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FRANCISCO FERREIRA DE CASTRO DemocraciaSocial (elementos de estudo)

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FRANCISCO FERREIRA DE CASTRO

Democracia Social

(elementos de estudo)

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INTRODUÇÃO

Confesso que não foi sem temor que me decidi ao exame de alguns

postulados básicos da Democracia social, no presente trabalho. As

implicações que o assunto comporta, sobretudo aquelas de natureza

ideológicas e conceituais, forçosamente expostas ao debate e ao crivo de

experimentados e cultos juristas patrícios, num círculo de altos estudos como

são os concursos para cátedra de uma faculdade de ensino superior no País,

não justificariam a temeridade da iniciativa. Entretanto, a sedução da matéria e

a sua flagrante atualidade aliaram-se ao desejo insopitado de reunir neste

despretensioso ensaio alguns elementos de estudo e observações

colhidos ao longo de demorado convívio com autores famosos e insignes

mestres do ramo fascinante das Ciências Políticas que é a Teoria Geral do

Estado.

Na verdade, presenciamos a cada momento o Estado ser chamado a

estender a sua ação e a empregar os seus recursos em determinados

setores da vida pública e administrativa das sociedades hodiernas, antes

entregues quase que exclusivamente ao esforço individual. Essa diversificada

presença do Estado no campo das atividades privadas trouxe consigo a

gradativa modificação de cânones consagrados do Direito tradicional e ensejou

a criação de novas regras para regular o comportamento social, com

evidentes manifestações renovadoras e não menores influências

catalisadoras para uma reformulação institucional dos regimes políticos

modernos, fatos esses que a Ciência Política não se pode eximir de

estudar e acolher, notadamente a Teoria Geral do Estado.

Do debate em que se empenham as várias correntes doutrinárias, sobretudo

as que trazem em seu bojo sistemas orgânicos de concepções de vida para

as sociedades, despontam como a defrontarem-se Dois mundos Frente a

Frente, na feliz expressão com que o diplomata portenho Ricardo Labougle (*)

(*) Ver sobre o assunto: LABOUGLE, Ricardo de. Dois Mundos Frente a Frente. B.Aires, 1953;

GUILHERME, Olímpio. URSS & USA. Rio, 1955; TRELLES, Camilo Garcia. El Problema em el

Mundo Posbélico. Edição da Faculdade de Direito de São Paulo, 1955; BURNHAM, James. A Luta

pelo Mundo. Editora A Noite.

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batizou a sua interessante obra lançada em Buenos Aires. São duas filosofias,

dois sistemas políticos que têm em comum a inquieta busca do bem-estar

coletivo, com justiça social para todos, e a separá-los as concepções que

fazem da vida e o valor que emprestam ao homem como membro da

sociedade. Dos embates das ideologias esposam, o mundo conhece e sabe

aquilatar a importância dos seus reflexos na vida de cada nação, nas suas

instituições que, se não se adaptam às novas doutrinas, correm o risco de se

tornarem anacrônicas e não mais representarem uma resultante do

pensamento moderno sobre as funções que o Estado deve desempenhar nos

domínios políticos, econômicos e sociais das coletividades.

Por isso, ganham expressão e se tornam atuais aquelas palavras pronunciadas

por Rui Barbosa, em A Campanha Presidencial, Bahia, 1919, pp. 159\160,

quando advertia nação brasileira:

As constituições são consequências da irresistível evolução econômica do mundo. As nossas constituições têm ainda por normas as declarações de Direitos consagrados do século XVIII. Suas fórmulas já não correspondem exatamente à consciência jurídica do universo. A inflexibilidade individualista dessas cartas, imortais, mais não imutáveis, alguma coisa tem de ceder (quando lhes passa já pelo quadrante o sol do terceiro século) ao sopro da socialização que agita o mundo.

Teresina, 25 de março de 1961.

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CAPITULO PRIMEIRO

1. As formas de governo.

2. Na antiguidade clássica: Platão e Aristóteles.

3. Na Idade Média: Santo Tomás de Aquino e na Renascença:

Nicolò Machiavelli.

4. Montesquieu revive a tipologia clássica.

5. A doutrinação de Yellinek, Kelsen e Hermann Heller sobre as

formas de governo.

6. Georges Burdeau, Maurice Duverger e a interpretação dos

regimes políticos atuais.

7. Apreciação crítica às doutrinas das formas de governo.

8. Conceito de governo.

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1. As Formas de Governo.

Remonta aos tempos mais antigos a inquietação do homem no sentido de dar

uma expressão lógica e conceitual às formas de governo das sociedades,

classificando-as segundo a conjunção de elementos mais ou menos

estáveis de irradiação das forças que caracterizam o poder de mando.

Verdade é que, em se tratando de classificação de fatos intimamente

vinculados à vida social, o levantamento de uma tipologia se torna sobretudo

complexo, dada a variedade das suas manifestações no governo das

sociedades, que resistem a uma esquematização lógica do assunto e,

sobretudo à determinação de qual é a melhor forma de governo. Uma

passagem ilustre de Heródoto serve ao nosso propósito a este respeito. 1

Entretanto, a Ciência Política, reunindo os meios de investigação de que

dispõe, procurar fixar, na consistência da idéia do Direito que representa e

serve ao poder estatal, os princípios fundamentais de uma filosofia política e

social de que o Estado é titular como poder de mando criador das regras

diretoras da vida em sociedade, determinando a sua correlação com as

formas de governo ou examinando os critérios adotados para a designação

dos agentes dos exercícios deste poder, o modo como o põem em

movimento e os fins a que se propõem à frente dos destinos da

coletividade, como assinala Owen G. Unsinger no seu precioso livro sobre os

Fins do Estado.2

2. Na Antiguidade Clássica: Platão e Aristóteles.

Foi Platão, dentre os pensadores gregos, o primeiro a esquematizar uma

tipologia dos regimes políticos da época, atendendo à forma de suas

organizações constitucionais. Segundo Platão (apud FERREIRA, Pinto

Ferreira, Teoria Geral do Estado, ed. 1957 p. 69, t. 2º), no seu livro Nomoi:

"Existem de certo modo duas constituições matrizes e quem afirmasse que as

demais emergiram delas teria razão. Uma poder-se-ia chamar de monarquia, a

1 Diz Heródoto que, após a morte de Cambyses, sete grandes da Pérsia debateram a questão: qual é a melhor forma de governo: monarquia ou república? Os livros clássicos estão cheios dessa velha questão. Parece que pertence a Fenelon a glória de haver definido o verdadeiro problema: a corrupção pode ser idêntica em ambas as formas de governo; o principal não é o regime em si, mas a virtude na execução dele. In CALMON, Pedro. Curso de Teoria Geral do Estado, pág. 249, em notas.

2 USINGER, Owen G. Fines del Estado. Rosário,1953.

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outra de democracia." Com essa classificação dos regimes políticos

contemporâneos, Platão ensinava ainda que todas as demais formas de

governo importavam em transições e interferências destas duas, que se

realizavam de acordo com certas condições éticas ideais. O eminente

filósofo grego reconhecia, no capitulo XXXI, do livro Politikos, existirem as

formas dos regimes normais e os degenerados, tendo a distingui-los a boa ou

má dominação, fundamentando-se aquela no assentimento ou

reconhecimento voluntário, e esta, na violência; na legalidade ou ilegalidade;

no exercício do poder em proveito da comunidade ou em proveito próprio.3

Aristóteles, tendo em vista as indagações profundas do seu mestre e

após examinar e comparar as constituições de cerca de cento e

cinquenta e oito Estados, concluiu que constituição e governo são a mesma

coisa e classificou as formas de governo, conforme a suprema autoridade do

Estado se encontre nas mãos de um, de alguns ou de muitos, em

Monarquia, Aristocracia e Democracia, fórmula tripartida que se tornou

célebre pelos tempos à fora, inspirando as demais combinações e critérios

posteriores na apreciação do assunto.

Acrescentava o sábio Estagira que

os governos que tivessem como objetivo os interesses comuns da coletividade e fossem organizados de acordo com os estritos princípios da Justiça eram considerados formas verdadeiras; mas todos aqueles que tivessem como objetivos somente o interesse dos governantes eram formas falsas e corrompidas, porque são despóticas, mesmo que se trate de uma comunidade de homens livres. (Politics, Book III, C. 6, in fine).

Das formas de governo acima mencionadas, as corrompidas são as que se

seguem, segundo a classificação aristotélica:

da realeza, a tirania; da aristocracia, a oligarquia; do governo constitucional (democracia), a demagogia. Pois a tirania é uma espécie de monarquia quem tem em vista o interesse do monarca somente; a oligarquia, o interesse do enriquecimento; a demagogia, a necessidade: nenhuma dessas formas visa ao

bem comum de todos.

4

3 PLATÃO. The Republic. Book VIII, Britannica, v. 7, p. 401 e segs.

4 ARISTOTLE. Politics. Book III. C. 7, Enc. Britannica, ed. 1952, v. 9.

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3. Na Idade Média: Santo Tomás de Aquino e na Renascença: Nicolò

Machiavelli.

A classificação aristotélica das formas de governo teve grande fortuna entre

os pensadores políticos, e, já na antiguidade, Políbio, ao escrever a História

Geral do Mundo, adere substancialmente a ela. Inspirando a sua doutrinação no

Estado Romano, propõe, como nos adverte Alexandre de Groppali

como modelo a imitar uma forma mista, na qual fosse o poder dividido entre o monarca e o povo, ou entre uma aristocracia e o povo, admitindo também que todas as constituições fossem sujeitas a uma constante e fatal mudança (anaciclose), de reino a tirania, a democracia, a oclocracia e depois o reino de novo

e assim perpetuamente.5

Numa antevisão do que nos tempos modernos passou a constituir a teoria

de corsi e recorsi de Vico, ou, como quer Oswald Spengler, na sua

monumental obra A Decadência do Ocidente, de acordo com a recorrência

cíclica das estações em que se divide o ano. Cícero, na sua De República,

"atribui à organização do Estado de seu tempo uma forma de governo misto,

por ele louvada como a preferida".6 Tácito, nos Anais, ao escrever, como diz,

sine ira et studio, também se inclina pela forma mista de governo.

Na Idade Média, coube a Santo Thomás de Aquino a primazia do pensamento

filosófico da época, adotando, no seu conjunto, a filosofia aristotélica,

reajustada aos seus conceitos da escolástica. No seu livro Do Regime dos

Príncipes, Santo Tomás retoma o esquema da classificação das formas de

governo idealizado por Aristóteles, dividindo-as em legítimas e ilegítimas,

fazendo variação apenas na terminologia do sábio de Estagira. As formas

legítimas são: a monarquia, a oligarquia e a democracia. As ilegítimas

compreendem: a tirania, a oligarquia e a demagogia, distinguindo-se as

formas segundo os soberanos agem recte ou non recte, ou seja, conforme

ou contrariamente ao bem comum.

Na renascença foi o mais importante escritor político o florentino Nicolò

Machiavelli. Iniciou o seu livro O Príncipe (1513) com uma nítida afirmação

sobre as suas idéias com respeito às formas de governo, ao escrever:

5 GROPPALI, Alexandre. Doutrina do Estado. São Paulo: Ed. Saraiva, 1