pôde ser realizada, pois, de acordo comos organizadores do evento, o cerimonial do governador proibira o uso deágua visando evitar que as autoridades presentes se molhassem e pudessempassar por situações constrangedoras.

Saudada por uma grande queima de fogos de artifício, a comitiva de-sembarcou em frente ao Memorial. Nas imediações, uma pequena multidãocomprimia-se a fim, todos diziam, de ver o “senador” Antônio Carlos Maga-lhães. Uma placa de acrílico com a seguinte inscrição foi descerrada pelo en-tão ex-senador e pelo prefeito da cidade:

“Hoje, aniversário da cidade, a Prefeitura e o Conselho das Entidades Afro-Culturais, na presença dos ilustres homens públicos Antônio Carlos Magalhães,Paulo Souto e César Borges, e do Governador Otto Alencar, dão início às ati-vidades culturais do Memorial da Cultura Negra. Ilhéus, 28 de junho de 2002”.

Sob o texto, o símbolo do governo Jabes Ribeiro, bem como seu slogan:“Prefeitura de Ilhéus – a cidade cada vez melhor”.

O prefeito, então, conduziu a todos em visita ao Memorial, mostrandoespecialmente os boxes das entidades negras e as instalações do que deveriaser o futuro “restaurante típico”. Subiram, em seguida, para o segundo andardo prédio (local em que continuava funcionando a Associação 19 de Março),onde, para surpresa dos dirigentes dos blocos afro – que esperavam que tudoacontecesse no térreo –, foi realizada a cerimônia de entrega dos troféus e dereinauguração do espaço. Outras pequenas surpresas ainda aconteceriam. JabesRibeiro conduziu a cerimônia, agindo como se estivesse em um verdadeiroato de campanha eleitoral:

“Todo mundo sabe, que a gente pode votar em dois senadores. Um quem é?ACM! O outro quem é? César Borges! Isso! Uma vez só: ACM e César Borges!

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Muito bem! Agora quero ver quem sabe. Quem é que vai ser o governador daBahia? Paulo Souto! Muito bem, Paulo Souto! E aqui estão os nossos deputa-dos: nosso deputado federal Fábio Souto e nosso deputado estadual JoabesRibeiro”.

Em seguida, o apresentador oficial convocou o presidente do CEACIpara a entrega do “Troféu Homenagem do Memorial da Cultura Negra aofuturo senador Antônio Carlos Magalhães”; “o professor Gurita para fazer aentrega do troféu ao nosso futuro governador Paulo Souto”; “a primeira-damado município, Adriana Ribeiro, para fazer a entrega do troféu ao futuro sena-dor César Borges”; “o presidente do Bloco Afro Dilazenze, Marinho, paraentregar o troféu ao governador Otto Alencar”.

Após a entrega dos troféus – e embora ainda restasse um para ser entre-gue –, o apresentador, lembrando a todos que “manda quem pode, obedecequem tem juízo”, anunciou que o “senador Antônio Carlos Magalhães” ha-via determinado que Paulo Souto deveria falar em nome de toda a comitiva.Em poucas palavras, o então senador – que, como vimos, possui ligaçõespessoais com “a região” – agradeceu a homenagem e falou em “inauguraçãodesse monumento tão importante”, “marco da presença, em Ilhéus, do ne-gro, que é uma presença em Ilhéus, que é uma presença na Bahia, que nosorgulha a todos porque é um fator de nossa cultura, de nosso desenvolvimen-to”. Finalmente, já no encerramento da cerimônia, o apresentador convocouJacks Rodrigues mais uma vez, agora para fazer a entrega do último troféu: “aele, o grande incentivador, ao nosso prefeito Jabes Ribeiro! E agora vamoscomemorar, porque é festa, hoje é aniversário de Ilhéus!”

Foi servido, então, um coquetel, que contava com a presença de sete“baianas”, oferecendo abarás e acarajés feitos na hora. Foi também anuncia-do que haveria distribuição de cerveja para os grupos afro, distribuição que,curiosamente, não seria efetuada no Memorial, mas na Secretaria de Assis-tência Social, localizada a poucos metros da 19 de Março. Rapidamente, es-palhou-se o boato de que a Secretaria – que, eventualmente, promove distri-buições de cestas básicas – estaria distribuindo cerveja gratuitamente desdeque os interessados comparecessem ao local com as garrafas vazias que deve-riam ser trocadas pelas cheias. O boato e a grande movimentação de pessoasinteressadas em conseguir a cerveja provocaram uma enorme confusão, queincluiu brigas, pancadaria e furtos.

Do ponto de vista de Marinho Rodrigues, tudo isso apenas confirmavaa incapacidade do presidente do CEACI para lidar com essas situações e paraplanejar corretamente as atividades do movimento negro. Os militantes ne-

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gros de Ilhéus, na verdade, são extremamente sensíveis à possibilidade de queseu comportamento, ou a falta de organização de seus eventos, sejam utiliza-dos como argumento para reforçar os estereótipos e preconceitos dos quaissão vítimas. Jacks Rodrigues estaria assim, de acordo com Marinho, sendoextremamente irresponsável e colaborando para uma imagem negativa domovimento na cidade. Ele, na verdade, estaria apenas “usando” o movimen-to para finalidades pessoais, para obter vantagens materiais da Prefeitura, epara “se aparecer”, como se diz em Ilhéus quando se deseja enfatizar o exibicio-nismo de alguém – a conversão do verbo em reflexivo servindo para reforçara acusação. Ele estaria, assim, buscando se apropriar não apenas do que haviasido objeto de luta do movimento negro da cidade ao longo dos últimos dezanos, mas também das idéias dos verdadeiros líderes do movimento, as quaisapresentava aos ocupantes do poder público como sendo suas. Os políticos, porsua vez, certamente tinham outros interesses em jogo. Como dizia Marinho,

“[...] o movimento negro de Ilhéus nunca viu um evento como esse. É parapensar e repensar o que o prefeito Jabes Ribeiro, o que esses políticos, estãoquerendo com isso, o que estão querendo do movimento negro de Ilhéus, aomostrar o que eles estariam fazendo pela cultura negra, ao mostrar que eles estãodando espaço para o movimento negro. O que será que eles estão tramando, oque estão querendo além de voto? Porque foi um evento tão grande, uma coisatão inesperada, com o governador, ACM e tudo, que faz pensar que estão usandoa gente mesmo, usando e abusando da gente para obter prestígio perante ogoverno do Estado. Talvez o prefeito tenha a pretensão de ser secretário deEstado, e ele sabe que a cultura negra na Bahia, principalmente em Salvador, éo grande trunfo do turismo e que o próprio governo de ACM está voltado paraessas coisas. Então Jabes quer dizer para eles que também está afinado com essaquestão do movimento negro, da cultura negra, que ele apóia. É pena que ossecretários do governo de Jabes não acompanhem esse raciocínio, porque elefala uma coisa e os secretários fazem outra. Então, fica difícil alcançar essesobjetivos, alcançar o que acontece em Salvador. Porque o governo do estadotem uma política voltada para os grupos afro, para os cantores de música afro.Tem políticas de incentivo para esses grupos, toda uma política cultural. Coi-sa que em Ilhéus não tem porque tem bastante discurso mas não tem umapolítica para esse segmento da cultura. Mas Jabes, sabendo que o governo daBahia dá uma importância muito grande para esse segmento, começa a fazeresse tipo de trabalho para ganhar prestígio. Mas nós temos consciência, e euaté brincava outro dia que eu gostaria de ser usado como o governo do estadousa o Ilê, Olodum, Timbalada, Chiclete com Banana, Ivete Sangalo. Porqueeles ganham politicamente e os artistas ganham também, todo mundo ganha.

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Por isso, não dá para ser oposição ao governo de ACM em Salvador, porqueexiste toda uma política e, se você é de oposição, você praticamente fica foradesse circuito cultural artístico da cidade. Aqui em Ilhéus, a gente é usado decerta forma, mas de uma forma meio safada, porque só quem se dá bem sãoeles. Os grupos continuam pobres, continuam sem financiamento, continuamsem nada”.

A longa análise de Marinho resume exemplarmente algo da filosofia po-lítica da maior parte dos militantes do movimento afro-cultural de Ilhéus.De acordo com essa filosofia, é preciso saber encontrar os pontos de conver-gência dos interesses dos poderosos e dos grupos negros; é necessário explo-rar esses pontos por meio de um jogo de trocas e apoios recíprocos; é impor-tante que o resultado final seja positivo para os dois lados. Essa filosofia, evi-dentemente, não é explicitamente expressa por todos os militantes; eles tam-pouco acreditam que ela funcione segundo seu modelo ideal; mas é ela, semdúvida, que serve, ao mesmo tempo, de orientação e justificativa para a maiorparte de seu envolvimento com os políticos e a política. E, se o interesse podeser considerado sua força motriz, não se deve esquecer que certas formas deorgulho e vaidade são componentes indispensáveis para seu funcionamento:os grupos afro se pensam como artistas, desejam ter “visibilidade”, “aparecer”ou, para ser mais preciso, desejam ser reconhecidos.15

No entanto, e apesar de tudo, Marinho queria acreditar que o tiro deJacks saíra pela culatra. Pois, afinal de contas, ele, Marinho, estivera ao ladoda comitiva o tempo todo e conversara quase ininterruptamente com os po-líticos; além disso, o boxe do Dilazenze fora o que causara melhor impressãoaos visitantes e, finalmente, ele fora chamado para entregar um dos troféusao governador do Estado – ato que um golpe de sorte fizera ser a única cenade todo o evento levada ao ar pela rede local de televisão. “Então”, diziaMarinho, “parecia que eu era o presidente do CEACI, parecia que eu era oadministrador do Memorial” (que ele só viria a ser, lembremos, quase seismeses mais tarde). Pessoas que ele não conhecia passaram a abordá-lo nas ruas,elogiando seu trabalho e, por vezes, sugerindo que ele deveria candidatar-seao cargo de vereador nas eleições municipais de 2004.

Nesse contexto, a indicação de Marinho para a administração do Memo-rial – cuja probabilidade, como vimos, era, desde 2000, tida como muito alta– voltou a ser mencionada com ênfase. Entretanto, outro nome começou aser aventado e a ameaçar sua nomeação: o de Luiz Carilo. Mesmo sendo con-siderado branco pelos membros dos grupos afro,16 Carilo é tido por eles como

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um dos pioneiros do movimento em Ilhéus: professor de balé clássico e deteatro, foi um dos fundadores, em 1981, do primeiro bloco afro de Ilhéus, oLê-Guê DePá, do qual participava boa parte da família do próprio Marinho,que, na época, tinha apenas 14 anos de idade. O Lê-Guê DePá, entretanto,deixou de existir em 1988, e Carilo afastou-se completamente do movimentonegro, tornando-se assessor do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Peque-nas Empresas (Sebrae) e passando a residir fora de Ilhéus por alguns anos.

Daí a surpresa de Marinho ao encontrá-lo na porta do prédio da 19 deMarço na véspera da reinauguração e, principalmente, ao ouvi-lo apresentar-se como coordenador de atividades e possível futuro administrador do Memo-rial. E, também, ao ouvi-lo sugerir ter sido indicado para o cargo pela pró-pria esposa do prefeito, Marinho deduziu, imediatamente, que tudo consis-tia em uma manobra, certamente encabeçada por Jacks Rodrigues, auxiliadopor Gurita, visando afastá-lo da disputa pelo cargo de administrador, em fun-ção da oposição e das denúncias que fazia contra o presidente do CEACI.

A longa militância de Marinho Rodrigues no movimento afro-culturalde Ilhéus, aliada ao fato de ele ser o presidente do principal bloco afro da cidadee de ter exercido a função de coordenador executivo, ou presidente, do CEACdurante quatro anos, faziam, é claro, com que a hipótese de sua escolha parao cargo de administrador fosse muito forte – e isso desde que se começara afalar no Memorial. Apesar disso, foi apenas em abril de 2002 (justamente nomomento em que Marinho dera início às denúncias contra o presidente doCEACI) que a possibilidade de sua nomeação começou a ser explicitada comouma alternativa concreta. Logo após o encerramento da cerimônia de entre-ga do Primeiro Troféu CEACI de Cultura Negra, ao sair do Memorial, JabesRibeiro chamou Marinho para uma rápida conversa. Nela, o prefeito, maisuma vez, expressou seu desejo de que Marinho se aproximasse mais da cam-panha de Joabes para deputado estadual e avisou-o de que mandaria chamá-lo para uma conversa mais longa. Assim que o prefeito se retirou, Gurita, queprovavelmente ouvira (ou adivinhara) o conteúdo da conversa ao observá-losde longe, aproximou-se de Marinho, dizendo que há pouco tempo tivera umareunião com Jabes e Adriana, os quais, após elogiá-lo muito, teriam afirmadoque, assim que o Memorial começasse a funcionar, ele certamente viria a sernomeado administrador da instituição. Disfarçando o orgulho, Marinho res-pondeu que esperava por essa indicação há dois anos, que continuava mo-rando onde sempre morara e que seguia aguardando o convite.

Três meses após sua conversa com Marinho, no dia 12 de julho, JabesRibeiro enviou o carro oficial da Prefeitura de Ilhéus ao bairro da Conquista

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a fim de transportar Marinho para uma reunião em seu gabinete. Desta, par-ticipou, além do prefeito e do líder negro, apenas um dos secretários munici-pais, que é, ao mesmo tempo, o principal articulador político de Jabes prati-camente desde que este ingressou na vida política. O prefeito iniciou o en-contro convidando diretamente Marinho a participar da campanha de Joabescomo um de seus coordenadores. Marinho respondeu que aceitava o conviteem função do que Jabes sempre fizera, e continuava a fazer, pelo movimentoafro-cultural de Ilhéus, pois, como o prefeito provavelmente sabia, o nomede seu irmão não possuía grande penetração, ou aceitação, não apenas juntoao movimento negro, como também nas camadas mais pobres da popula-ção, que tendiam a considerá-lo uma pessoa muito pouco simpática. Jabesrespondeu que sabia disso e que era essa exatamente a razão que o fazia dese-jar que Joabes se sentasse com representantes do movimento negro a fim dediscutir projetos e propostas, já que, desse modo, uma vez eleito, teria umcompromisso com esse movimento e teria que representá-lo em Salvador.

Nesse momento, e antes de qualquer resposta, o prefeito acrescentou quepoderia ter convidado Jacks Rodrigues (presidente do CEACI) para aquelareunião, mas que preferira convidar Marinho porque ele, sem dúvida, era amaior liderança do movimento afro-cultural de Ilhéus, única pessoa capaz dereunir o movimento em torno da candidatura Joabes e de efetuar a ligaçãoentre sua campanha e os militantes – coisa de que, acreditava ele, Jacks nãoseria capaz. Marinho agradeceu, acrescentando que de fato havia a questãodo CEACI, uma vez que, para realizar o que o prefeito pedia, ele necessitariado apoio de todas as entidades. Jabes concordou, lembrou suas relações his-tóricas com o movimento negro (o resgate do Carnaval Cultural, a ajuda pararecuperar o CEAC em 1997, o Memorial etc.) e concluiu que, mesmo nãosendo ACM, gostaria de desenvolver com os grupos negros de Ilhéus a mes-ma política implementada em Salvador. Essa era a razão, arrematou, de terlevado Antônio Carlos Magalhães, Paulo Souto, César Borges e Otto Alencarà reinauguração do Memorial: comprometê-los, também, com o apoio à cul-tura negra de Ilhéus.17

Marinho argumentou acreditar que o movimento afro-cultural de Ilhéushavia adquirido uma consciência política muito superior à que possuía nopassado, sabendo, portanto, da necessidade de apoiar candidatos comprome-tidos com a cultura negra, o que envolveria, inclusive, o possível lançamentode uma candidatura própria à Câmara dos Vereadores nas eleições munici-pais de 2004. Jabes o interrompeu imediatamente: “esse candidato a verea-dor, Marinho, tem que ser você! Porque você reúne todas as qualidades e você

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agrega os grupos!” O secretário municipal presente à reunião lembrou que jádissera a mesma coisa em público, e que o fizera na presença do próprio Gurita,que, desde as eleições de 1996, lembremos, vinha tentando apresentar-se, semsucesso, como representante dos grupos afro. Jabes acrescentou que ele tam-bém já estava pensando nas eleições de 2004; Marinho perguntou quando asobras da 19 de Março seriam retomadas e, finalmente, concluídas; o secretá-rio respondeu que isso estava prestes a ocorrer, e Marinho aproveitou paraintroduzir a questão do nome do administrador do Memorial, dizendo queouvira dizer que seria Luis Carilo. O prefeito admitiu que, de fato, Adriana,sua esposa, apresentara Carilo e um bom projeto de utilização do espaço, masque, apesar disso, ele ainda não tomara qualquer decisão sobre o assunto eque gostaria, inclusive, de aproveitar a ocasião para saber a opinião de Mari-nho a respeito.

A resposta foi cautelosa: elogios a Carilo e lembrança de que se tratavade um dos fundadores do movimento afro-cultural de Ilhéus, que ensinaramuito ao próprio Marinho; ao mesmo tempo, ênfase no fato de que Cariloestava afastado há muito tempo e de que não possuía mais ligações com ne-nhum grupo da cidade, o que poderia provocar alguma insatisfação por partedas entidades que se vinham articulando em torno do projeto do Memorial,o que indicava a necessidade de haver ao menos um nome do próprio movi-mento trabalhando com ele. Confirmando que Marinho “não tinha nada con-tra o nome de Carilo”, Jabes sugeriu que a solução poderia mesmo ser a indi-cação de duas pessoas, Carilo e alguém escolhido pelo CEACI; de seu pontode vista, prosseguiu, o último nome deveria certamente ser o do próprioMarinho, e concluiu que, apesar dessa certeza, os conflitos no interior doConselho estavam dificultando sua decisão. Marinho prometeu que essesconflitos seriam logo resolvidos, e ouviu que o ideal seria o CEACI indicar,além do administrador – ou co-administrador, não se sabia mais –, outrosdois nomes que, ao lado de duas indicações efetuadas pela Prefeitura, com-poriam o Conselho Executivo do Memorial da Cultura Negra de Ilhéus.

Marinho providenciou, rapidamente, uma reunião do CEACI e, no dia13 de julho, foi direto ao ponto: sugeriu a indicação, por unanimidade, doseu próprio nome para o cargo de administrador do Memorial e dos nomesde Cesar, do Rastafiry, e de Jacks para o Conselho Executivo. Esse últimodeveria, assim, afastar-se por três meses da presidência do CEACI para quefossem apuradas as denúncias de irregularidades e a fim de que, em outubro,o vice-presidente conduzisse novas eleições para a diretoria do Conselho. Jacks

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aceitou; ou simulou aceitar, uma vez que, pouco tempo após a reunião, anun-ciou que mudara de idéia e que não se afastaria em hipótese alguma. Mais doque isso, auxiliado por Gurita, deu aparentemente início a uma série de ma-nobras visando à indicação do nome de Carilo para a administração do Memo-rial. Nesse contexto, seu nome e o de Cesar foram substituídos pelos de Neye de um representante do Miny Kongo para serem membros do ConselhoConsultivo do Memorial – Marinho Rodrigues permanecendo como o indi-cado para o cargo de administrador.

Finalmente, o prefeito convocou uma reunião com o CEACI e demaisgrupos negros, reunião da qual participaram também Adriana e Gurita. Lem-brando a importância do Memorial, Jabes perguntou se os nomes dos repre-sentantes do Conselho já haviam sido escolhidos. Nomes confirmados, Jacksindagou do prefeito se havia algo de concreto a respeito de Luis Carilo; a res-posta foi dúbia: Carilo estaria sendo contratado pela Fundação Cultural deIlhéus (comandada, na prática, pela esposa do prefeito) a fim de trabalhar juntoao administrador do Memorial, que seria nomeado pela Prefeitura de acordocom a indicação do CEACI. Mas Jabes afirmou igualmente que, ao lado deGurita, Carilo seria um dos membros do Conselho Executivo indicado pelaPrefeitura e que, além disso, a Associação 19 de Março deveria também indi-car um nome. Ney aproveitou o momento para perguntar se haveria algumapossibilidade de remuneração para os membros do Conselho Executivo, hi-pótese que o prefeito descartou total e definitivamente. Jacks ainda tentouintroduzir o tema das eleições, mas Jabes imediatamente o interrompeu, lem-brando que em hipótese alguma estava lá para trocar o Memorial por umpossível apoio à candidatura de seu irmão: agradeceria muito qualquer apoio,mas isso não poderia ter nenhuma relação com o Memorial.

Tudo podia parecer então completamente acertado, mas o fato é que,até as eleições do início de outubro, nada de concreto aconteceu no que dizrespeito ao Memorial. Marinho ficou sabendo que o salário do administra-dor seria de R$ 1.070,00, deixando claro a todos que isso, sem dúvida, au-mentava ainda mais seu interesse pelo cargo. Desempregado há anos, depen-dendo em grande parte do emprego da esposa (que, mesmo possuindo oensino médio completo, ganhava pouco mais de um salário mínimo paratrabalhar no refeitório de uma distribuidora de bebidas) para sustentar a casae a filha, via também no cargo a chance de obter certa tranqüilidade paraprosseguir fazendo aquilo de que realmente gostava: a organização do movimentoafro-cultural de Ilhéus em geral e a de seu bloco, o Dilazenze, em particular.

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Por outro lado, o valor do salário fazia com que duvidasse da nomeação,pois parecia alto demais tendo em vista os “preconceitos” contra os dirigen-tes negros. Além disso, essa nomeação dependia da criação formal do cargo,a qual, ao lado da criação do cargo de administrador do Centro Cultural deOlivença (estância hidromineral situada a cerca de 20 km da sede do muni-cípio), deveria ser aprovada pela Câmara dos Vereadores – na qual, além deos “preconceitos” poderem ser ainda mais fortes, havia os políticos da oposi-ção, que pretendiam, como sempre, atrapalhar os planos do governo. Alia-dos às manobras que Marinho acreditava estarem sendo postas em andamen-to por Jacks e Gurita, esses fatores contribuíam para as dúvidas acerca de suaprópria nomeação.

Outro fator que agravava o quadro era o fato de Marinho ter decidido seafastar da campanha de Joabes por não concordar com a condução do modode participação dos grupos negros no processo. Mais do que isso, organizaraum abaixo-assinado, encaminhando à Prefeitura um projeto de reforma doMemorial, documento que deveria ser entregue ao próprio prefeito por oca-sião de um comício eleitoral de Joabes realizado na Praça Santa Rita, na Con-quista, no dia 7 de setembro. Com quase duzentas assinaturas, o abaixo-assi-nado foi efetivamente entregue a Jabes, que, imediatamente, disse a Mari-nho que ele deveria ter se dirigido diretamente a ele; ao mesmo tempo, con-vidou-o a subir no palanque a fim de falar no comício de Joabes em nome domovimento negro de Ilhéus: “você é meu convidado!” O discurso de quase20 minutos, feito de improviso, reafirmava o apoio do movimento negro aJoabes em função da “parceria” com o prefeito, e, aparentemente, agradouem cheio aos políticos presentes. Muitos cumprimentavam Marinho, dizen-do: “você tem que sair candidato a vereador”. Um dos únicos que não o cum-primentaram foi justamente Gurita, que parecia algo surpreso com o convitedo prefeito para que Marinho discursasse em um comício realizado exatamenteem seu principal reduto eleitoral.18

Os membros dos grupos negros e os moradores da Conquista em geraltambém cumprimentaram Marinho efusivamente quando ele desceu do pa-lanque. Muitos diziam que sua candidatura a vereador em 2004 tinha mes-mo que ser lançada e que, nessa posição, poderia ajudar a resolver o proble-ma do desemprego, pelo menos o dos militantes negros. Os empregos a quealudiam eram explicitamente aqueles que poderiam ser pagos com as verbasde assessoria dos vereadores e os que poderiam ser obtidos mediante acordoscom secretarias e fundações municipais.19 Estimando que pelo menos dez

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pessoas poderiam vir a ser empregadas dessa forma, Marinho argumentavaque, “se você dá emprego para os componentes, para os militantes, para aslideranças do movimento negro, você estabiliza a vida dessas pessoas, queadquirem mais respeito, uma condição de vida melhor para poderem atuarbem no movimento afro-cultural”.20

Sua performance no comício da Conquista parece, de fato, ter sido tãoboa que, pouco depois, Marinho foi convidado pelo principal coordenadorda campanha de Joabes (seu irmão, John Ribeiro) para novamente subir nopalanque do candidato no comício que deveria ocorrer alguns dias mais tar-de em um bairro próximo à Conquista. Impedido de comparecer ao comí-cio, Marinho esteve na caminhada que o antecedeu, sendo muito cumpri-mentado, por um lado, e, por outro, tornando-se alvo da observação de Gurita,Jacks e Carilo, que, juntos o tempo todo, pareciam não o perder de vista. Issosó fez reforçar suas suspeitas de que os três tramavam contra sua nomeaçãopara a administração do Memorial.

Ao mesmo tempo, as informações sobre a criação dos dois cargos de ad-ministrador (o do Memorial e o do Centro Cultural de Olivença) eram mui-to contraditórias. Alguns diziam que já haviam sido criados, outros diziamque não, e que isso poderia demorar bastante. Marinho parecia acreditar maisna segunda hipótese, já que imaginava que o prefeito esperaria o final daseleições para efetivar as nomeações, evitando, desse modo, que os interessa-dos preteridos ficassem insatisfeitos, e mantendo a todos como cabos eleito-rais enquanto o processo não se definisse. Em função desse diagnóstico,Marinho decidira que, caso não fosse ele o indicado para administrador doMemorial, não aceitaria trabalhar como subordinado de Carilo em hipótesenenhuma. Cogitava mesmo afastar seu bloco, o Dilazenze, de todas as ativi-dades relacionadas ao Memorial:

“É um emprego que todo mundo está querendo, todo mundo está lutando porele, mas eu jamais me prestaria ao papel de subordinado de Carilo. Não é questãodo emprego, do salário. Quer dizer, isso é importante, mas acima de tudo tema questão da postura, da liderança, de não poder abaixar a cabeça e aceitar essetipo de coisa”.

Nas eleições de 6 de outubro de 2002, foram eleitos quase todos os can-didatos apoiados por Jabes Ribeiro. Paulo Souto, do PFL, obteve 2.871.025votos (53,69% dos votos válidos) e tornou-se governador do Estado da Ba-hia (em Ilhéus, Souto obteve 36.427 votos, ou seja, 51,6% dos votos váli-

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dos). Antônio Carlos Magalhães, também do PFL, voltou ao Senado Federalcom 2.995.559 votos (30,59% dos votos válidos; em Ilhéus, 31,6%, relati-vos a 40.623 votos). César Borges foi o outro senador eleito, com 2.731.596votos (27,9% dos votos válidos; em Ilhéus, 28,1% ou 36.103 votos). FábioSouto foi o terceiro deputado federal mais votado na Bahia, com 236.067votos (3,96% do total), sendo que em Ilhéus chegou a obter 15,5% dos vo-tos válidos (ou 11.740 votos). As exceções foram o candidato à Presidência,Ciro Gomes, e, curiosamente, o irmão do prefeito, Joabes Ribeiro, que con-correra pelo PPB e obtivera 13.503 votos em Ilhéus (ou 18% do total de votosválidos), não passando, contudo, no estado, dos 29.654 votos (apenas 0,5%do total), quantidade insuficiente para elegê-lo deputado estadual.

Apesar disso, Jabes ainda tinha um motivo para comemorar. Após doismandatos consecutivos na Câmara dos Deputados (estando sempre entre oscandidatos mais bem votados do estado), seu arquiinimigo político RolandLavigne (de quem falarei mais tarde) não conseguiu reeleger-se. Para seu fra-casso, comentava-se abertamente em Ilhéus, teria contribuído a impressio-nante votação de um candidato chamado Pipa, que, concorrendo pelo PSB,obtivera 17,5% dos votos em Ilhéus (13.212 votos), ou seja, quase a mesmaquantidade que a obtida por Lavigne (13.467 votos ou 17,8% do total).Mesmo tendo obtido apenas cerca de 900 votos fora de Ilhéus, acreditava-seque, na cidade, Pipa havia retirado de Lavigne um número suficiente de vo-tos para impedir sua reeleição.

Finalmente, é preciso acrescentar que, na reta final da campanha, Mari-nho Rodrigues, sua família e seu bloco, o Dilazenze, decidiram que não vo-tariam no candidato a deputado federal apoiado pelo prefeito, Fábio Souto.E ainda que isso não tenha significado um deslocamento em bloco dos votosdo grupo (já que aparentemente estes se dividiram entre vários candidatos),convém observar que “oficialmente” se decidiu votar em Luiz Alberto, can-didato do PT ligado ao Movimento Negro Unificado. Luiz Alberto reelegeu-se deputado federal com 62.322 votos (1,05% do total), ainda que em Ilhéustenha obtido apenas 784 votos (ou 1% do total). Além disso, parte da famíliaacabou trabalhando nas campanhas de dois candidatos apoiados por uma tiaque, como cabo eleitoral, conseguiu alguns recursos para pagar esse trabalho.E, ainda que essas mudanças de última hora não pareçam ter afetado as rela-ções do grupo com a Prefeitura (já que, como gostavam de repetir, o apoio aoirmão do prefeito foi mantido), a verdade é que se especulava, por vezes, senão haveria algum tipo de retaliação.21

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Todo o cenário exposto acima explica o clima de tensão e insegurançavivido, não apenas por Marinho como por sua família e pelos componentesdo Dilazenze em geral, no dia da nomeação do administrador do Memorial.A Prefeitura ainda contribuíra para o agravamento do quadro, uma vez queninguém confirmava oficialmente qual seria o nome a ser indicado. Um fun-cionário telefonara para Marinho na tarde do dia 6 de dezembro a fim de ob-ter dados como nome completo, números de documentos etc. Mas, logo de-pois, ele viria a saber que Carilo também recebera um telefonema com o mes-mo objetivo. Além disso, tendo passado todo o dia no Memorial, Marinhoobservara a movimentação em torno de Carilo, que, coincidentemente, moradefronte do prédio da 19 de Março. Observara, assim, que ele conversara muitocom Gurita e com Jacks e que, por diversas vezes ao longo do dia, saíra e vol-tara para casa.

Compreende-se, portanto, a alegria e o alívio generalizados no momen-to em que o prefeito anunciou que estava nomeando “nosso companheiroGilmário Rodrigues Santos, conhecido como Marinho” para “administradordo Memorial da Cultura Negra”. Se lembrarmos, ainda, que o anúncio só foiefetuado após a assinatura do protocolo de intenções entre a Prefeitura e oCEACI, podemos avaliar melhor as palavras de Marinho ao resumir o evento:

“O prefeito fez todo um discurso para criar ainda mais expectativa. Primeirofez a assinatura do protocolo de intenções e deixou por último a nomeação,fazendo todo um suspense. Aí as pessoas se manifestaram. Olhei para Carilo eele praticamente desabou; Gurita abaixou a cabeça; Adriana deu uma risadinhadisfarçada. Outras pessoas ficaram animadas, principalmente o pessoal doDilazenze, todo mundo batendo palmas. No final da cerimônia, todos me para-benizaram e só aí é que percebi que Carilo – que me abraçou dizendo que aparceria ia dar certo, que ia me ajudar etc. – não tinha sido nomeado paraabsolutamente nada”.

Após assumir sua nova função, Marinho descobriu que, ao criar os car-gos de administrador do Memorial e do Centro Cultural de Olivença, a Câ-mara dos Vereadores modificara o valor dos salários, reduzindo-os à metade.Ou, mais precisamente, aprovara apenas a criação de um dos cargos propos-tos pela Prefeitura, dividindo-o em dois, e não aprovando a criação do outro.Essa estranha manobra fez com que, ao receber seu primeiro pagamento for-mal em muitos anos, Marinho descobrisse, já no final de janeiro de 2003,que, em lugar dos R$ 1.070,00 que esperava, receberia apenas R$ 535,00,

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quantia que certamente ainda considerava um salário muito bom para ospadrões de Ilhéus, mas que, é claro, ficava bem abaixo do que imaginara.

NOTAS

1 Em Ilhéus, esse movimento é composto por pelo menos dois subconjuntos. De um lado,alguns grupos definidos por seu caráter mais “político”, incluindo um núcleo do MovimentoNegro Unificado (MNU), grupo criado em São Paulo, em 1978, a fim de servir de pólounificador dos vários grupos negros existentes no Brasil – o que, como se sabe, jamais veio aocorrer. Em Ilhéus, as tentativas de estabelecimento desse núcleo remontam ao final da dé-cada de 1980, mas nunca chegaram a ser bem-sucedidas. De outro lado, existe, na cidade,um conjunto de grupos autodesignados “movimento afro-cultural”, composto por afoxés,grupos de capoeira, mas principalmente por blocos afro. Neste livro, respeitando o uso nati-vo, os termos “movimento negro” – que, ocasionalmente, servirá como referência a todos osgrupos, no sentido de Valente (1986: 22), “movimento afro”, “movimento afro-cultural”,“blocos afro”, “grupos negros”, “entidades negras” e, eventualmente, outros, serão utilizadosquase como sinônimos (a não ser quando o contrário for explicitado), enquanto o movimen-to negro “político” receberá sempre uma especificação.2 Ver Apêndice VIII.3 Em 1995 e 1996, o carnaval de Ilhéus foi “antecipado”, realizado algumas semanas antes dadata oficial, visando, diziam os organizadores, evitar a concorrência de centros mais podero-sos como Salvador ou Porto Seguro na contratação de grandes atrações musicais. Entre 1997e 1999, houve dois carnavais: o “antecipado”, ou Ilhéus Folia, voltado para visitantes de fora,com a presença de trios elétricos e sem a participação dos grupos negros; e o “cultural”, rea-lizado na data normal, com a participação desses grupos e fundamentalmente voltado paradentro da própria cidade (ver Menezes 1998: 77-92). Entre 2000 e 2003, foi realizado ape-nas um carnaval, na data normal; em 2004, o carnaval único voltou a ser antecipado em 15dias.4 Donde a dificuldade em compreender a estranha ênfase com que Miguel Vale de Almeidafala em “emergência” do movimento afro-cultural de Ilhéus em 1997 e 1998 (Almeida 2000:27, passim).5 No terceiro mandato de Jabes Ribeiro (a partir de 2001), a Divisão de Esportes foi absor-vida por uma nova secretaria municipal denominada Secretaria de Esportes e Cidadania, masGurita continuou à frente da Divisão.6 O Força Negra, fundado em 1988.7 Observe-se que, entre 1996 e 1998, quando o Partido dos Trabalhadores fez parte do go-verno municipal de Ilhéus, Moacir Pinho, militante negro do MNU e membro do PT, nãosó ocupou um cargo na Fundação Cultural de Ilhéus como foi, ao lado de Gurita, o principalinterlocutor negro do governo. Além de uma história pessoal de militância política, Moacirera aluno do curso de Filosofia na Universidade Estadual de Santa Cruz, localizada entre Ilhéuse Itabuna.

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8 Na verdade, de acordo com o estatuto de 1997, a diretoria do CEAC deveria ser estruturadaem “coordenações”; na prática, o coordenador executivo sempre foi chamado de “presiden-te”; o coordenador de organização, de “vice-presidente”; o coordenador de finanças, de “te-soureiro”; e assim por diante (cf. Silva 1998: 102-103).9 Silvia Nogueira (2004) apresentou e analisou esse episódio do ponto de vista da relaçãoentre os grupos negros e a mídia. Ver, também, Nogueira (2005).10 Como revelou Graham (1997) em outro contexto histórico, políticos locais devem cons-tantemente apresentar sua força para os políticos estaduais e nacionais, exibindo a estes suasbases ou clientelas, assim como revelar seu prestígio a seus eleitores, exibindo a eles políticosimportantes que seriam seus correligionários.11 As revoltas de escravos ocorridas no engenho de açúcar Santana, em 1789 e 1821, são ce-lebradas pelo movimento negro local como marcos da resistência negra à escravidão. Por outrolado, muitos políticos, evocando o fato de que a rebelião se teria encerrado com um tratado,gostam de evocá-la como exemplo da possibilidade de negociação e convivência. Aparente-mente, o que de fato ocorreu é que, após aceitar o acordo, os donos do engenho e as autori-dades reprimiram violentamente os escravos (ver Mahony 2001a: 128-134; Marcis 2000;Reis 1979; Reis e Silva 1989: 19-21; Schwartz 1988).12 Borges (2004: 138-139) também observou, na periferia de Brasília, esse caráter infinitodas inaugurações, e sugeriu que se trata de uma forma de prolongar indefinidamente a rela-ção entre políticos e eleitores potenciais (voltarei a esse ponto).13 As “lavagens” são comuns na Bahia, sendo que a mais famosa, sem dúvida, é a que acon-tece nas escadarias da Igreja de Nosso Senhor do Bonfim em Salvador. Tornaram-se, assim,um dos “símbolos” da tradição afro-baiana em todo o estado. Em Ilhéus, uma lavagem dessetipo é realizada nas escadas da Catedral no dia 20 de janeiro, dia de São Sebastião, padroeirodos estivadores. Filhas-de-santo vestidas como “baianas” despejam potes de água de cheirosobre as escadas e as esfregam com vassouras – isso ocorre desde que a Igreja Católica proibiua lavagem do interior da igreja, como se fazia outrora.14 Os dirigentes negros dizem, entre si, que a insistência se deve ao fato de o secretário seramigo de alguns pagodeiros. O secretário, aliás, orgulhava-se muito de seu conhecimento dacultura negra: “talvez eu conheça mais do que vocês”, disse ele a Gurita, Moacir e Marinho;“tenho dezenas de discos de samba, de chorinho e de jazz, e já tentei organizar um bloco decordas”.15 Como demonstrou Paul Veyne – e voltarei a esse ponto –, a subjetividade é parte integran-te da vida política, e os humanos, ao obedecerem ou ao se recusarem a obedecer, pensam algode si mesmos, de seus senhores e das relações entre ambos: o “indivíduo é atingido no cora-ção pela potência pública quando é atingido em sua imagem de si, na relação que tem con-sigo mesmo quando obedece ao Estado ou à sociedade” (Veyne 1987: 7). E se existem dife-renças de classe nos modos de subjetivação política (idem: 10-11), eu arriscaria dizer que, aomenos em Ilhéus, o desejo de reconhecimento é parte constitutiva desses processos, que nãosão nem ideologias, nem simples simbolismos, nem mesmo puros princípios de legitimação,constituindo, ao contrário, um enjeu particular e uma dimensão de luta específica, ao ladoda economia ou do poder (idem: 14-15).

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16 Como se pode imaginar, a questão de saber se alguém é branco ou não em Ilhéus pode sercomplicada. À pergunta “Carilo é branco ou negro?”, Ana Cláudia Cruz da Silva (que é branca)respondeu que “ele não é branco, mas eu não diria que é negro (nem ele diria isso, creio). Émoreno, quer dizer, tem cabelos pretos e enrolados, mas não crespos, e pele morena clara”. Àmesma pergunta, Marinho respondeu sem titubear: “Carilo é branco!” Mas logo acrescen-tou: “quer dizer, sempre achei ele branco”.17 Lembremos que a visita de Antônio Carlos Magalhães se deu no momento em que, apósrenunciar a seu mandato em meio a denúncias de irregularidades, tentava sua reeleição parao Senado. Para isso, retornara à Bahia e reforçara o discurso “regionalista”, em oposição àscríticas de que era alvo por todo o país. Assim, sua presença na reinauguração do Memorialservia, sem dúvida, para reforçar a “baianidade”; Jabes Ribeiro, por sua vez, o exibia na cida-de, e a ele exibia o movimento negro de Ilhéus a fim de demonstrar sua força para os doislados; o movimento negro, finalmente, tinha, na ocasião, uma oportunidade para encenarsuas disputas internas. Vê-se muito bem, dessa forma, como a “grande” e a “pequena” polí-tica estão sempre associadas, e como o local, o regional e o nacional estão sempre imbricados.18 Como demonstraram Palmeira e Heredia (1993: 77; 1995: 35-36), entre outras funções,os comícios são um momento privilegiado para a ostentação pública dos compromissos eapoios. Além disso, parecem funcionar como palcos para a objetivação das hierarquias so-ciais constituídas (Palmeira e Heredia 1993: 84; 1995: 35-36, 85, 89, 91 – voltarei a esseponto), o que significa que subir no palanque, discursar e ter muito tempo para falar sãosignos de importância progressiva. Veremos, adiante, que esses mecanismos operam nos pro-cessos eleitorais como um todo; por ora, basta assinalar que o convite feito a Marinho peloprefeito, bem como sua performance oratória, foram sentidos tanto por ele quanto por Guritacomo um sintoma do seu prestígio, o que envaidecia o primeiro e, evidentemente, enciumavae irritava o segundo.19 Embora seja muito difícil obter dados com precisão, comenta-se em Ilhéus que, tendo odireito de contratar dois ou três assessores, alguns vereadores preferem elevar esse número atédez (ou vinte, dizia-se) e dividir entre eles o salário, o que faz com que a maior parte dessesassessores acabe recebendo mais ou menos um salário mínimo.20 Existe sempre uma confusão – ou, para ser mais preciso, uma imprecisão constitutiva –entre programas ou propostas estruturais para a geração de empregos em geral e as promessasde trabalho para pessoas específicas. Sobre os diferentes efeitos do desemprego nas eleições,ver Garrigou e Lacroix (1987).21 Apenas para completar o quadro, 80.720 votos foram apurados em Ilhéus nas eleições de2002 (em um total de 109.397 eleitores). A taxa de abstenção ficou em 26,2% (28.677 elei-tores). Os votos brancos totalizaram 3.467 para deputado estadual, 3.026 para deputadofederal, 10.742 para senador, 3.990 para governador e 2.229 para presidente. Os votos nu-los foram: 2.281 para deputado estadual, 2.123 para deputado federal, 22.133 para senador,6.094 para governador e 7.276 para presidente. Luiz Inácio Lula da Silva conseguiu 40.678dos votos (57,1%) no primeiro turno em Ilhéus (contra 15.746, ou 22,1%, de AnthonyGarotinho; 8.493, ou 11,9%, de Ciro Gomes); e 5.980, ou 8,4%, de José Serra.

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CAPÍTULO 2

1996: PESQUISA

No dia 19 de setembro de 1996, reencontrei Marinho Rodrigues, apóscerca de oito meses sem vê-lo, embora tivéssemos conversado algumas vezespor telefone. Em janeiro do mesmo ano, eu estivera em Ilhéus e decidira paralá deslocar e concentrar minha pesquisa sobre eleições e voto – e esse haviasido o principal tema das conversas telefônicas. Marinho aparentava estarcontente com nosso reencontro, acrescentando que “agora tenho certeza quea pesquisa é pra valer”. A frase não deixou de surpreender-me, ainda que, poucodepois, eu viesse a lembrar que, em nossa última conversa a distância – paracombinar a viagem –, ele me contara haver anunciado essa mesma conclusãopara Cesar, do bloco afro Rastafiry.

O ceticismo, que a simpatia do tom de voz de Marinho mal ocultava,pode talvez ser explicado, em parte, não apenas pelo fato de que é, sem dúvi-da, estranho admitir ser ‘objeto de pesquisa’ de alguém, como também emrazão de algumas características não tão usuais dessa pesquisa, cuja existênciaMarinho confirmava. Pois ela resulta, de algum modo, do encontro de trêslinhas de interesses e de acontecimentos relativamente distintas e indepen-dentes.

A linha cronologicamente mais próxima apontava justamente para o iní-cio de 1996, quando, em viagem de férias, eu decidira que a pesquisa sobreeleições que desenvolvia desde 1994 deveria ter seu foco empírico em Ilhéus.Nessa viagem, reencontrei, depois de muitos anos sem vê-lo, um antigo cole-ga de universidade, que havia abandonado a vida acadêmica para ingressarno culto do Santo Daime, tendo vivido na sede do grupo na Amazônia du-rante cerca de dez anos. Depois de se casar com uma moça da região, PauloRodrigues (que não tem qualquer parentesco com a família de Marinho, nemcom Jacks Rodrigues) decidiu viver em Ilhéus, cidade onde nascera, mas quehavia deixado muito novo para morar no Rio de Janeiro. No começo de 1995,Paulo e a esposa estabeleceram-se em Ilhéus e ele, com o auxílio da parte desua família que ainda morava na cidade, conseguiu um emprego na bibliote-ca e no centro de documentações do Instituto Nossa Senhora da Piedade. APiedade, como é conhecida, é uma tradicionalíssima instituição de ensino

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ilheense, fundada em 1916 por freiras ursulinas, que, na época do apogeu docacau, abrigava quase que exclusivamente as filhas dos grandes proprietáriose comerciantes locais. Mesmo depois de passar a aceitar estudantes do sexomasculino, na década de 1970, e após o agravamento da crise do cacau nadécada de 1980, o colégio não deixou de ser um reduto da elite ilheense.

O emprego de Paulo, não obstante, oferecia a ele uma remuneração bas-tante modesta, quase insuficiente para seu sustento. O convite para que elepassasse a ser meu auxiliar de pesquisas na investigação sobre eleições em Ilhéusfoi, certamente, conseqüência da minha decisão de para lá deslocar o traba-lho, mas a possibilidade de contar com ele foi, também, um dos fatores queme levaram a tomar essa decisão. Afinal de contas, eu poderia contar com aajuda de alguém treinado nas melhores universidades do Rio de Janeiro e issome pareceu crucial naquele momento. Paulo aceitou imediatamente o con-vite, pensando certamente não apenas na bolsa que passaria a receber, mastambém no fato de que esse trabalho significava seu retorno a uma atividadeacadêmica depois de quase quinze anos de afastamento. De toda forma, se aprimeira linha que conduziu à pesquisa de cuja existência Marinho chegara aduvidar passa por dois acontecimentos contingentes (viagem de férias e re-encontro com um antigo colega), ela só pôde desempenhar esse papel por-que cruzava com uma segunda linha, marcada pelo fato de que, naquelemomento, eu já desenvolvia, há quase dois anos, uma investigação antropo-lógica sobre votos e eleições no Brasil.

Meu trabalho inicial como antropólogo, realizado entre 1978 e 1984,concentrou-se nos chamados cultos afro-brasileiros; parte da pesquisa de cam-po para minha dissertação de Mestrado sobre a possessão no candomblé (Gold-man 19841) foi efetuada no Ewá Tombency Neto, o terreiro de candombléem que Dona Ilza é a mãe-de-santo e ao qual o Dilazenze está ligado.

Entre 1986 e 1991, dediquei-me a um trabalho sobre a história do pen-samento antropológico, mais especificamente sobre a obra de Lucien Lévy-Bruhl (Goldman 19942). Esse trabalho se encontrava em pleno andamentoquando a vitória de Fernando Collor de Mello nas eleições presidenciais bra-sileiras de 1989 me fez pensar que, se a antropologia não fosse capaz de dizeralgo importante e interessante sobre acontecimentos dessa natureza, deveriadefinitivamente abrir mão de qualquer tentativa de investigar nossa própriasociedade. Entretanto, foi apenas em 1994, no decorrer de novas eleiçõespresidenciais, que a intuição de 1989 pôde começar a tomar a forma de umprojeto, inicialmente posto em andamento como uma investigação ‘transver-

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sal’ das representações construídas sobre o processo eleitoral por diferentescamadas sociais em vários contextos.3 Entre 1996 e 1997, esse projeto passoua fazer parte de um programa interinstitucional mais amplo, denominado UmaAntropologia da Política, reunindo uma série de pesquisadores que trabalha-vam sobre temas tidos usualmente como pertencentes à ordem política, pro-curando, sobretudo, enfocá-los, como vimos, ‘do ponto de vista nativo’. Nessesentido, em 1996, minha investigação deslocou-se e concentrou-se em Ilhéus.4

O retorno a essa linda cidade do litoral sul da Bahia está ligado, por suavez, a uma terceira linha, mais antiga, que remonta ao ano de 1981, quandoeu procurava um local para a realização de uma pesquisa de campo sobre apossessão no candomblé, tema, como vimos, da minha dissertação de Mes-trado. Eu trabalhara durante toda a graduação como auxiliar de pesquisa deWagner Neves Rocha em um terreiro, também da nação angola, situado naperiferia de Niterói, no Grande Rio, mas eu desejava meu próprio campo.5

Relações de família faziam com que a cidade de Ilhéus parecesse uma possi-bilidade natural para esse campo. Em 1981 e 1982, realizei duas rápidas via-gens à região, mas foi apenas na terceira, já no final de 1982, que um dessesgolpes de sorte capazes de transformar a vida de alguém aconteceu comigo,conduzindo-me ao Tombency, à família Rodrigues e, mais tarde, ao Dilazenze.Uma conhecida, sabendo do meu interesse pelo candomblé, apresentou-meao grande ator negro, bailarino e animador cultural Mário Gusmão,6 que, nessaépoca, vivia em Ilhéus, desenvolvendo alguns trabalhos na cidade e em Itabuna,cidade localizada a cerca de 30 km de distância. Em uma tarde de sábado oudomingo, Mário levou-me, pela primeira vez, ao encontro de Dona Ilza Rodri-gues, a mãe-de-santo do Tombency. E, ainda que eu não tenha certeza se asmemórias que guardo desse encontro correspondem realmente ao que ocor-reu, ou se estão misturadas com inúmeros encontros dos membros do Tom-bency com outras pessoas que testemunhei ao longo do tempo, o fato é queminhas lembranças ainda parecem estranha e suficientemente nítidas para quesejam evocadas, já que esse encontro tem sua importância para a narrativaaqui elaborada.

As apresentações iniciais deram-se em um clima que lembro ter confun-dido com certa distância e frieza. Mais tarde, eu aprenderia que a famíliaRodrigues exibe, em um grau apenas um pouco mais elevado que seus vizi-nhos, aquilo que Paul Veyne (1987: 9) denomina, de forma tão bela, “ele-gância popular”, adotando um etos de discrição e sobriedade que muitas ve-zes dificulta a percepção de seu real estado afetivo. A verdade é que, logo de

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saída, Dona Ilza observou que pessoas apresentadas por Mário Gusmão jápodiam considerar-se amigas da casa. Sentamos, então, no pátio localizado àfrente da casa dos Rodrigues, que fica contígua ao barracão7 do Tombency,construções situadas na Avenida Brasil, no trecho do bairro da Conquistaconhecido como Carilos (antigo nome da rua e da família que era proprietá-ria da região).8 Nessa época, a rua ainda não havia sido asfaltada e era ocupa-da por poucas casas, muitos terrenos, árvores, plantas e ervas, lugares e coisasamplamente utilizados, de diferentes maneiras, nos rituais e festas de candom-blé. Aparentando muito menos que os quase 50 anos que então possuía, DonaIlza – acompanhada de seu pai e principal ogã do terreiro, Valentim AfonsoPereira – rapidamente passou a nos contar a história de seu terreiro, a qual,em boa parte, é a história de sua família e confunde-se com sua própria his-tória de vida.

O Terreiro Ewá Tombency Neto, ela nos disse, é originário do terreiroangola mais antigo da Bahia, o de Maria Jenoveva do Bonfim (conhecida comoMaria Neném), filha-de-santo de Roberto Barros Reis, africano que teria re-cebido esse sobrenome por ter sido escravo de certo Barros Reis. Nascida em1865 e falecida em 1945, Maria Jenoveva do Bonfim, em data desconhecida,abriu, em Salvador, o terreiro Tombency.9 Paralelamente, em 1885, TiodolinaFélix Rodrigues abria, em Ilhéus, o terreiro Aldeia de Angorô, permanecen-do até sua morte, em 1914, em seu comando. Mais ou menos nessa época,Euzébio Félix Rodrigues, filho carnal de Tiodolina, conheceu, em Salvador,um africano chamado Hipólito Reis, que viria a tornar-se seu pai-de-santo.Ambos visitavam Ilhéus com freqüência e, em 1915, Euzébio assumiu o ter-reiro da mãe, que passou a se chamar Terreiro de Roxo Mucumbo, já que este(o equivalente angola do Ogum ketu) era seu orixá – assim como Angorô(Oxumarê) era o de Tiodolina. Euzébio permaneceu à frente do terreiro atésua morte, em 1941, quando sua irmã, Izabel Rodrigues Pereira, assumiria adireção. Izabel, ao lado de suas filhas Ilza e Irani, ambas em torno dos 6 ou 7anos de idade, também passara pelos rituais de iniciação preliminares comHipólito Reis, que, depois disso, voltou para a África, não podendo, portan-to, concluir suas iniciações – o que teria levado Izabel a decidir que, antes deassumir definitivamente o terreiro, deveria fazê-lo. Para isso, chamou Marce-lina Plácida, conhecida como Dona Maçu, filha-de-santo da fundadora doTombency em Salvador, a famosa Maria Neném. Realizadas todas as obriga-ções, o terreiro retomou suas atividades em 1946, já na Conquista, com onome de terreiro Senhora Sant’Ana Tombency Neto: “Tombency Neto”, na

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medida em que faria parte da “terceira geração” do Tombency (Maria Neném– Dona Maçu – Izabel Rodrigues); “Senhora Sant’Ana”, porque o orixásincretizado com Nossa Senhora de Sant’Ana, Nãnã, era justamente o donoda cabeça de Izabel, que ficou conhecida como Dona Roxa, muito provavel-mente em função do fato de ser filha de Nãnã e do roxo ser a cor desse orixá.Dona Roxa faleceu em 25 de outubro de 1973 e foi sucedida por Ilza Rodri-gues, uma de suas quatro filhas carnais (ela teve também três filhos homens),além de ser sua irmã-de-santo, uma vez que ambas foram iniciadas por DonaMaçu.10

Como costuma ocorrer no candomblé, a sucessão de Dona Roxa, em1973, foi algo traumática. Quase todos esperavam que a sucessora fosse umadas irmãs de Dona Ilza, mas, após o enterro e os ritos funerários, Dona Maçurevelou que Dona Roxa deixara explícito que a sucessora deveria ser a própriaIlza, indicação que, como é estritamente necessário, foi confirmada pelo jogode búzios.11 A sucessora, no entanto, hesitava, incerta, como disse, de suacapacidade para suceder a grande mãe-de-santo, que recebia uma quantida-de enorme de pessoas para suas festas religiosas, além de inúmeros consulentes,incluindo políticos e membros da elite de Ilhéus. Seu enterro, conta-se, foiacompanhado por uma enorme procissão de automóveis que paralisou total-mente o trânsito no bairro da Conquista. Além disso, a irmã preterida nãoficara nada contente com a decisão da mãe e com o resultado dos búzios.Finalmente, o marido de Dona Ilza, mesmo sendo ogã confirmado do terrei-ro, não aceitava, em hipótese alguma, que a esposa assumisse a direção da casa.Com quatorze filhos para criar, ele sustentava que ela não teria nenhum tem-po para ele e ameaçava abandoná-la, caso aceitasse o cargo. Esse argumento,prosseguiu Dona Ilza, foi decisivo para que ela recusasse assumir o terreiro.Dona Maçu, bem como outras pessoas mais velhas da casa, advertiram-na deque essa não era uma decisão que ela pudesse tomar. Tudo já estava decididoe, caso recusasse seu destino, tragédias abater-se-iam sobre todo o terreiro eseus fiéis: os mais velhos começariam a morrer, outros ficariam gravementeenfermos e, finalmente, o próprio teto do barracão desabaria, dando fim aalgo que começara quase cem anos antes.12

Dona Ilza aceitou o cargo, seu marido a abandonou e, quando a conhe-ci, era a mãe-de-santo do Ewá Tombency Neto (sendo ela filha do orixá Ewá,o nome do terreiro foi mais uma vez ligeiramente modificado) há quase dezanos. O terreiro deu origem a mais de cinqüenta casas (os “Tombency Bisne-tos”), espalhadas não apenas pela Bahia, mas também em São Paulo e no Rio

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de Janeiro. Organizado sobre uma base familiar, composta pela mãe-de-san-to, seus quatorze filhos carnais (todos iniciados em diferentes graus) e suasrespectivas famílias, o Tombency caracteriza-se também por possuir uma in-tensa vida comunitária, com ligações privilegiadas com a área dos Carilos ecom o bairro da Conquista em geral. Em 1986, alguns jovens da família e doterreiro (tendo no comando Vane e Marinho Rodrigues, ambos então na fai-xa dos 20 anos de idade) fundaram o Grupo de Preservação da Cultura Ne-gra Dilazenze, bloco afro cujo objetivo principal, segundo seus estatutos, é “apreservação e divulgação da cultura afro-brasileira na região sul da Bahia”.

Após esse primeiro encontro, permaneci mais dois meses em Ilhéus,período durante o qual assisti, pela primeira vez, a uma das magníficas festasdo Tombency, ajudei em sua preparação, e dei início a uma relação de amiza-de, confiança e admiração que eu não tinha idéia de que duraria tanto. Escre-vi minha dissertação de Mestrado sem integrar o material empírico do terrei-ro, mas consciente de que a experiência de campo desempenhara um papelfundamental em sua redação. Pois, como registrei na própria dissertação, se apesquisa no Ilê de Obaluaiê, em Tribobó, foi influenciada por algumas carac-terísticas pessoais de seu pai-de-santo (“homem dedicado a elucubraçõesmísticas e à construção de intrincados sistemas cosmológicos”), Dona IlzaRodrigues revelou-me “que o candomblé é muito mais que um sistemacosmológico ou mesmo uma religião, mostrou-me que ele é também umaprática e um modo de vida” (Goldman 1984: 3). Ao longo dos treze anostranscorridos entre a pesquisa sobre candomblé e aquela sobre política, nun-ca perdi inteiramente o contato com os Rodrigues e o Tombency, seja em curtasviagens a Ilhéus, seja nas poucas vezes em que me visitaram no Rio de Janeiro.

Desse modo, parece muito natural, retrospectivamente, que eu tenhachegado à conclusão de que meu interesse em estudar antropologicamente ovoto e as eleições (a segunda linha de que falei acima) poderia e deveria levarminha pesquisa a ser deslocada para Ilhéus, onde eu já possuía uma ótimarede de contatos com pessoas que, eu sabia, envolviam-se vez por outra com“a política”, e onde eu poderia contar com um auxiliar de pesquisa que pare-cia extremamente adequado para a tarefa (a primeira linha de interesses).13

A pesquisa foi, assim, posta em andamento a partir de abril de 1996.Paulo Rodrigues ficou responsável pelos levantamentos preliminares e pelarealização de uma série de entrevistas gravadas, a fim de que, em setembro,quando eu chegasse à cidade para acompanhar as eleições municipais, o cam-po já estivesse relativamente mapeado, e parte do material empírico pronta

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para ser utilizada. Paulo, no entanto, fez bem mais do que isso. Como elepróprio me diria bem mais tarde, “houve grande participação do pesquisa-dor, eu diria que um pouco excessiva”.

Na verdade, o problema não foi apenas o da ‘quantidade’ da participa-ção do pesquisador, mas também, e principalmente, o da sua ‘qualidade’. Nãono sentido de seu valor, já que o trabalho de Paulo produziu um excelentematerial, mas no sentido de sua natureza, que acabou por colocar em choquepessoas com experiências, expectativas e, conseqüentemente, representaçõesda política não apenas muito heterogêneas, mas, em geral, conflitantes – ePaulo não fez muito esforço para resolver essa situação. Universitário que ti-vera alguma militância política estudantil na década de 1970, e, mais tarde,adepto do Santo Daime, participando, ao mesmo tempo, de atividades eprojetos ligados a ONGs ou ao chamado terceiro setor, a concepção de polí-tica de Paulo não podia deixar de estar marcada por uma razoável dose decerteza a respeito da distinção entre “esquerda” e “direita” e pela necessidadeda conscientização e participação políticas (do lado das ‘esquerdas’, evidente-mente). O problema é que aqueles que ele devia auxiliar-me a pesquisar emIlhéus – os militantes do movimento afro-cultural da cidade – aparentemen-te adotam concepções de política, de conscientização e de participação radi-calmente distintas daquelas de Paulo e, é claro, em boa parte, das minhas tam-bém.

Seguindo minhas instruções, Paulo procurou Dona Ilza Rodrigues e suafamília a fim de dar início às entrevistas sobre as eleições municipais de outu-bro de 1996. Dona Ilza, usando a mesma fórmula que eu testemunhara em1983, disse a ele que alguém apresentado por mim já era amigo da casa, epediu aos filhos que colaborassem em tudo com seu trabalho. Logo na pri-meira entrevista com um dos irmãos de Dona Ilza, duas coisas muito impor-tantes foram reveladas: a própria existência de um movimento afro-culturalem Ilhéus, e sua participação nas eleições municipais de 1992. A primeirarevelação surpreendeu Paulo, que vivia na cidade há quase um ano e jamaisouvira falar de tal movimento. Surpresa razoavelmente compreensível, con-tudo, se levarmos em conta que, como observou Silva (1998: 13-14), essemovimento parece mesmo dotado de certa invisibilidade para a classe médialocal, que costuma supor que a existência de movimentos negros se limita aSalvador.

O tema da segunda revelação será objeto de análise no próximo capítu-lo e, por isso, basta reiterar que, nas eleições municipais de 1992, uma das

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chapas que concorriam à Prefeitura teria conseguido obter a adesão de todasas entidades do movimento afro-cultural com a promessa de construção deum Centro Afro-Cultural, que, na verdade, jamais saiu do papel. Os gruposnegros, que estimavam ter conseguido quase 8 mil votos para a chapa vence-dora – o que teria sido decisivo para o resultado final –, sentiram-se logradose passaram a considerar como “traidores” o vice-prefeito e o candidato a vere-ador, ambos negros, que haviam sido os responsáveis pelas articulações. Pro-metiam, igualmente, trabalhar contra as candidaturas por eles apoiadas naseleições de 1996.

A desilusão com o resultado da participação nas eleições de 1992 haviaproduzido duas conseqüências. Primeiro, os militantes das entidades afro-culturais sentiam e sustentavam que o movimento se havia desestruturado eque era necessário um trabalho de reconstrução, com a criação de um novoConselho de Entidades e com o fortalecimento dos grupos. Segundo, quenão havia nenhuma condição para uma nova participação político-eleitoraldo movimento enquanto tal, ou seja, que as entidades que compunham omovimento negro deveriam ficar livres para escolher e apoiar seus candidatosa vereador e a prefeito. Assim, os encontros que os líderes dos grupos preten-diam realizar visando a reestruturação do movimento não deveriam, em hi-pótese alguma, tratar de seu possível envolvimento com a política eleitoral.Paulo, por outro lado, pensava que isso era totalmente inadequado, e que ummovimento que se orgulhava de ter sido capaz de conseguir 8 mil votos emuma eleição municipal não podia abrir mão de participar politicamente dasnovas eleições.

* * *

No dia 15 de maio de 1995, o jornal local A Região anunciava que estava“Iniciada a sucessão municipal em Ilhéus”, com o lançamento das principaispré-candidaturas. Do lado da situação, três possíveis candidatos disputavamo apoio do governo do Estado da Bahia e do senador Antônio Carlos Maga-lhães: Gumercindo Tavares, pelo Partido Trabalhista Brasileiro; Rúbia Car-valho, pelo Partido Social Cristão; Roland Lavigne, pelo Partido Liberal. Oprimeiro, que nunca concorrera a uma eleição, fazia parte de uma das maistradicionais famílias cacaueiras de Ilhéus, sendo chamado por alguns de “oúltimo coronel”. Rúbia, filha e esposa de ricos comerciantes de cacau, haviase candidatado à Assembléia Legislativa em 1994, tendo obtido cerca de 4.600

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votos em Ilhéus, o que, mesmo sem conseguir elegê-la, a transformara emcandidata potencial à Prefeitura. Roland Lavigne, por sua vez, apresentavauma trajetória bastante distinta, tendo construído sua carreira política nosmunicípios menores, vizinhos a Ilhéus, de Una e Camacan; elegeu-se depu-tado estadual em 1990 e montou um poderoso esquema político no sul eextremo-sul baianos. Em 1994, foi o quarto deputado federal mais votadodo Estado da Bahia, obtendo mais de um quarto dos votos válidos de Ilhéus.Depois de eleito, passou a enfrentar denúncias de malversação de recursos doSistema Único de Saúde (SUS) e de esterilização indiscriminada de mulheres(voltarei a este ponto).

Em 16 de outubro de 1995, A Região anunciava que “Roland lidera aspesquisas”, situação que fez com que, ao longo do primeiro semestre de 1996,o governador do estado e o senador Antônio Carlos Magalhães fossem to-mando a decisão de apoiar Roland Lavigne. No início de junho, antecipan-do-se ao que sentia que aconteceria, Rúbia, como dizia a manchete de A Re-gião do dia no dia 3 de junho, “Retira candidatura e garante apoio a Jabes”.Após uma pré-campanha em que insistira no fato de ser mulher e “não polí-tica”, de representar uma “novidade” na política ilheense, alcançara quase 15%de preferência nas pesquisas de opinião e não pretendia abandonar sua can-didatura. Entretanto, ao saber de uma manobra do diretório estadual de seupartido, que inviabilizaria o lançamento de seu nome como candidata a pre-feito, decidiu não apenas fazê-lo, mas também apoiar Jabes Ribeiro – decisãodifícil de prever, uma vez que o perfil conservador de sua candidatura e suasrelações históricas com o grupo de Antônio Carlos Magalhães tornavam di-fícil acreditar que ela pudesse vir a apoiá-lo. Comentava-se, em Ilhéus, que akombi que fazia sua campanha fora pintada durante a noite e, na manhã dodia em que a ex-candidata anunciou sua desistência, já fazia campanha paraJabes, na qual ela se envolveu direta e intensamente.

No dia 17 de junho, A Região anunciava em manchete: “Decidido:Roland é o candidato de AO [Antônio Olímpio]” e “ACM [Antônio CarlosMagalhães] e Paulo Souto indicam Roland”; e, na página 7, relatava que oapoio a Roland fora oficialmente divulgado por Antônio Carlos Magalhães,no Teatro Municipal de Ilhéus, por ocasião de uma solenidade de lançamen-to de um pacote de obras para a cidade. Gumercindo Tavares que, até então,parecia ainda acreditar que seria indicado, estava presente à cerimônia e reti-rou-se quando o nome de Roland foi confirmado. A Região acrescentava, tam-bém, que “outras pessoas” teriam feito o mesmo e, na página 5, apresentava

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uma entrevista com Gumercindo Tavares, em que este dizia que manteria suacandidatura. No entanto, na edição de 1º de julho, o mesmo jornal apresen-tava a manchete: “Cassada candidatura de Gumercindo”, explicando que aExecutiva Regional do PTB obrigara o candidato a retirar seu nome da dis-puta. Roland deveria ficar à frente de uma coligação que incluiria os partidosa que pertenciam Rúbia e Gumercindo. Este, finalmente, resignou-se, partiuem uma longa viagem ao exterior e nunca mais participou da política em Ilhéus.

Do lado das oposições, Jabes Ribeiro retomara seu mandato de deputa-do federal após sua derrota nas eleições municipais de 1992 em Ilhéus, aomesmo tempo que iniciara as articulações visando a sucessão em 1996. Noinício de 1994, anunciou publicamente a decisão de não concorrer à reelei-ção para a Câmara, proclamando seu “compromisso histórico” e sua “opçãopreferencial” pela cidade de Ilhéus. Tendo definido a falta de apoio das es-querdas à sua candidatura em 1992 como uma das causas centrais de suaderrota, e buscando capitalizar sua atuação como deputado federal e seu apoioa Lula, tanto no segundo turno das eleições presidenciais de 1989 quanto noprimeiro das de 1994, Jabes procurou articular uma ampla aliança e ofereceua vice-Prefeitura ao Partido dos Trabalhadores, que, em meados de junho de1996, acabou aceitando a oferta. Além disso, Jabes obteve o apoio, formal ouinformal, de mais seis partidos (PMDB, PSB, PSD, PPS, PMN e PCdoB),assim como de vários candidatos a vereador (entre os quais, como vimos,Gurita), que, ligados a Rúbia Carvalho, acabaram permanecendo apenas for-malmente na coligação que apoiava Roland Lavigne.14

Diante desse quadro eleitoral, e dadas suas convicções políticas e seuenvolvimento na pesquisa com os grupos negros, Paulo sugeriu a alguns deseus colegas de trabalho no Instituto Nossa Senhora da Piedade, que traba-lhavam na campanha de Jabes, que talvez fosse possível levar o movimentoafro-cultural de Ilhéus a apoiar este nome para prefeito, o que, evidentemen-te, despertou o interesse daqueles que estavam envolvidos no processo eleito-ral justamente do lado dessa candidatura. Mais precisamente, esses colegasfaziam parte do grupo político de Rúbia Carvalho e haviam se envolvido nacampanha de Jabes quando esta passara a apoiá-lo. Nesse sentido, a sugestãode Paulo parecia extremamente interessante por permitir acenar à líder dogrupo com a possibilidade de um grande número de votos e, mais do queisso, com a participação de um grupo que, sabidamente, poderia se apresen-tar com música e dança nas atividades de campanha, aumentando a “visibili-dade” da mesma. Rúbia, por sua vez, via nessa possibilidade de participação

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uma chance de mostrar a Jabes – cuja candidatura ela apoiava há muito pou-co tempo e de cujo campo político ela jamais fizera parte – uma força eleito-ral e uma capacidade de mobilização e propaganda política que certamentecontariam a seu favor no momento da distribuição de cargos após uma pos-sível vitória eleitoral. E é claro que o próprio Jabes, finalmente, só poderiaver com bons olhos esse apoio eleitoral suplementar.

Paulo, por sua vez, talvez tenha vislumbrado uma oportunidade parareforçar suas relações com um grupo de pessoas potencialmente influentes. Éevidente, contudo, que também acreditava que o apoio do movimento afro-cultural a uma candidatura de esquerda era a coisa certa a ser feita, principal-mente porque tudo parecia indicar que Jabes Ribeiro seria o vencedor daseleições de outubro.

A partir da segunda quinzena de junho de 1996, Paulo procurou con-vencer o movimento afro-cultural de que o apoio a Jabes, estabelecido com amediação de Rúbia, seria o melhor caminho a seguir. O problema é que,mesmo contando, para essa manobra, com as relações que a pesquisa haviaestabelecido entre ele e Marinho Rodrigues (vice-presidente da antiga dire-toria do CEACI e o mais ativo dos militantes no processo de reestruturaçãodo Conselho), Paulo era um outsider tanto para o movimento negro quantopara o grupo político de Rúbia Carvalho.

No dia 16 de junho, Paulo encaminhou a Marinho o que definiu expli-citamente como uma solicitação de alguns assessores de Rúbia: uma conver-sa entre os dois grupos visando um possível apoio eleitoral a Jabes Ribeiro.Essa conversa estaria baseada na perspectiva imediata de realização de, pelosmenos, três eventos de campanha, organizados em conjunto com o movi-mento afro-cultural, a serem realizados em bairros que abrigassem gruposnegros; e na proposta de que o movimento negro viesse a ocupar um lugar noConselho de Campanha do candidato – que contava com representantes dosdiferentes partidos que compunham a Aliança Popular, coligação formada peloPSDB (partido de Jabes), PT (partido do candidato a vice, José HenriqueSantos Abobreira), PMDB, PSB e PSD.15 Paulo sugeriu, ainda, que essa con-versa fosse conduzida a partir da elaboração de uma carta de princípios e rei-vindicações, com propostas para a política cultural do município, subscritapelo CEACI, como um todo, e por cada uma das entidades que o compu-nham em particular. Esta carta deveria, também, servir de base para qualqueracordo, ou mesmo conversa, com outros candidatos eventualmente interes-sados no apoio eleitoral do movimento negro.

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Marinho pareceu extremamente animado com a proposta. Lembrou aparticipação e a união dos grupos afro na campanha de 1992, chamou a aten-ção para o fato de que boa parte dos líderes negros pretendia votar em Rúbiacaso ela tivesse sido bem-sucedida em lançar sua candidatura a prefeito e, fi-nalmente, autorizou Paulo a prosseguir com as negociações a fim de marcaruma reunião entre os dois grupos. Por outro lado, Marinho advertiu que se-ria necessária uma reunião prévia do movimento afro-cultural e propôs a Paulocomparecer a esta, quando seria apresentado como pesquisador (ou, para sermais preciso, como “assistente de Marcio”) e como “assessor” de Marinho.Essa reunião foi marcada para o dia 20 e, mais tarde, aquela com o grupo deRúbia, para o dia 27.16

A animação de Marinho só fez aumentar quando, no dia 20, a reuniãodos grupos afro efetivamente foi realizada: “depois de meses de tentativas, ogrupo conseguiu se reunir!” Mais tarde, ele atribuiria, em boa parte, essamobilização aos esforços de Paulo, ainda que, de seu ponto de vista, essesesforços não apresentassem apenas aspectos positivos. O início da reunião,entretanto, não transcorreu exatamente como Paulo esperava. Mesmo tendosido apresentado por Marinho, conforme prometido, como seu assessor epesquisador, sua presença na reunião foi contestada explicitamente por Gurita– que aí se encontrava na condição de representante do Bloco Afro ForçaNegra, ainda que fosse candidato a vereador e se viesse esforçando para con-seguir a adesão eleitoral do movimento afro-cultural e para atraí-lo para acampanha de Jabes Ribeiro, a quem apoiava. O problema é que, além dedesconhecer a posição de Paulo em relação a Jabes, Gurita imaginava (equi-vocadamente, diga-se de passagem) que ele seria contrário ao apoio a seu nomepara vereador. Argumentou, assim, que Paulo era um desconhecido, que nãohavia apresentado nenhuma credencial, que ninguém, afinal de contas, ti-nha certeza a respeito de suas verdadeiras intenções. Acrescentou, ainda, queele nem mesmo era negro, e que, em uma reunião do movimento negro des-tinada a discutir delicadas questões de alinhamento político, sua presença sópoderia ser considerada mais do que inconveniente.

Paulo, contudo, soube reagir bastante bem à proposta de veto a sua pre-sença na reunião. Lembrou que era “auxiliar de pesquisa de Marcio”, pessoaque mantinha relações com o terreiro Tombency e, portanto, com o Dilazenze,há mais de dez anos, o que significaria que “a confiança depositada em Marcio,que sempre realizou um trabalho anti-racista de valorização dos grupos ne-gros de Ilhéus” se transferia para ele (Paulo). Lembrou, também, ser natural

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de Ilhéus, filho de um estivador, como muitos dos que ali estavam; e que suacondição de “mulato”, como outros tantos, impedia que ele se sentisse deslo-cado no seio do movimento negro; que, ao contrário, ele se sentia perfeita-mente à vontade ao se aproximar de um grupo que lutava contra o precon-ceito e resistia à dominação social e cultural.

Mesmo naqueles que, eventualmente, não o tenham seguido em todosos detalhes, o pronunciamento de Paulo, efetuado em tom emocionado emanifestando muita sinceridade, parece ter sido bastante eficaz. Gurita con-cordou imediatamente com a presença de Paulo na reunião; Dino Rocha(diretor de eventos do Dilazenze) confessou que também tinha dúvidas arespeito de Paulo, mas que agora estavam todas superadas; alguém comentouque, afinal de contas, “Paulo é da cor de Ney” (irmão de Marinho, vice-pre-sidente do Dilazenze) e, portanto, sem sombra de dúvida possível para os queali estavam reunidos, negro. Paulo, por sua vez, compreendeu, de modo algoapressado, que esses discursos significavam a total aceitação de sua “adesão aogrupo”, bem como de sua “assessoria política”, como se a concordância comsua participação na reunião fosse mais do que apenas isso e como se ali hou-vesse realmente um grupo.

Na verdade, o sucesso relativo e temporário de Paulo deveu-se ao fato deter sido capaz de manipular retoricamente alguns símbolos básicos de inclu-são no universo do movimento afro-cultural de Ilhéus. Parte dessa manipu-lação parece ter sido consciente ou, para ser mais exato, meio consciente, umavez que a emoção necessária para o bom funcionamento da estratégia dificil-mente poderia ser controlada inteiramente pela vontade de alguém.17 Con-tudo, parte do processo parece ter sido inteiramente inconsciente ouinvoluntária, pois Paulo, inadvertidamente, acionou uma série de dimensõesda existência que são conotadas pelo termo “negro” em Ilhéus: a naturalida-de ilheense, em uma cidade onde 85% da população é negra; o fato de des-cender de um estivador, categoria profissional em que virtualmente todos sãonegros; sua condição de mulato, categoria raramente empregada na cidade,mas que inequivocamente remete para a negritude; luta e resistência ao pre-conceito e à dominação, atividades sempre associadas ao movimento negro.18

Na reunião de 20 de junho, o debate sobre a sucessão municipal rapida-mente revelou que os grupos presentes estavam divididos em relação ao apoioaos dois candidatos a prefeito que pareciam possuir chances reais de vitóriaem outubro. O Força Negra, o Zimbabuê (ambos representados por Gurita)e o Miny Kongo (um dos três “grandes” blocos afro de Ilhéus) manifestaram

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apoio à candidatura de Jabes Ribeiro; o Rastafiry (outro dos “grandes” blo-cos) preferia Roland Lavigne; o Raízes Negras e o Dilazenze (também umdos “grandes” blocos19) pareciam indefinidos, ainda que Paulo tenha enten-dido que se inclinavam na direção de Jabes. Lembrando, contudo, que, antesda inviabilização de sua candidatura, a maior parte dos dirigentes pretendiaapoiar Rúbia Carvalho para a Prefeitura, Paulo e Marinho conseguiram quetodos aceitassem a reunião com seu grupo político (mesmo que Cesar, doRastafiry, tivesse logo avisado que não poderia estar presente, uma vez queseu bloco havia sido contratado para tocar em um comício em uma cidadepróxima). Uma reunião preparatória acabou agendada para o dia 25 e, umavez que deveria também servir para a indicação de candidatos à nova direto-ria do CEAC, decidiu-se que seria convocada por meio de um edital a serredigido por Cesar e Paulo.

A questão do apoio a algum candidato a vereador ainda foi levantadapor Gurita, sem dúvida o mais interessado no assunto. Paulo concordou, ime-diatamente, que seria muito importante que, na reunião com Rúbia, os gru-pos afro-culturais pudessem exibir o nome do candidato que estariam apoian-do, que, é claro, deveria ser alguém ligado ao movimento. Cesar argumen-tou, por outro lado, que o processo eleitoral estava muito adiantado20 e queboa parte dos blocos já havia assumido compromissos com candidaturas es-pecíficas – o que era certamente verdadeiro em relação ao Rastafiry e ao MinyKongo (que já haviam definido os nomes que apoiariam) e, em parte, aoDilazenze (que, de acordo com Marinho, ainda “conversava” com um candi-dato). A reunião foi encerrada sem que nenhuma decisão fosse tomada emrelação às eleições proporcionais. Mais do que isso, na reunião do dia 25, otema nem mesmo foi abordado, e o próprio Gurita parecia evitar tocar expli-citamente no assunto. No entanto, foi ele mesmo quem manobrou para queo nome de Marinho Rodrigues fosse indicado como candidato à presidênciado CEAC, propondo que Cesar – que já havia manifestado sua intenção deser o presidente – fosse o vice. Essa proposta foi aceita e, além disso, a reuniãocom Rúbia foi finalmente confirmada para dois dias depois.

Assim, no dia 27, seis integrantes do movimento afro-cultural e Pauloencontraram-se com Rúbia, acompanhada de sete de seus assessores. O en-contro ocorreu na sede do Dilazenze (ou seja, no terreiro Tombency, casa dosRodrigues), mas foi Gurita que tomou a palavra no início da reunião, apre-sentando todos os presentes e, só depois, convidando o anfitrião a falar. Ma-rinho enfatizou a “decepção” do movimento afro-cultural com o que ocorre-

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ra após as eleições de 1992 e o conseqüente “desânimo” e “desmobilização”dos grupos negros. Atribuiu explicitamente a Paulo a iniciativa de retomar adiscussão política que, “como todos sabem”, é difícil e complicada. Paulo, porsua vez, evocou a “carta de reivindicações” que o movimento havia elabora-do, bem como o desejo do grupo de que Rúbia viesse a ser a intermediária deum compromisso político do movimento com Jabes Ribeiro, baseado nos pon-tos levantados na carta.21 Solicitou, ainda, que Rúbia tentasse agendar umareunião do movimento afro-cultural com Jabes.

A resposta de Rúbia teve início com um comentário sobre “a importân-cia do negro na formação do Brasil”; prosseguiu com o reconhecimento dapertinência das reivindicações apresentadas e com um paralelo entre a situa-ção do movimento afro-cultural – desiludido com a política após as eleiçõesde 1992 e as traições subseqüentes – e a situação da própria Rúbia, tambémdesiludida com a política após ter tido sua candidatura à Prefeitura de Ilhéus“cassada” em virtude das manobras e traições de Roland Lavigne, AntônioCarlos Magalhães e seu grupo. E terminou com a conclusão de que a soluçãopara as duas desilusões era a mesma, ou seja, o apoio a Jabes Ribeiro. Passou,então, a palavra a Gerson Marques, um de seus assessores, que, lembrando ahistória de suas relações pessoais e profissionais com o movimento negro deIlhéus, reiterou que esse apoio seria, realmente, a única alternativa no mo-mento.22 Antes do fim da reunião, Gurita ainda tomou rapidamente a pala-vra a fim de lembrar a importância de outros grupos negros não representa-dos no CEAC, como as academias de capoeira, as bandas de reggae, os gru-pos de dança etc.

Observemos, de passagem, que, ao longo do tempo, Rúbia foi abando-nando uma linguagem um pouco mais franca – na qual, ao menos em parte,explicitava que sua adesão a Jabes Ribeiro passava por sua exclusão de um outrocampo político – e adotando um discurso de aparência mais programática,no qual, simultaneamente, Jabes era qualificado de “meu líder” e expressõessimilares. É claro que todos sabiam que ela passara a apoiar Jabes por não tersido escolhida candidata a prefeito pela facção do senador Antônio CarlosMagalhães; é claro, também, que ela sabia que os outros sabiam, e assim pordiante. Ao sustentar que sua migração política era da ordem da convicção,Rúbia acionava uma categoria convencional e legítima da vida política, tor-nando, assim, seu discurso aceitável. Como lembra Herzfeld (1992b: 79), essaparece ser uma das condições de eficácia das retóricas de toda ordem, umavez que a convencionalidade parece assegurar uma conversão de interesses es-

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pecíficos em valores gerais, que é a garantia de sua aceitabilidade. Dessa for-ma, fazer aceitar a retórica torna-se muito mais importante do que fazer comque se creia nela (Herzfeld 1982: 645-646, 657), e essa parece ser uma ope-ração crucial no mundo da política.

De todo modo, uma reunião entre Jabes Ribeiro e o movimento negrofoi agendada pela assessoria de Rúbia para o dia 5 de julho. Para surpresa deMarinho e de Paulo, entretanto, essa reunião não foi marcada para a sede doDilazenze, como havia sido combinado, mas para a quadra do Tengão, blococarnavalesco situado na Conquista, mas sem nenhuma conexão com o movi-mento afro-cultural. Paulo descobriu ainda que a idéia fora de Gurita, queplanejara algo mais que uma reunião com o prefeito: um grande evento parao qual havia convidado os grupos de capoeira, reggae e dança que havia men-cionado no final da reunião com Rúbia. Percebendo que tratava-se de umamanobra de Gurita para converter a reunião em uma manifestação de sua forçaeleitoral junto aos grupos negros como um todo, Marinho e Paulo fizeramcom que ele concordasse em transferir a reunião de volta para a sede doDilazenze – o que de fato acabou acontecendo – e que ela se limitasse às en-tidades filiadas ao CEAC, o que não ocorreu, uma vez que Gurita levou paraa reunião os grupos que convidara para o encontro no Tengão e que não fa-ziam parte do Conselho.

Além de Gurita, seus convidados e Paulo, estavam presentes ao encon-tro dirigentes dos blocos (acompanhados de alguns outros membros de suasentidades), diversos componentes do Dilazenze, da família Rodrigues e doTombency (inclusive Dona Ilza, que abriria o barracão do terreiro para o en-contro), Rúbia Carvalho e seu grupo de assessores, o candidato a prefeito JabesRibeiro e seus assessores. Marinho abriu a reunião, falando novamente da situa-ção dos grupos negros e do CEAC, das desilusões de 1992 (quando, frise-mos, apoiaram Antônio Olímpio contra Jabes Ribeiro) e da falta de motiva-ção para a “participação na política” – expressão que os participantes do mo-vimento afro-cultural de Ilhéus tendem a utilizar muito mais freqüentementedo que “participação política”. Enquanto esta última adjetiva a política comoqualificação de uma participação substantiva, enfatizando, assim, que é pos-sível participar a qualquer momento e de diferentes maneiras, a primeira fór-mula, em que política é substantivo, parece denotar, sobretudo, o envol-vimento em campanhas eleitorais. O que pode parecer uma sutileza sem con-seqüências revelou sua importância quando Marinho passou a palavra a Pau-lo, que articulou um discurso com todas as marcas da militância de esquerda

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e dos ativistas do terceiro setor: os grupos afro representariam as comunida-des pobres e seriam os principais responsáveis pela produção da cultura po-pular na cidade, sem, entretanto, receber o reconhecimento e o apoio dosórgãos públicos em geral e da Prefeitura em particular. Concluiu, argumen-tando que o movimento afro-cultural seria capaz de mobilizar entre 5 e 10mil votos, e que todos ali queriam saber do candidato Jabes Ribeiro como eleencarava a possibilidade de um compromisso com o movimento.

Observemos que Paulo brandia um número de votos que se aproximavadaquele que, às vezes, membros do CEAC alegavam ter obtido nas eleiçõesmunicipais de 1992, quantidade que poderia mesmo explicar a vitória deAntônio Olímpio, já que este vencera Jabes Ribeiro pela exata diferença de8.455 votos. Além disso, aos ouvidos experientes do candidato a prefeito, essaafirmativa, seguida da idéia de um “compromisso”, soava inequivocamentecomo oferta de barganha eleitoral: 5 a 10 mil votos em troca de um apoioalgo indefinido, mas que, evidentemente, envolvia dinheiro (para as sedes dosgrupos, seus trabalhos sociais etc.) – proposta que, é claro, não deveria serfeita em público, uma vez que, como lembram Villela e Marques (2002: 81-82), as estratégias para a conquista de eleitores por parte dos políticos passampor aproximações cuidadosas, nas quais política e favores não devem sermencionados de chofre. Da mesma forma, Magalhães (1998: 51) observa que,do ponto de vista dos eleitores, “o bom candidato” é, certamente, “aquele quedá alguma coisa, mas desinteressadamente, não só em véspera de eleição”. Omesmo parece verdadeiro na outra mão da relação, ou seja, quando os eleito-res oferecem seus votos aos políticos. O que não significa, é claro, que tantoos primeiros quanto os segundos não saibam que há interesses em jogo: aimpressão de desinteresse, além de fazer parte de um estilo, permite, ao me-nos, uma dúvida razoável (e a favor do político). Além disso, certa dose desimulação parece constitutiva das relações sociais e, ainda que essa dosagemvarie, não deixamos de ficar irritados quando uma aeromoça nos trata anti-paticamente, mesmo sabendo que sua simpatia é paga e, em última instân-cia, falsa.23

Ora, desde o início de 1996, as pesquisas de opinião realizadas em Ilhéusindicavam que a probabilidade de Jabes vencer as eleições era muito alta, jáque contaria com quase 50% das preferências. Dispunha, também, do apoio,formal ou informal, de oito partidos, entre eles o PT, partido que, de acordocom sua própria avaliação, teria sido o principal responsável por sua derrotaem 1992, quando se recusara a apoiá-lo e lançara, em coligação com o PSB e

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o PCdoB, um candidato que obtivera 5.295 votos, ou seja, mais de 60% dadiferença entre ele e Antônio Olímpio. Além disso, o apoio do PT em 1996incorporara à campanha de Jabes um outro setor do movimento negro deIlhéus, setor que nem se considera nem é considerado parte do movimentoafro-cultural da cidade. Trata-se do conjunto de grupos, dos quais o mais sig-nificativo é a seção local do Movimento Negro Unificado (MNU), que sedefine e é definido como um movimento de ordem sobretudo “política”.Moacir Pinho, o principal líder do MNU na cidade, ocupava um lugar na“comissão de cultura” da campanha de Jabes.

Tendo esse cenário como pano de fundo, Jabes respondeu às demandasdo movimento afro-cultural expressas por Paulo com um discurso em queenfatizava o caráter “moderno” de sua candidatura; sublinhava que pretendiadesenvolver um “governo participativo”, que contasse com a colaboração da“sociedade organizada”; e frisava, sobretudo, que não fazia campanha na basede “promessas”, mas de “compromissos”, que não fazia política “à moda an-tiga, na base da troca, prometendo coisas em troca de votos”; que estava alicom uma proposta de governo, a ser debatida, quem sabe modificada e, even-tualmente, aceita; que era curioso que o movimento afro-cultural falasse em5 ou 10 mil votos quando jamais conseguira eleger sequer um vereador; queo comitê de campanha era formado pelos partidos políticos que o apoiavam,pois a participação nesse espaço dependia de alinhamento partidário. Con-cluiu, assim, que ali se encontrava com o objetivo de apresentar suas propos-tas, não de se pronunciar sobre cada um dos itens reivindicados: “esse sim,esse também sim [...] Aliás, político em campanha só diz sim”. Finalmente,convidou os membros do CEAC a se integrarem à comissão de cultura dacampanha, coordenada, acabamos de ver, por Moacir Pinho, a quem Jabespassou a palavra. Mais tarde, e equivocadamente, ele diria a um de seus asses-sores que Paulo parecia estar querendo levar os grupos negros a apoiarem Roland.

Moacir, por sua vez, simplesmente comunicou a data e o local da próxi-ma reunião da comissão de cultura e anunciou a realização de uma grandefesta destinada a comemorar os dez anos da restauração do Teatro Municipalde Ilhéus, obra realizada na primeira gestão de Jabes à frente da Prefeitura.Sugeriu que os blocos afro participassem de um desfile comemorativo: cadabloco, com seus integrantes vestidos em trajes multicoloridos, sairia de umponto diferente da cidade, e todos se encontrariam na praça onde está situa-do o teatro. Observamos aqui, mais uma vez, a imbricação entre “grande” e“pequena” políticas, assim como entre o local, o regional e o nacional. A ne-

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cessidade de aliança eleitoral com o PT, derivada de uma avaliação das causasda derrota de 1992, somada ao fato de que, nessa época, Jabes pretendia seopor, no plano estadual, ao grupo de Antônio Carlos Magalhães, trouxe –em função do fato de o MNU ter ligações nacionais com o Partido dos Tra-balhadores – a questão negra e a participação de Moacir Pinho na campanhade Jabes, o que dificultou muito a adesão do movimento afro-cultural, tendoem vista as relações de oposição existentes entre este e o movimento negropolítico.24

Após curtas intervenções de Gerson, Rúbia, Gurita e Dona Ilza, Mari-nho encerrou a reunião proclamando que o CEAC “vai entrar de cabeça nacampanha de Jabes”. Essa afirmativa – que, mais tarde, Rúbia traduziria como“jura de amor eterno” – deixou Paulo muito confuso e desorientado, umavez que considerava que, do ponto de vista do movimento afro-cultural, oencontro havia sido um fracasso total. Pois, se a proposta de apoio a Jabes,que era o que pretendia, parecia ter saído vitoriosa, o modo como se dera essavitória não correspondia de forma alguma ao que Paulo havia imaginado.

O desconcerto de Paulo só fez aumentar quando, no dia 8 de julho, naabertura da “reunião de avaliação” organizada pelo CEAC, Marinho contoua todos que quase não dormira na noite do encontro com Jabes, pois ficaramentalmente lembrando e listando as “alfinetadas” que o candidato lançaracontra o movimento afro-cultural. No final das contas, dizia, a posição deJabes podia ser assim resumida: “venham comigo porque, se eu for eleito, fareium bom governo e darei espaço para vocês participarem!” Isso significaria,de seu ponto de vista, que o candidato não desejava comprometer-se com osgrupos negros e que, sendo assim, “fica difícil entrar de cabeça na campanha”.Dos presentes à reunião, apenas Gurita discordou da posição de Marinho:

“[...] achei Jabes, concreto, real, objetivo. Tem político como Roland que vaidizer que concorda, vai prometer... Mas será que vai cumprir? Acho que Jabesfoi real. Eu não gosto de promessas”.

Cesar, do Rastafiry, que já pretendia, como vimos, apoiar Roland Lavigne,contestou Gurita frontalmente:

“[...] com qualquer um que a gente feche tem que tirar um pouco antes e umpouco depois. Não deu com Jabes? Vamos ver com Roland!”

A isso, Cesar acrescentou que fora procurado por Cosme Araújo – vizi-nho dos Rodrigues, advogado, candidato à reeleição para vereador e aliado

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de Roland Lavigne –, que pedira a ele que convidasse o CEAC para uma reu-nião com o candidato a prefeito no dia 12 de julho. Pois, da mesma formaque Rúbia e seus assessores pretendiam mostrar a Jabes sua força, levando omovimento negro a apoiar sua candidatura, Cesar desejava mostrar a Cosmeque era capaz de obter um apoio eleitoral considerável, e Cosme, sobretudo,desejava mostrar sua própria força a Roland. Nesse sentido, em 1996, o mo-vimento afro-cultural de Ilhéus foi definitivamente capturado em uma redede disputas que, no fundo, era a ele totalmente estranha.

De qualquer forma, todos, com exceção de Paulo, concordaram que areunião com Roland era uma excelente idéia. Marinho, inclusive, aproveitoua ocasião para frisar que os acontecimentos haviam deixado muito clara aimpossibilidade de o CEAC como um todo apoiar esse ou aquele candidato,fosse para prefeito, fosse para vereador: cada entidade deveria, portanto, de-cidir seus próprios rumos no processo eleitoral. Nesse sentido, concluiuMarinho, Gurita não deveria, em hipótese alguma, continuar a se apresentarcomo candidato do CEAC ou do movimento afro-cultural de Ilhéus.

Paulo, por sua vez, concordou com o diagnóstico de fracasso da reuniãocom Jabes, mas argumentou que um segundo encontro deveria ser agendado,uma vez que o apoio a Roland não poderia deixar de ser desastroso. Comoninguém respondeu, Paulo se sentiu autorizado a tentar marcar a nova reu-nião com Jabes, por meio de Rúbia e seus assessores, o que ele não conseguiu,já que ninguém parecia entender o objetivo de um segundo encontro. Dolado dos grupos afro, havia a certeza de que a conversa fora um fracasso e deque era impossível negociar o que quer que fosse com Jabes; do lado do gru-po de Rúbia, afirmava-se que a reunião fora um sucesso, terminando em “ju-ras de amor eterno”, e que, conseqüentemente, não havia nenhum sentidoem um novo encontro.

A reunião com Roland Lavigne tornara-se, assim, prioritária na agendado movimento afro-cultural, mesmo parecendo razoavelmente complicada.Já a data para a qual fora marcada colocava um problema: era no mesmo diada festa dos dez anos da reinauguração do Teatro Municipal de Ilhéus, para aqual Moacir convocara explicitamente os blocos. Gurita advertiu que já secomprometera a levar o Força Negra e o Zambi Axé; os dirigentes do MinyKongo (ligados a uma candidata a vereadora do partido de Jabes) avisaramque também iriam ao desfile. Cesar, entretanto, argumentou que o tempoera mais que suficiente para que, após o desfile, os representantes dos gruposfossem se encontrar com Roland, e a reunião foi mantida.

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É evidente, contudo, que a data era mais um pretexto do que o verda-deiro problema. No dia 12, Marinho e Cesar (cujos blocos não participaramdo desfile) fizeram questão de assistir à comemoração, constatando que a par-ticipação dos blocos afro comandados por Gurita e do Miny Kongo fora “pés-sima”. “Foi bom”, disseram, “pois isso vai mostrar a Jabes a falta que os gru-pos afro fazem e atrapalhar Gurita, que está trabalhando para dividir o Con-selho”. Após a constatação do fiasco do desfile, Marinho e Cesar seguirampara a Conquista a fim de participarem da reunião com Roland.

Marcado inicialmente para o barracão do Tombency – ou seja, para asede do Dilazenze, onde havia ocorrido a reunião com Jabes –, o encontroacabara sendo transferido para a casa de Cosme Araújo, praticamente contí-gua ao terreiro. Paulo demonstrou profunda irritação ao saber da mudançade local, a qual foi explicada por Marinho pela insistência de Cosme, ejustificada: “é até melhor; é uma forma de marcarmos uma distância dele,que não quer vir ao nosso espaço”. Agendada para as oito horas da noite, areunião só começou, de fato, por volta de nove e meia: de um lado, porqueCosme esperava a chegada de Roland, que vinha de um encontro com umgrupo evangélico em outro bairro da cidade; de outro, porque se esperavammais dirigentes de grupos afro, uma vez que muito poucos haviam chegadona hora marcada.

Finalmente, com a presença de cinco dirigentes de blocos, Paulo, CosmeAraújo e Roland Lavigne (acompanhado de alguns assessores e cabos eleito-rais), Marinho abriu a reunião, realizada na ampla garagem da casa de Cosme,com seu discurso habitual: desilusão com a política e desmobilização dos blocosafro, formulações que foram reforçadas por Paulo. Roland, como disseramalguns mais tarde, “foi superobjetivo” e fez o que Jabes se recusara a fazer, lendo,ponto por ponto, a carta de reivindicações e dizendo “sim” a cada um deles.Além disso, acrescentou outros compromissos, ou promessas: realizaria trêscarnavais (o oficial, um antecipado – já realizado há algum tempo – e um“pós-carnaval”), nos quais todos os blocos afro teriam seu espaço; criaria um“espaço afro-cultural” no Centro de Convenções da cidade (então em pro-cesso de construção – à beira-mar, na principal avenida de Ilhéus – em con-vênio com o governo estadual); enfim, abriria espaços para os grupos afroparticiparem de sua campanha. “Quero ajudar as entidades que me apoiarem”,concluiu Roland, “pois é claro que não vou ajudar as que não me apoiarem”.

Cosme Araújo encerrou o encontro, então, dizendo que sabia bem o quehavia ocorrido entre os grupos afro e o prefeito Antônio Olímpio, tendomesmo chegado a adverti-los, sem ser ouvido, na época em que o acordo fora

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feito. E que, naquele momento, os advertia novamente: se apoiassem “o ou-tro candidato”, sofreriam, por mais quatro anos, o que vinham sofrendo des-de 1993. Disse também que Roland, ao contrário, dispunha dos recursosnecessários para apoiar as entidades negras, apoio que seria imediato e quecontinuaria durante todo o seu mandato como prefeito:

“Sou eu, Cosme Araújo, quem garanto esse apoio, apoio aliás que eu já venhoprestando ao Rastafiry e ao Dilazenze. E olha, pessoal, a reunião acabou, masnão é pra ninguém ir embora não, porque reunião aqui em minha casa acabasempre com uma cervejinha gelada”.

Cosme encerrava, assim, seu discurso, fazendo uma menção explícita aofato de que, no carnaval de 1996 – quando a Prefeitura não fornecera ne-nhum apoio financeiro aos blocos afro –, o Rastafiry e o Dilazenze só haviamconseguido “sair no carnaval” (já que não se tratara de um desfile propria-mente dito), em companhia do Miny Kongo, em função das camisetas queele fornecera aos dois grupos, camisetas nas quais, aliás, seu nome estava es-tampado. Como veremos, esse apoio teve desdobramentos futuros.

Como todos, Paulo também se levantou após o anúncio do fim da reu-nião, mas, ao contrário dos demais, dirigiu-se para a saída da casa, ficandoalgo surpreso ao se dar conta de que era o único a fazê-lo. Respondeu “não”,quando Marinho e Cesar perguntaram se não iria “tomar uma cerveja”, acres-centando que ia embora, pois “com Roland não dá mesmo”. Mais tarde, con-fessaria ter ficado inteiramente constrangido com a situação, indignado comos dirigentes dos blocos que aceitaram a cerveja e convencido de que tudoaquilo significava uma “rendição”, uma vez que todos aceitaram ser “com-prados por cervejas e similares”. Apesar disso, Paulo e Marinho ainda convo-caram uma reunião de avaliação do encontro com Roland e Cosme para al-guns dias mais tarde.

Essa reunião de avaliação, realizada no dia 18 de julho e prolongada poruma rápida conversa entre Marinho e Paulo, acabou encerrando definitiva-mente a participação de Paulo junto ao CEAC e, em um prazo um poucomais longo, seu trabalho como meu auxiliar de pesquisa. Logo na aberturada reunião – que não contou com a presença de Gurita, que já não estiverano encontro com Roland, nem com a de nenhum representante do MinyKongo –, a opinião unânime era de que “agora sim! O homem foi superobje-tivo”. Marinho reiterou sua tese de que não havia qualquer condição para queo CEAC tomasse uma posição única e unificada e que, conseqüentemente,cada entidade deveria estar livre para decidir seu apoio a candidatos a verea-

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dor e a prefeito. Todos concordaram tacitamente, mas Paulo ainda arriscouuma última proposta, sugerindo, inicialmente, uma nova reunião com Jabes.Todos argumentaram que isso seria totalmente inútil, e Marinho esboçou umacrítica ao trabalho de mediação realizado tanto por Paulo quanto pelo grupode Rúbia, insinuando que nem as informações corretas nem as verdadeirasdemandas do movimento estariam chegando corretamente ao conhecimen-to de Jabes, e concluindo que o fracasso do encontro com ele tivera provavel-mente como origem essas “falhas de comunicação”. Paulo modificou, então,um pouco sua proposta, aventando a hipótese de um acordo interno ao CEACpara “marchar unido” nas eleições: o Conselho como um todo apoiaria ocandidato a prefeito escolhido pela maioria das entidades que o compunham,deixando os candidatos a vereador a cargo de cada grupo. A proposta estavaclaramente baseada em uma contabilidade equivocada: Paulo imaginava queRoland contava apenas com o apoio do Rastafiry, Raízes Negras e D’Logun,e que Jabes teria o do Miny Kongo, Zimbabuê e Força Negra. Conseqüente-mente, o Dilazenze seria o “fiel da balança”, e, acreditava ele, Marinho acaba-ria por se inclinar na direção de Jabes. “Isso quer dizer que, se a maioria ficarcom Roland, o Conselho fica com ele?”, indagou Marinho. “Claro”, respon-deu Paulo, sem aparentemente se dar conta do que estava implícito nessapergunta: “o importante é que a união seja preservada”. Nova reunião foi,então, agendada para uma semana mais tarde.

No entanto, ao chegar na sede do Dilazenze no dia 25 de julho, Paulosurpreendeu-se ao ser avisado por Marinho do cancelamento do encontro –supostamente promovido por Cesar – e de que ele seria informado quandooutra data fosse marcada. Um pouco desconcertado, Paulo falou das dificul-dades em encontrar novamente Rúbia e Jabes e pediu a seu interlocutor quefosse mais claro em relação ao que, de fato, estava acontecendo. Marinho,finalmente, confirmou o que Paulo já desconfiava: o Dilazenze negociaria comRoland, e o Conselho ficaria “fora da política”, tanto no que dizia respeito àseleições para prefeito quanto àquelas para vereador. No entanto, mesmo jásuspeitando desse desfecho, Paulo não conseguiu ocultar sua surpresa, prin-cipalmente quando Marinho acrescentou acreditar na vitória de Jabes e fri-sou que o acordo com Roland visava unicamente a obtenção de recursos quepermitiriam aos blocos superar a difícil situação em que se encontravam des-de 1993, o que, no caso do Dilazenze, significava fundamentalmente a cons-trução de uma quadra própria, essencial para a realização dos ensaios queviabilizariam bons desfiles no carnaval. Paulo contra-argumentou – e esse seriao momento decisivo para o fim de suas relações com o Dilazenze em particu-

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lar e com o movimento afro-cultural em geral – que a quadra não era essen-cial e que carnaval era coisa passageira.25

É verdade que as posições de Paulo a respeito não apenas do carnaval,mas do que deveria ser o verdadeiro objetivo dos blocos afro, não eram no-vas; no entanto, essa era a primeira vez que as formulava de modo tão explí-cito. Como relata Silva (1998: 127-128, 134-135), Paulo pretendia fundaruma ONG – composta por representantes de todos os blocos afro ou, aomenos, daqueles cujas sedes ficavam na Conquista – destinada a desenvolverprojetos sociais como creches ou cursos pré-escolares, atividades que, acredi-tava ele, poderiam receber financiamentos de agências nacionais ou interna-cionais. Contudo, essa proposta se chocava em pelo menos três pontos coma prática cotidiana dos blocos afro: primeiro, exigia uma ação unitária de gru-pos que se caracterizam, antes, por um modelo segmentar (o que será abor-dado detalhadamente no próximo capítulo);26 segundo, sugeria que o finan-ciamento dos projetos viesse de agências estruturalmente muito distintasdaquelas com as quais os grupos costumam lidar – Prefeitura, Câmara, polí-ticos em geral – e das quais conseguem, eventualmente, alguns recursos, se-guindo regras e procedimentos muito diferentes daqueles adotados, por exem-plo, pelas ONGs; finalmente, pretendia que a finalidade dos blocos passassea ser a realização de “projetos sociais”, e não o que sempre fizeram, ou seja,“cultura negra”, com destaque especial para o carnaval. Nesse sentido, é maisque compreensível que Marinho tenha ficado profundamente irritado: “se oDilazenze esquecer um pouco o bloco, o carnaval, se a gente fizer isso, a gen-te vai acabar” (idem: 134-135).

As posições de Paulo, entretanto, já haviam transparecido em outras oca-siões. Nas conversas que antecederam a reunião de avaliação do encontro comRúbia Carvalho, ele deixara claro para vários dirigentes de blocos que consi-derava a idéia do Centro Afro-Cultural “equivocada”, um “desvio das ques-tões principais”, que deveriam consistir na consolidação das entidades negrase, principalmente, nos “trabalhos sociais” que cada uma delas deveria desen-volver em suas comunidades. Nesse sentido, o Centro, que supostamente seriaconstruído em área nobre da zona sul de Ilhéus, seria algo muito afastado,geográfica e socialmente, dos moradores dos locais onde os blocos afro tinhamsuas sedes, servindo apenas para atender brancos e turistas.

O problema, claro, é que era exatamente isso que os dirigentes negrosdesejavam: um local em que pudessem apresentar seu trabalho para fora, ob-tendo, além disso, dos brancos de classe média e dos turistas, alguma remu-

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neração por ele. Da mesma forma, “sair no carnaval” – e “sair bem” ou “sairbonito” – é a própria razão de ser de um bloco afro, todas as demais ativida-des que possa desempenhar sendo concebidas como derivadas, paralelas oude apoio a essa vocação carnavalesca. Uma quadra própria, portanto, onde sepossa ensaiar, realizar festas e desenvolver atividades (como, na verdade, ape-nas o Dilazenze dispõe hoje) é, sem sombra de dúvida, um dos maiores so-nhos de todos os blocos afro de Ilhéus. Além disso, ninguém, exceto Paulo,considerava o CEAC algo mais do que um simples espaço, quase virtual, noqual os grupos podiam se aproximar, quando necessário, a fim de incrementarum pouco seu baixíssimo poder de barganha com a Prefeitura e, eventual-mente, com os políticos e outras instâncias estatais. Como observou Silva(1998: 93-94), a Prefeitura de Ilhéus parece mesmo ser a maior interessadana existência do Conselho, uma vez que um órgão supostamente unificadosimplifica suas relações com a multiplicidade constituída pelos grupos negrosda cidade em geral. E é a essa perspectiva ‘de Estado’ que Paulo aderia quan-do supunha que os blocos só deveriam agir em conjunto, desconhecendo,assim, completamente a rivalidade que marca as relações mútuas entre eles ea consciência e orgulho que cada um possui de sua própria singularidade. Seos blocos estavam, como pensava Paulo, “doentes pelo Estado” – isto é, a raizde seus problemas seria uma dependência total das políticas clientelistas –,“por que não se curar pelo Estado?”, ou seja, por que não aderir a uma candi-datura de esquerda, “colocando-se bem na cena política local e desfrutandode uma boa situação na próxima gestão?” Em suma, por que não se associar aJabes e obter dele o necessário para a autonomia do movimento afro-cultural?

* * *

Os mal-entendidos entre Paulo e os dirigentes negros de Ilhéus – e mes-mo aqueles com os políticos locais – possuem, evidentemente, várias origens.Em primeiro lugar, sua noção de observação participante era curiosa. Logoem seu primeiro encontro com Marinho, ao indagar se poderia comparecer,“como pesquisador”, à reunião do CEAC que deveria discutir as eleições, Pauloexplicou simultaneamente:

“Nós temos uma definição do que chamamos de observação participante queabre para uma participação ativa do pesquisador. Afinal, eu moro aqui na cidade,sinto-me concernido com a luta de vocês, quero ajudar e, ao mesmo tempo, issocertamente permitirá que eu fale com mais acerto e faça melhor o meu trabalho”.

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Além disso, desde o início, Paulo utilizou uma estratégia de investiga-ção que consistia basicamente em abordar pessoas ligadas ao movimento negroe à política local, levantando questões baseadas em informações que haviaobtido com outras pessoas do mesmo círculo. Mesmo sem explicitar os nomesde seus ‘informantes’, mas deixando clara a origem de suas informações, Pau-lo acabou se envolvendo no que me foi descrito mais tarde como “fofocas”.27

Ora, se somarmos, a essa “observação participante”, em que a participa-ção parece não ter limites, e a essa franqueza excessiva nas entrevistas e con-versas, o fato de que, em tempo de política, tudo o que ocorre tende a adqui-rir conotações políticas, e o pressuposto de que não faz o menor sentido al-guém se envolver tanto na política sem estar de um dos lados em confronto,compreendemos bem que as atitudes de Paulo só podiam ser interpretadas,do ponto de vista dos militantes negros, como uma forma de tentar influenciá-los politicamente. Como ele trabalhava, no Instituto Nossa Senhora da Pie-dade, ao lado de pessoas inequivocamente ligadas à campanha de Jabes Ri-beiro, como nunca ocultou sua preferência por essa candidatura, que consi-derava de esquerda, e como tanto se esforçou em marcar reuniões com o gru-po jabista, a maior parte dos envolvidos não tinha dúvida de que era nessadireção que pretendia conduzir o movimento afro-cultural. O “jabismo” dePaulo foi, finalmente e de modo inequívoco, confirmado quando, no encer-ramento da reunião na casa de Cosme Araújo, ele retirou-se pronunciando afrase “com Roland não dá mesmo”. Paradoxalmente, do ponto de vista da-queles que estavam efetivamente próximos a Jabes – Gurita, Rúbia e seusassessores, que sabiam que Paulo não fazia parte da campanha jabista –, a sus-peita só poderia ser a de que ele pretendia levar o movimento negro a apoiarRoland Lavigne.

No entanto, e de forma mais profunda, a dissonância entre Paulo e osdirigentes dos blocos afro repousava sobre diferenças essenciais no modo deconceber a política. Nas camadas mais pobres da população de Ilhéus em ge-ral, e nos grupos negros em particular, pode-se entender por política coisasrazoavelmente diferentes: as administrações públicas, municipal, estadual efederal fazem parte da política, é claro; o período eleitoral, como em tantasoutras regiões, é chamado “a política”, e se diz que “a política” começou ouacabou (assinalando-se, assim, o início ou o fim das campanhas eleitorais),ou que “é ano de política” (ou seja, é ano eleitoral). Todavia, política tam-bém, e talvez principalmente, é aquilo que os “políticos” fazem: acordos, ar-ranjos, favores, pedidos, promessas, articulações, manipulações, acusações, bar-ganhas, e assim por diante. Essa concepção é algo circular, já que a expressão

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“políticos” designa, em geral, aqueles que fazem política. Essa circularidade,contudo, não é inteiramente viciosa, uma vez que a classificação de alguémcomo político é fundamentalmente contextual.28 A política não é, pois, pen-sada como um domínio específico da vida social, visto que pode irromper emdesfiles de blocos afro ou em eventos religiosos, por exemplo. Mas ela tam-pouco parece ser compreendida como um aspecto ou dimensão de toda rela-ção social, uma vez que, ao menos idealmente, um grande número dessasrelações (o parentesco, a religião etc.) deveria estar livre da política. Nessesentido, a concepção local de política afasta-se tanto do substantivismo quantodo formalismo, entre os quais parecem se dividir as concepções antropológi-cas, e acadêmicas em geral, acerca da política.

Se a polêmica entre formalistas e substantivistas constituía, há algum tem-po, um capítulo quase obrigatório da antropologia econômica – dizendo res-peito à própria definição do objeto da subsdisciplina –, observou-se menos ofato de que essas duas maneiras de conceber o objeto reaparecem em quasetodos os campos da antropologia. Assim, se a economia podia ser definidacomo um subsistema do sistema social, ou um tipo específico de relação so-cial, também era possível defender a hipótese de que o econômico constitui-ria, antes, um aspecto de qualquer sistema ou relação social. De forma análo-ga, na chamada antropologia da religião, o ritual pôde ser definido tanto comouma forma específica de ação quanto como uma dimensão de qualquer açãohumana. E, na antropologia política, o político pôde ser concebido como umaesfera de relações ou como um aspecto de qualquer relação social.29

Os militantes negros de Ilhéus, entre outros, tendem, ao contrário, apensar a política de acordo com uma espécie de dinamismo, que a conceberiasobretudo como uma atividade, que tem certamente seu espaço e seu tempopróprios, mas que, simultaneamente, parece ser dotada de um caráter invasivo,que faz com que, freqüentemente, ultrapasse os limites em que deveria ficarconfinada (as eleições, o governo) e penetre relações e domínios de que deve-ria estar excluída (o parentesco, a arte, a religião). Em outros termos, se apolítica não constitui nem um domínio exclusivo, nem uma modalidade derelação nitidamente distinta de outras, isso não significa que não haja domí-nios e relações em que ela é tida como mais legítima, aceitável ou, ao menos,tolerável (nos partidos, nas eleições, no governo etc.), e outras dimensões emque, em graus variados, é quase inaceitável (os blocos, os terreiros, as famílias etc.).

Por outro lado, se a política é uma atividade invasiva, mesmo aquelesque não são políticos podem, às vezes, praticá-la – e isso não se aplica apenasno sentido de política partidária ou oficial. Quando se suspeita de que alguém

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está tentando uma manobra no interior de um bloco afro ou de um terreirode candomblé visando ampliar sua esfera de influência, conquistar uma po-sição de maior prestígio ou obter algum tipo de vantagem material, pode-seacusá-lo de estar “fazendo política”. Do mesmo modo, “deixe de (fazer) polí-tica” (quer dizer, seja sincero, claro, direto) não é uma expressão incomumem Ilhéus.30

Foi Moacir Palmeira quem chamou a atenção para o fato de que umainvestigação antropológica da política em nossa própria sociedade deve, ne-cessariamente, levar em conta a multiplicidade de concepções e significadosde que se reveste o termo.31 Isso não significa, é claro, que basta sustentar ocaráter polissêmico de “política” para que nossos problemas se resolvam. Se-ria preciso compreender essa polissemia em um sentido mais sociológico ousociopolítico e reconhecer que diferentes concepções de política estão sem-pre em coexistência, interpenetrando-se e opondo-se em um espaço socialhierarquizado. Assim, os ‘eleitores’ em geral tendem a conceber a política comouma atividade transitória (que começa e termina a cada dois anos, por exem-plo), transcendente (uma vez que é pensada como exterior e superior ao grupode referência) e poluente (já que contamina as relações sociais com manipula-ções e falta de sinceridade) – disruptiva, em suma. Por outro lado, quandonos aproximamos do domínio institucionalmente designado como política,ou quando nos deparamos com agentes sociais que tendem a considerar suaação como política, defrontamo-nos com uma concepção mais substancialistae moralmente neutra, definindo a política como uma esfera ou domínioidealmente permanente e contínuo, imanente e positivamente valorado.

Ora, o fato de a política, de acordo com a primeira concepção isolada,possuir idealmente uma temporalidade própria – uma vez que, na prática, éclaro que as relações entre os políticos e seus eleitores são permanentes, aindaque com graus de intensidade variados (ver, entre outros, Heredia 2002 e Gay1990: 659) – remete ao que Palmeira e Heredia denominaram “tempo dapolítica”.32 É preciso observar, contudo, que essa noção parece funcionar me-lhor quando se limita a transcrever uma concepção nativa dos eleitores, a qualtende a enfatizar o caráter temporário de seu envolvimento na atividade po-lítica – o que faz com que esta, de seu ponto de vista, praticamente se con-funda com o processo eleitoral. Não se trata, pois, de uma realidade em simesma – já que, como se sabe, as transações políticas ocorrem o tempo todo–, nem de uma representação nativa genérica – uma vez que se desdobra, emfunção das diferentes concepções de política presentes em qualquer cenário

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concreto. Em outros termos, existem sempre muitos “tempos da política” emconexão e/ou competição: o dos “políticos” em geral; o dos candidatos, seusassessores e cabos eleitorais; o dos eleitores comuns e o dos mais engajados(ver, por exemplo, Kuschnir 2000b: 59). Essas temporalidades parcialmenteheterogêneas se interpenetram de forma fundamentalmente assimétrica, poisuma coisa é aproveitar as eleições para obter, taticamente, digamos, peque-nas vantagens ou empregos em geral transitórios; outra é desenvolver estraté-gias para o controle de posições e cargos socialmente tidos como muito im-portantes. E não há dúvida de que aquilo que é válido para o tempo não o émenos para o espaço (ver Barreira 1998: 13).

Observemos, por fim, que a concepção de política com que Paulo ten-dia a operar é, sem dúvida, a mesma empregada pelos grupos negros políti-cos de Ilhéus, os quais, como vimos, acusam os blocos afro de serem despoli-tizados ou, mais diretamente, de só quererem “tocar tambor, dançar e conse-guir dinheiro para o carnaval”. E é também o sentido adotado pela maior partedos políticos profissionais, tanto os que tentam “conscientizar” os cidadãosda importância de uma participação política constante e de um voto engajado,quanto aqueles que só se aproximam dos votantes no período eleitoral, masque passam todo seu tempo envolvidos com a atividade política. De seu lado,os militantes do movimento afro-cultural tendem não apenas a consideraresses políticos profissionais pessoas nas quais não se pode depositar muita con-fiança – uma vez que só estão interessados em “usar” as pessoas em benefíciopróprio –, como a devolver as acusações dos grupos negros mais politizadosdizendo que são “políticos demais” (o que significa, em grande parte, que es-tão comprometidos com partidos políticos) e não possuem qualquer com-promisso efetivo com a cultura negra, que fica, assim, reduzida a instrumen-to destinado a facilitar o “uso” da população negra para seus objetivos.33

* * *

A frase de Marinho, ao reencontrar-me em setembro de 1996, traía, pois,a incerteza e a ambigüidade que haviam marcado suas relações com Paulo.No fundo, ele sabia que “a pesquisa é pra valer” e fora ele que tentara dissiparas dúvidas mais sérias colocadas por outros dirigentes negros – principalmenteCesar, do Rastafiry; Gurita, do Força Negra; e Dino Rocha, do próprioDilazenze. Este último, por exemplo, me diria explicitamente ter “uma pul-ga atrás da orelha com Paulo”, e só ter concordado em conceder uma entre-

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vista a ele em função de uma “ordem vinda de cima”, ou seja, de Dona Ilza,que, por sua vez, dizia ajudar Paulo por minha causa. Marinho, certamente,desconfiava que Paulo poderia mesmo ser um “jabista”, que, dadas suas rela-ções com membros do grupo de Rúbia Carvalho com quem trabalhava naPiedade, estava tentando atrair o movimento afro-cultural para a campanhade Jabes. E isso, é claro, porque obteria vantagens pessoais com esse apoio –um emprego melhor, talvez –, vantagens que não eram, em absoluto, segurasno que diz respeito ao movimento negro.

Com exceção de alguns grupos que não assumiram posicionamento elei-toral explícito, o movimento dividiu-se: Força Negra, Zimbabuê, Zambi Axé,Danados do Reggae, Leões do Reggae (todos de alguma forma ligados aGurita) e Miny Kongo (cujo presidente era muito próximo de uma candidataa vereadora do mesmo partido de Jabes) decidiram apoiar Jabes Ribeiro, quejá contava, lembremos, com o apoio do MNU e dos grupos negros maispolíticos; Dilazenze, Rastafiry, D’Logun e Raízes Negras ficaram com RolandLavigne. Observemos que esses quatro blocos têm suas sedes na Conquista,o que os tornava muito mais suscetíveis às abordagens de Cosme Araújo, queagia como representante de Roland. Ainda assim, esse “apoio eleitoral” é bemmais complicado do que parece.

Na mesma conversa em que Marinho manifestou suas dúvidas sobre apesquisa, perguntei a ele e a seu irmão Ney quem eles acreditavam que ga-nharia as eleições. Sem titubear, responderam:

– “Jabes, sem dúvida.– “Mas vocês vão votar em Roland, não é?– “Nós estamos fazendo um trabalho profissional para ele. Voto é outra coisa”.

Isso significava, descobri mais tarde, que parte da bateria do Dilazenzese vinha apresentando nos comícios, caminhadas e outros atos eleitorais dacampanha de Roland Lavigne, e que, por cada apresentação, o bloco recebiaR$ 300,00. Além disso, receberia também uma quantia à parte destinada àconstrução de sua quadra própria, conforme revelou Marinho:

“Cada um dos blocos que está com Roland apresentou um projetinho; o maisalto era o do Rastafiry, R$ 20.000,00, e o mais barato era o nosso, R$ 6.000,00.Roland decidiu, então, pagar R$ 6.000,00 a cada entidade, independente doprojeto”.

Mais tarde, alguém me contou que os R$ 6.000,00 deviam ser dividi-dos entre o Dilazenze e o Rastafiry, o que deixaria cada bloco com R$ 3.000,00.

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Mais tarde ainda, descobri que os R$ 6.000,00 deviam ser divididos entretodas as entidades que apoiavam Roland (o que significaria R$ 1.500,00 paracada uma). Finalmente, nunca consegui saber ao certo se o Dilazenze rece-beu R$ 1.000,00 ou R$ 500,00 – dinheiro que, somado ao que se recebiapor apresentação, e, descontado o cachê dos músicos, teria sido inteiramenteusado na construção da quadra.34

Já depois das eleições, tanto Marinho quanto Ney confirmaram que ha-viam votado em Roland. Ambos sustentaram que o haviam feito porque ti-nham “vergonha na cara” e não poderiam votar em Jabes depois de passar todaa campanha trabalhando para o outro candidato. Também Cesar, do Rastafiry,que antes das eleições distinguia com cuidado entre “trabalhar”, “fazer cam-panha”, “pedir votos” e “votar”, depois delas sustentava que todas essas ativi-dades estavam ligadas e que ainda que se pudesse trabalhar para um candida-to e votar em outro, a participação na campanha já exigia o voto, desde quenão se fosse um “sem-vergonha”.

Moacir Palmeira (1991: 119-121; 1992: 27; 1996: 45-46) estabeleceuuma importante distinção entre o voto enquanto “escolha” (de caráter, emtese, individual, dependendo, portanto, da “elaboração de critérios prévios”)e o voto enquanto “adesão” (coletivo e dependente de certas lealdades assu-midas por meio de “compromissos”). Creio que a distinção tem, sobretudo,um valor idealtípico. Por um lado, como adverte Palmeira, porque o “voto-adesão” não supõe, absolutamente, a fatalidade de algumas “lealdades primor-diais”, já que cada um está envolvido em múltiplas redes de lealdades e obri-gações, podendo invocá-las alternativamente, o que faz com que as “adesões”sempre impliquem “escolhas” e confere ao sistema uma grande flexibilida-de35. Por outro, porque é claro que o “voto-escolha” não supõe a existência deum eleitor inteiramente livre e independente (o que contrariaria qualqueranálise verdadeiramente sociológica ou antropológica), suas “escolhas” envol-vendo sempre “adesões” prévias. Assim, essas duas modalidades correspondemmais a imagens do voto do que a tipos empiricamente existentes, e entre elasescalona-se toda a variedade de processos de decisão eleitoral que a observa-ção etnográfica é capaz de atingir (e às quais retornaremos).

Essas modalidades parecem relacionadas, ademais, a diferentes formasde avaliar a política. Uma, de caráter, digamos, ‘dedutivo’, tende a partir degrandes questões e valores transcendentes para chegar até, por exemplo, umvoto para vereador; a outra, ‘indutiva’, parece tomar como ponto de partidaas experiências mais imediatas – experiências que, como observou Herzfeld(1985: 260), tendem a gerar “pouca fé no processo democrático em geral” –,

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procedendo, então, por alargamentos progressivos de seu campo de aprecia-ções. E, como pode rapidamente ser comprovado por meio do contraste en-tre as grandes obras da ciência política e a leitura das seções de política dequalquer jornal, a democracia pode ser abordada tanto pela via de seus regis-tros macroscópicos (seus grandes ideais, a liberdade, a igualdade, a represen-tação etc.), quanto em seu microfuncionamento (as negociações, os acordos,as barganhas).36

Em agosto de 2000, logo que cheguei a Ilhéus, Gilmar Rodrigues disse-me que “infelizmente Jabes Ribeiro vai ganhar as eleições para prefeito, por-que tem a máquina e o dinheiro da Prefeitura nas mãos. E somos nós quepagamos”. Descobri, pouco depois, que Gurita prometera a Gilmar, desem-pregado há muito tempo, o direito de explorar um bar, situado em uma qua-dra poliesportiva da Prefeitura, na Conquista; mais tarde, disse a ele que oprefeito ordenara que o bar fosse cedido a Cesar, do Rastafiry. Duas semanasmais tarde, dei-me conta de que a resistência de Gilmar ao nome de Jabes e,em parte, ao de Gurita havia diminuído bastante. Soube, então, que o pró-prio prefeito havia dito a Marinho que era preciso atender o pedido de seuirmão, acenando com a possibilidade de este explorar o restaurante do Memo-rial. Uma semana depois, respondendo a um levantamento que eu havia so-licitado a Marinho (e ao qual retornarei), Gilmar dizia que já havia escolhidoseus candidatos (“Jabes Ribeiro para prefeito da nossa cidade e Gurita comovereador”) e que os havia escolhido porque eram “as melhores opções”. Alémdisso, declarou ter certeza de que Jabes venceria as eleições, em virtude da“qualidade do trabalho que vem desenvolvendo em Ilhéus, que sempre de-senvolveu à frente da Prefeitura”. Não creio, contudo, que se possa opor aadesão ou o voto motivados por interesses particulares a algum tipo de cons-ciência superior, atenta para os interesses públicos ou coletivos. Gilmar, porexemplo, apenas utilizava uma experiência individual como modelo paravalorar e dar sentido a questões supostamente mais gerais. Assim, alguém quese comportava (ou que ele acreditava se comportar) com ele como Gurita eJabes não podia ser boas pessoa para ninguém, muito menos para a cidadecomo um todo ou para o povo em geral.37

Nesse sentido, a oposição entre “voto” (concebido como escolha ou comoadesão) e “trabalho” (os serviços pagos em atos de campanha) não era tão ab-soluta quanto todos haviam tentado me fazer crer – e como todos, invaria-velmente, sustentam quando a questão é levantada.38 Na verdade, “voto-es-colha”, “voto-adesão” e “trabalho” são argumentos que funcionam como im-portantes dispositivos retóricos nas estratégias discursivas que permitem que

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cada um explique ou justifique sua decisão de voto. Assim, a alguém que mepede o voto em nome de alguma “lealdade”, posso dizer que devo votar emoutrem porque para ele “trabalhei” durante as eleições, ou que, sendo o votoassunto de “escolha individual”, prefiro não falar no assunto – ou vice-versa,é claro. É curioso, também, que o trabalho seja um valor moral que funcionacomo uma espécie de operador destinado a articular voto e dinheiro: a remu-neração obtida por um trabalho que visa obter votos de outrem acaba por tam-bém capturar os próprios votos por meio da idéia de “ter vergonha na cara”.

Em 1998, Marinho me diria que não apenas todos sabiam que Jabesganharia as eleições, como estavam cientes de que uma vitória de Roland se-ria um desastre para o movimento afro-cultural. Entretanto, como todos osgrupos negros após 1993, o Dilazenze atravessava uma fase muita delicada, ea construção da quadra era essencial para a solução de parte dos problemasdo bloco. O dinheiro de Roland e sua derrota eleitoral teriam sido, assim, oque de melhor podia ter acontecido para o Dilazenze nas eleições de 1996.Todos frisavam, também, que o dinheiro não fora apropriado individualmen-te, mas servira para a construção de um bem coletivo do grupo. Isso, aparen-temente, confere legitimidade e mesmo dignidade a uma barganha eleitoral,já que a negociação de votos visando benefícios individuais é constantemen-te criticada – o que não significa, é claro, que não seja praticada. O voto emRoland, finalmente, aparecia quase como um sacrifício – opção de alguns(Marinho e Ney, especificamente) derivada de um sentimento de obrigaçãosuscitado pelo fato de terem trabalhado em sua campanha em benefício dogrupo de que fazem parte. Por outro lado, em 1998, vários militantes negrossustentavam que, no final das contas, sabiam perfeitamente que, uma vezeleito, Jabes não poderia ignorá-los, pois não apenas prometera uma políticacultural mais agressiva, como toda a sua trajetória em Ilhéus o ligava à cultu-ra e, conseqüentemente, ao movimento negro da cidade.

De qualquer forma, essa imprecisão nas fronteiras que, supostamente,separam cabos eleitorais, “boqueiros”, militantes pagos, militantes voluntá-rios e eleitores não é, evidentemente, específica dos grupos afro de Ilhéus.39

O número dos que desempenham, simultânea ou alternadamente, uma des-sas funções, ou todas elas, é muito significativo nas eleições municipais dacidade – e em toda parte, suponho. Uma semana antes das eleições, Ilhéusestava repleta de pessoas de todas as idades que, sob um sol fortíssimo, vestiamcamisetas e agitavam bandeiras de um sem número de candidatos a vereadore dos dois principais candidatos a prefeito. Cada uma recebia, dizia-se, R$5,00 por oito horas de trabalho, remuneração acrescida de um “lanche”, ser-

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vido na hora do almoço, que consistia, na maior parte dos casos, em um pãocom manteiga (“sanduíche”) e um refresco artificial (“suco”). Um número bemmenor de pessoas era contratado, por R$ 50,00 por mês (além do lanche nosdias de atividade), a fim de desempenharem diferentes funções ao longo dacampanha.

Os dias de eleições, em especial as municipais, possuem assim, em Ilhéus,um ar algo festivo. Muita gente nas ruas, bandeiras e camisetas de cores dife-rentes. Contudo, muita gente, também, que não conseguiu um “trabalho”(de boqueiro ou agitador de bandeira), ou que considera os R$ 5,00 e o lan-che oferecidos para essas funções “um absurdo para passar o dia inteiro de-baixo do sol forte”, prefere aproveitar o transporte gratuito que diversos can-didatos oferecem para “passear e visitar a família e amigos” em distritos maisdistantes da sede (ou vice-versa). Se acreditarmos que, como se comenta, um“coordenador de boca de urna” – trabalho que, em geral, estendia-se até afiscalização da apuração, e que foi praticamente extinto com a introdução dovoto eletrônico a partir de 1998 – recebe R$ 50,00, temos uma idéia da tabe-la de preços dos serviços eleitorais em Ilhéus. A prática usual é que o paga-mento seja feito metade na véspera ou no dia de votação e a outra metadeapós as eleições. Todos estão de acordo que só há alguma segurança no rece-bimento dos 50% posteriores à votação quando o candidato para o qual setrabalha é eleito – e mesmo assim isso nem sempre ocorre. Por outro lado,caso o candidato não se eleja, todos estão certos de que a segunda parcela dopagamento jamais será efetuada – ainda que isso às vezes aconteça.

Além dos serviços eleitorais e de alguns poucos lazeres proporcionadospelos candidatos em luta pelo voto, o dia das eleições em Ilhéus não pareceapresentar nada de muito especial, e é necessário, talvez, admitir que a obser-vação direta da votação pouco acrescentou em relação à etnografia do proces-so eleitoral que a preparou. Tomam-se bebidas alcoólicas abertamente nos baresda cidade – apesar da “lei seca” e sempre com a observação de que “no Brasilas leis são mesmo feitas para serem quebradas”. Conversa-se muito e comen-tam-se supostos fatos ligados à votação, como que este ou aquele candidatoestaria, ou teria sido visto nos dias imediatamente anteriores, em tal ou quallocal da cidade comprando votos abertamente, em geral por R$ 5,00 ou R$10,00, pagos mediante a apresentação do título eleitoral, cujos dados são mi-nuciosamente anotados. Comentam-se, também, os aspectos tidos como maispitorescos das campanhas e da votação em particular.40 Ri-se das dificuldadesque algumas pessoas – em geral mais velhas ou apenas semi-alfabetizadas, es-

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pecialmente após a adoção do voto eletrônico – teriam enfrentado no mo-mento do voto. Alguns apostam nos resultados eleitorais, em quem serão osvencedores ou em quantos votos tal ou qual candidato terá. Enfim, vai-se àpraia e aproveita-se o feriado.

Entre os membros da família Rodrigues, do Tombency e do Dilazenze,foram poucos os que, em 1996, aceitaram trabalhar na boca de urna, alegan-do que a remuneração era baixa demais e que, por isso, preferiam almoçarem família, beber cerveja e conversar. Foi apenas nesse momento que conse-gui descobrir a posição eleitoral da maior parte das pessoas. Uma irmã de Ma-rinho, que uma semana antes me havia dito não saber ainda em quem vota-ria, confirmou ser uma “jabista fanática” e votar sempre em Jabes. Diante domeu desconcerto, Dona Ilza explicou, rindo, que, como não conheciamminhas próprias preferências eleitorais, preferiam não explicitar as suas, vi-sando evitar qualquer tipo de discussão e confronto.41 Ela mesma disse quetambém votara em Jabes, como sempre, aliás, e que, após a vitória que con-siderava certa, ela se juntaria às comemorações – de fato, alguns dias mais tar-de, ela me contaria ter participado da “carreata da vitória”: “agora eu fui!” Alémdisso, esclareceu que, em toda a família, apenas Marinho e Ney haviam real-mente optado pelo voto em Roland Lavigne, chegando mesmo a pedir a elapara retirar um pôster de Jabes que ficava atrás da porta da sala, sob o argu-mento de que isso poderia prejudicar os acordos políticos com seu candida-to. O máximo que ela consentiu foi que acrescentassem um pôster de Rolandao lado do outro (o que contribuiu para que eu não adivinhasse em quem seconcentrava a maior parte das intenções de voto).

Dona Ilza explicou, ainda, que, no caso dos candidatos a vereador, elestiveram que “dividir o voto”. Como havia muita gente conhecida disputan-do as eleições e os votos dos Rodrigues e do Tombency – gente que, acrescen-tou, os havia ajudado em diferentes ocasiões –, os membros da família e doterreiro haviam votado em candidatos muito diferentes. Não se tratava, por-tanto, de uma divisão de votos organizada, comandada pela matriarca da fa-mília e mãe-de-santo do terreiro, e a “divisão” parecia sugerir mais uma justi-ficativa para o fato de a família, o terreiro e o bloco não terem votado unidos.Mas isso, é claro, não modifica em nada o resultado do processo: a aparenteimpossibilidade de concentrar o voto em algum candidato que de fato ‘re-presentasse’, se não as três instâncias, ao menos uma delas.

O Dilazenze, por exemplo, acabara decidindo apoiar Dino Rocha, dire-tor social do bloco, funcionário da Prefeitura, que apenas um mês antes das

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eleições resolvera levar a sério sua candidatura – já que a lançara, confessada-mente, apenas para usufruir da licença a que têm direito os funcionáriospúblicos que se candidatam a cargos eletivos – e pedira o apoio de seu bloco.Duas semanas depois, o Dilazenze – que antes tentara um acordo com umcandidato forte e fora cortejado abertamente por Gurita – decidiu apoiá-lo.Dino, candidato pelo Partido da Solidariedade Nacional (PSN), obteve 41votos, ficando muito longe de ser eleito, de conseguir uma suplência ou mesmode poder usar seu contingente de votos para obter algum tipo de vantagem.Além dele e de Gurita (que, pelo PTdoB, obtivera 354 votos, número sufi-ciente para garantir um cargo após a posse do novo prefeito), havia ao menosmais dois candidatos que mantinham alguma relação com o movimento ne-gro de Ilhéus. João César, pelo PDT, obteve 92 votos, e Adalberto SouzaGalvão (Bebeto), que tentava a reeleição pelo PCdoB, conseguiu 397. Ape-nas para se ter uma idéia, e desprezando a questão do total de votos nas le-gendas, em 1996 o candidato a vereador eleito mais votado em Ilhéus obteve1.150 votos, e o eleito menos votado, 452 votos. Isso significa que, se somás-semos os votos dos quatro candidatos ligados de alguma forma ao movimentonegro em sentido amplo, chegaríamos a quase novecentos votos, ou seja, auma quantidade que apenas cinco dos 19 vereadores eleitos lograram obter.42

É claro, também, que esse tipo de contabilidade é, no máximo, um exer-cício discursivo. À parte o fato de serem todos negros, muito pouca coisa apro-ximava os candidatos: trajetórias, projetos, ideologias, vínculos partidários epolíticos em geral, tudo era muito diferente. O fato de que todos concorriampor partidos diferentes já significava que, em lugar de se somarem, os votos aeles atribuídos efetivamente se diluíam e serviam para engrossar a votação deoutros candidatos. E nem mesmo a ligação com o movimento negro poderiaser considerada uma identidade, uma vez que era absolutamente heterogê-nea: Dino, de fato, fazia parte de uma das mais importantes entidades do mo-vimento afro-cultural; Gurita havia se aproximado recentemente desse mes-mo movimento; João César tinha contato com pessoas do movimento afro-cultural, mas estava mais próximo do MNU; Bebeto era um militante doPCdoB, mais preocupado com assentamentos rurais e sindicatos urbanos doque com questões “raciais” ou “culturais”.

Entre os eleitores comuns, os dias que se seguem às eleições tampoucoparecem muito dignos de nota. Já entre os políticos, e aqueles com eles dire-tamente envolvidos, são dias, e meses, de intensa atividade. Os eleitos prepa-ram sua posse; os não eleitos analisam o que ocorreu e tentam preservar ouobter algum espaço político fora dos cargos eletivos; aqueles cuja relação com

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a política é mais ‘profissionalizada’ (assessores, técnicos etc.) mobilizam-se porcargos, postos e funções. Como dizia um desses profissionais, para eles (e paraos políticos, é claro), “a política não termina com as eleições”, bem ao contrá-rio, ela intensifica-se com seu final, o que revela com clareza, mais uma vez,que aquilo que tende a ser pensado pelos eleitores comuns como uma ativi-dade temporária e sazonal parece absolutamente permanente e contínuo paraos profissionais.

Além disso, é claro que muitos festejam as vitórias de seus candidatos,vitórias que, em muitos casos, significam a possibilidade de obter ou manterempregos e vantagens. Em uma dessas comemorações, em uma casa muitopróxima do Tombency e praticamente defronte à casa de Cosme Araújo, umaenorme briga envolvendo moradores dos Carilos, de um lado, e “o pessoal deCosme”, de outro, teve lugar no dia 5 de outubro. A proprietária da casa, fun-cionária pública municipal que, além de “jabista”, via na vitória de seu candi-dato uma oportunidade de um cargo melhor na Secretaria em que trabalha-va, comemorava ruidosamente a eleição de Jabes, quando empregados deCosme começaram a celebrar, mais ruidosamente ainda, a reeleição do pa-trão como vereador. O que parecia ser apenas um conflito encenado evoluiupara um confronto físico do qual participaram algumas dezenas de pessoas,homens, mulheres e até crianças, e que só foi interrompido com a chegada dapolícia depois que alguém empunhou, sem disparar, uma arma de fogo. Par-te dos combatentes foi levada para a delegacia, o que obrigou Cosme – que,na cidade, é, por vezes, acusado de ser “advogado de porta de cadeia” ou “de-fensor de vagabundos” – a dirigir-se para o local a fim de liberar alguns deseus empregados. Como seu prestígio junto à polícia não é muito elevado –“nós prendemos os vagabundos e ele solta”, dizem alguns policiais –, o dele-gado acabou culpando os adeptos de Cosme por todo o conflito. Culpabili-zação de efeito estritamente moral, uma vez que foram todos liberados. An-tes da liberação, contudo, alguém escutou Cosme dizer que houvera muitatraição nas eleições e que iria “dar um jeito nos traíras”.

Na Conquista, contava-se que, desde que Cosme se mudara para osCarilos, cerca de um ano antes, os conflitos com ele e seu pessoal haviam sidoconstantes. Ele tentara se aproximar do Dilazenze e, depois, da Associação deMoradores; tendo fracassado, esforçara-se, também sem sucesso, por impe-dir os ensaios do bloco, alegando que eram barulhentos demais. No carnavalde 1996, como vimos, oferecera ao Dilazenze um jogo de camisetas para ves-tir a bateria do grupo, permitindo assim que ele saísse no carnaval, ainda quede forma modesta e em nada compatível com o que se espera de um bloco

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afro. A referência à traição, pensava Marinho, estaria relacionada justamentea esse episódio, uma vez que Cosme pretendia que o “patrocínio” no carnavalimplicasse automaticamente apoio eleitoral. “Mas não há nada disso”, con-cluía Marinho, “porque nós desfilamos com as camisetas com o nome deleestampado e essa propaganda já pagou o patrocínio”.

Esse episódio poderia também servir de alerta, creio, contra as tentaçõesdo ‘voto étnico’. Quaisquer que sejam os efeitos que o sentimento de pertenci-mento étnico possa produzir tanto nos candidatos quanto nos eleitores, elesdificilmente podem ser captados de fora.43 Marinho sustentava que Cosme énegro, elogiava-o por ter “sangue quente, uma pessoa que chega e briga, queconsegue realmente as coisas, que promete e cumpre”, mas frisava que ele nãopossuía “muita identificação com o movimento negro de Ilhéus”, ainda quetivesse “assumido todos os compromissos que firmou”. E, desde antes das elei-ções, Marinho explicava que

“[...] nós desenvolvemos um trabalho de três meses com Cosme Araújo para ocarnaval; sentamos com ele, conversamos, e ficou bem claro que seria um pa-trocínio, ele seria um patrocinador como outro qualquer, daria o que a gentenecessitasse para fazer o carnaval e em troca nós divulgaríamos o nome dele:acabou o carnaval, acabou o compromisso. O apoio do Dilazenze à campanhadele, os compromissos maiores e o envolvimento com essa campanha, tudoisso é outra questão. O Dilazenze não se definiu até agora por um candidatoporque nós não encontramos nenhum que tivesse uma identidade com omovimento negro, que fosse realmente brigar pelas nossas causas, pelos nossostrabalhos durante o ano, nosso trabalho social, cultural. Porque tem muitopolítico que dá um dinheiro e que depois das eleições não assume o compro-misso: você procura a pessoa para desenvolver um trabalho e é aquela dificul-dade toda. Por isso o Dilazenze não se definiu, tem muitos candidatos aí. En-tendeu?”.44

NOTAS

1 Ver também Goldman (1985a; 1985b; 1987; 1990; 2003) e Contins e Goldman (1984).2 Ver também Goldman (1992; 1998).3 Ver Goldman e Sant’Anna (1995), Goldman e Palmeira (1996) e Goldman e Silva (1998).4 Ver Goldman (2000; 2001a; 2001b).5 Talvez essa seja mais uma ocasião não apenas para agradecer a Wagner pelo que aprendicom ele e por sua amizade, mas também para homenagear a memória de Nivaldo Pereira

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Bastos, Camuluaji, pai-de-santo do Ilê de Obaluaiê, em Tribobó, precocemente falecido, queofereceu meu primeiro acesso ao universo do candomblé.6 Aqui devo não apenas agradecer a Mário Gusmão e Valdir Silva, seu sobrinho e magníficobailarino afro, por terem me levado ao Tombency, como prestar homenagem à memória deMário, a quem não sou capaz de descrever melhor do que com as palavras de Jefferson Bace-lar (2003): “um príncipe negro”. Ver, também, Bacelar (2001) e Silva (2004: 188-196).7 “Barracão” é o nome que se dá ao salão dos terreiros de candomblé onde são realizados asfestas públicas e alguns outros rituais. No caso do Tombency, funciona, também, como espa-ço para algumas atividades do Dilazenze.8 Ver Apêndice VIII.9 Parte dessas informações pode ser encontrada nos volumes que condensam os dois Encon-tros de Nações de Candomblé, realizados em Salvador em 1981 (CEAO 1984) e em 1995(CEAO 1997).10 Ver Apêndice IV.11 O jogo de búzios é uma técnica ritual divinatória em que as combinações de posições entreas 16 ou 32 conchas jogadas pela mãe-de-santo permitem desvendar propriedades místicasdo presente e vislumbrar o futuro.12 O barracão de um terreiro de candomblé é uma imagem do cosmos: o chão representa estemundo em que vivemos (chamado nos terreiros ketu de aiyê) e o teto o outro mundo, dosorixás e dos mortos (o orum). O desabamento do teto significa, conseqüentemente, um co-lapso cósmico, o apocalipse. Desde a primeira vez que ouvi essa história – que Dona Ilzarepetiria inúmeras vezes ao longo dos anos –, pensei que poderia ser o argumento de umfilme. Mas confesso que o imaginei como uma história trágica de amor, em que a recusa emreceber o cargo para não perder o amado engendraria a catástrofe com a qual o filme deveriaterminar.13 E é curioso que a lembrança de uma conversa sobre política com pessoas do terreiro nocarnaval de 1983, nas barracas que naquela época eram montadas na Avenida Soares Lopes,só tenha voltado ao meu espírito quando decidi deslocar a pesquisa para Ilhéus: Gilmar di-zia-me que o partido político por ele preferido era certamente o PT (então recém-criado),mas que, como não tinha qualquer chance eleitoral, nas últimas eleições havia votado e feitocampanha para Jabes (que, nas eleições de 1982, obtivera seu primeiro mandato, que deviadurar seis anos). Além disso, o primeiro terreiro de candomblé que procurei em Ilhéus, oTerreiro de Odé, era comandado por um pai-de-santo, Pedro Farias, que tinha sido chefe degabinete de diversos prefeitos.14 Ver Apêndice VIII.15 Jabes, além disso, era apoiado “informalmente” pelo PPS, PCdoB e PMN, que se haviamse reunido na Aliança Democrática Popular, lançando como candidato um nome sem quais-quer chances eleitorais, José Cosme Santos.16 Acostumados a receber muitas pessoas interessadas em suas atividades (de antropólogos aestudantes do ensino fundamental) e a desenvolver suas próprias investigações sobre tradi-ções culturais que sirvam de base para sua música e dança, os grupos afro-culturais de Ilhéus

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usam a palavra “pesquisador” com muita freqüência e desenvoltura. Da mesma forma, acos-tumados ao envolvimento com políticos de todos os matizes, o termo “assessor” apresenta,entre eles, uma gama de utilização bastante abrangente.17 Além do mais, não parece haver nenhuma razão plausível para opor o cálculo à sincerida-de. As manipulações estratégicas podem depender de valores conflitantes, por vezes em con-tradição, mas isso não se opõe aos comprometimentos morais nem exclui os mesmos. Maisdo que isso, qualquer estratégia parece exigir investimentos afetivos dificilmente conciliáveiscom a pura mentira manipulatória. Ver Herzfeld (1982: 655-656; 1991: XII; 1992b: 78;1996: 146).18 Outras dimensões igualmente conotadas pelo marcador étnico “negro” são a cultura, a habi-lidade para a música e a dança e a disposição para a festa – o que, mais tarde, viria a ser fatalpara as relações de Paulo com o movimento negro. Voltarei a esse ponto no quarto capítulo; porora, basta observar que Paulo começou a reunião como branco e chegou a seu final como negro.19 A classificação de um bloco como “grande”, evidentemente, pode ser objeto de disputa.No entanto, há certo consenso em torno do fato de que Dilazenze, Miny Kongo e Rastafiryocupam essa posição, consenso elaborado, creio, a partir do tempo de existência desses blo-cos, bem como do número de pessoas que são capazes de fazer desfilar no carnaval. Por isso,a ironia de Almeida (2000: 141), chamando-os, ou a seus líderes, de “os Três Magníficos”,parece algo excessiva.20 Esse argumento (em geral formulado como “estava muito em cima da hora”) talvez seja omais recorrente entre aqueles utilizados pelo movimento afro-cultural de Ilhéus para justifi-car a dificuldade em lançar uma candidatura própria a vereador ou mesmo apoiar, em con-junto, um nome para a Câmara ou para a Prefeitura.21 Paulo jamais entregou essa carta aos membros do movimento afro-cultural – nem a mim.Nunca a li, mas sei que, além de reivindicar o apoio da Prefeitura para a construção de sedespara cada um dos blocos afro e para o desenvolvimento de trabalhos sociais, pedia a partici-pação do CEAC na definição das políticas culturais do município e um lugar no conselho decampanha de Jabes Ribeiro. Havia outros pontos, mas ninguém lembra quais são.22 Gerson é um técnico que se especializou em turismo, tendo trabalhado tanto no órgão daPrefeitura que cuida do assunto quanto na iniciativa privada. Possui boas relações com o movi-mento afro-cultural, tendo promovido e organizado, em diversas ocasiões, eventos dos quais par-ticiparam os blocos e demais grupos negros de Ilhéus (inclusive o Carnaval Cultural).23 Herzfeld (1996: 6-8) denomina esse tipo de processo “simulacros de socialidade” e sugere,em oposição a Baudrillard, por exemplo, que não se trata de uma simples substituição derelações sociais reais por falsas. Tratar-se-ia na verdade, do seu ponto de vista, de uma proje-ção de experiências sociais familiares sobre outras, mais afastadas e desconhecidas, engen-drando “idiomas culturais que se tornam simulacros de relações sociais” e que são ampla-mente utilizados pelo Estado em suas relações com os indivíduos.24 Da mesma forma, a manobra de afastamento das candidaturas a prefeito de GumercindoTavares e Rúbia Carvalho – efetuada, em tese, em função de interesses regionais e nacionais– transformou radicalmente não apenas as eleições de 1996 em Ilhéus como um todo, mas opapel nelas desempenhado pelos grupos negros e a relação desses grupos entre si.

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25 “Melhor esquecer esse negócio de carnaval, de bloco, de banda, porque são os projetossociais que são importantes”, disse Paulo a Marinho (Silva 1998: 135). Como adverti noPrólogo, e ao contrário da opção seguida por Silva, restaurei os nomes verdadeiros dos pro-tagonistas.26 Como disse Marinho a Paulo: “[...] será que não seria bem mais fácil trabalhar individual-mente em cada entidade com seus projetos do que fazer esse grande projeto, colocar coisasque a entidade nunca pensou em fazer? [...] Eu não sei até onde o pessoal do Dilazenze vaiaceitar abrir mão de uma coisa que pode ser realizada pelo Dilazenze; abrir mão disso parauma coisa que vai abranger outras entidades, outras comunidades. O projeto da gente vaiabranger a nossa comunidade” (Silva 1998: 129).27 Por exemplo, Paulo ouviu de um candidato não ligado ao movimento negro que, em 1992,alguns líderes desse movimento teriam recebido dinheiro para apoiar Antônio Olímpio; contoua história a Marinho, que, sendo desafeto desses mesmos líderes, repetiu-a para um deles comoprovocação, confirmando que a escutara de Paulo, junto a quem o ofendido acabou tentan-do tirar satisfações.28 Borges (2004: 35) também assinala essa multiplicidade dos sentidos da política: “essa for-ma de nomear como ‘política’ aquilo que o outro faz é muito intrigante”.29 O que corresponde, grosso modo, às já evocadas posições que Balandier (1969: 25-26)denominava, respectivamente, “maximalistas” (que, no limite, assimilam o social e o políti-co) e “minimalistas” (que se contentam em delimitar uma esfera para a política). Sobre esteponto, ver, também, Rodrigues (1992: 42-43).30 Observe-se que, após definir política como “arte de bem governar os povos” ou como “po-sição ideológica a respeito dos fins do Estado”, o décimo, e último, sentido de política forne-cido pelo Aurélio Eletrônico é justamente o de “astúcia, ardil, artifício, esperteza”. Da mes-ma forma, um “indivíduo político” é alguém “astuto, esperto”, e “estar político com” signifi-ca “estar zangado, de relações cortadas com (alguém)”.31 Ver, entre outros textos, Palmeira (1991; 1992; 1998).32 Ver Palmeira (1991: 118; 1992: 27-30; 1996: 42-47), Palmeira e Heredia (1993: 73-75,85-86; 1995: 34-36) e Heredia (1996: 57, 70; 2002: 17, 36). Observe-se que Palmeira (1996:54, nota 4) assinala que, desde 1974, Maria Auxiliadora Ferraz de Sá teria intuído esse cará-ter singular da temporalidade política. Da mesma forma, em um texto sobre as eleiçõesmunicipais de 1996 em Itabuna, o sociólogo Agenor Gasparetto (1996), da UniversidadeEstadual de Santa Cruz (UESC) – aparentemente sem conhecer o conceito de “tempo dapolítica” –, estabelecia uma distinção entre “tempo normal” e “tempo político-eleitoral”, muitosemelhante àquela proposta por Palmeira e Heredia. Isso indica apenas, creio, que se trata deum dado empírico que apenas a falta de atenção às representações nativas fez ficar ocultodurante tanto tempo.33 Para um desenvolvimento mais aprofundado desse ponto ver Silva (2004, em especial aconclusão).34 Como escreve Silva (1998: 87-88), ao longo do ano de 1997, “um dos assuntos principais”no Dilazenze era “a reforma da quadra”. O dinheiro recebido de Roland servira para parte dotrabalho, mas ainda eram necessárias várias obras complementares. Para isso, sacos de cimento

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foram doados pela “principal loja maçônica de Ilhéus”, que assim retribuía “um show que oDilazenze havia realizado para uma festa beneficente”; “aterro e pedras foram doados pelaPrefeitura por meio de um acordo com Adriana, esposa do prefeito”, que aceitou pagar umaapresentação do grupo para a Prefeitura no início do ano na forma de “cinco passagens rodo-viárias Ilhéus-Salvador-Ilhéus e uma ajuda na reforma da quadra”. As telhas de amianto quedeveriam cobrir o palco foram oferecidas, e jamais entregues, pelo vereador Gildo Pinto, pormeio de um dirigente de bloco que era seu “assessor” na Câmara – que, além disso, colocouà disposição do Dilazenze algumas outras “ajudas”. Ao saber da aproximação, Guritaprontificou-se a oferecer as telhas e o resto do auxílio, cumprindo apenas a primeira parte dapromessa.35 Herzfeld (1985: 105-106, 117) fornece uma série de exemplos desse tipo de operação emCreta; Villela e Marques (2002: 73-74, 83-84) observaram o mesmo fenômeno no sertão dePernambuco, sublinhando a existência de retóricas de “legitimação da instabilidade das leal-dades”.36 Nesse último caso, tudo parece passar-se como na descrição das operações capitalistas feitapor Deleuze e Guattari (1972: 314): “é com a coisa, o capitalismo, que o inconfessável co-meça: não há uma operação econômica ou financeira que, traduzida em termos de códigopor hipótese, não faria explodir seu caráter inconfessável”.37 Como observa Magalhães (1998: 111), as experiências e desconfianças em relação a umpolítico qualquer tendem a ser imediatamente generalizadas para todos os políticos.38 É claro que essa oposição, entre “voto” e “trabalho”, é extremamente facilitada em funçãodo fato de que os serviços eleitorais parecem um caso privilegiado do trabalho alienado: exe-cuta-se uma função específica (acenar bandeiras, por exemplo) sem a menor necessidade deconceber o processo global no qual se está envolvido.39 Borges (2004: 29) e Kuschnir (2000b: 78-79) observaram – a primeira, na periferia deBrasília; a segunda, em um subúrbio do Rio de Janeiro – como pessoas que procuram ospolíticos a fim de pedirem algo podem transformar-se, progressivamente, em simpatizantes,militantes, voluntários, funcionários e, às vezes, também em políticos.40 Eles, certamente, não faltam em Ilhéus. Candidatos chamados Alan Delon, Calçolinha ouZé do Caixão, e slogans como “Com Jabes e Zé Dentista, Ilhéus voltará a sorrir”, “Um votobem estudado, professor Felipe”, “Com todo o gás, Aracildo da Brasgás” ou “Um homem devisão” (de um candidato deficiente visual) constituem tema de conversa e motivo para diver-timento e risos.41 Se, em alguns contextos, como revelou Palmeira (1991: 125; 1996: 51), a ostentação aber-ta da preferência eleitoral pode ser uma forma de evitar o conflito (na medida em que aquelesque ostentam preferências opostas sabem que não devem abordar o assunto entre eles), emoutros, como em Ilhéus, é a não-declaração de voto que pode desempenhar essa função. Detoda forma, é essa sabedoria popular que parece, muitas vezes, ser confundida com falta declareza ou de interesse na política.42 Em 1996, o Município de Ilhéus possuía uma população de cerca de 240 mil habitantes(quase 85% da população tendo declarado ao Censo Demográfico de 1991 ser “parda” ou“preta”), dos quais 72% viviam na região urbana. O número de eleitores aptos a votar era de

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quase 99 mil pessoas, das quais pouco mais de 70 mil efetivamente votaram (configurandouma taxa de abstenção de 28,61%). O quociente eleitoral partidário para a eleição foi de3.549 votos. Jabes Ribeiro (à frente da coligação Aliança Popular, formada por PSDB, PT,PMDB, PSB e PSD) foi eleito prefeito da cidade, com 41.065 votos (ou 57,91%); e RolandLavigne (da coligação Para Quem Ama Ilhéus, formada por PFL e PPB) obteve 19.529 vo-tos (27,54%). Everaldo Valadares, do PDT, teve 2.262 votos (3,19%); Jedidá Santos, dacoligação A Esperança Resiste (PRP e PTdoB), 519 votos (0,73%); José Cosme Santos, dacoligação Aliança Democrática Popular (PPS, PMN e PCdoB), 148 votos (0,21%). Houve,ainda, 2.181 votos em branco (3,08%) e 5.204 votos nulos (7,34%).43 Ao indagar se “a raça seria um dos fatores que explicariam o voto dos eleitores”, MônicaCastro (1993: 469) acaba por concluir que sim. Ela adverte, contudo, que suas conclusõesnão são generalizáveis para todo o Brasil (Castro 1993: 487) e que a influência da raça nocomportamento eleitoral não significa necessariamente voto nos de mesma raça (idem: 484);que, além disso, “pertencer a um grupo racial pode, por exemplo, intensificar, em alguns casos,ou impedir, em outros, a manifestação de tendências dadas pela posição social” (idem: 486),o que significa que “pertencer aos grupos de cor se relaciona com o radicalismo político, masimplica também maior alienação em relação ao processo eleitoral” (idem: 485), conduzindoos votos tanto para a esquerda quanto para lideranças carismáticas (idem: 484-485). Depoisdisso, só resta repetir, com Garrigou e Lacroix (1987: 328), que as quantidades agregadasobtidas em pesquisas quantitativas só podem ter alguma utilidade se forem bem elaboradas– antes e depois de sua obtenção (ver, também, Korn 1995).44 Dez dias mais tarde, quando deixei Ilhéus, nada parecia lembrar as eleições, com exceçãodos outdoors de políticos sendo substituídos por propaganda comum. Além disso, e já nocaminho do aeroporto, apenas um bêbado comemorava ainda o resultado eleitoral, gritandoe repetindo incessantemente, sem deixar de bater palmas por um instante sequer: “JabesRibeiro ganhou as eleições, Jabes Ribeiro é o prefeito da nossa Ilhéus, viva Jabes Ribeiro, eusou Jabes Ribeiro”. Nunca entendi muito bem por que, mas esse delírio etílico-político é aúltima lembrança que guardei das eleições municipais de 1996 em Ilhéus.

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CAPÍTULO 3

1992: CENTRO AFRO-CULTURAL

A criação do Memorial da Cultura Negra de Ilhéus e a nomeação deMarinho Rodrigues como seu primeiro administrador, descritas no primeirocapítulo, estão estreitamente ligadas a toda a história do movimento negrode Ilhéus, assim como, e principalmente, às sempre complexas relações quese estabelecem entre esse movimento e o poder público local, como foi evo-cado no capítulo anterior.

Essa história do movimento negro de Ilhéus poderia, talvez, ser resumi-da – já que é apenas disso que se trata aqui, uma descrição e uma análise de-talhadas podendo ser encontradas em Silva (1998 e 2004) – em um esquemamuito semelhante ao adotado por Michel Agier (1992: 76) para dar conta doque ocorre em Salvador. Segundo esse esquema, o “mundo negro” dessa ci-dade poderia ser representado de acordo com um modelo genealógico, quefuncionaria por segmentação e que teria na pureza seu valor central (idem:76-77): “cada bloco nasce de um outro”, e “o Ilê Aiyê é [...] reconhecido comoo ancestral de todos os blocos” (idem: 61). Isso porque, fundado em 1974, oIlê, como é conhecido, é visto como tendo dado origem, por fissões sucessi-vas ou simultâneas, aos principais blocos afro de Salvador: Olodum (1979),Malê Debalê (1979), Ara Ketu (1980) e Muzenza (1981) – para ficarmosapenas nos mais conhecidos.1

Por outro lado, Agier (idem: 73-74) observa que, junto aos processos desegmentação, atuaria, também, uma “tendência federalizante”, que funcio-naria no sentido de agrupar os blocos em conselhos e associações. Princípioque também teria gerado no plano nacional, por exemplo, o MovimentoNegro Unificado (MNU), criado em 1978 para funcionar como pólo uni-ficador dos vários grupos negros existentes no país (Valente 1986: 29-30) –ambição aparentemente não realizada (idem: 40-41). É importante observarnovamente, contudo, que a “tendência federalizante” parece operar sobretu-do quando os grupos têm que se relacionar com instâncias a eles exteriores,principalmente com o Estado. Por outro lado, quando se trata das relaçõesintergrupais, o princípio de segmentação parece operar com toda força, ain-da que este ponto seja raramente enfatizado pelos analistas.

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* * *

Ora, o que é verdadeiro para Salvador não parece ser menos para Ilhéus.A genealogia de seus blocos afro organiza-se em torno de uma origem dupla.De um lado, o Lê-Guê DePá, fundado em 1981, deu origem ao Gangas(1986), que originou o Malês (1992) e o Zambi Axé (1994); este, por suavez, deu origem ao Guerreiros de Zulu (2000). De outro lado, fundado em1980, por um membro do Ilê Aiyê (o ator e bailarino negro Mário Gusmão),temos o Miny Kongo, do qual se originaram o Rastafiry (1982), o Axé Odara(1984), o Zimbabuê (1985), o Força Negra (1988) e o Leões do Reggae(1997). O Rastafiry originou o Raízes Negras (1990), que gerou o D’Logun(1992); o Axé Odara originou o Dilazenze (1986); o Zimbabuê, o Danadosdo Reggae (1990). Observe-se, igualmente, que, de acordo com alguns mili-tantes negros, às duas linhas genealógicas dos blocos afro de Ilhéus corres-pondem dois ritmos, ou batidas, distintos: o ijexá, ligado ao Lê-Guê DePá, emais característico dos afoxés, e o samba-reggae, do Miny Kongo.2

Alguns desses blocos (Lê-Guê DePá, Axé Odara, Gangas) não mais exis-tem; o Malês e o Força Negra têm uma existência intermitente; o Leões doReggae ainda não conseguiu estabelecer-se plenamente; os demais (sete ouoito, já que o Raízes Negras e o D’Logun estão constantemente se fundindoe se separando) formam o núcleo do “mundo negro” de Ilhéus, ao lado deum afoxé, alguns grupos de capoeira e duas escolas de samba, hoje pratica-mente inexistentes, mas sempre mencionadas e colocadas na origem da linhados blocos que se inicia com o Miny Kongo.3

Cada bloco possui um enraizamento territorial: quatro deles (Dilazenze,Rastafiry, Raízes Negras e D’Logun) ficam na Conquista, talvez o bairro maispopuloso de Ilhéus, situado em um morro próximo ao centro da cidade, de po-pulação pobre e ampla maioria negra; o Zambi Axé fica no Malhado, o Guer-reiros de Zulu no Alto Soledade, o Zimbabuê no Vilela (todos bairros grandese de população majoritariamente negra); o Danados do Reggae fica na NovaBrasília (enclave pobre no bairro de classe média do Pontal); e o Miny Kongofica no Oiteiro de São Sebastião (um enclave pobre no centro da cidade).

Alguns blocos possuem, também, um enraizamento familiar. O caso maisevidente é o do Dilazenze, em que quase toda a diretoria e boa parte dosmembros é da família Rodrigues. O Força Negra, contudo, também era cons-tituído, basicamente, por membros de uma mesma família e praticamentedeixou de existir quando quase todos os irmãos se tornaram evangélicos. Além

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disso, mesmo nos blocos que não são inteiramente baseados em famílias, pode-se observar a presença de grupos de parentes.

Alguns blocos estão associados a terreiros de candomblé. Novamente, ocaso mais forte é o do Dilazenze, que em certo sentido é parte do terreiroEwá Tombency Neto. O Miny Kongo, entretanto, e, em menor escala, al-guns outros grupos, também possuem suas ligações com centros de culto afro-brasileiro.

Em Ilhéus, portanto, assim como ocorreu em Salvador (Cunha 2000:351-352), boa parte dos blocos afro surgiu a partir de bases preexistentes, fatoem geral menosprezado, mas muito importante para uma compreensão maisampla do sentido desse tipo de atividade. Pois, sendo, em parte, um prolon-gamento de atividades pensadas e encenadas sobre bases familiares, territoriais,de idade ou de classe, os blocos acrescentam, criativamente, a essas dimen-sões uma orientação “étnica” ou “cultural” e, simultaneamente, tendem a fazercom que os códigos a partir dos quais se operava sejam sobrecodificados étni-ca ou culturalmente.4

É claro, como observou Rolnik, que a ausência de guetos no Brasil nãosignifica a ausência de territórios negros, desde que estes sejam entendidosno sentido de um

“[...] espaço vivido, obra coletiva construída peça a peça por um certo grupo social.Assim, ao falarmos de territórios negros, estamos contando não apenas umahistória de exclusão mas também de construção de singularidade e elaboraçãode um repertório comum [...], um devir negro, afirmação da vontade de soli-dariedade e autopreservação que fundamentava a existência de uma comuni-dade africana em terras brasileiras” (Rolnik 1989: 30).

Esses territórios não se confundem com puros espaços geográficos, cons-tituindo, antes, no sentido dado ao termo por Guattari (1989: 29), territóriosexistenciais, ou seja, o resultado de investimentos criativos que, certamente,podem estar articulados a bases espaciais, mas também a uma infinidade deoutras relações (não apenas étnicas, como de filiação, de aliança, geracionaisetc.).5 É por isso que esses territórios não são jamais exclusivamente negros.E é por isso, também, que a ‘africanidade’ que se costuma invocar para defi-ni-los não diz respeito a uma África real, imaginária ou simbólica, no sentidousual desses termos, mas a uma experiência existencial na qual “África” fun-ciona como um “ritornelo” – “um refrão que, incessantemente acionado, tra-ça um território e [...] se desenvolve em motivos territoriais, em paisagens

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territoriais” (Deleuze e Guattari 1980: 397), criando territórios existenciais eerguendo barreiras contra as forças do caos (idem: 382).

Assinalando, de passagem, que é curioso observar que esse tema tam-bém parece ser evitado nos relatos sobre os blocos de Salvador, observemosque as rupturas que dão origem aos novos blocos são atribuídas a brigas entreseus componentes, a maior parte delas ligada a problemas financeiros e/oudesentendimentos sobre a organização do bloco. Além disso, cada grupo sem-pre esteve, está – e provavelmente estará – ligado de alguma forma a um oumais políticos profissionais, que participaram de sua fundação (por exemplo,o ex-vereador Elício, em relação aos Gangas); ou que colaboraram com essafundação mesmo que para fins imediatamente eleitorais (como parece ser ocaso do ex-vereador Gildo Pinto com o D’Logun, em 1992, e de Gurita como Leões do Reggae, em 1997, e com o Guerreiros de Zulu, em 2000); ou quese aproximaram posteriormente de modo mais ou menos constante (o mes-mo Gurita, em diferentes momentos, com o Danados do Reggae, Zimbabuê,Força Negra, Zambi Axé e Guerreiros de Zulu); ou que o fazem próximo àseleições (como Gildo Pinto, em 1998, e Gurita, em 2000, ambos com oDilazenze).

É claro que, ao lado desses processos de divisão, existem exemplos da“tendência federalizante”. O principal deles, sem dúvida, são as tentativas,sempre recomeçadas, de constituir e fazer funcionar o Conselho de Entida-des Afro-Culturais de Ilhéus. A primeira versão do CEACI, como já foi dito,constituiu-se, aparentemente, entre 1989 e 1990; seu presidente, Bob Jal, doMiny Kongo, ficou apenas por cerca de seis meses no cargo, tendo sido de-posto e, desse modo, substituído por seu vice, Gilmar Rodrigues, do Dilazenze.Em 1992, quando se dizia que o Conselho estava absolutamente inativo, Aldir-cemiro Duarte Luz (Mirinho), do D’Logun, assumiu a presidência, tendoMarinho Rodrigues, do Dilazenze, como vice. Em meio a acusações de queteria usado o Conselho em benefício político próprio (como veremos), Miri-nho foi substituído por Marinho, em 1994, que tinha como vice Paulo Cesarde Menezes (Cesar), do Rastafiry; em 2001, como vimos, Marinho foi subs-tituído por Jacks Rodrigues, do D’Logun, tendo como vice Gilsoney Rodri-gues (Ney), do Dilazenze; finalmente, em 2004, Jacks Rodrigues foi reeleito,tendo como vice Marreta, do Rastafiry. E, como também já vimos, as polê-micas e indefinições em torno do Conselho continuam até hoje muito vivas.

Assim, se o princípio de segmentação parece quase soberano no que dizrespeito às relações entre os diferentes grupos, a “tendência federalizante” tende

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a surgir sempre que se trata de estabelecer conexões com instâncias exterio-res, em primeiro lugar com o Estado. Como observou Silva, em 1997 o maior“incentivador” do Conselho era mesmo o governo municipal:

“Em seu primeiro carnaval no governo (1997), o prefeito Jabes Ribeiro [...]enfatizou que a Prefeitura não mais negociaria verba para o carnaval com ne-nhum grupo em particular, pois todas as decisões seriam tomadas e todo ocarnaval seria organizado pela Fundação Cultural de Ilhéus em acordo com oConselho, definido pela Prefeitura como o único canal de contato desta comos grupos afro carnavalescos de Ilhéus” (Silva 1998: 93-94).

Na verdade, essa percepção é bastante clara para os envolvidos com omovimento afro-cultural de Ilhéus e com as tentativas de construir e recons-truir o Conselho de Entidades Afro-Culturais. Eles são quase unânimes emsustentar que o papel central do Conselho é servir de mediador entre os blo-cos e a Prefeitura, buscando assim, por um lado, aumentar um pouco o baixopoder de barganha dos primeiros e, por outro, evitar “excessos”, como, porexemplo, que “blocos fantasmas” sejam formados (ou ressuscitados) às vés-peras do carnaval com a única intenção de obter uma fatia da já reduzida verbaque a Prefeitura destina aos desfiles.

* * *

Mesmo essa brevíssima descrição permite perceber, portanto, que à ori-gem genealógica dos blocos afro de Ilhéus soma-se, de fato, a percepção desua história em termos de segmentação e de alianças laterais, assim como apossibilidade sempre aberta de fusões unificadoras. O problema é saber seestamos ou não às voltas com processos de segmentação, no sentido clássicodo termo, ou seja, aquele introduzido por Evans-Pritchard e Fortes em 1940a fim de dar conta de alguns “sistemas políticos africanos”. Ou, para ser maispreciso, trata-se de saber se a aplicação da noção de segmentaridade a fenô-menos como os blocos afro (ou como a política dita partidária, como vere-mos adiante) permite um ganho de inteligibilidade em sua compreensão.

A principal dificuldade aqui advém do fato de que, como se sabe, a no-ção de segmentaridade surgiu no pensamento antropológico nas décadas de1930 e 1940 visando dar conta de “sociedades sem Estado”. De modo muitosucinto, tratava-se da hipótese de que, na ausência do Estado, outras institui-ções desempenhariam as funções próprias a ele. Rebatia-se, assim, na sincronia,

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a célebre oposição diacrônica evolucionista, que opunha as sociedades base-adas no status àquelas centradas no contrato: entre ambas estariam situadasjustamente as “sociedades segmentares”, em que as linhagens fariam uma es-pécie de mediação entre o “sangue” e o “território”.

Ora, ao tentarem estabelecer a existência de uma forma específica deorganização que não se confundisse nem com o parentesco nem com o Esta-do, Evans-Pritchard e Fortes (1940: 5-7) acabaram por legar à teoria dasegmentaridade dois fantasmas teóricos gêmeos, dos quais, de certo modo, aantropologia jamais conseguiu se livrar: um morfologismo – já que se tratavade determinar uma forma específica de organização social (as linhagens seg-mentares) – e um tipologismo – já que essa forma de organização poderia serdistinguida de outras. Creio que, se não nos livrarmos desses fantasmas, bemcomo de alguns outros, chegaremos, inevitavelmente, à conclusão inteiramen-te negativa de Adam Kuper (1982; 1988), que, acantonando o conceito desegmentaridade na “teoria da linhagem” e limitando-o a um plano sociológi-co estrito – em que é mais facilmente criticável –, acabou por recusar atémesmo “uma defesa cautelosa do modelo. Ele é teoricamente improdutivo, eeste é o teste real” (idem: 92). Essa recusa significa, fundamentalmente, nãoaceitar a possibilidade de dissociar a noção de “oposição segmentar” da “teo-ria da linhagem” (idem: 91-92), privando-se, assim, de um importante ins-trumento analítico.6

A verdade é que não foram poucas as tentativas de exorcizar esses fantas-mas. O próprio Evans-Pritchard sempre oscilou entre enraizar a segmenta-ridade na organização social propriamente dita e fazer com que essa organi-zação dependesse de um “princípio de segmentação”, que permearia os di-versos níveis organizacionais da sociedade (Evans-Pritchard 1978: 264). Emesmo Fortes – a quem Dumont (1970: 108) censura o sociologismo estri-to) – sugeriu que a segmentaridade poderia estar baseada no que denominou“técnica de contraposição”, característica de uma certa forma de “relativismo”e de um “pensamento segmentar” (Fortes 1945: 27), ou ser a resultante daexistência de um “princípio segmentar” difuso por toda a sociedade (Fortes1953: 29).

Além disso, muitíssima tinta correu, de 1940 até hoje, em torno daquestão da segmentaridade, e não se trata aqui, nem de longe, de tentar resu-mir, muito menos resolver, esse debate.7 Trata-se, apenas, de assinalar os des-locamentos necessários, visando uma generalização legítima do conceito ou,para ser mais preciso, as transformações que facilitem a migração desse con-

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ceito.8 Para isso, creio, é preciso primeiramente recusar a falsa dicotomia en-tre ideologia e prática (ou princípio ideal e organização real, ou como se qui-ser denominar) e aceitar, com Lienhardt (1958: 106, 114), que a segmenta-ridade é, sobretudo, e no sentido forte do termo, uma “teoria política” nati-va, que serve, simultaneamente, para explicar e orientar a prática política. Nessesentido, ela informa e dá sentido à ação, sem que tenha que corresponder pontopor ponto ao que agentes e antropólogos crêem observar empiricamente (verGoldman 1999).9

Em segundo lugar, é estritamente necessário libertar o conceito de seuviés sociologizante ou culturalizante, e repetir que a segmentaridade não seconfunde com um determinado tipo de sociedade (ou mesmo com as linha-gens),10 nem constitui uma particularidade cultural qualquer (Herzfeld 1992b:66). Contudo, liberar a segmentaridade desse viés sociologizante significaigualmente liberá-la do ‘tipologismo’, da grande divisão que aprisiona o con-ceito, a oposição entre sistemas segmentares e sistemas estatais. Os segundos,na verdade, são tão segmentares quanto os primeiros (Deleuze e Guattari 1980:cap. 9; Herzfeld 1992a e 1992b), ao menos a partir do momento em quepassamos a nos interessar mais pelos processos do que pelas formas, movi-mento que permite que nos afastemos do ‘morfologismo’, o outro grandefantasma que espreita a teoria da segmentaridade.

Aconteceria, então, à segmentaridade o mesmo que ao totemismo.11

Encarada como instituição, só pode conduzir a uma ‘ilusão’, contribuindopara exotizar e exorcizar formas de vida social consideradas incompletas pornão possuírem o Estado (Herzfeld 1987: 156) – servindo, assim, por con-traste, para reforçar certa idéia de “identidade européia” (idem: 165) – e, maisdo que isso, por operarem com princípios dificilmente assimiláveis à idéia deidentidade dominante no Ocidente. Encarada como processo, ao contrário,a segmentaridade pode aparecer como fenômeno universal, o que basta paraafastar toda tentação tipológica: a segmentação “até recentemente era tratadacomo um tipo exótico em vez de um aspecto universal da vida política” (idem:158 – grifos do autor). Na verdade, a segmentação representa um dos mode-los de “relatividade social” acionados em qualquer sociedade: “a segmentaçãoé o arranjo relativo das alianças políticas de acordo com critérios genealógicos,ou outros, de distância social entre grupos em disputa” (idem: 156 – grifosmeus). É apenas a presença de uma ideologia substancialista, típica dos Esta-dos nacionais, que faz com que, em algumas sociedades, o grau de reconhe-cimento da segmentaridade seja menor do que em outras. E é a presença dessa

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ideologia no interior da reflexão antropológica que faz com que noções comoestrutura social ou mesmo organização social acabem sendo compreendidasem uma acepção puramente morfológica, não funcional ou processual. Asegmentaridade é, portanto e sobretudo, uma perspectiva – uma “visão seg-mentar do mundo”, como diz Herzfeld (1985: 116) – a partir da qual tam-bém o antropólogo deve observar a realidade social, ao menos quando real-mente deseja se ver livre de todo atomismo e de todo substancialismo. Emsuma, trata-se de reconhecer que – assim como o princípio de reciprocidadesignifica, em última instância, que dar e receber são uma e a mesma coisa – oprincípio de segmentaridade significa apenas que oposição e composiçãoformam sempre uma totalidade indecomponível.12

No caso dos blocos afro (e o dos terreiros de candomblé seria semelhan-te13), o problema central é saber se as segmentações que os recortam são real-mente fenômenos de ordem processual ou puramente morfológica, para usaruma distinção capital introduzida por Middleton e Tait (1958: 7-8). Do se-gundo ponto de vista, a separação dos grupos (que os autores propõem de-nominar “fissão”) significa apenas que uma unidade se converte em duas oumais; do ponto de vista processual, entretanto, essa separação (ou “segmen-tação” propriamente dita) corresponde a um processo reversível, e o que éapenas um grupo em determinado nível segmentar se divide em dois em outronível, sem deixar de ser um no anterior.14 É nesse sentido que a noção desegmentaridade, tal qual proposta por Evans-Pritchard e Fortes – não impor-tando o que eles mesmos digam a respeito (Fortes 1945: XII) –, não deve serconfundida com a noção durkheimiana de sociedade segmentar, queMiddleton e Tait (1958: 8, nota 1) propõem denominar “segmental”. Nestecaso, trata-se de uma concepção puramente morfológica, a mera justaposi-ção de segmentos equivalentes, sem nenhuma referência ao processo funcio-nal de sua reunião e separação relativas e contínuas. Finalmente, é importan-te observar que a distinção estabelecida entre fissão e segmentação, no planodas separações, não é acompanhada por uma distinção equivalente, a ser efe-tuada no plano das reuniões. Não obstante, é claro que a associação definiti-va de dois ou mais grupos para constituir um único (o que poderíamos, tal-vez, denominar ‘fusão’) é tão distinta da agregação segmentar, sempre relati-va, contextual e reversível, quanto a fissão o é da segmentação.

Ora, por si só, o fato irrefutável de que “cada bloco nasce de um outro”(ou de que cada terreiro nasce de um outro) prova apenas a existência de umamorfologia “segmental”, constituída por fissões sucessivas ao longo do tem-

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po. Por outro lado, o fato, também irrefutável, de que dois terreiros de can-domblé, originários de um mesmo terreiro ancestral, tendam a se sentir maispróximos entre si do que de outros terreiros, ou de que o conjunto dos terrei-ros de nação angola tenda a se opor ao conjunto dos terreiros ketu e ao con-junto dos terreiros gêge (constituindo, não obstante, e em outro plano, umacerta unidade – o mundo do candomblé, mais próximo da umbanda do quedo catolicismo, mais próximo deste do que do protestantismo, e assim pordiante), revela a existência de uma estrutura propriamente segmentar, no sen-tido processual do termo.

É evidente, por outro lado, que esses sentimentos de proximidade e dis-tância estruturais não funcionam aqui como entre os Dinka. No entanto,Lienhardt já observara que, entre estes, tais sentimentos não funcionam comoentre os Nuer. Os Dinka, escreve ele,

“[...] pensam em termos de associação de linhagens, ligadas umas às outras devárias maneiras, enquanto para os Nuer um único princípio agnático é sufi-ciente para explicar qualquer identificação política significativa da linhagemcom a segmentação territorial” (Lienhardt 1958: 128 – grifos meus).

Tudo se passa, na verdade, como se fosse preciso, digamos, ‘desnuerizar’a segmentaridade. Pois parece ser o modelo nuer que faz com que os antro-pólogos só percebam a forma piramidal da estrutura segmentar – forma que,nos termos de Deleuze e Guattari, poderia ser denominada “arborescente”.As linhagens dinka, ao contrário, apresentam um aspecto muito diferente,aproximando-se do que esses mesmos autores denominam “rizomática” (verDeleuze e Guattari 1980, em especial a “Introdução: Rizoma”).15 A segmentaçãonão pode, assim, ser oposta em bloco ao Estado, não apenas porque o Estadoestá por ela permeado, como também porque existem modalidades distintasde segmentação – e isso mesmo nas chamadas “sociedades segmentares”.16

No caso dos blocos afro, a segmentaridade tampouco funciona exata-mente como nos terreiros, e entre eles (os blocos) as propriedades rizomáticasparecem ser ainda mais fortes. Isso porque, por um lado, não existe nenhu-ma noção de uma substância mística comum ligando os blocos de uma mes-ma linhagem entre si. Assim, se alguns terreiros de candomblé, oriundos deum mesmo terreiro ancestral, sustentam provir de uma mesma “raiz” ou domesmo “axé”, nada de semelhante parece ocorrer com os blocos. Além disso,a rivalidade que os terreiros inegavelmente mantêm entre si é, de alguma for-ma, dissimulada sob uma linguagem de fraternidade e união, enquanto os

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blocos existem para competir uns contra os outros, o que faz com que os prin-cípios de divisão pareçam muito mais ativos do que os de reunião. Estes exis-tem, contudo, e, como entre os Dinka, manifestam-se “de várias maneiras”.

Talvez seja preciso aqui, conseqüentemente, seguir ainda Deleuze eGuattari (idem: 254), distinguindo pelo menos três modalidades de segmenta-ridade: “binárias” (de gênero, classe, idade: assim, em Ilhéus, a distinção en-tre brancos e negros, por exemplo); “circulares” (do indivíduo à humanida-de: o bairro da Conquista, a cidade de Ilhéus, a região do cacau, a Bahia, oBrasil etc.) e “lineares” (ligadas a atividades, “processos” ou “episódios”,concomitantes ou sucessivos: a família, o candomblé, o bloco, o trabalho etc.).Ora, um bloco como o Dilazenze pode reunir-se a outras unidades da mes-ma natureza, na medida em que todos são blocos afro. Pode se reunir, tam-bém, a uma organização de outra natureza – uma associação de moradores,por exemplo – uma vez que esta se situe, como o grupo, no bairro da Con-quista ou, melhor ainda, no setor deste bairro denominado Carilos. Ou podearticular-se com outras formas de organização: um terreiro (o Tombency) ouuma família (os Rodrigues), já que estes são próximos ao bloco. Se, no pri-meiro caso, temos uma segmentaridade genealógica e binária (aquela com aqual estamos mais acostumados a lidar), no segundo, estamos às voltas comprincípios territoriais e circulares, e, no terceiro, com uma segmentaridadeinstitucional e linear. Em outras palavras, alguns blocos podem reunir-se,‘genealogicamente’, a fim de opor-se a outros, ou todos os blocos podem reu-nir-se para negociar com a Prefeitura, por exemplo (e é isso que Agier deno-mina “tendência federalizante”); um ou mais blocos podem se articular‘territorialmente’ com outras organizações para se opor a blocos ou organiza-ções ligados a outros territórios; ou podem se aproximar ‘institucionalmente’de outras organizações a fim de se opor a outros blocos ou organizações hete-rogêneos (ponto que será crucial quando reencontrarmos, adiante, o princí-pio de segmentaridade, mas dessa vez em funcionamento no interior da po-lítica de Ilhéus).

* * *

Se a criação do Memorial da Cultura Negra e a nomeação de seu admi-nistrador fazem parte da história do movimento negro e da política de Ilhéus,seus personagens principais são, ao mesmo tempo, protagonistas e produtosdessas histórias. Marinho Rodrigues, como vimos, está envolvido com o

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movimento afro-cultural desde o seu começo. Já no início dos anos 1980,por volta de seus 14 anos de idade, acompanhava sua mãe e seus irmãos maisvelhos ao Miny Kongo, Lê-Guê DePá e Axé Odara; em 1986, após desen-tendimentos nesse último bloco, fundou, com alguns de seus irmãos, o Dila-zenze, do qual é presidente desde então. Foi vice-presidente da segunda dire-toria do CEAC, presidente da diretoria seguinte, primeiro administrador doMemorial da Cultura Negra de Ilhéus e, provavelmente, o nome mais conhe-cido do movimento afro-cultural de Ilhéus, tendo mesmo mantido, em 2003,uma coluna semanal em um dos jornais da cidade. Jabes Ribeiro, por sua vez,está ligado a um processo histórico, o da política local, aparentemente muitodiferente daquele relacionado aos blocos afro, mas que, em certo sentido,guarda com ele semelhanças algo surpreendentes (e às quais voltarei). Por outrolado, é claro que, além de estarem estreitamente relacionados entre si, essesdois processos estão de alguma forma enraizados em um ‘contexto histórico’mais amplo e de duração bem mais longa. É aqui, entretanto, que surgemalguns problemas de difícil solução, já que, do ponto de vista de um antropó-logo, digamos, radical, a noção de ‘contexto histórico’ pode não ser tão evi-dente quanto parece.

Como observou Richard Handler (1988: 18-19), o que se denomina emgeral “conhecimento histórico” – ou mesmo o que se considera descriçõesobjetivas de determinados contextos – consiste, na maior parte dos casos, emum conjunto de práticas objetivantes que procuram impor interpretaçõescomo se fossem fatos supostamente objetivos e indiscutíveis. O que significaque, perante a história, a posição do antropólogo deveria consistir ou na abs-tenção de qualquer tentativa de descrição de um suposto background histó-rico e/ou geográfico antecedendo a trama que pretende analisar – evitandoassim recorrer, como aconselha Handler (idem: 70), a falsos “panos de fundocomo prelúdio de algum tipo de análise sincrônica” –, ou na incorporaçãodas diferentes descrições e interpretações à análise, uma vez que os ‘contex-tos’ locais ou temporais fazem parte dessas tramas e só deveriam aparecer in-tegrados a elas.

No caso de Ilhéus, por exemplo, diversos tipos de trabalhos históricospodem ser encontrados: umas duas dezenas de textos propriamente acadê-micos, escritos a partir da década de 1950 (e que, como podemos facilmenteadivinhar, não concordam inteiramente entre si); cerca de uma dezena de tra-balhos encomendados ou patrocinados pela Comissão Executiva do Planoda Lavoura Cacaueira (Ceplac) entre as décadas de 1970 e 1990; mais de trinta

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trabalhos escritos por habitantes de Ilhéus e da região, incluindo memórias,crônicas, genealogias familiares, guias turísticos etc.; e, também, mais de duasdezenas de romances, a maior parte deles escrita por dois dos maiores escrito-res brasileiros contemporâneos, Jorge Amado e Adonias Filho, ambos natu-rais e com vínculos na região cacaueira.17

Como se pode imaginar, não é apenas o estilo, mas o próprio conteúdodas narrativas que varia enormemente de gênero para gênero e, mesmo, delivro para livro. O que seria, então, o conhecimento histórico sobre Ilhéus;ou o contexto histórico de uma investigação etnográfica lá empreendida? Umahistória narrada na chave do desbravamento “democrático” das terras virgens,efetuado por selfmade men, como propõe Adonias Filho? A revelação do pas-sado escravagista local – negado ou recalcado por quase todos os cronistaslocais, e mesmo por diversos historiadores profissionais –, efetuada pelo mi-nucioso trabalho da historiadora norte-americana Mary Ann Mahony? Ouinformações do tipo daquela fornecida, em 1999, à mesma autora, segundoa qual “o cacau veio da África para a Bahia, trazido por homens e mulheresque haviam sido vendidos como escravos, de acordo com uma tradição oraldos trabalhadores rurais do Distrito de Almada, em Ilhéus, Bahia” (Mahony2001a: 95)?

É claro que, como Mahony, acredito que “essa tradição não coincide comqualquer evidência documental sobre a introdução do cacau no sul da Bahia”(ibidem), e que o fruto é realmente originário do México, trazido para o Bra-sil no século XVII, e para a Bahia no XVIII, por europeus. Não é disso, con-tudo, que se trata. Trata-se, sim, da possibilidade de captar essa história notrabalho de campo e de integrá-la à narrativa. E aqui os resultados são algodecepcionantes. Os militantes do movimento negro de Ilhéus, assim comoos adeptos do candomblé, parecem dedicar pouca, ou nenhuma, atenção aosprocessos históricos de mais longa duração, ainda que estejam interessa-díssimos e conheçam bastante bem os de curta duração, em especial os queenvolvem seus grupos e terreiros, por exemplo. Evoca-se, vez por outra, o“individualismo” da cultura do cacau para explicar dificuldades de organiza-ção ou de obtenção de ajuda; fala-se também, de vez em quando, nas origensescravocratas da riqueza local; mas raramente se passa disso. As elites locais,por outro lado, parecem muito interessadas na história, mas naquela de quesuas famílias ou classes teriam sido protagonistas.

Nesse sentido, a própria trajetória do trabalho de Mahony é ilustrativa.Tendo começado a pesquisar a região do cacau no final da década de 1980,

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deparou-se com uma versão dominante da história local, que sustentava quea economia cacaueira estaria baseada na pequena propriedade e no trabalhodos proprietários, quase sem a intervenção da mão-de-obra escrava – o queconstituiria um padrão muito singular não apenas em relação à economiaaçucareira do Recôncavo Baiano, mas perante a economia colonial e imperialbrasileira como um todo. Mahony surpreendeu-se não só com o fato de ospoucos cronistas e historiadores que sustentavam uma visão distinta simples-mente não serem ouvidos, mas, principalmente, com o de que a evidênciadocumental não deixava dúvidas sobre a existência e o caráter fundamentalda escravidão na produção cacaueira, o que conferia à versão dominante umacompleta inverossimilhança histórica. Entretanto, após uma apresentação desuas teses na Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), obteve não ape-nas a aprovação dos acadêmicos locais, como foi entrevistada pela rede localde televisão, passando a ser abordada, nos dias seguintes, por diversas pessoasque, encontrando-a nas ruas da cidade, diziam conhecer histórias de escravos(Mahony 2001b).18

Ainda que Mahony e eu acreditemos que sua versão da história é a ver-dadeira, um antropólogo não poderia deixar de lembrar que, há muito tem-po, Lévi-Strauss (1955; 1962) revelou que a distinção entre história e mito émuito menos nítida do que imaginamos ou gostaríamos. É nesse sentido queestou convencido de que a melhor abordagem antropológica sobre a históriade Ilhéus deveria proceder de uma investigação de todas as narrativas encon-tradas (de todas as “versões” da história de Ilhéus, diria certamente Lévi-Strauss), efetuada com o auxílio do mesmo método elaborado por esse autorpara a análise dos mitos. Encontraríamos, desse modo, certamente, a série deoposições em torno das quais a história local parece ser construída, compre-endida e instrumentalizada: entre um passado selvagem e pobre e um presentecivilizado e rico; entre outro passado, glorioso, e um presente algo medíocre;entre a região, por um lado, e o Estado, o país e o mundo, por outro; entre anatureza pródiga, mas difícil e inóspita, e a cultura; e assim sucessivamente.19

Não se trata aqui, contudo, de desenvolver esses pontos ou de empreen-der esse exercício. Apesar disso, ao contrário de Handler (que remete os lei-tores interessados na história do Quebec aos livros dos historiadores profissi-onais), e sendo parcialmente sensível a algumas críticas,20 fornecerei uma brevedescrição da região e da história de Ilhéus. Trata-se de uma descrição mais oumenos superficial e, eu arriscaria dizer, fenomenológica, no sentido de que écom ela que nos deparamos imediatamente ao chegar à cidade e de que sus-

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penderei qualquer juízo a respeito de sua possível verdade objetiva. Trata-seapenas aqui, por um lado, de fornecer ao leitor os elementos que inevitavel-mente intervêm na análise propriamente etnográfica e antropológica queconstitui o objetivo deste trabalho; por outro, trata-se de reconhecer que, seum ‘contexto’ existe, ele só pode, ou só deve, ser apreendido por um antro-pólogo do ponto de vista de seus informantes, o que faz com que a histórialocal – e mesmo “Ilhéus” – sejam, fundamentalmente, o que se convencionoudesignar categorias nativas.

Nesse sentido, eu começaria pelo presente, dizendo que, situado na cos-ta sul do Estado da Bahia, a cerca de 400 km da capital Salvador, o Municí-pio de Ilhéus, ocupando uma área de aproximadamente 1.800 km2, possuía,em 2000, uma população de pouco mais de 220 mil habitantes, dos quaismais de 70% vivem na região urbana.21 O número de eleitores aptos a votarnas eleições municipais de 2000 foi de quase 105 mil pessoas, das quais ape-nas cerca de 80 mil efetivamente votaram.22 Nos últimos vinte e cinco anos,a população aumentou em cerca de 70 mil habitantes; o número de favelas,com a ocupação da periferia da cidade e de áreas como manguezais, praias emorros, cresceu muito; os índices de violência apresentam uma curva ascen-dente. Em um artigo de página inteira, o jornal local A Região (23/7/2000, p.3) sustenta que, em uma população de aproximadamente 1,2 milhão de ha-bitantes, haveria cerca de 250 mil desempregados na região cacaueira. E,mesmo na ausência de dados oficiais a respeito dessas taxas de desemprego,basta andar pela cidade para adivinhar que devem ser altíssimas.

Se realizarmos um pequeno esforço de desnaturalização e estranhamen-to das percepções cotidianas a que estamos tão acostumados, podemos per-ceber que a paisagem sociológica de Ilhéus não deixa de ser fenomeno-logicamente curiosa, ainda que nada incomum no caso brasileiro, em geral, eno baiano, em particular. Uma reduzidíssima elite (dotada, hoje, de recursoseconômicos bem limitados) “branca” – na verdade “branqueada”, como su-geriu, para Salvador, Risério (1981: passim) – convive com uma esmagadoramaioria negra, que habita principalmente a periferia e os morros da cidade.23

Nada muito diferente, é claro, do que ocorre na maior parte do Brasil e, emespecial, na Bahia. Contudo, no caso de Ilhéus, seria preciso observar aindaque, ao contrário do que parece ocorrer em Salvador, a população negra dacidade, bem como sua “cultura” (termo nativo que engloba da culinária aocandomblé, passando pela roupa, música, festas, carnaval etc.), jamais foramincorporadas à imagem oficial ou turística da cidade. Salvador tornou-se quase

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sinônimo de Bahia, e isso faz com que a menção desse último nome evoquemetonimicamente as imagens consagradas pelo primeiro. No entanto, se an-dar pelas ruas de Ilhéus e de Salvador pode suscitar experiências sensoriaismuito semelhantes, isso não significa que estas se articulem da mesma formacom as imagens projetadas para fora por cada uma dessas cidades.

Ilhéus é, em geral, apresentada e representada por meio da apropriaçõesdos livros de Jorge Amado;24 terreiros de candomblé e blocos afro não cons-tam de folhetos turísticos;25 dois carnavais, como vimos, costumam ser reali-zados: um “antecipado” (voltado para fora e que exclui a participação dosgrupos negros) e outro “cultural” (que, embora permita essa participação, éfundamentalmente voltado para dentro da própria cidade);26 e assim por di-ante. Isso não quer dizer, é claro, que Salvador seja objetivamente mais ne-gra, tolerante ou multirracial que Ilhéus; significa apenas que a retórica datotalidade (ou ‘baianidade’, neste caso) incorpora, em Salvador, o que se de-fine como cultura negra, e, em Ilhéus, não.27 Mas isso não significa tampoucouma ausência de efeitos reais. Se quase 85% da população de Ilhéus declarouao Censo Demográfico de 1991 ser negra (ou seja, “pretos” + “pardos”, se-gundo as categorias usadas no Censo), apenas 7,63% declarou cor “preta”. Jáem Salvador (onde a porcentagem de negros é menor que 79%), 14,6% de-clarou cor “preta”. Ao contrário do que se costuma imaginar, Censos não sãoinstrumentos neutros e objetivos. O mesmo Censo de 1991 revelava, porexemplo, que, em Ilhéus, existiriam apenas 151 adeptos do candomblé e daumbanda. Só o Tombency possui mais fiéis do que isso, e, como se sabe, osadeptos do candomblé não vêem nenhuma contradição em também se iden-tificarem como católicos. Nesse sentido, Harris et alii (1993) aplicaram, emuma pequena cidade baiana, o mesmo questionário usado pelo Instituto Bra-sileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apenas modificando a cor “parda”por “morena” (termo que, ao contrário do primeiro, é efetivamente utilizadona experiência social). O resultado é que tanto o número de brancos quantoo de pretos diminuiu em benefício da nova categoria. Ao exigirem definiçõesunívocas daquilo que pode ser objeto de identificações e negociações múlti-plas, e ao empregarem categorias muito afastadas da experiência, os Censos,como adverte Herzfeld (1996: 82-83), são importantes mecanismos deliteralização das categorias muitos mais fluidas e segmentares que constitu-em a realidade social. Eles tendem, assim, a ser mais performáticos do quedescritivos, na medida em que seus efeitos reificadores atuam por meio daspolíticas governamentais e não governamentais que informam.28

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Nesse contexto, e ainda de um ponto de vista meramente fenomenoló-gico, um observador de outro planeta certamente ficaria surpreso com o fatode a reduzida elite branqueada de Ilhéus ter tido tanto sucesso em manter ocontrole de praticamente todos os setores da vida da cidade nos últimos doisséculos, controle que envolve os mecanismos de exercício do poder que tor-nam a dominação possível e sobre os quais é preciso refletir.

Finalmente, observemos que tanto esse panorama ligeiramente descon-certante quanto essa dominação, que só não causa tanta estranheza porqueestamos a ela acostumados, parecem adquirir certa coerência quando incor-porados nas narrativas históricas que buscam dar sentido ao presente. Nelas,podemos aprender que, desde o século XVI, a região de Ilhéus foi palco deinúmeras tentativas de ocupação, com a exploração de madeira e o estabele-cimento de engenhos de açúcar; que, em 1535, foi estabelecida a CapitaniaHereditária de São Jorge dos Ilhéus (transformada em vila trinta anos maistarde) e diversas dificuldades levaram à interrupção de todos os projetos decolonização, culminando no despovoamento da capitania e no abandono doprojeto inicial. A partir do início do século XIX, essa colonização é retoma-da, especialmente por meio do estabelecimento de colônias de imigrantesestrangeiros, as quais, em grande parte, fracassaram. A introdução da lavourado cacau, na segunda metade do século XIX, permitiu a retomada e o sucessodos projetos de ocupação da região, mas é apenas em 1881 que a vila é eleva-da à condição de cidade, momento em que, em geral, é retomada a narrativada história oficial de Ilhéus, após um silêncio de quase três séculos. Sustenta-se, então, que, após o período de lutas pela terra (no final do século XIX einício do XX), estabelece-se uma aristocracia proprietária das principais re-servas de cacau, característica de um sistema socioeconômico que teve seuapogeu na década de 1920, e o início de sua desintegração na década de 1980,com o que ficou conhecido como “crise do cacau”.

Por outro lado, se, no início do século XIX, a região ainda era escassa-mente povoada, a presença relativa de uma população de ascendência africa-na já era notável: cerca de um quarto dos 2.400 habitantes eram escravos(Mahony 1998: 92). A expansão econômica da segunda metade do séculofez com que, em cerca de cinqüenta anos, a população dobrasse. Ao mesmotempo, como atesta o Censo de 1872, 71% dos habitantes podiam ser classi-ficados como “pretos” ou “pardos”, percentual que, em 1890, atingiu a faixade 75% (idem: 93). Com a maciça migração interna suscitada pelo apogeuda cultura cacaueira, esses números permaneceram em constante expansão,

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o que, ao menos em parte, explica os índices atuais: quase 85% da populaçãode Ilhéus declarou ao Censo Demográfico de 1991 ser “parda” ou “preta” (emSalvador, a porcentagem é de 78%; na Bahia, 79%; e no Brasil, 47,5%).

Por outro lado, por meio de um complexo processo de exclusão e expro-priação da população negra (ver Mahony 1998), esse padrão de desenvolvi-mento produziu uma elite local que, dada a natureza quase exclusiva de suaatividade econômica, ficou conhecida como sendo formada pelos “coronéisdo cacau”. Essa elite tende a considerar-se – e a ser considerada pelos outrossegmentos da população – branca, e sua hegemonia não parece ter sido mui-to abalada nem mesmo pela crise do cacau e nem pelas conseqüentes tentati-vas de desenvolvimento de atividades econômicas alternativas, como a indús-tria eletrônica e o turismo.

Ora, bem de acordo com esse padrão de desenvolvimento socioeco-nômico, a política em Ilhéus sempre tendeu a ser comandada por essa elite:as poucas famílias que, durante mais de um século, dominaram economica-mente o município, e nele também exerceram, direta ou indiretamente, opoder político. Assim, até 1976, dos 24 intendentes e prefeitos de Ilhéus, 18podem ser encontrados entre os principais fazendeiros e comerciantes locais.29

Nesse sentido, a hipótese de Garcez e Freitas (1979: 79) de que a elitecacaueira “sempre foi descrente ou preferiu caminhos menos tortuosos do queos próprios partidos políticos” (como o controle de organismos regionais,como a Ceplac e outros) não pode ser entendida ao pé da letra. Os mesmosautores, aliás, lembrando que, até a década de 1960, a expressão “bancada docacau” era de uso corrente, sugerem que o que existia era uma espécie de di-visão do trabalho político dentro do que denominam “burguesia cacaueira”ou “elite do cacau” (idem: 78-79): os produtores atuariam na política parti-dária, os comerciantes nos organismos regionais (idem: 82). O cacau parece,então, funcionar como uma espécie de dispositivo, produtor da certeza deque não apenas os interesses de produtores e comerciantes são os mesmos,mas que estes são compartilhados pelos trabalhadores (idem: 83-84). Dessaforma, é evidente que a elite cacaueira também era capaz de exercer o poderpor meio de representantes, eventualmente oriundos de outras classes, desdeque defendessem esse “interesse comum”. Portanto, o que Garcez e Freitas(idem: 102) consideram abandono do campo político-partidário pela elitecacaueira na década de 1960 deve ser pensado como uma simples mudançana forma de controlar o poder municipal.

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* * *

As eleições municipais de 1976 foram realizadas nos quadros do biparti-darismo imposto pelo regime militar. Em Ilhéus, o padrão tradicional de vi-tória de um nome ligado à elite cacaueira, em sentido amplo, mais uma vezrepetiu-se: Antônio Olímpio Rehem da Silva, à frente de uma das duassublegendas do antigo Movimento Democrático Brasileiro (MDB), venceuas eleições contra Herval Soledade, candidato da mais votada das trêssublegendas da Aliança Renovadora Nacional (Arena). Soledade já havia sidoprefeito da cidade em duas ocasiões, entre 1955 e 1959, e entre 1963 e 1967,quando foi preso pelo regime militar sob acusações de corrupção das quaisfoi absolvido (Vinháes 2001: 132-133). Antônio Olímpio era filho de umfazendeiro que, tendo chegado pobre na região, teria enriquecido com o ca-cau e casado com uma mulher de uma família mais tradicional – o que tam-bém constituiu um padrão algo recorrente (ver Ribeiro 2001).

Soledade obteve 8.832 votos, ou 36,55% do total, aos quais se soma-ram os 1.261 das duas outras sublegendas, o que conferiu à Arena 10.093votos, ou 41,77% do total. Votos insuficientes, portanto, para derrotar a somadaqueles obtidos por Antônio Olímpio (9.580 ou 39,64% do total) e porJorge Viana (4.492 ou 18,59% do total), que conferiram ao MDB 14.072votos ou 58,23% do total. Muito menos atenção foi concedida, na época, aofato de que, em uma das sublegendas do MDB, encabeçada por Jorge Viana,aparecia como candidato a vice-prefeito um jovem político, de apenas 23 anosde idade, chamado Jabes Ribeiro. Filho de um motorista, ele dificilmente seadequava ao perfil histórico dos principais políticos locais; estudante de di-reito, ocupou a sublegenda em função da própria natureza do dispositivo, como qual o sistema bipartidário de então visava tanto acomodar forças partidá-rias minoritárias quanto atrair votos de diferentes proveniências.

Uma vez eleita a chapa de Antônio Olímpio, procedeu-se, como sem-pre, à divisão dos cargos municipais, cabendo a Jabes Ribeiro, também pro-fessor de física e química, a Secretaria Municipal de Educação. Em 1982,Antônio Olímpio desincompatibilizou-se a fim de concorrer, sem sucesso, auma cadeira na Assembléia Legislativa. O vice-prefeito, Jaziel Martins, assu-miu e apoiou o nome de Jabes para a Prefeitura nas eleições de 1982. Comuma campanha centrada em temas como “mudança”, “renovação” e “povo”,Jabes, com apenas 29 anos e vinculado ao chamado MDB “autêntico”, ven-ceu as eleições com uma ampla margem de votos, derrotando um candidato

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ligado às famílias mais tradicionais da cidade, que consideraram, na época, aeleição um verdadeiro desastre. Diagnóstico que se agravou com as primeirasmedidas de um governo auto-intitulado “Governo Popular”, como a criaçãode um Conselho Comunitário, obras nos bairros periféricos, apoio à culturapopular etc.

Em 1986, mesmo em meio aos problemas econômicos provenientes da“crise do cacau” e enfrentando denúncias de corrupção de alguns de seus as-sessores mais próximos, Jabes lançou a candidatura de João Lírio, secretáriode finanças de sua administração, à Assembléia Legislativa. Lírio foi eleitodeputado estadual, o que lhe conferiu cacife político para ser lançado, peloprefeito, como candidato à sua sucessão em 1988. Vitorioso, Lírio assumiu aPrefeitura (tendo como vice Jaziel Martins, o mesmo político que lançara Jabesa prefeito em 1982), enquanto Jabes foi nomeado para a Secretaria Estadualdo Trabalho no governo Waldir Pires. Em 1989, Jabes apoiou a candidaturade Luiz Inácio Lula da Silva no segundo turno das eleições presidenciais e,em 1990, deixou o PMDB para ingressar no PSDB e concorrer a uma cadei-ra na Câmara Federal, conseguindo se eleger a partir de maciça votação obti-da em Ilhéus.

Com mandato até 1994, compreende-se que Jabes, aparentemente, nãopretendesse concorrer mais uma vez à sucessão municipal: se eleito, teria queabrir mão de dois anos na Câmara, e, se derrotado, sofreria um desgaste emsua imagem de político vitorioso. Em 1991, lançou, assim, a candidatura deseu irmão, Joabes Ribeiro, à Prefeitura de Ilhéus. No entanto, quando aspesquisas de opinião começaram a indicar que Joabes não venceria o pleito,Jabes foi se aproximando da candidatura até decidir concorrer a mais ummandato de prefeito – decisão anunciada em página inteira pelo semanárioregional Agora (20-26/6/1992, p. 9). Após sua derrota, já em 30 de maio de1994, ele declararia ao jornal A Região que não pretendia concorrer à reelei-ção para deputado federal porque, em Brasília, costumava “conviver em al-guns momentos com um sentimento de vazio como um dos membros daCâmara dos Deputados”. Ao mesmo tempo, o jornal sustentava que

“[...] outro fato que levou Jabes Ribeiro a desistir de sua reeleição – mesmoliderando todas as pesquisas de intenção de voto no município de Ilhéus, nacasa dos 48% do eleitorado local – foi o rumo equivocado do seu partido, se-gundo informou, no plano nacional. ‘A aliança do PSDB com o PFL não éuma combinação, é uma mistura’, ironizou, acrescentando que trata-se de umgrande equívoco e, portanto, fadado ao fracasso. ‘Não podem dar certo posi-

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ções tão antagônicas como a social-democracia com o liberalismo’, explicou”(A Região 30/5/1994, p. 11).

Por outro lado, após a vitória de Jabes em 1982, e de sua derrota para aAssembléia Legislativa no mesmo ano, Antônio Olímpio afastou-se do anti-go MDB e iniciou um movimento de aproximação com o grupo político li-derado por Antônio Carlos Magalhães, que logo fundaria o Partido da Fren-te Liberal (PFL). E foi por este partido que se lançou candidato à Prefeiturade Ilhéus em 1992, em eleições municipais que acabaram, assim, colocandoem oposição direta dois antigos quase aliados. Aproveitando a avaliação ne-gativa do governo João Lírio, o governo estadual investiu direta e pesadamentenas eleições de Ilhéus, apoiando o nome de Antônio Olímpio. Essa operaçãofoi montada a partir do “compromisso” de transformar o Município de Ilhéusem uma Zona de Processamento de Exportações (ZPE), o que deveria gerar“mais de 10 mil empregos” – possibilidade muito atraente em um contextode taxas de desemprego crescentes em função da conjuntura nacional e da“crise do cacau”, no plano local. Finalmente, no dia 3 de outubro de 1992,após uma campanha em que, a partir do início de 1992, sempre esteve nafrente de todas as pesquisas, Antônio Olímpio, que comandava a coligaçãoSalve Ilhéus (reunindo, além do PFL, seu partido, o PTB, o PSL e o PRN),foi eleito, pela segunda vez, prefeito de Ilhéus, com 29.024 votos (45% dosvotos) contra 20.608 (32%) de Jabes Ribeiro, do PSDB; e 5.295 (8%) deRuy Carvalho, candidato da Frente Ilhéus, ou Frente Progressista, que reu-nia partidos de esquerda (PSB – partido do candidato –, PT, PCdoB e PPS).Houve, ainda, 6.802 votos em branco (10,5%), 2.602 nulos (4%) e quase25% de abstenções.

De fato, até hoje os ilheenses são razoavelmente unânimes em sustentarque o que consideravam um mau governo de João Lírio, aliado à possibilida-de de criação da ZPE com seus 10 mil empregos, esteve entre os principaisfatores que determinaram o resultado da eleição de 1992. Mas eles são tam-bém quase unânimes em considerar que o segundo governo de AntônioOlímpio teria sido infinitamente pior que o de seu antecessor, a ponto de, nofinal do seu mandato, o prefeito não poder sequer sair de casa e aparecer empúblico com medo de ser “apedrejado pelo povo”. O não-cumprimento daspromessas eleitorais (especialmente a não-criação da ZPE30), a deterioraçãofísica e a sujeira da cidade, assim como a suposta corrupção na Prefeitura se-riam as causas dessa maciça rejeição, que acabou fazendo com que AntônioOlímpio permanecesse quase à margem de seu próprio processo sucessório

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em 1996. Isso porque alternância no poder, preconizada pelo sistema demo-crático, parece ser causa e conseqüência de um estranho silogismo: se o pre-feito atual é pior que o anterior, isso significa que o prefeito anterior, por piorque se achasse que ele era, é bom.

Boa parte das informações fornecidas até agora provém do sério traba-lho de pesquisa desenvolvido por Agenor Gasparetto na região do cacau. Aosíndices de reprovação da administração João Lírio e às promessas do governoestadual, Gasparetto (1993: 33-35) acrescenta ainda, entre os fatores que te-riam levado à vitória de Antônio Olímpio em 1992, o não-estabelecimento,por parte de Jabes Ribeiro, de uma aliança com as esquerdas31 – que, comovimos, obtiveram mais de 5 mil votos, enquanto a diferença entre Jabes eAntônio Olímpio foi de quase 8.500 votos. O curioso é que, ao contrário dahistória contada pelos militantes do movimento negro (à qual me dedicarei aseguir), a interpretação de Gasparetto não faz qualquer menção a uma possí-vel participação desse movimento no processo eleitoral, não mencionandosequer o nome do candidato a vice-prefeito na chapa de Antônio Olímpio,Ronaldo Santana, que, como veremos, além de ser negro, desempenhou umpapel central na atração do movimento afro-cultural para a campanha.Gasparetto deixa ainda de ressaltar o fato de o candidato a vice-prefeito nachapa de Jabes Ribeiro também ser negro. Tampouco a notícia que se seguiaà manchete da edição de 23/6/1992 do Diário da Tarde, que anunciava as“convenções partidárias para escolha de candidatos”, fazia menção ao fato deo “líder sindical” Ronaldo Santana e o “ex-vereador” João Batista Soares LopesNeto32 serem negros.

Aparentemente, trata-se aqui, por um lado, de uma propriedade das nar-rativas locais, muito bem isolada por Michael Herzfeld (1992b: 64) no con-texto grego, a saber, o fato de que as variações nas narrativas (assim como as“variantes textuais”) podem ser o efeito do trabalho de princípios de segmen-tação, que, longe de atuarem apenas sobre o plano sociológico em sentidoestrito, operam em todas as dimensões da vida social. Assim, as narrativas doseventos aqui analisados, inclusive a minha, seguem linhas de segmentaçãoque se articulam com a dimensão sociopolítica: os mesmos eventos, narradospor agentes ou simples espectadores distintos, aparecem sob luzes e até comconteúdos bastante diferentes – da mesma forma, aliás, que a história regio-nal pode ser narrada enfatizando as populações indígenas, os descendentes deescravos, os migrantes sergipanos, os imigrantes estrangeiros, e assim por diante.

Não creio, contudo, que se deva atribuir a ausência do movimento ne-gro nos jornais e na narrativa de Gasparetto a uma simples particularidade da

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imprensa ou da produção acadêmica locais. Como observou Herzfeld (2001:130), em um contexto completamente diferente, a influência do roubo degado na eleição, na Grécia nos anos 1980, de ao menos um político, jamaisfoi mencionada nos jornais ou nas análises políticas. Na verdade, tudo parecepassar-se, por um lado, como se grupos distintos vivessem, a cada eleição,eleições completamente distintas. Por outro lado, penso que se trata tambémde uma tendência, bastante disseminada na sociologia, na ciência política e,por vezes, na própria antropologia: retirar de atores socialmente não privile-giados toda a agência de que dispõem em processos dessa natureza. Tudo sepassa, neste caso, como uma espécie de aceitação passiva e de duplicação daideologia da democracia representativa: os únicos agentes efetivos são as eli-tes e os políticos. Os eleitores – esses seres fictícios cuja existência se limita apoucos minutos em uma cabine eleitoral ou às páginas de alguns manuais –só aparecem como valores agregados em tabelas estatísticas ou como objetosde manipulação.

No entanto, como já observei, desde os primeiros contatos com o mo-vimento negro de Ilhéus, no ano eleitoral de 1996, a explicação de que eupretendia desenvolver uma pesquisa sobre a política na cidade era, quase in-variavelmente, respondida com a evocação das eleições municipais de 1992,quando todos os blocos e grupos do movimento afro-cultural se teriam uni-do em torno de uma candidatura para a Prefeitura. Essa evocação era imedi-atamente seguida da narrativa de como haviam sido enganados, de como issoenfraquecera o movimento negro e de como, nas eleições de 1996, pretendi-am ficar fora do processo sucessório. Ao longo do tempo, presenciei inúme-ras ocasiões em que essa quase mítica eleição de 1992 foi invocada como pro-va dos riscos aos quais os grupos negros estão sujeitos quando se envolvemcom os políticos ou, principalmente, como prova de que uma união de todosos grupos é possível – no que seria mais um exemplo da “tendência fede-ralizante” de que fala Agier, mais uma vez em ação nas relações do movimen-to com o Estado.

As histórias do movimento negro e da política locais, do país e, prova-velmente, do mundo, imbricam-se aqui. Como bem se sabe, a vitória deFernando Collor de Mello nas eleições presidenciais de 1989 esteve ligada acerta retórica de desconfiança em relação aos “políticos profissionais” ou, aomenos, aos “políticos tradicionais”. A hipótese de essa retórica ter sido umadas causas de sua vitória certamente não será aqui discutida. O fato, contu-do, é que sua ascensão ao poder tendeu a reforçar retóricas dessa natureza por

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toda parte. Assim, em Ilhéus, já em 1989, um grupo de pessoas que se defi-niam como “apolíticas” e descontentes com os “políticos profissionais” –mesmo que várias delas já tivessem participado da política partidária – deci-diu criar um movimento “suprapartidário” ou “apolítico”, destinado a funcio-nar como uma “lupa social de fiscalização”. Segundo um de seus fundadores,o objetivo principal, inicialmente, era fazer com que a “sociedade civil” pas-sasse a fiscalizar sistematicamente o governo João Lírio (associado diretamenteao nome de Jabes Ribeiro), empreendendo análises do orçamento munici-pal, organizando a comunidade para participar do governo, auxiliando a cri-ação de movimentos populares, e assim por diante.

O “Movimento Ilhéus Corações” ou “Movimento Ilheense Corações”,como foi batizado (e registrado em cartório com o segundo nome, ainda queapenas em agosto de 1992), seria, desse modo, um “movimento civilizador”,que visava tomar “certa distância da macropolítica, que é a política dos gran-des partidos políticos”, como disse um de seus principais articuladores. Noentanto, como este mesmo articulador reconhecia, o movimento acabou sendo“açambarcado pela macropolítica”. E o curioso é que esse processo parece tersido desencadeado justamente pelo impeachment de Collor, o qual, algo pa-radoxalmente, fez com que a retórica de desconfiança para com os políticosprofissionais ganhasse força e se generalizasse em todas as direções.

Ainda de acordo com este líder, o movimento teria adquirido muita“visibilidade” na cidade, a ponto da decisão de participar da política partidá-ria ter se tornado inevitável. Deu-se, então, início a uma campanha visando“revelar” novos candidatos potenciais para a Câmara dos Vereadores e mes-mo para a Prefeitura. Esses candidatos eram selecionados a partir de seuscurrículos, recolhidos entre aqueles que nunca tivessem desempenhado ati-vidade político-partidária e que gozassem de bom nome na comunidade. Aomesmo tempo, os nomes selecionados eram filiados ao Partido Liberal, ain-da que a maior parte dos membros do Movimento Ilheense Corações fosseoriundo do Partido Socialista Brasileiro: diz-se que 1.300 filiações foram apre-sentadas ao PL e, ainda que apenas oitocentas tivessem sido aprovadas, issofoi mais que suficiente para que o grupo tivesse o controle do partido.

Lançou-se, assim, o nome de um funcionário administrativo do portode Ilhéus, o sociólogo Ronaldo Santana, para prefeito, com Paulo RobertoPinto Soares (Cipá) como candidato a vice.33 Além disso, cerca de uma deze-na de candidaturas a vereador foram lançadas pelo movimento. Uma delasera justamente a de Mirinho, estivador que tinha relações de amizade com os

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membros da primeira diretoria do Conselho de Entidades Afro-Culturais deIlhéus. Mirinho aproximou-se dos grupos negros, articulou a criação de umnovo bloco afro, o D’Logun, e buscou o apoio do movimento afro-culturalnão apenas para sua candidatura a vereador como também para a de RonaldoSantana para prefeito.

Em 1996, a maior parte dos militantes dos grupos afro-culturais consi-derava que, embora negros, Mirinho e, principalmente, Ronaldo Santana nãotinham nenhuma vinculação mais séria com eles: ambos teriam “se infiltrado”no movimento visando simplesmente “usar” os grupos em benefício de seuspróprios interesses – “infiltrar” e “usar” sendo dois verbos muito empregadosnesse contexto. Como dizia, nessa época, Gurita, referindo-se, na verdade,ao candidato a vice-prefeito,

“[...] o prefeito negro é uma coisa, o prefeito negro que tem compromisso coma comunidade negra, que já vem militando, que participa do movimento, dostrabalhos, há anos, é outra. Apenas a cor do prefeito pode ser negra, mas a culturado prefeito não é negra, entendeu? A participação do prefeito dentro do movi-mento negro? Nenhuma. Do próprio Mirinho? Nenhuma. Então foi uma coisaassim muito imediatista, pela amizade, pelo envolvimento”.

Em 1992, entretanto, a aproximação de Mirinho foi muito bem recebi-da, tanto que no ano seguinte (ou seja, após as eleições), ele tornou-se o pre-sidente da segunda diretoria do CEACI. Essa aproximação não se sustentava,contudo, apenas nas possíveis afinidades étnicas e na amizade que Mirinhopoderia ter com os militantes negros; estava baseada, sobretudo, em uma idéiaque, ao longo dos dez anos seguintes, não deixou de povoar o discurso e ossonhos do movimento negro ilheense: a construção do Centro Afro-Cultu-ral de Ilhéus.

O Centro deveria ser um prédio destinado a abrigar, expor e vender a“cultura afro” local. Nele, academias de capoeira poderiam promover suas aulase fazer suas exibições; os blocos afro e grupos de dança poderiam ensaiar eexibir-se; mães e pais-de-santo poderiam jogar búzios e receber clientes;artesãos poderiam comercializar seus produtos; cozinheiras poderiam vendersuas comidas típicas; e assim por diante. Tudo isso em um espaço que deveriareceber uma grande quantidade de turistas. Nesse sentido, além de dar visibi-lidade à cultura afro local, o Centro funcionaria como uma importante fontede renda para as pessoas e grupos que fazem parte do movimento afro-culturalde Ilhéus – sempre às voltas, lembremos, com os problemas do desemprego eda falta de recursos.

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O movimento negro, ou melhor, o movimento afro-cultural de Ilhéus,entrou decididamente na campanha. Até hoje, sustenta-se que RonaldoSantana chegou a estar na frente de todas as pesquisas de opinião, ainda quenão seja possível encontrar nenhuma menção a seu nome nas pesquisas daépoca. Assim, não foi sem certa surpresa que os militantes negros souberamque seu candidato aceitara um convite de Antônio Olímpio para preencher avaga de vice-prefeito em sua chapa. Segundo os militantes, para atraí-lo,Olímpio teria argumentado que, mesmo estando à frente das pesquisas, RonaldoSantana não contaria com recursos para chegar até o final da campanha.

A proposta foi, dessa forma, aceita, e Mirinho tratou de comunicar ime-diatamente ao movimento afro-cultural que a nova chapa incorporara o com-promisso de construção do Centro Afro-Cultural à sua plataforma. Nessemomento, os membros do movimento “entraram de cabeça” na campanhada nova chapa, fazendo apresentações musicais nos comícios e pedindo votospara os candidatos. Contam sempre que iam para distritos distantes,34 traba-lhando o dia inteiro “a troco de nada”, “sem comer”, “com fome mesmo”, nabusca dos votos para Antônio Olímpio e Ronaldo Santana – tudo na expec-tativa da construção do Centro Afro-Cultural.

Como vimos, foi exatamente essa chapa que venceu as eleições munici-pais de 1992 em Ilhéus. A diferença de cerca de 8.500 votos em relação a JabesRibeiro é sempre citada pelos militantes como prova da importância domovimento negro na campanha, uma vez que Mirinho estimara, na época,que os grupos afro eram capazes de obter uma quantidade de votos que osci-laria entre 5 e 10 mil votos. De acordo com uma versão um pouco diferentedos acontecimentos, estes eram os números com os quais Ronaldo Santanase apresentara a (e não fora procurado por) Antônio Olímpio a fim de conse-guir sua indicação como candidato a vice-prefeito. Tais números teriam sidoainda levados a Antônio Carlos Magalhães e ao governo estadual, que, emúltima instância, foram os responsáveis pela decisão de montar a chapa comoela acabou sendo lançada. Ronaldo Santana se apresentaria sempre dizendoque “o movimento negro de Ilhéus está me apoiando; são doze entidades, cadauma é capaz de obter entre quinhentos e setecentos votos, logo trabalho coma estimativa de 6 mil a 8.500 votos”. Fala-se, inclusive, de uma suposta pes-quisa que teria sido realizada nas comunidades em que havia sedes de entida-des negras e que confirmaria as estimativas.35

Coligado ao PFL apenas para as eleições majoritárias, o Partido Liberal,que abrigava, como vimos, os candidatos ligados ao Movimento Ilheense

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Corações, além de eleger o vice-prefeito, conseguiu obter um total de 3.217votos, o que, dado o quociente eleitoral de 3.124 votos, garantiu ao PL e aoMovimento Ilheense Corações uma vaga na Câmara dos Vereadores, justa-mente para o candidato a vice-prefeito da antiga chapa de Ronaldo Santana,Cipá. Mirinho, que obteve 323 votos (cerca de sessenta a menos que Cipá),ficou como primeiro suplente; Gildo Pinto, que em 1996 viria a eleger-severeador e chegaria à presidência da Câmara, ficou com a segunda suplência,com pouco mais de trezentos votos; Rogério Pitanga, também ligado aoMovimento, obteve cerca de 190 votos e a quarta suplência.

Com a posse de Antônio Olímpio, em 1993, o vice-prefeito foi nomeadopara a Secretaria Municipal de Agricultura, Indústria e Comércio. RonaldoSantana, por sua vez, indicou Mirinho como assessor dessa Secretaria, nomean-do-o, também, secretário de gabinete do vice-prefeito. Além disso, em fun-ção de um “acordo”, Mirinho assumiu em algumas ocasiões o posto de vere-ador na vaga deixada por Cipá, que, vez por outra, licenciava-se da Câmara afim de possibilitar a manobra.

Foi nesse momento, segundo os militantes negros, que as coisas come-çaram a mudar. Como dizia Gilmar, do Dilazenze, as “portas”, sempre aber-tas durante “a política”, começaram a se fechar:

“Portas fechadas para tudo quanto era lado que a gente procurava. Quando setrata do movimento negro, as portas estão sempre fechadas mesmo. Eles sóprocuram a gente na época de campanha, quer dizer, de quatro em quatro anos”.

Isso significa que os membros do movimento afro-cultural não conse-guiam ter acesso aos ocupantes do poder municipal; significa, também, queo discurso destes, especialmente dos mais próximos, começou a mudar. Miri-nho, por exemplo, passou a sustentar que nem todos os blocos o haviam apoia-do e que, por isso, só obtivera uma suplência. Sustentava, ademais, uma ver-são corrente até hoje entre aqueles que não estão envolvidos com o movimentonegro, a saber, que os votos do movimento não foram tão decisivos para avitória de Antônio Olímpio e Ronaldo Santana e que o vereador Cipá só seelegera com os votos da zona sul de Ilhéus (região “nobre” da cidade). Miri-nho também deixou de convocar as reuniões do CEACI e de comparecer aelas, e praticamente se afastou do movimento. Dizem, também, que promes-sas de empregos públicos para militantes negros, feitas durante a campanha,não foram cumpridas. Enfim, o “compromisso” de construção do Centro Afro-Cultural de Ilhéus passou a ser entendido por seus supostos beneficiários como

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mais uma “promessa” eleitoral e, pior do que isso, como promessa eleitoralnão cumprida. Ronaldo Santana e Mirinho atribuíam as dificuldades ao pre-feito e, principalmente, à sua assessoria, dizendo que “vice não manda nada”,que “a caneta não está nas mãos do vice”, que “estamos políticos, mas nãosomos políticos!”

Apesar de algumas mobilizações e de tentativas de pressão, foi apenasem junho de 1995 que Antônio Olímpio assinou um decreto de doação deum terreno, de mais de 3.000 m2, situado em uma área nobre da cidade, ondedeveria ser construído o Centro Afro-Cultural de Ilhéus. O prefeito deixouclaro, entretanto, que não dispunha de recursos para a construção do prédiopropriamente dito, e que estes deveriam ser obtidos junto à “iniciativa priva-da”. Foi organizada, então, uma grande festa para o lançamento de uma cam-panha de obtenção de fundos. A televisão local foi convocada e, diante dascâmeras, Antônio Olímpio, não apenas entregou o título de posse, comoassinou um cheque pessoal, no valor de R$ 1.000,00, destinado a dar inícioà campanha de arrecadação de fundos para a construção do prédio.

O entusiasmo do movimento afro-cultural de Ilhéus não durou muito.Uma semana depois da festa, a Câmara dos Vereadores anulou a doação, sobo argumento de que o terreno doado se localizava em área de preservaçãoambiental, não alienável, portanto. Uma das manchetes de primeira páginado jornal A Região, de 16/10/1995, anunciava que “AO [Antônio Olímpio]usa Movimento Negro para atacar o Legislativo”. O texto que se seguia expli-cava que ele o fizera

“[...] enviando à Câmara Municipal um Projeto de Lei propondo a doação deuma área ilegal de 3.200 metros quadrados, situada na rodovia Ilhéus/Olivençapara que aí fosse construído um Centro de Cultura Afro. Para enviar o projetoà Câmara, o prefeito Antônio Olímpio preparou uma grande festa em 21 desetembro último, convidando inúmeros grupos afro, e responsabilizando, apartir daí, o Legislativo, que teria que dar o aval final”.

A notícia prosseguia, citando o vereador do Partido da Mobilização Na-cional (PMN), Isaac Albagli de Almeida, muito próximo de Jabes Ribeiro,que sustentava tratar-se de “área verde”, pertencente a um loteamento, que sópoderia ser doada com a assinatura de todos os proprietários, e concluía que

“[...] o prefeito Antônio Olímpio quer se utilizar dos grupos afro, que semprecontribuíram com a cultura do município, para tentar jogá-los contra a Câ-mara Municipal, num gesto irresponsável e desesperado”.

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Finalmente, o dinheiro doado por Antônio Olímpio para a construçãodo prédio foi supostamente empregado por Mirinho para financiar uma cam-panha publicitária na televisão, visando justamente a arrecadação de fundospara essa construção – o que significava, em resumo, que, do ponto de vistados grupos negros, o saldo de sua intensa participação eleitoral era rigorosa-mente igual a zero.

Não deixa de ser importante observar que, ainda em 1996, a decepção ea raiva sentidas pelos militantes do movimento afro-cultural eram menosdirigidas ao prefeito do que ao vice e, especialmente, a Mirinho. Estes seriamos verdadeiros traidores, já que Antônio Olímpio estaria apenas cumprindoseu papel: “usaram a cultura negra como refém para colocá-los no poder”,como sustentava um militante negro. Mais do que isso, e apesar de tudo, adoação do terreno para a construção do Centro parece ter cumprido seu pa-pel. Não que as pessoas fossem ingênuas e não percebessem o caráter dessamanobra, desencadeada precisamente quando novas eleições municipais jádespontavam no horizonte. Mas isso não impedia que se repetisse que, pelomenos, o prefeito havia cumprido sua palavra. O problema passava, então, aser o veto da Câmara Municipal, e aqui diferentes interpretações eram ali-nhavadas.36

A primeira interpretação, de caráter nitidamente político, era articuladaprincipalmente por aqueles de alguma forma ligados ao grupo que estava nopoder: mesmo sabendo que o prefeito fizera a doação pensando nas eleiçõesmunicipais de 1996, não se podia negar que o terreno fora realmente doadoe que o compromisso eleitoral havia sido cumprido, mesmo que com consi-derável atraso. A Câmara, controlada pela oposição ligada a Jabes Ribeiro,tentou, por sua vez, impedir que o movimento negro fosse, mais uma vez,cooptado para a nova campanha.

Aqueles mais próximos de Jabes Ribeiro (como Isaac Albagli), ou maisdistantes de Antônio Olímpio, diziam que o prefeito bem sabia que a Câma-ra não tinha outra alternativa senão vetar a doação – uma vez que se tratavade área de preservação ambiental – e que, mesmo assim, enviara o projetojustamente para criar uma situação de constrangimento entre os vereadores eo grupo de Jabes, de um lado, e o movimento negro, de outro. O problemaé que, próximo ao terreno doado, havia um posto de gasolina e, pouco de-pois, outra área foi doada ao Exército, o que parecia confirmar a má vontadeda Câmara, que podia ser interpretada, por sua vez, como sendo dirigida contrao prefeito ou contra o movimento negro.

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Essa última alternativa propiciava, assim, uma terceira modalidade deinterpretação: tratava-se de racismo. O próprio Mirinho – que evidentemen-te negava a manobra do prefeito, dizendo que o terreno havia sido doado maisde um ano antes da “política”, e culpava a oposição na Câmara – tambémlevantava essa questão. Gurita, que se encontrava na difícil posição de, aomesmo tempo, apoiar Jabes (o que o impedia de fazer críticas políticas à opo-sição na Câmara ou elogios a Antônio Olímpio) e ser militante negro, eramuito mais claro:

“Preconceito racial, preconceito racial e social. É claro que não vão dizer issoporque compromete a própria reeleição deles, mas é o preconceito racial, ra-cismo. Uma turma de negões jogando capoeira, cantando, dançando, batendotambores na zona sul, você acha?”

Apesar disso, Gurita concordava, em parte, com a tese que Mirinho pas-sara a defender para seu ‘público interno’ após as eleições, a saber, que o apoiodo movimento afro-cultural era importante, mas não suficiente, para a elei-ção de um vereador: o movimento “apóia, mas não vota, divide o voto, dávoto a fulano por causa da família, a beltrano por dinheiro... Falta consciên-cia política”.

Mesmo sem usar o termo “racismo”, Marinho parecia também concor-dar com a possibilidade de que isso ocorrera, ainda que, de seu ponto de vis-ta, essa interpretação não excluísse outras possíveis:

“Eles boicotaram, e a gente começou a ver que realmente tinha alguma coisapor trás disso tudo, que não estava havendo interesse que a coisa acontecesse.Eu acho que eles estavam com medo, pensando assim: ‘poxa, esses negões vãose fortalecer, daqui a pouco esses negões vão criar asas e podem prejudicar nossosobjetivos no futuro’, porque eu acho que eles querem e pensam que a gentedeve ficar debaixo dos pés deles a vida toda, esperando a hora em que eles pre-cisam bater na porta da gente. Acho que o objetivo era esse, acho que a inten-ção não era que a gente progredisse, mas que a gente ficasse sempre regredindoe eles sempre sendo os poderosos, com a gente sempre ali, estendendo a mão,pedindo a um, pedindo a outro, uma ajudinha aqui, uma ajudinha ali”.37

Assim, ainda que alguns sustentem que o prefeito tentou ser fiel aocompromisso eleitoral de construção do Centro Afro-Cultural (não o tendoconseguido apenas em função da oposição que sofreu na Câmara) e outrosconsiderem que ele rompeu esse compromisso, todos parecem concordar comas palavras de Mirinho quando este sustenta que o apoio do movimento afro-

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cultural de Ilhéus a Antônio Olímpio tinha mesmo como “propósito princi-pal” a construção do Centro: “nós nos embasamos nisso, num compromissofirmado em termos de troca: nós apoiaríamos o governo atual e em contra-partida eles nos ajudariam a fazer o Centro Afro-Cultural de Ilhéus”. E, coma possível exceção de Paulo Rodrigues, que considerava o acordo uma formaespúria de compra de votos, todos pareciam concordar que o processo era in-teiramente legítimo.

Por outro lado, como observei, em 1996, a maior parte dos militantesnegros pensava que o movimento fora “usado”, e usado, principalmente, porRonaldo Santana e Mirinho a fim de se lançarem na política. Ora, isso teriaenfraquecido sensivelmente os grupos negros de Ilhéus como um todo, ame-açando-os mesmo de extinção, uma vez que toda a sua credibilidade junto àspessoas com quem trabalhavam havia sido perdida. Pois as promessas feitaspelos militantes negros a outros militantes, simpatizantes e membros dascomunidades negras em geral (a construção do Centro, mas também os em-pregos públicos que se tornariam acessíveis a eles) não foram cumpridas: “agente quis colaborar para fazer alguma coisa, mas acabou colaborando para opolítico ganhar, quer dizer, a gente se transformou em político sem querer;eles usaram a gente de um jeito que a gente se tornou político”. Um candida-to a vereador, mais ou menos ligado a Antônio Olímpio e totalmente estra-nho ao movimento afro-cultural de Ilhéus, chegou a sustentar que

“[...] essa história traz de maneira sintética e absolutamente fiel o quadro polí-tico da nossa cidade. O candidato Antônio Olímpio ofereceu, antes de se ele-ger, uma compensação pelo voto que seria dado a ele, naquele equívoco do ‘édando que se recebe’. Na verdade, o prefeito tentou cumprir esse compromis-so, mas a Câmara Municipal, através da oposição, impediu que o prefeito cum-prisse sua promessa, porque, se a cumprisse, hoje a comunidade negra o esta-ria apoiando; e isso não interessava à oposição, porque, na verdade, a oposiçãona Câmara são os diversos braços, os diversos tentáculos, do professor JabesRibeiro”.

* * *

Mesmo que o caráter “sintético” da história do Centro Afro-Cultural deIlhéus possa ser tido como algo exagerado, é inegável que ela exibe com cla-reza ao menos três modalidades de relações sociopolíticas constantementeabordadas pelas ciências sociais brasileiras, a saber, a compra de votos, as pro-messas eleitorais e, de modo mais amplo, a ‘fraqueza’ das instituições demo-

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cráticas no Brasil. O problema é que, em geral, como já observei, temas dessanatureza são abordados a partir de perspectivas inteiramente negativas, emum duplo sentido: condenam, explícita ou implicitamente, as práticas ana-lisadas, e tentam explicá-las a partir de noções problemáticas (as mesmas, aliás,que as elites costumam acionar), como alienação, privação material, ignorânciaou logro.

É verdade que esse tipo de abordagem é mais comum na sociologia elei-toral ou na ciência política do que na antropologia, uma vez que o antropó-logo, ao menos em tese, deve se esforçar por restituir etnograficamente o sen-tido que os agentes atribuem a suas ações, bem como tentar articulá-lo comoutras dimensões da experiência – de um modo que, em geral, os própriosagentes não fazem. E, ainda que isso nem sempre aconteça,38 o principal pro-blema dos antropólogos costuma ser uma tendência a subordinar as práticase idéias muito concretas com que se defrontam no campo a princípios geraisque supostamente serviriam para dar conta do que é observado. Assim, acompra de votos poderia ser explicada em função do papel dominante quevalores clientelistas e relações de reciprocidade desempenhariam em certas ca-madas da população. As promessas eleitorais se tornariam inteligíveis porque,afinal de contas, estaríamos às voltas com um universo social regido por rela-ções pessoais. E mesmo o ceticismo e a falta de participação política poderiamser atribuídos à pouca adesão aos valores democráticos característica de cul-turas não individualistas.

O problema é que, como todas as abordagens culturalistas, as explica-ções que privilegiam a chamada cultura política tendem a ser circulares (verLeite 1969: 45, 100, 124; Neiburg e Goldman 1998: 68; Herzfeld 1980: 340;e Herzfeld 1984: 439), operando por meio de uma curiosa sinédoque: oetnógrafo atinge o que considera valores centrais a partir da observaçãoempírica de um número necessariamente limitado de comportamentos e idéiase, em seguida, busca extrair desse material algum princípio abstrato, que eleaplica indiscriminadamente a qualquer comportamento ou idéia observáveis,os quais, por sua vez, passam a funcionar como simples confirmação de queo valor isolado é mesmo determinante.

Essa circularidade, por sua vez, instaura uma confusão, apontada porPierre Clastres (1980: 199; ver, também, Goldman e Silva 1998: 45, nota17), entre o empírico e o transcendental. Pois, se é óbvio que a compra devotos ou as promessas eleitorais são práticas e representações empiricamenteobserváveis, isso não diz nada acerca do valor moral e de verdade a elas atri-

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buído, os quais constituem um espaço aberto para a divergência, o conflito,a negociação e a mudança de opinião. Ao converter ações e símbolos muitoconcretos em categorias, valores ou padrões, corremos o risco de eliminar todoesse campo de variação, transmutando a troca, por exemplo, em uma espéciede razão transcendental do voto. Ao fazê-lo, perdemos de vista tanto apolissemia sociológica dos termos com que trabalhamos, quanto a dinâmicasocial que devemos tornar inteligível. Finalmente, como observou RichardGraham (1997: 19-21), “fatores culturais” não constituem determinantesexteriores, prontos a serem acionados quando se deseja explicar o clientelismo,o autoritarismo ou a inflação: o que se denomina cultura é o resultado de umprocesso em contínua elaboração, não um dado extrínseco e supostamenteobjetivo.

Em contraste com noções desse gênero – que têm o mau costume de seconverterem em chaves mestras, supostamente capazes de abrir qualquer porta–, creio ser mais prudente operar por meio de uma espécie de pluralizaçãonominalista das categorias. Como demonstrou Paul Veyne (1976: 81-82), épreciso substituir grandes e vagas noções, como “reciprocidade” ou “redis-tribuição”, por uma terminologia mais cuidadosa e mais afinada com a reali-dade: se dom, presente, troca, escambo, homenagem, prestação, endivida-mento, investimento, compra e venda etc. inegavelmente fazem parte de umcampo sociossemântico comum, é um absurdo subsumir todas essas varieda-des de relação em uma categoria como reciprocidade. Ao contrário, trata-sede usar a diversidade terminológica como instrumento destinado a dar contada diversidade dos usos da reciprocidade, elaborando, assim, mais uma prag-mática sociológica que uma semântica ou uma sintaxe.

Assim, a compra de votos, por exemplo, não é apenas uma conseqüên-cia dos valores clientelistas ou das regras tradicionais de reciprocidade domi-nantes em uma sociedade ou camada social qualquer. Ela faz parte de um modode viver e pensar a política, e é apenas sua condenação moral prévia que im-pede a percepção dessa obviedade antropológica. Nós tendemos a considerá-la uma verdadeira abominação, algo que atentaria contra os fundamentos dademocracia e a dignidade do voto. Todavia, não nos importamos tanto como fato de que, com dinheiro, pode-se pagar uma publicidade que, espera-se,redunde em votos. Em outros termos, pode bem ser que a aversão que senti-mos pela compra direta de votos esteja de alguma forma ligada ao fato de que,nela, explicita-se de modo quase obsceno a própria natureza de um sistemaidealmente pautado na ação individual e concretamente ancorado no equi-valente geral – ou seja, a democracia representativa.

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Por outro lado, como vimos, no campo, a compra e venda de votos apa-rece como elemento de estratégias discursivas e não discursivas variadas. Pode-se admitir, tacitamente, que o costume existe de modo genérico e, ao mesmotempo, negar qualquer denúncia concreta; mas pode-se, igualmente, denegara existência da prática e reconhecer um sem-número de casos concretos (atri-buindo-os, por exemplo, a um passado distante ou a alguma região atrasada).Pode-se, também, condenar duramente alguém por estar comprando votos,ao mesmo tempo que se entende que uma pessoa pobre acabe aceitando atransação; mas pode-se condenar o vendedor por falta de amor-próprio ecompreender que, afinal de contas, um político deve tentar se eleger de qual-quer maneira; ou pode-se condenar os dois. Pode-se admitir a troca de apoioeleitoral por um bem, em tese, coletivo, e condenar a busca de bens indivi-duais. Pode-se, ainda, invocar uma transação com seu próprio voto comoforma de justificar posições difíceis de confessar (o apoio a um candidatoconsiderado até então inteiramente inadequado). Pode-se condenar o quecompra votos, porque, no final das contas, isso revela o desprestígio de quemsó tem o dinheiro, ou aquele que os vende, por não votar mais por amizade,obediência ou lealdade.39 E pode-se fazer mais uma infinidade de coisas comseu próprio voto e com os dos demais.

Assim, em 1992, a bem-sucedida tentativa de atrair o movimento negropara a campanha de um candidato a prefeito esteve em boa parte centrada no“compromisso” de construção do Centro Afro-Cultural. Mas foi apenas quan-do uma nova campanha eleitoral já se iniciava, em 1995, que o então prefei-to tomou uma iniciativa que poderia ter redundado no cumprimento da pro-messa. Ele, entretanto, escolheu o caminho mais difícil e que, certamente,não era o único que tinha à sua disposição: apresentou um projeto de doaçãode terreno à Câmara dos Vereadores e deixou a construção do prédio para a“iniciativa privada”. A Câmara, controlada pela oposição, recusou o projeto,apostando que, desse modo, o prefeito não se beneficiaria novamente do tra-balho eleitoral e dos votos dos membros do movimento afro-cultural. O pre-feito, por outro lado, pôde argumentar que havia tentado cumprir sua pro-messa ou saldar sua dívida, e que a responsabilidade pelo não-pagamentopassara, portanto, a ser da oposição. Isso significa, creio, que, se do ponto devista do movimento negro, o trabalho na campanha e a construção do Cen-tro Afro-Cultural podem, de fato, ser encarados como os elementos de umatroca, digamos, restrita, o mesmo não ocorre quando encaramos o fenôme-no do ponto de vista dos candidatos e políticos. Para estes, o compromisso

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de construção do Centro Afro-Cultural aparece, antes, como uma espécie dedívida, cuja quitação pode ser adiada ou ‘rolada’. Na verdade, o que ocorreué que ela foi cuidadosamente postergada até o momento em que pôde serinscrita em uma nova transação eleitoral. Esta, por sua vez, já fazia parte deum novo ciclo de transações, inserido em outras eleições. É por isso que, emcerto sentido, esse tipo de dívida não pode nunca ser pago: seu caráter abertoé a garantia da continuidade dos fluxos de relações e votos.40

Ao enviar seu projeto de doação do terreno para a Câmara dos Vereado-res, o prefeito parece ter sido bem-sucedido em transferir sua dívida para aoposição, que bloqueou o projeto. De fato, o movimento negro tendeu aculpar os vereadores, não o prefeito, pelo não-cumprimento da promessa. Ovice-prefeito e o ex-presidente do CEAC também foram responsabilizadosna medida em que foram os negociadores do acordo. Além disso, do pontode vista do movimento negro, eles não teriam tido o empenho necessário paraconseguir que a Câmara dos Vereadores aprovasse o projeto de construçãodo Centro Afro-Cultural. Como membros, ou quase membros, do grupo,passaram então a ser considerados como verdadeiros traidores, o que não sig-nifica apenas mais uma manifestação da suposta tendência das classes popu-lares em não votarem e culpabilizarem aqueles que delas também fazem par-te.41 O que se condena em um ‘igual’ que pretende ser político não é a igual-dade, mas a pretensão. Ou, para ser mais preciso, condena-se a “falsidade”daquele que se apresenta como igual visando “usar” seus companheiros paratornar-se diferente, ou melhor, superior. Além disso, a decepção e a vergonhade ser enganado por aqueles que, supostamente, se conhece bem, parecemmais fortes do que em relação a um estranho de quem, afinal de contas, nãose pode esperar outra coisa.

Observemos, ademais, que os exemplos de compra de votos menciona-dos não subscrevem, de forma alguma, a freqüente imagem de políticos emembros da elite operando sempre com meios tidos como mais modernos,vendendo e comprando de acordo com modelos de mercado, enquanto osmembros do movimento negro, ou das camadas populares em geral, operari-am necessariamente por intermédio de lógicas mais tradicionais, como a dareciprocidade, por exemplo. Como vimos, em 1996, Cosme Araújo, que pa-trocinara o Dilazenze no carnaval, distribuindo camisetas com seu nome,acusou seus membros de traidores (“traíras”) por não o terem apoiado naseleições municipais daquele ano. Cosme procurava, assim, inscrever a tran-sação que estabelecera com o Dilazenze na chave de uma relação de recipro-cidade, que implicaria vínculos e compromissos futuros. Os membros do

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bloco, por sua vez, contestavam essa interpretação, alegando que tudo se re-sumia a um “negócio”, uma relação “profissional”, que se esgotava nela mes-ma, sem nenhuma conseqüência para o futuro e, portanto, sem nenhumaobrigação de apoio a Cosme nas eleições de 1996. Em outros termos, tantoas formas de reciprocidade quanto as estruturas de mercado são capazes defornecer modelos alternativos, que não apenas servem para a ação, comopodem ser retoricamente acionáveis por quaisquer das partes envolvidas emuma determinada relação.

O caso das promessas eleitorais também adquire novos contornos quandoestas são, por um lado, situadas nos contextos etnográficos precisos em quefuncionam e, por outro, encaradas a partir de uma perspectiva mais plural.Afinal, o que pode fazer com que, pleito após pleito, os mesmos eleitores sejamcapazes de ouvir mais ou menos as mesmas promessas, afirmarem que nãoserão cumpridas, votarem nos políticos que as proferem e, após as eleições,verem confirmadas suas suspeitas de que tudo não passava de mentira? Casoparticular de uma questão mais geral que nunca deixa de assombrar aquelesque estudam ou acreditam na política: por que, eleição após eleição, os elei-tores votam em candidatos que, ao mesmo tempo ou logo depois, tendem aconsiderar inadequados, incompetentes ou mesmo desonestos? Como é pos-sível ter tanta clareza sobre o caráter nefasto da política e, de uma forma oude outra, persistir dela participando?

Em primeiro lugar, seria preciso reconhecer, creio, que uma promessaeleitoral não é identificável por características que lhe seriam próprias. É ocontexto, o debate e a negociação que fazem com que uma proposição sejauma promessa, um compromisso, uma mentira ou qualquer outra coisa. Naseleições de 1992, a construção do Centro Afro-Cultural foi primeiramenteaceita pelo movimento negro como um “compromisso”; não realizada, pas-sou a ser definida como “promessa” e, logo, como “promessa não cumprida”.A questão de se era uma “mentira” (ou seja, se seus proponentes já sabiamque não a cumpririam quando a proferiram) é objeto de debate até hoje. Pro-cesso semelhante ocorreu, nessas mesmas eleições, com uma proposta bemmais ampla: a implantação, em Ilhéus, de uma Zona de Processamento deExportações que geraria “mais de 10 mil empregos”. Na campanha de 1996,as duas proposições foram reativadas sem sucesso: desde o início foram ma-joritariamente definidas como falsas e mentirosas.

Em segundo lugar, é preciso observar que todos esperam que políticosfaçam mesmo promessas, e que é preciso saber lidar com elas.42 Em 1996,Cesar, do Rastafiry, dizia que

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“[...] aqui há o costume de pedir alguma coisa ao candidato, mas as pessoastêm que conquistar o candidato antes das eleições, porque depois eles não dãonada, e tem muito candidato que promete, mas depois não cumpre, não dánada, esquece. Na política passada [1992], antes de a gente ir para RonaldoSantana, ouvimos a conversa de Antônio Olímpio e a de Jabes Ribeiro. A maisconcreta foi a de Antônio Olímpio e Ronaldo Santana. Eles prometeram, nósconfiamos e quebramos a cara. O costume é a gente receber alguma doação,mas eles só dão no primeiro ano, por ter recebido apoio, depois já não dão mais”.

Da mesma forma, quando, também em 1996, Jabes Ribeiro sustentou,contra Paulo Rodrigues, ser um político “moderno”, que não operava com“promessas vazias”, isso foi interpretado de forma negativa pelos militantesnegros, que aí viram um modo de evitar assumir compromissos: “políticoquando promete não cumpre; imagine quando nem promete...”.

Ora, como demonstraram, há bastante tempo, alguns filósofos da lin-guagem (Austin 1961; 1962; Searle 1969), as promessas não se justificam porum referente objetivo que lhes seria exterior e em relação ao qual sua veraci-dade poderia ser medida. São, nesse sentido, “ilocutórias”, o que significa queinstauram aquilo mesmo a que se referem – o Centro Afro-Cultural de Ilhé-us, por exemplo, que nunca existiu a não ser nos discursos que prometiamcriá-lo, o que não deixa, entretanto, de ser uma forma de existência. No en-tanto, se seguirmos uma distinção de Austin (1962: 101-102), as promessassão também, e talvez sobretudo, “perlocutórias”, na medida em que produ-zem “efeitos e conseqüências sobre os sentimentos, pensamentos ou ações daaudiência, do falante ou de outras pessoas” – fazer com que algumas pessoaspreferissem votar naqueles que prometiam o Centro, por exemplo.43 Uma pro-messa, em suma, é uma “palavra de ordem”, não é “feita para que se acreditenela, mas para obedecer e fazer obedecer”, não tem nada a ver “com a veros-similhança ou com a veracidade” e demonstra uma total “indiferença [...] emrelação a qualquer credibilidade” (Deleuze e Guattari 1980: 95-96). Não setrata nunca, portanto, de mentira, uma vez que esta supõe ainda certa rela-ção com a verdade e, mesmo, algum respeito por ela, já que, ao mentir, emgeral deseja-se a crença de outrem.44 Ao contrário, o regime discursivo de quefazem parte as promessas não tem qualquer relação com a verdade e com amentira, pois nelas, de acordo com a terrível frase de Goebbels, “não falamospara dizer alguma coisa, mas para obter um determinado efeito” (apud San-tos 1989: 148).

Palmeira e Heredia (1995: 47-48, 72-74; ver, também, Palmeira eHeredia 1993) têm, pois, toda a razão em aproximar as promessas (e os “pro-

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gramas”, dos quais as primeiras parecem só se distinguir retoricamente45) dasacusações, o outro gênero que povoa a maior parte dos discursos políticos:46

ambas são performáticas (ilocutórias e perlocutórias), ainda que as primeirassejam mais dirigidas a “coletividades” e as segundas a “reputações individuais”;ambas instauram circuitos de comunicação e estabelecem vínculos envolvendo“subjetividades”, ainda que as promessas estejam ligadas ao futuro e as acusa-ções ao passado e ao presente. Como vimos no capítulo anterior, é o abando-no do privilégio da sintaxe e da semântica em benefício de uma pragmáticaque permite evitar os falsos problemas colocados pelas promessas eleitorais.Em lugar de insistir na busca de sua ‘lógica’ ou de seus ‘referentes’, trata-se,simplesmente, de assinalar que promessas e acusações exigem muito maisaceitabilidade do que credibilidade (ver Herzfeld 1982: 645-646, 657) e que,para isso, devem ser formuladas seguindo formas e adotando categorias con-vencionais, que garantam sua legitimidade.

* * *

Se a história do Centro Afro-Cultural de Ilhéus permite, como obser-vei, repensar temas como a compra de votos e as promessas eleitorais, permi-te também, creio, refletir a respeito de algumas supostas características maisgerais do funcionamento do sistema democrático no Brasil. Todos conhece-mos – e, até certo ponto, dele compartilhamos – uma espécie de senso co-mum político, que costuma sustentar que as instituições centrais das demo-cracias ocidentais apresentariam, no caso brasileiro, um caráter flutuante,incerto e duvidoso. Assim, os partidos políticos aqui não teriam a consistên-cia ideológica e programática que os caracterizaria nas democracias mais tradi-cionais e consolidadas. Do mesmo modo, a constante e irregular circulaçãode políticos entre partidos aparentemente distintos, os inesperados realinha-mentos de alianças e lealdades, as flutuações ideológicas e mudanças progra-máticas seriam tributários do caráter incipiente da democracia brasileira, na qualos partidos ainda não estariam bem enraizados, de forma que posicionamentose ideologias permaneceriam ao sabor de idiossincrasias e conveniências maisou menos pessoais. Se tivermos alguma inclinação pela antropologia, pode-mos acrescentar a isso algumas características de nossa “cultura”, que tornariamdifícil o estabelecimento, entre nós, de sistemas e ideais derivados da moder-nidade individualista e universalista, entre os quais se encontra, certamente, ademocracia representativa.

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No entanto, quer sejamos ‘otimistas’ – supondo que o tempo e algumasreformas farão com que a verdadeira democracia aqui se implante – ou ‘pes-simistas’ – presumindo que as resistências a vencer são fortes demais, enraizadasnessa espécie de segunda natureza em que a cultura se converteu –, somoslevados a recorrer a modelos puramente negativos. Se essas perspectivas sãocapazes, de fato, de dar conta da realidade política em alguma parte, é umaquestão que, certamente, não será abordada aqui. Basta constatar, por ora,que um grande número de pesquisadores que trabalham com a política emsociedades como a brasileira se vê forçado, por bons ou maus motivos, arelativizar, ou mesmo a abandonar, noções como partidos, programas e ide-ologias, tratando, então, de buscar substitutos empíricos e teóricos aparente-mente mais adequados à realidade observada.

Assim, para ficarmos no caso dos partidos, parece necessário reconhecerque, por mais que a instituição faça parte da legislação e da ideologia oficiais,ela nunca pareceu corresponder a uma categoria, ou a uma unidade, realmenteeficaz. Que se concentre a análise na demonstração das razões dessa fraquezapartidária, ou que ela seja desviada na direção de noções tidas como maisexplicativas, é aqui secundário. Basta observar que não é casual que inúmerosanalistas tenham proposto outras unidades de análise para a política brasilei-ra, e a introdução do conceito de “facção” no lugar do de “partido” é um bomexemplo dessa situação.

Ora, se esse conceito representa um descentramento em relação aos mo-delos mais clássicos de análise da política, creio que um passo suplementarpoderia ser dado se acrescentarmos a ele o de segmentaridade, que, como vi-mos anteriormente, não tem nenhuma razão para não ser aplicado às socie-dades dotadas de Estado, assim como ao próprio Estado que caracteriza essassociedades. De toda forma, é claro que a utilização da noção de grupo seg-mentar entre nós só faz sentido se as unidades e processos efetivamente relevan-tes no funcionamento político de nossa sociedade forem realmente da mesmanatureza que os observáveis nas chamadas sociedades segmentares – e só vale apena se ganharmos alguma inteligibilidade com a introdução do conceito.

Sublinhemos, em primeiro lugar, que não se trata tanto de substituir oconceito de facção pelo de segmentaridade quanto de complementar o pri-meira com o segundo. Isso porque as duas noções não ocupam o mesmo pla-no epistemológico. Como escreveu Palmeira,

“[...] há múltiplas definições de facções, mas entre os antropólogos há um cer-to consenso de que se trata de unidades de conflito, cujos membros são arregi-

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mentados por um líder com base em princípios variados. Em geral, estão emjogo conflitos considerados políticos (envolvendo o uso do poder público). Asfacções não são grupos corporados (via de regra os autores pensam-nas como qua-se-grupos, grupos diádicos não corporados, etc.)” (Palmeira 1996: 54, nota 5).

Isso significa, parece-me, que o conceito é descritivo e morfológico, en-quanto a noção de segmentaridade, como observei anteriormente, destina-se, sobretudo, a caracterizar processos, não grupos.

Em segundo lugar, é preciso frisar ainda – e esse ponto é crucial – que aaplicação do conceito de segmentaridade nas sociedades com Estado nãoconsiste, de forma alguma, na simples transposição de tipologias que funcio-navam entre sociedades ou culturas para um plano intra-social ou intraculturalqualquer. Ou seja, não se trata de supor que, no interior de sociedades esta-tais, o Estado funcione de modo inteiramente centralizado, enquanto peque-nas aldeias, grandes famílias, blocos afro ou terreiros de candomblé obede-çam a princípios segmentares. Ainda que a estrutura segmentar do Estadoseja em geral uma “segmentação dissimulada” (Herzfeld 1992a: 104), ela existe;ao mesmo tempo, unidades segmentares são continuamente cooptadas peloaparelho de Estado, passando a obedecer a uma lógica da centralização. En-tre segmentaridade e Estado as relações também são de oposição e de compo-sição, e é preciso reconhecer o “caráter necessariamente segmentar de, virtual-mente, qualquer Estado-Nação” (Herzfeld 1992b: 63 – grifo do autor).47

* * *

Tentemos, então, refrasear a história política de Ilhéus nos últimos 25anos na chave da segmentaridade, tal qual entendida aqui e levando em con-sideração todas as observações já efetuadas.48 O bipartidarismo do regimemilitar, com suas sublegendas, tentando fazer com que aquilo que era dispu-ta em um plano não ameaçasse o que deveria ser unidade em outro, é umexemplo suficientemente óbvio para dispensar comentários adicionais. Maisconcretamente, lembremos que Jabes Ribeiro apareceu na vida política comoparte de um segmento que era um desmembramento de outro, comandadopor Antônio Olímpio (que, evidentemente, também constituiu seu segmentoao desmembrá-lo de um anterior, e assim por diante). Jabes mostrou-se suficien-temente forte para constituir seu próprio segmento, do qual João Lírio pode-ria ser um dos ramos. Este, contudo, ao contrário de Jabes, não se mostroucapaz de estabelecer sua própria linha de segmentação e acabou desaparecen-

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do do cenário político. Jabes, por sua vez, foi derrotado em 1992, justamentepor aquele de quem, em certo sentido, ‘descendia’.49 Mas isso só se tornoupossível porque Antônio Olímpio, utilizando as propriedades rizomáticas dasegmentaridade, já tratara de articular e aliar seu próprio segmento a outro,mais amplo, comandado por Antônio Carlos Magalhães. Ora, foi justamen-te deste que proveio Roland Lavigne, derrotado por Jabes Ribeiro em 1996 eem 2000 – com a diferença de que, nessa segunda ocasião, como veremos,tanto Roland quanto Jabes proclamaram sua ligação (de ‘filiação’ ou de ‘alian-ça’) com o então senador Antônio Carlos Magalhães e com o presidente daRepública, Fernando Henrique Cardoso.

Percebemos, assim, que o que é oposição em um plano pode perfeita-mente ser conjunção em outro. Novamente, o caso das sublegendas é óbviodemais. Também mais ou menos óbvio é o fato de que opostos no planomunicipal, Jabes e Roland puderam se reencontrar no estadual, com AntônioCarlos Magalhães, e no nacional, com Fernando Henrique Cardoso: ‘territoria-lidade’ e ‘descendência’ articularam-se para permitir alianças e oposições.Menos óbvia, talvez, é a tendência de os políticos conjugarem-se todas as vezesque sua existência ou seu mundo parecem estar sob ameaça. É o que pode serobservado quando políticos de todas as tendências põem de lado suas discor-dâncias para, por exemplo, defender a democracia (posta em perigo por umgolpe de Estado ou por um movimento social), criticar o baixo nível de par-ticipação política do povo ou rechaçar acusações genéricas contra a “classepolítica” (o que ficou, significativamente, conhecido como “corporativismo”).50

Nesse sentido, penso que a noção de segmentaridade também permiteuma melhor compreensão das movimentações políticas e dos políticos –mudanças de partidos, incongruências programáticas etc. –, tratando-as comoefeito do funcionamento de um sistema dotado de um certo tipo de estru-turação dinâmica. Esse deslocamento teórico pode evitar, talvez, a tendênciaa explicar esse tipo de fenômeno em termos puramente negativos (falta deexperiência democrática, juventude dos partidos, ausência de legislação ade-quada etc.) ou individualistas (cálculo, interesse, manipulação etc.) – proces-sos que, certamente, existem, mas que só podem funcionar nos quadros deum sistema mais amplo que cabe ao analista descrever e analisar.

Se a noção de segmentaridade pode ajudar, então, a compreender o fun-cionamento de nosso próprio sistema político, não parece menos verdadeiroque a aplicação do conceito a esse sistema também gera transformações noplano conceitual. Nesse sentido, é preciso observar que, ao contrário do queo caso Nuer tende a fazer crer, os diferentes segmentos do sistema não se situam

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univocamente sobre planos uniformes do diagrama segmentar: pode ser ver-dadeiro que, de um ponto de vista ‘genealógico’, Jabes Ribeiro provenha deAntônio Olímpio (no sentido em que uma linhagem menor deriva de umamaior), mas isso não significa que o primeiro seja necessariamente açambar-cado pelo segundo, de acordo com o modelo em que unidades de ordeminferior podem opor-se entre si, mas não a uma de ordem superior. AntônioOlímpio, nesse caso, está simultaneamente na origem hierárquica de JabesRibeiro e de outros políticos (o que não deixa de ser lembrado, com diferen-tes intenções, por eleitores e adversários), e figura como unidade da mesmaordem e ao lado de Jabes, o que permite que eles se oponham ou se aliem.Em suma, a segmentação não está necessariamente ligada à genealogia, e, sea narrativa diacrônica pode aumentar a inteligibilidade da descrição, ela nãoé estritamente necessária ou suficiente para isso.51 Em outros termos, se, nassociedades dotadas de linhagens, o processo de segmentação parece transcor-rer sobre um plano diacrônico irreversível, e se, por outro lado, o conjuntodas operações de segmentação e fusão está inteiramente dado, como possibi-lidade, a cada instante, no caso das formações segmentares em sociedades deEstado tudo parece passar-se sobre um eixo diacrônico reversível, que permi-te que segmentos separados se reúnam para se dissolver mais adiante e, even-tualmente, se reunir de novo.

Além disso, a ‘politização’ da noção de segmentaridade permite perce-ber que nem sempre a lógica do famoso provérbio árabe “eu contra meus ir-mãos; meus irmãos e eu contra meus primos; meus primos, meus irmãos e eucontra o mundo” (Salzman 1978: 53; Favret-Saada 1966: 108) é realmenteposta em prática. Um pouco à maneira do que ocorre com as torcidas de fu-tebol – em que é comum apoiar uma equipe mais ‘distante’ contra uma mais‘próxima’ e, por isso mesmo, dotada de um maior potencial de rivalidade –,em política não é incomum que alianças que cortam o espaço segmentar se-jam efetuadas. Desse modo, Rúbia Carvalho, muito mais próxima, ideológicae ‘genealogicamente’, de Roland Lavigne, acaba se aliando a Jabes Ribeiro.Este, por sua vez, rompe com seus aliados de esquerda e aproxima-se de An-tônio Carlos Magalhães e de Fernando Henrique Cardoso.

* * *

Os principais ganhos metodológico, teórico e, eventualmente, políticoobtidos com a aplicação de um conceito plural de segmentaridade à nossaprópria sociedade talvez seja, na verdade, o aumento de nossa capacidade de

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tornar inteligíveis mecanismos por meio dos quais se dá a articulação entresegmentos políticos e unidades derivadas de outros processos de segmentação.Pois, ao contrário do que poderia ocorrer ao confrontarmos sociedades dis-tintas, o fato de estarmos às voltas com diferentes lógicas sociais não podeaqui ser reduzido a uma simples questão de alternativas culturais – nem, muitomenos, a uma espécie de jogo de soma zero no qual essas lógicas apenas se equi-valeriam. Trata-se, na verdade, de mecanismos complementares assimétricos,que, longe de simplesmente se oporem ou excluírem, articulam-se entre si,na medida em que são alternativamente acionados, de diferentes maneiras,por agentes específicos que atuam em contextos precisos. Os resultadossociopolíticos derivados do confronto e interpenetração desses mecanismostendem a infletir-se mais na direção de alguns deles do que de outros.

Nesse sentido, talvez seja necessário dar um passo a mais a fim de evitar,definitivamente, os fantasmas tipológicos e morfológicos, que, como vimos,tendem a assombrar a antropologia todas as vezes em que nos envolvemos nainevitável tarefa de estabelecer distinções entre formações sociais ou caracte-rizar processos heterogêneos. Nas poucas páginas que escreveram sobre a ques-tão da segmentaridade, Deleuze e Guattari (1980: 254) levantam uma curio-sa questão, que deveria, talvez, estar bem no centro de qualquer investigaçãoantropológica das sociedades ditas complexas: “por que retornar aos primiti-vos, uma vez que se trata da nossa vida?” Partindo da noção de segmenta-ridade exatamente como foi proposta na década de 1940 pelos africanistasbritânicos (ou seja, para dar conta de sociedades “sem Estado”), os autoresprocedem mediante ampliações sucessivas do alcance do conceito. Em pri-meiro lugar, como já vimos, enumeram três modalidades de segmentaridade,binárias, circulares e lineares (convém, talvez, repetir que essas modalidades,ou modulações da segmentaridade, não constituem, de forma alguma, tipos:elas apresentam, ao contrário, um caráter dinâmico, de tal forma que se pas-sa, incessantemente, de uma a outra, como já veremos). Em seguida, em umamanobra apenas provisória, tratam de distinguir uma segmentaridade “pri-mitiva” e uma “de Estado”: se, no primeiro caso, subsiste “certa flexibilida-de”, no segundo, temos uma “segmentaridade dura” (idem: 255). E, se a“segmentaridade primitiva” é flexível, isto se deve ao fato de que os diversoscentros de cada domínio de segmentação (território, parentesco, idade etc.)jamais coincidem – o melhor exemplo disso é a impossibilidade de adequarcompletamente genealogia e território, impossibilidade com a qual se choca-ram quase todos os que trabalharam com a segmentaridade. Por outro lado,

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é justamente o Estado que deve ser concebido como o espaço de “ressonância” detodas as segmentações, as quais se tornam, desse modo, “duras”:

“[...] a segmentaridade torna-se dura, na medida em que todos os centros res-soam [...]. O Estado central não se constitui pela abolição de uma segmenta-ridade circular, mas por concentricidade dos círculos distintos ou por uma res-sonância dos centros [...]. As sociedades com Estado comportam-se como apa-relhos de ressonância, elas organizam a ressonância, enquanto as primitivas ainibem” (idem: 257).

Em suma, “a vida moderna não destituiu a segmentaridade [...], ao con-trário, a endureceu singularmente” (idem: 256). É somente a “caixa de resso-nância” do Estado que pode fazer com que divisões binárias sejam continua-mente reproduzidas sem modificações profundas, que os vários círculos quea todos envolvem pareçam ter apenas um centro, e que as diferentes ativida-des ou instituições com que todos estamos envolvidos tendam para uma for-ma única ou uma unidade transcendente. Não se trata aqui, contudo, repito,de supor uma nova tipologia: não há distinção empírica possível entre assegmentaridades flexível e dura; elas estão sempre juntas, interpenetrando-see transformando uma à outra em todas as partes (idem: 260-261).

Michael Herzfeld, que bem percebeu essa relação, observou que os ha-bitantes da aldeia grega que estudou apresentavam uma compreensão muitoparticular das

“[...] relações políticas no interior do Estado-Nação. O Estado burocrático en-dossa um modelo piramidal ou hierárquico das relações políticas. Da perspec-tiva dos aldeões, contudo, a relação pode, ao contrário, ser segmentar. Nessemodelo, grupos rivais de parentes unem-se na defesa de sua aldeia comum;aldeias em disputa unem-se em sua lealdade para com uma identidade regio-nal; e regiões subordinam suas lealdades competitivas à lealdade maior coman-dada pela nação englobante” (Herzfeld 1985: XI).

Mas, se a interpretação de Herzfeld pode ser válida para Creta e para aGrécia, creio que, no caso de Ilhéus, e talvez do Brasil, ela deva ser ligeira-mente ajustada. Isso porque ela parece supor que os aldeões cretenses pen-sem sua comunidade como uma espécie de pequeno Estado, e o Estado gre-go como o segmento mais inclusivo de um sistema segmentar de que fazemparte. Ora, se, do ponto de vista da segmentaridade circular, esse modelo ésatisfatório, ele parece longe de esgotar todas as possibilidades. Assim, aomenos em Ilhéus, esse modelo “arborescente” (‘nuer’)52 convive com uma

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segmentaridade mais linear e “rizomática” (‘dinka’), em que o Estado pareceser visto como um segmento paralelo aos demais, e o fato de ser tido comoincomensuravelmente mais forte que os segmentos locais não significa neces-sariamente que seja encarado como totalidade englobante em qualquer ocasião.

Assim, do ponto de vista da segmentaridade circular, os políticos (os“grandes” ou “grandões”) parecem englobar os agentes sociais comuns (os “pe-quenos”), e sente-se que são tão superiores ou poderosos que parece inútiltentar a eles se opor – melhor, portanto, apoiar aqueles que “mandam na ci-dade”, como me explicaram Marinho e Cesar. Do ponto de vista da segmenta-ridade binária, contudo, os políticos tendem a aparecer como seres de outranatureza, movendo-se em um mundo sobre o qual os demais agentes sociaissentem não possuir nenhum alcance – mas eles são todos da mesma natureza,o que explica, em parte, o sentimento de que “todos os políticos são iguais”.53

Finalmente, do ponto de vista da segmentaridade linear, os políticos fazemparte de unidades com as quais é possível estabelecer relações de aliança, as-sim como de oposição. Se o sentimento dominante será a inferioridade, aestranheza ou a aversão, e se a relação efetivamente estabelecida será a de ade-são, alienação ou resistência – ou seja, se o sistema se segmentará ou se recom-porá –, depende de uma série de fatores que apenas a etnografia pode, ao menosem parte, recuperar.

É por isso que aos mecanismos de captura e conjugação respondem sem-pre, e incessantemente, as conexões, resistências e linhas de fuga. Pois as for-mações segmentares mantêm com o Estado (ele também cortado pela segmen-tação) uma relação semelhante à postulada por Pierre Clastres (1974; 1980)para a chefia indígena sul-americana: nos dois casos, trata-se, ao mesmo tem-po, de uma prefiguração do Estado (já que segmentos e chefia podem funcio-nar como pólos de unificação e centralização) e de uma conjuração (na me-dida em que a chefia indígena é impotente e que as formações segmentares sedesfazem e refazem ininterruptamente).54

Tudo se passa entre o célebre adágio atribuído a Maquiavel, “dividir paragovernar”, e sua aparente contestação por parte das “tribos” em que, comoescreveu Gellner,

“[...] a segmentaridade é [...] a conseqüência do estado de dissidência [...] epode-se exprimir seu princípio contrariando o adágio: ‘Dividi-vos para não serdesgovernados’” (apud Favret-Saada 1966: 107 – grifos da autora).

O problema é que, em um regime de segmentaridade dura, tudo ressoano (ou na direção do) Estado, e a capacidade de divisão dos segmentos tende

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a deixar de ser um mecanismo contra-Estado para passar a funcionar comoponto de encaixe para a cooptação e a dominação. Pois, se, como costuma serdito, a democracia parece, de fato, estar voltada para a administração de con-flitos, esta não se dá no sentido em que usualmente é entendida, ou seja, comoacordos e pactos que, de algum modo, devem distribuir as vantagens entre omaior número possível de agentes. Trata-se antes, creio, de um processo dedistribuição dos próprios conflitos, jogando conflitos contra conflitos de modoa controlar e impedir a eclosão de outros, supostamente mais graves, que amea-çariam a estabilidade e a permanência do sistema.

Desse modo, por um lado – e ainda que, por vezes, reclamem das difi-culdades para “unir os blocos” –, são os próprios líderes negros que se mos-tram, em geral, muito refratários a qualquer tentativa de unificação. Vimos,no capítulo anterior, como Marinho reagiu, em 1996, às tentativas de Paulonessa direção; em 1997, ele se mostrava preocupado com o que consideravaa “invasão do Força Negra pelo MNU e pelo PT” e dizia abertamente que era“preciso conscientizar as lideranças do movimento” para o fato de que “o MNUestava crescendo em cima do movimento afro” (Silva 1998: 114-115). Poroutro lado, esses líderes parecem ter consciência de que essa característica dosblocos – que, como no caso dos terreiros de candomblé, parece funcionar evi-tando a constituição de poderes supralocais realmente eficazes – tende a sermanipulada pelos políticos em seu próprio benefício. “O que eles procuramfazer”, dizia Gilmar Rodrigues, do Dilazenze, ao lado de muitos outros emIlhéus, “é dividir o grupo”. Mazinho, presidente do Força Negra em 1992,forneceu uma explicação mais completa:

“Nós pensamos em colocar um representante nosso lá. A gente via o descaso,a humilhação, e vimos a possibilidade de ter uma liderança negra na Câmarados Vereadores. Aí surgiu o nome de Mirinho, que nós lançamos no últimoano de João Lírio. Fechamos com Mirinho. Mas quando chegou na hora, apa-receu político com dinheiro e os blocos começaram a se dispersar. Os blocosnão criaram consciência política. Se todos os blocos se juntassem, teria comocolocar um representante nosso lá. Eles eram coesos até determinado momen-to, mas na hora do dinheiro, entrava aquela lei de levar vantagem em tudo e osblocos se dispersavam. O que acontece quando chega o tempo de política? Vocêestá trabalhando com determinado grupo, chega um cara e diz que tem R$25,00 pra você, você larga e abraça esses R$ 25,00. O que aconteceu foi isso:quando viram que a articulação estava forte, surgiram propinas e aí alguns blocosse dispersaram”.

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O pior, contudo, é que esse é um jogo que o movimento afro-culturalparece não poder ganhar de modo algum. Pois, se a divisão interna facilita acaptura por parte das forças de Estado, o mesmo ocorre quando se busca aunidade, por vezes tão decantada. Não é por acaso, como vimos, que a Pre-feitura de Ilhéus parece ser a maior interessada na existência de alguma ins-tância superior aos próprios blocos: pois ela pode sempre recorrer a essa ins-tância quando um ou outro bloco se mostra mais difícil de tratar (assim comopode recorrer aos blocos individualmente se a instância superior demonstraralguma resistência). De fato, como observou Herzfeld (1996: 77), o Estadoprocura sempre imprimir sua própria forma aos grupos com que entra emrelação – e isso inclui aqueles que a ele se opõem, bem como os movimentosque, voluntária ou involuntariamente, dele tentam escapar. O “segmentável”,como diz ainda Herzfeld (1992b: 63), é, simultaneamente, o “unificável”, ea segmentaridade, ao contrário do que se costuma imaginar, não consiste nadivisão de uma suposta unidade primeira em entidades discretas, mas na con-versão de multiplicidades em segmentos, ou seja, em unidades simultanea-mente divisíveis e unificáveis, de acordo com múltiplas estratégias, que vãoda repressão à resistência, passando pela manipulação e pela cooptação.

* * *

A história do Centro Afro-Cultural de Ilhéus permaneceu no coraçãodas relações entre o movimento negro e o poder municipal ao longo de pelomenos dez anos. Durante as eleições de 1996, havia um boato constante deque o governador da Bahia assinara, “em segredo”, a doação de um terrenopara a construção do Centro. Mirinho, que nesse momento apoiava RolandLavigne, era um dos principais divulgadores da notícia. No final da campa-nha, repetia-se com certa insistência que, caso a situação vencesse as eleições,o Centro seria finalmente construído. Em 1997, Silva (1998: 90-93) obser-vou o assunto ser levantado em duas ocasiões: quando Gurita prometeu quelevaria a questão à Câmara dos Vereadores caso tivesse a oportunidade de as-sumir o cargo (uma vez que era suplente); e, na Sessão Especial da Câmarapelo Dia da Consciência Negra,55 quando – já no final do evento – Dino Ro-cha cobrou a construção do prédio. Um vereador do PT respondeu que ti-nha informações de que a construção do Centro estava prevista no orçamen-to municipal para 1998. Também em 1998, ao deixar o cargo de Gerente deAção Cultural da Fundação Cultural de Ilhéus, Moacir Pinho deixou cinco

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projetos de interesse da comunidade negra, sendo que um deles era o doCentro Afro-Cultural. E, ainda em 1998, sete blocos afro decidiram apoiar acandidatura de Gildo Pinto à Assembléia Legislativa – candidatura que, comotodos sabiam, visava apenas preparar o terreno para sua reeleição como verea-dor nas eleições de 2000. Esse apoio, na verdade, jamais se traduziu em algode concreto, mas o documento de apoio, assinado pelos representantes dosblocos, mencionava explicitamente o Centro Afro-Cultural de Ilhéus:

“Os blocos afro Dilazenze, Rastafiry, Miny Kongo, Raízes Negras, D’Logun,Malês e Gangas, declaram apoio à candidatura de Gildo Pinto para DeputadoEstadual, tendo em vista o conceito do candidato junto às entidades de cultu-ra afro, e pelo apoio espontâneo que Gildo sempre prestou a essas agremiaçõespara a realização dos seus projetos culturais. Uma das bandeiras de Gildo emdefesa do Movimento Negro de Ilhéus é a construção do Centro de CulturaAfro, espaço fundamental para difundir as atividades culturais das entidadesque subscrevem a presente declaração de apoio”.

Em 1999, falava-se do tema apenas de vez em quando, mas, finalmente,em 2000, como vimos, e já por ocasião de novas eleições municipais, o as-sunto ganhou fôlego e acabou, de uma forma ou de outra, conduzindo à cria-ção do Memorial da Cultura Negra de Ilhéus.

NOTAS

1 Ver Cunha (1991: 290, 296), Guerreiro (1998: 104-109), Lima (1998: 164-166), Morales(1991: 80), Risério (1981: passim), Schaeber (1998: 146) e Veiga (1998: 123-124).

2 Ao narrar a genealogia dos blocos afro de Ilhéus, Marinho Rodrigues observou, com certoorgulho, que “acho que o Dilazenze é o único bloco de onde não saiu ninguém”, ao que suaesposa acrescentou, ironicamente, “ainda não!” Para uma descrição completa da história dosblocos afro de Ilhéus, ver Silva (1998, 2004); para uma análise mais detalhada da questãodos ritmos nesses mesmos blocos, ver Cambria (2002). Observe-se, também, que problemasde edição fizeram com que a descrição da genealogia dos blocos afro de Ilhéus em Goldman(2001b: 59) ficasse truncada. Ver Apêndice 5.

3 Em consonância com a advertência feita na Introdução, sublinho que há certa confusãonativa em torno do número de blocos efetivamente existentes em um determinado momen-to, confusão que se estende para suas datas de fundação e mesmo para a grafia de seus nomes.Creio que isso explica, em parte, diferenças menores (pelas quais, mais uma vez, peço descul-pas ao leitor) observáveis entre este texto e Goldman (2000; 2001a; 2001b).

4 Um ponto, em especial, costuma ser deixado de lado: o fato de os blocos afro estarem rela-cionados a algo como classes de idade ou, para ser mais preciso, o fato de incidirem mais

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diretamente sobre faixas etárias específicas, como a adolescência e a primeira juventude. Apartir de certa idade, os participantes tendem a diminuir seu grau de envolvimento com ogrupo ou mesmo a abandoná-lo, e apenas os que assumem posições de liderança contrariamessa tendência.

5 Da mesma forma, em Salvador, os blocos afro estão ligados a regiões específicas, e tanto asrelações de parentesco quanto as religiosas desempenham um papel fundamental (ver, entreoutros, Agier 2000 e Guerreiro 1998). Agier, aliás, percebeu bem as implicações dessamultiplicidade de pertencimentos, observando que, na sociedade brasileira em geral, haveria“uma concorrência e uma relação entre diversos modos de identificação social, seja no planocoletivo, seja no decorrer de cada história individual” (Agier 1992: 54). O único problemaaqui é que essa multiplicidade de modos de identificação não é característica deste ou daque-le sistema social ou cultural específico, mas a conseqüência universal do fato de que identida-des são sempre o resultado do empobrecimento e da sobrecodificação de um número infini-to de pertencimentos – a uma família, gênero, idade, região, religião etc. (ver Serres 1997).

6 É significativo que, no livro que escreveu a partir do artigo sobre a teoria da linhagem, Kuper(1988) sustente que essa teoria seja a principal responsável pela “ilusão da sociedade primi-tiva” e, ao mesmo tempo, que o abandono dessa ilusão não passe pela superação da própriaidéia de sociedade, como sugerem, entre outros, Strathern et alii (1996) e Toren (1999: 1-21).

7 O leitor interessado pode consultar, entre outros, Dumont (1970), Salzman (1978), Meeker(1979), Kuper (1982; 1988), Karp e Maynard (1983) e Dresch (1986). Uma análise maisdetalhada de todo o debate pode ser encontrada em Goldman (2001b).

8 “As idéias não morrem. Não que elas sobrevivam simplesmente a título de arcaísmos. Mas,em um momento, elas puderam atingir um estágio científico, e depois perdê-lo, ou entãoemigrar para outras ciências [...]. As idéias, elas sempre voltam a servir, porque elas sempreserviram, mas segundo os mais diferentes modos atuais” (Deleuze e Guattari 1980: 287).

9 É por isso que Jeanne Favret-Saada pôde sustentar que “uma disposição para a segmen-tação” é mais importante que a segmentação propriamente dita, e que um sistema segmentarparece repousar menos sobre a “oposição dos segmentos” do que “sobre a repartição das opo-sições sobre um certo número de níveis ou de encaixamentos ordenados uns em relação aosoutros” (Favret-Saada 1966: 109-110).

10 “A teoria da linhagem e a segmentação não são a mesma coisa; de fato, elas representamdois diferentes tipos de antropologia. O primeiro trata de seqüências de eventos no plano daobservação (e em particular com a aparência dos grupos), enquanto o segundo trata de rela-ções formais que caracterizam os tipos de eventos possíveis” (Dresch 1986: 309).

11 Até mesmo o caráter “banal” da segmentaridade também costuma ser, paradoxalmente, utili-zado quando se esgotam todos os argumentos contra sua generalização (Herzfeld 1987: 158).

12 O movimento de dessubstancialização e generalização do conceito de segmentaridade –que, como vimos, sempre existiu ao lado das perspectivas mais institucionalistas – ganhounovo fôlego a partir do final da década de 1979, quando, como relata Herzfeld (1987: 219-220, nota 5), alguns antropólogos (em sua maioria da Universidade de Indiana), estabelece-ram, entre eles, um debate em torno da “relevância do conceito de segmentação”. Esse deba-

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te acabou sendo crucial para alguns importantes trabalhos daqueles que dele participaram:Herzfeld (1985; 1987; 1992a; 1992b), Karp e Maynard (1983), Meeker (1979) e Salzman(1978), entre outros.

13 Como já escrevera Bastide, em 1960, “os candomblés tradicionais podem sem dúvida, emcertos casos, se multiplicar por cissiparidade” (Bastide 1960: 523); ou, “é certo, também,que os candomblés tradicionais nascem por cissiparidade, a partir de uma célula única” (Bastide2000: 86).

14 Tomemos, pois, apenas para as necessidades da causa, a definição de sistema segmentarproposta por Dumont (1970: 73):

“Dado um sistema de grupos em que os grupos A, B, C, D etc. compreendem subdivisões deprimeira ordem A1, A2, A3, B1, B2, B3 etc., que, por sua vez, compreendem subdivisões desegunda ordem, A1a, A1b etc., B1a, B1b etc., e assim sucessivamente [...]. O sistema é chama-do segmentar se as subdivisões das diversas ordens coexistem virtualmente a cada instante e só semanifestam alternativamente em situações determinadas”.

15 Conectividade, heterogeneidade e multiplicidade, bem como o caráter a-significante, nãoestrutural e não generativo, constituem os “seis princípios do rizoma”, em oposição à “árvo-re” (Deleuze e Guattari 1980: 15-25).

16 Ver, por exemplo, Barbosa (2001), em que esse conceito alargado de segmentaridade servecomo instrumento para uma análise criativa do tráfico de drogas no Rio de Janeiro e de suasrelações com o Estado. Ver, também, Barbosa (1998; 2005).

17 É claro que os gêneros podem superpor-se e, por vezes, a classificação é artificial. De todaforma, apenas como amostra do primeiro gênero, ver: Afonso (1991), Almeida (1999; 2000),Andrade (1996), Asmar (1983; 1987), Augel e Guerreiro (1974), Barbosa (1994), Barickman(1995), Couto (1998), Falcón (1995), Freitas (1979; 1992), Garcez (1977), Garcez e Freitas(1979), Garcez e Mattoso (1978), Gasparetto (1986; 1993), Goldman (1999; 2000; 2001a;2001b; 2003), Kent (2000), Leeds (1957), Macêdo e Ribeiro (1999), Mahony (1996; 1998;2001a; 2001b), Menezes (1998), Nogueira (2004), Paraíso (1982; 1989), Ribeiro (2001),Ruf e Lachenaud (2002), Santos (1957), Santos (2001), Silva (1975), Silva (1998; 2004),Valla (1976), Viegas (1998; 2003), Wright (1976) e Zehntner (1914). Para o segundo gêne-ro (trabalhos encomendados ou patrocinados pela Ceplac), ver: Afonso e Barroco (1970),Alencar (1970), Caldeira (1954), Ceplac (1970; 1975; 1982; 1991; 1998), Costa et alii (1971)e Seligson (1971). Para o terceiro gênero (trabalhos escritos por habitantes de Ilhéus e daregião), ver: Aguiar (1960), Almeida (1996), Aquino (1999), Barros (1915; 1923; 1924),Bondar (1924; 1938), Brandão e Rosário (1970), Brito (1923), Cardoso (2002), Castro(1981), Costa (1992; 1998), Heine (1994a; 1994b), Lavigne (1955; 1958; 1971), Lipiello(1994; 1996), Marcis (2000), Pereira Filho (1959; 1981), Pessoa (1994), Sá Barreto (1988),Sales (1981), Schaun (1999), Silva Campos (1937), Vieira (1993) e Vinháes (2001). Final-mente, entre os romances, contos e congêneres, estão: Aguiar Filho (1946; 1952; 1962; 1968;1971; 1976; 1981), Amado (1933; 1944; 1946; 1958; 1982; 1984), Ceplac (1979), Mattos(1997) e Simões (1987).

18 Mahony, em comunicação pessoal, conta que, ao apresentar seu trabalho nesse encontrona UESC, foi censurada por aceitar como verdadeira o que seria apenas uma versão da histó-

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ria contada por uma das famílias tradicionais da região. A pessoa que a censurou vinha deuma família que contava uma versão bem diferente dos fatos, o que fez com que se sentissena obrigação de interpelar a conferencista.

19 Leia-se, por exemplo, o último parágrafo do livro de Silva Campos, publicado em 1937mas escrito sob encomenda de um prefeito para comemorar o cinqüentenário da elevação deIlhéus à categoria de cidade: “Eis aí, em projeção nítida na tela da realidade, o que é Ilhéus dehoje. Comparemo-la mentalmente com o malacafento burgo quinhentista fundado pelocapitão castelhano, que tinha ‘braços às armas feito’, ouvidor analfabeto e administradordesastrado. Com o insignificante vilarinho dos amargurados tempos em que, sedenta de vin-gança, a bugrada cerval mantinha em xeque os seus mesquinhos habitantes, forçando-os acultivar os quintais a fim de não perecerem inanidos de fome. E tudo o que é deve, unica-mente, numa labuta penosa e incessante de quatro séculos, aos esforços do elemento nativoe à generosidade inesgotável da terra. Sua prosperidade atual é assim um belo capítulo denossa história econômica, e convincente atestado da capacidade realizadora da nossa gente”(Silva Campos 1937: 529).

20 Um parecerista anônimo de Ethnos considerou essa posição um exemplo, negativo é claro,de uma “posição metodológica favorável às diversas perspectivas pós-modernas edesconstrucionistas”, as quais “beiram o absurdo, transformando-se em modos de negar arealidade empírica e a importância de se tentar dizer algo sobre o que são as circunstâncias eas ‘estruturas’ da existência”. Nesse sentido, servem de “desculpa para não realizar algumacontextualização séria”. O artigo (Goldman 2001a) acabou sendo publicado sem o trechoem questão, mas eu gostaria de deixar claro que, de meu ponto de vista, não é de nada dissoque se trata, nem pós-modernismo, nem desconstrucionismo. Penso, como Guattari (1986a),que essas coisas não passam de doenças terminais do modernismo, paradigmas “de todas assubmissões, de todos os compromissos com o status quo”. A posição que defendo apenasradicaliza uma formulação clássica da antropologia, que remonta a Malinowski, sustentan-do, simplesmente, que “a história não é, pois, nunca a história, mas a história-para”, segundouma expressão de Lévi-Strauss (1962: 341) dificilmente superável em termos de concisão eprecisão. Esta também me parece ser, aliás, uma das conclusões de Gow (2001, em especial,a “Introdução”), um dos melhores exemplos de aplicação de uma perspectiva levistraussianaà historicidade das sociedades ditas sem história.

21 Ver Apêndice VII.

22 O que significa uma abstenção de quase 24% do eleitorado. Além da alta taxa, que se re-pete em todas as eleições, o colégio eleitoral de Ilhéus tem a particularidade de representarmenos de 48% de sua população. O de Itabuna, cidade vizinha, por exemplo, representamais de 68% da população. De acordo com o vereador Joabes Ribeiro, Ilhéus seria a cidadebaiana “onde há a mais distorcida proporção entre habitantes e eleitores”.

23 Existe, também, uma importante minoria indígena, que vem aparecendo cada vez maisnos últimos anos – ver Paraíso (1982; 1989), Barickman (1995) e Viegas (1998, 2003).

24 Apropriações que costumam passar pelo filtro da mídia, originando-se mais nas novelas detelevisão ou filmes de cinema do que nos livros propriamente ditos. Além disso, a relação dacidade com a obra de Jorge Amado não é tão homogênea ou constante quanto se pode ima-

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ginar. Conta-se que, até a década de 1970, seus livros, considerados comunistas e pornográ-ficos, eram proibidos no Instituto Nossa Senhora da Piedade. Hoje, são praticamente obri-gatórios. Os membros do movimento negro, por sua vez, costumam protestar contra oexclusivismo de sua obra como representante da “cultura regional”, observando o fato de quesistematicamente excluem personagens negras.

25 Sobre o turismo em Ilhéus, ver Menezes (1998). Como observa a autora, “Em geral, a‘natureza e a história’ são apontadas como os dois ‘filões’ de exploração do turismo em Ilhéus,porém o que se entende como ‘história’ por vezes também é acionado sob o nome de ‘tradi-ção’ ou ‘cultura de Ilhéus’” (Menezes 1998: 12).

26 Sobre o carnaval antecipado, visto pelo movimento negro como “carnaval de brancos”, verMenezes (1998: 84-85) e Silva (1998: 106, 117).

27 A situação parece estar se alterando hoje, mas, desde 1997, Menezes (1998: 79-80) obser-vou a polêmica em torno da possibilidade de uso turístico dos grupos negros em geral. Otrabalho de Menezes (1998: 23) revela, também, como uma estrutura segmentar está emjogo nessa polêmica, uma vez que diferentes níveis de inclusão identitária podem ser aciona-dos: “ilheense”, “baiana”, nordestina”, “brasileira”, e assim por diante.

28 Para uma rápida revisão das diferentes formas em que o quesito “cor” foi utilizado nos Censosbrasileiros ao longo da história, ver Posada (1984).

29 Ver Falcón (1995: 122-123, 128, 139-140), Vinháes (2001: 113-156), Ceplac (1982: 26)e Freitas (1979).

30 Ainda que o Agora de 10-16/1/1992 anunciasse em sua manchete principal: “Sai a ZPEde Ilhéus”, explicando que o governo federal autorizara a “instalação de uma Zona deProcessamento de Exportações (ZPE) em Ilhéus”, instalação cuja criação era disputada peloprefeito João Lírio e pelo candidato Antônio Olímpio.

31 A página 5 do Agora de 22-28/5/1992 noticiava que Jabes estaria tentando uma coligaçãode esquerda, envolvendo PT, PSB, PCdoB e PDT, com seu irmão, Joabes, à frente.

32 Neto do médico que deu o nome à principal avenida de Ilhéus, residência de parte dasfamílias da elite da cidade, cuja maioria não tem a menor idéia de que Soares Lopes era negro.

33 A coluna política do jornalista Marcos Correa, na página 8 do Agora de 2-7/5/1992, no-ticiava: “Ronaldo Santana lança seu nome para prefeito pelo PL”, sem fazer qualquer men-ção, novamente, ao fato de o candidato ser negro. O candidato, por sua vez, lembrava cons-tantemente aos militantes negros que havia nascido em uma das partes mais pobres da Con-quista (conhecida como Jamaica) e que fora menino de rua.

34 Além da sede, o Município de Ilhéus possui nove distritos e cerca de quarenta povoados earraiais. Alguns deles se situam a mais de 50 km de distância da sede.

35 Um militante do Rastafiry lembrou que “o importante mesmo foram as passeatas que agente fazia em Ilhéus, nos distritos; o apoio que dávamos nos comícios deles”.

36 É bem possível que a aparente complexidade do aparelho de Estado, do qual uma das pedrasangulares é, sem dúvida, a divisão dos poderes, sirva também para explicar e, talvez, justificar e

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legitimar aquilo que de um ponto de vista mais ‘simples’ poderia ser encarado como ilusão e traição.

37 Essa declaração revela, aliás, uma enorme clareza em relação ao papel dos chamados media-dores, tema que será abordado no quinto capítulo.

38 Ver, por exemplo, Caldeira (1980; 1984). No primeiro texto, a autora insiste em exemplosque demonstrariam a suposta ininteligibilidade do discurso político para os moradores daperiferia de São Paulo, atribuindo, bondosamente, sua alienação à “falta de informação”(Caldeira 1980: 84, 87-88, 108, 115). No segundo, uma monografia, após insistir no fatode que a “homogeneidade” dessa periferia se deve à “pobreza”, “falta”, “carência”, “dificulda-de” etc., sugere que o pensamento político de seus informantes está preso em círculos vicio-sos (Caldeira 1984: 198) ou “acaba entrando em uma espécie de círculo vicioso” (idem: 219),e que o discurso de alguns deles é um verdadeiro “‘samba do crioulo doido’” (idem: 269). Nofinal, de modo também caridoso, Caldeira explica que a fragmentação e as contradições nosdiscursos de seus informantes se explicam pela complexidade da sociedade em que vivem(idem: 283-284). Como observou Magalhães (1998: 115), contudo, as bricolagens efetuadaspelos eleitores com suas concepções e opções políticas jamais derivam da pura desinformaçãoou da simples ignorância.

39 Sobre os dois últimos pontos, ver Villela e Marques (2002: 76, 83-84).

40 Nos termos de Deleuze (1990: 221-222), os eleitores estão sempre entre a “quitação apa-rente” (ou seja, imaginam que saldaram sua dívida, mas ela, certamente, ainda será cobradamais uma vez) e a “moratória ilimitada” (quando se posterga o pagamento, mas se mantéma obrigação). Sobre esse ponto, ver, também, Villela e Marques (2002: 65, 72, 76, 81, 91,94), Borges (2004: 110, 138-139) e Kuschnir (2000a: 39-40).

41 Como dizia alguém em Ilhéus, “negro não vota em negro, pobre não vota em pobre, mu-lher não vota em mulher”. O curioso é que a mesma pessoa dizia, também, que, “na hora queo homem tem voto, sua condição social ou racial não conta”.

42 Nos termos de Gaxie e Lehingue (1984: 33), “em política, ‘dizer é fazer’”.

43 Como sugeriu Tambiah (1981: 128), é preciso combinar a idéia do “performativo” da fi-losofia da linguagem com a de “performance” como atuação – e isso não apenas no sentidode atuação teatral, mas naquele de “atuar sobre”, “influir”, o que tornaria quase inútil a ad-vertência de Bourdieu (1982: 95-96) de que “a eficácia simbólica das palavras se exerce apenasna medida em que a pessoa-alvo reconhece quem a exerce como podendo exercê-la de direito”.Pois não há quem não saiba que “a força ilocutória das expressões”, seu poder instituinte, nãopode ser buscada “nas próprias palavras”, mas no caráter “institucional” da linguagem, na“autoridade” de quem a utiliza.

44 Crença que, é claro, não se confunde com outras, na medida em que existem, como sus-tenta Veyne (1976: 624), “diferentes modalidades de crença”, dotadas de “sabores diferen-tes”: “crença-assertiva, crença-deliberação, ato de fé, crença-promessa, lógica ideológica etc.”(ênfase minha). A “crença-promessa”, aliás, ilustra com precisão o que Mannoni (1973) con-sidera a estrutura básica das crenças em geral, a qual pode ser resumida na famosa formula-ção “eu sei, mas mesmo assim…”, aplicável, aparentemente, tanto a horóscopos (“sei que sãofalsos, mas mesmo assim...) quanto a políticos (“sei que ele mente, mas mesmo assim...”).

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45 Como escreve Garrigou (1992: 237-238), um tanto acidamente, “a política democrática éum mercado de promessas batizadas de programas” (acrescentando, em nota, que isso “nãoé uma perversão, mas a própria substância da democracia eleitoral”).

46 Barreira (1998: 49) contrasta as promessas com os acordos, sublinhando que as primeirassão públicas e tendem a não ser cumpridas, enquanto os segundos costumam ser restritos e,via de regra, cumpridos.

47 Foi justamente a adoção desse tipo de perspectiva que permitiu ao próprio Herzfeld desen-volver uma sofisticada análise de uma aldeia grega, na qual demonstra, etnograficamente,como segmentaridade e centralidade estatal se opõem e se combinam simultaneamente: aseleições locais, por exemplo, só ganham inteligibilidade quando encaradas do ponto de vistada “política segmentar” (Herzfeld 1985: 99), e mesmo as eleições nacionais só se mostramcompreensíveis quando tratadas como “política segmentar estendida” (idem: 111).

48 Ver Apêndice VI.

49 É claro que se “segmentação” pode ser aplicada em sentido próprio à vida política das so-ciedades com Estado, noções ligadas à idéia de descendência devem ser compreendidas emsentido apenas analógico.

50 Lembro-me da repentina concordância entre três deputados britânicos de partidos dife-rentes – e que até aquele momento do debate só haviam discordado – quando o entrevistadordo programa de televisão de que participavam levantou a questão dos protestos contra a “novaordem mundial”: todos foram rápidos e unânimes em lembrar a necessidade de os protestosserem trazidos para o interior da política oficial.

51 Essa mesma dualidade de princípios é observável no caso dos blocos afro. Em Salvador,por exemplo, o Ilê Aiyê pode ser reconhecido como origem de todos os blocos sem que istoimpeça que haja competição entre eles – seja nos desfiles de carnaval, seja na busca de reco-nhecimento, projeção e sucesso.

52 Como bem observaram tanto Jeanne Favret-Saada (1966: 107) quanto Adam Kuper (1982:84), o modelo nuer só apresenta o aspecto de árvore da perspectiva de um observador exter-no; do ponto de vista de um indivíduo que faça parte do sistema, surge, antes, como umasérie de círculos concêntricos, em relação aos quais ego ocupa a posição central e a “tribo”representa o círculo mais externo, com as linhagens e os clãs intercalando-se entre ambos.

53 Partindo desse sentimento de quase irritação que todos costumamos experimentar quandoouvimos alguém dizer que “todos os políticos são iguais”, Magalhães (1998: 52) acabou porconcordar com seus informantes, na medida em que “os políticos e os partidos são percebi-dos como iguais porque, de fato, ocupam posição homogênea frente aos eleitores, têm o mesmoobjetivo imediato, etc.”, e em que “os políticos são tomados em conjunto, pertencem a ummundo à parte, do qual os comuns não fazem parte” (idem: 113 – grifo da autora). Reiteroapenas que isso só é verdadeiro quando se toma o ponto de vista da segmentaridade binária.

54 Como sugeriu Gellner, a “vontade de autonomia em face de um poder central” seria umtraço de unidade das tribos da África do Norte” (apud Favret-Saada 1966: 107); Salzman(1978: 63), por sua vez, demonstrou como a organização segmentar dos Yomut sempre fun-cionou como uma máquina de guerra contra o Estado persa; e, no plano teórico, Karp e

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Maynard (1983: 488) sugerem que “os Nuer contribuem com um exemplo negativo para ateoria do Estado”.

55 Criado pelo movimento negro a fim de servir de contraponto às comemorações oficiais do13 de maio (abolição da escravidão, denunciada pelo movimento como “falsa abolição”), oDia da Consciência Negra passou a ser celebrado, a partir de 1971, no dia 20 de novembro,data na qual, em 1695, teria sido assassinado Zumbi dos Palmares, líder do maior quilomboe da maior resistência negra da história do Brasil.

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CAPÍTULO 4

2000: ELEIÇÕES

Ao contrário do que ocorrera em 1996, a situação do movimento afro-cultural de Ilhéus por ocasião das eleições municipais de 2000 – bem comosuas relações com o poder municipal – parecia bem menos problemática.Desde 1997, os grupos vinham novamente participando do carnaval da ci-dade e, para isso, haviam recomeçado a receber um auxílio financeiro por parteda Prefeitura. A partir de 1999, a competição entre os blocos havia sido reintro-duzida, e até mesmo a premiação para o vencedor do desfile que não fora paganaquele ano (evento que será analisado no próximo capítulo), acabara con-vertida em um adicional financeiro que o Dilazenze receberia no carnavalseguinte. Finalmente, no carnaval de 2000, a Prefeitura extinguiu o IlhéusFolia, fazendo com que o único carnaval da cidade voltasse a ser o Cultural,evento no qual os blocos afro ocupam, vimos, uma posição central.

Além disso, não é exagerado dizer que, ao longo dos três primeiros anosdo segundo mandato de Jabes Ribeiro, as relações entre o movimento negroe a Prefeitura haviam sido, no mínimo, razoáveis, ao contrário do que ocor-rera na administração anterior, de Antônio Olímpio. A temida retaliaçãocontra os grupos que haviam apoiado Roland Lavigne em 1996 acabou nãoocorrendo, e o movimento, sem dúvida, tinha acesso mais fácil aos órgãosmunicipais com os quais precisava relacionar-se (principalmente a FundaçãoCultural de Ilhéus e a Ilheustur). Até mesmo o afastamento de Moacir Pinho(dirigente do MNU local) da Fundação Cultural de Ilhéus em 1998 – conse-qüência do rompimento do PT com o governo municipal que anunciara seuapoio à reeleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República– parecia, aos olhos dos membros do movimento afro-cultural, facilitar, e nãocomplicar, as relações com a Prefeitura e a administração municipal.

Não se deve imaginar, entretanto, nenhum cenário muito idílico paraas pretensões e desejos dos militantes negros. Os grupos afro continuavam asentir que eram mais ou menos desprezados, tratados como inferiores, pre-teridos em muitas ocasiões em benefício de outros grupos – como as academiasde balé clássico e moderno, que proliferam em Ilhéus,1 ou as atrações contra-tadas de fora da cidade, como grupos de pagode, trios elétricos, e outras. Sen-tiam, também, que os pagamentos a que faziam jus por suas apresentações

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eram muito baixos, efetuados com atrasos espantosos e, por vezes, nem mes-mo realizados. Nesse cenário, é evidente que muitos blocos e militantes pre-tendiam desenvolver durante “a política” de 2000 o mesmo tipo de “traba-lho” que sempre haviam realizado: trabalhar para quem os contratasse profis-sionalmente; pedir votos para quem com eles conseguisse estabelecer uma rela-ção um pouco mais estável e duradoura; votar seguindo suas linhas de lealda-de (pessoais, familiares, do próprio grupo, de outros grupos de que faziamparte ou mesmo partidárias e ideológicas) e de acordo com sua “consciência”.

É claro que a noção nativa de “voto consciente” não deve ser confundi-da nem com o pressuposto de que a análise das eleições deve partir da exis-tência de um “cidadão informado, atento e consciente” (Gaxie 1978: 13), nemcom o tema de que apenas uma conscientização política efetiva pode fazercom que os eleitores votem corretamente. Assim como Palmeira (1991: 123;1996: 47-49) e Villela e Marques (2002: 65-66, 69, 97) observaram emPernambuco, em Ilhéus, votar “conscientemente” significa, em geral, votarde acordo com ao menos uma de suas lealdades, e não simplesmente por di-nheiro ou a mando de alguém. Herzfeld (1985: 111) também observou aexpressão “eu tenho minha consciência”, que, em Creta, significava, basica-mente, votar de acordo com o “costume”, e não vendendo de forma mercan-til o voto – mesmo sentido assinalado por Banerjee (1999) na Índia. Se acres-centarmos a isso o apelo, por parte de políticos e candidatos, ao “voto cons-ciente” como forma de advertência contra a venda do voto (Scotto 1994: 47;Villela e Marques 2002: 82; entre outros), podemos concluir que, assim comoocorre com outros princípios da democracia participativa,2 estamos aqui àsvoltas com variações locais em torno de temas tidos como centrais tanto pelaideologia democrática quanto por muitos analistas do processo eleitoral. Oque não significa, tampouco, que tais variações sejam simples desvios ou de-turpações: o “voto consciente” em Ilhéus é tão consciente como em qualqueroutro lugar ou grupo, apontando, no final das contas, para a importância doestabelecimento de relações mais duradouras e menos imediatistas.

Por outro lado, em 2000, o assédio ao movimento afro-cultural pareciamais intenso, assim como o esforço de alguns candidatos para conquistar odireito de se lançarem como representantes desse movimento. Um deles, cer-tamente, era Gurita, que se apresentava agora como professor Gurita, con-correndo, mais uma vez, a uma vaga de vereador. Ele argumentava que suaderrota nas eleições de 1996 era um fato inteiramente previsível, pois, na-quele momento, estava apenas começando a preparar sua carreira. E que, por-tanto, o pleito de 2000 consistia no momento adequado para que, finalmen-

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te, o movimento negro da cidade elegesse um representante na Câmara Mu-nicipal. Marinho Rodrigues – nesse momento presidente do Dilazenze, doCEAC e, sem dúvida, o nome mais conhecido do movimento negro de Ilhéus– pretendia apoiá-lo, mas encontrava algumas dificuldades para fazê-lo.

Em primeiro lugar, não eram poucos os que recordavam a atuação deGurita no carnaval de 1999, quando, supostamente, teria colaborado paraprivar o Dilazenze do prêmio a que tinha direito por ter vencido a competi-ção dos blocos (como veremos no próximo capítulo). Sua performance naseleições proporcionais de 1998 – quando fora um dos coordenadores da cam-panha de Rúbia Carvalho para deputado federal – também era questionada,uma vez que, dizia-se, ele não teria cumprido os inúmeros compromissos epromessas que teria efetuado a fim de obter votos para sua candidata. Umadas irmãs de Marinho, por exemplo, ainda reclamava por não ter recebido omaterial de construção para a reforma de sua casa, material que, supostamente,teria sido prometido a ela.

Além disso, é preciso observar que, entre 1997 e 2000, Gurita funcio-nara como uma espécie de mediador entre o movimento afro-cultural e a ad-ministração municipal de Ilhéus (tema que será abordado com detalhes nopróximo capítulo). Como já vimos, os votos que conquistara em 1996, mes-mo não tendo sido suficientes para elegê-lo como vereador, o haviam creden-ciado como detentor de um razoável capital político, assim como ocupantede uma importante posição na rede de relações com o movimento negro. Suanomeação para a chefia da Divisão de Esportes da Secretaria Municipal deEducação decorrera desse diagnóstico e o colocara em uma posição em que,supostamente, possuía os meios para articular o relacionamento entre o movi-mento afro-cultural e a Prefeitura. Por outro lado, essa posição também ser-via para que Gurita se tornasse uma espécie de bode expiatório potencial paratudo o que se imaginava não ter dado certo. Seguindo uma lógica semelhan-te à de inúmeros sistemas de bruxaria, os fracassos eram convertidos em fa-lhas pessoais (algo que não havia sido feito como deveria ou como se espera-va), e Gurita encontrava-se em uma posição suficientemente distante paraser acusado, e suficientemente próxima para que a acusação pudesse ter algu-ma eficácia, fazendo-o, talvez, modificar seu comportamento, aprofundar seuscompromissos com os grupos envolvidos ou, em última instância, perder seusvotos e cargos.

Já em 1997, Gurita trocara de partido, filiando-se ao PSDB, legenda doprefeito, o que, sem dúvida, facilitara sua nomeação e, em tese, deveria faci-litar sua ação como mediador. Ele explicava essa mudança com o mesmo dis-

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curso que podia ser ouvido de praticamente todos os militantes do movimentoafro-cultural e, certamente, de inúmeros segmentos da população local: “emIlhéus não tem jeito, é preciso apoiar o governo, aqui nem existe oposição”.É claro que todos sabiam que existia uma oposição, mas esse discurso signifi-cava, basicamente, o pressuposto de que o apoio a qualquer indivíduo ou grupo“inimigo do prefeito” só poderia acarretar retaliações diretas e imediatas – oque não teria ocorrido em 1996 apenas porque, naquele momento, Jabes nãoera o prefeito.3 Nesse sentido, as adesões políticas parecem relacionadas aavaliações a respeito da força das candidaturas, força que, é claro, tem que serpublicamente demonstrada durante toda a campanha. E essas demonstraçõesde força são, em geral, responsáveis pela crença nas possibilidades de vitóriade determinado candidato – crença que é, sem dúvida, um dos elementos(ainda que não o único) a determinar a adesão.4 Esse tipo de raciocínio, aliás,estende-se aos planos estadual e nacional, e havia sido amplamente aciona-do, em 1998, para justificar tanto o apoio quanto o voto em Antônio CarlosMagalhães e em Fernando Henrique Cardoso.

Por outro lado, essa também era a justificativa apresentada por Jabes Ri-beiro para se ter aliado ao PFL e apoiado a reeleição do presidente da Repú-blica (ao contrário do que fizera apenas dois anos antes, na campanha de 1996,quando se aliara ao PT e dirigira duras críticas aos governos estadual e fede-ral). “Sem essa mudança em suas alianças, o povo estaria apedrejando o pre-feito na rua, já que ele não teria dinheiro nem para limpar a cidade” – era aexplicação que todos os aliados de Jabes (assim como ele próprio) davam parao que a oposição chamava de traição e quebra de compromissos. É curiosorecordar que era essa, também, a linha de argumentação de Antônio Olímpio,nas eleições de 1992, e de Roland Lavigne, nas de 1996: ambos sustentavamque apenas eles, que contavam com o apoio do governo estadual, poderiamadministrar Ilhéus satisfatoriamente – argumento que Jabes combateu feroz-mente, sendo malsucedido na primeira ocasião, mas triunfando na segunda.

Tudo indica, pois, que os discursos e argumentos políticos parecem fa-zer parte de um estoque finito e limitado de enunciados, que circulam inces-santemente entre emissores e receptores que não apenas alternam constante-mente sua posição respectiva no processo, como atualizam enunciados apa-rentemente idênticos para justificar posições muito diferentes, e enunciadosdiferentes para justificar posições idênticas – tudo de acordo com os contex-tos e os interesses em jogo, isto é, com a “conjuntura”, como costumam jus-tamente dizer os políticos. Essa é uma das razões pelas quais as técnicas de

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pesquisa que privilegiam as entrevistas parecem particularmente inadequa-das ao caso da política: políticos e eleitores tendem a adotar uma espécie dediscurso genérico, em que clichês, criados em diversas instâncias, como a mídiapor exemplo, são rápida e continuamente absorvidos e repetidos. Por isso, aspessoas parecem poder dizer qualquer coisa a respeito da política, dependen-do do momento, de seu humor, do interlocutor, e assim por diante. É porisso, igualmente, que, também em Ilhéus, podemos observar que as mesmasacusações lançadas pelos eleitores contra os políticos – que estes não cum-prem suas promessas, que só pensam neles mesmos, que só se interessam pordinheiro etc. – são usadas pelos políticos a fim de criticar os eleitores.5

Assim, o café-da-manhã organizado por Gurita no prédio da Associa-ção Desportiva 19 de Março, no dia 27 de agosto de 2000, visava precisa-mente mostrar aos representantes do movimento afro-cultural da cidade queele contava com o apoio do prefeito e que, portanto, tinha condições de ele-ger-se vereador e ser o representante do movimento na Câmara Municipal.Por outro lado, ele também pretendia mostrar a Jabes Ribeiro que já contavacom o apoio do movimento negro e, conseqüentemente, com uma boa basede votos, o que, certamente, aumentaria seu prestígio junto ao prefeito, fa-zendo com que seu apoio fosse, talvez, ainda mais consistente. Logo na aber-tura do café-da-manhã – que, além dos militantes negros e de Jabes, contavaainda com a presença de algumas autoridades municipais –, Gurita anuncioua transformação do primeiro andar do prédio da 19 de Março no Memorialda Cultura Negra de Ilhéus, e acrescentou:

“Pela primeira vez na cidade de Ilhéus, a gente consegue, com muito trabalho,com ações, agregar a parte maior do movimento em uma campanha de prefei-to e vereador. Nas outras vezes, o movimento se dividia muito, um ia apoiarfulano, outro ia apoiar beltrano, e ficava aquela divisão. Mas, com o amadure-cimento no dia-a-dia e com as pancadas que nós temos tomado ao longo dosanos, esta campanha agora está diferente. Nesta campanha, o movimento ne-gro de Ilhéus tem um candidato a vereador definido e tem um candidato aprefeito definido. É necessário então pedir a vocês que, a partir de hoje, parademonstrar esse apoio, para que as pessoas sintam esse apoio, que vocês come-cem a botar o bloco na rua, comecem a botar o time em campo. Colocando obloco na rua e dizendo ‘nós estamos com o prefeito Jabes Ribeiro e estamoscom Gurita, que é o nosso vereador’. É necessário que se faça isso porque as-sim a gente mostra a toda a comunidade ilheense que o movimento negro dacidade de Ilhéus tem uma definição política, tem uma consciência política eque tem os seus candidatos próprios. Porque aqueles que acham que, apoian-

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do o candidato A ou B vão ganhar alguma coisa, isso é ilusão. Podem ganharagora uma camisa de batizado de capoeira, podem ganhar um tambor com pelede couro, mas daqui a pouco a pele gasta, o tambor acaba e eles vão ficar an-dando para trás. Desta vez, o compromisso do movimento negro de Ilhéus éter um candidato a vereador na Câmara para poder desenvolver políticas parao movimento negro da cidade de Ilhéus, através de grandes projetos, de gran-des ações que venham trazer, sobretudo, emprego e renda para esse movimen-to. Porque a gente sabe o quanto se sacrifica a turma que desenvolve a cultura,que faz da cultura até uma forma de emprego e não ganha dinheiro; a gentesabe que não se ganha dinheiro aqui fazendo cultura, sobretudo aqui na nossacidade de Ilhéus. Mas eu tenho certeza de que através de projetos, o poderLegislativo, em parceria com o poder Executivo, vai desenvolver grandes pro-jetos, que trarão segurança para aqueles que produzem a cultura negra aqui emnosso município”

Ainda que, nas eleições municipais de 2000, Gurita talvez fosse o únicocandidato a vereador que realmente aspirava a se apresentar como represen-tante do movimento negro da cidade, ele estava longe de ser o único a pre-tender o apoio desse movimento. Como sempre acontece em Ilhéus, algu-mas outras candidaturas ameaçavam, em maior ou menor grau, sua preten-são.6 Elício Gomes, um dos fundadores do bloco afro Gangas em 1986, játendo se candidatado a vereador em 1992, voltara a candidatar-se, desta vezpelo PSD, partido aliado ao prefeito Jabes Ribeiro. Após o fracasso de 1992,Elício convertera-se a uma religião evangélica, deixara seu bloco e afastara-sequase completamente do movimento afro-cultural. Apesar disso, seu passa-do de militante negro podia habilitá-lo, se não a representar o movimento,ao menos a se apresentar como alguém que mantinha relações históricas comos grupos negros, que, portanto, só teriam a ganhar caso ele fosse eleito – oque efetivamente veio a ocorrer: Elício obteve 652 votos (contra os cerca denoventa que obtivera em 1992, pelo PL) e tornou-se vereador, candidato àreeleição em 2004.

Maria Lúcia Magalhães Batista era candidata pelo PPB, partido queapoiava a candidatura Roland Lavigne para a Prefeitura, e costumava apare-cer principalmente nos comícios realizados na Conquista, bairro onde resi-dia. Apresentando-se como membro do Dilazenze (o que ela já não era hámuitos anos) e como “produtora de cultura negra” (o que ninguém sabia muitobem o que queria dizer), Nêga Lúcia, como é conhecida, tentava capturaralguns votos do movimento afro-cultural, não apenas para si mesma, mas,principalmente, para Roland. Sua candidatura, entretanto, jamais chegou a

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ser muito consistente ou a ser levada efetivamente a sério pelos militantesnegros, ainda que ela viesse a obter 159 votos, quantidade muito abaixo donecessário para elegê-la, mas, não obstante, suficiente para que, após as elei-ções, tenha sido convidada por Joabes Ribeiro para trabalhar com ele – emesmo que, durante as eleições, tivesse estado do lado oposto.

Além de Gurita, Elício e Nêga Lúcia, alguns outros nomes, menos cota-dos, apareciam como possíveis candidatos ligados ao movimento negro.Contudo, o principal problema que Marinho enfrentava para oficializar oapoio a Gurita tinha origem em sua própria família. Um de seus irmãos, GilvanRodrigues, decidira candidatar-se mais uma vez a vereador, lançando-se peloPSC, partido que possuía candidatura própria para a Prefeitura. Curiosamente,o candidato a prefeito era Cosme Araújo, o vereador negro, advogado e vizi-nho dos Rodrigues, contra quem, em 1996, eles haviam se envolvido em umaverdadeira batalha. Gilvan, que estivera no centro do embate e que sempreparecera o mais avesso ao nome de Cosme, acabara sendo convidado por estea se filiar ao partido e se lançar candidato. Como Nêga Lúcia, ele também sócostumava aparecer nos comícios na Conquista e adjacências, apresentandocomo slogan de campanha “Gilvan Rodrigues. A Cultura de Ilhéus TemNome”. Além de insinuar sua condição de membro privilegiado do movi-mento afro-cultural, o discurso de Gilvan tinha um único alvo, Gurita: acu-sava-o de ser um falso representante “da cultura afro e da cultura negra brasi-leira”; de ter traído os blocos afro no carnaval de 1999; de ter anunciado a seucandidato a prefeito que “tinha condições de arrancar o voto do movimentonegro, o voto do pessoal da religião afro-brasileira”; e Gilvan completava:“Mentira! Esse candidato não tem nenhuma credibilidade, não tem nenhumserviço prestado às entidades afro-culturais de Ilhéus”.

* * *

Quinze dias após chegar a Ilhéus, em agosto de 2000, sofri um pequenoacidente, que me deixou impossibilitado de sair de casa por quase um mês.Decidi, então, propor a Marinho Rodrigues tornar-se meu auxiliar de pes-quisa, proposta que ele aceitou imediatamente, agradecendo a “ajuda” (já que“estou precisando mesmo”), mas fazendo questão de acrescentar que aceita-ria a proposta de qualquer maneira, não apenas porque assim também pode-ria “ajudar-me” como, principalmente, pela oportunidade de discutir e ana-lisar “a política”, coisa de que tanto gosta. Nunca tive razões para duvidar que

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isso fosse verdade, tal o interesse e a competência demonstrados por Mari-nho ao longo dos três anos em que acabou desempenhando essa função deauxiliar de pesquisa.

O primeiro trabalho que solicitei a Marinho foi uma tentativa de levan-tamento das intenções de voto dos membros de sua família, dos componen-tes do Dilazenze e de freqüentadores do Tombency. E ainda que, no final,apenas os primeiros tivessem sido “pesquisados”, Marinho não deixou dedemonstrar sua surpresa com o que considerava uma quantidade excessiva devotos para Gilvan. Isso, é claro, traía o óbvio, ou seja, que Marinho tambémtinha um interesse pessoal na pesquisa sobre política. Afinal de contas, a estaaltura, ele já havia sido procurado pelo prefeito, (“que me convocou para aguerra”) e já havia decidido que apoiaria não apenas Jabes, mas também Gurita.Àqueles que manifestavam sua intenção de votar em Gilvan – evocando sempreo parentesco, mas, muitas vezes, também uma relação de compadrio ou deajuda passada que se acrescentavam aos laços familiares –, Marinho buscava“explicar que votar em Gilvan é perder o voto, já que ele não tem chancenenhuma de se eleger; votar em Gurita é uma chance de o movimento negrofinalmente eleger um vereador”. O fato de vários problemas com Gurita te-rem ocorrido no passado recente era minimizado com o argumento de que,apesar de tudo, ele era alguém de quem se poderia, depois de eleito, “cobraros compromissos assumidos”.

O levantamento efetuado por Marinho compreendia trinta pessoas.Todas (com exceção de uma, que disse que anularia o voto) declararam quevotariam em Jabes Ribeiro para prefeito. Para vereador, doze anunciaram ovoto em Gilvan, dez em Gurita, e as oito restantes dividiram-se entre quatrocandidatos (dos quais, um receberia quatro votos, outro receberia dois votose os dois restantes, um voto cada). Na listagem, é fácil observar que os mem-bros de famílias nucleares tendiam a votar homogeneamente e que, em geral,ao menos no plano das declarações de intenção, todos tentavam agradarMarinho, que, como todos sabiam, “estava com Jabes e com Gurita”. As jus-tificativas para o voto eram redundantes: em Gurita, porque “ele representa omovimento negro” ou porque “Marinho está com ele”; em Gilvan, por serirmão, filho ou tio; nos demais, por apresentarem um grau de parentesco aindamais próximo do que Gilvan,7 ou porque, no passado, teriam ajudado de talforma que a eles nada poderia ser negado, incluindo o voto.

Dessa modestíssima amostra, creio que alguns aspectos devem ser salien-tados. Em primeiro lugar, que a proposição que sustenta que uma relação so-

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cial privilegiada (seja de consangüinidade, afinidade, aliança, amizade ou “dí-vida”) determina o voto, sem ser incorreta, não acerta inteiramente o alvo.Pois cada um mantém mais de uma relação social que pode considerar privi-legiada em determinado momento e, no limite, é no momento do voto queé preciso escolher qual delas deverá ser selecionada.8

Assim, o conhecido fenômeno de divisão de votos no interior de umafamília ou grupo9 também funciona para os indivíduos. Um eleitor de Ilhéusexplicou que votaria em determinado candidato para vereador porque este oajudara muito em um momento de grande necessidade; o problema é quehavia outro candidato que também o ajudara em outra ocasião; o primeiro,entretanto, o ajudara antes do segundo; sendo assim, ele decidira votar noprimeiro candidato e mostrar seu agradecimento ao segundo votando em seuirmão, que era candidato a prefeito. O fato de que nenhum dos dois prova-velmente jamais viria a saber de tão complexa decisão sugere que o agradeci-mento visava mais pacificar a consciência do eleitor do que servir de instru-mento para uma finalidade qualquer; o fato de os dois candidatos pertence-rem a partidos diferentes, e mesmo antagônicos, não tinha, evidentemente,qualquer importância. Outra forma de “dividir o voto” é votar em alguém epedir votos para outrem.10 Assim, quando um dos irmãos do prefeito, secre-tário municipal de serviços públicos, procedeu à entrega de cestas básicas nobairro da Conquista, pediu votos para Gurita, que o acompanhava no ato,mas fez questão de ressaltar que, pessoalmente, não poderia votar nele, umavez que, como todos sabiam, seu próprio irmão era candidato a vereador.

Finalmente, a listagem e as explicações coletadas por Marinho sugerem,também, que o vocabulário que associa, explícita ou implicitamente, qual-quer ação política a uma transação econômica deveria ter seu uso cuidadosa-mente limitado aos casos em que, de fato, seu rendimento é apreciável. Poisreduzir as proposições que explicam o voto como uma forma de “agradeci-mento” ou como o pagamento de uma “dívida” a fórmulas do tipo credor/devedor significa, por vezes, trair o espírito com que são formuladas. Do pontode vista nativo, “agradecer” ou “pagar uma dívida” são, sobretudo, maneirasde ficar em paz com a própria consciência. Mais do que a uma espécie deeconomicismo generalizado – que, além de tudo, acaba também por despo-litizar a política, na medida em que evita encarar os dispositivos de poder emsi mesmos, substituindo-os por símiles e metáforas econômicas –, remetempara o que poderíamos denominar, seguindo Paul Veyne (1987), certas for-mas de subjetivação política. Assim, o que Foucault (1984b: 32-33) revelou

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para a ética antiga também parece ocorrer na política: nesta, como naquela,não existem apenas normas ideais e comportamentos reais, mas também mo-dos de subjetivação ajustando esses dois planos. De fato, no mesmo sentidoem que Foucault fala da constituição de um sujeito ou de uma consciênciamoral, poderíamos falar da objetivação de um sujeito político e de uma cons-ciência política, pois, como lembra Veyne (1987: 7), as relações de mando eobediência passam necessariamente pela consciência dos agentes, o que con-verte a subjetividade em uma dimensão específica, como a economia ou apolítica em sentido restrito. Essa subjetividade não deve, entretanto, ser con-fundida com nenhum tipo de sujeito originário: trata-se, antes, de “compo-nentes de subjetivação” (Guattari 1989: 24), que articulam modos de relaçãoconsigo e com os outros. O que denominamos sujeitos são apenas “termi-nais” em relação a esses processos de objetivação.11

Assim, a democracia, como qualquer sistema político ou social, é com-posta por normas, mas também depende dos comportamentos efetivamentelevados a cabo para funcionar. Se essas duas dimensões parecem não se ajus-tar – por exemplo, se boa parte dos eleitores não comparece às urnas para votar,mesmo em um sistema como o brasileiro, em que o voto é obrigatório –,podemos construir belos modelos destinados a explicar por que isso não acon-tece, imaginando que, em algum lugar, no tempo ou no espaço, as coisas se-jam mais adequadas; apelando para o caráter recente de nossa democracia,para a falta de educação política do povo, para a inconseqüência das elites,para lacunas da legislação eleitoral, para a parcialidade da mídia etc. Pode-mos, também, propor mudanças nas leis ou simplesmente acionar o sistemarepressivo. Mais interessante, contudo, é interrogar mais profundamente oque se passa com os sujeitos quando estes votam ou deixam de votar, ou quandovotam nesse ou naquele candidato.12

Se votar é uma obrigação legal, a possibilidade de não fazê-lo está sem-pre aberta e todos sabem que, especialmente para os eleitores mais pobres, assanções contra a abstenção eleitoral (impossibilidade de tirar passaporte, sus-pensão de salário etc.) são quase irrisórias. No entanto, a maior parte daspessoas vota, mas elas o fazem por razões que podem ser bem diferentes. Comodemonstrou Banerjee (1999), na Índia, onde o voto não é obrigatório, votarpode ser visto como um dever ligado à idéia de cidadania, como expressão dacondição de cidadão, como um direito do qual não se deve abrir mão, comoforma de auto-estima, como uma espécie de arma para intervir no sistema –fórmulas que não excluem de modo algum o uso “tático” do voto visando

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obter algum benefício mais imediato. Acrescentemos a isso que alguém podevotar simplesmente porque se sente a isso obrigado, porque supõe que podeajudar a mudar o mundo (muito ou pouco) com seu voto ou porque é isso oque se faz no primeiro domingo de outubro, e teremos uma idéia da diversi-dade de razões que levam ao voto em Ilhéus e, provavelmente, em toda parte.Da mesma forma, pode-se não votar porque se perdeu o título há muito tem-po e não se providenciou outro, porque a mudança de domicílio não foi re-alizada ou porque os políticos são todos iguais, e assim por diante.

Além disso, votar nesse ou naquele candidato depende não apenas dosaspectos do candidato selecionados por cada eleitor (ver Goldman e Sant’Anna1995: 26), como também das dimensões de sua própria subjetividade que oeleitor colocará, naquela ocasião, em relevo. Pode-se, certamente, votar emDe Gaulle por ser o único capaz de controlar os comunistas ou em virtude da“dignidade de sua vida privada” (Veyne 1987: 8); pode-se votar (ou deixar devotar) em Collor porque ele é o único capaz de deter Lula, porque ele é boni-to ou porque “ele tem aquela coisa de anos 60” (Goldman e Sant’Anna 1995:25); pode-se votar (ou não) em Jabes Ribeiro por este ser aliado (ou inimigo)de Antônio Carlos Magalhães ou Fernando Henrique Cardoso; pode-se vo-tar (ou deixar de votar) em Gurita porque ele será um representante do mo-vimento negro ou porque será mais fácil fazer cobranças a um candidato quedepende dos votos do grupo.

Assim, o argumento de Marinho contra o voto em Gilvan (votar nelesignificaria simplesmente “perder o voto”) só podia funcionar nos casos emque havia alguma homogeneidade entre as objetivações das quais ele era, aomesmo tempo, o autor e o suporte, e aquelas de seus interlocutores. Não seperde o voto quando se imagina estar votando de acordo com sua consciên-cia moral, ou quando se imagina que, mesmo perdendo a eleição, o candida-to poderá oferecer alguma coisa ao eleitor. De toda forma, esse tipo de argu-mento reproduz evidentemente um discurso de circulação muito mais abran-gente. A propaganda de rádio do PSDB em Ilhéus, nas eleições de 2000, alar-deava esse ponto sem meias palavras:13 “Não perca seu voto! Vote em quemvai vencer as eleições! Vote Jabes 45!” Independente de se considerar esse ar-gumento de um ponto de vista mais simpático ou crítico, o fato é que inúmeroscandidatos a vereador o empregam constantemente nas eleições em Ilhéus –e o mesmo é evidentemente verdadeiro nas eleições estaduais e nacionais.14

O curioso é que o próprio Gilvan parecia concordar ao menos com aparte do argumento de Marinho que sustentava que ele não tinha qualquer

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chance de ser eleito. Dizia abertamente que sabia disso e que não podia fazernada a respeito porque não dispunha dos recursos necessários para a campa-nha. Além disso, manifestava por vezes certo ceticismo acerca de seu própriovoto, ou seja, não havia decidido ainda se votaria em si mesmo – tal como ocorre-ra, aliás, em 1992, quando não anunciara sua candidatura a ninguém e, con-seqüentemente, não obtivera nenhum voto, nem mesmo o seu. Por que en-tão ele se candidatara era a pergunta óbvia que fazíamos, mesmo que, em parte,já conhecêssemos a resposta, pois todos sabem que nem sempre alguém secandidata com o único objetivo de vencer as eleições e ser eleito; às vezes, é tam-bém para obter alguma vantagem (imaginária ou real) marginal ou futura.15

O próprio Gilvan dizia que se candidatara em 1992 “apenas para com-por a lista do partido”, mas ninguém acreditava muito nessa explicação. Naverdade, candidato relativamente bem votado em 1988, ele equivocara-se eminterpretar o resultado dessa eleição como simples derrota eleitoral, e em aban-donar o trabalho político quase imediatamente após o pleito. Até hoje, repe-te-se que, naquele momento, Gilvan havia adquirido uma força eleitoral quepodia e devia ter utilizado nas eleições seguintes – o que simplesmente signi-fica que muitas vezes perder uma eleição pode ser apenas um meio para ga-nhar outra. Já em 2000, dizia-se que a candidatura de Gilvan havia sido pla-nejada por Cosme Araújo, visando tirar alguns votos de Gurita na Conquistae que, para isso, ele estaria recebendo uma “ajuda” do candidato a prefeito.

Em 1996, Dino Rocha anunciava abertamente que se candidatara a fimde se beneficiar da licença a que têm direito os funcionários públicos quedisputam eleições – mesmo que, no final da campanha, tenha mudado deidéia e tentado obter alguns votos. Inúmeros candidatos em Ilhéus – CosmeAraújo e Gildo Pinto são apenas dois exemplos – lançaram seus nomes nadisputa por uma vaga de deputado estadual em 1998, sabendo perfeitamen-te que não tinham a menor chance de conquistá-la, mas que uma votaçãorazoável no município lançava ou reforçava as bases para uma candidatura avereador, ou mesmo prefeito, em 2000. A própria candidatura de Cosme aprefeito – abrindo mão de uma quase certa reeleição para a Câmara – era in-terpretada por quase todos como resultado de algum acordo estabelecido comJabes Ribeiro com o propósito de “tirar votos” de Roland Lavigne (de quemCosme havia sido aliado em 1996, contra o mesmo Jabes). Da mesma for-ma, a candidatura de Rúbia Carvalho à Câmara Federal em 1998 (e não àAssembléia Legislativa, na qual suas chances de vitória eram muito maiores)foi lida por muitos como uma manobra de Jabes visando “tirar votos” domesmo Roland, e seu fracasso (já que este se reelegeu) não impediu que o

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prefeito repetisse a estratégia em 2002, lançando um quase desconhecido, Pipa,que obteve mais de 13 mil votos em Ilhéus. Se a manobra de fato existiu, seela foi realmente a responsável pela não-reeleição de Roland Lavigne em 2002e se Rúbia ou Pipa tinham consciência da operação são questões de difícilresposta, mas que nos colocam na direção de outro importante procedimen-to das táticas e estratégias eleitorais, acionado em todos os pleitos.

Uma coisa são os cálculos do eleitor quando decide seu voto e outra, bemdiferente, os dos políticos no momento em que pedem esse voto ou lançamsuas candidaturas. Mas também são distintos os interesses e cálculos conscien-tes de um candidato que concorre sabendo que suas chances, naquele mo-mento, são remotas ou mesmo inexistentes, e aqueles dos que apoiam tal can-didatura. Não tanto daqueles que por diversas razões – parentesco, agradeci-mento, compromisso, ironia (os que escolhem os candidatos mais feios oucom os nomes mais estranhos16), demissão (“para não ganhar mesmo”, comodizem alguns) – votam em candidatos improváveis, mas dos que lançam e,até certo ponto, apoiam candidatos desse tipo ou de natureza semelhante.

Ora, se, por um lado, o estabelecimento e o exercício dos sistemas polí-ticos ditos democráticos sempre dependeram da criação e do acionamentosimultâneos de uma série de técnicas disciplinares e de controle, por outro, éclaro que a ação e a margem de manobra dos agentes estão, até certo ponto,constrangidas pelas regras de funcionamento do sistema. Em suma, se a de-mocracia formal depende de certas formas de poder, ela também é uma dascondições reais para que práticas na aparência muito diferentes do ideal de-mocrático sejam efetivamente postas em ação.

Nesse sentido, não cabe discutir o que seria uma verdadeira democracia,nem se este ou aquele Estado específico (o brasileiro, por exemplo) é ou nãodemocrático. Trata-se apenas de tentar conferir um mínimo de inteligibilidadea processos muito reais que em contextos de sociedades nacionais organiza-das, ao menos em parte, sobre princípios democráticos. Pois, se concordar-mos, por um instante, em denominar “Estado democrático” aquele

“[...] que apela aos princípios da democracia política, cujo governo procede deeleições livres (no sentido de que os cidadãos podem efetivamente escolher entrecandidatos ao poder realmente diferentes), que pratica uma certa separação entreas ordens legislativa, executiva e judiciária, que em um plano mais geral reco-nhece serem os conflitos constitutivos da existência social e, pelo menos emprincípio, afirma que a negociação é o melhor meio para resolvê-los, e queadmite ser a função do Direito a de garantir a liberdade das pessoas (e de seusbens) e sua igualdade perante a lei.” (Châtelet e Pisier-Kouchner 1983: 170),

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não precisaremos de muita imaginação para adivinhar que uma organizaçãomolar dessa natureza exige todo um trabalho molecular de objetivação. E foiprovavelmente Foucault (1975: 4ª capa) o primeiro a sublinhar com a devidaênfase essa dependência, ao demonstrar a existência de uma certa modalida-de de poder que tornou possível a democracia como forma política: “sem dú-vida, o século XVIII inventou as liberdades; mas ele lhes forneceu um subsoloprofundo e sólido – a sociedade disciplinar, da qual ainda somos um produ-to”. Trata-se aqui, como sustenta Pizzorno (1988: 244), da “hipótese de queos regimes democráticos modernos liberais só são possíveis devido a um lon-go trabalho prévio de ‘disciplinarização’ de seus cidadãos”.17

Assim, quando Michel Offerlé (1993a: 147) chama a atenção para o fatode que a democracia representativa sempre pareceu uma “monstruosidadejurídica”, na medida em que conjuga um ideal da democracia direta (a parti-cipação eleitoral) e outro do governo de notáveis (os efetivos responsáveis pelofuncionamento do sistema), ele nos põe na pista de uma solução para o velhoproblema das relações entre práticas e ideais, comportamentos e normas, oucomo se quiser denominar. Pois tudo se passa, também entre nós, como naanálise da democracia grega conduzida por Paul Veyne, que demonstra que oregime político grego estava apoiado sobre a coexistência e a alternância dedois modelos bem diferentes: um “militante”,18 exigindo a participação detodos os cidadãos, e um mais “realista”, o governo de uma minoria ativa queconta com certa passividade generalizada em relação à vida política (Veyne1984 58-60).

Da mesma forma – mesmo sabendo que, entre a democracia grega e aque-la que emerge no século XVIII, apenas o nome permanece (idem: 57-58) –,não é difícil perceber que a democracia representativa se apoia sobre uma outraambigüidade constitutiva: de um lado, a representação política; de outro, aprofissionalização dos políticos. A representação política moderna, como omilitantismo para os antigos gregos, é um de nossos “semi-ideais”, como di-ria Veyne: mais que uma ideologia, já que não se trata de simples falsificaçãoda realidade ou de uma mentira útil, não chega a constituir uma prática, umavez que sua concretização é infletida sem cessar por mecanismos econômi-cos, comunicacionais, de controle e outros. A profissionalização dos políti-cos, característica da política moderna, por sua vez, funciona determinandoa esfera dos que efetivamente têm possibilidade de participar da vida políti-ca, bem como limitando as possibilidades de ação (Bourdieu 1989).19

Não se trata, pois, de imaginar que os ideais e as normas simplesmentese oponham às práticas e aos comportamentos. Ao contrário, é apenas sobre

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o pano de fundo do semi-ideal da democracia representativa que suas práti-cas podem funcionar e fazer sentido. Do mesmo modo, é apenas se apoiandosobre práticas dessa natureza que o ideal da democracia pode sobreviver econtinuar a ser sustentado contra todas as evidências do cotidiano. Nesse sen-tido, é importante lembrar, ainda que de modo muito sumário, algumas dasregras básicas de operação do sistema eleitoral brasileiro (ver Porto 2000;2002), pois elas traçam um campo e determinam regras que, mesmo quandoultrapassadas ou violadas, não deixam de constituir uma das matérias-primascom as quais se faz a democracia.

Trata-se, como se sabe, de um regime presidencialista bicameral (Câmarados Deputados e Senado), no qual eleições gerais, realizadas de quatro emquatro anos, escolhem, por um lado, o presidente da República, os governa-dores dos estados e os membros do Senado, cujo mandato é de oito anos (car-gos ditos “majoritários); por outro, escolhem-se os ocupantes da Câmara dosDeputados e das Câmaras Estaduais (Assembléias Legislativas) – cargos cha-mados “proporcionais”. Também de quatro em quatro anos, mas sem coinci-dir com as eleições gerais, são realizadas eleições municipais, nas quais se es-colhem os prefeitos dos municípios (em eleições majoritárias) e os vereado-res das Câmaras Municipais (em eleições proporcionais).

Nas eleições majoritárias, os partidos apresentam um candidato para cadanível em disputa (a não ser quando concorrem em coligações); o eleitor votaem um nome, e o mais votado é eleito. Nas eleições proporcionais, os parti-dos ou coligações apresentam uma lista de candidatos para cada nível em dis-puta, e o eleitor vota em apenas um nome para cada cargo. Os votos válidose em branco são somados, e o total é dividido pelo número de cadeiras a se-rem preenchidas, obtendo-se o “quociente eleitoral”. Apenas os partidos oucoligações com número de votos acima do quociente eleitoral disputam asvagas. Os votos de cada um desses partidos ou coligações são divididos peloquociente, obtendo-se, desse modo, o “quociente partidário” – número decadeiras a que cada partido ou coligação tem direito, preenchidas, na ordem,pelos mais votados de cada um deles. Finalmente, as sobras da divisão servempara redistribuir as cadeiras restantes por meio de uma fórmula específica.

Em 1992, por exemplo, o quociente eleitoral em Ilhéus foi de 3.124 votose, em 1996, de 3.549. Em 2000, um partido ou coligação elegia um candi-dato para cada 4.065 votos recebidos pela legenda, independente do númerode votos de cada candidato: se o partido recebesse 8.130 votos, elegeria doiscandidatos, e assim por diante. Havia um total de 330 candidatos à Câmara,e o vereador mais votado teve 1.475 votos, enquanto o eleito com menos votos

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teve 485. Os partidos mais votados nessas eleições receberam cerca de 11 milvotos cada, o que garantiu a eleição de três vereadores por cada um deles (jácomputadas aí as “sobras eleitorais”). O PSDB, por exemplo, obteve 10.902votos, sendo que 3.181 foram dados apenas à legenda. Seus três candidatoseleitos somaram 3.472 votos – menos, portanto, que o quociente necessáriopara a eleição de um vereador. Dos outros 23 candidatos, apenas dez obtive-ram mais que cem votos cada (e apenas quatro obtiveram mais que quinhen-tos). Mas tudo isso apenas explicita o que qualquer político sabe, ou seja, que,nas eleições proporcionais, a vitória eleitoral de alguém depende do desem-penho de seus companheiros de partido ou coligação derrotados no pleito.Em Ilhéus, esses candidatos – cuja única função, consciente ou não, é obtervotos para que a legenda eleja outros candidatos – são chamados “mulas”,porque carregam os vitoriosos nas costas, ou porque carregam certa quanti-dade de votos para que outro candidato seja eleito.

Evidentemente, o fenômeno dos “mulas” não é exclusivo de Ilhéus, fa-zendo parte constitutiva dos sistemas eleitorais que, como o brasileiro, ado-taram a votação proporcional.20 Nesses sistemas, um político de sucesso éaquele capaz de, nos termos de Deleuze e Guattari, capturar e sobrecodificarcandidatos movidos por interesses, cálculos e apoios excessivamente locais oupontuais, variados demais para garantir uma eleição.21 Da mesma forma, opolítico bem-sucedido sobrecodifica em seu benefício os diferentes códigosque fazem com que uma família divida os votos de seus membros entre várioscandidatos aos quais sente dever algo ou nos quais deposita alguma esperan-ça; ou aqueles que levam um bloco afro a apoiar um candidato visando obtervantagens que os demais blocos não terão; ou os que fazem uma vizinhançase inclinar na direção de alguém que, supostamente, trará melhorias para suavida cotidiana. Canalizando as múltiplas lógicas em ação, as diversas motiva-ções pessoais, as oposições e conflitos locais, o político de sucesso os orientaa todos em sua direção ou benefício, sobrecodificando a dispersão que carac-teriza todos esses elementos e processos, e fazendo com que conjuntos muitoheterogêneos de votos se somem e garantam sua eleição.

Além disso – e por mais evidente que seja o fato de que “mulas” não sãorecrutados exclusivamente em função de seu pertencimento étnico –, creioque os movimentos negros constituem um terreno fértil para que a operaçãode captura de “mulas” prospere. A pesquisa de Ana Lúcia Valente (1986) so-bre a participação dos negros e o lugar ocupado pelo tema das relações raciaisnas eleições paulistas de 1982 comprova bem este ponto. Como demonstra a

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autora, praticamente todos os partidos políticos se interessaram em lançar can-didatos negros a fim de obter “eventuais votos que poderiam ser conseguidosno meio negro”, e por maiores que tenham sido as resistências de militantesnegros que “achavam que os partidos estavam apenas interessados em usar onegro como massa de manobra” (Valente 1986: 44), parecem ter sido razoa-velmente bem-sucedidos, com o lançamento de algo em torno de 55 candi-datos negros (idem: 51-53) – a maior parte deles fazendo “dobradinhas” comoutros candidatos que detinham mais recursos, e para os quais acabavam atuan-do como verdadeiros cabos eleitorais (idem: 80-81). Apenas dois candidatosnegros conseguiram eleger-se, um ex-jogador de futebol e um militante liga-do ao movimento operário, os quais, por motivos obviamente distintos, con-sideravam que a questão racial não era politicamente pertinente (idem: 77).Esses dois candidatos foram eleitos pelo PMDB, partido que mais obteve votosnessas eleições, tendo mesmo conseguido eleger o governador do estado, eque certamente se beneficiou com a votação dos candidatos negros não elei-tos (idem: 68-69).

Por outro lado, uma vez no poder, o PMDB demonstrou uma enormeresistência a indicar negros para cargos importantes, e mesmo a tratar maisprofundamente a questão negra, ainda que dissolvida no conjunto das “mi-norias” (idem: 98-101): logo após sua posse, o governador criou o Conselhoda Condição Feminina (do qual não fazia parte nenhuma negra), mas foiapenas dois anos mais tarde, e após inúmeras pressões, que o Conselho deParticipação e Desenvolvimento da Comunidade Negra foi criado (idem: 101-103). Assim, se é verdade que diversos candidatos negros empregam uma re-tórica racial a fim de justificar suas oscilações políticas e mudanças de parti-dos (alegando que a luta deve ser “social”, não “política”, ou que “não impor-ta o partido mas a causa negra”, que seria “suprapartidária” – idem: 49, 55),também não é menos verdadeiro o fato de que, como conclui a autora, ospartidos políticos, orientados, por definição, para a “sociedade em geral”,tendem a funcionar como uma espécie de filtro da questão racial, dissolven-do-a após capturá-la: “instrumento eficaz para minar forças potenciais dequalquer movimento social” (idem: 65).22

É claro, entretanto, que o grau de previsibilidade da operação de captu-ra, utilização e abandono de “mulas” está longe de ser completo. A anunciadaderrota de Rúbia Carvalho em 1998 foi interpretada por ela e seus assessorescomo uma espécie de sacrifício visando as eleições municipais de 2000, quan-do, supostamente, teria seu nome lançado para a Prefeitura ou, na pior das

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hipóteses, para o cargo de vice-prefeito, se Jabes Ribeiro decidisse tentar areeleição. Esta foi, de fato, sua opção, e durante alguns meses o preenchimentodo posto de vice-prefeito foi adiado, provocando boatos em torno de váriosnomes, inclusive o de Rúbia Carvalho. No entanto, o fato de Rúbia agorapertencer ao partido do prefeito fazia com que seu nome não fosse visto comoideal para uma almejada aliança com antigos inimigos políticos com quemJabes procurava uma composição. Finalmente, na última semana de junho,revelou-se que o candidato a vice-prefeito deveria vir do PTB, partido aliadoao PFL no plano estadual, já que isso “sinalizaria a parceria” (termo sempreutilizado por Jabes para designar a aliança) entre governos municipal e esta-dual. No dia 28 de junho, Angela Maria Corrêa de Souza foi anunciada comocandidata a vice-prefeita na chapa de Jabes Ribeiro.

Logo após o anúncio de que o PTB preencheria o cargo de vice-prefei-to, Rúbia Carvalho lançou seu nome para a Câmara dos Vereadores – eleiçãotida como certa tanto pelos eleitores quanto por seus assessores. Estes, noentanto, confidenciavam que a candidata havia ficado “deprimida” com adecisão de Jabes e que não demonstrava muito entusiasmo com a campanhapara vereador. Essa “depressão” parece ter se agravado muito quando o nomeda vice foi finalmente divulgado: Angela era mulher, ligada a grupos cristãose envolvida com atividades de “ação social”, possuindo exatamente o mesmoperfil político de Rúbia Carvalho.

Nas eleições majoritárias, a coligação Ilhéus no Caminho Certo – co-mandada por Jabes Ribeiro e envolvendo, além do PSDB, o PTB, PMDB,PMN, PAN, PHS, PRP, PST e PSDC – era tida como franca favorita desdeo início da campanha; seu principal adversário era o PFL, mais uma vez co-mandado por Roland Lavigne. Ao contrário do que acontecera em 1996, dessavez tanto Jabes quanto Roland disputavam o apoio do governo do estado edo senador Antônio Carlos Magalhães. Essa rivalidade envolvia a obtençãode declarações explícitas de apoio (tanto o governador quanto o senador semanifestaram, ao longo da campanha, a favor dos dois candidatos) e, princi-palmente, a possibilidade de convencer os eleitores de que contavam efetiva-mente com tal apoio, quer no plano estadual, quer no federal. Se RolandLavigne podia usar como argumento a sua filiação partidária e história polí-tica, Jabes Ribeiro evocava o fato de pertencer ao partido do presidente daRepública, aliado, por sua vez, ao PFL do governador e do senador. Tratar-se-ia, pois, de reeditar, no plano municipal, a aliança que vencera as eleiçõespresidenciais de 1994 e1998.

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Além dessas duas chapas, disputavam as eleições do ano 2000 a coliga-ção Frente para Mudar de Verdade (PT, PSB, PCdoB e PPS), o PDT, o PSCe o PV. No dia 3 de outubro, Jabes Ribeiro elegeu-se, pela terceira vez, prefei-to de Ilhéus, com 33.775 votos (cerca de 47% dos votos válidos); RolandLavigne obteve 27.257 votos (pouco mais de 37%); a coligação encabeçadapelo PT, 7.304 votos (10%); o PSC de Cosme Araújo, 2.102 votos (3%); oPV, 1.822 votos (2,5%); e o PDT, 473 votos (0,65%). Logo após as eleições,comentava-se que Jabes Ribeiro estaria deixando o PSDB para se filiar ao PTB,o que era explicado seja pela necessidade de solidificar a “parceria” com ogoverno do estado, seja como manobra para evitar um processo de expulsãoque o PSDB certamente moveria contra ele em função de sua aliança com ogrupo de Antônio Carlos Magalhães. Jabes acabou não ingressando no PTB(que, neste ínterim, anunciara seu apoio à candidatura de Ciro Gomes, peloPPS, à Presidência da República, em 2002), preferindo permanecer “sempartido” ou, como se diz às vezes em Ilhéus, “à toa”. Ao lado de Jabes, Joabes,seu irmão, segundo candidato mais votado para a Câmara dos Vereadores (commais de 1.400 votos), também abandonou o PSDB. Ambos comunicaram adecisão à população por meio de rádios locais, ao mesmo tempo que anuncia-vam que deixavam o PSDB para Rúbia Carvalho, que, reconhecida, agrade-ceu publicamente a herança. Roland Lavigne, por sua vez, deixou o PFL logoapós as eleições, tentou ingressar no PMDB baiano e acabou no PSDB. Jabesfoi para o PFL; Joabes para o PP.

Para grande surpresa de boa parte dos eleitores, Rúbia Carvalho obteveapenas 603 votos, não passando da terceira suplência de seu partido na Câ-mara dos Vereadores. Derrota inicialmente interpretada por seus assessorescomo decorrente do fato de Rúbia, certa da vitória e, ao mesmo tempo, de-primida por não ter sido indicada candidata a vice-prefeita de Jabes, não terrealizado uma campanha eleitoral eficiente. Como disse a ela um de seus as-sessores antes das eleições, a candidata tanto poderia ter “mais de 3 mil vo-tos” como poderia não se eleger. Pouco depois, essa explicação foi acrescidade outra: após sua não-indicação para vice-prefeita, Rúbia teria tentado umaaproximação com Roland Lavigne, oferecendo-se, inclusive, para fazer de-núncias de corrupção contra a administração Jabes Ribeiro, da qual haviaparticipado. Jabes teria sabido da “traição” e tratado de dificultar, de todas asmaneiras possíveis, a candidatura de Rúbia.

É preciso observar, também, que dois candidatos a vereador para quemRúbia “pedia votos” quando ainda imaginava que seria candidata a vice-pre-

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feito, acabaram por ter uma votação superior à sua: um deles obteve 749 votose o outro, Gurita, 625. Os dois, em certo sentido deviam ter sido “mulas” deRúbia, mas a dinâmica do processo eleitoral acabou transformando a situa-ção e ambos acabaram superando a candidata: o primeiro foi eleito vereador,e Gurita ficou com a segunda suplência de sua legenda. Como comentou umdos assessores de Rúbia, ela acabou tendo que disputar a eleição com candi-datos para quem, pouco antes, pedia votos, e não foi “nada bonito” ter quedizer aos eleitores “olha, aqueles votos que eu pedi para eles, agora vocês de-vem dá-los a mim”.

É verdade que, como vimos, desde 1996, Gurita tinha certa consciênciado risco de concorrer a uma eleição como simples “mula”, e que era por issoque sustentava não ser possível se eleger apenas com os votos do movimentonegro, sendo preciso diversificar os apoios. A manobra é bem conhecida, masapresenta seus riscos, como mostra o exemplo de Gilvan, que, em 1988, aca-bou perdendo os votos que tinha e não conquistando os que queria. Da mesmaforma, Gurita insistiu tanto no fato de ser “o candidato do esporte” que foipreciso Marinho dizer a ele, explicitamente, ser imprescindível acrescentar aseu slogan de campanha (“Professor Gurita: A Vez do Esporte”) a expressão“e da Cultura”, e que ele deveria falar mais da “questão cultural” e do bairroda Conquista em suas intervenções nos comícios. Após sua segunda derrotaem 2000, Gurita, cuja família é evangélica, voltou-se cada vez mais para ba-ses eleitorais dessas denominações religiosas (das quais, aliás, provinha tam-bém o outro candidato apoiado por Rúbia e que acabou se elegendo). Essamudança, evidentemente, tem dificultado suas relações com os blocos afro e,especialmente, com os adeptos do candomblé.

Por outro lado, o fato é que Gurita, realmente, vinha servindo de “mula”para outros candidatos desde as eleições de 1996. Sua função implícita sem-pre foi a obtenção de votos junto ao movimento afro-cultural de Ilhéus e,evidentemente, mais alguns na Conquista, bairro onde reside e possui seu re-duto eleitoral. Seu estatuto (real ou pretendido) de “representante” do movi-mento negro deve, portanto, ser entendido ao menos em dois sentidos: comointermediário (nas duas direções) nas relações entre o movimento e o podermunicipal, certamente; mas também como uma espécie de canal pelo qualdeveriam fluir os votos oriundos dos militantes negros, votos que, mesmoquando empiricamente dados ao próprio Gurita, serviriam para eleger ou-tros candidatos. E se, nas eleições proporcionais, políticos como Gurita de-sempenham essa função de canalizadores de votos, nas majoritárias, seu pa-

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pel passa a ser o de cabos eleitorais, pedindo e obtendo diretamente votospara os candidatos a prefeito.

É claro que mecanismos dessa natureza estão também em marcha naseleições estaduais e nacionais. Do ponto de vista de Cosme Araújo, por exem-plo, lançar-se candidato a deputado estadual nas eleições de 1998 tinha comoobjetivo a obtenção de certa quantidade de votos que o fortaleceriam para aseleições municipais de 2000; para outros candidatos da mesma legenda, tra-tava-se de conseguir um contingente de votos para essa legenda, o que, por-tanto, podia ajudá-los a se eleger; para candidatos à Câmara Federal – comquem Cosme formaria algumas “dobradinhas” –, bem como para candidatosaos cargos majoritários para o Senado e governos estadual e federal, tratava-se de um cabo eleitoral, capaz de exercer influência sobre mais de 8 mil votosno Município de Ilhéus. Isso significa que todo político tende a ser, simulta-neamente, candidato, mula e cabo eleitoral, ao mesmo tempo que dispõe desuas próprias mulas e cabos eleitorais. Se, entre o eleitor comum, o eleitorque influencia o voto de outros eleitores, aquele que trabalha nas eleições, ocabo eleitoral, os profissionais da política e os políticos propriamente ditos,existe, é claro, uma diferença, esta, mesmo quando concebida como de natu-reza (“ele virou político”), não impede as passagens e as transições entre asdiversas posições, nem implica que não se possa ocupar mais de uma delas aomesmo tempo.

* * *

Outra posição multifuncional pode ser a de pesquisador ou, mais preci-samente, daqueles que são recrutados para a aplicação de pesquisas eleitoraisde opinião. Nas eleições de 2000, divulgou-se, entre os membros do Dilazenze,que o comitê de campanha de Jabes Ribeiro estava recrutando “pesquisado-res”, que deveriam aplicar um questionário, recebendo R$ 5,00 por cada umque fosse preenchido. Várias pessoas compareceram ao local de recrutamen-to: aqueles que não eram eleitores em Ilhéus, ou que não dispunham do títu-lo eleitoral, foram imediatamente dispensados; os demais ficaram sabendoque, além de aplicar a “pesquisa”, havia a possibilidade de serem selecionadospara atuar na boca de urna no dia das eleições – recebendo os habituais R$10,00 pagos por esse tipo de atividade –, mas que deveriam, de toda forma,passar por uma “capacitação”. Esta, que durou nada menos que sete horascontínuas, incluiu a aplicação de testes psicotécnicos e a solicitação de umaredação cujo tema era “Jabes Ribeiro”. No final, os candidatos ouviam uma

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propaganda eleitoral de Jabes e era explicitamente solicitado a eles que votas-sem no candidato. Só então, sua performance no processo de capacitação esuas redações acerca do prefeito eram avaliadas, e a seleção final efetuada.

O questionário a ser aplicado era apresentava o cabeçalho “ColigaçãoIlhéus no Caminho Certo. Projeto Ouvindo Você”. Em seguida, constavamo subtítulo “Pesquisa” e o texto: “estou aqui a pedido do prefeito Jabes Ribei-ro, e gostaria de saber se o sr.(a) pode fazer algumas sugestões para o seu pro-grama de governo. Não será mais de cinco minutos. Antes eu vou fazer algu-mas perguntas para compor o questionário”. Finalmente, antes da data e donome, número e assinatura do pesquisador, vinham as questões a serem res-pondidas:

“– Qual o seu nome completo?– Como você é mais conhecido?– Sexo– Idade– Endereço completo– Qual a sua principal atividade?– Emprego fixo– Emprego temporário– Dona de casa; aposentado/a– Estudante– Sem atividade/desempregado?– O Sr.(a) considera que a atual administração de Jabes Ribeiro é melhor, igualou pior que a de Antônio Olímpio?– Qual a obra ou melhoria que o Sr.(a) acha necessária para seu bairro ou rua?– E para nossa cidade, qual a obra ou ação mais necessária?Segurança pública – polícia nas ruasSaúde – Postos de Saúde funcionando bemEducação – Escola para todosSaneamento básico – Esgotamento sanitárioCalçamento de ruas – Construção de EscadariasTransporte coletivo bom e baratoShows e outras atividades culturais de graça para o povoLoteamento popular – habitação popular”23

Questionários desse tipo são amplamente aplicados em Ilhéus em todasas eleições.24 Além disso, contudo, o significante “pesquisa” opera de outrasformas. Primeiro, é claro, como um tópico ou terreno de disputas. Em 2000,divulgavam-se muitas pesquisas diferentes, com resultados bastante distin-

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tos; acusavam-se de falsas ou falsificadas aquelas que colocavam adversáriosem posição de vantagem; mencionavam-se resultados de pesquisas que nin-guém sabia muito bem onde e por quem haviam sido aplicadas, e assim pordiante. Em 1996, já no final de setembro, o centro de Ilhéus foi inundadopor panfletos de excelente qualidade gráfica anunciando uma “pesquisaIBOPE”, que conferia 44% das intenções de voto a Roland Lavigne, e 43%a Jabes Ribeiro. Em comício, este último denunciou o que denominou “frau-de”, ameaçando de prisão até os que estivessem apenas distribuindo o panfle-to. Três dias depois, Roland obteve pouco mais de 27% dos votos válidos, eJabes foi eleito prefeito de Ilhéus com quase 58% da votação.

No início de setembro de 2000, a revista Isto É divulgou uma amplapesquisa eleitoral do Instituto Brasmarket, que indicava, em Ilhéus, um em-pate técnico entre Jabes e Roland (34% e 30% das intenções de voto, respec-tivamente). A equipe do primeiro candidato, que até então estava absoluta-mente segura da vitória, ostentando a hipótese de uma vantagem de cerca de20 pontos percentuais, demonstrou certa preocupação, mas apresentou aversão de que a pesquisa fora feita por via telefônica e apenas no centro dacidade. Roland, por outro lado, não podia insistir muito no resultado, poisvinha difundindo abertamente a existência de pesquisas que indicavam quecontaria com mais de 50% da preferência dos eleitores: como brandir, agora,30%? Uma das rádios locais, que fazia oposição cerrada ao prefeito, indagavaconstantemente como era possível que este tivesse apenas 34% das intençõesde voto quando vinha alardeando contar com 70%. Na verdade, a rádio ‘con-fundia’ (no duplo sentido de fazer e provocar confusão) a pesquisa de inten-ções de voto com outra, relativa à aprovação da administração municipal,divulgada alguns dias antes. O fato é que, no dia 1º de outubro, a diferençaentre os dois candidatos foi de pouco mais de oito pontos percentuais (42,5%para Jabes, 34,3% para Roland), o que garantiu a reeleição de Jabes Ribeiropara a Prefeitura de Ilhéus. Além disso, o resultado revelou, também, se le-varmos em conta a “margem de erro”, que a pesquisa Brasmarket não estavanem muito certa, nem muito errada – o que parece, aliás, ser o destino damaior parte dessas pesquisas.

No dia 30 de junho, o jornal A Região noticiava que as inúmeras “pes-quisas” de intenção de voto relativas às eleições proporcionais para vereadoreram inteiramente falsas e que apenas os tolos nelas acreditavam. Apesar dis-so, candidatos, assessores e cabos eleitorais usavam amplamente resultadosde supostas sondagens no intuito de reforçar ou de minar candidaturas. Mari-

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nho contou que um dos candidatos apoiados pelo Dilazenze dizia claramen-te que era preciso espalhar pela cidade a notícia de que havia uma pesquisaque o colocava em muito boa situação nas preferências eleitorais – boato muitofácil de espalhar, ainda segundo Marinho, já que bastaria divulgá-lo para duasou três pessoas na praça onde fica situada a Prefeitura (conhecido local defofocas, boataria e articulações políticas) para que, em poucas horas, a notíciafosse conhecida em toda a cidade. O mesmo candidato também repetia queo prefeito lhe dissera ter encomendado uma pesquisa que garantia que eleseria eleito vereador.

Resultados de pesquisas também são acionados no intuito de propor,explicar ou justificar apoios e alianças eleitorais – especialmente quando es-tas podem parecer muito estranhas de um ponto de vista estritamente parti-dário ou ideológico. É muito comum que um candidato proponha a outro,ou outros, que todos lancem suas candidaturas e que, a uma certa distânciadas eleições, mandem “fazer uma pesquisa” destinada a detectar o detentordo maior índice de popularidade, que deverá, então, ser apoiado pelos de-mais, que, assim, terão que renunciar a suas candidaturas. Membros do PTdizem que essa estratégia teria feito com que, em 1992, o partido tivesse apoia-do um candidato do PSB na sucessão municipal. Do mesmo modo, já vimosque o Movimento Ilhéus Corações explicava sua aliança com Antônio Olímpionessas mesmas eleições por razões análogas. Em 1998, era uma pesquisa que“explicava” o lançamento de Rúbia Carvalho como candidata à Câmara Fe-deral, e não à Assembléia Legislativa, como ela parecia desejar. Em julho de2000, Cosme Araújo ainda propunha que os quatro candidatos “mais fracos”se aliassem, com três deles apoiando o que viesse a ser indicado como o maispopular em uma pesquisa a ser encomendada.

As pesquisas não consistem, assim, em simples instrumentos neutros deaferição de uma realidade que seria a elas exterior e quase indiferente. Elasfazem parte integrante dessa realidade, funcionando como dispositivos de cap-tura e como formas retóricas fundamentais nas lutas que, supostamente, de-veriam se limitar a retratar.25 E é claro que minha própria pesquisa tambémtendia a ser compreendida mais como arma do que como câmera. Desde asuspeita, em 1996, de que Paulo usava a pesquisa como pretexto para atrair omovimento afro-cultural de Ilhéus para a candidatura de Jabes Ribeiro a pre-feito, até o convite, feito em 2003 por alguns de seus irmãos, para que eumesmo fosse “assessor” da futura candidatura de Marinho Rodrigues à Câ-mara Municipal, era nessa chave que meus amigos, conhecidos e informan-

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tes, em Ilhéus, tendiam, ao menos em parte, a interpretar o que eu estava láfazendo.26

Algo semelhante ao que ocorre com as pesquisas parece acontecer tam-bém com os chamados debates eleitorais. Sua função manifesta, como se sabe,seria informar o eleitor a respeito das propostas, ideologias e posições doscandidatos, assim como obrigá-los a se manifestar sobre um certo número detemas e questões tidos como importantes – tudo isso tendo em vista possibi-litar o voto “correto”, ou seja, aquele que, nas palavras de Leôncio MartinsRodrigues (1994: 3), procede por “adequação entre os interesses e valores deeleitor e os do candidato escolhido”.27 Na realidade, os debates eleitorais ten-dem a funcionar – tal qual os comícios na análise de Palmeira e Heredia (1993)– como espaços e momentos destinados à manifestação de força política eeleitoral. Força que pode residir na capacidade retórica do candidato, na for-ma como enfrenta, encurrala ou ridiculariza seus oponentes, ou mesmo emsua capacidade de converter o debate em verdadeiro ato eleitoral.

Nas eleições municipais de Ilhéus em 2000, apenas um debate – realiza-do por uma rádio local famosa por fazer oposição a Jabes Ribeiro – colocoufrente a frente todos os seis candidatos à Prefeitura. Um segundo debate, re-alizado na Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), situada no Muni-cípio de Ilhéus, mas próxima a Itabuna, não contou com a presença de RolandLavigne, cuja ausência foi simbolizada por uma cadeira vazia. O Clube dosDirigentes Lojistas de Ilhéus, por sua vez, realizou uma série de debates comtodos os candidatos, mas estes enfrentavam a platéia separadamente em diasdistintos. Em todos os casos, o mais incomum é que as questões formuladasfossem efetivamente respondidas. Tratava-se, antes, de acusar outros candi-datos, de dirigir-se diretamente ao eleitor, em tom de campanha, pedindoseu voto, de anunciar atos eleitorais (como comícios ou caminhadas) ou demobilizar a platéia presente – no único debate que contava com uma, o daUESC.

A este debate, realizado no dia 18 de setembro de 2000, compareceu, defato, um grande público, já que o auditório principal da universidade (quetambém é um teatro) estava praticamente lotado, o que significa a presençade cerca de mil pessoas. No palco, uma mesa com cinco candidatos, umacadeira vazia representando a ausência de Roland Lavigne e, no centro, doismembros da Associação de Docentes, promotora efetiva do evento. Após asapresentações iniciais – em que todos evocaram traços importantes de suasbiografias, suas atividades profissionais e sua experiência política –, cada can-

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didato tinha cinco minutos para dirigir uma pergunta a outro por ele esco-lhido; este, por sua vez, tinha direito a cinco minutos de resposta, seguidospor três minutos para a tréplica do perguntador. Jabes (do PSDB) escolheuperguntar a Cosme (do PSC), que decidiu perguntar a Jabes; Nelson (do PT)perguntou a Maria Adise (do PV), que perguntou a Nelson; Oldeck (do PDT)ficou de fora, e isso provocou certa reação do público, que suspeitava que asperguntas visavam sobretudo “levantar a bola” para o perguntado, ou susci-tar a possibilidade de autopromoção no momento da tréplica. Mais tarde, opúblico passou a ter o direito de perguntar. Nas respostas, o que parecia im-portar não era tanto o conteúdo ou a informação real contida na interven-ção, mas a força retórica do argumento.

Nesse sentido, Jabes e Nelson acabaram por polarizar o debate e cadavez menos se preocupavam em responder ao que era efetivamente pergunta-do, tratando de retorquir a intervenção anterior do oponente. Nelson acusa-va Jabes de traidor e oportunista; Jabes dizia conhecer o PT, e saber que o PTera um na conversa e outro na prática, oportunista. Subitamente, começa-ram a ser levantadas questões muito pessoais para Cosme e Adise, insinuan-do corrupção do primeiro (que teria recebido R$ 700.000,00 para se lançarcandidato a prefeito e tirar votos de Roland Lavigne) e evocando algum cri-me cometido por um familiar da segunda. Simultaneamente, a platéia come-çou a se manifestar com mais força. De um lado do auditório, concentravam-se alguns grupos vestidos com camisetas de candidatos a vereador ou a prefei-to, principalmente de Jabes. Havia também uma enorme quantidade de crian-ças, vestidas com o uniforme de uma escola municipal situada em um bairropopular próximo à UESC. De forma cada vez mais clara, foi possível perce-ber que algumas pessoas sentadas nas primeiras fileiras de poltronas coman-davam as que estavam atrás, puxando aplausos para Jabes e vaias para os de-mais, especialmente para Nelson. Do outro lado do auditório, o público pa-recia composto por professores, secretários municipais, radialistas e algumasfamílias, mas a inclinação da maior parte por Jabes também parecia bastanteevidente.

Ao receber uma pergunta da platéia, indagando de onde estaria vindo odinheiro de sua campanha, e se ele pagara pessoas para virem ao debate, Jabesindignou-se, afirmando que não responderia “a essa pergunta boba”, voltan-do a fazer críticas a Nelson e ao PT em geral, e dizendo que avisara, desde oinício, que tinha que se retirar às nove horas para um ato de campanha. E,mesmo faltando ainda dez minutos para as nove, os puxadores de aplausos

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sentados à frente começaram a aplaudir e a se levantar, prosseguindo com osaplausos de pé, bem como fazendo gestos para parte da platéia, que, rapida-mente, também se levantou, passou a aplaudir de pé e começou a gritar onome de Jabes. Imediata e sucessivamente, o candidato, seus assessores, ospuxadores de aplausos e a parte da platéia que gritava começaram a se retirardo auditório, deixando-o com apenas cerca de um quarto de sua lotação. Dolado de fora, três ônibus recolhiam os apoiadores de Jabes, e comentava-seque se tratava das mesmas pessoas que recebem uma diária de R$ 10,00 paraagitar bandeiras por todo um dia. Marinho ainda observou que a organiza-ção das campanhas de Jabes era sempre admirável, sem se interessar, de for-ma alguma, em discutir se a manobra de esvaziar o auditório, bem como a detrazer crianças de uma escola municipal para um debate eleitoral, eram legí-timas. Na verdade, essa admiração pela boa organização, independente docandidato que está em jogo, parece ser um traço recorrente nas eleições emIlhéus.

* * *

Se a candidatura de Jabes Ribeiro à reeleição parecia ir bem tanto nosdebates quanto nas pesquisas, isso não excluía que dela fizesse parte um in-vestimento mais direto na chamada cultura negra local. Um certo apoio àcandidatura de Gurita por parte da Prefeitura, bem como diversas tentativasde atração do movimento negro como um todo e de Marinho Rodrigues emparticular, pareciam testemunhar esse esforço. É verdade que, como vimos,Jabes costumava lembrar que, ao longo de toda a sua carreira política, sempremantivera relações privilegiadas com o movimento afro-cultural, e que essasrelações comprovavam seus compromissos com a questão negra como umtodo. Essa suposta proximidade parece, de fato, ter aumentado nas eleiçõesmunicipais de 2000. Em conversa com Marinho, por ocasião do café-da-manhã de apoio a Gurita, em 30 de agosto, o prefeito – além de convocar oDilazenze e Marinho para “a guerra” – disse que pretendia fazer de Ilhéus “osegundo maior pólo cultural da Bahia em termos de cultura negra”. Sugeriu,paralelamente, a organização de um comitê do movimento afro-cultural, nosmoldes dos já existentes Comitê das Mulheres e Comitê da Juventude. Comoestes, a função básica desse Comitê Negro (ou Comitê 45. Movimento Ne-gro de Ilhéus) seria, evidentemente, o apoio à candidatura de Jabes. Aindaque tais comitês se destinassem exclusivamente à eleição majoritária (visando

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evitar conflitos com e entre os candidatos às proporcionais), neste caso, acres-centou o prefeito, o comitê poderia também apoiar a candidatura de Guritaa vereador – desde que, como ressaltou um dos assessores mais próximos doprefeito, “não fique parecendo que é o comitê do Gurita”, pois não deveriadar a impressão de que Jabes estaria ajudando ostensivamente um candidatoa vereador em detrimento dos demais que também o apoiavam, o que signi-ficaria prejuízo eleitoral certo.

É claro que o fato de Gurita ser negro explicava a exceção com a qualacenava o prefeito. De toda forma, o comitê deveria não apenas manifestar oapoio do movimento afro à candidatura de Jabes como também organizaralguns eventos eleitorais. No entanto, a única manifestação que acabou sen-do programada foi uma “caminhada”, que deveria ser seguida de um “atopúblico” diante do Memorial, no dia 19 de setembro. O ato acabou não sen-do realizado – supostamente porque a Prefeitura não forneceu os ônibus, asonorização, a iluminação, o palco, as camisetas e o cachê de R$ 600,00 quehaviam sido solicitados –, a caminhada reuniu pouquíssima gente, e a idéiado Comitê 45. Movimento Negro de Ilhéus foi inteiramente deixada de lado.

Embora a relação entre o movimento afro-cultural e o prefeito e candi-dato à reeleição parecesse estar indo muito bem, um evento, ocorrido na se-gunda quinzena de julho de 2000, mas cujos efeitos se prolongaram quaseaté as eleições, ameaçou complicar esse relacionamento. O irmão do prefei-to, e secretário municipal, envolveu-se em um conflito com um deputadoestadual do PT baiano, que realizava uma reunião com funcionários do mu-nicípio. Evidentemente, o que realmente se teria passado é muito difícil dedizer, e o caso foi tão controverso que a melhor forma de acompanhá-lo tal-vez seja seguir a troca de panfletos, artigos e matérias pagas que se sucederam.Assim, pouco depois do conflito, uma série de entidades, encabeçadas peloMNU, distribuiu pela cidade um panfleto intitulado “Basta de Racismo”:

“BASTA DE RACISMO!

O deputado estadual Paulo Anunciação, do PT, foi violentamente agredidono Parque de Operações, quando participava de uma reunião com trabalha-dores. O agressor, o secretário de serviços públicos, John Ribeiro, irmão doatual prefeito, tentou pegar uma arma e chamou Paulo Anunciação de “negrovagabundo descarado”, “preto viado” e “deputado de merda”. O ilustre secre-tário não esperava que um negro, ex-gari e rastafari, pudesse ser deputado es-tadual. O fato revoltou a Bahia, em especial a comunidade negra que, atravésdesta nota, vem a público denunciar e repudiar a truculência do Sr. John Ri-

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beiro, que, em qualquer outra cidade brasileira, estaria demitido e na cadeiapor crime de racismo. Caso o prefeito passe a mão pela cabeça do seu irmão,como vem fazendo até agora, estará comprometendo decisivamente a imagemdo seu governo que passará a ser visto como um governo racista.

ILHÉUS, CIDADE NEGRA, EXIGE JUSTIÇA!

Maioria absoluta da população baiana e mais de 60% da população ilheense,os negros estão nos bairros mais carentes do município, nos povoados maisabandonados, nos piores e mais mal remunerados empregos. Servem de massade manobra para os políticos que só lembram de nós na hora em que precisamdos votos ou quando querem animar seus palanques com boa música, dança eoutros elementos da cultura que produzimos. Na verdade, a população negravem construindo ao longo desses séculos uma história de resistência, de lutase beleza em defesa das nossas raízes culturais e direito à cidadania. O mito dademocracia racial, finalmente desmascarado, coloca na ordem do dia a discus-são sobre a cidade que queremos. Quando um secretário agride um deputadoe o chama de “negro vagabundo”, aí está escancarado o racismo da nossa socie-dade. Está desmascarada também a prática dos atuais “Capitães-do-Mato” e“Feitores” que no passado caçavam nosso povo e hoje usam de cargos públicospara tentar nos calar. Em Ilhéus, nas portas do novo século, não foi diferente.O irmão do prefeito, jogando por terra sua própria raiz, promoveu um dosmais abomináveis atos de racismo já vistos nos últimos tempos nesta cidade.Aliás, pobre cidade que, negra, ainda não sabe do poder que possui! Nós, re-presentantes de entidades negras, populares e sindicais de Ilhéus e região, jun-tamos nossa voz à de milhares de entidades de todo o país que estão, nestemomento, repudiando e denunciando a atitude do atual secretário de ServiçosPúblicos de Ilhéus.

BASTA DE RACISMO! EXIGIMOS A DEMISSÃO DE JOHN RIBEIRO!

Esta é a única forma do governo municipal provar que é contra o racismo e atruculência!

Movimento Negro Unificado (MNU); Grupo Negro do SINTSEF; Bloco AfroForça Negra; Associação de Moradores da Av. Palmares; Ass. de Moradores doAlto do Coqueiro; SINDAE; SINTSEF; APPI; SINSEPI; Grupo de CapoeiraLuanda; Mov. de Libertação dos Sem Terra (MLST); Pólo de Unidade Cam-ponesa; Ass. Cooperativista Dom Hélder Câmara”.

O acontecimento parece ter mobilizado o comando da campanha deJabes. Poucos dias após a nota do MNU, na página 4 da edição de 30 de ju-lho de 2000 do jornal A Região, uma matéria, paga pela Prefeitura de Ilhéus

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e assinada por John Ribeiro (na qualidade de secretário de Serviços Públi-cos), buscava responder às acusações:

“PREFEITURA MUNICIPAL DE ILHÉUS

Secretaria de Serviços PúblicosNota de Esclarecimento

Em virtude da utilização político-partidária de alguns segmentos do PT, quese aproveitam do momento eleitoral para explorar fato ocorrido na sede daSecretaria de Serviços Públicos, no último dia 20 de julho de 2000, venho apúblico repudiar a atitude destes setores e fazer esclarecimentos à comunidadede Ilhéus.Na data acima referida, fui informado por telefone, por volta das 8 horas, quea sede da Secretaria de Serviços Públicos havia sido invadida por um grupo depanfletagem e candidatos a vereador do PT.01. Como esse tipo de atividade político-eleitoral é proibida nas dependênciasdas repartições públicas, considerando que no local funciona o Setor de Ope-rações da Prefeitura – o que exige medidas de segurança – me dirigi à secretariae solicitei que o grupo se retirasse até a portaria.02. Acompanhados pelo deputado estadual Paulo Anunciação, o grupo se re-cusou a deixar o local e passou a me fazer insultos e agressões, usando palavrasde baixo calão, como: “descarado, fascista” e outros termos impublicáveis, oque me levou a solicitar o apoio da Polícia Militar. Nesse sentido, prestei quei-xa à Polícia Civil e denúncia ao ministério público, para a devida apuração dosfatos.03. Após o episódio, esse grupo tem procurado explorar o fato, me acusandode usar arma de fogo e ter tido uma atitude racista. Essa é uma acusação men-tirosa. Quem me conhece, conhece a minha história de vida, de homem negroe trabalhador, sabe que seria incapaz de tal atitude.Diante desses fatos lamentáveis, reafirmo o compromisso de luta por uma so-ciedade mais igualitária, e repudio mais uma vez a atitude aética e oportunistadas pessoas envolvidas, que demonstram despreparo para o exercício da vidapública.

Atenciosamente,

JOHN RIBEIRO

Secretário de Serviços Públicos”.

Além disso, já no dia 27 de julho, Gurita apressara-se em convocar umareunião com os grupos afro, reunião à qual compareceram pouquíssimos re-presentantes de entidades. É possível que ao menos alguns deles, como Ma-rinho Rodrigues, do Dilazenze, tenham evitado comparecer ao encontro por

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pressentirem que se tratava de uma manobra destinada a “usar” o movimen-to negro a fim de apoiar Jabes e John, provando, desse modo, que o últimonão era racista. De toda forma, Gurita lançou, alguns dias mais tarde, umpanfleto intitulado “O Movimento Negro Está com Jabes”, no qual consta-vam os nomes do CEAC, oito blocos afro, bandas de reggae e quatro acade-mias de capoeira – além de um enigmático “Movimento Negro de Ilhéus”.O panfleto, impresso em papel de boa qualidade, com marca d’água e dese-nhos coloridos de temática supostamente afro, dizia:

“O MOVIMENTO NEGRO ESTÁ COM JABES

Nós, do MOVIMENTO DA CULTURA NEGRA DE ILHÉUS, manifestamos o nosso apoioincondicional à candidatura de JABES a prefeito de Ilhéus.Não temos dúvida que JABES é ILHÉUS NO CAMINHO CERTO. A sua ação tem sidofundamental para o avanço do movimento negro em nosso município. Umaprova disso é o apoio que sempre deu a todas as manifestações políticas, cultu-rais, econômicas, sociais e religiosas da população negra de Ilhéus:Criou o Carnaval Cultural, abrindo espaço para todas as manifestações cultu-rais da cidade;Criou o Memorial da Cultura Negra de Ilhéus;Apoiou todos os eventos promovidos pelos segmentos da cultura negra – Noi-te da Beleza Negra, Batizados de Capoeira e Festa dos Terreiros;Realizou o seminário para discutir a geração de emprego e renda com as ativi-dades da cultura negra;Apoiou todas as atividades do DIA NACIONAL DA CONSCIÊNCIA NEGRA; eCriou o Conselho de Assistência às Comunidades Negras.Por tudo isso, pedimos o seu apoio à candidatura de JABES para prefeito. A elei-ção de JABES por mais um período é a consolidação de todos os projetos queestão sendo trabalhados em apoio ao movimento negro em Ilhéus e a todos ossegmentos da população.

Ilhéus, Julho de 2000.

Movimento Negro de Ilhéus, Conselho das Entidades Afro-Culturais (CEAC),Grupo Afro Dilazenze, Grupo Afro Rastafari, Grupo Afro Zambi Axé, GrupoCultural Leões do Reggae, Bloco Afro Miny Kongo, Bloco Afro Guerreiros deZulu, Grupos Afro Danados do Reggae, Raízes Negras, Bandas de ReggaeQuilombo, Raízes, Quizila, Ruanda e Savana, Academias de Capoeira Cama-rada Camaradinha, Luanda, Liberdade, Raça e Capubahia”.

Ao tomar conhecimento desse panfleto, Marinho demonstrou grandeirritação. Não apenas porque o nome do Dilazenze aparecia entre os signatá-

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rios, como também porque o CEAC, órgão de que ele era presidente, prati-camente encabeçava a lista dos supostos apoios. Interpelado, Gurita respon-deu que a reunião à qual Marinho não comparecera decidira o apoio e que,afinal de contas, como “todos estão mesmo com Jabes”, não vira nenhumproblema em incluir seus nomes no panfleto. Este, contudo, parecia ter ul-trapassado o limite que Marinho, como militante negro, estabelecia para simesmo em termos de alianças e apoios políticos. Afinal, tratava-se de defen-der alguém que, aparentemente, havia cometido um sério ato de racismo, eesse era um assunto grave demais para ser objeto de acordos ou composições.Lembrando que Gurita sempre insinuava a existência de racismo entre algunssecretários municipais – que, ironicamente, o chamavam de “advogado dosnegrões” –, Marinho perguntava como um candidato que se dizia membrodo movimento negro podia ficar do lado de um agressor, e não de quem ha-via sido agredido, em um caso de racismo.

Ao mesmo tempo, Marinho temia que qualquer manifestação fosse in-terpretada pelo prefeito como sinal de oposição e, principalmente, que issoacarretasse retaliações contra o Dilazenze, o CEAC e o movimento afro-cul-tural como um todo. Fazendo eco ao apelo de Jaco Santana para que algumacoisa fosse feita, ofereci-me para tentar redigir uma nota que, sem atingir oprefeito, deixasse claro que o CEAC e as entidades que compunham o Con-selho não haviam participado da redação do panfleto e não compactuavamcom o ato de racismo:

“CONSELHO DE ENTIDADES AFRO-CULTURAIS – CEAC

O Conselho de Entidades Afro-Culturais (CEAC) de Ilhéus, surpreendido coma divulgação do panfleto intitulado “O Movimento Negro Está com Jabes”,gostaria de prestar alguns esclarecimentos à população ilheense.1. Ainda que reconheça os esforços e as ações da administração Jabes Ribeiroem prol do movimento negro da cidade, o CEAC ainda não definiu se tomaráuma posição oficial em relação às eleições municipais do ano 2000 em Ilhéus.Isso porque ainda não houve oportunidade de discutir com os candidatos,porque não houve oportunidade de discutir dentro do Conselho, e porque atradição do Conselho é assumir posições políticas somente quando estas sãoconsensuais aos grupos que o compõem; quando isso não é possível, o Conse-lho deixa a critério de cada entidade a escolha da posição que lhe parece a melhor.2. O CEAC viu-se, então, surpreendido com a divulgação de um panfleto queusa seu nome e de vários dos grupos que o compõem sem que o Conselho te-nha sido consultado e sem que ele tenha deliberado a respeito desse assunto.

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3. O CEAC gostaria, enfim, que sua seriedade e importância sejam respeita-das, e que seu nome não seja utilizado a não ser pelas instâncias regulamenta-res previstas em seus estatutos.Gilmário Rodrigues SantosCoordenador Executivo do CEAC”.

Marinho concordou com o texto, mas ainda argumentou que não haviarecursos para sua impressão. Ofereci, também, os R$ 50,00 necessários, emembros do Dilazenze distribuíram o panfleto pela cidade. Como disserammais tarde, “a coisa repercutiu”: vários telefonemas de apoio, inclusive o deMoacir Pinho, do MNU, cumprimentos nas ruas, comentários de que o pan-fleto havia “agitado a cidade”. Provavelmente em função dessa repercussão,logo na manhã seguinte, Gurita foi à casa de Marinho, com o panfleto doCEAC na mão e com o argumento de que, certamente, tratava-se de coisa doMNU e do PT. Marinho reagiu, dizendo que o documento era mesmo doCEAC, e que Gurita não podia ter feito o que fizera, crítica com a qual esteacabou concordando. De toda forma, o panfleto do CEAC acabou por en-fraquecer a posição de Gurita na campanha de Jabes, comprometendo suasuposta condição de representante do movimento afro-cultural da cidade.

Além disso, na tarde do dia seguinte à divulgação do panfleto, a Prefei-tura liberou a primeira parcela de uma prometida verba destinada a financiarum projeto social que o Dilazenze vinha desenvolvendo com crianças dosCarilos, o Projeto Batukerê. E ainda que o dinheiro liberado representasseapenas 10% do total prometido, o pagamento foi interpretado como resulta-do direto do panfleto e, por alguns, como um sinal de que valia a pena“radicalizar” um pouco, pois assim talvez pudessem obter o restante da verbapara o projeto. Gilvan desejava mesmo que Cosme Araújo denunciasse opanfleto de Gurita em sessão na Câmara dos Vereadores, o que Marinho re-cusou peremptoriamente. Gilvan teve, então, que se contentar em incluir oepisódio dos panfletos nas duras críticas que faria a Gurita no comício deCosme realizado na Conquista.

Esse episódio, na verdade, faz parte de uma série de outros eventos e dediversos conjuntos de relações. Nas comemorações do Dia da ConsciênciaNegra de 1998, a posição de Gurita perante a questão das relações raciais jáparecera um pouco incerta. Convidado – ao lado de Moacir Pinho, do MNU– para uma entrevista em uma rádio local, ele teria se esquivado ao ser per-guntado diretamente se havia racismo em Ilhéus. Moacir, ao contrário, res-pondera taxativamente que sim e fizera um duro e bom discurso em torno da

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questão. Na mesma ocasião, Gurita, com o auxílio do CEAC, foi um dosresponsáveis pela organização de um evento, a ser realizado no dia 19 denovembro, que faria parte das comemorações do Dia de Zumbi (20 de no-vembro). Fracassadas as tentativas de trazer convidados “de fora” – uma vezque a Prefeitura se recusara a arcar com as despesas necessárias –, foi organi-zada uma mesa-redonda da qual participaram o próprio Gurita, Moacir,Marinho, o coronel comandante do Tiro de Guerra local, um membro deum grupo de capoeira e “o antropólogo que pesquisa há muito tempo a cul-tura negra de Ilhéus”. Tanto Moacir quanto eu insistimos em questões liga-das ao racismo; o coronel (que, comigo, completava os dois únicos brancosem meio a um público de mais de cinqüenta pessoas) tratou de negar a exis-tência de qualquer tipo de discriminação racial, se não no Brasil como umtodo, ao menos no Exército brasileiro. E, enquanto Moacir chamava a aten-ção para o risco de desmobilização presente no argumento apresentado poruma revista de circulação nacional que negava a existência de raças humanas,o coronel insistia que, no Exército, só havia uma raça, “a raça brasileira”.

Os discursos de Gurita e do representante do grupo de capoeira foramalgo diferentes. Sem negar a existência de racismo, insistiam na importânciada iniciativa individual, de “correr atrás”, como se costuma dizer em Ilhéus,de ser bem-sucedido pessoalmente, servindo, assim, como exemplo para osdemais ao estimular sua “auto-estima” (talvez a expressão mais utilizada danoite). Contestado por uma militante presente – que indagou se o discursoda “falta de auto-estima” não seria um modo de culpabilizar os próprios ne-gros por sua discriminação –, Gurita respondeu que desejava apenas chamara atenção para a importância de se enfatizar “os progressos feitos pelo negro”,o que não deixava de ser uma forma de articular grandes questões coletivascom experiências, interesses e ambições pessoais.

Do lado do Dilazenze, e de outros blocos, a questão do racismo tam-bém é muito complicada. Primeiro, porque, como aprendi muito rapidamenteem Ilhéus, se é relativamente fácil falar de racismo, digamos, abstratamente –sustentando e ouvindo que é evidente que ele existe, que em Ilhéus se mani-festa da pior maneira possível, ou seja, de forma dissimulada, que a “burgue-sia” é racista, e assim por diante –, é muito difícil abordar a questão de formaconcreta e particularizada. E essa dificuldade diz tanto respeito à enunciaçãode quem seria o sujeito desse racismo quanto à nominação de seu objeto:raríssimas foram as ocasiões em que ouvi alguém, sempre ausente, ser acusa-do de racismo; ou alguém, também ausente, ser mencionado como vítimaconcreta de discriminação racial. Insistir na questão levava, no máximo, ao

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reconhecimento de que se trata, realmente, de coisa “vergonhosa”, quer di-zer, que provoca vergonha mesmo em quem a sofre ou até apenas fala dela.28

Por ocasião das comemorações do 7 de setembro de 1998, o Dilazenzee o movimento afro-cultural em geral haviam se envolvido em um episódioque possuía dimensões raciais. Mais precisamente, o episódio ocorreu ao fi-nal do desfile, durante o Grito dos Excluídos – protesto organizado pela IgrejaCatólica, contando, por vezes, com a participação de associações da socieda-de civil –, que, já há alguns anos, vem marcando o final do desfile do Dia daIndependência em várias cidades brasileiras. Moacir Pinho fez questão delevantar o assunto quando conversávamos, em um bar, após a mesa redondade 19 de novembro. Disse que ficara muito triste com a participação de blo-cos afro e que seria preciso muito tempo para esquecer e perdoar. Na verda-de, interessada em atrapalhar a manifestação, que considerava que beneficia-ria o PT, a Prefeitura de Ilhéus, além de promover demonstrações acrobáticasde bombeiros e militares, contratara um trio elétrico e alguns blocos para quetocassem após o desfile – abafando assim as palavras de ordem dos manifes-tantes, que, desse modo, dificilmente poderiam ser ouvidas pelas milhares depessoas que lotavam a Avenida Soares Lopes (os desfiles de 7 de setembro sãomuito populares em Ilhéus). Marinho, que alguns dias antes me havia conta-do a história, dizendo que estava lá apenas para “defender o meu” (ou seja,para receber uma remuneração), viu-se na obrigação de concordar com Moa-cir – que não deixava de enfatizar o fato de os negros fazerem parte dos dis-criminados e excluídos – e de concluir que estava se sentindo muito mal como que ocorrera. Moacir procurou encerrar a discussão, admitindo que os blo-cos talvez não soubessem o que estava em jogo, mas que tudo fora cuidado-samente preparado por alguns secretários municipais sabidamente racistas –seu alvo agora era Gurita, que também conversava conosco, e que concor-dou, em parte, com a culpa dos secretários apenas para melhor inocentar oprefeito.

Essa dificuldade em se falar de racismo também ficou clara durante aseleições municipais de 2000, se observarmos o fato de que, ao contrário doque parecia temer a assessoria de Jabes, o episódio John Ribeiro foi muitopouco explorado – ou não foi explorado de forma alguma – na campanhaeleitoral, que já estava nas ruas, por aquele que, em tese, poderia ser seu maiorbeneficiário, Roland Lavigne. E isso não apenas porque este era, mais umavez, o principal candidato de oposição à reeleição do prefeito de Ilhéus, masporque ele mesmo vinha sendo sistematicamente acusado de racismo e, mes-mo, de genocídio. Desde o início do processo eleitoral, circulava por toda a

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cidade um panfleto, de ótima qualidade gráfica e impresso em papel de pri-meira linha, que anunciava:

“DEPUTADO ROLAND LAVIGNE ENVOLVIDO EM CRIME CONTRA ÍNDIOS

A denúncia veiculada pelo jornal O Globo (30 de agosto) e por outros órgãosda imprensa nacional e estadual de que o deputado federal Roland Lavigneestá envolvido num grave crime de genocídio contra a primeira tribo indígenaconhecida no Brasil, os pataxós hã hã hãe, chocou o Brasil e o mundo.De acordo com a notícia, que tem repercussão internacional, “Uma geraçãode pataxós foi esterilizada. Todas as mulheres em idade fértil da aldeia sofre-ram ligadura de trompas durante a campanha eleitoral de 94, sem autorizaçãoda FUNAI”. Ainda segundo o jornal O Globo, “Os pataxós afirmam que ascirurgias de ligadura de trompas foram patrocinadas pelo médico e deputadofederal Roland Lavigne (PFL BA) na época dono de hospitais na região”.Para agravar ainda mais a situação de Roland Lavigne, o crime de genocídiodenunciado pelos Índios Pataxós à ONU e à FUNAI foi praticado com o di-nheiro do SUS em troca de votos. Além disso, o crime tem relação com a dis-puta dos fazendeiros da região pela posse das terras dos pataxós. Desde o des-cobrimento do Brasil os pataxós vêm sendo empurrados do litoral – área deSanta Cruz de Cabrália para o interior.O ministro da Saúde, José Serra, o Ministério Público, a Secretaria de Saúdeda Bahia e o Conselho Regional de Medicina já estão investigando o caso eafirmam que vão tomar providências. Porém, nós eleitores do sul da Bahia,representantes da sociedade civil, não devemos nos contentar com isso. Não setrata apenas de um crime de corrupção eleitoral ou de um crime comum. Umcrime dessa natureza vai além do direito penal. Atinge o direito à vida. O direi-to de existir de uma raça, de um povo. É prática comparável aos piores crimescometidos contra a humanidade e merece punição exemplar.A existência de uma rede de fraudadores do SUS na qual se destacava o depu-tado Roland Lavigne foi amplamente denunciada pela imprensa e nenhumaprovidência foi tomada. Nada foi feito para punir os criminosos que agora,em novo período eleitoral, retomam a prática de esterilizarem mulheres do povocom o dinheiro público em troca de votos. E como se não bastasse, utiliza umacarreta transformada em hospital ambulante explorando as necessidades dosmais humildes para tentar se reeleger deputado federal com o slogan saúde évida. Isso é uma vergonha.Chega de crimes contra a humanidade.Queremos apuração dos crimes e punição dos criminosos.

MOVIMENTO PELA ÉTICA NA POLÍTICA”.

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As razões que teriam levado Roland Lavigne a deixar de lado o episódioJohn Ribeiro e, conseqüentemente, um tema potencialmente explosivo emuma cidade onde quase 85% da população se identifica como negra, e ondeseu principal adversário buscava, explicitamente, o apoio do movimento ne-gro, é uma questão de difícil resposta – ao menos para quem não teve qual-quer acesso à campanha do candidato. Talvez ele tenha avaliado que os divi-dendos eleitorais do episódio seriam muito baixos; talvez temesse ressuscitaras acusações de racismo que pairavam sobre ele mesmo; talvez tenha decidi-do que o melhor, quando se trata de um tema como o racismo, no Brasil, énão tocar no assunto de jeito algum, seja porque este não seria muito rele-vante, seja porque ninguém pode saber como a polêmica poderia terminar.

O fato é que, no dia 24 de agosto de 2000, ainda havia muita discussãoem torno do caso John Ribeiro. Para esta data, havia sido marcado um en-contro do secretário e de Gurita com os pais das crianças que, nos Carilos,faziam parte do Batukerê, o projeto social desenvolvido pelo Dilazenze. Oobjetivo do encontro, em tese, era tentar explicar as razões do atraso no re-passe das verbas da Prefeitura destinadas ao projeto. Decidiu-se, entretanto,que a “reunião” – que acabou, é claro, convertendo-se em ato eleitoral – de-veria também ser ocasião para a distribuição de cestas básicas às famílias pre-sentes, que, dessa forma, estariam sendo incluídas em um programa maisamplo de distribuição de alimentos.

Essa distribuição de cestas básicas, como já observei, converteu-se, nosúltimos anos, e em todo o país, em um importante meio de obtenção de apoiopolítico e de votos. Pouco importando a origem dos recursos – oriundos dosincontáveis programas municipais, estaduais e federais, mas também parti-culares ou do terceiro setor –, os distribuidores tratam de, pelo menos, insi-nuar que são os responsáveis pelo fornecimento. Em Ilhéus, eram comuns oscomentários de eleitores vinculando o suposto crescimento eleitoral de umcandidato a prefeito ou vereador em determinada região da cidade à distri-buição de cestas, bem como hipotéticas quedas de popularidade à interrup-ção desse serviço. Os candidatos travavam verdadeiras batalhas retóricas, le-gais e, por vezes, físicas, em torno das cestas. Proclamavam que a distribuiçãoera iniciativa sua e acusavam os adversários de tentar impedi-la ou de distri-buir cestas irregularmente – como Jabes fazia com Roland; recorriam à justi-ça ou chamavam a polícia para impedir uma distribuição que taxavam de ile-gal – como Roland fizera com um evento comandado por John em um dis-trito de Ilhéus (o que, evidentemente, permitiu a Jabes acusá-lo de tentar

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impedir que a comida chegasse à boca do povo). A seleção e o cadastramentodas regiões e famílias que deveriam receber o benefício seguiam, ao menosnos momentos próximos ao pleito, linhas de força políticas, com a atuaçãode cabos eleitorais e com o registro dos dados eleitorais dos cadastrados.29

Realizada na quadra do Dilazenze, a entrega das cestas aos “pais doBatukerê”, como eram chamados os beneficiários, acabou sendo, portanto,um ato eleitoral, no qual Gurita e Jabes – representado por seu irmão e secre-tário municipal John Ribeiro – eram os principais interessados. O primeironão mediu palavras: logo após se apresentar e evocar seu trabalho em prol domovimento negro e do bairro da Conquista, foi direto ao ponto:

“Eu estou na campanha de vereador, todo mundo sabe disso, e nós precisamosganhar essas eleições de vereador e de prefeito. Precisamos ganhar e o momen-to aqui é realmente de pedir votos a vocês. Eu não vim aqui para encher lingüiçanão. Eu vim esclarecer algumas coisas, bater um papo, continuar com o meuapoio e pedir o voto de vocês, de cada um de vocês, dos amigos, dos vizinhos,da família. Porque nós precisamos eleger um vereador que tenha compromis-so com os Carilos, com a Conquista, que tenha compromisso com a culturapopular da cidade, com o esporte da cidade”.

John Ribeiro, por sua vez, entre irônico e cauteloso, começou seu dis-curso dizendo que “não vou entrar de sola como Gurita entrou, pedindo votono início. Eu peço no final!” E, imediatamente, agradeceu o apoio do Dila-zenze “por alguns fatos que recentemente aconteceram na minha vida e oscomponentes do Dilazenze em nenhum momento sequer perguntaram a mimse o fato era verdadeiro ou mentira, mas simplesmente me apoiaram. Por issoestou agradecendo publicamente a esse grupo”. No final do discurso, pediuum “voto de confiança”, enfatizando que não se tratava, contudo, de “votode confiança para Jabes”:

“[...] eu sou suspeito para pedir o voto para Jabes porque, além de trabalhar nomunicípio, eu sou irmão. Quem tem que pedir o voto de Jabes é o passadodele, é a consciência de vocês que deve votar. Mas eu quero pedir voto paraesse negão aqui. Vou chamar ele de negão porque ele sabe que estamos em fa-mília. Votar em Gurita é votar em vocês mesmos, é votar em um representantede vocês, da nossa raça, daqui da nossa área, uma pessoa que não só merece onosso voto, mas que é um irmão da gente, que está aqui, que não vai falharcom a gente, que não vai desaparecer depois”.

É claro que John Ribeiro se referia, veladamente, ao conflito com o de-putado do PT – bem como a outras acusações de racismo que contra ele vi-

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nham sendo levantadas.30 Ignorando completamente o panfleto do CEAC,agradeceu ao Dilazenze pelo apoio manifesto no panfleto de Gurita, o mes-mo que Marinho repudiara veementemente. Apesar disso, este último per-maneceu o tempo todo em silêncio e, no dia seguinte, ao relatar o ato, fingiunão ter entendido muito bem do que John estaria falando. Perante o meuespanto, sorriu e disse que, felizmente, as pessoas presentes não haviam en-tendido essa parte do discurso. Concluiu, também, que, em relação ao su-posto objetivo real do encontro – as verbas municipais para o Projeto Batukerê,do Dilazenze –, nada acontecera. Finalmente, em tom de desalento, comple-tou que o que houvera fora “muita política”.

A evocação, por parte de John, do estatuto de Gurita como “represen-tante de vocês, da nossa raça”, replicava parte da matéria paga por ele assina-da, publicada em 30 de julho, em que sustentava que “quem me conhece,conhece a minha história de vida, de homem negro e trabalhador”. Diantede públicos majoritária ou exclusivamente negros, seu irmão Jabes sustenta,às vezes, posição semelhante. Vimos, também, como, mesmo sem se dizernegro, o coronel presente na cerimônia do 20 de novembro de 1998 defen-dia, contra o representante do MNU, a existência de “uma única raça, a raçabrasileira”. Nas sessões especiais da Câmara dos Vereadores de Ilhéus alusivasaos Dia da Consciência Negra, é muito comum os vereadores evocarem, emseus discursos, sua condição de negros. Mas eles sempre tendem a fazê-lo rela-cionando essa condição particular a uma espécie de situação geral de um país,ou ao menos de um estado ou região, em que todos, de alguma forma, seriamnegros ou possuiriam algum “sangue negro” (e também “sangue índio”).31

Em 2003, essa mesma Câmara Municipal designou uma comissão quedeveria redigir uma “cartilha de conscientização negra”, da qual seriam im-pressas 5 mil cópias, a serem distribuídas em escolas e outras instituições, nodia 20 de novembro. A comissão, formada por cinco vereadores, convidoualguns representantes do movimento negro para uma série de reuniões, quedeveriam servir para a preparação do texto da cartilha. Apenas uma foi reali-zada, e, nela, o vereador Joabes Ribeiro, irmão do prefeito e também mem-bro da comissão, declarou solenemente:

“[...] essa cartilha serve para podermos construir um movimento afirmativode conscientização racial nessa cidade, que tem 70% de negros de cor e os outros30% de negros de raça. Queremos uma cartilha de ação afirmativa, como éque o negro deve se comportar, como é que o negro deve agir, quais são seusdireitos, que ele saiba que é maioria, que é dominante. E eu fiz isso porque

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estou cansado de ser semibranco em um país afro, não agüento mais. Eu nãoestou preocupado com voto, estou preocupado é que Ilhéus possa, um dia, serdominada pela maioria negra, que é isso é que é direito. Mas não é para domi-nar só pelo domínio não: é para dominar porque essa é a realidade da nossaproporção, é isso que é certo. Não dá mais para todo negro olhar para brancoe chamar ele de barão. Não dá mais! Todo negro olha para o branco e diz queé doutor, é patrão. É preciso parar com isso! O que a gente quer é igualdade,mas para ter igualdade tem que ter conscientização. Essa é a idéia da cartilha,que não é um simples documento, mas um instrumento para estar ali à vistade toda a comunidade afro-descendente, que é uma maioria que quer ter umpapel na história dessa cidade. Essa é a idéia da Câmara”.

A cartilha, até onde eu saiba, nunca foi produzida. Em vez disso, no dia20 de novembro de 2003, a Prefeitura enviou ao Memorial da Cultura Negrauma enorme quantidade de panfletos (boa parte dos quais acabou sendo usa-da como papel para anotações) que deveriam ser distribuídos entre os gruposnegros. Graficamente muito semelhante ao panfleto elaborado por Gurita em2000 para apoiar Jabes, este se resumia ao seguinte texto:

“20 DE NOVEMBRO.Dia da consciência negra.

Era uma vez uma cidade encantada, que de tão bela e acolhedora abrigou pes-soas de várias origens. Entre elas, havia muitos afro-descendentes que aquiconstruíram uma cultura e uma consciência ricas e poderosas: a consciêncianegra. O samba, o candomblé, o maculelê e a culinária que eles trouxerampassaram a fazer parte do dia-a-dia de todos nós. E para valorizar tudo isso, oprefeito Jabes Ribeiro tomou diversas iniciativas, criou o Carnaval Cultural eo Memorial da Cultura Negra. Os grupos afro agradecem. A cidade também.Aquele Axé”.

Essa retórica do ‘somos todos negros’ é encarada pelos militantes afroora com ironia, ora com irritação, mas sempre com a perfeita consciência deque ela é acionada visando resultados bem precisos, principalmente facilitara aproximação com o movimento afro-cultural a fim de, é claro, utilizá-lopara finalidades que não são as suas. No mesmo 20 de novembro para o quala Câmara elaboraria a cartilha de conscientização, e para o qual a Prefeituradistribuiu o panfleto acima reproduzido, o Conselho das Entidades Afro-Culturais e o Memorial da Cultura Negra organizaram um evento comemo-rativo do Dia de Zumbi, que deveria contar com apresentações dos blocosafro em frente ao prédio da 19 de Março. Surpreendentemente, Jacks Rodri-

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gues, presidente do CEAC, chegou ao local acompanhado de um adminis-trador distrital que pretendia se candidatar às eleições municipais de 2004, eque utilizava o slogan “100% Alcides” (clara alusão ao “100% Negro”, queornamenta muitas camisetas e adesivos em Ilhéus e em outras partes). Àmedida que os diferentes grupos se iam apresentando, o candidato, seus as-sessores e o próprio Jacks distribuíam camisetas de campanha e cerveja paraaqueles que desciam do palco. Indignado – principalmente, como explicoumais tarde, por se tratar do Dia de Zumbi –, Marinho Rodrigues, em seudiscurso, advertiu para um dos riscos que o movimento negro sempre corre-ria em Ilhéus, a saber, o de vir a ser “usado” por pessoas que, na verdade, nãotinham absolutamente nada a ver com a luta negra, e que só pensavam emseus interesses e objetivos pessoais: “nós não precisamos de capitães-do-mato”,concluiu Marinho, empregando uma forte expressão que, por vezes, é utili-zada pelos militantes negros como forma de denúncia velada (uma vez queos denunciados quase nunca são nomeados, embora todos saibam de quemse trata) contra atitudes que consideram racistas. Mais tarde, o candidatoaproximou-se e disse não compreender a irritação de Marinho “porque eutambém sou negão”. Marinho, que considera o interlocutor absolutamentebranco, respondeu: “tudo bem, mas então por que só agora você está dizendoisso?”

Em março de 2003, um morador de Ilhéus, branco e de classe média,decidiu comemorar seu aniversário com uma “noite afro”, realizada no Clu-be Social de Ilhéus, o mais exclusivo da cidade, situado no final da AvenidaSoares Lopes. Além de convidar as famílias mais conhecidas de Ilhéus – e oconvite exigia “roupa afro” –, o aniversariante também convidou muitos mem-bros dos blocos afro da cidade. Apesar de algumas críticas à música da festa –que, supostamente, deveria ser afro mas, na realidade, era axé-music –, eles di-vertiram-se bastante, não apenas com a festa em si, mas, principalmente, vendo“os burgueses” desfilarem com roupas que consideravam ser afro. De todaforma, essa comemoração marcou uma aproximação entre o bloco afro MinyKongo e o aniversariante, que, diz-se, já trabalhou como “carnavalesco” emalgumas escolas de samba do Rio de Janeiro. Ele passou a fazer parte da dire-toria do bloco e atribuiu-se a tarefa de levá-lo à conquista do carnaval 2004.Desde que a competição entre os blocos fora reintroduzida, em 1999, o Dila-zenze vencera todos os carnavais, conquistando o inédito título de penta-campeão do Carnaval Cultural de Ilhéus. Interromper essa seqüência passoua ser um ponto de honra para os demais blocos, em especial para os outros

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dois considerados “grandes”, o Rastafiry e o Miny Kongo. A colaboração doex-carnavalesco foi, assim, bem recebida pelos membros do último, e o fatode ele ser considerado branco não chegava sequer a ser uma questão, uma vezque a presença de não-negros nos blocos afro de Ilhéus – e mesmo sua parti-cipação no comando dos mesmos – não é um problema em si, embora nãoseja tão freqüente, por razões, digamos, estatísticas.

Como veremos no último capítulo, o Dilazenze acabou desfilando como“hors-concours” no carnaval de 2004, e o Miny Kongo, de fato, conquistou otítulo. No dia 13 de maio de 2004, durante a entrega do Quarto Troféu CEACIde Cultura Negra, o carnavalesco foi contemplado com uma das premiações.Em seu discurso de agradecimento, atacou frontalmente o Dilazenze e van-gloriou-se de, sozinho, ter conseguido derrotar o rival. Ao receber o troféurelativo à participação de seu bloco no desfile, Marinho Rodrigues fez ques-tão de responder ao ataque. Sustentou, mais uma vez, que o grande perigoque assombra os blocos afro de Ilhéus é o de serem “usados” por pessoas quecom eles não têm uma verdadeira relação; que esses blocos não precisam de“capitães-do-mato” que lhes digam o que fazer; e que, ao se considerar o únicovitorioso do carnaval, o carnavalesco estava ofendendo, não o Dilazenze, maso próprio Miny Kongo e os antigos membros do bloco. O discurso foi muitobem recebido e mesmo os componentes do Miny Kongo cumprimentaramMarinho por suas palavras.

* * *

Esse conjunto de acontecimentos e discursos aponta para diversas dire-ções. Observemos de início, que, se, em Ilhéus, as posições dos agentes a res-peito das relações raciais e do racismo podem ser expressas em uma lingua-gem mais direta do que aquela a que estamos acostumados, isso não significaque sejam distintas, em natureza, do que se afirma em outros locais e contex-tos, nem mesmo das posições mais habituais no campo acadêmico. Como sesabe, o debate que parece assombrar a vida intelectual brasileira há muitotempo se manifestou, inicialmente, na célebre dúvida sobre se existiria aqui,ou não, um racismo propriamente dito, ou seja, se as discriminações e exclu-sões que, ao menos em princípio, todos reconhecem existir, possuiriam, ain-da que em parte, uma base racial ou étnica, ou se seriam apenas, como secostuma dizer, de origem estritamente social ou socioeconômica. Na medidaem que essas desigualdades permaneceram, tornando-se ainda mais gritan-

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tes, e que sua correlação com pertencimentos étnicos foi ficando cada vez maisdifícil de ser negada – seja em virtude de trabalhos acadêmicos sofisticados,seja em função, digamos, de observações a olho nu –, o debate parece tersofrido uma pequena transformação, mesmo que a pura negação da existên-cia de racismo enquanto tal no Brasil, sem dúvida, ainda persista em certoscírculos ou em determinadas situações. Tornou-se, contudo, bem mais co-mum o reconhecimento de que, se algum tipo de discriminação racial existe,ela apareceria, entre nós, sob modalidades, digamos, mais suaves do que emoutros contextos nacionais ou culturais. É muito difícil, de fato, achar alguém,hoje, que siga admirando abertamente a democracia racial brasileira, em com-paração com a terrível discriminação norte-americana; mas é bem mais fácilencontrar quem sustente que, no Brasil, pelo menos, essa discriminação e osconflitos a ela relacionados não atingiriam a gravidade e a onipresença quepossuem, por exemplo, nos Estados Unidos. Essa perspectiva permeia atémesmo os posicionamentos de muitos daqueles que, a fim de melhor denun-ciar o racismo entre nós, insistem no caráter mais perverso do preconceitodissimulado que conheceríamos, em oposição à discriminação aberta de ou-tras partes do mundo, as quais, ao menos, permitiriam um combate mais di-reto e ostensivo.

Não se trata aqui, é claro, de entrar nesse debate, que é muito complexoe exigiria um trabalho específico. Mas creio ser possível sustentar que, emúltima instância, o caráter aparentemente quantitativo das visões que nele seenfrentam (mais ou menos racismo, racismo pior ou melhor etc.) está apoia-do sobre julgamentos que incidem, antes, sobre supostas diferenças qualita-tivas entre o que tende a ser considerado tipos distintos de racismo – ligados,por sua vez, a diferentes formas de classificação dos indivíduos tendo por basesua “raça” ou “cor”. Pois, como se sabe, supõe-se existir, de um lado, um ra-cismo de “origem”, vigente em sociedades e culturas onde existiria uma níti-da linha de separação entre cores ou raças, chegando mesmo a constituir umsistema binário. E, de outro, um racismo dito de “marca”, predominante emcontextos socioculturais que privilegiariam classificações mais fluidas, tenden-do para um modelo contínuo, no qual os indivíduos poderiam ser mais oumenos brancos ou negros.

Uma polêmica mais ou menos recente opondo Michael Hanchard (1996)e Peter Fry (1995) deixa claro esse ponto. O primeiro sugere que a “democra-cia racial” não passa de uma ideologia que busca escamotear, com sucesso cadavez menor, as inegáveis desigualdades socioeconômicas baseadas nos pertenci-

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mentos raciais. O segundo responde, argumentando, primeiro, que as “ideo-logias” ou “representações” não são menos reais que a “realidade” e, em segui-da, que o “modelo bipolar” de classificação racial é típico dos Estados Uni-dos, ou do mundo anglo-saxônico, não podendo ser projetado sobre outroscontextos (idem: 13). Ao mesmo tempo, admite que, no Brasil, estaríamos àsvoltas com a coexistência dos dois modelos: “o ideal da democracia racial e abrutalidade do racismo coexistem de tal forma que é a situação [...] que de-termina qual vai prevalecer” (idem: 135).

O problema, como demonstrou Pétonnet (1986), é que o modelo dua-lista não resiste a uma boa etnografia, e isso vale para Ilhéus ou para o Harlem:subjacente, ou ao lado, de qualquer classificação dual, encontram-se sempreoutros modelos de classificação, modelos que não apenas são múltiplos, como,principalmente, são utilizados de distintas maneiras. Como vimos no Capí-tulo 2, em um primeiro momento, Paulo Rodrigues foi aceito no movimentoafro-cultural de Ilhéus ao acionar marcadores que, na cidade, conotam a con-dição negra: naturalidade ilheense, pai estivador, cor da pele (“mulata”, comodisse), luta contra o preconceito. Mais tarde, outras dimensões existenciais –como a cultura, a habilidade para a música e a dança, a disposição para a festae o carnaval – tornaram-se mais importantes e ele foi totalmente excluído domovimento. Vimos, também, no capítulo anterior, como Gurita, ao mesmotempo, reconhecia a “cor” do candidato a vice-prefeito como negra e sua “cul-tura” como não negra – a pergunta “mas, afinal, ele é negro ou não é?” sópodendo mesmo surgir nos censos ou no espírito de antropólogos desavisados.

Isso significa, mais uma vez, que o abandono de perspectivas sintáticas esemânticas em benefício de uma pragmática – também advogado por Fry(1995: 125-126) – parece ser a condição de possibilidade de uma compreen-são mais sofisticada, não só do racismo, mas de alguns correlatos, como asnoções de raça, etnicidade, identidade etc. É desse ponto de vista que JohnGalaty (1982) propôs a substituição das análises semânticas da etnicidade –preocupadas com a identificação dos grupos denotados pelos marcadores ét-nicos – por uma perspectiva pragmática, que não apenas leve em considera-ção os contextos cambiantes de ação e as posições neles ocupadas pelos agen-tes, mas, sobretudo, parta delas. Nesse sentido, os marcadores étnicos funcio-nam como os shifters lingüísticos, conotando categorias cujas fronteiras sãomóveis e instáveis. O que não significa, evidentemente, que tudo seja possí-vel, mas apenas que os limites de inclusão e exclusão não são fixos e não po-dem ser conhecidos antes da investigação empírica (idem: 16).

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É claro que, em cada contexto pragmático, um, ou alguns, dos marcadorestende a predominar; mas esse predomínio, local e mutável, não se confunde,de forma alguma, com a função de sobrecodificação que, em regimes especí-ficos, um marcador pode exercer sobre os demais. Nos termos de Deleuze eGuattari (1972), seria preciso, talvez, distinguir modos de classificação, emesmo racismos, ‘selvagens’ e ‘despóticos’. No primeiro caso, estaríamos àsvoltas com códigos polívocos acionados alternadamente; no segundo, comuma sobrecodificação desses códigos por parte de um significante tido comoprivilegiado. Que este seja a cor da pele, a genealogia, a herança genética oumesmo o patrimônio cultural importa pouco perante essa função de sobreco-dificação.

Tanto as classificações ‘selvagens’ quanto as ‘despóticas’ são segmenta-res: alguém é negro, em determinada situação, sempre com, para e em opo-sição a outrem. Nesse sentido, não há distinção entre sistemas descontínuose contínuos, mas, sim, entre as duas modalidades da segmentaridade. Doponto de vista da flexível, os códigos que permitem decidir se A está com Bem oposição a C, ou se A está em oposição a B e C, são de muitas naturezase encontram-se em estado de variação contínua.32 Os sistemas “duros”, porsua vez, são tão segmentares quanto os outros, mas neles, para usar a expres-são de Herzfeld (1992a: 104), a segmentaridade está como que “dissimula-da” e se apresenta como oposição fixa. Esse é um dos processos que Herzfeld(1996: 76) denomina “literalização”: pertencimentos, que, nos idiomas lo-cais, são mais “estilos” que “identidades”, operando claramente como shifters(eu, que sou “eu” para mim, mas sou “você” para você, também posso serbranco para alguém e não para outrem), tendem a ser cristalizados na formade identidades étnicas ou nacionais (idem: 74-77; 80-81; 93) – as quais, lon-ge de serem o solo sobre o qual se constroem as formações estatais, são umdos resultados das mesmas.33

Sublinhemos, novamente, que não se trata aqui de uma oposição entreformas ideológicas ou sociais individualizadas, mas de processos instáveis emregime de variação contínua. Nesse sentido, os antropólogos, que, por vezes,gostam de imaginar que seu papel é a desreificação do que os agentes sociaisreificariam, deveriam ser mais modestos, uma vez que, freqüentemente, é ocontrário que ocorre. A antropologia, de fato, deve lutar contra a literalização,mas suas arma não pode ser a denúncia do que os nativos pensam estar fazen-do. Ao contrário, como etnografia das práticas e como pragmática, a discipli-na só pode apoiar-se, precisamente, sobre o caráter flexível das classificaçõescotidianas, a fim de enfrentar o aparente enrijecimento operado pelo Estado

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e por outras instituições. E é apenas isso que podemos denominar contextua-lização e relativização.

Observei rapidamente, acima, que o racismo pode ser encarado seja comopreconceito, seja como fato empírico, estatisticamente mensurável, digamos.O primeiro caso comporta, sem dúvida, uma dificuldade, pois, como lembraHerzfeld (idem: 11), a possibilidade de acesso do etnógrafo aos “innermostthoughts” dos nativos é, no mínimo, duvidosa. E, ao menos em Ilhéus, algunsnativos parecem concordar com isso, de tal modo que, quando perguntadosse alguém é racista ou não, tendem a não responder diretamente a questão,preferindo discorrer sobre a existência de racismo em geral na cidade, ou ci-tar casos concretos de atitudes que consideram racistas. Por outro lado, se ín-dices estatísticos, como sabemos, podem ser interpretados de muitas formas– e é duvidoso que algum dia um deles sirva de argumento definitivo sobreseja lá o que for –, têm ao menos o mérito de nos colocarem na verdadeirapista do problema. Pois o racismo, mais ou menos que um preconceito ouuma ideologia, é, sobretudo, uma prática e, mais precisamente, uma formade poder:

“[...] o que faz a especificidade do racismo moderno não está ligado a menta-lidades, a ideologias, a mentiras do poder. Está ligado à técnica do poder, àtecnologia do poder” (Foucault 1997: 230).34

Ora, esse “racismo moderno” de que fala Foucault é, sem dúvida, umracismo de Estado. Não no sentido de que só é praticado por Estados, masporque possui uma forma-Estado, forma que, como vimos acima, procedepor meio de uma espécie de ‘domesticação’ do racismo selvagem (no sentidolevistraussiano dos termos), sobrecodificando seus códigos e submetendo-oao império de um valor ou critério central. Ocorre que, ao mesmo tempoque enrijece os códigos locais, essa operação os torna, não mais flexíveis, cer-tamente, mas bem mais dóceis:

“O racismo europeu como pretensão do homem branco nunca procedeu porexclusão nem especificação de alguém designado como Outro [...]. O racismoprocede por determinação das variações de divergências, em função do rostoHomem branco que pretende integrar em ondas cada vez mais excêntricas eretardadas os traços que não são conformes, ora para tolerá-los em determina-do lugar, ora para apagá-los no muro que jamais suporta a alteridade [...]. Doponto de vista do racismo, não existe exterior, não existem as pessoas de fora.Só existem pessoas que deveriam ser como nós, e cujo crime é não o serem”(Deleuze e Guattari 1980: 218).

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Submetido a um processo de axiomatização, o racismo pode tornar-seaté mesmo diferencial, apelando, por exemplo, mais para a noção de culturado que para a de raça.35 Não porque a primeira, como às vezes se finge ima-ginar, sofra de um defeito congênito que, necessariamente, a faça ser utiliza-da com o mesmo terrível papel da segunda. Estamos às voltas, na verdade,com diferentes modos de tratar a raça ou a cultura, e a luta trava-se precisa-mente em torno desses modos de tratamento. O racismo de base cultural éapenas o resultado de uma sobrecodificação pela cultura, assim como o bio-lógico resulta de uma sobrecodificação pela natureza. Não deixa de ser verda-de, contudo, que a cultura parece mais bem dotada para o processo deaxiomatização, fazendo com que existam posições desiguais no sistema, masnão permitindo que exista algo realmente diferente, fora do sistema. Isso fazcom que esse racismo contemporâneo não opere mais “em termos de divi-sões binárias e de exclusões, mas como estratégia de inclusão diferenciada”(Hardt e Negri 2001: 213), e que “a exclusão racial geralmente apareça comoresultado da inclusão diferencial” (Hardt 2000: 366) – dispositivo cujos me-canismo serão, em parte, analisados no próximo capítulo.

NOTAS

1 No dia 30 de outubro de 1998, acompanhei o Ballet Afro Dilazenze em uma apresentação,agenciada pela Ilheustur, em um luxuoso hotel próximo a Ilhéus, que abrigava um congressode juízes do trabalho. O grupo deveria se exibir logo após uma apresentação do Ballet Allegro,uma das academias de balé clássico e moderno da cidade. As péssimas condições de transpor-te, a necessidade de caminhar cerca de 1 km carregando os instrumentos, o “lanche” servidoem uma sala fechada (sanduíches de pão de fôrma e refrigerantes quentes, enquanto, no sa-lão principal, bebia-se cerveja e uísque e comia-se camarão empanado e salgadinhos de baca-lhau) e, principalmente, o tom de superioridade e certo desprezo com o qual eram tratadosbailarinos e músicos, fizeram com que eu compreendesse muito bem as reclamações do grupo.2 Como observou, aliás, Bezerra (1999) para a questão da representação política.3 Além disso, em Ilhéus, quase todos parecem concordar com o informante de Valente (1986:150): “Todo mundo é governista. Todos aqueles que estão na oposição hoje são governistas.Já o foram no passado, com o poder na mão, e lutam pelo poder, porque são governistas”.4 É por isso, como demonstraram Palmeira e Heredia (1995: 35-38), que os políticos podemsustentar, ao mesmo tempo, que “comício não dá voto” e que os comícios são essenciais parauma campanha vitoriosa. A demonstração de força que lhes conferiria esse caráter, contudo,não é uma exclusividade sua: outros atos eleitorais têm essa mesma característica e, comovimos, em Ilhéus, o desejado apoio do movimento afro-cultural, bem como a própria criação

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do Memorial da Cultura Negra, parecem estar mais ligados a essa busca indireta do que auma avaliação de que acarretariam imediatamente votos.5 Ver sobre esse ponto, entre outros, Villela e Marques (2002: 74) e Kuschnir (2000a: 35).Por vezes, é preciso esperar muito para que um eleitor se pronuncie como um dos informan-tes de Caldeira – que, infelizmente, não analisa a declaração – na periferia de São Paulo: “Olha,eu não acredito em nada, tá, nada: tudo o que eu falei para você, você esquece que é mentira,viu, eu não acredito em nada, não acredito no presidente, não acredito em nada, eu só acre-dito no que eu ver e pegar assim na mão [...]. Sou um cara completamente neutro” (Caldeira1984: 252).6 Como demonstrou etnograficamente Scotto (1994), inspirada em Bourdieu (1989), a con-quista da representação política depende, em grande parte, não apenas do “trabalho de re-presentação”, mas de um verdadeiro trabalho de apresentação, envolvendo a construção deuma imagem adequada à representação que se pretende conquistar. Essa operação é, em ge-ral, levada a cabo por meio da seleção e combinação de características pessoais, traços auto-biográficos e enunciados discursivos do candidato, visando a produção de um símbolo apa-rente e perfeitamente adequado àquilo que simboliza – na verdade, um ícone.7 Caso de uma das cunhadas de Marinho, cuja mãe era candidata, e para quem seu maridocunhou o slogan: “ruim por ruim vote em minha sogra”.8 Como observaram Villela e Marques (2002: 74) no sertão de Pernambuco, para que umadas inúmeras lealdades empiricamente existentes possa efetivamente render votos, é precisocultivá-la, preservá-la e acioná-la de forma correta no momento adequado.9 Ver, por exemplo, Heredia (1996: 60), Herzfeld (1985: 104), Palmeira (1991: 125; 1996:51) e Villela e Marques (2002).10 Herzfeld (1985: 117) observou o mesmo fenômeno em Creta: alguns eleitores, ideologi-camente comprometidos, pediam votos para seu partido, mas anunciavam claramente queteriam que votar em outro em função de relações familiares e de linhagem.11 Devo a Emerson Giumbelli a aproximação entre o tema da subjetivação moral e asubjetivação política. Creio mesmo que seria possível estabelecer um paralelo entre as quatrodimensões da ética isoladas por Foucault e as questões que deveríamos colocar em política –mesmo que, neste caso, não nos defrontemos com sistemas altamente conscientes e organi-zados de reflexão, como ocorre com a filosofia antiga. De toda forma, quando alguém obe-dece a alguém, o que obedece a quê: a alma, o corpo, a consciência, os atos apenas (substân-cia política)? Por que alguém obedece a alguém: em função da razão, da moral, da força, dadignidade, da honra (modo de sujeição político)? Que atitude ou postura é tomada quandose obedece a alguém: boa vontade, má vontade, ironia, servilismo (elaboração do trabalhopolítico)? O que é que se pretende quando se obedece a alguém: obter vantagens, não serpunido, tornar-se melhor (teleologia do sujeito político)?12 Como escreveu Sherry Ortner (1984: 151), “os antropólogos em geral consideraram queatores com muita densidade psicológica eram metodologicamente difíceis de manipular”.Assim, tanto as formas de subjetivação, quanto os complexos processos por meio dos quaissubjetividade e socialidade se engendram mutuamente tendem a ser deixados de fora de muitasetnografias.

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13 Em 2000, assim como em 1996, não houve propaganda eleitoral de Ilhéus na televisão. Arede local fica situada em Itabuna, mas seria obrigada a ceder o horário caso os partidos tives-sem feito a solicitação a tempo. O fato de estes não o terem feito foi atribuído tanto a umaescassez generalizada de recursos quanto a Jabes Ribeiro, que, pressentindo que tal campa-nha seria a ele desfavorável, teria manobrado para impedir qualquer solicitação.14 Christine Chaves (2003: 128) sustenta que “o voto no candidato de maior possibilidadede vitória, comumente desqualificador do eleitor para os mais diferentes analistas políticos,porque associado à despolitização, nada mais exprime do que a inteligência do sistema polí-tico, e com ele guarda uma coerência intrínseca”. Já Nunes et alii (1993) chegaram mesmo atentar quantificar esse tipo de opção. Como escreveu Gasparetto (1995a), esses autores teri-am detectado “a existência de um tipo de eleitor que se pauta, para sua tomada de decisão, nocandidato que deverá sair-se vencedor. Esse eleitor seria altamente influenciável pela divul-gação de pesquisas de intenções de voto” e votaria, basicamente, visando “não perder o voto”.Gasparetto, que sustenta ter comprovado essa hipótese em suas pesquisas no sul da Bahia,insiste nos efeitos da divulgação de pesquisas sobre os eleitores e fala, mesmo, de um tipo de“eleitor que vota-ganhador”, e que seria distinto tanto do que vota ética e politicamente, quantodo que vota mercantilmente. Ele conclui, assim, que em eleições municipais acirradas esseeleitor pode decidir o pleito, e advoga a favor do voto facultativo.15 Por isso é curiosa a perplexidade, algo ingênua, de Oliveira (s/d: 30; ver, também, Oliveira1991), ao indagar-se por que, nas eleições municipais de Salvador em 1992, foram lançadascandidaturas que, no final, “não ultrapassaram a barreira dos 200 votos”. A resposta, algopomposa, imagina que se trata da “emergência de pequenas lideranças cuja influência polí-tica circunscreve-se a pequenos grupos”. Mais interessante teria sido perseguir a outra ques-tão colocada: “por que os partidos recrutaram candidatos cujas possibilidades de serem elei-tos eram tão inatingíveis”? Mas o autor, infelizmente, não o faz. Em Ilhéus, em 2004, 25candidatos a vereador obtiveram menos que dez votos; oito não obtiveram nenhum voto.16 Este, aliás, como já observei, é um tema de divertimento em Ilhéus, tanto na imprensalocal quanto nas conversas cotidianas. Eis alguns apelidos, oficialmente utilizados, coletadosentre 1996 e 2004: AB, Alan Delon, Aracildo da Brasgás, Baixinho, Bigu, Bizunga,Borrachinha, Britocop, Calçolinha, Canguru, Caranha, Cobrinha, Corta Luz, Crispim Zédo Caixão, Cupim, Dendê ou Dendiesel, Dona Onça, Eliana do Fla, Fafá Fitness, GG, JoãoCarona, Joni Carroceiro, José Mascate, Josedex, Jujú, Mãe Neguinha, Mangueira, MaurinoArrupiado, Meinha, Mocheco, Nonô, Paichão, Paulo da Véia, Paulo Gordo, Peixe-Galo,Perninha do Ovo, Peruna, Pinha, Que Que, Raimundo Moqueca, Russo, Samuel daMortuária, Socorro Para Ilhéus, Toni Topó, Velho Manga, Zé Baixinho, Zé Bolão, Zé Den-tista, Zé do Cacique do Ar, Zé Perigo.17 Deleuze (1990: 240-242, 244-246) sugeriu ainda que a análise foucaultiana do processode substituição das sociedades de soberania pelas sociedades disciplinares entre os séculos XVIIIe XX deveria ser complementada, hoje, pela análise de uma nova transição que, politicamen-te, corresponderia à implantação de uma outra modalidade de capitalismo no plano econô-mico, com a conseqüente necessidade de transportar os mecanismos disciplinares – criados,desenvolvidos e operados nos espaços fechados e limitados das fábricas, prisões, escolas ehospitais – para os espaços abertos e potencialmente sem limites do mundo como um todo.

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É à estrutura constituída, ou definida, por essa operação que Deleuze dá o nome de “socieda-de de controle”, e é com esse pano de fundo que as análises do funcionamento real dos siste-mas democráticos contemporâneos deveriam ser conduzidas.18 Semelhante ao “clima mental dos partidos políticos ativistas” (Veyne 1984: 58), no qual“um homem que não faz política não passa por um homem tranqüilo, mas por um mau ci-dadão” (idem: 60).19 “Considerava-se a militância como nós consideramos a democracia ou os direitos do ho-mem: não era exclusivamente uma ideologia nem imediatamente uma prática” (Veyne 1984:58); “a Antiguidade pensava a política em termos de militância tão naturalmente quanto apensamos em termos de democracia e não podia concebê-la de outra maneira. Tal é o equí-voco da palavra ideologia: apologia, mas também preconceitos” (idem: 62).20 É evidente que a adoção do voto em lista ou distrital simplesmente faria com que se subs-tituíssem manobras de captura empregadas no sistema proporcional por outras. Assim, asconvenções partidárias – que, na verdade, já decidem as candidaturas – adquiririam umaimportância extra, fazendo com que as disputas e manobras nelas observáveis tendessem a‘aperfeiçoar-se’.21 “Chamamos ‘captura’ essa essência interior ou essa unidade do Estado” (Deleuze e Guattari1980: 531); “a sobrecodificação, esta é a operação que constitui a essência do Estado” (Deleuzee Guattari 1972: 236 – grifo dos autores). Ou, nas palavras de Guattari (1986b: 289), “[...]o termo sobrecodificação corresponde a uma codificação de segundo grau. Exemplo: socie-dades agrárias primitivas, funcionando segundo seu próprio sistema de codificaçãoterritorializado, são sobrecodificadas por uma estrutura imperial, relativamente desterritoria-lizada, impondo a elas sua hegemonia militar, religiosa, fiscal etc”.22 “Os partidos têm medo de lançar candidatos negros a postos mais ‘significativos’ da polí-tica, porque sua imagem não teria boa receptividade na população” (Valente 1986: 70).23 Uma eleitora que respondeu a esse questionário disse que acreditava ser “coisa de Jabes”, jáque perguntavam o que achava do prefeito. Disse, também, que respondeu que “achava queestava tudo ótimo”, mas, quando perguntada se essa era realmente sua opinião, respondeuque não sabia, pois “não entendo nada de política”.24 E aparentemente em toda parte: ver Goldman e Silva (1998: 36) para o mesmo procedi-mento no Estado do Rio.25 Patrick Champagne vem desenvolvendo um importante trabalho de análise crítica das pes-quisas de opinião, em especial as eleitorais. Ver, sobretudo, Champagne (1990), mas, tam-bém, Champagne (1988; 1995).26 Como sugeri no Prólogo deste livro, o fato de os nativos poderem interpretar a presença doantropólogo da maneira que acharem mais convincente – não importando o que ele diga ouo que ache que está fazendo no campo – impede que a mera explicitação de intenções ou oconsentimento informado possam ser utilizados como desculpas para possíveis deslizes éti-cos do pesquisador. Trata-se sempre, pois, de interpretações, jamais de ignorância ou simplesdesconhecimento.27 Pois “votaria errado o socialista que, por desinformação, votasse no candidato liberal, ouvice-versa” (Rodrigues 1994: 3).

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28 Trata-se, aparentemente, do mesmo sentimento descrito por Primo Lévi como “a vergo-nha de ser um homem”. Como observou Deleuze (1990: 233), esse sentimento não tem aver com “responsabilidade”, mas sim com o fato de sermos “manchados” por algo como oracismo, principalmente pelo simples fato de existirem seres humanos e estruturas sociaisracistas, mas também porque sentimos, confusamente, que não somos capazes de impedirsua existência e que, às vezes, chegamos mesmo a fazer concessões a ele.29 Em 1996, foram distribuídas algumas senhas falsas que, supostamente, poderiam ser trocadaspor cestas básicas no principal comitê de campanha de Jabes, situado na Avenida Soares Lopes.Aparentemente inspirada em manobra semelhante realizada em Itabuna alguns dias antes –provocando grande confusão na distribuição efetuada pela Prefeitura, já que havia mais se-nhas do que cestas –, essa não teve muito sucesso. “Todo mundo percebeu que era armaçãode Roland”, foi a explicação generalizada para o caso.30 E continuariam a sê-lo: durante o Grito dos Excluídos de 2003, uma militante negra por-tava um cartaz em que dizia ter sido vítima de racismo e de violência física da parte de JohnRibeiro.31 Assim, na sessão especial de 24 de novembro de 1999, um vereador declarava que a lutapela igualdade racial “[...] é nossa, porque todos nós acreditamos ter o sangue negro, todosnós temos a cultura negra, todos nós temos a história negra no nosso sangue, na nossa vida,na nossa tropicalidade, em todas as nossas experiências, em todas as nossas convivências”.Da mesma forma, como vimos, o prefeito Jabes Ribeiro costumava adotar o mesmo tom,declarando, por exemplo, em 20 de março de 2000, na cerimônia de assinatura do protocoloentre a Prefeitura e o CEAC, que “este sangue aqui conhece bem as raízes culturais, os afro-descendentes, aqueles que representam a luta, a construção desse nosso querido país”. Ou,na assinatura do contrato com a Associação Desportiva 19 de Março, em 19 de maio de 2000,que “nesse sangue corre o sangue das origens de tantos e tantos que aqui construíram essenosso país”.32 Como escrevem Deleuze e Guattari, “a segmentaridade primitiva é, ao mesmo tempo, a deum código polívoco, fundado nas linhagens, suas situações e suas relações, e a de uma territoria-lidade itinerante, fundada em divisões locais emaranhadas. Os códigos e os territórios, as li-nhagens de clãs e as territorialidades tribais organizam um tecido de segmentaridade relati-vamente flexível” (Deleuze e Guattari 1980: 255 – grifo dos autores)”. É por isso, também,que Pierre Clastres (1974) tem toda razão em recusar a imagem banal de um etnocentrismouniversal, e distinguir o etnocentrismo ‘selvagem’, que “julga sua cultura superior a todas asoutras sem se preocupar em sustentar um discurso científico sobre elas”, do nosso, que deseja“situar-se de uma só vez no elemento da universalidade sem se dar conta de que permanecesob muitos aspectos solidamente instalada em sua particularidade” (idem: 16). Pois, onde háEstado, assiste-se sempre à tentativa de “supressão mais ou menos autoritária das diferençassocioculturais” (Clastres 1980: 54).33 Essa é a condição, também, para que deixemos de pensar a diferença “no sentido identi-tário (representação das características particulares de cada indivíduo ou grupo)” e passemosa pensá-la como devir, um “diferir”, inclusive, e talvez especialmente, de si mesmo: “o con-ceito de diferença [...] é justamente o que nos arranca de nós mesmos e nos faz devir outro”(Rolnik 1995: 255). Para uma crítica das teorias da etnicidade baseadas em uma concepção

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identitária da identidade, ver Ossowicki (2003). E, para uma abordagem etnográfica nessamesma direção, ver Gow (1991).34 Ver, também, Foucault (1997: 51-53, 75-77, 227-235). Como observou Foucault de modomais geral, na antropologia, foi “Clastres [quem] fez aparecer uma concepção do poder comotecnologia, liberando-se do privilégio da regra e da proibição que dominava a etnologia deDurkheim a Lévi-Strauss” (Foucault 1976b: 184).35 Sobre a axiomatização, ver Deleuze e Guattari (1972: 163-164). Sobre a culturalização doracismo, ver Hardt (2000: 364): “racismo que não mais se apóia em um conceito biológicode raça”. Ver, também, Hardt e Negri (2001: 210-215).

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CAPÍTULO 5

1998/1999: CARNAVAL

Após dois dias de tensão aguardando o resultado do desfile dos blocosafro no Carnaval Cultural de Ilhéus de 1999, recebemos a notícia de que aFundação Cultural e a Ilheustur divulgariam a classificação geral da compe-tição para a imprensa na tarde daquela sexta-feira, 19 de fevereiro, no TeatroMunicipal. Obtivemos, assim, a “súmula de pontuação”, que, por um lado,confirmava os rumores de que o Dilazenze havia sido, pela primeira vez, ocampeão do carnaval, mas, por outro, apresentava uma série de discrepânciasem relação a tudo o que vinha sendo divulgado oralmente. Nem a pontuaçãofinal de cada grupo, nem a classificação dos blocos a partir do segundo colo-cado correspondiam ao que se comentava por toda a cidade desde a quarta-feira de cinzas.

Em frente ao Teatro Municipal, encontramos Moacir Pinho, que, mes-mo tendo deixado o cargo de gerente de Ação Cultural da Fundação Cultu-ral de Ilhéus quando seu partido, o PT, rompera a aliança com o governomunicipal, havia sido convidado a participar da comissão organizadora docarnaval 1999 e, na condição de jurado de “enredo”, do júri que julgara odesfile. Marinho, muito desconfiado, mostrou a Moacir os resultados oficiais,e ele, aparentemente surpreso, afirmou imediatamente não ter sido aquele oresultado que saíra da comissão julgadora ao final dos desfiles do domingo decarnaval, pois apesar do fato de cada grupo ter desfilado em dois dias diferen-tes alternados, havia sido estabelecido pela comissão que apenas o primeirodesfile seria considerado tendo em vista a atribuição das notas aos diversosquesitos em julgamento. Moacir sugeriu que, ainda que o Dilazenze tivessepermanecido como campeão, sua pontuação havia sido reduzida visandoencurtar sua distância em relação ao segundo colocado, e que houvera umainversão de algumas posições: o Rastafiry, um dos blocos mais tradicionaisda cidade, teria sido alçado do terceiro para o segundo lugar, em prejuízo doZambi Axé, bloco fundado apenas quatro anos antes e que desfilara pela pri-meira vez no carnaval. Incitando Marinho a denunciar as alterações, Moacirargumentava que o Dilazenze era o único grupo “com moral” para a denún-cia, uma vez que fora o campeão, e que ele, pessoalmente, confirmaria a irre-gularidade assim que ela fosse denunciada. “Fizeram política com o des-

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file”, concluiu Moacir. E embora ele não seja natural de Ilhéus, o termo “po-lítica” foi acentuado e pronunciado com a inconfundível entonação que, nacidade, é quase sempre utilizada quando se fala do tema, e que transmite in-falivelmente ao ouvinte todo o desprezo que a atividade política suscita e todaa distância que dela se deve manter.

Como já observei, o carnaval é, sem dúvida, a atividade mais importan-te a que se dedica um bloco afro. Foi a má vontade em compreender esse pontoo principal motivo para os desentendimentos entre Paulo Rodrigues e osmilitantes do movimento afro-cultural, em 1996, e é certamente essa impor-tância que parece estar no coração dos conflitos que continuamente opõemos movimentos negros autodefinidos como “culturais” àqueles que preferemconsiderar-se “políticos”. O carnaval de 1999, entretanto, parecia apresentar,além disso, algumas dimensões extras, que conferiam a ele, aos olhos dosmilitantes afro-culturais, uma espécie de suplemento de importância, tornan-do-o ainda mais especial.

A história do carnaval em Ilhéus não é um tema que possa ser conside-rado muito bem documentado, mas podemos ter alguma certeza, ao menos,de que a festa é bem antiga. O historiador Silva Campos, em sua Crônica daCapitania de São Jorge dos Ilhéus, de 1937 – escrita, como já foi observado,sob encomenda da Prefeitura, visando a comemoração do cinqüentenário daelevação de Ilhéus à categoria de cidade –, sustenta que o primeiro carnavalilheense teria sido o de 1889, “sepultando de uma vez por todas o nocivo eestúpido divertimento do entrudo” (Silva Campos 1937: 275). Em 1936, aPrefeitura teria auxiliado “os cordões carnavalescos para dar brilhantismo àfesta popular” (idem: 504), mesmo que, e ainda de acordo com Silva Cam-pos, a “festa profana mais popular” não fosse o carnaval, mas a “Mi-Carême”ou “segundo carnaval” – realizada, como sugere o nome, no meio da quares-ma –, que se estendia “do sábado de aleluia até a sexta-feira de Páscoa, às ve-zes” (ibidem). Finalmente, essa “Mi-Carême” – que está na origem das mica-retas contemporâneas – “conquistara todos os povoados do interior”, enquan-to, no carnaval, costumava-se fretar navios para acompanhar a festa em Sal-vador (idem: 471).

O testemunho de Vinháes (2001: 308-316), que acompanhou pessoal-mente carnavais em Ilhéus desde a década de 1920, sugere que, até pelo menos1950, o carnaval realizado no centro da cidade, e em alguns de seus clubes,era basicamente uma diversão para a elite branca; entretanto, sobre o que fariadurante as festas a imensa maioria negra, nada é dito. Em 1950, contudo –

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na esteira de uma certa difusão dos afoxés em Salvador, com a criação do Fi-lhos de Gandhi, em 1949 –, um dos pais-de-santo mais famosos de Ilhéus,Pedro Farias, teria criado seu afoxé, o Filhos da África, que viria a desfilar,ininterruptamente, até 1970 (ao lado de, pelo menos, mais um afoxé, o Fi-lhos de Aruanda, que teve vida mais curta). Nos anos 1960, esses afoxés já semisturavam às escolas de samba, surgidas ao longo da década, escolas que, aolado dos “blocos de arrasto”, parecem ter sido as principais forças do carnavalilheense até 1980. A partir desse momento, verificou-se um duplo processoque vem marcando a festa em Ilhéus até hoje. Por um lado, como já observei,a emergência dos blocos afro, os quais replicam localmente o processo que,em Salvador, Risério (1981) designou “reafricanização do carnaval”. Por ou-tro, a introdução dos trios elétricos e, mais tarde, dos blocos de trio.

De acordo com o que contam os militantes negros, o primeiro blocoafro a desfilar no carnaval de Ilhéus foi o Lê-Guê DePá, em 1981. Três anosmais tarde – e pouco mais de trinta anos após o surgimento do trio elétricoem Salvador –, a Prefeitura de Ilhéus (durante a primeira gestão de Jabes Ri-beiro, observe-se) teria montado um trio para que seus inventores, os famo-sos Dodô e Osmar, desfilassem na cidade “animando os dias carnavalescos”(Vinháes 2001: 313). Em 1990 (durante a gestão de João Lírio, sucessor ecorreligionário de Jabes Ribeiro), teriam, enfim, surgido os primeiros blocosde trio, igualmente inspirados em modelo criado em Salvador, e que o pró-prio Vinháes (idem: 313-314) denomina “blocos de ricos” ou “blocos eliti-zados”. Esses blocos são, na verdade, agrupamentos de pessoas – cuja quanti-dade, em Ilhéus, pode chegar a muitas centenas – que saem pela principalavenida da cidade em torno de um grande caminhão dotado de amplificado-res e caixas de som extremamente potentes, e em cima do qual se encontra otrio elétrico. O conjunto é cercado por cordas sustentadas e puxadas por se-guranças, os quais também têm a função de impedir que aqueles que não estãovestidos com o short e a camiseta do bloco entrem no espaço reservado. Comoem Salvador, esse uniforme é denominado “abadá”, em uma interessanteapropriação de um termo de origem ioruba que servia para designar as túni-cas usadas pelos escravos moçambicanos e, mais tarde, uma bata vestida pe-los fiéis do candomblé. Os membros dos blocos afro diziam, escandalizados,que, em Salvador, um abadá podia custar até R$ 700,00; em Ilhéus, seu pre-ço oscilava entre R$ 100,00 e R$ 200,00, o que evidentemente colocava es-ses blocos de trio totalmente fora do alcance da imensa maioria negra e pobreda população local – com a exceção, dizia-se, dos “negros e pobres ousados”,

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capazes de se endividar por um ano inteiro com o único propósito de desfi-larem nesses blocos.

Em função de sua origem e de sua estrutura, os blocos de trio são cha-mados pelos militantes negros de “blocos de barão” (cf. Cambria 2002: 23,nota 28) ou de “blocos de brancos”. E é também em função do sucesso queesses blocos vinham fazendo em Ilhéus que Cesar, do Rastafiry, podia dizer,em 1996, que

“[...] o movimento negro vem sofrendo há quatorze anos dentro de Ilhéus: desdeo primeiro governo de Antônio Olímpio; depois veio Jabes Ribeiro, que pas-sou para João Lírio; depois voltou de novo Antônio Olímpio; e agora voltaJabes Ribeiro. Nesses quatorze anos, as entidades negras de Ilhéus vêm sofren-do até para desfilar no carnaval. Porque o costume é receber alguma doaçãopara desfilar. Mas eles só dão no primeiro ano por ter recebido apoio, depois jánão dão mais e até boicotam as entidades para que elas não desfilem. Eles nãoajudam nada e vivem boicotando as entidades. E foi sofrimento! Porque háquatorze anos o movimento negro sofre dentro de Ilhéus! Eu até já pensei emir embora e só estou aqui por causa do Rastafiry e do movimento negro deIlhéus que eu quero defender”.

Cesar referia-se tanto ao surgimento dos trios elétricos e dos blocos detrio (durante os governos Jabes Ribeiro e João Lírio, respectivamente, comovimos) quanto, e talvez principalmente, ao fato de que, a partir de 1994 (ouseja, no segundo ano do segundo governo Antônio Olímpio – que, comovimos, do ponto de vista dos militantes negros, foi eleito com grande ajudados blocos afro), o carnaval de Ilhéus sofreu grandes oscilações no que dizrespeito à sua estrutura, localização e, mesmo, às suas datas de realização. Em1994, aproveitando as obras que eram realizadas na principal avenida da ci-dade – a Soares Lopes, situada à beira-mar, local de residência da elite e palcodos desfiles de carnaval por décadas –, a Prefeitura transferiu os festejos parao bairro do Malhado, um pouco mais distante do centro da cidade, conside-rado inadequado, do ponto de vista físico, para o desfile dos blocos afro, emarginal, do ponto de vista social, para a realização de um evento tão impor-tante. Dizia-se mesmo que a mudança de local estava relacionada ao precon-ceito dos brancos ricos, moradores da Soares Lopes, que não desejavam apresença de negros pobres em frente a suas casas, mesmo que fosse por ape-nas quatro noites.

Além disso, e pela primeira vez, celebrava-se o “carnaval antecipado”:copiando uma idéia do prefeito de Itabuna, cidade vizinha, Antônio Olímpio

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adiantara o carnaval de Ilhéus em três semanas, com o argumento de que talantecipação facilitaria a contratação de “atrações de fora” da cidade (grandesbandas e trios), uma vez que evitaria a concorrência dos carnavais mais famo-sos – os de Porto Seguro e Salvador, principalmente –, concorrência que fariacom que a remuneração dos melhores grupos ficasse alta demais, elevandoastronomicamente os custos de organização do carnaval ilheense.

Do ponto de vista dos blocos afro, entretanto, a antecipação do carna-val apenas servia para aprofundar o processo de redução do espaço, cada vezmais exíguo, que ocupavam no carnaval de Ilhéus. Mais do que isso, as “atra-ções de fora” eram contratadas, na verdade, pelos blocos de trio, que se haviamconstituído como associações permanentes, cujas sedes se localizavam, namaior parte dos casos, na Avenida Soares Lopes, muitas vezes em antigas ca-sas de familiares dos dirigentes, já que quase todos eram oriundos de tradi-cionais famílias da elite cacaueira. Havia uns cinco blocos de trio em Ilhéus,e um deles era dirigido justamente por um dos filhos do prefeito AntônioOlímpio, o que reforçava as suspeitas de que havia uma grande articulaçãoentre a Prefeitura, os blocos de trio e a elite branca em geral, articulação des-tinada a obter altos lucros com o carnaval e a eliminar a presença dos blocosafro do mesmo.

Na verdade, esse processo não era exatamente novo. Ele prolongava oque já vinha ocorrendo desde o governo João Lírio (aliado de Jabes Ribeiro,lembremos), que, em 1991 e 1992, privara os blocos afro da tradicional aju-da financeira que a Prefeitura, há muito tempo, fornecia para que pudessemdesfilar no carnaval. Com escassos recursos próprios, ou com algum dinheiroobtido junto ao comércio ou a políticos locais, alguns blocos ainda consegui-ram desfilar nesses anos, mas, evidentemente, não houve competição, e osdesfiles foram considerados muito fracos. Em 1993 e 1994 (o primeiro e osegundo carnavais do governo Antônio Olímpio), o auxílio oficial foi resta-belecido para ser, contudo, novamente suprimido em 1995 e 1996 – quandoo carnaval continuou a ser realizado no bairro do Malhado. Desse modo,poucos blocos desfilavam, e os que conseguiam fazê-lo costumavam desfilarno formato de “levadas”, o que significa que os foliões vestiam camisetas emlugar de fantasias, e que o bloco não possuía nem enredo determinado nemmúsica-tema para o desfile. Dizia-se, abertamente, que o dinheiro que deve-ria ser repassado aos blocos afro era direcionado para os blocos de trio.

Após a eleição de Jabes Ribeiro, em 1996, o grupo vitorioso insistiu muitono tema do “resgate do carnaval de Ilhéus” e, para isso, começou planejando

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e organizando dois carnavais. Em 1997, pouco após assumir o poder, o pre-feito, por um lado, manteve o “carnaval antecipado” (batizado de Ilhéus Fo-lia, nome aparentemente copiado do Cabo Folia, de Cabo Frio, no Estadodo Rio), realizado em janeiro, na Avenida Soares Lopes novamente, mas coma mesma estrutura utilizada no governo anterior, apoiada sobre os blocos detrio. Por outro lado, a Prefeitura realizou um pequeno “Carnaval Cultural”,como passou a ser conhecido desde então o carnaval oficial, ainda sem desfi-le, mas com um palco montado em uma das extremidades da Avenida SoaresLopes, onde se apresentaram blocos afro (que contaram com um pequenoauxílio financeiro da Prefeitura) e “atrações locais” em geral.

Em agosto de 1997, a Prefeitura realizou, também, a “Primeira Etapado Seminário Seqüencial de Preparação para o Carnaval 98”, visando apro-fundar o “resgate do Carnaval Cultural de Ilhéus” e reintroduzir os blocosafro no centro dessa manifestação (Silva 1998: 94, 104). Com efeito, já em1998 – e apesar da manutenção do modelo de dois carnavais –, os blocos afrovoltaram a desfilar na Avenida Soares Lopes e a receber o auxílio financeiroda Prefeitura. Em 1999, foi restabelecida a competição entre os blocos. Em2000, o Ilhéus Folia foi extinto, mas o carnaval – que, mesmo sendo o único,continuou a ser chamado de “cultural” – seguiu obedecendo o modelo dosdois anos anteriores: blocos afro em desfile competitivo, blocos de arrasto(blocos mais informais, mais ou menos parecidos com os blocos de sujo doRio de Janeiro), palcos com “atrações locais” e o “carnaval antigo”, que sedesenrolava no Circo Folias da Gabriela, espaço fechado com uma lona etambém situado, como todo o resto, na Avenida Soares Lopes. Até 2003, essaestrutura e esse cronograma foram preservados, mas em 2004, o único carna-val foi novamente antecipado, dessa vez para o início de fevereiro, mantidasas atrações dos anos anteriores, acrescidas, mais uma vez, de trios elétricos e“atrações de fora”, contratadas pela Prefeitura. Os blocos de trio – que evi-dentemente sofreram um processo de decadência ao longo dos dois manda-tos consecutivos de Jabes Ribeiro (apenas dois sobreviveram) – voltaram adesfilar com mais força no carnaval de 2004.

* * *

Em função de todos esses eventos e processos, talvez seja possível ima-ginar que a insistência de Jabes Ribeiro e sua equipe no discurso do “resgatedo Carnaval Cultural” poderia ser pensada, por eles mesmos, como uma es-

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pécie de tentativa de reproduzir, a partir do aparelho de Estado, o processomais espontâneo ocorrido em Salvador no início da década de 1970, batiza-do por Risério (1981) “reafricanização do carnaval”. Do ponto de vista domovimento afro-cultural, entretanto, o desprezo pelos blocos afro e o quepoderíamos chamar, ironicamente, de ‘desafricanização’ do carnaval de Ilhéusnão haviam começado com Antônio Olímpio (contra quem os “jabistas”certamente imaginavam reagir), mas no governo anterior, o de João Lírio, emesmo antes, no primeiro mandato do próprio Jabes Ribeiro, quando, di-zem os militantes negros, os afoxés e escolas de samba foram abandonados –a tal ponto que jamais se recuperaram – em benefício dos trios elétricos, quederam origem aos blocos de trio, que tanto viriam a prejudicar o trabalhodos blocos afro.1

Era esse, na verdade, o sentido das palavras de Cesar, do Rastafiry, assimcomo daquelas de Gilmar, do Dilazenze:

“A gente aqui, membros do movimento afro-cultural de Ilhéus, praticamentesó ganha dinheiro em duas épocas, política e carnaval. Mas a gente trabalhacom o carnaval com bastante dificuldade, porque os órgãos públicos e da ini-ciativa privada não têm interesse em patrocinar nenhuma entidade afro. Querdizer, a gente sobrevive das poucas coisas que a gente faz e dos poucos amigosque temos. Não há interesse por parte da Prefeitura em manter os blocos afrona rua. Há mais interesse em manter os blocos de trio que elitizaram o carna-val de Ilhéus, a verdade é essa. O carnaval de Ilhéus está elitizado, quem estácomandando o carnaval de Ilhéus são os barõezinhos, os filhos de prefeito, os fi-lhos de secretários do prefeito, eles é que estão mandando no carnaval de Ilhéus”.

É claro, contudo, que, como sempre, os sentimentos dos dirigentes dosblocos afro em relação ao Ilhéus Folia podiam ser muito variados e, às vezes,conflitantes. Por um lado, tendiam a considerar que se tratava de um “carna-val de brancos” (Menezes 1998: 82, 84), uma perversão da verdadeira festa,aquela que eles, sobretudo, sabem fazer; por outro, sentiam-se inevitavelmenteatraídos pelos possíveis rendimentos materiais e financeiros e pela “visibili-dade” que o evento poderia proporcionar, uma vez que o turismo de fora dacidade tendia a ser bem mais pronunciado no carnaval antecipado do que nocultural (idem: 89).

Em 1999, o CEAC esforçou-se bastante para participar do Ilhéus Folia.Propôs à Prefeitura que esta financiasse, com cerca de R$ 35.000,00, um blocode trio organizado pelo Conselho, bloco que contaria com a participação detodos os blocos afro da cidade. Esse bloco, significativamente batizado Bloco

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Afro Os Quilombolas, realizaria dois desfiles na Avenida Soares Lopes, comuma estrutura em tudo idêntica à dos blocos de trio usuais. A resposta da Pre-feitura, como se pode imaginar, foi que, de fato, seria muito interessante queo Ilhéus Folia contasse com um bloco dessa natureza, mas que a obtençãodos recursos, no carnaval antecipado, era uma tarefa dos próprios blocos, quedeveriam financiar seus desfiles com a obtenção de patrocinadores (em geralpor meio das leis de incentivo à cultura) e com a venda dos abadás àquelesque neles desejavam desfilar. E já que era evidentemente impossível vender oquer que fosse aos membros dos blocos afro, ou obter um patrocínio paraum bloco com as características dos “Quilombolas” (e também redigir umprojeto que concorresse aos incentivos culturais estaduais e federais), a idéiafoi logo abandonada pelos dirigentes do CEAC.

Observamos aqui, mais uma vez, como a unidade do movimento afro-cultural de Ilhéus se estabelece, quase sempre, em suas relações com o Esta-do. Foi apenas a idéia de poder participar do Ilhéus Folia, caso um financia-mento da Prefeitura fosse obtido, que permitiu o desenvolvimento dessa es-tranha idéia de um bloco único formado pelos membros de todos os blocos.Além disso, pode-se observar, igualmente, que não são apenas as desigualda-des econômicas que estabelecem barreiras para que o movimento negro pos-sa participar de um evento basicamente ‘branco’ como o Ilhéus Folia. É ver-dade que a impossibilidade de vender abadás a pessoas pobres desempenhavasua função; mas é verdade, igualmente, que a dificuldade de obtenção depatrocínio estava diretamente ligada à infinitamente menor boa vontade de-monstrada por comerciantes e empresários para com os líderes negros do queem relação aos membros da elite que dirigiam os blocos de trio; e é verdade,enfim, que a exigência de apresentar um projeto para o acesso aos incentivosculturais estatais exclui, de imediato, do jogo aqueles que praticamente sósabem ler e escrever.2

Antes de 1999, o Dilazenze já pretendera desfilar no carnaval antecipa-do com sua banda (ou seja, parte da bateria e sem as alas tradicionais de foliõesfantasiados que compõem um bloco afro). Na reunião destinada à organiza-ção do evento, Marinho descobriu que havia uma regra que estabelecia umamulta para os blocos de trio que não cumprissem os horários estabelecidos.Argumentou, sem receber resposta, que seu bloco não tinha recursos finan-ceiros para arcar com uma possível penalidade. Pouco depois, viu-se cons-trangido a ouvir os dirigentes dos blocos de trio sustentarem que estes, naverdade, ofereciam empregos às pessoas mais pobres de Ilhéus – tanto como

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seguranças quanto como “cordeiros” (os que seguram a corda que isola o blo-co do resto da multidão) –, e que isso, no final das contas, já era uma formade permitir que essas pessoas brincassem e participassem do carnaval anteci-pado. O Dilazenze não desfilou no Ilhéus Folia.

Se, para os blocos afro em geral, o carnaval de 1999 – com o retorno dacompetição entre eles e um auxílio financeiro supostamente mais substancial– representava um grande momento de sua história, para o Dilazenze, emparticular, esse carnaval era absolutamente central. Considerado unanime-mente, diziam os membros do grupo, o melhor bloco afro da cidade, nuncahavia conquistado um título de campeão do carnaval de Ilhéus, e seus parti-cipantes eram obrigados a ouvir dos membros do arqui-rival Rastafiry (cam-peão do último desfile com competição, em 1988) todo tipo de provocaçõese brincadeiras. É verdade que alguns oscilavam entre considerar a competi-ção uma forma saudável de estimular os blocos a se aperfeiçoarem e condená-la como uma maneira nociva de acirrar as já conhecidas rivalidades entre osblocos – mas, mesmo neste caso, suspeito que pesava mais o medo da derrotado que o da divisão. Uma vez decidido, contudo, que haveria mesmo a dis-puta, todos no Dilazenze pareceram imediata e profundamente compene-trados da necessidade absoluta de vencer o carnaval pela primeira vez, conso-lidando-se assim como o principal bloco afro da cidade.

Para alcançar essa vitória, tida como fundamental, não se economizounos gastos – na medida do possível, é claro. A distribuição dos recursos, porparte da Prefeitura, foi muito complicada. Oferecendo uma verba total deR$ 22.000,00, a comissão organizadora do carnaval delegou ao CEAC a es-pinhosa tarefa de proceder à distribuição do dinheiro entre os diferentes gru-pos que compõem o Conselho. Os três blocos considerados maiores –Dilazenze, Rastafiry e Miny Kongo – argumentaram que deveriam receberuma quantia mais alta, uma vez que seus gastos seriam maiores. Por outrolado, os blocos tidos como menores (Raízes Negras e D’Logun, que desfila-riam reunidos, e Zambi Axé), a Levada da Capoeira (grupo formado por lu-tadores de uma das academias da cidade), o Danados do Reggae (bloco novoque também sairia como “levada”), o Afoxé Filhos de Ogum e a EmbaixadaGêge-Nagô (grupo formado apenas por crianças e adolescentes, que desfi-lam batendo ritmicamente pequenos pedaços de madeira a que chamam“pauzinhos” – o que fornece o nome pelo qual o grupo é mais conhecido)argumentavam que a quantia restante seria insuficiente para suas necessida-des. Depois de muita confusão, foram destinados R$ 4.000,00 a cada um dos

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três grandes blocos; R$ 2.000,00 a cada um dos menores e ao Afoxé; R$1.500,00 à Embaixada Gêge-Nagô; e R$ 1.250,00 à Levada.

O Dilazenze, entretanto, gastou um pouco mais do que recebera, utili-zando, para isso, alguns dos sistemas nativos de crédito.3 Esses gastos foramainda mais altos, porque a liberação do dinheiro por parte da Prefeitura de-morou muito mais do que o previsto, só chegando aos blocos três dias antesdo carnaval, o que obrigou a todos a efetuarem suas compras às pressas, nocomércio local (que, diga-se de passagem, costuma aguardar a liberação dodinheiro para os blocos com grande ansiedade e aumentar seus preços logoque isso ocorre), sem poder buscar preços mais acessíveis fora de Ilhéus.Marinho acreditava que a diferença entre o que gastara e o que dispunhapoderia ser coberta com a prometida premiação do campeão do carnaval, quedeveria equivaler a 20% da verba recebida pela entidade vencedora – o que,no caso do Dilazenze, representaria R$ 800,00, quantia suficiente não ape-nas para pagar as dívidas, como para a feijoada da vitória, acompanhada demuita cerveja, que deveria ser oferecida no sábado posterior à divulgação dosresultados.

O problema é que, logo após encontrar Moacir e confirmar que “fize-ram política com o desfile”, Marinho encontrou Gurita e, ao indagar sobre apremiação a que o Dilazenze fazia jus, foi surpreendido com a informação deque não haveria qualquer premiação em dinheiro, apenas troféus, e que ele,provavelmente, entendera mal as regras da competição. Ligeiramente trans-tornado, Marinho passou a levantar suspeitas sobre o papel de Gurita no queconsiderava ser o “desaparecimento” do prêmio, bem como a especular sobreos efeitos dessa atitude sobre a candidatura de Gurita a vereador nas eleiçõesde 2000.

Por um lado, o resultado de toda essa confusão foi a decisão de cancelara feijoada da vitória, tomada em clima de muita consternação. Eu mesmoargumentei que talvez fosse possível oferecer apenas a feijoada propriamentedita, e solicitar aos membros do bloco que trouxessem a bebida, sistema usa-do em muitas festas particulares. Explicaram-me, então, que “fica muito feionão ter bebida pelo menos para os membros da bateria”, e que esta não era aprimeira ocasião em que havia dificuldades para a feijoada. No ano anterior,mesmo sem competição formal, o Dilazenze fora considerado o melhor blo-co do Carnaval Cultural e, por isso, decidira-se oferecer uma feijoada. Nãohavia dinheiro, mas como 1998 era “ano de política” (ou seja, de eleições), odinheiro foi finalmente obtido junto a dois políticos locais, que pretendiam

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lançar seus nomes a deputado federal e estadual. Assim, além das dívidasdeixadas pelos gastos efetuados por conta da premiação futura, 1999 não era“ano de política” e a situação era, portanto, bem mais complicada, levandoao cancelamento da feijoada.

Um dos políticos que “ajudara” na feijoada de 1998 fora Gildo Pinto,ex-participante do Movimento Ilhéus Corações, derrotado nas eleições de1992, mas que conseguira eleger-se em 1996, chegando mesmo à presidên-cia da Câmara Municipal. Em 1999, ele também foi acionado na tentativade solução de um problema financeiro, mas os resultados foram bem dife-rentes, servindo, não obstante, como bom exemplo de um tipo de relaçãoque costuma ser estabelecida entre blocos e políticos.

Uma das dívidas deixadas pelo déficit do carnaval 1999 no Dilazenzeera com uma distribuidora de cervejas. Os R$ 200,00, pagos com um che-que pré-datado de um dos irmãos de Marinho que na época estava emprega-do, precisavam, agora, ser depositados na conta visando “cobrir o cheque”.Marinho recorreu, então, a Gildo Pinto, que, após ajudar o bloco em 1998,fora por ele apoiado em sua campanha para deputado estadual (na qual foraderrotado, mas que, como todos sabiam, tinha apenas o intuito de firmar suacandidatura à reeleição para vereador em 2000) e que, além disso, devia R$30,00 no bar do bloco, dinheiro gasto para comprar cervejas distribuídas entrealguns correligionários ainda na época da campanha. Procurado por Mari-nho, Gildo teria afirmado que evidentemente não podia negar sua ajuda aoDilazenze, mas, mais tarde, teria dito que não conseguira obter o dinheiroporque “a coisa está feia”. O cheque, finalmente, só pôde ser coberto comdinheiro cedido por um amigo de Marinho.

Algum tempo antes de recorrer a Gildo para cobrir o cheque, Marinhoo havia procurado com o objetivo de obter um emprego de porteiro em umcolégio municipal. O vereador teria argumentado que era “muito difícil”conseguir o posto, o que levou Marinho a concluir que ele não desejava en-caminhar o pedido à Prefeitura para “não ficar devendo nada ao prefeito”.Muito a contragosto, Marinho fez o pedido a Gurita, que, por um lado, fezquestão de mostrar-se muito surpreso ao escutar o relato da resposta de Gildo– uma vez que ouvira dizer que ele obtivera empregos para muitos correligio-nários, e mesmo para alguns parentes – e, por outro, prometeu conseguir oemprego pedido. Marinho, pouco depois, confessou-se extremamente arre-pendido por ter procurado Gurita, e sustentou só tê-lo feito em virtude dapressão de sua esposa e ao fato de estar desempregado há alguns anos, o que

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fazia com que o salário mínimo por ela recebido em uma lanchonete de pos-to de gasolina fosse a única fonte de renda constante e estável para o sustentoda filha e da casa, já que o dinheiro obtido com as apresentações do Dila-zenze era pouco e incerto. O problema, dizia Marinho, é que se obtivesse oemprego e, mais tarde, decidisse não apoiar Gurita em sua campanha paravereador, corria o risco de que este, ou alguém próximo a ele, “jogasse em suacara” que ele conseguira um emprego quando “estava passando fome” e queagora agia como “mal-agradecido”: “os políticos fazem sempre assim, jogamna cara o que eles acham que são favores que fizeram para alguém”, concluiuMarinho.

Gildo Pinto também fora o personagem principal de uma cena algo inu-sitada que eu presenciara ainda durante os preparativos do Dilazenze para ocarnaval 1999. No final da tarde do dia em que seria realizado o VIII Femadila(Festival de Música do Dilazenze, que voltava a se realizar após alguns anosde interrupção), destinado à escolha da música-tema do grupo para o desfileque ocorreria quatro dias depois,4 Gildo chegou à quadra onde o evento esta-va sendo preparado. Acompanhado por um de seus “assessores” – que é ne-gro, amigo pessoal de Marinho e participa de um dos blocos afro da cidade,o D’Logun (criado, lembremos, em 1992 a fim de apoiar a campanha de al-guns componentes do Movimento Ilhéus Corações, incluindo Gildo Pinto)–, pediu para conversar a sós com Marinho. Após alguns minutos de conver-sa e de movimentação, foram até a casa de Marinho e de lá foram embora.Imaginamos, eu e todos os que assistiram à cena de longe, que Gildo foraoferecer alguma espécie de ajuda para o carnaval do grupo, tendo em vista oapoio que recebera nas eleições do ano anterior e o apoio que desejava paraaquelas do ano seguinte. Ficamos, pois, muito surpresos quando descobri-mos que, sabendo que a verba da Prefeitura fora liberada para o grupo, elefora, na verdade, “descontar um cheque com o Dilazenze”, cheque que pode-ria ser apresentado ao banco após o carnaval, quando ele já teria recebido seu“salário de vereador” – já que, funcionário do sindicato dos portuários de Ilhéus,do qual foi presidente, Gildo acumula outra remuneração). Nossa surpresafoi ainda maior ao nos darmos conta de que Marinho não apenas “desconta-ra o cheque”, como convidara Gildo para fazer parte do júri do festival na-quela noite, convite que ele lamentou não poder aceitar em função de “com-promissos inadiáveis”.

A reciprocidade pode muito bem ser uma estrutura fundamental da exis-tência humana em sociedade ou um elemento de cálculo nas relações sociais

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concretas. Nada disso, entretanto, elimina o fato de que, do ponto de vistados agentes, trata-se de um dispositivo algo perigoso e cheio de riscos. Seuacionamento ou invocação pode, certamente, em alguns casos, permitir a ob-tenção de vantagens, mas pode também, e talvez principalmente, compro-meter de tal forma o devedor que este se vê preso a uma rede de relações dasquais não consegue se livrar mesmo quando assim o deseja. Isso poderia expli-car, eventualmente, o fato de os eleitores – ao menos os mais pobres – tende-rem a preferir os ‘ciclos curtos’, ou seja, aqueles em que as prestações estão omais próximo possível do ponto de vista temporal. Nós o vimos com o con-flito entre o Dilazenze e Cosme Araújo, em 1996, mas, também, com todasas transações em geral resumidas e discriminadas com o nome de compra devotos. Os políticos, ao contrário, parecem preferir ciclos mais longos, ou seja,aqueles em que o intervalo entre as prestações pode fazer com que a necessi-dade de retribuição apareça como dívida, que se torna, progressivamente, cadavez mais difícil de ser paga, podendo mesmo, em alguns casos, atingir o esta-tuto de “dívida impagável”, como às vezes se diz. E isso é verdadeiro tantonos momentos em que os políticos se encontram na posição de credores – eo processo aqui é certamente mais evidente – quanto quando se colocam comodevedores. Neste caso – como ocorreu com o Centro Afro-Cultural de Ilhéus,em 1992 –, o não-pagamento da dívida por parte dos políticos prolonga arelação com os supostos credores, fazendo com que aqueles que se acham naexpectativa de receber sua contraprestação temam uma ruptura das relações,que inevitavelmente implicaria em não-pagamento.5

Gildo Pinto jamais quitou a dívida de R$ 30,00 que contraíra no bar doDilazenze, mas “cobriu” o cheque descontado nas vésperas do carnaval. De-pois disso, manteve-se afastado por algum tempo e só voltou a procurar ogrupo no final de 1999, quando já preparava a campanha para sua reeleiçãonas eleições municipais do ano seguinte. Gildo estava acompanhado de Jacks,o futuro presidente do CEACI e, na época, dirigente do D’Logun e funcio-nário do sindicato dos portuários (no qual Gildo, que conseguira o empregopara ele, trabalhava) – mesma posição do assessor que estivera presente noepisódio do cheque e que, mais uma vez, estava ao lado do vereador. O obje-tivo da visita era propor a Marinho que trabalhasse na campanha de Gildo.No entanto, aquilo que, de certo ponto de vista, era um pedido de apoio po-lítico foi, na verdade, apresentado como uma oferta de emprego: Marinhotornar-se-ia “assessor” de Gildo. Este termo, como já observei, possui umamplo espectro de aplicações em Ilhéus, designando tanto um cargo oficial

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(uma função remunerada de assessoria) quanto os auxiliares, digamos, infor-mais de políticos e, mesmo, qualquer um que supostamente ajude ou dêopiniões sobre política. Como vimos no primeiro capítulo, diz-se, em Ilhé-us, que alguns vereadores chegam a contratar cerca de vinte assessores, o que,evidentemente, faz com que o salário de cada um deles seja bem reduzido.6

O “assessor” do episódio do cheque trabalhava, na realidade, como porteiroou ascensorista da Câmara dos Vereadores, e recebia uma remuneração nãoapenas muito baixa, como variável e inconstante. Em 1996, Paulo Rodriguesfoi classificado como assessor do CEAC para assuntos políticos; e, quando secogitou na candidatura de Marinho para vereador em 2004, eu mesmo fuiconvidado a ser seu assessor de campanha.

Essa imprecisão na definição do que é realmente um assessor tem suapositividade. Gildo oferecia um “emprego” a Marinho, mas não falava emsalário. Diretamente interpelado pelo interessado, o vereador mencionouvagamente “uma cesta básica” (o que é, aparentemente, a forma de pagamen-to do assessor que o acompanhava) e, diante da surpresa do interlocutor,complementou, dizendo que não seria “uma cesta básica qualquer, mas aque-la cesta básica” ou “uma super cesta básica”. As cestas básicas, de fato, pare-cem ter se convertido, ao menos em Ilhéus, em uma espécie de unidademonetária especial, ou, para ser mais preciso, em um tipo de moeda empre-gada principalmente – mas não exclusivamente – no pagamento de serviçoseleitorais. Introduzidas nos últimos anos por meio de vários programas go-vernamentais assistencialistas, elas assinalam também, é claro, a situação de ca-rência e dependência do beneficiário em relação ao fornecedor das mesmas.

Ao ouvir a resposta de Marinho, dizendo que pensaria no assunto, Gildoencerrou a conversa, afirmando que gostaria muito que ele aceitasse o em-prego, pois assim saberia que o estava ajudando e, que, no futuro, ficaria muitofeliz em visitar a casa de Marinho a fim de “comer um churrasco pago com oteu próprio dinheirinho”.7 Marinho, que costuma organizar pequenos chur-rascos em casa ao menos uma vez por mês, nada respondeu, mas, após a par-tida dos visitantes, comentou, irritado, que estes haviam tentado fazê-lo pas-sar por uma “humilhação”, sugerindo que “passava fome” e que não podiasequer “pagar um churrasco”. Acrescentou, ainda, que esse era o estilo dospolíticos de Ilhéus quando se dirigiam às “pessoas mais humildes” – estilo que,poderíamos dizer resumidamente, visa sobrepor a situação de superioridadedo político à posição de relativa inferioridade na qual aquele que pede algoem geral se encontra.

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Esse estilo e essa retórica da humilhação podem, de fato, ser observadosquase a olho nu em Ilhéus. Eles não se limitam, entretanto, como Marinhosugeria, aos políticos locais, estando presentes em quase todas as relações quepõem em contato agentes oriundos de camadas sociais distintas. Envolvemum tom de superioridade, uma expressão de distanciamento e um ar de pres-sa, que parecem destinados a produzir a imagem de alguém que está queren-do “ajudar”, nunca pedir ou impor seja lá o que for. “Ajuda” é, efetivamente,o termo central nesse tipo de relação: é empregado, como pedido, pelo men-digo que pede uma esmola, assim como, na forma de oferta, pelo políticoque oferece dinheiro ou por aqueles que, como Gildo Pinto, tentam contra-tar alguém para um trabalho ou serviço. O termo é igualmente empregado,contudo, e com muita freqüência, nas relações entre o poder público muni-cipal como um todo e o movimento negro de Ilhéus.8

Em outubro de 1998, a Ilheustur (órgão municipal encarregado de ge-rir o turismo na cidade) entrou em contato com o Dilazenze a fim de que obloco realizasse dez apresentações do chamado “turismo receptivo” – apre-sentações do grupo de dança para turistas que estariam desembarcando noporto de Ilhéus, que serve como um dos pontos de parada dos cruzeiros rea-lizados por navios de luxo pela costa brasileira. O Dilazenze apresentou umorçamento de R$ 6.000,00, ao qual a Ilheustur contrapropôs imediatamenteuma oferta de R$ 3.000,00, quantia máxima, alegava, de que poderia dispor– e mesmo assim pagando apenas dois terços adiantados e o restante apenasno final do conjunto de apresentações, que deveriam se estender até dezem-bro. Além disso, esse adiantamento de R$ 2.000,00 não poderia ser pago emespécie, mas na forma de instrumentos musicais, cujos preços, ademais, osmembros do grupo deveriam levantar para levar a uma reunião com o presi-dente da Ilheustur. Este planejava efetuar o pagamento dos instrumentos aprazo, mas deparou-se com uma dificuldade: nenhuma loja especializadaaceitava vender dessa forma para a Prefeitura de Ilhéus, que, diziam, era fa-mosa por não honrar as dívidas contraídas. Assim, em uma reunião bastanteconstrangedora, o presidente da Ilheustur sugeriu que o próprio Dilazenzeadquirisse os instrumentos com “um cartão de crédito emprestado”, e pagas-se parceladamente a fatura do cartão, utilizando os repasses mensais que re-ceberia do órgão. Acostumado com os atrasos nos repasses de dinheiro mu-nicipal, e de sobreaviso, principalmente, em função de uma dívida de R$2.000,00 que a própria Ilheustur tinha para com o Dilazenze há quase trêsanos, Marinho hesitou muito em aceitar a proposta. O tom do presidente da

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empresa, que já era de superioridade e comando, subiu um pouco mais quandoafirmou: “eu quero ajudar vocês, mas neste caso só resta abortar o projeto”,mesma expressão utilizada pelo tesoureiro que, convocado à sala de reuniões,explicou a impossibilidade de comprar à vista o material musical. Finalmen-te, Marinho aceitou receber parceladamente e decidiu que compraria os ins-trumentos à medida que o dinheiro fosse sendo repassado para o Dilazenze,utilizando, enquanto isso, o material antigo do grupo e alguns instrumentosemprestados. O negócio foi finalmente fechado, mas o presidente da Ilheustur,mais uma vez, fez questão de frisar o caráter de “ajuda” que o acordo, a seusolhos, possuía.

Em um trabalho fundamental, Richard Graham (1997) demonstrou queo verdadeiro sentido das eleições, freqüente e ininterruptamente realizadasao longo de todo o Segundo Reinado no Brasil, era menos o de responderpela efetiva escolha dos governantes por parte do povo (já que os resultadoseleitorais eram quase sempre objeto de manobras fraudulentas ou alvo do usoaberto da violência) do que funcionar como uma espécie de “teatro” em que“os participantes usavam a linguagem da estratificação social para, mais queexcluir os votantes, diferenciá-los” (idem: 150), ou seja, para exibir e ratificaruma ordem social extremamente estratificada e elitista. Após a reforma de1881, esse “teatro das eleições” teria deixado de funcionar e o autor apenaslevanta a questão do destino dessas práticas de ostentação de status, voltadaspara distinguir “claramente os poucos que dirigiam as eleições dos muitos queapenas votavam” (idem: 158). Creio que, longe de terem desaparecido, essaspráticas se dissolveram nas relações cotidianas entre políticos e eleitores, tor-nando-se particularmente visíveis nos momentos de campanha. Em outrostermos, se pode ser verdade que o “tempo da política” abre ou intensifica canaisde comunicação entre diferentes camadas sociais, é preciso reconhecer, igual-mente, que isso não significa necessariamente uma maior permeabilidade entretais camadas. Bem ao contrário, pode representar uma ocasião extremamen-te adequada para a exibição de status e para a reafirmação de todas as hierar-quias sociais.

Nesse sentido, ao estabelecerem, de dois em dois anos, o espaço ondesão encenados esses dramas, que mesclam participação e exclusão, as eleiçõesconstroem de fato a dominação, mas não da forma como se imagina que fa-zem. Pois não se trata nem da simples instituição de uma soberania legítima,nem da mera legitimação de formas de domínio preexistentes. Trata-se de maisum mecanismo de poder, no sentido material e foucaultiano da expressão (não

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no burguês ou marxista). Nas eleições e na “política”, há muito mais do quepolítica: há poderes, subjetividades e agências, elementos que uma antropolo-gia da política não pode deixar de lado.

* * *

No dia 12 de fevereiro de 1999, o Carnaval Cultural de Ilhéus era oficial-mente aberto pelo prefeito Jabes Ribeiro. No documento assinado a fim dereceber a verba da Prefeitura para seus desfiles, as entidades afro haviam secomprometido a enviar ao menos parte de suas baterias para a cerimônia deabertura, realizada na noite de sexta-feira, véspera de carnaval, na AvenidaSoares Lopes. O problema é que Gurita, o idealizador da proposta, advertiraque o transporte dos músicos e instrumentos – problema que sempre se co-loca todas as vezes em que um grupo afro vai se apresentar – ficaria sob a res-ponsabilidade dos grupos negros, o que, do ponto de vista destes, inviabilizavaseu comparecimento, na medida em que teriam que destinar parte dos já es-cassos recursos cedidos pela Prefeitura para pagar esse transporte. Além dis-so, especialmente no Dilazenze, a movimentação visando a preparação dodesfile de domingo era muito grande, principalmente porque, com o atrasono repasse da verba, o tempo ficara extremamente curto para todos os prepa-rativos.

Em função disso, apenas os blocos politicamente mais próximos a Gurita,bem como aqueles cujas sedes se localizam nas imediações do centro da cida-de, enviaram alguns músicos, de modo que a abertura do Carnaval Culturalacabou sendo considerada uma cerimônia “muito fraca”. Visivelmente irrita-do, Gurita repetia para todos que haveria problemas e punições, uma vez queo prefeito fazia questão da presença dos blocos, e que todos haviam, formal-mente, assinado um documento de compromisso. Mais tarde, um dos mem-bros da comissão de organização do carnaval diria que o prefeito não se haviamanifestado sobre o assunto, nem parecia se importar com o não-compare-cimento dos blocos, o que confirmou a impressão geral de que, mais umavez, era Gurita querendo “se aparecer”. Em outros termo, suspeitava-se queGurita pretendia apenas exibir os blocos ao prefeito ou, mais exatamente,mostrar a Jabes que detinha o controle dos blocos e que poderia ser realmen-te, tal qual apregoava, o “representante” do movimento negro junto à Prefei-tura de Ilhéus. De toda forma, no sábado e na segunda-feira de carnaval,desfilaram a Levada da Capoeira, o Raízes Negras (que saía em conjunto com

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o D’Logun), o Rastafiry e o Zambi Axé. No domingo e na terça-feira, era avez da Embaixada Gêge-Nagô, do Afoxé Filhos de Ogum, Danados do Reggae,Miny Kongo e Dilazenze.

O domingo de carnaval, 14 de fevereiro de 1999, foi, portanto, um diade intensa movimentação e de muita tensão na sede do Grupo CulturalDilazenze. Trabalhava-se desde bem cedo para que tudo estivesse pronto nomomento do desfile apesar do atraso na compra de material suscitado pelorepasse tardio da verba da Prefeitura. Uma outra forma de atraso, aliás, erauma das grandes preocupações do grupo. A comissão organizadora do carna-val decidira incluir a “pontualidade” como um dos quesitos de julgamentodo desfile, e o Dilazenze, reconhecidamente, costumava ter problemas como horário. Lembrava-se mesmo que a derrota para o Rastafiry, no último desfilecompetitivo, ocorrera em função de um enorme atraso para entrar na aveni-da. Marinho, que reconhecia, resignadamente, que era quase impossível cum-prir o horário estabelecido, decidiu, então, aceitar uma sugestão feita por mim(talvez a pessoa mais preocupada com o assunto), e avisou os membros dobloco que o desfile do Dilazenze deveria iniciar às sete e meia da noite, quan-do, na verdade, isso só deveria ocorrer uma hora mais tarde. A pequena men-tira acabou funcionando bem, e às sete horas – horário perfeitamente com-patível para um desfile às oito e meia –, o bloco, estacionado entre a sede doDilazenze e o terreiro Tombency (que ficam um defronte o outro), estavaprestes a dar início a sua marcha até a Avenida Soares Lopes, com todas assuas alas preparadas e ordenadas, e o caminhão, que servia de carro alegóricotransportando um modelo estilizado de um quilombo e os dois destaquesrepresentando Zumbi dos Palmares e sua esposa Dandara (o tema escolhidofora o mesmo que Marinho tentara, sem sucesso, usar para desfilar no carna-val antecipado, Os Quilombolas), pronto para a partida. Nesse momento,algo de muito grave pareceu ocorrer, uma vez que a saída do bloco foi inter-rompida enquanto muita gente corria de um lado para o outro e Marinho,muito nervoso, repetia que “o bicho pegou”.9

Momentos antes da saída do bloco, uma das irmãs de Marinho – mãe-pequena do terreiro (ou seja, principal auxiliar da mãe-de-santo, que, nestecaso, é também sua mãe biológica) e um dos dois únicos membros do siblingde quatorze irmãos que possui, ao lado de Gilvan, o “dom” de receber os orixásem seu corpo – entrou em transe, sendo possuída por uma “qualidade” femi-nina de Exu.10 Sua Pombagira, entre espalhafatosas risadas e com o vocabulá-rio algo imoral que caracteriza esse tipo de espírito, afirmou imediatamente

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que “eu sei que vocês pensaram que eu não vinha, mas eu vim. Porque temmuito homem gostoso aqui hoje”. Logo em seguida, entretanto, notou-se queo espírito não estava ali apenas para brincadeiras. Em um estilo que um ami-go inglês definiu como “shakespeariano”, a Pombagira proclamou: “pareceque vocês estão dormindo com os olhos dos outros para não ver o que estáacontecendo, para não ver que fizeram e mandaram uma coisa grande contravocês”.

O que a Pombagira de Nidinha anunciava é que o Dilazenze teria sidovítima de um feitiço, certamente lançado por rivais, que sofreriam de umainveja profunda devido ao sucesso do grupo nos últimos anos, e que deseja-riam impedir, a qualquer custo, que o bloco vencesse o desfile de carnaval.Repreendendo duramente Marinho por ter “esquecido” de comprar os in-gredientes que, na véspera, deveriam ter sido utilizados em um sacrifíciopropiciatório para Exu, Dona Ilza tratou de improvisar uma oferenda para adivindade que serve de intermediária a todos os orixás, “abrindo os caminhos”e garantindo o sucesso das empreitadas humanas. Sete pequenos bolinhos defarinha e dendê foram confeccionados e depositados em sete encruzilhadas,uma das moradas de Exu, situadas próximas ao terreiro. Em seguida, a mãe-de-santo soprou grandes quantidades de pemba branca – pó que, no candom-blé, serve para purificação e “descarrego”, ou seja, para afastar as vibraçõesnegativas e as más influências – sobre todos nós e decretou que, a partir da-quele momento, o bloco poderia sair para desfilar na avenida. Marinho ain-da contou que sentiu a presença dos espíritos de seus avós maternos, antigose poderosos líderes do terreiro, que seus olhos se encheram de lágrimas, masque foi capaz de “segurar a onda”, pensando no desfile e na necessidade devitória.

Fogos de artifício foram lançados, algumas pombas brancas soltas,11 e obloco saiu pela Avenida Brasil, antiga Rua dos Carilos, em direção à ladeiraque nos conduziria ao centro da cidade. Tocando e cantando com força eemoção a música-tema do carnaval,12 desfilamos, primeiramente, pelas ruasdo bairro da Conquista, repletas de gente sobre as calçadas, cantando e aplau-dindo o bloco. Em certo sentido, esse era o momento alto do carnaval e, maisdo que para aqueles que assistiriam ao desfile na Soares Lopes, era para osvizinhos e, em última instância, para si mesmos, que os membros do Dilazenzehaviam preparado seu carnaval.13 Descemos, assim, a Ladeira da Coelba, tãoíngreme que obriga os músicos a interromperem seu toque e os foliões amarcharem com muito cuidado. No pé da ladeira, ao atravessarmos a movi-

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mentada Avenida Itabuna, o primeiro incidente: um automóvel avançou osinal vermelho, ignorando também o guarda de trânsito que protegia a pas-sagem do bloco. Alguém bateu no vidro do carro e o guarda, imediatamente,pôs a mão sobre a arma que trazia na cintura. Todos correram na direção dopolicial, em meio a uma enorme gritaria; os membros da bateria, com os ins-trumentos sobre a cabeça, ameaçaram arremessá-los sobre o guarda; um dosirmãos de Marinho disse ao policial que, se ele sacasse a arma e atirasse, tam-bém morreria; outro afirmou que faria uma queixa formal contra ele no Ba-talhão da Polícia Militar; finalmente, Marinho conseguiu apaziguar os âni-mos e contornar a situação, com o bloco retomando o caminho da AvenidaSoares Lopes. Esse episódio, ao lado de dois ou três conflitos menores queocorreram durante, ou logo após, o desfile, viriam a ser lembrados como provados perigos acarretados pelo feitiço lançado contra o bloco. Todos repetiamque, caso a Pombagira de Nidinha não tivesse feito sua advertência, e casoDona Ilza não tivesse realizado um trabalho de proteção de última hora, ocarnaval do Dilazenze certamente teria acabado na Avenida Itabuna, em meioa uma grande tragédia.

De toda forma – e para minha enorme surpresa, já que o atraso na saídae o incidente com o policial haviam me convencido de que a pontualidadeera caso perdido –, entramos na avenida exatamente às oito e meia da noite.Mais do que isso, nós o fizemos antes do Miny Kongo, um dos grandes rivaisdo Dilazenze, que deveria ter desfilado uma hora antes, mas se atrasara. Atra-so que não apenas diminuiu a nota final do bloco, como permitiu ao Dilazenzedesfilar acompanhado do melhor carro de som disponível para o desfile, en-quanto o Miny Kongo acabou desfilando sem carro de som algum, o que teriadiminuído ainda mais sua nota. Todos esses eventos serviram para compro-var aquilo de que já se suspeitava abertamente: que a origem do feitiço lança-do contra o grupo era precisamente o Miny Kongo, o único bloco afro deIlhéus – além do Dilazenze, é claro – que conta, entre seus dirigentes, comum pai-de-santo do candomblé. Não que se acreditasse que este, ou mesmoseu bloco, fossem os únicos responsáveis pelo feitiço: imaginava-se, igualmen-te, que o terceiro grande bloco de Ilhéus, o Rastafiry, também estivera envol-vido na trama, mas não podia haver dúvidas sobre quem teria sido, digamos,o autor material do trabalho. Foi nessa direção, portanto, que o infortúnio,devidamente evitado pela intervenção da Pombagira de Nidinha e por DonaIlza, acabou sendo desviado. O penúltimo lugar atribuído ao Miny Kongono carnaval 1999 e o fato de que o Rastafiry só obteve o vice-campeonato em

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função da “política” feita com o desfile eram constantemente mencionados,após o carnaval, como provas irrefutáveis de culpabilidade no caso do feitiço– além, é claro, de que se trataria mesmo de blocos “incompetentes” e, afinalde contas, incapazes de competir de igual para igual com o Dilazenze.14 Re-petia-se, também, que a origem do problema se localizava, inquestiona-velmente, na “inveja” que o Miny Kongo e o Rastafiry sentiam em relação aoDilazenze, inveja que seria tão profunda que faria com que fossem capazesaté mesmo de inverter radicalmente a verdade das coisas, espalhando pelacidade que o sucesso e a vitória do bloco só aconteciam em função dos traba-lhos mágicos e de feitiçaria realizados por Dona Ilza.

* * *

Do ponto de vista do movimento afro-cultural de Ilhéus, o carnaval de1999, a despeito de todos os problemas enfrentados, realmente representouo “resgate do Carnaval Cultural” a que repetidamente fazia alusão o prefeitoda cidade. Todos reconheciam que, apesar de não ter sido apoiado pelo mo-vimento nas eleições de 1996, desde que assumira o mandato, Jabes empre-endera sérios esforços para que o Carnaval Cultural pudesse ser realizado acontento. Logo no início de 1997, permitira a apresentação dos blocos aindaque estes não desfilassem; separara o carnaval dos blocos de trio e restabelece-ra o desfile dos blocos afro em 1998, bem como o auxílio financeiro; em 1999,reintroduzira a competição dos blocos afro e, ao menos em tese, a premiaçãodo vencedor do carnaval; e, em 2000, ainda restauraria o carnaval único, nadata oficial e com lugar de destaque para os blocos afro. Essa situação, comooutras abordadas ao longo deste livro, estão claramente relacionadas a umaantiga e difícil questão: organizações como os blocos afro (mas também osterreiros de candomblé, grupos carnavalescos, academias de capoeira e assimpor diante) seriam, afinal de contas, focos e formas de resistência ou, pelocontrário, grupos e alvos privilegiados para os esforços de cooptação empre-endidos pelo Estado e pelos políticos em geral?

Na literatura sobre essas organizações, este costuma ser um ponto algodelicado, uma vez que os pesquisadores possuem com elas, em geral, umenvolvimento pessoal e político bastante pronunciado. Assim, Agier (1992;2000), por exemplo, contorna habilmente a complexa questão da relação dosblocos negros com a política partidária.15 Siqueira (1996: 139, 141-142) parececonsiderar que pelo menos alguns blocos (e o Ilê Aiyê é, como sempre, o caso

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privilegiado) representariam “núcleos” dotados de “função específica e autô-noma”, constituindo uma “organização étnica” que seria uma forma de “re-sistência político-cultural contemporânea”. Morales (1988: 267, 270-273;1991: 84) parece concordar com essa posição, ainda que tente demonstrarque à medida que se convertem em “grupos culturais” e buscam desenvolveratividades ligadas a seu bairro ou grupo social, os blocos passariam a fazer partedo jogo do clientelismo político. Nesse sentido, opõe o Ilê Aiyê ao Afoxé Filhosde Gandhi como exemplos privilegiados de pólos, respectivamente, de maior emenor resistência (ou de menor e maior cooptação). McCallum (1996; 1997)e Cunha (2000) parecem adotar uma posição análoga, argumentando que astentativas de resistência ou os esforços para controlar tensões e diferençasinternas característicos das organizações baseadas nas políticas de identidadetendem a dotá-las de uma maior maleabilidade no que diz respeito a aliançascom forças políticas de outra ordem – e, conseqüentemente, de um maiorpotencial de cooptação.

Na verdade, não é difícil perceber que a “cultura” – termo que serve dedenominador comum às formas de sociabilidade aqui em questão – parecefazer parte do arsenal de aparelhos de captura de que dispõem os Estados e ospoderosos. Conceito cunhado por Deleuze e Guattari (1980: 528-591), “apa-relho de captura” designa basicamente os dispositivos de apropriação das açõeshumanas heterogêneas e em variação contínua e de sua conversão em ativi-dades homogêneas, reguláveis e mutuamente comparáveis.16 É dessa formaque a conversão de territórios de exploração em terras de produção (tornan-do os primeiros comparáveis e apropriáveis) é um aparelho de captura que,simultaneamente, possibilita a “renda fundiária” e é correlato da objetivaçãoda propriedade e do proprietário (idem: 549-551).17 Do mesmo modo, o “tra-balho” e a “moeda” são aparelhos de captura da ação livre de variação contí-nua e troca, objetivando o trabalhador, o lucro e o imposto (idem: 551-554).

Como evidentemente não há razão para supor que a lista dos aparelhosde captura seja finita, podemos aplicar o conceito a qualquer dispositivo queopere de forma homóloga àqueles concretamente isolados por Deleuze eGuattari. Na verdade, são os próprios autores que chamam a atenção para ofato de que é o Estado, em bloco, que poderia ser considerado o aparelho decaptura por excelência, atuando sempre por meio de conversões das forçasque captura e utilizando, para isso, uma grande variedade de dispositivos es-pecíficos dos quais a renda, o trabalho e a moeda são apenas três casos parti-culares que parecem, aliás, funcionar com mais força no momento de cons-

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tituição histórica do capitalismo do que em suas fases mais avançadas. Se acres-centarmos a isso o fato de que por “Estado” não se pretende meramente de-signar uma instituição, mas um modo de funcionamento e uma forma depoder, compreendemos por que “chamamos ‘captura’ essa essência interiorou essa unidade do Estado” (idem: 532). Ou seja, compreendemos que nãoexiste um Estado que captura, mas que a captura é o Estado e vice-versa – oque significa que, deste ponto de vista, a diferença entre o aparelho de Estadopropriamente dito e as chamadas “organizações não governamentais”, porexemplo, é absolutamente irrelevante. Observemos, finalmente, que Deleuzee Guattari (idem: 434, 528-529) também isolaram o que denominam os “doispólos” do Estado, uma vez que este opera tanto por “captura mágica” quantopor “contrato jurídico”. Isso quer dizer, em primeiro lugar, que, se a organi-zação legal é, sem dúvida, um dos braços do Estado, a capacidade de atrair,prometer, seduzir, é o outro; e, em segundo, que a oscilação contínua e per-manente entre os códigos explícitos e os ardis e trapaças inconfessáveis é omodo mesmo de funcionamento desse tipo de poder.18

Não é difícil agora, portanto, perceber que a “cultura” funciona, emIlhéus e talvez em toda parte, como um poderoso aparelho de captura. Esse,aliás, é o sentido da tese de Guattari segundo a qual

“[...] o conceito de cultura é profundamente reacionário. É uma maneira deseparar atividades semióticas [...] em esferas [...]. Tais atividades, assim isola-das, são padronizadas, instituídas potencial ou realmente e capitalizadas parao modo de semiotização dominante – ou seja, simplesmente cortadas de suasrealidades políticas” (Guattari 1986c: 15).

Em termos etnográficos, a definição das práticas rituais executadas poruma mãe-de-santo, ou das músicas de um bloco afro, como “cultura” tem acapacidade de, simultaneamente, capturar essas ações, isolando-as da vida dosenvolvidos, e eliminar a força (religiosa ou estética) que as caracterizam,19

convertendo-as em atividades homogêneas e comparáveis a um sem-númerode outras, fazendo com que possam, dessa forma, ser oferecidas em um mer-cado generalizado: “assim como o capital é um modo de semiotização quepermite ter um equivalente geral para as produções econômicas e sociais, acultura é o equivalente geral para as produções de poder” (idem: 24). E denada adianta aqui o purismo bem-intencionado que argumentaria que essanoção de cultura nada tem a ver com aquela com a qual trabalhariam os an-tropólogos. Como Guattari também demonstrou, os três sentidos da cultura

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– “cultura-valor”, “cultura-alma coletiva” e “cultura-mercadoria” (idem: 17)– podem muito bem ter aparecido sucessivamente ao longo do tempo, masisso não significa que não funcionem em bloco e ao mesmo tempo (idem:19). Desse modo, em Ilhéus, a cultura negra (enquanto “cultura-alma coleti-va”) só pode “desenvolver-se” (ou seja, atingir o estatuto de “cultura-valor”)ao se transformar em “cultura-mercadoria” (ou seja, ao passar a funcionar deacordo com as regras do equivalente geral para ser exposta e, literalmente,vendida em um mercado). A cultura é, ao mesmo tempo, uma “palavra-cila-da” (idem: 17) e um aparelho de captura, possivelmente um dos mais bemadaptados às exigências da sociedade de controle que caracteriza o capitalis-mo contemporâneo.

Essa também parece ser a conclusão de Michael Herzfeld (1992a: 99,107; 1996: 26-27), quando sugere que seria próprio das formações estataispromoverem uma espécie de translação do social ao cultural, acionandomecanismos semiótico-políticos que convertem as “relações indéxicas” locais(ou propriamente “sociais”, uma vez que envolvem conhecimento diretomútuo, produzem finas distinções entre pessoas e grupos e dependem em altograu de sua contextualidade) em relações “icônicas” ou “culturais” (que ten-dem a literalizar os símbolos, desvinculando-os de seus contextos pragmáti-cos). Uma imagem de unidade cultural parece obscurecer a relatividade social;o “genérico” parece se superpor ao “genealógico”. É nesse sentido que o Esta-do nada mais é do que o conjunto de operações voltadas para a essencialização,naturalização e literalização de experiências sociais sempre múltiplas epolifônicas: a ninguém é permitido possuir mais que uma religião, umpertencimento local, uma etnia ou uma cor; “estilos”, sempre móveis econtextuais, convertem-se em “identidades”, que são cristalizadas em“etnicidades”, que, por sua vez, tendem a se enrijecer como “nacionalidades”(Herzfeld 1996: 42-43); a “labilidade semântica dos valores locais”, que fazcom que pertencimentos familiares, grupais, étnicos e mesmo nacionais fun-cionem como verdadeiros shifters (idem: 45-46) tende a ser eliminada ou li-mitada pelo Estado. Ao mesmo tempo, uma vez substancializadas, essas variá-veis (doravante “valores” ou mesmo “coisas”) retornam à vida social cotidia-na e alimentam ódios, discriminações e massacres. Desse ponto de vista, épossível observar que a democracia não é necessariamente sinônimo de tole-rância e de um menor grau de essencialização: o contrário pode ocorrer, namedida em que a diversidade também pode ser condenada em nome da igual-dade (idem: 83, 111).

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Essas considerações permitem igualmente, creio, retomar uma questãolevantada por Peter Fry em um texto muito famoso, apresentado pela pri-meira vez em 1976. Nele, Fry dedicou-se a analisar o fascinante processo de“conversão de símbolos étnicos em símbolos nacionais” (Fry 1977: 47). Seuargumento básico era que, ao contrário do que ocorreria em países como osEstados Unidos, por exemplo, no caso brasileiro “os produtores de símbolosnacionais e da cultura de massa escolheram itens culturais produzidos porgrupos dominados” (ibidem):

“Para falar a verdade, acho difícil responder a estas questões. Uma possibilida-de é a de que tanto o candomblé como o samba constituíam os produtos cul-turais mais originais do Brasil e eram, portanto, capazes de distinguir simbo-licamente o Brasil de outras nações latino-americanas e do mundo desenvolvi-do. Outra interpretação possível, e a que realmente prefiro, é a de que a adoçãode tais símbolos era politicamente conveniente, instrumento para assegurar adominação mascarando-a sob outro nome [...]. A conversão de símbolos étni-cos em símbolos nacionais não apenas oculta uma situação de dominação ra-cial, mas torna muito mais difícil a tarefa de denunciá-la. Quando se conver-tem símbolos de ‘fronteiras’ étnicas em símbolos que afirmam os limites danacionalidade, converte-se o que era originalmente perigoso em algo ‘limpo’,‘seguro’ e ‘domesticado’. Agora que o candomblé e o samba são consideradoschic e respeitáveis, perderam o poder que antes possuíam. Não existe soul foodno Brasil” (ibidem – grifos do autor).

Vinte e cinco anos mais tarde, Fry republicou seu texto sobre a soul food,acrescentando uma introdução e um adendo (“o tempo passa”), em que ex-prime uma radical mudança de opinião e de posição. Não tanto, observe-se,na direção da adoção da primeira resposta aventada no trecho acima citado,mas, aparentemente, naquela da elisão da própria questão que levantara. Namedida em que descobriu, no Brasil, “uma sociedade em que todos compar-tilhavam conceitos e premissas culturais básicos” (Fry 2001: 50), o autor pas-sou a sustentar a necessidade de abandonar uma perspectiva dualista, excessi-vamente marcada pelos contextos anglo-saxônicos, que encararia o Brasil comouma sociedade fundamentalmente dividida.20

Ao contrário do próprio autor, não creio que sua tese original deva serabandonada com tanta rapidez. É verdade, sem dúvida, que seu equívoco cen-tral consistia em adotar uma visão excessivamente dualista; no entanto, a op-ção por uma perspectiva unitarista, também excessiva e enrijecida, não pare-ce levar muito longe e, ao contrário, faz correr o risco de jogar fora o bebê

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com a água do banho. O processo isolado por Fry em 197721 é realmentecrucial, e basta que seu dualismo seja substituído por certa modalidade depluralismo para que as teses do autor readquiram força e juventude. Pois oque não parece evidente é que a feijoada, o candomblé, o samba ou a músicaafro possam ser alçados definitivamente da condição de signos minoritáriospara aquela de símbolos majoritários. Na verdade, tudo se passa como se ovalor semiótico de cada uma dessas produções oscilasse de acordo com os níveissegmentares que atravessam. Nesse sentido, o problema político central daselites não seria tanto a simples apropriação e deslocamento dos símbolos, masa eliminação de suas ambigüidades, fazendo com que adquiram um sentidounívoco – literalizando-os, como diz Herzfeld –, tarefa que, é claro, não podejamais ser inteiramente bem-sucedida. Não é por acaso, portanto, como lem-bra Fry (1977: 46), que, em 1973, o jornal O Estado de S. Paulo tenha criti-cado duramente o governo paulista por este ter organizado uma grande festapública de umbanda. O mal-entendido interno à elite paulista explica-se,talvez, se admitirmos que, enquanto o governador visava um nível segmen-tar mais elevado – sobre o qual a umbanda e outras formações podem funcio-nar como representações do Brasil como um todo –, o periódico mirava umnível segmentar menos inclusivo, no qual elite e umbandistas só podemmesmo se opor.

É por isso que à questão, acima levantada, acerca do caráter conservadorou de resistência das formas minoritárias de organização não se pode respon-der de modo unívoco. Se, por um lado, convém evitar todo romantismo eadmitir que, muitas vezes, essas formações se prestam à captura e se conjugamcom o Estado ou com as forças majoritárias, por outro, é preciso recusar qual-quer espécie de pessimismo ou fatalismo: às capturas e conjugações respon-dem sempre, e incessantemente, as conexões, as linhas de fuga e as resistên-cias.22 O único problema é que estas devem ser compreendidas em um senti-do ligeiramente distinto daquele a que estamos mais habituados: como su-blinha Zourabichvilli (2000: 353 – grifos do autor), “resistir se distingue dereagir”, e em um sentido propriamente micropolítico e molecular a resistên-cia é sempre primeira em relação à captura, já que esta só pode incidir sobreformas de vida e forças vitais que lutam para perseverar em seu ser.23

É nesse sentido que, ao analisar “o olhar da imprensa baiana” sobre osblocos afro, Cunha (1989: 180) pôde mostrar como o desfile inaugural doIlê Aiyê, em 1974, revelava a possibilidade de um uso inteiramente subversi-vo da chamada cultura negra. Essa subversão, em um primeiro momento, foi

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combatida com violência (com acusações de racismo ao bloco, que não per-mitia que brancos participassem de seu desfile de carnaval), mas, logo depois,foi objeto de tentativas de neutralização por meio de mecanismos de reapro-priação segmentar semelhantes àqueles descritos por Fry: a cultura negra comopatrimônio de todos, o desfile apenas como folclore e estética, não como po-lítica e resistência. Mas seria preciso muita ingenuidade ou má vontade paraimaginar que essa reapropriação possa ser absoluta e esgotar o fenômeno. Aocontrário, trata-se antes de um infinito jogo de desafios, respostas, contra-respostas e assim por diante: “o que para os diversos grupos é o lugar da resis-tência apresenta-se nas páginas dos periódicos como exótico” (ibidem – grifosda autora).

Da mesma forma, ao analisar a festa baiana do Dois de Julho, CeciliaMcCallum (1997) mostra que o fato de “o caboclo”, que é nela celebrado, aíaparecer como símbolo de baianidade não significa que ele o seja sempre eem todos os níveis, podendo aparecer, ao contrário, como um personagemque encarna a resistência popular (e não brasileira), que caracteriza os cultosafro (não a Bahia) e que está ligado a negros e mestiços (não aos baianos).Mais uma vez, o problema político das elites e dos poderosos é abolir essavariação contínua segmentar e tentar fazer com que o caboclo ou as “baianas”que vendem comidas “típicas” funcionem apenas sobre um nível específico,o mais inclusivo, evidentemente.24

A mesma autora também demonstra (McCallum 1996: 207) que o fatode esse tipo de englobamento pelo nível segmentar superior efetivamenteocorrer em determinadas ocasiões (como no futebol, por exemplo) não sig-nifica, em hipótese alguma, o triunfo de um sentimento inteiramente positi-vo de nacionalidade. Ao contrário, esse “nacionalismo local” não deixa deconviver com sentimentos inteiramente negativos acerca do Estado e mesmoda nação. E isso só é possível porque as duas reações se passam não apenassobre níveis segmentares distintos como de acordo com diferentes formas desegmentaridade: uma circular, indo do indivíduo à nação, outra binária oulinear, que faz com que as comemorações pelas vitórias “não neguem a hie-rarquia, mas simplesmente a desloquem temporariamente” (idem: 222). Aoinsistir na existência de uma “dialética de ‘hegemonia’ e ‘resistência’” (idem:208) e sugerir atenção às políticas de resistência,25 McCallum observa comprecisão que mesmo a cooptação eleitoralmente bem-sucedida não significacaptura total, e que o conhecido ceticismo popular acerca da política poderiaser encarado como forma de resistência ou, para ser mais preciso e não con-

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fundi-lo com uma simples ‘reação’, como um dos efeitos de uma resistênciafundamental: “o processo eleitoral não é uma medida absoluta de hegemonia”(McCallum 1997: 27).26

Como vimos, não há dúvida de que, em Ilhéus, e talvez em toda parte,distintos segmentos políticos buscam capturar frações do movimento negroe articular-se com elas; este movimento, por sua vez, funciona, ao menos emparte, de acordo com uma lógica igualmente segmentar. De modo mais ge-ral, poderíamos então, talvez, sustentar que as diversas formas de segmentaçãoque recortam não apenas os grupos afro e as camadas mais pobres da popula-ção de Ilhéus, mas a cidade como um todo, funcionam como pontos de en-caixe para a grande política, ou melhor, para os diversos segmentos que seabrigam sob este rótulo. Assim, um candidato capaz de aproveitar essas divi-sões segmentares pode não apenas impedir que os blocos se articulem em tornode um candidato, como, e ao mesmo tempo, garantir um razoável númerode votos para sua própria eleição. Por outro lado, é crucial recordar e subli-nhar que os membros das organizações negras não costumam ter êxito emsuas incursões diretas na política partidária – e isso não apenas em Ilhéus, onde,como também observei, o movimento negro lamenta continuamente jamaister conseguido eleger um vereador. Em Salvador, por exemplo, em 1988, opresidente do Afoxé Filhos de Gandhi conseguiu apenas 242 votos nas elei-ções para a Câmara Municipal, e o do Ilê Aiyê, 781 votos, em um universode aproximadamente 4 mil associados em cada uma das organizações (Morales1991: 86). Em Ilhéus, em 2004, concorrendo desta feita pelo PP, Gurita obtevequase oitocentos votos em Ilhéus, votação insuficiente, mais uma vez, paraelegê-lo vereador. Elício Gomes, concorrendo pelo PTC, não conseguiu suareeleição, ainda que tivesse obtido mais de 1.400 votos contra os 652 da elei-ção de 2000; João César, que concorreu pelo PSTU, teve apenas 68 votos;Bernadete e Edson Ferramenta, ambos do PT e ligados ao MNU, obtiveram,respectivamente, 141 e 121 votos; Nen, ligado ao bloco afro D’Logun, con-seguiu 126 votos; Cláudio Magalhães, do PCdoB, líder do movimento indí-gena de Olivença, tampouco conseguiu eleger-se, apesar dos seus 521 votos.Da mesma forma, candidatos ligados ao movimento negro ou ao “movimen-to cultural” tentaram, sem sucesso, sua eleição como vereadores em cidadescomo Caravelas, Nova Viçosa e Belmonte.27

É evidente que, em todos os casos, esses candidatos ligados a movimen-tos negros ou “culturais” capturam e canalizam fluxos de votos na direção deoutras candidaturas mais bem-sucedidas, ou seja, atuam como mulas dos elei-tos. Observemos, contudo, que não são apenas votos o que é drenado dessa

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maneira: é o conjunto das relações sociais dos envolvidos, sua militância cul-tural e, em última instância, sua vida, que são capturados e sobrecodificadosnesse processo. E é nesse sentido que cabe indagar se não são as eleições demodo geral, e a política como um todo, que deveriam ser encaradas, sempree em toda parte, como aparelhos de captura.

Citando Térmico Sampaio Ferraz, Valente (1986: 110) lembra que

“[...] a eleição é um mecanismo vital de absorção dos protestos ao oferecer umagrande oportunidade de manifestação de insatisfações, com relativamente poucorisco para a estrutura do sistema, já que um candidato escolhido por protestonem precisa ser eleito ou ‘caso eleito, não precisa necessariamente influenciaras decisões da máquina política’”

Mesma conclusão que a de Richard Graham em seu estudo sobre a po-lítica no Brasil no século XIX. Obcecada por conciliar eleições, legitimidadee ordem, a elite brasileira desenvolvia um esforço muito consciente para ca-nalizar qualquer forma de protesto ou oposição para o interior da política elei-toral: “o constante esforço de legislar eleições justas demonstra uma preocu-pação em abrir a política a homens de opiniões divergentes, que assim não sevoltariam contra o regime” (Graham 1997: 105).

Em outros termos, como demonstrou Michel Offerlé (1993a: 139-140),o estabelecimento e o funcionamento de um sistema democrático exigem,como seu correlato, a produção de um certo tipo de agente social, o “eleitor”.Não esse ser fictício cuja existência se limita a poucos minutos em uma cabi-ne eleitoral ou às páginas de alguns manuais, mas um produto bem específi-co, resultante de todo um processo de “domesticação”, de “ortopedia social”,que visa produzir um sujeito que não seja excessivamente passivo – ou o sis-tema perderia seu apoio ou legitimidade – mas que, ao mesmo tempo, não setorne ativo demais, consentindo em só participar do processo político nasinstâncias e momentos tidos como adequados.28

É por isso que a exaltação de Clemenceau – “o princípio do sufrágio uni-versal não permite nenhum compromisso. Ele concede o mesmo direito aosábio e ao ignorante: ele o concede em virtude de um direito natural” (idem:141) – pode ser respondida com o cinismo de Ledru-Rollin: “lógica da igual-dade e meio de evitar a revolução” (ibidem). E que Sartre (1973: 1.105) podeperguntar “por que eu votaria? Porque me convenceram de que o único atopolítico de minha vida consiste em colocar meu voto na urna a cada quatroanos?” E concluir: “mas isso é o contrário de um ato”.

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* * *

Se o ano de 1998 representou, para os blocos afro, uma espécie derenascimento, foi também o momento em que Jabes Ribeiro promoveu umaprofunda modificação em suas alianças políticas e, quem sabe, em suas pró-prias posições ideológicas e doutrinárias. Logo no começo do ano, o prefeitodeu sinais de que ensaiava uma aproximação com o governo estadual, possi-bilitada, dizia-se, por suas boas relações com Luiz Eduardo Magalhães, quefalecera há pouco tempo. E ainda que Jabes tivesse garantido, pessoalmente,a alguns membros do PT de Ilhéus (que, lembremos, possuía a vice-Prefeitu-ra e participava da administração municipal, ocupando alguns postos) quejamais apoiaria as forças políticas ligadas ao senador Antônio Carlos Maga-lhães, seus aliados de esquerda, pressentindo que ele de fato o faria, passarama atacá-lo no começo de junho, quando, no dia 3, o principal político do PTde Ilhéus publicou um artigo no Diário da Tarde com duras críticas ao gover-no Fernando Henrique Cardoso e ao projeto de reeleição do presidente daRepública. No dia 6, o Informativo do Diretório Municipal publicou umpanfleto intitulado “Que Vergonha! Jabes Traiu Outra Vez!”, acusando o pre-feito de, após se ter beneficiado da postura de oposição a Antônio CarlosMagalhães em 1996, estar “aderindo ao carlismo”.29 Em seguida, quando oapoio ao governo estadual e à reeleição do presidente da República foi final-mente anunciado, o Partido dos Trabalhadores rompeu formalmente a aliançae exigiu de seus membros o abandono de todos os cargos que eventualmenteocupassem na administração municipal. O vice-prefeito, que, ao lado do únicovereador do partido, havia condenado as acusações a Jabes, preferiu sair dopartido (mesmo destino, aliás, seguido pouco tempo depois pelo vereador) epermanecer no governo. Por outro lado, Moacir Pinho, que, como vimos,ocupava o cargo de gerente de Ação Cultural da Fundação Cultural de Ilhé-us, e que não acreditava que Jabes apoiaria os governos estadual e federal, viu-se obrigado a renunciar, junto com alguns membros do MNU local que ocu-pavam cargos de terceiro ou quarto escalão no governo municipal.

Foi nesse momento também que o CEAC começou a aprofundar seuscompromissos com o prefeito, com alguns blocos chegando mesmo a se apre-sentar no comício do presidente da República, realizado em Ilhéus no dia 21de agosto de 1998. Este comício, aliás, foi, significativamente, o primeiro dacampanha presidencial e, de acordo com o Diário da Tarde, teria reunido maisde 20 mil pessoas. No palanque, estavam o então presidente da República, o

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governador da Bahia, o então senador Antônio Carlos Magalhães, Jabes Ri-beiro, Rúbia Carvalho, Roland Lavigne e outros aliados, ex-aliados, futurosaliados, inimigos, ex-inimigos e futuros inimigos. Simultaneamente, o CEACdispôs-se a participar da campanha dos candidatos à Assembléia Legislativa eà Câmara Federal que apoiavam a reeleição de Fernando Henrique Cardosoe o governo estadual, e reivindicou junto à Prefeitura o direito de indicar umnome para ocupar o cargo deixado vago na Fundação Cultural de Ilhéus coma renúncia de Moacir Pinho – cargo até hoje não preenchido.

Simultânea e paralelamente a essas aproximações, Jabes Ribeiro tratavade articular candidaturas para as eleições legislativas de 1998. Um dos nomesera o de Rúbia Carvalho, a ex-inimiga política e, depois, aliada eleitoral, queassumira a Secretaria de Assistência Social em 1997. Rúbia, dizia-se, preten-dia se candidatar mais uma vez à Assembléia Legislativa, como o fizera em1994, quando se lançara pelo PL e obtivera 4.593 votos no município de Ilhéus(e quase nada fora dele). Em 1998, não apenas a própria candidata, como amaior parte dos eleitores, pareciam acreditar que ela teria um número sufi-ciente de votos para se eleger – em função de seu papel nas eleições munici-pais de 1996 e do cargo que ocupara no último ano e meio.30

Jabes, contudo, preferindo outra solução, convenceu Rúbia a lançar seunome para a Câmara dos Deputados, deixando a Assembléia Legislativa paraJorge Medauar. E embora o semanário A Região do dia 25 de maio noticiasse,em sua página 4, apenas que “Tucanos escolhem Rúbia Carvalho comocandidata a deputada federal”, a manobra deu margem a uma interpretaçãoque sustentava que, no fundo, o que Jabes pretendia era apenas a redução donúmero de votos que seu arqui-rival, Roland Lavigne – candidato à reeleiçãocomo deputado federal – obteria em Ilhéus. Isso, evidentemente, teria rela-ções com as eleições municipais de 2000, quando – todos comentavam – osdois provavelmente voltariam a se enfrentar.

O apoio do movimento afro-cultural ao prefeito nas eleições nacionaisde 1998 traduziu-se, concretamente, desse modo, no apoio à chapa montadapor Jabes, bem como àqueles que ele apoiava abertamente: Fernando HenriqueCardoso, para a Presidência; César Borges, para governador; Paulo Souto, parasenador; Paulo Medauar, para deputado estadual; Rúbia Carvalho, para de-putado federal. No caso desta última candidatura, o apoio era reforçado poralgumas relações mantidas pela candidata com o movimento negro e, princi-palmente, pelo envolvimento direto de Gurita em sua campanha. Ocupan-do o cargo de chefe da Divisão de Esportes da Secretaria Municipal de Edu-

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cação de Ilhéus, Gurita atuava abertamente como cabo eleitoral de Rúbia eseu intermediário junto ao movimento afro-cultural da cidade.

No dia 26 de setembro – cerca de uma semana antes das eleições, por-tanto –, Gurita dirigiu-se à casa de Marinho para confirmar o apoio a Rúbiae para explicar alguns “mal-entendidos” que, segundo ele, vinham ocorrendonas relações com o movimento negro. Alguns militantes, que se apresenta-vam em atos eleitorais da campanha, irritados com o que consideravam umatraso indevido em seus pagamentos, haviam procurado Marinho para queeste transmitisse a Rúbia seu protesto. A candidata respondera que Gurita seriao responsável por esse “setor” da campanha, resposta que provocara algumassuspeitas de que Gurita não estaria repassando o dinheiro recebido de Rúbiapara o pagamento dos grupos afro.

Como lembra Herzfeld (1982: 648), toda “distribuição de culpa” pos-sui uma “natureza pública ou social”, e faz parte das relações sociais mais co-tidianas de qualquer comunidade. Em Ilhéus, a culpabilização dos mais pró-ximos é um fenômeno político facilmente perceptível, funcionando tantoquando se imagina que aquele que ocupa uma posição superior (presidenteda República, governador, prefeito, ou mesmo simples candidato) não estásendo realmente informando do que está acontecendo (e por isso não age pararesolver a situação), como quando se suspeita que aqueles que ocupam posi-ções intermediárias e mais próximas estão agindo em benefício próprio, e nãocomo verdadeiros intermediários conectando inferiores e superiores. A cha-mada mediação é, sem dúvida, uma arte muito difícil de ser praticada. Elaexige, por um lado, que algum tipo de relação entre aqueles que o mediadordeve pôr em contato efetivamente se estabeleça ou, ao menos, pareça se es-tabelecer – sob pena de que se duvide de sua capacidade ou interesse em mediar.Por outro lado, entretanto, a mediação exige também, e sempre, que umcontato direto entre os mediados jamais se estabeleça completamente – o quefaria com que a mediação simplesmente perdesse sua razão de ser. Nesse sen-tido, toda mediação é, simultaneamente, uma antimediação, e todo media-dor é um suspeito potencial de estar atuando apenas para si mesmo.

Na verdade, o uso conceitual do termo mediação comporta um proble-ma básico, a saber, o binarismo para o qual inevitavelmente parece tender.Esse binarismo é responsável por uma espécie de miragem, uma terceiramargem do rio, na qual o mediador confortavelmente se instalaria.31 No en-tanto, como demonstrou Graham (1997) para as relações de poder no Brasildurante o Segundo Reinado, a estrutura clientelista (que se enraíza suposta-

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mente em processos de mediação) é, na verdade, triádica: alguém pede a al-guém por alguém, e não há nenhuma razão para considerar o termo médiocomo um simples intermediário de uma relação dual que seria mais impor-tante. É nesse sentido que se pode falar na existência de “três elos” (idem: 304)e “dois níveis” (idem: 306) de clientelismo: “para baixo” (entre o que pede eaquele por quem ele pede) e “para cima” (entre o que pede e aquele a quemele pede). Ainda que, de formas diferentes e evidentemente assimétricas, to-dos os envolvidos em relações clientelistas são prisioneiros uns dos outros(idem: 320-321), e estamos aqui certamente às voltas mais com uma formade poder e um modo de governar extremamente adequados para uma socie-dade fina e rigidamente estratificada (idem: 15, 64-65, 272) do que com umsimples sistema ideológico ou cultural apoiado em valores tradicionais e hie-rárquicos.

Ora, no contexto do movimento negro de Ilhéus, Gurita parecia repre-sentar bem o caso clássico do mediador. Negro, morador da Conquista e comboas relações com muitos militantes do movimento afro-cultural, ele, aomesmo tempo, podia ser visto como alguém pertencente a outra “classe”, umavez que completara um curso superior, trabalhava em diversas escolas freqüen-tadas pela elite local, relacionava-se com diversos membros dessa elite e ja-mais fora, de fato, militante do movimento negro. Além disso, e como jáobservei, estava envolvido com a política desde 1992 (quando ingressara noPT de Ilhéus), tendo se candidatado a vereador em 1996, pelo PTdoB, can-didatura que, certamente, seria repetida em 2000, desta feita pelo PSDB.Finalmente, era uma pessoa acessível e estava sempre por perto – o que per-mitia, de um lado, dirigir-se a ele sempre que se desejava solicitar algo, mas,de outro, tornava muito mais plausível suspeitar dele e reclamar com ele doque aguardar um difícil e improvável acesso direto a pessoas socialmente tãodistantes quanto a candidata Rúbia Carvalho ou o prefeito Jabes Ribeiro.

A visita de Gurita a Marinho tinha, pois, o objetivo central de explicaros “mal-entendidos” a respeito do repasse de dinheiro, bem como, para nãohaver dúvidas, de deixar com ele um cheque pré-datado no valor de metadeda dívida, cheque que Marinho deveria descontar na data prevista, repassan-do o dinheiro para os militantes que se haviam apresentado na campanha deRúbia. Gurita esclareceu, assim, que os atrasos eram responsabilidade docomitê eleitoral da candidata, e que ele, “simples intermediário”, não tinhapoderes para dispor dos recursos. Ao mesmo tempo, fazia questão de sugerirque, caso eleita, Rúbia certamente nomearia um assessor oriundo do movi-

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mento negro (muito provavelmente, insinuava, ele mesmo) e que, nesse caso,passaria a possuir algum poder próprio. Todo esse cenário fazia com que asrelações entre os militantes negros e Gurita fossem extremamente ambíguas:de admiração, por ele “ter chegado onde chegou”; de desconfiança, uma vezque poderia sempre estar agindo apenas em benefício próprio; de emulação,já que o lugar ou os lugares por ele ocupados pareciam profundamentecompensadores e desejáveis. Marinho, por exemplo, parecia imaginar, quasesilenciosamente, que o assessor a ser nomeado por Rúbia poderia ser ele, nãoGurita – hipótese que se tornava mais provável caso este conseguisse sua elei-ção para vereador e que, talvez, explique, em parte, o relativo entusiasmo deMarinho por sua candidatura.

Nessa mesma conversa, entretanto, um dos irmãos de Marinho, Gilvan,procurou provocar Gurita de todas as formas. Sustentou que Rúbia não teriaa quantidade de votos que ele anunciava, 25 mil apenas em Ilhéus, o que,supostamente, garantiria sua eleição para a Câmara dos Deputados. Argumen-tando que esse número era inatingível – uma vez que o próprio Jabes Ribeiroobtivera cerca de 23 mil, em 1990, quando se elegera deputado federal, e queRúbia jamais alcançaria uma votação superior à de Jabes –, Gilvan insinuouque o prefeito estaria, na verdade, muito pouco preocupado com a eleição deRúbia, pretendendo apenas usá-la a fim de “tomar votos de Roland Lavigne”.Sustentando que Rúbia não ultrapassaria a marca dos 15 mil votos, Gilvanpropôs a Gurita apostar uma caixa de cervejas, usando a quantidade de 20mil votos como marca para o desafio.

Rúbia Carvalho, de fato, não se elegeu: obteve 14.253 votos em Ilhéuse 21.556 em todo o estado, o que fazia dela apenas a décima colocada de suacoligação. E, se a estratégia de tirar votos de Roland Lavigne era de fato ver-dadeira, os resultados não pareceram muito animadores: em 1994, ele tivera16.265 votos em Ilhéus; e, em 1998, essa quantidade caíra muito pouco, para15.534 votos – ainda que, no primeiro caso, sua votação representasse maisde um quarto dos votos válidos do município, enquanto, no segundo, cercade um quinto. Isso deixou Gilvan extremamente orgulhoso de seu conheci-mento da política local, ainda que Gurita jamais tenha pago a aposta.

Ainda na mesma conversa com Marinho e Gilvan, Gurita confessou suadificuldade para votar em Jorge Medauar para deputado estadual, uma vezque o considerava “um burguês”. Da mesma forma, sentia-se constrangidovotando em Fernando Henrique Cardoso, Antônio Carlos Magalhães e ou-tros, uma vez que sempre votara “na esquerda”, tendo sido mesmo, como vi-mos, um dos fundadores do PT em Ilhéus. Gilvan concordou, e contou que

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estava trabalhando na campanha de um candidato do PFL a deputado fede-ral, aliado de Antônio Carlos Magalhães, cuja assessoria havia prometido aele um emprego em caso de boa votação em Ilhéus. Mas que, “oficiosamen-te”, podia nos dizer que não votaria nele porque “não voto na direita”. Oproblema é que, caso o candidato fosse eleito, ele poderia conseguir um em-prego cuja “qualidade” (ou seja, o valor do salário) dependia do número devotos obtidos em Ilhéus. Desempregado há muito tempo, essa era uma opor-tunidade difícil de desperdiçar. Após as eleições, Gilvan confessou que aca-bara mesmo votando no candidato do PFL, em parte porque o emprego eratão fundamental que fez com que acreditasse ter que contribuir com seu pró-prio voto para a vitória do candidato; e, em parte, porque temia que, em suaseção eleitoral, não aparecesse nenhum voto para o candidato, o que, é claro,denunciaria sua traição. O restante de seus votos, contudo, teriam sido diri-gidos para “a esquerda” e, além disso, ele teria recusado usar um carro compropaganda do candidato no dia das eleições: “não posso desfilar por aí comum carro da direita, o que meu pessoal diria de mim?”

Sartre (1973: 1.100) escreveu que o voto secreto pode ser considerado“o símbolo de todas as traições que o indivíduo pode cometer para com osgrupos de que faz parte”. Creio que seria necessário, contudo, precisar e ampliaro alcance dessa profunda afirmativa. Em primeiro lugar, o caráter realmentesecreto do voto parece mais um elemento de retórica política do que umarealidade efetiva. De fato, evoca-se esse caráter tanto para enaltecer a demo-cracia representativa quanto para não declarar abertamente o próprio voto.Na realidade, entretanto, as coisas são um pouco mais complicadas, e um bomcabo eleitoral é capaz de descobrir, com razoável dose de precisão, quem dei-xou de votar como prometera que o faria. Por sua vez, os cabos eleitorais quenão se revelam capazes de obter a quantidade de votos que prometem aoscandidatos a que estão ligados correm o risco de perder sua remuneração, emesmo seu trabalho. Além disso, a crença difusa, mas razoavelmente bem dis-seminada, de que é sempre possível descobrir como um eleitor votou cum-pre, por si só, uma importante função de controle – e é em parte a necessida-de de difundir essa crença que leva os cabos eleitorais a anotarem, cuidadosa-mente, os dados dos títulos de eleitor daqueles que os procuram em busca dealguma “ajuda” na época das eleições. Da mesma forma, em 1998, quando ovoto eletrônico foi introduzido em Ilhéus, corriam boatos de que ele permi-tia a identificação do voto e, até, de que uma fotografia do eleitor era tiradano momento em que apertava o botão de votar.

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Em segundo lugar, como também sugere Sartre, o voto secreto torna maisfácil pacificar a própria consciência quando um eleitor sente que não se com-portou eleitoralmente como deveria. É possível trabalhar para um candidatoe pedir uma grande quantidade de votos para ele; mas o voto pessoal e ínti-mo pode ser conferido a qualquer um, permitindo assim conciliar convic-ções e deveres contraditórios, escolhas e necessidades antinômicas. Trata-seaqui, desse modo, de mais um desses “double binds”32 de que estão repletas asdemocracias representativas e que, evidentemente, não comprometem emnada o sistema, servindo, ao contrário, como uma das condições de que seufuncionamento continuado não represente jamais grandes riscos para a or-dem estabelecida.

O voto tende a aparecer, assim, aos olhos dos eleitores, como a únicaocasião em que, de tempos em tempos, um cidadão pode exprimir sua von-tade política; e, ao mesmo tempo, como algo insignificante, perdido no enor-me conjunto de atos semelhantes. “Eu”, dizia um informante em Ilhéus, “emrelação ao eleitorado não sou nada, um pingo no oceano”. O mesmo infor-mante, por outro lado, considerava votar uma ação dotada de importânciaquase transcendente, sua única forma de participação política. Da mesmaforma, quando alguém quer enfatizar, em Ilhéus, que jamais votaria em de-terminado candidato costuma utilizar uma construção verbal característica:“se depender do meu voto, ele não se elege de jeito nenhum” ou “se faltar umvoto para ele se eleger e esse voto for o meu, ele não se elege de jeito nenhum”.Muito importante e, ao mesmo tempo, desprovido de qualquer importân-cia, o voto secreto pode, assim, ser objeto de inúmeras operações.

Em terceiro lugar, não é apenas o caráter secreto do voto que não resistea uma investigação etnográfica: os outros dois atributos fundamentais quecostumam ser empregados na definição do ato de votar também parecem tera mesma sorte, quando submetidos a esse tipo de investigação. Como demons-trou Daniel Gaxie (1978), o célebre princípio do one man, one vote é sempre,na realidade, infletido por uma espécie de voto censitário oculto, que depen-de do grau de investimento do eleitor na política, bem como de seu capitalmaterial e cultural. Marinho, por exemplo, funcionava como uma espécie deconselheiro, buscando explicar que votar dessa ou daquela maneira não leva-ria a nada, e que seria preciso votar de outro modo a fim de que determinadoobjetivo fosse atingido. Da mesma forma, Gilvan lamentava-se por não ter“alcançado a época de minha avó: aí sim eu teria sido eleito e não sairia mais,porque na época das eleições o terreiro vivia cheio de gente que vinha saber

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em quem votar”.33 Eu mesmo, em 1998, me vi na situação de, meio voluntá-ria, meio involuntariamente, fazer com que algumas pessoas sustentassem quevotariam em Lula nas eleições presidenciais porque “Marcio está com Lula”.Não tendo votado por estar fora de meu domicílio eleitoral, não seria, pois,de todo incorreto dizer que votei três ou quatro vezes...

Finalmente, o caráter universal do voto tampouco é encontrado em es-tado puro na realidade etnográfica. Em parte porque, como demonstrouMichel Offerlé (1993a: 134-135, 14534), a universalização do voto tende a sedeter na barreira das distinções tidas como “naturais”. E ainda que estas, evi-dentemente, variem segundo os locais e as épocas, o fato é que determinadascategorias de pessoas (mulheres e escravos ou, em outras sociedades e mo-mentos, menores de idade e pródigos) são sempre formal e inevitavelmenteexcluídas do direito ao voto ou do dever de votar. Assim, no caso brasileiro,embora o voto seja obrigatório para todos com idade entre 18 e 70 anos (comexceção de algumas situações especiais), é opcional para os que têm entre 16e 18, bem como para aqueles acima dos 70. Ademais, as sanções pelo não-comparecimento às urnas são muito brandas, o que explica parcialmente aabstenção eleitoral. Além disso, entretanto, e de um ponto de vista mais subs-tantivo, a suposta universalidade do voto esbarra no fato de que este atinge einteressa de maneira muito diferenciada o conjunto dos eleitores. Vimos comoo índice de abstenção eleitoral no município de Ilhéus tende a ser bastanteelevado: dos 104.135 eleitores aptos a votar nas eleições municipais de 2000(e que já representam, é claro, apenas uma parte dos 223 mil habitantes deIlhéus – em torno de 47% para ser mais preciso), 24.645 não o fizeram, 2.241anularam seus votos e 1.146 votaram em branco. Isso significa que 27% doseleitores não escolheram nenhum candidato e, mais do que isso, que, na re-alidade, apenas 35% da população escolheu efetivamente algum candidatoem 2000 – e somente 32% da população nas eleições presidenciais de 2002.35

É evidente que tudo isso pode ser explicado de muitas maneiras, sejainvocando o grande contingente de eleitores residentes em zonas rurais dedifícil acesso, os muitos migrantes que não transferiram seus títulos, ou outraboa razão qualquer. Nada disso elimina, contudo, a importância da observa-ção de Guennifley (1994: 26) segundo a qual a contradição entre o sentimentode necessidade de uma unidade transcendente do resultado eleitoral e o fatoinelutável da diversidade dos votos não só é constitutiva da democracia re-presentativa como torna mais compreensível que uma suspeita em relação aosufrágio e aos eleitos pareça consubstancial a esse sistema – o qual, nesse sen-

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tido, e como ocorre com a prisão na análise de Foucault (1975: 314-315),parece estar, desde seu nascimento, sempre em crise e exigindo rigorosasmedidas corretivas.36

Além disso, tudo aponta, também, na direção de uma falta de interessemuito real, que revela que a suposta universalidade do voto, da mesma formaque seu caráter secreto e igualitário, pertence mais ao domínio dos valoresideais de certa camada da população do que ao mundo real de qualquer umadelas. E era em função de tudo isso que, no campo, tornava-se realmente di-fícil acompanhar e levar a sério as inúmeras análises eleitorais apresentadasnos meios de comunicação de massa em termos de “opções do eleitorado”por este ou aquele “programa” de candidatos, partidos ou coligações vencedores,e assim por diante. Após menos de um mês acompanhando de perto comofuncionava a instituição central da democracia representativa, era realmentedifícil não experimentar certo ceticismo e, por vezes, certa irritação, com es-sas análises tão assépticas quanto idealistas, no sentido técnico do termo.37

NOTAS

1 Como escreveu Almeida: “[...] a oposição entre blocos de trio [...] e os blocos afro é umtema recorrente. No carnaval de 1998, durante o desfile, o Dilazenze entrou em conflito comum trio que passava no sentido contrário, pois este, possuidor de um “som” mais forte, nãoteve a delicadeza de parar de tocar” (Almeida 1999: 144, nota 24. Ver, também, Almeida2000: 144).2 Não era apenas na segunda metade do século XIX, como demonstrou Graham (1997: 266-267, 277-278), que o grau de alfabetização funcionava como critério de distinção social.Mesmo para liberar pequenos auxílios financeiros (em torno de R$ 500,00) para os blocosafro, a Prefeitura de Ilhéus tem o hábito de exigir “um projetinho”, podendo, da mesma for-ma, exigir um relatório para depois do evento. O fato de essas exigências quase nunca seremcumpridas só serve para atestar seu caráter de aparato simbólico-político, destinado a marcardistinções sociais, e não de pretenso mecanismo racional que faria parte do sistema de admi-nistração econômica das finanças públicas.3 Isso inclui, quando se trata de pessoas físicas, promessas verbais de pagamento após o even-to visado e, no caso de pessoas jurídicas, os cartões de crédito e os cheques pré-datados. Nes-tes casos, em geral, é preciso pedir a ajuda de parentes e amigos formalmente empregados, jáque, em Ilhéus, essa condição não significa apenas um salário e uma carteira de trabalho as-sinada, mas uma conta bancária (com a possibilidade, portanto, de uso de cheques pré-data-dos) e, muitas vezes, um cartão de crédito, o que permite muitas estratégias de sobrevivência.Ao contrário do que às vezes se imagina, um emprego formal e os documentos a ele vincula-dos não têm apenas um valor simbólico.

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4 De acordo com Cambria (2002: 60), os membros do Dilazenze classificariam seu repertó-rio em dois tipos de músicas: as “músicas-tema” – “desenvolvidas a partir de apostilas especial-mente elaboradas para cada carnaval e [...] vinculadas aos temas escolhidos (que tratam sem-pre da temática racial e da cultura negra) –, e as “músicas-poesia”, que seriam “todas as mú-sicas compostas em diferentes ocasiões fora do carnaval”. Pessoalmente, só ouvi falar das pri-meiras, todas as demais sendo definidas apenas por oposição a estas.5 Bourdieu (1972: 221-224; 1996) foi provavelmente o autor que mais enfatizou o papel dotempo nos processos de reciprocidade. Não obstante, parece-me que ele compartilha com aliteratura sobre o tema certa pobreza conceitual, o que acaba fazendo com que processos dis-tintos sejam confundidos sob a mesma categoria. Do ponto de vista aqui adotado, ao contrá-rio, dívida, por exemplo, não se refere a uma relação estrutural que aquele que recebe algo dealguém necessariamente contrairia, mas a uma relação possível, cuja objetivação depende dediversos fatores, entre os quais o tipo de transação efetuada e, principalmente, o caráter simé-trico ou assimétrico das posições dos parceiros sobre diferentes eixos. A limitação da aborda-gem de Bourdieu deriva, creio, de sua premissa em adotar um ponto de vista sociológico,quer dizer, extrínseco e superior ao dos nativos. Como observou Warren (2000: 275-276),em relação à noção de “capital cultural”, seria necessário desenvolver uma “noção antropoló-gica” da mesma, ou seja, uma noção que levasse em conta aquilo que é efetivamente conside-rado pelos grupos estudados, não apenas pelos setores dominantes da sociedade.6 Kuschnir (2000b: 82) observou o mesmo fenômeno no Rio de Janeiro, onde o sistema ébatizado de “dividir o cargo”.7 Enquanto essa conversa se desenrolava na sala da casa de Marinho, na cozinha, Jacks argu-mentava com Sonilda, esposa de Marinho, que ela precisava convencê-lo da necessidade deaceitar o “emprego”. A tática era bem pensada: desempregado há muitos anos, Marinhoencontrava-se na delicada situação de depender financeiramente da esposa – e isso em ummeio social no qual o papel de provedor é um dos atributos masculinos por excelência. Nofinal, o amor-próprio de Marinho acabou sendo mais forte que a contínua pressão da esposapara que aceitasse o “emprego”.8 Como observou Borges (2004: 71), na periferia de Brasília, “ajudar” parece mesmo ser opapel fundamental de um político, em especial em todos os lugares onde “tudo é muito difí-cil”. Que tudo continue difícil parece, portanto, algo estratégico. Por outro lado, como ob-servou McCallum (1996: 212), em Salvador, a definição da vida como uma “luta” contra asdificuldades parece parte das representações de certas camadas sociais no Brasil.9 Essa narrativa foi construída, em parte, com informações obtidas dos membros do Dilazenzenos dias seguintes ao evento. Isso porque o estado ligeiramente embriagado do etnógrafo fezcom que perdesse uma série de nuanças dos acontecimentos.10 Assim uma Pombagira é definida no Tombency, bem como nos terreiros angola em geral.Neles, é comum afirmar que, à parte o orixá principal ao qual se “pertence”, e dois ou trêsoutros, hierarquicamente subordinados, todos contamos, em nossas cabeças, com um “es-cravo” do orixá, seu Exu ou Pombagira, segundo os casos. Além disso, espíritos de antepas-sados também compõem a pessoa humana. Os filhos-de-santo iniciados podem assim, aomenos em tese, ser possuídos por qualquer dessas entidades. Dona Ilza, por exemplo, podeser possuída pela cabocla Jupira; Gilvan, pelo marujo Malandrinho; e assim por diante – e

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isso ainda que os espíritos dos mortos, em geral, não devam possuir os humanos, sua aproxi-mação servindo apenas como fonte de problemas e doenças. Finalmente, pode-se tambémser possuído pela “qualidade infantil” dos orixás, os erês, que também são componentes da pessoae que também podem eventualmente possuí-la (ver Goldman 1984; 1985a; 1990; 2003).11 Tudo indica que esse ritual segue o modelo estabelecido pelo Ilê Aiyê em Salvador (Agier2000: 141-154). Não creio, contudo, ao contrário do que sugere o autor, que seja possívelreduzir esse rito de saída a uma forma de afirmação da identidade. Ainda que isso possa serverdadeiro de um ponto de vista extrínseco – assim como também o é o fato de que o ritoorganiza um pouco as fortes emoções que todos os participantes inevitavelmente experimen-tam –, o que os atores enfatizam o tempo todo é a necessidade mágico-religiosa de purifica-ção, proteção e força a fim de conseguir um objetivo: um belo desfile com a conseqüentevitória final. E é difícil entender a necessidade de se acrescentar algo mais a esses propósitostão claros e importantes. Ver Apêndice VIII.12 Composta por Toinho Brother, que acabara de recuperar-se de uma longa enfermidade evoltara a compor para o Dilazenze. Toinho era trocador de ônibus e havia freqüentado ape-nas as primeiras séries do ensino fundamental. Ao ouvir pela primeira vez Grito Negro, sur-preendi-me com o verso de abertura e, sem pensar, argumentei que não fazia sentido um“céu azul a brilhar” em uma “noite de lua”. Toinho respondeu que, na noite em que compu-sera a música, pensara, justamente, que o céu estava, mais do que negro, azul. Esta talvez sejaa ocasião de tentar me redimir um pouco dessa imperdoável grosseria pessoal e intelectual,prestando a devida homenagem ao maior compositor da Conquista, precocemente falecido,com pouco mais de 30 anos de idade. A linda letra de Grito Negro diz:

“Noite de lua, céu azul a brilhar, um canto ecoaUm grito, um lamento são soltos no arUm grito de liberdade, e um lamento de dorO canto mata a saudade, negro quilombola sua terra deixouQuem leva, me leva, que vamos aê, a levada é agoraQuem leva, me leva, que vamos aê, rei Zumbi quilombolaVieram sendo escravizados, presos, marcados como animaisForam até torturados, mas nunca deixaram os seus ideaisDe igualdade e justiça, sem essa de sofreguidãoDilazenze hoje é o palco da negra luta de nossos irmãosQuem leva, me leva, que vamos aê, a levada é agoraQuem leva, me leva, que vamos aê, rei Zumbi quilombolaOlha negro essa luta tem a ver com você,tenha mais consciência pois você tem muito o que aprender,rei Zumbi e quilombolas deram o sangue e a vida,Dilazenze é cultura, orgulho negro e tem sempre a saídaQuem leva, me leva, que vamos aê, a levada é agoraQuem leva, me leva, que vamos aê, rei Zumbi quilombola”.

13 Almeida (1999: 154; 2000: 159) alude à emoção suscitada pelo desfile do Dilazenze e pordesfilar no Dilazenze. Ver Apêndice VIII.14 Almeida (2000: 73) observou um membro do Dilazenze falando das “rivalidades” entre osblocos, “aludindo inclusive aos que recorrem à feitiçaria para prejudicar o Dilazenze”.

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15 O que lhe valeu uma crítica explícita de Moura (Moura e Agier 2000: 373-374). Ver, tam-bém, Vianna (2001).16 Mesmo fazendo a ressalva de que a distinção é efetuada em “termos somente descritivos”,Deleuze e Guattari (1980: 549) sustentam que “agenciamentos seriais, itinerantes outerritoriais”, operando por meio de códigos polívocos, são capturados e convertidos em“agenciamentos sedentários, de conjunto ou de Terra”, que operam por sobrecodificação.17 Borges (2004: 59) lembra que Engels já sublinhara que a propriedade atua como forma deretirar a liberdade de movimento dos agentes, fixando-os e contribuindo para convertê-losem trabalhadores. Em sua etnografia realizada na periferia de Brasília, a autora observou comoesse mecanismo funciona efetivamente, “amarrando” e “prendendo” o beneficiário de umlote àquilo que “ganhou” e, como se não bastasse, fazendo com que se sinta eternamente gratoaos doadores, votando neles sempre que necessário (idem: 163).18 Em outro contexto, Paul Veyne (1987: 16). observa que, do ponto de vista da experiênciaindividual das pessoas comuns, a realidade do Estado é dupla: “[...] os impostos a pagar, asmultas de estacionamento, um sentimento geral de obrigação social, de dever, cujos limitescom a moral propriamente dita permanecem incertos [...]. De outro lado, existe uma expe-riência bem diferente, quando o Estado aparece por inteiro e nos solicita de um modo com-pletamente diferente [...]. O Estado toma a palavra na televisão para um diálogo com seussúditos, diálogo no qual sua prerrogativa, aliás, é a de monologar”.19 Como disse Dona Ilza, ao mostrar-me o Tombency: “isto aqui é minha vida!”.20 Este é também, como vimos, o sentido da polêmica mantida por Fry com Hanchard, abor-dada no Capítulo 4.21 Magalhães (1998: 27) lembra que, em 1986, Oliven também se dedicou à análise da “apro-priação e generalização de manifestações culturais específicas de certos grupos para outrosgrupos sociais”, encarando esse processo como “um fenômeno peculiar da dinâmica culturalbrasileira”. Há evidentemente certo exagero aqui, já que, desse ponto de vista, não sabería-mos muito bem o que fazer com o jazz, por exemplo. Além disso, não seria tão difícil susten-tar que símbolos dominados podem ser convertidos à posição de dominantes, porque, se-guindo conhecidos procedimentos de “distinção”, as elites manteriam seus próprios símbo-los e valores fora do alcance dos demais grupos sociais.22 Deleuze e Guattari (1980: 268-269, 586-591) distinguem as conexões revolucionárias dasconjugações reterritorializadoras, e sustentam que é na imprevisível variação entre ambas quea luta política se distribui: “como isso vira fascista ou revolucionário” (Deleuze e Guattari1972: 310).23 Ouvindo uma música do Ilê Aiyê com meus amigos de Ilhéus, mostrei-me intrigado como verso “a liberdade parece com a linha do Equador” (que, mais tarde, eu usaria como epígrafede um livro). Sugeri que ambas seriam imaginárias; responderam-me, primeiro, que as duasestão aí, só que ninguém as vê; depois, que, como a linha do Equador, a liberdade tambémtem que ser traçada.24 Sobre o caboclo, ver também Santos (1995). Para uma visão geral da captura da culturanegra baiana, ver Santos (2000).

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25 “Por essa razão, a política pessoal que denominei ‘resistência’, tão rica em simbolismo,metafísica, pathos, humor e raciocínio terra-a-terra, merece séria atenção” (McCallum 1997:27-28).26 Pois, como afirmou Christine Alencar Chaves (comunicação pessoal), adesão não significanecessariamente submissão.27 As informações sobre esses municípios vêm, respectivamente, de Cecília Mello (2003),Tomas Martin Ossowicki (2003) e Levindo da Costa Pereira Jr. (2005), que desenvolvempesquisas nessas localidades.28 “O eleitor de quem se teme o embrutecimento ou a brutalidade, o excesso de paixão ou oexcesso de indiferença, deve ser guiado, enquadrado, controlado” (Offerlé 1993a: 139)29 O artigo e o panfleto foram respondidos, um mês mais tarde, por uma nota da Prefeitura(“Ao Povo de Ilhéus”), publicada nos jornais da cidade, e por um panfleto do DiretórioMunicipal do PSDB (“Nota ao Povo de Ilhéus”), os quais, entre outras acusações, sustenta-vam que a posição do PT seria típica “das trevas da Idade Média, do nazifascismo, do stalinismoe demais regimes ditatoriais”.30 Em Ilhéus, praticamente ninguém duvida que ocupantes de cargos públicos utilizem suaposição para obter votos. Em 1996, ao constatarem minha agradável surpresa com a eleiçãopara a Câmara Municipal de uma mulher, negra e pobre, que trabalhava como merendeirado município, meus amigos espantaram-se, riram e perguntaram se eu não sabia que eladesviara a merenda escolar para poder distribuir cestas básicas em sua campanha.31 O que faz, por exemplo, que missionários possam ser considerados mediadores, quando éevidente que estão bem instalados sobre uma das margens do rio. As abordagens que, visan-do fazer da mediação e do clientelismo um traço cultural geral da sociedade brasileira, mencio-nam, como uma de suas manifestações, o papel de Exu nos cultos afro-brasileiros deveriamlevar esse exemplo a sério. Pois Exu parece, de fato, ser um mediador, mas ao pé da letra, umavez que, desempenhada sua função de colocar homens e orixás em comunicação, sai de cena.Missionários, mediadores políticos e outros, ao contrário, compõem sempre o terceiro vérti-ce do triângulo clientelista isolado por Graham. De toda forma, há uma extensa literaturasobre a questão da mediação, e não é meu objetivo aqui nem analisá-la, nem criticá-la. Paraum uso criativo da noção em estudos de antropologia da política, ver Kuschnir (2000a; 2000b).32 Ver Goldman e Sant’Anna (1995: 33-35). Como se sabe, com o conceito de double bind,Gregory Bateson procurou trazer à luz a estrutura dos processos de produção da esquizofrenia;ao mesmo tempo, sugeriu que esses processos estão igualmente presentes nas “relações nor-mais” (Bateson 1972: 209), mais precisamente, nessas complexas situações em que duas“injunções negativas” conflitantes são acompanhadas por “uma injunção negativa terciáriaproibindo a vítima de escapar do campo” (idem: 206-207). O que engendra esses estados emque “não importa o que alguém faça, ele ‘não pode vencer’” (idem: 201).33 Mesmo Dona Ilza, que não se cansa de insistir na separação absoluta entre o candomblé ea política, reconhece que algumas pessoas “vêm ao terreiro e perguntam ‘minha mãe, comquem a senhora está? É com este? Então é com ele que estou também’”.34 Ver, também, Offerlé (1993b).

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35 A isso devemos acrescentar o fato de que nem todos os que possuem o direito ao voto pos-suem, também, o de serem votados. O caso mais interessante, sem dúvida, é o dos analfabe-tos, que readquiriram o direito de votar – em caráter facultativo, observe-se – apenas em 1988,mas permanecem inelegíveis (ver Porto 2000; 2002), o que, recentemente, fez com que juízeseleitorais decidissem aplicar testes de alfabetização em candidatos a cargos eletivos. Essainelegibilidade dos analfabetos apenas acrescenta uma prova ao fato de que o princípio abs-trato da representação política se encontra sempre infletido por diferentes variáveissociopolíticas, e que as eleições e sua regulamentação continuam sendo ocasiões tão privile-giadas para a exibição das diferenças e distinções sociais quanto o eram no Brasil do SegundoReinado (Graham 1997).36 Um dos temas preferidos de Machado de Assis, que, em diversas crônicas e obras ficcionais,divertia-se em imaginar as maquinações destinadas a burlar um determinado sistema eleito-ral, aquelas voltadas para impedir a continuidade das primeiras por meio de correções e re-formas, e as novas maquinações visando burlar o novo sistema, o qual deveria, assim, ser no-vamente reformado, e assim por diante (ver, por exemplo, “A Sereníssima República”). Parauma apresentação geral das posições políticas de Machado de Assis, ver Faoro (1974).37 Baseado no princípio de que tudo o que acontece durante o trabalho de campo deste fazparte, reproduzo no Apêndice II uma “entrevista” enviada por escrito, em meados de agostode 2000, ao Jornal da Cidadania, do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas(Ibase), que me havia encaminhado, por correio eletrônico, algumas questões relativas à “par-ticipação política dos jovens”. O leitor observará, com certa facilidade, o estado de irritaçãodo antropólogo – o que talvez explique o fato de o jornal ter publicado apenas uma frase detudo o que enviei.

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CAPÍTULO 6

2004: CANDIDATURA

Do ponto de vista de Marinho Rodrigues – bem como daquele de suafamília, de seu bloco e de pelo menos parte do movimento afro-cultural dacidade –, sua nomeação para administrador do Memorial da Cultura Negrade Ilhéus significava o coroamento de uma trajetória, simultaneamente, in-dividual e coletiva, que, finalmente, estaria recebendo o devido reconheci-mento. Reconhecimento, em primeiro lugar, por parte dos poderosos da ci-dade, daqueles que a administram e nela “mandam”, e que, quase sempre,são “brancos”. Acreditava-se, contudo, que esse reconhecimento por parte daelite seria estendido a todos os que não fazem parte do movimento afro-cul-tural: os “brancos” em geral, mas também os não brancos que pouca, ou ne-nhuma, relação mantêm com o movimento, bem como aqueles que partici-pam exclusivamente do movimento negro político. Ou seja, o reconhecimentose propagaria em ondas concêntricas, que, partindo de Marinho, acabariampor envolver Ilhéus como um todo – e mesmo pessoas e regiões mais ou menosdistantes da cidade.

No entanto, até mesmo onde o reconhecimento deveria ser mais espon-tâneo – no círculo mais exclusivo, que compreenderia a família nuclear e afamília extensa de Marinho –, o caráter individual da conquista não deixavade entrecruzar-se com sua natureza coletiva. Mais precisamente, se o méritode Marinho era, sem dúvida, pessoal, isso não poderia fazer esquecer que seusucesso era o resultado de redes de relações em que ele sempre esteve envolvi-do, bem como dos grupos e movimentos de que participou. Nesse sentido, éclaro que todos tinham certeza de que Marinho possuía obrigações para comas pessoas que faziam, ou haviam feito, parte dessas redes, grupos e movimen-tos, obrigações que, como todos sabem, os que atingem posições mais eleva-das têm o mau hábito de esquecer.

Marinho, entretanto, parecia ser o primeiro a reconhecer essa situação,e isso antes mesmo de sua indicação para o Memorial:

“Se eu consegui tudo isso, eu agradeço ao Dilazenze. Foram os trabalhos queeu fiz no Dilazenze que levaram a esse reconhecimento do meu nome. Então,eu agradeço sempre ao Dilazenze e tenho que retribuir ao Dilazenze. Se euassumir mesmo a gerência administrativa do Memorial, é uma vitória do Dila-

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zenze; se eu chegar lá, é por causa do Dilazenze. E eu tenho certeza de que, euestando lá, a remuneração que eu vou ter vai ajudar muito o Dilazenze. Se eujá ajudo o Dilazenze sem ter nada, imagina tendo!”

O problema é que, se Marinho e os demais membros do grupo pare-cem, às vezes, conceber o Dilazenze como uma entidade quase transcendente,pairando acima dos indivíduos que o compõem, em outras ocasiões, o grupotende a ser pensado como não sendo nada além do somatório de seus com-ponentes ou, mais precisamente, o conjunto dos membros da família Rodri-gues que participam mais diretamente do bloco, com o presidente – justa-mente Marinho – à frente. Concretamente, entretanto, na maior parte doscasos, o que se observa é uma curiosa mistura dessas duas concepções a res-peito do Dilazenze. Assim, uma das cunhadas de Marinho protestou contrasua decisão de entregar a administração do restaurante do Memorial “ao Dila-zenze”, e não a seu marido (e irmão de Marinho), dizendo: “tudo é o Dila-zenze! Você não está vendo que ele não quer dar nada pra você, que tudo é oDilazenze, que o Dilazenze é quem sempre tem prioridade?”

Outros irmãos de Marinho, mais ativos no bloco, argumentavam que osucesso havia “subido para a cabeça” do irmão, expressão sempre empregadaquando se deseja sugerir que alguém teria esquecido suas lealdades básicas eestaria pensando apenas em si mesmo e agindo em benefício próprio. Desseponto de vista, Marinho não estaria fazendo tudo o que a posição que ocupa-va permitiria que fizesse pelos irmãos. A reação, claro, consistia na suspeitade que essas críticas não passavam de ciúmes, e mesmo de inveja, pelo suces-so do irmão, sentimentos que impediam que se compreendesse que o triunfopessoal de Marinho era, ao mesmo tempo, o triunfo do grupo e que, inevita-velmente, beneficiaria esse grupo como um todo.

Por outro lado, e sem nenhuma dúvida possível, Marinho claramenteexperimentava a sensação de um sucesso pessoal. Repetia, com orgulho, quecostumava ser parado nas ruas por pessoas desconhecidas, que desejavamcumprimentá-lo por algo que teria declarado em uma das repetidas entrevis-tas em rádios que vinha concedendo; que os meios de comunicação insistiampara que comparecesse a diferentes programas; que um jornal local ofereceraa ele uma coluna semanal destinada a divulgar o movimento afro-cultural deIlhéus (cinco artigos de uma coluna cada foram publicados entre 21 de outu-bro e 24 de novembro de 2003);1 que recebia diversos telefonemas de apoioa suas posições, e assim por diante. Simultaneamente, Marinho argumentavasaber que seu sucesso estava despertando ciúmes e inveja, sentimentos que

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ele dizia considerar normais em pessoas mais distantes, mas extremamentepreocupantes quando se tratava de amigos próximos ou, principalmente, demembros de sua própria família.

De toda forma, esses conflitos manifestam uma propriedade sempre la-tente, uma espécie de tensão estrutural não apenas entre o “grupo” e as “pes-soas”, como também entre grupos definidos de diferentes maneiras ou recor-tados em níveis segmentares distintos, e entre as pessoas que os compõem, asquais igualmente se definem de diferentes maneiras de acordo com o pertenci-mento destacado em função do nível segmentar em que se situam para umarelação específica. Assim, como observei no quarto capítulo, os membros defamílias nucleares tendem a votar em conjunto e, muitas vezes, o fazem, emoposição ou à revelia da família extensa, do bloco ou do terreiro. Mais do queisso, tudo indica que todas as vezes que os conflitos se acirram no plano dafamília extensa, por exemplo, a solidariedade na família nuclear tende a au-mentar – e vice-versa, já que esposos e filhos tendem a se sentir preteridosquando supõem que seu cônjuges ou pais se estariam dedicando de modoexcessivo aos irmãos ou aos próprios pais. O mesmo é verdadeiro nas relaçõescom os demais grupos. Por um lado, a família nuclear parece funcionar comouma espécie de proteção contra os problemas enfrentados no bloco ou noterreiro; por outro, protesta-se muito sempre que se imagina que alguém estádeixando sua família em segundo plano para se dedicar ao Dilazenze ou aoTombency com exclusividade. Finalmente, uma dedicação tida por excessivaao bloco pode ser reclamada também para o terreiro, e vice-versa.

De modo análogo, muitas vezes os projetos individuais entram em con-flito com instâncias mais coletivas. No caso do Dilazenze, como demonstraSilva (2004: cap. 5), esse conflito costuma articular-se a partir da oposiçãoentre o bloco concebido como conjunto de artistas ou como entidade coleti-va que, também, desenvolveria atividades artísticas (além das culturais e so-ciais, por exemplo). As mesmas pessoas ora tendem para uma posição, orapara a outra, mas, no Dilazenze, essa dualidade sempre foi encarnada por Ma-rinho, de um lado – defendendo, em geral, posições mais ‘coletivistas’ –, epor Ney e Gleide, de outro, partidários de uma concepção mais artística dasatividades do grupo.2 Se Marinho foi o presidente do bloco por mais de quinzeanos, Ney, seu irmão, foi o mestre de bateria, e Gleide, sua sobrinha, a core-ógrafa e principal bailarina, por mais de dez anos.

Em diversas ocasiões, Marinho sustentou que ambos andavam “de sa-pato alto” – imaginando-se superiores aos outros, fazendo cobranças demais

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e não dando nenhuma retribuição ao grupo – e afastando-se de suas “raízes”,o que Marinho considera o grande risco dos músicos e bailarinos afro. Porsua vez, tanto Ney quanto Gleide pensavam que a administração do Dilazenzepoderia ser mais “profissional” e mais “arrojada”, ou seja, voltada para umamaior expansão das atividades propriamente artísticas do grupo.

Em 2003, Gleide mudou-se para o Rio de Janeiro em função de seucasamento, mudança que abriu a possibilidade de busca de melhores condi-ções para o desenvolvimento de suas extraordinárias habilidades como baila-rina afro. Em Ilhéus, Ney – cujas habilidades como percussionista não sãomenores – tratou de reativar o Sambadila, originalmente um grupo de sambade roda composto por membros do Dilazenze, criado no começo da décadade 1990 e praticamente desativado a partir de 1995. Ney pretendia, justa-mente, que o Sambadila se convertesse no carro-chefe do que supunha ser avocação artística do Dilazenze e, para isso, acreditava que a banda deveria tercerta independência em relação ao bloco – posição, é claro, com a qual Ma-rinho não concordava em hipótese alguma.

Na verdade, as relações entre Marinho e Ney – que sempre me parece-ram um misto de solidariedade fraterna, companheirismo no trabalho e riva-lidade mais ou menos dissimulada – vinham se complicando desde meadosde 2002, quando o primeiro decidira enfrentar sem tréguas o presidente doCEAC, órgão do qual, lembremos, o segundo era o vice-presidente. De umlado, Marinho sentia que o apoio de Ney a suas posições não era o que eledesejava, e o acusava, por vezes, de ser conivente com Jacks Rodrigues; deoutro, Ney começou a demonstrar seu desejo de assumir as presidências doDilazenze e do próprio CEAC – pretensão em relação à qual a posição deMarinho oscilava entre a oposição, a neutralidade e o apoio final (que de nadavaleu, aliás, uma vez que Jacks conseguiu ser reeleito). Ao mesmo tempo,Marinho sustentava que Ney se opunha a tudo o que ele planejava para oDilazenze, derrubando até mesmo sua proposta para o tema do carnaval 2003.

Enquanto isso, Marinho organizava as atividades do Memorial da Cul-tura Negra. O restaurante foi entregue ao Dilazenze (na verdade, é sua esposaquem o faz funcionar) após ter sido atribuição do CEAC. A esposa de Ney,também membro do Dilazenze, foi “contratada” como secretária do Memo-rial, e outras componentes do bloco como garçonetes para as atividades dasnoites de sexta-feira, quando o Memorial é palco de apresentações musicais.No início, estas foram abertas a todos os blocos afro, mas, progressivamente,o Dilazenze tornou-se o único responsável por elas – o que se acabou tornan-

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do mais um foco de disputas entre os dois irmãos, já que os músicos doSambadila, que se consideram “artistas”, estabeleceram algumas exigências parase apresentar, exigências que, do ponto de vista de Marinho (que considera ogrupo parte do Dilazenze), seriam totalmente descabidas.

Após o carnaval de 2003, as coisas complicaram-se ainda mais. O com-plexo quadro de relações, no qual se misturavam sentimentos de vaidade,orgulho, admiração e inveja, agravou-se quando Marinho foi diretamenteincentivado por um secretário municipal – um dos correligionários maisantigos de Jabes Ribeiro e um dos responsáveis pelo único diário da cidade, omesmo jornal em que Marinho publicava sua coluna – a lançar-se candidatoa vereador nas eleições municipais de 2004. Esse convite, lembremos, remontaao processo de nomeação para a administração do Memorial da Cultura Negra,quando o prefeito teria insistido na importância do movimento negro de Ilhé-us eleger um vereador, e no fato de que Marinho seria o candidato ideal, porser o único capaz de unir os grupos negros e apresentar-se em uma candida-tura consistente. Após muita hesitação, Marinho aceitou o convite, filiando-se ao PMN, partido de seu novo patrono político. Nessa decisão, pesaram,sem dúvida, certa crença na possibilidade de vitória, o reconhecimento daimportância de um vereador ligado ao movimento afro-cultural, um poucode orgulho por estar sendo convidado pelos donos do poder e um temor meiodifuso de que a não-aceitação poderia implicar em sua demissão da adminis-tração do Memorial, cargo de confiança do prefeito, afinal de contas. Alémdisso, seu patrono garantia que ele próprio seria candidato a prefeito, o quesignificava que não disputaria votos com Marinho e, principalmente, que nãopretendia utilizá-lo como simples mula.

* * *

A idéia de uma candidatura à Câmara Municipal oriunda do movimen-to afro-cultural é, entretanto, e como já observei, bem antiga, remontandoao menos à campanha de Gilvan Rodrigues em 1988. Em 1997, quando oCEAC se encontrava em processo de reestruturação, Marinho já dizia que “aintenção desse Conselho é brigar [...] por uma cadeira na Câmara dos Vere-adores, brigar por espaços na política também” (Silva 1998: 94-95). Entre1998 e 2000, houve muitas conversas e debates em torno da possibilidade,importância e necessidade de o movimento negro eleger um vereador. E em-bora diversas pessoas, em diferentes ocasiões, tivessem pretendido essa con-

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dição, o fato é que o nome de Marinho sempre aparecia como um dos maisadequados. Na verdade, desde 1998, a possibilidade de Marinho concorrer aum lugar na Câmara Municipal era eventualmente aventada, às vezes em tomde brincadeira, às vezes bem a sério.

Assim, logo após as eleições nacionais daquele ano, ao ser procurado poruma vizinha que reclamava do barulho causado pelos ensaios carnavalescosdo Dilazenze na hora de seu programa de televisão favorito, Marinho ouviu-a dizer que queria falar com ele porque alguém a havia avisado de que “Ma-rinho manda na Conquista”. O tom claramente exagerado e jocoso da afir-mativa não impediu que vários dos que testemunhavam a conversa procla-massem que ele deveria candidatar-se a vereador, e alguém chegou mesmo adizer que ele, certamente, obteria mais votos que Gilvan, que, presente, nãodeixou de demonstrar certo constrangimento. E mesmo que o tom dessasintervenções ainda fosse algo jocoso, alguma seriedade podia ser percebidapor trás das brincadeiras.

Entre as eleições nacionais de 1998 e as municipais de 2000, o nome deMarinho como candidato a vereador foi levantado, pelo menos, em mais duassituações, por dois irmãos seus, os quais foram ora apoiados, ora censuradospor outros parentes e amigos. Em todas as ocasiões, o possível candidato re-cusava-se, peremptoriamente, até mesmo a discutir a possibilidade de secandidatar ou, mais precisamente, de “virar político”:

“Eu acho que eu não daria para ser político. Sou um militante negro atuante,brigo, enfrento qualquer coisa. Mas a política é, assim, suja demais, e eu acho quenão teria sangue para suportar. Quando o cara se elege, ele se modifica, ele cai napolítica. Por exemplo, um vereador do PCdoB, que tinha um trabalho de por-ta de fábrica, um cara realmente militante, nas lutas, nas greves, até que conse-guiu se eleger. Depois que estava eleito, se modificou, se modificou tanto que estásendo candidato à reeleição mas não vai conseguir nada, porque ele se queimoucom todos os sindicatos, e se queimou porque quando chegou lá, caiu na polí-tica. Então, eu acredito muito nisso, na transformação do cara com o poder”.3

Ora, essa concepção da política como algo ao mesmo tempo poluído epoluente, capaz de afetar e transformar mesmo as melhores pessoas é, evi-dentemente, central nas relações que o movimento afro-cultural de Ilhéusmantém com os políticos em geral e com a Prefeitura em particular. Ela tam-bém é fundamental quando alguém muito próximo – parente ou amigo –torna-se, ou pretende tornar-se, político. Quando Marinho, alguns anos de-pois, aceitou candidatar-se a vereador, foi sua esposa que observou que ele,

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rapidamente, “está ficando diferente”, o que fazia com que ela temesse muitopela sorte de seu casamento caso o marido insistisse no projeto.

A história do envolvimento de Gilvan Rodrigues com a política tam-bém é um caso paradigmático dessa relação negativa com a política ou, paraser mais preciso, dessa relação com a política definida como uma atividadeessencialmente negativa. Gilvan, lembremos, é o outro filho de Dona Ilza,que, ao lado de Nidinha, tem o “dom” do transe, ou seja, é possuído pelosorixás e espíritos aos quais está consagrado. Além disso, é um grande conhe-cedor do candomblé e, ainda que esse ponto não possa ser oficialmente adi-antado, é tido por todos como o mais provável sucessor de sua mãe à frentedo terreiro Ewá Tombency Neto.4 Finalmente, é também um dos três mem-bros do sib de quatorze irmãos que conseguiram concluir o ensino médio.

Entre 1978 e 1987, Gilvan trabalhou na Prefeitura de Ilhéus, empregoobtido graças à intervenção de Pedro Farias, pai-de-santo muito conhecidona cidade, que foi chefe de gabinete de diversos prefeitos. Em 1988, após deixarseu emprego em meio a um conflito com o então prefeito João Lírio, Gilvandecidiu lançar sua candidatura a vereador pelo PSB. Além de ter trabalhadona Prefeitura, contava, para ser eleito, com o apoio do movimento negro deIlhéus e, em especial, com o dos terreiros de candomblé, já que, com quasequinze anos de iniciação religiosa na época, e tido como o mais provável su-cessor de sua mãe à frente do Tombency, ele era ainda o representante daFederação Baiana de Cultos Afro-Brasileiros em Ilhéus. Os 150 votos queobteve não foram suficientes para elegê-lo, mas a votação foi consideradaexpressiva e teria permitido ao beneficiário continuar na política. Gilvan,entretanto, passou a acreditar que sua derrota se devia à falta de apoio justa-mente nos redutos de onde mais esperava votos, nos terreiros, nos blocos e,mesmo, em sua família. De seu ponto de vista, teria sido justamente a faltade envolvimento efetivo dessa última em sua campanha que o teria feito de-sistir de se recandidatar com seriedade nas eleições subseqüentes. Não obstante,foi candidato em 1992, mas apenas, afirma, para ajudar a preencher a lista deseu partido, não tendo obtido, por isso, nenhum voto (“nem o meu mesmo”,como costuma dizer), já que, como membro do movimento afro-cultural,apoiara a candidatura de Mirinho. Depois disso, voltou a se candidatar naseleições de 2000 (quando obteve apenas 23 votos) como “estratégia”, expli-ca, visando lançar-se com seriedade e possibilidade de vitória em 2004.

Entre os parentes de Gilvan, contudo, a explicação para seu relativo fra-casso eleitoral era um pouco diferente. Dizem, mais ou menos abertamente,

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que, em lugar de garantir os votos que potencialmente possuía nos terreirosde candomblé, no movimento negro como um todo e no bairro da Conquis-ta, Gilvan – considerando que tais votos estavam “garantidos” – preferiu sededicar ao “voto dos burgueses” (ou seja, da classe média branca da cidade),perdendo seu tempo de campanha com “pessoas que nem nos cumprimen-tam” e que, evidentemente, jamais votariam em um candidato pobre e ne-gro. Resultado: perdeu votos quase certos e não conquistou os que pretendia.Essa teria sido, na verdade, a razão pela qual, mesmo tendo votado em Gilvan(“meu voto foi dele porque é meu irmão”), boa parte de seus irmãos não teriatrabalhado em sua campanha. Gilvan afirma que as coisas se teriam passadode modo ainda pior, e que alguns de seus irmãos teriam trabalhado para ou-tros candidatos, que a eles ofereceram dinheiro, o que teria feito com quemuitos a quem pedia o voto respondessem: “mas se nem teus irmãos vão votarcom você...”.

De modo mais abrangente, e como já observei, ao menos desde 1988, omovimento afro-cultural de Ilhéus vinha efetivamente tentando, ainda quesem sucesso, eleger um vereador que o representasse. Nas eleições de 1988,como acabamos de sublinhar, Gilvan obteve uma votação considerada boa,mas insuficiente para elegê-lo. Em 1992, como também já observei, Miri-nho, o então presidente do CEAC, conseguiu colocar-se como primeirosuplente de seu partido, tendo inclusive assumido o cargo em algumas ocasiões.Em 1996, uma série de candidatos dividiram o apoio do movimento negro:nenhum deles se elegeu, ainda que Gurita tenha conseguido um número su-ficiente de votos para permanecer na vida política como chefe de divisão ousubsecretário municipal. Em 2000, Gurita voltou a tentar ocupar a posiçãode representante do movimento afro-cultural; e, para 2004, cogitava-se pre-cisamente na candidatura de Marinho Rodrigues.

Essas tentativas mal-sucedidas do movimento afro-cultural de Ilhéus paraeleger um vereador tendem, em geral, a ser interpretadas como fracassos de-rivados de razões de ordem puramente negativa. Em 1996, como vimos, PauloRodrigues considerava que a incapacidade de o movimento negro eleger umou dois vereadores derivava de sua falta de consciência e inabilidade políti-cas; o então candidato a prefeito Jabes Ribeiro sugeria que se tratava de faltade organização; Gilvan pensava que tudo não passava de falta de experiênciapolítica; pessoas ligadas aos grupos negros – Gurita ou o próprio Marinho,por exemplo – argumentavam que essa dificuldade provinha das divisões in-ternas do movimento. Outros poderiam ser tentados a supor que a dificulda-

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de em eleger um representante está, de alguma forma, ligada à pouca adesãoque as ‘camadas populares’ tendem a apresentar em relação a valores básicosda civilização ocidental, como o individualismo e a igualdade, valores queestariam no centro das democracias representativas.

Cada uma dessas interpretações segue, é claro, as concepções de políticae as preferências pessoais dos intérpretes, e todas, sem dúvida, apresentam algode verdadeiro. No entanto, antes de apelar para grandes causas (falta de edu-cação política, compromisso de participação, adesão a belas ideologias etc.),parece mais interessante identificar ao menos alguns dos mecanismos respon-sáveis pela produção desses resultados. Pois tais resultados parecem derivarde um confronto entre lógicas sociais distintas, marcadas por uma assimetriade poder. Assim, a concepção de política adotada pela maior parte dos mem-bros do movimento negro de Ilhéus – ao contrário do que ocorre com boaparte da classe dominante e com os políticos em geral – associa essa ativida-de, como vimos, a algo poluidor, transitório e transcendente. Desse modo,pode-se até mesmo chegar a considerar que a derrota de um irmão em umaeleição não é um fato inteiramente negativo, uma vez que a derrota tem, aomenos, a virtude de impedir que ele se torne “político”, ou seja, alguém quese imagina portador de um sem-número de defeitos morais. Nesse sentido,há uma coexistência de sentimentos opostos, que faz com que pessoas e grupospossam, simultaneamente, ansiar pela eleição de alguém que os represente etemer a irrupção, em seu cotidiano, de poderosos mecanismos de hierar-quização. Mais um “double bind”, mais um ponto de apoio para o funciona-mento dos sistemas políticos constituídos pelas democracias representativas.

Apesar de todas as razões negativas, permanece assim o fato de que oefeito positivo, ainda que não intencional, do que parecem ser simples ca-rências (de consciência, organização, experiência, unidade ou ideologia) é aconjuração do fantasma da desigualdade interna ao grupo – desde que se aceitedesignar “grupo” uma realidade multiforme e móvel, segmentar, como vimos,que pode assumir a forma de uma família, vizinhança, bloco, movimento etc.Pois o problema, como demonstrou, entre outros, Beatriz Heredia (1996: 67-68), é que a introjeção da política – que é, sobretudo, uma maneira de gerirrelações entre desiguais – no seio de um grupo que se concebe sob o signo daigualdade é sempre muito difícil.5

Mais do que isso, como observei em diversas ocasiões, uma série demecanismos de diluição de poder é continuamente posta em ação nos meiossociais de que fazem parte os militantes do movimento afro-cultural de Ilhéus.

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Além de se considerar a política algo exterior, sujo e passageiro, pode-se “di-vidir os votos”, no sentido de que, ao serem procurados por diferentes candi-datos em busca de apoio eleitoral, chefes de família, mães-de-santo, dirigen-tes de blocos afro tentam determinar, com maior ou menor grau de sucesso,em que candidatos diferentes membros da família, terreiro ou grupo culturaldeverão votar. Pode-se, igualmente, ‘dividir’ votos no sentido de votar emalguém, pedir votos para outrem e trabalhar para um terceiro, em função dasmúltiplas lealdades em que todos sentem estar envolvidos ou da necessidadede dinheiro por muitos experimentada. E pode-se, também, apoiar, ajudarou lançar muitos candidatos, por partidos diferentes, o que faz com que suasvotações, de alguma forma, anulem-se reciprocamente.

Ora, essa resistência em colaborar voluntariamente para o sucesso dosmecanismos de centralização do poder e essa recusa prática em aceitar aintrojeção de mecanismos de hierarquização assemelham-se, sem dúvida, aoque Pierre Clastres (1974; 1980) denominou “contra-Estado”, esse conjuntode mecanismos que, nas sociedades “sem Estado”, impedem a constituiçãode um poder central ou coercitivo. Mas é claro que não temos nenhuma ra-zão para supor que tais mecanismos funcionem apenas nas “sociedades pri-mitivas”, e devemos reconhecer que eles estão bem vivos entre nós (ver Deleuzee Guattari 1980: 441-446; Lima e Goldman 2001: 308; Lima e Goldman2003; Barbosa 2002). Não obstante, é preciso evitar todo romantismo e re-conhecer o óbvio: que, em uma sociedade dotada de Estado, o funcionamentodos mecanismos contra-Estado pode, muitas vezes, contrariar sua própriaorientação. Assim, no confronto entre lógicas sociais distintas, marcadas pelaassimetria de poder acima evocada, a resultante do choque entre concepçõesda política moralmente negativas e moralmente positivas tende a se infletirna direção das segundas, ou seja, a favor do Estado.

* * *

Os processos que acabaram conduzindo à sua nomeação para o Memo-rial, entretanto, parecem ter abalado as resistências de Marinho à sua própriacandidatura, bem como algumas de suas convicções a respeito da política: adivisão do movimento negro poderia, quem sabe, ser compensada pela forçade seu próprio grupo e de sua família; e a possibilidade de entrar na políticae “continuar sendo a mesma pessoa” foi sendo considerada cada vez mais plau-sível. Esse processo, é claro, não se deu de um dia para o outro. Em agosto de

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2002, Marinho, em uma reunião do então candidato a deputado estadual, eirmão do prefeito, Joabes Ribeiro com representantes de alguns terreiros decandomblé e com a recém-fundada Associação dos Blocos do Sul e Extremo-Sul Baianos (Abase), Marinho sustentou que

“[...] o movimento afro-cultural de Ilhéus tem um projeto muito grande, umprojeto ambicioso. Porque é um absurdo que Ilhéus, uma cidade negra, nãoconsiga eleger um vereador comprometido com o movimento negro. Nós nãotemos um candidato que possa representar esse movimento, que fale em nomedesse movimento, que faça esse movimento ser respeitado. Na época das elei-ções, vários candidatos sempre se intitulam candidatos do movimento negrode Ilhéus, mas não é disso que estou falando. É que agora esse movimento estámaduro, está mais experiente, para que saia uma candidatura de dentro delemesmo. Isso não quer dizer que seja fulano ou beltrano, mas que seja uma can-didatura que cresça dentro do movimento, que saia de dentro do movimento,discutida pelo movimento, que o movimento se engaje na campanha e consigaeleger um vereador que tenha compromisso com o movimento. Porque omovimento negro hoje tem uma consciência política muito melhor do que háalguns anos, porque nós aprendemos com o tempo, ganhamos um pouco deexperiência. Nossa idéia, então, é lançar um candidato a vereador nas eleiçõesde 2004, candidato que, saindo do próprio movimento, tivesse seu apoio e que,caso fosse vitorioso, apoiasse esse movimento”.

Na verdade, Marinho apenas repetia aqui em público o que dissera ummês antes ao prefeito de Ilhéus, quando este, concordando com ele, susten-tara ser o próprio Marinho a única pessoa capaz de reunir o movimento afro-cultural em torno de uma candidatura a vereador. Incentivo que, sem dúvi-da, atingiu em cheio seu alvo: imediatamente após essa reunião, Marinhoprocurou sua família para relatar o ocorrido, e todos se puseram imediata-mente de acordo com o prefeito – até mesmo sua esposa, que sempre foraextremamente refratária a essa idéia, e seu irmão Gilvan, sempre interessadoem lançar sua própria candidatura.

A partir desse momento – de alguma forma cumprindo sua self fulfilledprophecy segundo a qual a política modifica inevitavelmente as pessoas –,Marinho parece ter começado a comportar-se como candidato. Dizia que suacandidatura não derivava de um desejo pessoal, mas de uma pressão dos gru-pos a que pertencia;6 que, uma vez eleito, seria o representante de todo omovimento negro, não apenas de sua família, bloco ou mesmo do movimen-to afro-cultural, e assim por diante. Ao mesmo tempo, três irmãos e um cu-nhado decidiram organizar um “grupo político” a fim de cuidar de sua

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candidatura, e eu mesmo fui convocado por eles para não permitir que o ir-mão desistisse da candidatura, bem como para trabalhar como “assessor” desua campanha – afinal de contas eu estava “há tanto tempo estudando a po-lítica de Ilhéus...”.

O problema é que tudo isso se misturava, de modo complexo, à suces-são no CEAC e no Dilazenze. Atribuiu-se a Sérgio Pereira, um dos concor-rentes de Ney na eleição para a presidência do Conselho, a divulgação de umasuposta declaração de Marinho, que teria dito que, caso fosse eleito vereador,não empregaria nenhum parente, uma vez que considerava essa atitude mo-ralmente equivocada. Um de seus irmãos, desempregado há muito tempo,questionou Marinho, que confirmou o boato e ouviu que isso seria um ab-surdo, pois até o prefeito da cidade “contratou a família toda”. Além disso,Marinho suspeitava, mais ou menos abertamente, que o incentivo dos irmãosà sua candidatura visava não apenas a obtenção de empregos como tambémafastá-lo do cargo de presidente do Dilazenze (aspirado por Ney) e, princi-palmente, daquele de administrador do Memorial (que é um cargo de confi-ança, exigindo a desincompatibilização), que ficariam, conseqüentemente,disponíveis para outrem.

Pior do que isso, e como acontece tão freqüentemente na política, a rea-ção dos supostos beneficiários dos compromissos proclamados por Marinho(os membros de outros blocos ou organizações negras) foi de ceticismo, e nãocompensou a indignação autêntica dos que se sentiam prejudicados (sua fa-mília e seu bloco). Pois os membros dos outros grupos negros, afro-culturaisou políticos, não podiam acreditar que Marinho deixaria de beneficiar osgrupos aos quais pertencia; já seus irmãos não podiam entender que ele nãoos beneficiaria, e protestaram violentamente, certos, mais uma vez, de que osucesso, de fato, havia “subido para a cabeça” do irmão.

Prova disso era, certamente, a hesitação de Marinho em apoiar Ney parao cargo de presidente do Conselho das Entidades Afro-Culturais de Ilhéus,sob a estranha alegação de que, como administrador do Memorial, deveriacomportar-se de modo imparcial. Por fim, Marinho decidiu apoiar o irmão,e como, a essa altura, a imbricação entre a sucessão no CEACI e a políticalocal já se encontrava muito adiantada, procurou um secretário municipal,que disse não apenas estar muito interessado nas eleições para o Conselhocomo disposto a “ajudar” o candidato por ele apoiado. É claro que isso signi-ficava, concluiu, um compromisso com uma candidatura consciente, não oapoio fisiológico que determinado candidato a vereador vinha abertamentedando à reeleição de Jacks Rodrigues.

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O candidato em questão era o mesmo Alcides Kruschewsky, que, comovimos (Capítulo 4), havia sido levado por Jacks para as comemorações do Diada Consciência Negra em 2003. Utilizando como slogan “100% Alcides” –que lembra imediatamente a inscrição “100% Negro”, presente em camise-tas e adesivos por todo o Brasil –, esse candidato, desde 2003, buscava obtero apoio do movimento afro-cultural e dos terreiros de candomblé de Ilhéuspara sua eleição à Câmara Municipal.

Por outro lado, o secretário interessado em influir nas eleições do CEACera um dos inúmeros “pré-candidatos” que disputavam a indicação do pre-feito para concorrer à sua sucessão por seu partido. Após oito anos à frente daPrefeitura de Ilhéus, e após ter eliminado ou afastado de seu grupo ou parti-do todos aqueles que, supostamente, poderiam adquirir força política sufici-ente para ameaçá-lo, Jabes Ribeiro encontrava-se, de fato, na difícil situaçãode não dispor de nenhum nome que apresentasse condições de vitória naseleições majoritárias. Ao mesmo tempo, era obrigado a equilibrar-se entre os“pré-candidatos”, já que cada um que não fosse indicado poderia converter-se em um inimigo político capaz de pelo menos dificultar a eleição do nomeescolhido pelo prefeito para sucedê-lo. Assim, Jabes protelou essa indicaçãoaté o último momento, e acabou se decidindo por um nome tido pela maiorparte dos ilheenses como eleitoralmente inviável – o de Soane Nazaré, umdos fundadores da Universidade Estadual de Santa Cruz, presidente da Uni-versidade Livre do Mar e da Mata (Maramata),7 que jamais disputara um cargoeletivo anteriormente, e que agora, pelo PFL, comandava a coligação IlhéusNão Pode Parar.

A oposição, por outro lado, achava-se, desta feita, bastante dividida. Avice-prefeita Angela Maria Corrêa de Souza – que, dependendo da versão,recusou-se a ser candidata com o apoio do prefeito, ou foi por ele recusada –lançou-se pelo PAN (à frente da coligação Pelo Bem de Ilhéus). O PT (lide-rando a coligação Para Ilhéus Mudar e Crescer) lançou o nome de Ruy Car-valho. Pelo PMDB, foi lançada a forte candidatura de Valderico Reis, donoda mais importante emissora local de rádio (que há muito fazia oposição fe-roz a Jabes Ribeiro) e de uma grande empresa de transporte urbano, cuja con-cessão para operar em Ilhéus fora recentemente revogada pela Prefeitura. Ou-tros partidos, como o PSTU (Magno Lavigne) e o PCO (Antônio Corrêa),também lançaram seus candidatos. Finalmente, e mais uma vez, RolandLavigne era, também, candidato à Prefeitura de Ilhéus. No entanto, em umacuriosa e completa inversão do que ocorrera nas duas últimas eleições, sua

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candidatura foi lançada pela presidente do PSDB (líder da coligação Tou naFrente – sic), Rúbia Carvalho, a mesma que, em 1996, lembremos, a fim denão apoiar Roland, acabara aderindo a Jabes, que, agora, estava no PFL, par-tido do qual Roland, justamente, provinha.

Enquanto isso, o PMN, partido no qual Marinho ingressara quandodecidira aceitar o “convite” do prefeito para ser candidato a vereador, tam-bém passava por uma interessante transformação. Deixando de ser controla-do por um dos principais e mais antigos aliados do prefeito, o partido passaraa ser presidido por alguém que, como Alcides (também do PMN), pretendiaigualmente candidatar-se a vereador e, para isso, buscava atrair o movimentoafro-cultural para sua candidatura, investindo principalmente em MarinhoRodrigues, incentivando-o a também se lançar candidato e oferecendo aoportunidade de criar um novo bloco em um dos bairros mais pobres e po-pulosos da cidade, onde o presidente do PMN pretendia justamente estabe-lecer sua principal base eleitoral.

Marinho parecia muito interessado nessas possibilidades, mas tudo secomplicou quando o PMN decidiu não apoiar o candidato a prefeito indica-do por Jabes Ribeiro e aderir à campanha de Roland Lavigne para a Prefeitu-ra. De fato, a situação de Marinho tornou-se delicada. Se, para se lançar comocandidato a vereador, ele deveria deixar o cargo de administrador do Memo-rial até o dia 3 de julho, qualquer anúncio anterior de apoio a Roland signi-ficaria, fatalmente, sua demissão do mesmo cargo. Os interessados em suacandidatura – seus irmãos, alguns amigos, o CEACI, o presidente do PMNe outros –, por sua vez, sugeriam incessantemente que ele renunciasse logoao cargo, sendo que o último chegou a insinuar que poderia pagar o equiva-lente a seu salário. Após muita hesitação e muitas mudanças de posição,Marinho decidiu, finalmente, não se candidatar à Câmara Municipal. Paraisso, contribuíram, provavelmente, certo temor de se afastar do grupo de JabesRibeiro após alguns anos de proximidade; um pouco de medo de perder umemprego e um salário que há muito tempo ele buscava; a suspeita de que oPMN pretendia utilizá-lo como mula na eleição de seu presidente e de Alcides;a desconfiança de que o presidente do CEACI (e talvez até mesmo alguns deseus amigos e irmãos) estivessem, na verdade, interessados em substituí-lo naadministração do Memorial; e, talvez, minha única contribuição como “as-sessor político” de sua curta trajetória política, pois, indagado diretamente,não tive dúvidas em responder que acreditava que ele não deveria lançar-secandidato, uma vez que suas chances de eleição me pareciam praticamentenulas e que ele poderia vir a experimentar uma grande decepção.

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A decisão de não concorrer à Câmara serviu, ao lado da derrota de Neynas eleições para a presidência do CEACI – vencidas, mais uma vez, por JacksRodrigues com, diz-se, o apoio ostensivo de Alcides –, de combustível paraum novo agravamento das relações no interior da família Rodrigues. Neypassou a insistir com mais força na necessidade de eleições no Dilazenze e nofato de que desejava a presidência do bloco, posição aparentemente apoiadapela maior parte da família, que parecia acreditar que, após ter obtido tudo oque obtivera, era chegado o momento de Marinho “abrir espaços” ou “daroportunidade” ao irmão – o que, em linguagem clastreana, pode simplesmentesignificar que ele parecia estar prestes a ter sucesso em um processo de acu-mulação de poder tido como ilegítimo e que era necessário bloquear. Mari-nho aceitou não concorrer à reeleição, mais tarde lançou uma chapa e, final-mente, retirou-a, permitindo a Ney concorrer como candidato único. Eleitono dia 17 de julho de 2004, Ney tomou posse no dia 28 de agosto; eleito nodia 13 de abril do mesmo ano, Jacks Rodrigues fora reempossado no CEACIno dia 13 de maio.

Já as eleições municipais de Ilhéus em 2004 foram bem mais conturba-das do que de costume e sua análise detalhada deve ficar para outra ocasião.Limito-me, pois, a destacar alguns pontos mais relevantes. Dos 117.659 elei-tores, 92.752 compareceram para votar, com uma abstenção de 21,17%. Naseleições proporcionais, houve 1,29% de votos em branco e 2,50% de nulos.O candidato a vereador mais votado obteve 2.220 votos, e o eleito menosvotado (Alcides Kruschewsky, do PMN), 1.082 votos. Nas eleições majoritá-rias, entretanto, a votação do candidato que, supostamente, liderava todas aspesquisas de opinião, Valderico Reis, do PMDB, foi provisoriamente anula-da: embora muito pouca gente soubesse disso antes das eleições,8 sua candi-datura achava-se sub judice em função de aparentes irregularidades com ocandidato a vice-prefeito em sua chapa. Desse modo, inicialmente, os votosdados a ele foram contados, mas não divulgados, à espera de um pronuncia-mento final da Justiça Eleitoral. Mais tarde, divulgou-se que Valderico obte-ve algo em torno de 34.739 votos, bem mais, portanto, que os 22.472 deRuy Carvalho, do PT, o mais votado entre os demais candidatos. Soane Nazaré,do PFL, candidato do prefeito Jabes Ribeiro, não passou dos 9.609 votos eficou em terceiro ou quarto lugar, dependendo do julgamento do casoValderico. Roland Lavigne, do PSDB, ainda obteve quase quatrocentos vo-tos, ainda que, menos de um mês antes do pleito, tenha renunciado à suacandidatura, declarando apoio ao candidato do PT – fato que, de algumaforma, completava a dança de alianças eleitorais em Ilhéus: em 1996, o PT

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ficara com Jabes contra Roland; em 2000, fizera oposição a ambos; e, em 2004,Roland juntou-se ao PT contra Jabes.

No dia 1 de janeiro de 2005, Valderico Reis foi empossado como prefei-to de Ilhéus, mas, ao menos até maio, um recurso movido pelo PT, pedindoa anulação de sua eleições com a conseqüente posse de Ruy Carvalho, conti-nuava a tramitar nos tribunais superiores, em Brasília. Como parte das con-seqüências desses resultados, Marinho Rodrigues deixou o cargo de adminis-trador do Memorial da Cultura Negra de Ilhéus; o próprio Memorial foi, naprática, desativado e, finalmente, despejado por falta de pagamento pelosproprietários da Associação Desportiva 19 de Março; o carnaval de 2005 foirealizado como micareta em abril; os blocos afro receberam pouquíssimosrecursos da Prefeitura e foram obrigados a desfilar reunidos em duas grandeslevadas, perante um público muito pequeno e sem a presença de nenhumaautoridade municipal.

* * *

Os elementos presentes nessa trama – sucesso, orgulho, acusações deciúme e inveja, por um lado; surpresa, indignação, acusações de presunção esoberba, por outro – não apenas conduziram as tensões entre pessoas muitopróximas a um ponto quase insuportável, como desenharam uma possívelsolução para o caso. Em um universo em que as relações familiares são funda-mentais e o candomblé faz parte da vida mais cotidiana, era de fato mais oumenos óbvio que o diagnóstico acerca de tudo o que estava acontecendo sedirigisse para a obscura região do olho grande, dos feitiços e do mau-olhado.

Finalmente, tudo explodiu em uma reunião com o Sambadila, a qualvisava justamente tentar resolver os problemas relativos às apresentações dogrupo no Memorial. Marinho atribuiu os desentendimentos a uma inaceitá-vel lista de exigências apresentada pelos músicos; estes, ao contrário, susten-taram que Marinho teria sido extremamente grosseiro, chegando mesmo atentar “humilhar” um de seus irmãos, que, surpreendentemente, dado seuconhecido temperamento explosivo, não teria reagido, apesar das ofensas.

No sábado subseqüente, Marinho conduziu, no Memorial, uma reuniãodo Dilazenze. Ao final da reunião, de forma totalmente inesperada, entregouuma carta de renúncia à presidência do grupo, e proclamou que dali em dianteos problemas existentes não eram mais de sua alçada e que quem quisesse queos resolvesse. Ney – que no início da reunião sustentara a necessidade de elei-ção de uma nova diretoria sem receber resposta – protestou veementemente,

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argumentando que aquele não era o modo de conduzir uma sucessão. Alguémsugeriu que Marinho constituísse uma comissão eleitoral, da qual ele próprioparticiparia, mas sua resposta foi inteiramente negativa.

A justa compreensão do que se seguiu exige, inicialmente, que lembre-mos que o Dilazenze é um bloco afro ligado não apenas a uma família, mas aum terreiro de candomblé. Mais do que isso, essa ligação é, ela mesma,estabelecida de acordo com regras religiosas. De acordo com Dona Ilza, acriação do bloco resultou, em parte, da vontade dos orixás, e foi ela quemescolheu seu nome, tomado de empréstimo a Hipólito Reis, o africano que –como observei no segundo capítulo – teria sido o responsável pelas primeirasobrigações religiosas do tio e da mãe de Dona Ilza. Um dos mais importantesantepassados do Tombency, o espírito de Hipólito foi consultado no jogo debúzios e permitiu que sua dijina (nome pelo qual o fiel do candomblé passaa ser conhecido após sua iniciação) fosse utilizada a fim de batizar o recém-criado bloco.9 Para isso, uma série de rituais foram realizados, os quais colo-caram o Dilazenze sob a proteção de Xangô (o orixá de Hipólito Reis), asso-ciaram indissoluvelmente os “fundamentos” religiosos do bloco e do terrei-ro10 e estabeleceram que Marinho Rodrigues deveria ser o líder do grupo porsete anos. Uma nova consulta aos búzios fez com que, um ano antes de seencerrar, a “missão” de Marinho, como é chamada e pensada sua liderançano Dilazenze, fosse prolongada por mais sete anos – prazo que deveria encer-rar-se em torno de 2002, mas que em decorrência da prorrogação deveriaterminar apenas em torno de 2008.

Isso significa que Marinho jamais poderia renunciar unilateralmente àpresidência do bloco, uma vez que sua substituição exigia complexos rituaise, principalmente, a permissão dos espíritos dos mortos, principalmente ode Dilazenze Malungo, ou seja, Hipólito Reis. Esse argumento, na verdade,fora utilizado, ao longo dos anos, todas as vezes que Marinho ameaçava, porum motivo ou outro, deixar a liderança do bloco. Por outro lado, ele tam-bém o utilizava quando sentia que alguém tinha pretensões ao cargo – comoacontecia, naquele momento, com Ney. De toda forma, e em certo sentido,tudo era possível, uma vez que as missões atribuídas aos humanos pelas di-vindades e espíritos ancestrais podem ser modificadas, desde que seja obtidoo consentimento dos mortos e dos deuses, bem como realizados os trabalhosrituais apropriados.

A renúncia de Marinho e os conflitos que a teriam originado estavam,portanto, enredados em uma trama em que se misturavam relações familia-

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res, ambições políticas e dimensões de ordem mística. Pouco antes da renún-cia, Eliana Vieira, uma moça que fazia parte do grupo de dança do Dilazenzee que passou a residir na casa dos Rodrigues (desempenhando algumas fun-ções domésticas que se estendiam, por vezes, a trabalhos do terreiro), procu-rou Dona Ilza – que insistiu no fato de que ela não possuía qualquer envol-vimento com os acontecimentos – e, muito preocupada, contou a ela quehavia sonhado com duas coisas muito estranhas. No primeiro sonho, sentiaum cheiro muito forte e acabava descobrindo que, em cima do teto do barra-cão do terreiro, havia restos de animais mortos, cachorro, gato e bode, todospretos, restos envoltos em nuvens de moscas e exalando um terrível odor demorte. No segundo sonho, via a orixá principal de Gleide, Iansã, dançandoe, com sua espada, impedindo o avanço de uma Pombagira que, supostamente,seria sua própria “escrava”; ao mesmo tempo, a Pombagira era açoitada comum cipó de caboclo por um dos ogãs da casa.

Mãe-de-santo muito experiente, Dona Ilza suspeitou a existência de umamensagem atrás desses sonhos. Poucos dias depois, bem cedo pela manhã,quando cochilava após uma noite mal dormida, ouviu por três vezes uma vozque dizia a ela para “ir ao jogo”, ou seja, para jogar os búzios a fim de desco-brir o que estava ocorrendo. Na terceira e última vez, a voz foi acompanhadapelo perfume do charuto que sua mãe costumava fumar. No jogo de búziosque se apressou a lançar, sua cabocla revelou a existência de uma terrível tra-ma destinada a destruir o Dilazenze e, talvez, até mesmo o terreiro e a famíliaRodrigues.

Dona Ilza preferiu não revelar a seus filhos os detalhes da história, limi-tando-se a advertir que o Memorial estava muito “carregado” de influênciasmalignas e que um ritual de “limpeza e descarrego” era estritamente necessá-rio. Logo que chegaram ao local para realizar o rito, todos sentiram a inten-sidade das forças negativas ali presentes, a tal ponto que uma das oficiantes sesentiu muito mal e teve que ser socorrida. Aparentemente, a própria galinhautilizada como veículo para a absorção dessas forças nem mesmo chegou aser sacrificada, tendo morrido antes, em função da quantidade de males queabsorvera.

Essas intervenções sobrenaturais pareciam ter acalmado um pouco oambiente, e Marinho concordou em adiar sua saída da presidência do Dila-zenze para depois do carnaval. Uma semana mais tarde, contudo, uma novalista de exigências apresentada pelos membros do Sambadila provocou outrareação violenta de Marinho, que, mais uma vez, teria sido muito grosseiro

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com um irmão. De volta à Conquista, os dois desentenderam-se diante damãe, e um terceiro irmão proclamou que, na medida em que Marinho vinhatratando a todos como inimigos, a partir daquele momento não deveria maisse considerar seu irmão. Em meio aos gritos, choro e emoção generalizados,a cabocla de Dona Ilza a possuiu e, após entoar cantigas de candomblé quefalam das relações entre irmãos e entre filhos e pais, tratou de explicar a todoso que estava, de fato, acontecendo.

No segundo sonho de Eliana, a Pombagira que se apresentava comoescrava da Iansã de Gleide era, na verdade, um Exu maligno que a orixá e oogã tentavam impedir de se aproximar do grupo e destruí-lo. O primeirosonho, por sua vez, significava que trabalhos e feitiços vinham sendo realiza-dos, e o jogo de búzios, finalmente, revelara a identidade dos envolvidos. Uma“mulher de torso grande” seria a responsável por um terrível feitiço destina-do a destruir o Dilazenze.11 Esta mulher seria, na verdade, uma mãe-de-santoque também participava do movimento afro-cultural, estando, portanto, sem-pre presente nas reuniões e encontros realizados no Memorial. O jogo debúzios revelou ainda que ela teria mesmo lançado um desafio a Dona Ilza:“quero ver a força dessa mãe-de-santo agora que a santa foi embora e que osoutros dois vão se desentender”. A “santa” era Gleide, que, como vimos,mudara-se para o Rio de Janeiro; “os outros dois” eram Marinho e Ney, e ostrês em conjunto representavam os pilares sobre os quais o Dilazenze sealicerçava.

Em outros termos, a mãe-de-santo estaria tentando enfeitiçar os irmãos,jogando-os uns contra os outros, com o objetivo final de destruir o Dilazenze.Objetivo, claro, compartilhado por outros grupos, invejosos do sucesso dobloco e que, portanto, seriam cúmplices da feiticeira, ou, no mínimo, agen-tes do mau-olhado, que, suscitado pela inveja ou olho grande, produziria danoscomparáveis ao dos feitiços. Na verdade, os dois processos não eram apenascumulativos, mas também complementares, e a cabocla advertiu que o diri-gente de um bloco afro, relativamente próximo ao Dilazenze, seria o princi-pal transmissor do feitiço. Mesmo que ele atuasse involuntariamente, suainveja e cobiça o transformavam no veículo ideal para que o feitiço fosse ca-paz de atingir pessoas muito protegidas, já que iniciadas no culto e, além dis-so, filhos carnais de uma poderosa mãe-de-santo.

Além disso, o feitiço teria abalado a “aldeia dos mortos”, pois, como vi-mos, o Dilazenze está ligado aos eguns e de um deles recebeu seu nome.Abalara, também, a própria Dona Ilza, que não estaria mais resistindo aos

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desentendimentos entre os filhos e que, advertiu a cabocla, “só está de péporque eu estou segurando”; no entanto, se todos continuassem a agir damesma forma e a se desentender, o espírito afastar-se-ia e eles poderiam vir aperder a mãe. Antes de promover uma reconciliação entre todos e, principal-mente, de obrigar Ney e Marinho a se abraçarem, a cabocla ainda anunciouque estivera presente na discussão entre ambos e que fora ela que impedira oprimeiro de revidar fisicamente a agressão verbal do segundo. Finalmente,antes de deixar o corpo de Dona Ilza, o espírito prescreveu alguns rituais aserem realizados e, em especial, alguns comportamentos a serem adotados ouevitados, sendo que o principal deles deveria ser a evitação do transmissor dofeitiço. Evitação a ser efetuada com cuidado, pois, afinal, este não era inten-cionalmente responsável pelo mal que vinha mais transmitindo do que cau-sando. De toda forma, seria importante reduzir as relações com ele ao míni-mo e, principalmente, evitar ficar de costas para ele. Alguém lembrou, então,que o transmissor não apenas estava presente à violenta discussão entre Neye Marinho, como estava constantemente seguindo o último em suas ativida-des no Memorial, ou seja, “vivia nas suas costas”.

A emocionada reconciliação dos irmãos diante da cabocla, assim comoos rituais e comportamentos por ela prescritos, certamente serviram para ali-viar um pouco a tensão quase insuportável que se estava vivendo, mas nãoforam suficientes para acabar com ela ou com suas causas objetivas. A pró-pria Dona Ilza, aliás, advertira que as divindades e espíritos só podem prepa-rar o terreno para o comportamento correto dos homens, mas que, se estesnão agirem adequadamente, nada pode ser resolvido. Em outros termos, creioque a demonstração etnográfica de Evans-Pritchard – segundo a qual a bru-xaria ou a feitiçaria convivem perfeitamente com as mais corriqueiras noçõesde causalidade física – pode, sem dúvida, ser estendida para determinaçõesde ordem social ou psicológica. Afinal, ninguém imaginava realmente que ofeitiço lançado contra o Dilazenze fosse a causa de sentimentos e ações que,na verdade, ele se limitava a agregar, amplificar e direcionar. O que significa,também, que o fato de saber que uma pessoa está agindo de determinado modoporque foi enfeitiçada não anula, necessariamente, as desconfianças em relação aela, nem funciona, automaticamente, como prova de sua inocência última.

O Dilazenze e, até certo ponto, o Tombency e os Rodrigues, pareciam,assim, ameaçados tanto por uma série de manipulações intencionais efetuadaspor uma agente maligna consciente, quanto por forças negativas emanadas,involuntariamente, por pessoas que, na verdade, invejavam o sucesso do blo-

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co. Em outros termos, tudo se passava como se feitiçaria e bruxaria – no sen-tido clássico definido por Evans-Pritchard a partir das práticas e concepçõeszande – confluíssem para ameaçar o grupo, o terreiro e a família.

Na verdade, entretanto, a situação era ainda um pouco mais complexa.Havia, certamente, uma feiticeira; e havia, igualmente, aqueles que conduziamseus feitiços até um alvo difícil de ser atingido. De fato, como observou Favret-Saada (1977: 219-226), esse processo pelo qual um feitiço é conduzido atésuas vítimas pode ser obra do próprio feiticeiro ou de um condutor “invo-luntário” (idem: 222) ou mesmo “rebelde” (idem: 225). No caso por ela estu-dado no Bocage francês, o papel de condutor parece claramente determina-do pelas relações de parentesco e pela proximidade familiar daquele que con-duz em relação ao feiticeiro, o primeiro sendo, em geral, filho do segundo edevendo sofrer graves conseqüências quando tenta furtar-se à missão atribu-ída pelo pai. Em Ilhéus (e talvez em outras partes), contudo, o papel de con-dutor (mesmo involuntário ou rebelde – ainda que esse último caso jamaistenha surgido empiricamente) parece, ao contrário, depender de qualidadesintrínsecas aos sentimentos experimentados pelo condutor do feitiço em re-lação a seu alvo. Mais precisamente, é sempre a inveja que pode predispormesmo o mais bem-intencionado dos amigos a servir de transmissor de for-ças malignas e destrutivas. Se acrescentarmos a isso o fato de que a inveja (ouo “olho grande”) tende a ser concebida como um sentimento involuntário, eque pode, até certo ponto, produzir por si só efeitos negativos (tratando-se,então, do “mau-olhado”), poderíamos concluir que, de fato, uma modalida-de de feitiçaria conjugava-se com determinada variante de bruxaria a fim deatacar aqueles cujo sucesso se deseja, ao mesmo tempo, impedir e alcançar.

Em outros termos, a inveja parece ser o mínimo denominador comumde uma série de práticas que vão da pura cobiça até o feitiço mais explícito,passando pela hostilidade nas relações pessoais, pelo mau-olhado e pela bru-xaria. Além disso, contudo, a inveja permite seguir uma pista que pode con-duzir a uma relação mais geral entre domínios usualmente concebidos comodistintos, mais precisamente, parentesco, religião e política. Para isso, é pre-ciso inicialmente, e mais uma vez, seguir Jeanne Favret-Saada e admitir que oque está em jogo na feitiçaria não é, nem de longe, a racionalidade ouirracionalidade da situação ou dos envolvidos, mas “essas situações nas quaisnão há lugar para dois” (idem: 212).12

Em seguida, devemos admitir que a inveja é, sem dúvida, o sentimentoadequado a essas situações, uma vez que nelas, por definição, é o fato de que

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ocupo uma posição de desejo que impede outrem de ocupá-la. Além disso, ainveja também parece inequivocamente relacionada ao que sempre consti-tuiu um tema clássico das investigações sobre bruxaria, a saber, que esta é uma“explicação do infortúnio” – pois o fato de alguém ocupar uma posição quedesejo, impedindo-me, portanto, de fazê-lo, pode ser um sinal de que mobi-lizou a bruxaria, a feitiçaria, ou ambas, a fim de me prejudicar.13

Lembremos que, no caso específico da bruxaria, tal qual conceptualizadapela teoria etnográfica elaborada por Evans-Pritchard a partir das práticas econcepções zande, o ponto central dessa explicação é a possibilidade deculpabilizar um indivíduo por algum mal, mesmo quando os atos danososque provoca não dependem de sua vontade. Em outros termos, se a causaúltima dos infortúnios pode ser localizada no sistema impessoal da bruxaria,sua causa eficiente, sem dúvida, são alguns indivíduos muito concretos, úni-cos sobre os quais controles e sanções podem incidir – uma vez que a bruxa-ria enquanto tal está fora do alcance dos homens. Isso significa, por outrolado, que os ‘culpados’ podem não apenas se dizer inocentes por não terempraticado os atos de que são acusados como até mesmo admitir seu papel,mas, ao menos em princípio, argumentar que suas ações dependem de forçase de um sistema que eles mesmos não são capazes de controlar.

Finalmente, se entendermos a inveja e a feitiçaria na chave proposta porFavret-Saada, compreenderemos bem porque tanto uma quanto a outra searticulam tão freqüentemente com a política. Afinal, esta última é, sem dúvi-da, uma dimensão ou campo em que, quase sempre, um protagonista devenecessariamente eliminar outros a fim de ocupar os poucos espaços disponí-veis. Concepção que talvez seja ainda mais generalizada. Lembro-me bem doconselho de Seu Malandrinho, um dos espíritos que possuem Gilvan, quan-do pedi a ele ajuda para tomar algumas decisões, bem como coragem parasegui-las: “é só você se concentrar no que você quer! Mesmo que você tenhaque passar por cima dos outros para conseguir o que quer!”

Nesse sentido, seria possível generalizar a transposição do esquema dabruxaria operada por Michael Herzfeld (1982: 651) no intuito de analisarantropologicamente as burocracias estatais – que também funcionariam, su-gere o autor, como possível “explicação do infortúnio”. Como dizia um ve-lho habitante das margens do Saara logo após ter sua plantação destruída porelefantes selvagens, “contra as tempestades de areia, os elefantes e o Estado sóDeus pode nos proteger”.14 Porque talvez seja a política em geral, no sentidonativo do termo, que pode ser concebida de acordo com tal esquema. Pois

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esta não é um enorme sistema de forças impessoais que pode ser responsabi-lizado pelos piores atos cometidos pelos humanos? E que, fora do alcance dasações ordinárias, faz com que a indignação ou a cólera só possam ser dirigidaspara os políticos de carne e osso? Mas que, ao mesmo tempo, e por outro lado,permite que tudo o que esses políticos façam seja, no limite, tolerável, umavez que, afinal de contas, não são os responsáveis por seus atos e que é apenas“a política” que os obriga a agir dessa forma?

Como tantos outros pesquisadores em outros lugares, convivi, em Ilhéus,com essas múltiplas misturas de crença com desconfiança – no sistema, em simesmo e nas pessoas –, misturas que parecem constituir um dos cernes daexperiência vivida da política, e que são cuidadosamente deixadas de ladoquando sobre ela se reflete ou se legisla. De toda forma, se este livro terminaaqui, a história com a qual se encerra está longe de ter acabado. Pode bem serque as tensões se agravem e desemboquem, tardia e algo paradoxalmente, emum processo de desmoronamento generalizado, espécie de transformaçãodaquele anunciado há mais de trinta anos, quando Dona Ilza, arriscando apreservação de sua própria família, aceitou a missão de tornar-se mãe-de-santo.Por outro lado, como já aconteceu em tantas outras ocasiões, pode bem serque as relações, familiares e outras, se recomponham, de tal forma que osRodrigues, o Dilazenze e o Tombency continuem a ser o que sempre foram,um desses territórios existenciais onde a vida vale a pena ser vivida.

NOTAS

1 Ver Apêndice III.2 Na verdade, um bloco afro, como um terreiro de candomblé (e como muita coisa no mun-do), é uma mistura de tudo isso: missão, vocação, cultura ou religião, arte, exibição, meio desociabilidade e modo de ganhar algum dinheiro.3 A opinião de Marinho é compartilhada pelo mundo afora, e aparece traduzida em inúme-ros aforismos que traduzem o caráter intrinsecamente maligno e corrupto da política: “quemvence é custoso não ficar com cara de demônio” – no sertão de Minas Gerais (Chaves 2003:59); “quem vai para o inferno torna-se o demônio” – na Índia (Banerjee 1999); “alguns co-mem enquanto outros votam” – em Creta (Herzfeld 1985: 111); “vote cedo, vote muito” –na Irlanda; e assim por diante.4 No candomblé, o sucessor de uma mãe-de-santo falecida só é efetivamente conhecido quan-do, algum tempo após sua morte, os búzios são jogados e, por meio deles, os orixás comuni-cam aos homens sua decisão. O que não impede, evidentemente, que, com muita antecedên-cia, todos especulem discretamente sobre o futuro.

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5 Como escreveu Heredia (1996: 68), “A resistência da comunidade a ter candidatos própriosfaz sentido, na medida em que chamar alguém para ser político é, de fato, chamá-lo para serde fora da comunidade. Dito de outro modo, faz sentido porque trazendo-se a política – queé exterior a – para dentro da comunidade, são introduzidas relações de desigualdade entreiguais. Alguém eleito, automaticamente, passa a ser de fora, isto é, deixa de ser um membroa mais, tornando-se uma perda para a referida comunidade. O fato de um indivíduo votarem um parente ou vizinho poderia ser visto, no esquema da vida cotidiana, como apenas ummomento da relação que os une, como uma retribuição de retribuição de favores por meiodo voto. No entanto, como vimos, retribuir com o voto significa algo diferente. Ao final,quem o deu estará contribuindo para colocar seu vizinho ou parente em uma condição maisalta na hierarquia social e de poder, portanto, para que o equilíbrio da relação até então mantidanão se restabeleça”.6 Como observou Kuschnir (2000a: 17-19), os candidatos tendem sempre a apresentar suascandidaturas como algo que não depende de suas vontades, como um “dever” ou “sacrifício”,imposto pelos eleitores ou partidos – o que reforça a idéia de que o candidato pertence adeterminada coletividade, e que deve, portanto, a ela ser fiel.7 Fundação municipal que pretende “relacionar educação ambiental, ecologia e a memóriada cultura regional, desenvolvimento econômico sustentável, recursos do mar e da mata, gestãoambiental urbana e, finalmente, cacau como política de preservação” (ver Menezes 1998:cap. 2).8 Uma rádio e um jornal locais que divulgaram as informações foram suspensos pela JustiçaEleitoral.9 Dona Ilza compôs uma música, sempre cantada nos ensaios do bloco:

“Numa cidade da África tinha um babalaôDilazenze Malungo, força para iaôUm dia Zambi chamouEm um egum transformouDilazenze Malungo, força para iaôÊ muzenza, iaô, ê muzenza, iaô”.

10 Os “fundamentos” de um terreiro consistem, basicamente, nos objetos materiais que con-têm a força das divindades aos quais estão ligados, ou, para ser mais preciso, no conjuntoformado pelos objetos e por essas forças. Encontram-se, em geral, enterrados no centro dobarracão. O Dilazenze possui, também, seus “fundamentos”, que estão enterrados ao ladodaqueles do Tombency. Ver Apêndice VIII.11 “Torso” é o nome que se dá, no candomblé de Ilhéus, ao turbante ou trunfa usada poralgumas adeptas do candomblé e pelas mulheres que se vestem de “baianas”, seja para venderacarajés e outras comidas típicas, seja para participar de desfiles carnavalescos ou similares.12 Vale a pena citar, por extenso, o belo trecho em que a autora chega a essa conclusão: “Quandoalguém se pergunta como, no século XX, um indivíduo normal, isto é, nutrido pela culturadas Luzes, pode se deixar tomar pelo discurso da feitiçaria (esta é uma questão que, comotodo mundo, eu me coloquei), não há nenhuma chance de resposta se apenas se leva em contaa irracionalidade desse discurso. Mais exatamente, uma única resposta é possível, a qual con-

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siste em relegar ao estatuto de atrasados, imbecis ou loucos aqueles que se deixam por eletomar. Se, ao contrário, damo-nos conta de que se trata, na feitiçaria, dessas situações nasquais não há lugar para dois, ou ainda, situações nas quais se deve matar ou morrer – a ques-tão da racionalidade do sistema sendo relegada ao segundo plano –, compreende-se melhorque qualquer um possa por ele ser tomado” (Favret-Saada 1977: 212).13 Se, no Bocage, a conexão entre feitiçaria e inveja – “no discurso local, o feiticeiro é, funda-mentalmente, um ser ‘invejoso’” (Favret-Saada 1977: 343) – depende de uma concepção dofeiticeiro como alguém dotado de uma força incontrolável – seu “domínio é perpetuamenteinsuficiente para a utilização da totalidade de sua força” (ibidem) –, o mesmo não pareceocorrer em Ilhéus, onde a inveja surge antes como uma força primária.14 Agradeço a Peter Gow ter me revelado esse magnífico aforismo, parte, sem dúvida, de umadessas belas filosofias políticas e da natureza que encontramos em tantas sociedades contra oEstado.

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APÊNDICES

Apêndice I – Glossário

ADRIANA RIBEIRO – Esposa do ex-prefeito Jabes Ribeiro, participou, ainda que nãoformalmente, da administração da Fundação Cultural de Ilhéus (Fundaci) entre 1997e 2004.

ALCIDES KRUSCHEWSKY – Candidato a vereador eleito em 2004 pelo PMN, com 1.082votos. Concentrou parte de sua campanha junto aos blocos afro e terreiros de can-domblé. Utilizava o slogan “100% Alcides”.

ANTÔNIO CARLOS MAGALHÃES – Talvez o mais conhecido político baiano, tendo sido,a partir do final da década de 1950 e em várias ocasiões, prefeito de Salvador, gover-nador do Estado, deputado, senador e ministro. Renunciou à cadeira de senadorem 2001, visando evitar uma cassação resultante de um processo envolvendo o queficou conhecido como “escândalo do painel eletrônico”, e reelegeu-se em 2002.Exerce, ainda, grande influência na política de praticamente todos os municípiosbaianos.

ANTÔNIO OLÍMPIO REHEM DA SILVA – Ex-prefeito de Ilhéus entre 1977 e 1982 (peloMDB) e, mais tarde, entre 1993 e 1996 (pelo PFL).

ASSOCIAÇÃO DESPORTIVA 19 DE MARÇO – Localizada na rua de mesmo nome, próxi-ma ao centro de Ilhéus, foi fundada na década de 1960 e continua sendo proprieda-de dos membros da família negra que a criou e que ainda a administra. Clube dedominó e centro de reuniões, promove bailes, serestas e feijoadas. Em maio de 2000,a parte térrea de sua sede foi arrendada pela Prefeitura de Ilhéus a fim de lá instalaro recém-criado Memorial da Cultura Negra de Ilhéus.

BEBETO (ADALBERTO) SOUZA GALVÃO – Militante negro do PCdoB, ligado a assenta-mentos rurais e sindicatos urbanos, foi vereador entre 1997 e 2000, tendo sido der-rotado na tentativa de reeleição.

CEAC OU CEACI (Conselho das Entidades Afro-Culturais de Ilhéus) – Conselhoque reúne os grupos afro-culturais de Ilhéus, congregando, hoje, quinze entidades.Fundado em 1989, foi recriado em 1992 e, mais tarde, em 1997, continuando afuncionar como canal de contato entre os grupos negros e a administração municipal.

CENTRO AFRO-CUTURAL DE ILHÉUS – Projeto concebido durante o processo eleitoralde 1992, que consistia na construção de um prédio destinado a abrigar, expor e ven-der a cultura afro local. Na campanha eleitoral de 1992, a promessa de sua constru-

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ção teria levado os grupos afro-culturais a apoiarem a candidatura de AntônioOlímpio a prefeito.

CEPLAC (COMISSÃO EXECUTIVA DO PLANO DA LAVOURA CACAUEIRA) – Órgão do Mi-nistério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, foi criada em 1957 para pesquisae desenvolvimento da economia cacaueira.

CÉSAR BORGES – Político baiano alinhado a Antônio Carlos Magalhães, foi governa-dor do Estado e senador, tendo visitado Ilhéus, eleitoralmente, em algumas ocasiões.

COSME ARAÚJO – Advogado e político negro ilheense, vizinho da família Rodrigues.Foi vereador entre 1993 e 2000, e candidato a deputado estadual e prefeito em dife-rentes ocasiões.

DINO ROCHA – Funcionário da Prefeitura e membro do Dilazenze (do qual foi dire-tor de eventos), foi candidato a vereador em 1996.

ELÍCIO GOMES – Um dos fundadores do bloco afro Gangas, em 1986, converteu-se,mais tarde, a uma denominação evangélica, deixando o bloco e se afastando domovimento afro-cultural. Foi candidato derrotado a vereador em 1992, elegeu-seem 2000 e foi novamente derrotado em 2004.

FÁBIO SOUTO – Político baiano alinhado a Antônio Carlos Magalhães; filho de Pau-lo Souto, foi deputado estadual e federal; sua candidatura à Prefeitura de Ilhéus foiaventada em mais de uma ocasião, mas jamais se concretizou.

GERSON MARQUES – Técnico de turismo, formado no Rio de Janeiro, trabalhou nosetor turístico da Prefeitura em diversas ocasiões. Em 1996, foi um dos assessores deRúbia Carvalho; em 2000, apoiou Jabes Ribeiro e, em 2004, Ruy Carvalho, do PT.É cunhado de Jaco Santana e tem boas relações com o movimento afro-cultural deIlhéus.

GILDO PINTO – Foi presidente do sindicato dos portuários de Ilhéus, do qual é fun-cionário. Foi membro do Movimento Ilhéus Corações, tendo ajudado a fundar obloco afro D’Logun em 1992. Derrotado nas eleições proporcionais desse ano, ele-geu-se em 1996, chegando à presidência da Câmara Municipal, mas não conseguiua reeleição em 2000. Foi candidato a deputado estadual em 1998, com o apoio for-mal de sete blocos afro.

GILMAR RODRIGUES SANTOS – Um dos dez filhos homens de Dona Ilza Rodrigues, éo principal ogã do Tombency e foi vice-presidente e presidente da primeira versãodo CEACI, em 1990. Depois disso, afastou-se do movimento afro-cultural, partici-pando apenas de algumas atividades do Dilazenze. Trabalha, por vezes, como caboeleitoral de diferentes candidatos locais.

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GILVAN RODRIGUES SANTOS – Um dos dez filhos homens de Dona Ilza Rodrigues, étido como seu provável sucessor à frente do Tombency. Grande conhecedor do can-domblé, participa, também, da política, desde 1978, quando foi trabalhar na Pre-feitura de Ilhéus, onde permaneceu até 1987. Em 1988, quando ocupava o cargo derepresentante da Federação Baiana de Cultos Afro-Brasileiros em Ilhéus, candidatou-se, sem sucesso à Câmara Municipal. Voltou a se candidatar em diversas ocasiões,mas nunca teve uma votação tão boa quanto a primeira. Não obstante, trabalha re-gularmente como cabo eleitoral de diferentes candidatos locais e estaduais. Nuncaesteve muito próximo do movimento afro-cultural, mas é o atual vice-presidente doDilazenze.

GLEIDE RODRIGUES SANTOS DE SOUZA (MENINA G’LEU) – Neta de Dona Ilza Rodri-gues, filha-de-santo do Tombency, coreógrafa e principal bailarina do Dilazenze. Mu-dou-se para o Rio de Janeiro em 2003.

GUMERCINDO TAVARES – De uma tradicional família cacaueira ilheense, tentou sercandidato a prefeito de Ilhéus em 1996 pelo Partido Trabalhista Brasileiro. Quandoo grupo de Antônio Carlos Magalhães indicou outro candidato, afastou-se e, apa-rentemente, nunca mais participou da política na cidade.

GURITA (ALZIMÁRIO) BELMONTE VIEIRA – Político negro, de cerca de 35 anos, comcurso superior de educação física, foi um dos fundadores do Partido dos Trabalha-dores em Ilhéus, tendo, contudo, deixado o partido em 1995 para se candidatar avereador pelo PTdoB em 1996, vinculando-se ao grupo político de Rúbia Carvalhoe, por meio deste, a Jabes Ribeiro. Não se elegeu, mas foi nomeado para o cargo dechefe da Divisão de Esportes da Secretaria Municipal de Educação de Ilhéus, queocupou até recentemente. Voltou a se candidatar a vereador, sem sucesso, em 2000e 2004, sempre tentando se apresentar como representante do movimento afro-cul-tural da cidade.

ILHEUSTUR – Órgão municipal encarregado de gerir o turismo na cidade de Ilhéus.

JABES RIBEIRO – Três vezes prefeito de Ilhéus (de 1983 a 1988, e de 1997 a 2004),secretário estadual do Trabalho no governo Waldir Pires (entre 1989 e 1990), depu-tado federal entre 1991 e 1994, é, possivelmente, o mais importante político ilheensevivo. Foi do MDB autêntico, depois do PMDB, PSDB (tendo, contudo, apoiado acandidatura Lula em 1994) e, finalmente, do PFL, alinhando-se, em 1998, ao gru-po de Antônio Carlos Magalhães, do qual sempre fora adversário.

JACKS RODRIGUES – Dirigente do bloco afro D’Logun, foi lançado candidato à pre-sidência do CEAC por Marinho Rodrigues em 2001, tendo, logo após a posse, rom-pido com ele. Um dos adeptos da candidatura de Alcides Kruschewsky em 2004.Foi reeleito para a presidência do CEAC em 2004.

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JACO (JAMILTON GALDINO) SANTANA – Artista plástico (especializado em móveis eco-lógicos) nascido em Caravelas, onde participou do movimento cultural e da seçãolocal do Partido dos Trabalhadores, mudou-se para Ilhéus em 1996, estabelecendorelações de amizade e participação com o movimento afro-cultural da cidade e, prin-cipalmente, com o Dilazenze. É cunhado de Gerson Marques.

JOABES RIBEIRO – Irmão do ex-prefeito Jabes Ribeiro, é vereador desde 1996, tendosido, o mais votado nas eleições municipais de 2000. Foi candidato a deputado es-tadual derrotado em 2002 e pré-candidato à Prefeitura em 1996, sendo substituídopelo irmão alguns meses antes da eleições.

JOÃO CÉSAR – Militante negro que transita entre o MNU e o movimento afro-cultu-ral, foi candidato a vereador em 1996, pelo PDT, e em 2004, pelo PSTU.

JOÃO LÍRIO – Político do grupo de Jabes Ribeiro, foi seu secretário municipal, alémde deputado estadual e prefeito de Ilhéus entre 1989 e 1992.

LUIZ CARILO – Professor de balé clássico e de teatro, foi um dos fundadores, em 1981,do primeiro bloco afro de Ilhéus, o Lê-Guê DePá, do qual participava boa parte dafamília Rodrigues. A partir do final da década de 1980, afastou-se completamentedo movimento negro, tornando-se assessor do Sebrae e passando a residir fora deIlhéus. Em 2002, reapareceu como candidato ao cargo de administrador do Memo-rial da Cultura Negra de Ilhéus.

MARCELINA PLÁCIDA (DONA MAÇU) – Filha-de-santo da fundadora do terreiro Tom-bency em Salvador (a famosa Maria Jenoveva do Bonfim, ou Maria Neném), é amãe-de-santo de Dona Izabel Rodrigues (Dona Roxa), Dona Ilza Rodrigues (MãeMucalê) e de parte dos filhos carnais desta última.

MARIA LÚCIA MAGALHÃES BATISTA (NÊGA LÚCIA) – Ex-integrante do Dilazenze, con-correu algumas vezes ao cargo de vereador, apresentando-se sempre como membrodo bloco e produtora de cultura negra. Nunca conseguiu se eleger, mas obteve al-guns pequenos e temporários empregos junto a políticos locais.

MARINHO (GILMÁRIO) RODRIGUES SANTOS – Um dos dez filhos homens de Dona IlzaRodrigues, é ogã do Tombency, foi presidente do Grupo Cultural Dilazenze entre1988 e 2004, presidente do CEAC entre 1997 e 2001, administrador do Memorialda Cultura Negra de Ilhéus a partir de 2002, e é sem dúvida, o mais conhecido nomedo movimento afro-cultural de Ilhéus.

MÁRIO GUSMÃO – Grande ator negro, bailarino e animador cultural baiano, mem-bro do Ilê Aiyê e do Olodum, morou em Ilhéus entre 1982 e 1983, tendo sido umdos iniciadores do movimento afro-cultural local.

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MEMORIAL DA CULTURA NEGRA DE ILHÉUS – Prolongamento e substituto do CentroAfro-Cutural de Ilhéus, foi inaugurado em 2000 – e reinaugurado em diversas oca-siões –, funcionando no prédio da Associação Desportiva 19 de Março.

MIRINHO (ALDIRCEMIRO) DUARTE LUZ – Estivador, fundador do bloco afro D’Logun,foi o segundo presidente do CEACI. Articulou a aproximação dos blocos afro coma candidatura a prefeito de Ronaldo Santana e Antônio Olímpio, em 1996, tendoele próprio obtido a vaga de primeiro suplente de vereador do seu partido. Com aposse de Antônio Olímpio, em 1993, foi nomeado secretário de gabinete do vice-prefeito Ronaldo Santana, e assumiu, algumas vezes a vaga de vereador.

MNU (MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO) – Movimento criado em São Paulo, em1978, a fim de servir de pólo unificador dos vários grupos negros existentes no Brasil– ambição que nunca chegou a se realizar. Em Ilhéus, as tentativas de estabelecimentodo MNU remontam à década de 1980, mas nunca foram inteiramente bem sucedidas.

MOACIR PINHO – Militante do MNU e de movimentos de luta pela terra, nasceu emSalvador e mudou-se para Ilhéus em 1993, ligando-se, também, ao PT. Foi gerentede projetos da Fundaci até a ruptura entre o PT e o prefeito Jabes Ribeiro, e partici-pou da organização de diversas atividades tidas como “culturais”. Estudou Filosofiana Universidade Estadual de Santa Cruz e, hoje, organiza um assentamento na zonarural do município de Ilhéus.

NEY (GILSONEI) RODRIGUES SANTOS – Um dos dez filhos homens de Dona Ilza Rodri-gues, grande percussionista e mestre de bateria do Dilazenze, foi vice-presidente dogrupo na gestão de Marinho Rodrigues e é seu atual presidente. Foi, também vice-presidente de Jacks Rodrigues no CEAC e candidato por ele derrotado nas últimaseleições para o Conselho.

PAULO CESAR DE MENEZES (CESAR) – Cozinheiro da Marinha Mercante, foi o funda-dor e é o presidente do Bloco Afro Rastafiry; foi, também, vice-presidente do CEACdurante a gestão de Marinho Rodrigues.

PAULO RODRIGUES DOS SANTOS – Historiador, ex-mestrando em antropologia sociale mestre em geografia humana, deixou Ilhéus muito novo, retornando apenas em1996. Auxiliou, em seu início, a pesquisa que deu origem a este livro; participou, dealguma forma, do movimento afro-cultural até romper com seus membros. É res-ponsável pela coleta de muitas informações aqui utilizadas.

PAULO SOUTO – Político baiano alinhado a Antônio Carlos Magalhães, foi governa-dor do Estado e senador, tendo visitado Ilhéus, eleitoralmente, em algumas ocasiões.Além disso, possui vínculos familiares na região cacaueira, tendo aí residido na ju-ventude. É pai de Fábio Souto.

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PEDRO FARIAS – Pai-de-santo muito famoso em Ilhéus, comandava o Terreiro de Odé.Além disso, foi o fundador do Afoxé Filhos da África, que desfilou no carnaval ilheensede 1950 a 1970. Foi, também, chefe de gabinete de diversos prefeitos em Ilhéus.Morreu, assassinado, em 2002.

ROLAND LAVIGNE – Político originário de Una, cidade próxima de Ilhéus, foi prefei-to desse município, bem como de Camacan. Elegeu-se deputado estadual, em 1990,e federal, em 1994, não tendo conseguido a reeleição em 2002. Foi candidato a pre-feito de Ilhéus em 1996, pelo PL, em 2000, pelo PFL, e em 2004, pelo PSDB (apósrápida passagem pelo PMDB), tendo renunciado à candidatura algumas semanasantes do pleito.

RONALDO SANTANA – Funcionário administrativo do porto de Ilhéus e sociólogo, foilançado como candidato a prefeito de Ilhéus, em 1992, pelo Movimento IlhéusCorações. Obteve o apoio do movimento afro-cultural a quem prometeu a constru-ção do Centro Afro-Cutural de Ilhéus. Acabou aceitando o posto de vice na vito-riosa chapa de Antônio Olímpio. Foi nomeado para a Secretaria Municipal de Agri-cultura, Indústria e Comércio, denunciado como traidor pelo movimento negro e,após 1997, parece ter se afastado da política.

RÚBIA CARVALHO – Filha e esposa de ricos comerciantes de cacau, candidatou-se àAssembléia Legislativa em 1994 e tentou ser candidata à Prefeitura em 1996. Afas-tada da competição por manobra que atribuiu ao grupo político de Antônio CarlosMagalhães, passou a apoiar a candidatura vitoriosa de Jabes Ribeiro. Foi nomeadapara a Secretaria de Ação Social e concorreu, sem sucesso, à Câmara Federal, em1998, e à Câmara Municipal, em 2000. Presidente do PSDB local a partir de 2001,apoiou a abortada candidatura de Roland Lavigne à Prefeitura da cidade em 2004.

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Apêndice II

Entrevista enviada por escrito, em 17 de agosto de 2000, ao Jornal da Cida-dania, da ONG Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase),que havia encaminhado, por correio eletrônico, algumas questões relativas à“participação política dos jovens”.

– “Olá, Marcio, como combinamos, estas são as perguntas. A entrevista é parauma matéria do Jornal da Cidadania, publicado pelo Ibase. Obrigado”

Acho que seria legal dizer uma coisa preliminarmente. Eu pesquiso eleições epolítica no Brasil desde 1995, mas o faço como antropólogo. Isso quer dizerque minha questão central é descobrir o que as pessoas pensam e têm a dizersobre esses assuntos; e eu o faço sem supor que existam modelos ideais aos quaiseu ou as pessoas nos devamos referir.Em segundo lugar, como a pesquisa antropológica é basicamente qualitativa einteressada nas variações e diferenças, é muito difícil raciocinar em termos decoisas como “o brasileiro”, “a democracia” etc. Eu creio que essas coisas só têmsentido contextual.

1. O brasileiro namora com a ditadura? Ele confia nas instituições democráticas?

A democracia burguesa opera basicamente por meio de um jogo contínuo departicipação e exclusão. As pessoas são chamadas a participar, mas não se per-mite que essa participação ultrapasse um certo limiar. Penso que, quando al-gumas pessoas exprimem uma certa nostalgia pela “ditadura”, o que se estásustentando é que, já que a participação é mesmo uma farsa, é melhor que elaseja eliminada.A “confiança nas instituições democráticas” também depende, creio, do graude participação e de visibilidade que essas instituições se permitem. Observeque não estou dizendo que ditadura e democracia são a mesma coisa, ou queas instituições ditas democráticas na verdade não o são. Busco apenas traduzir oque os agentes sociais exprimem em diversos contextos.

2. A democracia está consolidada no Brasil?

Pergunta impossível de responder. O que é, exatamente, democracia? E o queé exatamente uma democracia consolidada? Se se pensa em democracia comoo oposto de um governo autoritário ou mesmo ditatorial, acho que não corre-mos muitos riscos. Aparentemente, as camadas dominantes perceberam que

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vale mais a pena manter a dominação com o jogo democrático do que sem ele.Por outro lado, se se entender por democracia um espaço de participação efe-tiva, acho que não apenas ela não está consolidada como está em regressão. Arestrição da democracia ao jogo eleitoral e partidário, e o poder cada vez maiorda tecnocracia são a prova disso.

3. Como poderíamos definir, de maneira geral, o comportamento dos jovensnesta eleição: estão desinteressados ou, ao contrário, estão expressando, comdesencanto e descrença, sua reação ao atual jogo político?

Justamente, não podemos definir nada de maneira geral. Há jovens que bus-cam participar do processo eleitoral (por diferentes motivos, aliás), há jovensque não estão interessados nele, e há jovens cujo desinteresse é uma reação aosprocessos de fechamento que mencionei acima. Nesse sentido, não há qual-quer especificidade dos jovens. Aliás, o interesse pela política não é absoluta-mente um sentimento natural e espontâneo.

4. Se a descrença dos jovens existe, quais os motivos?

A descrença dos jovens é a mesma dos mais velhos. E não é preciso muito es-forço para entender por que ela existe. O surpreendente é que alguns não sedeixem levar por ela. De toda forma, estamos o tempo todo oscilando entrecrença e descrença, e basta que algumas variáveis se alterem para que pareçaque os jovens decidiram participar da política (como no impeachment deCollor, por exemplo).

5. Por que a indignação dos jovens com o jogo político não se transforma emação em vez de revolta passiva? (Concorda com esta passividade?)

Os chamados regimes democráticos sempre operaram com essa lógica: a in-dignação e a resistência devem ser incorporadas ao sistema. Não penso que osjovens sejam “passivos” ou “descrentes”; penso que sua relativa “ausência” dojogo político reflete antes a insuficiência das atuais instituições para dar contado que se passa no mundo real.

6. O brasileiro convive bem com a diferença, com as minorias (os jovens,especificamente)?

Observe como a pergunta é engraçada: “o brasileiro” (uma unidade puramen-te abstrata que oculta justamente qualquer diferença) convive bem com “a di-ferença” (reduzida assim a fenômeno secundário em relação a uma unidadeprimeira)? Não dá para responder.

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7. O brasileiro considera mais fácil contar com as relações pessoais, oapadrinhamento, do que com o jogo político, não? Por quê? Memória dacolonização patriarcal e do populismo político (Vargas, Jânio etc.)?

Não concordo com a premissa. Ela supõe que o “jogo político” se opõe neces-sariamente às “relações pessoais” e ao “apadrinhamento”, mas isso não é verda-de: basta observar a política em qualquer lugar do mundo para se dar conta deque essas coisas estão inteiramente imbricadas, e que sua separação é apenasum modelo ideal (no duplo sentido da palavra), que cumpre funções ideológi-cas importantes.

8. A participação política da população é pequena. Isso é uma relação estru-tural ou circunstancial?

O que isso quer dizer? Baixa participação eleitoral? Baixa participação parti-dária? Desinteresse geral na “política”? A relação, mais que circunstancial, écontextual.

9. A ausência dos direitos sociais no Brasil (educação, saúde e trabalho, porexemplo) e civis (integridade física, igualdade perante a lei, liberdade de pen-samento) pode estar causando o desinteresse pela política?

Um antropólogo holandês que conheço me disse que ninguém se interessa porpolítica na Holanda porque os direitos sociais e civis já estão todos garantidos.Portanto, não haveria muito o que fazer politicamente. Que a situação inversapossa ser citada como causa do mesmo fenômeno prova, creio, que a relaçãonão se sustenta.

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Apêndice III

Colunas de Marinho Rodrigues no Diário de Ilhéus(outubro-novembro de 2003)

Diário de Ilhéus, 21 de outubro de 2003

MEMORIAL DA CULTURA NEGRA

Com o objetivo de preservar, valorizar e divulgar a cultura negra na so-ciedade ilheense, e visando agregar todos os afro-descendentes na luta contrao racismo e suas mais diversas formas de discriminação, o Memorial da Cul-tura Negra foi entregue aos grupos afro de Ilhéus, através do Conselho dasEntidades Afro-Culturais (CEAC), pelo Prefeito Jabes Ribeiro no dia 28 dejunho de 2002, como resultado de uma longa luta que remonta há mais dedez anos.

A proposta central do Memorial é desenvolver projetos educacionais,político-culturais e carnavalescos, buscando resgatar a auto-estima da popu-lação negra e elevar o nível de sua consciência crítica. Também faz parte dosobjetivos do Memorial manter uma política de geração de emprego e renda,estabelecer um intercâmbio com a comunidade negra e grupos culturais daBahia, do Brasil e do exterior.

O Memorial está localizado na parte térrea do prédio da Associação 19de Março, na Av. Itabuna, Centro de Ilhéus, contando com uma sala paraoficinas de dança, percussão, e capoeira; um bar e restaurante com comidastípicas da Bahia; 5 lojinhas de artesanatos; uma biblioteca com livros, CDs,revistas e vídeos sobre cultura negra. Exibições de cultura afro e shows folcló-ricos são realizados todas as sextas-feiras e sábados, além de exposições foto-gráficas e da realização de palestras e debates. O Memorial funciona de se-gunda-feira a Sábado das 9:00h às 12:00h e das 14:00h às 16:00h.

Vale a pena fazer uma visitinha.

Baile Afro estréia com sucesso

Lançado no último Sábado, dia 11, no Memorial da Cultura Negra, obaile Afro foi o maior sucesso, animado pela Banda Percussiva do Dilazenze,

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que contou com participações dos cantores Wilson Charmitt do Miny Kongo,Ronaldo do Grupo Leões do Reggae, Cesar do Rastafiry, Sérgio e CarineGomes do Dilazenze. O público cantou e dançou até às 2:00h da madruga-da. O baile Afro vai acontecer todos os sábados até o mês de fevereiro de 2004sempre no Memorial a partir das 21:00h.

Sexta Cultural virou point

O Projeto Sexta Cultural, realizado pelo grupo Dilazenze no Memorialda Cultura Negra, virou point do samba de roda. São centenas de pessoas quetodas as sextas vão ao Memorial dançar o samba de roda do Grupo Sambadila,que já conquistou o público, um público jovem e animado que se identificoude cara com o samba de roda. O Grupo Sambadila realiza os seus ensaios todasas sextas-feiras no Memorial a partir das 21:00h.

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Diário de Ilhéus, 03 de novembro de 2003

MEMORIAL DA CULTURA NEGRA

Liderança do Movimento Negro se reúne para discutir programação do 20 deNovembro

As lideranças dos grupos culturais de Ilhéus se reuniram no último dia29 às 17:00h no Memorial da Cultura Negra para discutir a programação daSemana Nacional da Consciência Negra, que terá início em Ilhéus no dia 15de novembro, com a realização do 2o Encontro dos Dirigentes de EntidadesAfro-Culturais de Ilhéus. A programação seguirá até o dia 22 de novembrocom: torneio de futsal Zumbi dos Palmares, mostra de vídeo, palestra, deba-tes, baile afro e exposições.

Dia 20, Dia Nacional da Consciência Negra, será comemorado com umgrande show em praça pública com a participação de grupos de capoeira,bandas Afro e bandas de reggae.

As lideranças estão prometendo uma grande surpresa para o show dodia 20 de novembro.

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Elas não revelaram, mas tem zum zum zum rolando nos bastidores deque um dos pré-candidatos a prefeito de Ilhéus do PFL irá presentear aos 70%dos afro-descendentes de Ilhéus com um show do Olodum, de Salvador. Aprogramação será toda concentrada no Memorial da Cultura Negra, na rua31 de Março, Av. Itabuna, sob a coordenação do Memorial e do Conselho deEntidades Afro-Culturais (CEAC) e contará com apoio da Fundação Cultu-ral e Secretaria de Turismo de Ilhéus.

Um outro assunto discutido na reunião foi a candidatura de um verea-dor do movimento negro, que, segundo alguns dirigentes presentes na reu-nião da diretoria do CEAC, está retardando a discussão sobre o assunto, queera para ser em julho, depois mudou para setembro, outubro e agora será emnovembro. No nosso entender só quem perde com este desinteresse são osgrupos afro que precisam mostrar a força que têm. Afinal de contas, somos70% de negros e o momento é oportuno para uma candidatura com cores,criatividade e a alegria que supera as dificuldades, independente de quem sejao nome.

Projeto Social Batukerê recebe benefícios

Em cerimônia realizada na última sexta-feira, dia 24, na sede social dogrupo Dilazenze, no Alto da Conquista, o projeto social Batukerê recebeu daFundação Clemente Mariani, de Salvador, doações de instrumentos musi-cais e equipamentos de som no valor de R$ 11.000,00 (onze mil reais). Acerimônia de entrega dos equipamentos contou com a presença do Sr. Paulode Jesus, representante daquela fundação, e de autoridades municipais, em-presas e comunidade. Segundo os dirigentes do Dilazenze, mantenedores doprojeto, esta ajuda chegou em boa hora, pois, depois de três anos o projetovem enfrentando muitas dificuldades para continuar funcionando.

Depois desta ajuda, com certeza vamos revitalizar as energias para con-tinuarmos em frente.

O Projeto Batukerê atende a 60 crianças e adolescentes de 7 a 14 anosmoradores do Alto da Conquista que estejam freqüentando escola e tirandoboas notas.

O projeto oferece aulas de dança afro, percussão, cidadania, canto, tea-tro, capoeira e artesanato. As principais necessidades que o projeto enfrentasão com a merenda e com materiais de reposição das oficinas.

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Quem quiser ajudar o projeto ligue para o tel. (73) 231-8344 ou 633-6914, endereço Av. Brasil, nº 485, bairro Conquista – Ilhéus, ou conta ban-cária Ag. 191 conta 17.144.

Terreiros de candomblé se reúnem para criar associação

Cerca de 21 terreiros de candomblé foram representados na reunião dodia 22/10/03 no Memorial da Cultura Negra de Ilhéus com o objetivo decriar a Associação dos Terreiros de Candomblé de Ilhéus. A reunião contoucom a presença de babalorixás e ialorixás que falaram sobre a importância dacriação de uma entidade que possa unir os terreiros.

O ponto alto da reunião foi a regularização da documentação dos ter-reiros. Todos se queixaram de não poder receber recursos públicos para a re-forma e estrutura dos terreiros, para as festas dos orixás, por não serem reco-nhecidos juridicamente. Outras reuniões acontecerão para solucionar estasituação.

A próxima será nesta quinta-feira, dia 6/11/03, às 19:00h, no Memorialda Cultura Negra.

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Diário de Ilhéus, 10 de novembro de 2003

MEMORIAL DA CULTURA NEGRA

22 anos depois a polêmica continua: qual foi o primeiro bloco afro de Ilhéus?

Há exatamente 22 anos atrás surgia em Ilhéus o primeiro Grupo Afroque mais tarde chamaríamos de “Bloco Afro Lê-Guê DePá”, fundado em1981, em plena comemoração do Centenário da cidade de Ilhéus, por umgrupo de amigos, entre eles o professor e primeiro presidente da entidade,Luís Carilo, Emanuel Mendonça, mãe Ilza e seus filhos Gilmar Rodrigues eGilderison Rodrigues. Ali eram realizados os ensaios para o carnaval ao somdos atabaques, agogôs, xequerês e congas.

Todos dançavam Ijexá, jogavam as cajás – a dança da época.

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O Lê-Guê DePá no seu início sofreu uma influência grande dos afoxésFilhos de Gandhi e Badauê de Salvador. Talvez isso explique a polêmica queexiste até hoje. Quem foi o primeiro bloco afro de Ilhéus? O Lê-Guê DePáou o Miny Kongo?

Todos os dois grupos no seu início tinham características muito grandesde um afoxé. Tocavam e dançavam o Ijexá.

O Miny Kongo, um ano depois de sair com estas características, sofreuuma mudança já influenciado pelo Bloco Afro Ilê Aiyê de Salvador e passourealmente a ser um bloco afro introduzindo no grupo instrumentos comorepique, surdos e caixas. O ritmo já era o Samba-Reggae usado pelos blocosafro de Salvador.

O Lê-Guê DePá introduziu os mesmos instrumentos, mas a batida eraIjexá, a música era Ijexá, ritmo do afoxé, apesar de ser chamado de bloco afro,as características ainda eram de afoxé.

O Lê-Guê DePá saía do Alto da Conquista dos Carilos, celeiro até hojede blocos afro, depois, passou a sair do Bairro do Malhado até o fim de suaexistência.

O Miny Kongo até hoje participa do carnaval e é considerado o pai demuitos outros blocos afro como: Zimbabuê, Rastafiry, Força Negra, AxéOdara, entre outros, e teve um fundador ilustre, o ator e bailarino MárioGusmão, que termina contribuindo e influenciando na formação de muitosdirigentes de blocos afro e na criação de novos blocos afro como o Dilazenzee o Axé Odara.

Depois de 22 anos de história a polêmica continua. O importante é quea semente foi plantada e germinou.

Hoje, já são 10 blocos afro espalhados pelos quatro cantos da cidade eque não só fazem o carnaval, eles desenvolvem projetos que envolvem músi-cas, danças, religião, políticas culturais, enfim, atividades que contribuem paraa formação da cidadania Afro-Brasileira. Eles ajudam a preservar e divulgar acultura negra na cidade, lutam contra o racismo e através de projetos educa-cionais buscam resgatar a auto-estima da população negra e levá-la a nível deconsciência crítica.

As dificuldades ainda são muitas. A discriminação ainda é grande paracom os blocos afro, e só quem participa de um é que sabe.

O movimento está crescendo e se organizando, ganhando força políti-ca, pois só através dela é que daremos uma vida melhor para nossa populaçãonegra.

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Diário de Ilhéus, 17 de novembro de 2003

MEMORIAL DA CULTURA NEGRA

20 de Novembro – Dia da Consciência Negra

As informações sobre Zumbi na realidade são poucas. O que se sabe éque seu nome era Francisco, nasceu em Palmares, em 1655; foi levado aindacriança para Pernambuco por uma das primeiras expedições enviadas aPalmares com o intuito de destruir o quilombo, pelo então governador dePernambuco, Francisco Barreto. O padre português, Antônio Melo, foi oresponsável pela guarda e educação do jovem Francisco, que, aos 15 anos, fugiudo distrito de Porto Calvo e foi para Palmares. Algumas dúvidas sobre a na-turalidade de Zumbi constantemente surgem, seja de Alagoas ou Pernambuco,mas não podemos esquecer que no século XVII a capitania de Pernambucoabrangia o que hoje se conhece como Rio Grande do Norte até Alagoas.

O nome Zumbi suscita várias interpretações. Alguns historiadores acre-ditam que o nome signifique Deus da Guerra, que se remete às palavras deorigem quimbundo, língua angolana – N’Zambiapongo, N’Zambi eN’Zumbi – todas significando Deus, o que pode estar relacionado ao senti-do de Zumbi como uma variação ortográfica destas palavras. Outras corren-tes interpretativas apontam o nome Zumbi como um posto dentro da hie-rarquia Palmarina.

A ausência de dados históricos mais consistentes sobre Palmares é umaprática já conhecida nacionalmente, como forma de diluir praticamente oepisódio na memória dos brasileiros em geral e, especialmente, os negros. Massegundo o historiador Décio Freitas, o Quilombo dos Palmares resistiu a 120anos de luta contra várias incursões sem sucesso promovidas pelo governo dePernambuco. Sua destruição foi comandada pelo bandeirante paulista Do-mingos Jorge Velho, que, como outras tantas expedições, fracassou na pri-meira tentativa em 1692. A guerra continuou por mais 2 anos, até que em1694 um exército de 9 mil homens comparado somente ao episódio da Inva-são Holandesa, em termos de relevância para a coroa Portuguesa, destruiu asbases de Palmares. Este exército era composto de soldados, penitenciários,índios, negros e voluntários de Pernambuco, Alagoas, Bahia, Rio Grande do

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Norte e Paraíba. Todos muito determinados a destruir Palmares, matar Zumbie ganhar lotes em terras Palmarinas.

Apesar da destruição do Quilombo e sua comemoração pelas autorida-des locais, Zumbi fugiu, se escondeu no mato e iniciou uma guerrilha contraDomingos Jorge Velho. Traído por um de seus homens de confiança, Antô-nio Soares, que depois de capturado e torturado conduziu Domingos JorgeVelho ao esconderijo de Zumbi, que supostamente morreu, com tiros e inú-meros ferimentos de arma branca, aos 40 anos. Teve seu corpo mutilado e acabeça enviada para o Recife, onde foi exposta em praça pública.

O 20 de novembro, dia da Consciência Negra, em homenagem à me-mória do líder negro Zumbi dos Palmares, deve se fortalecer no imaginárionacional não somente como uma data de comemoração, mas de reivindicaçãoe reflexão para todos os brasileiros na luta contra o racismo e a intolerância.

O Memorial da Cultura Negra abriu a Semana Zumbi dos Palmares nestesábado, dia 15, com o 2o Encontro dos Dirigentes dos Blocos Afro de Ilhéusque contou com as presenças dos colunistas Zé Carlinhos e Emanuel Men-donça (Nenéu) e do presidente do PMN, Massarolo, que, a convite do presi-dente do CEAC, Jacks Rodrigues, coordenou o encontro. A programação daSemana Zumbi prossegue até o dia 21 com mostra de vídeo, palestra, showse exposição no Memorial. Os eventos acontecerão pela manhã das 9:00h às12:00h e à tarde das 14:00h às 20:00h.

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Diário de Ilhéus, 24 de novembro de 2003

MEMORIAL DA CULTURA NEGRA

Consciência Negra

Realizada pelo Memorial da Cultura Negra em parceria com o Conse-lho das Entidades Afro de Ilhéus, a 1a Semana Zumbi dos Palmares teve seuponto alto no dia 20 de Novembro, Dia Nacional da Consciência Negra. Umgrande evento foi realizado em frente ao Memorial e contou com as partici-pações dos grupos Dilazenze, Danados do Reggae, Leões do Reggae, ZambiAxé e do Miny Kongo, que naquela data comemorava 23 anos de fundado.

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Mas o que me chamou atenção foi a falta de consciência política doMovimento Afro Cultural, principalmente da diretoria do CEAC (Conse-lho das Entidades Afro Culturais) que, em pleno evento distribuía camisetaspara os grupos afro com propaganda política de um candidato a vereador quepagava cerveja para quem divulgasse seu nome e para quem vestisse a sua ca-misa. Uma falta de respeito para com a comunidade negra, que organizou aSemana Zumbi dos Palmares com muito esforço e só contou com o apoiosempre decisivo do prefeito Jabes Ribeiro e da sua esposa Adriana Ribeiro.

Está na hora do CEAC rever suas atitudes. Ao invés de ficar trazendocandidatos que não têm compromisso com as nossa lutas, se aproveita dainconsciência política dos dirigentes dos grupos afro para não discutir comseriedade uma candidatura própria para o Movimento Negro.

Prestigiaram o evento o prefeito Jabes Ribeiro e sua esposa Adriana; oprofessor Soane Nazaré, presidente da Maramata; as Ialorixás Mãe Ilza Rodri-gues e Mãe Gessi; o coordenador do MNU de Ilhéus, Moacir; os secretáriosPaulo Medauar, Romualdo Pereira e Isaac Albagli.

Dilazenze realiza o 3o encontro para discutir planejamento 2004

O Grupo Cultural Dilazenze, do Alto da Conquista, estará realizandoneste sábado, a partir das 10 horas, no Memorial da Cultura Negra, o 3o

Encontro da Entidade para a avaliação das ações do Grupo em 2003 e paradiscutir e elaborar o planejamento da entidade para 2004. Na oportunidade,será também escolhido o tema do carnaval 2004.

As propostas para o tema do Dilazenze poderão ser entregues até as 10horas do dia 29/11 no Memorial, e os candidatos terão 10 minutos para de-fender sua proposta, que será votada por todos os presentes, e o mais votadoserá o vencedor. Essa é uma forma democrática adotada pelo Dilazenze e quevem dando certo.

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Apêndice IV – A família Rodrigues

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Apêndice V – Os blocos afro de Ilhéus

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Apêndice VI – Eleições em Ilhéus

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1 – BRASIL

Apêndice VII – Mapas

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2 – ESTADO DA BAHIA

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3 – REGIÕES DA BAHIA

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4 – MICROREGIÃO CACAUEIRA

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5 – ILHÉUS (BAHIA): BAIRROS DA CIDADE

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O Ballet Afro Dilazenze apresenta-se na quadra do bloco

Parte da bateria do Dilazenze apresenta-se na quadra do bloco

Apêndice VIII – Fotos

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Parte da bateria do Dilazenze apresenta-se na quadra do bloco

O Dilazenze desfila no carnaval 1999

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O Dilazenze desfila no carnaval 1999

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Da esquerda para a direita: Marcio da Lua, Jaco Santana, NinhoRodrigues (em pé), Marinho Rodrigues e Ney Rodrigues (primeiro plano)

Parte do Ballet Afro Dilazenze apresenta-se,em frente à quadra do bloco, para a televisão

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Dona Ilza Rodrigues e Gilvan Rodrigues tocam ritualmente o ponto em que estãoenterrados os fundamentos do Tombency (e do Dilazenze) em uma festa no terreiro

Dona Ilza Rodrigues pratica rituais propiciatóriospara a saída do Dilazenze no carnaval 2000

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O então prefeito Jabes Ribeiro entrega a Marinho Rodrigues o troféuconquistado pelo Dilazenze em um torneio de futebol na Conquista(à esquerda do prefeito, Toinho Brother; atrás de Marinho, Gurita)

O Memorial daCultura Negra de Ilhéus

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O Memorial da Cultura Negra de Ilhéus

A Avenida Brasil (ou Rua dos Carilos)

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Parte da família Rodrigues em frente à casa de Dona Ilza(no último plano, em pé, Nidinha Rodrigues)

A entrada do Tombency e da casa de Dona Ilza Rodrigues

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Outdoors nas eleições municipais de 1996(ao fundo, um dos acessos ao bairro da Conquista)

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COMO FUNCIONA A DEMOCRACIA

uma teoria etnográfica da política

foi impresso em Pólen Soft 80g/m2 (miolo) eCartão Supremo 250g/m2 (capa) na gráfica Imprinta Express

em outubro de 2006 para Viveiros de Castro Editora.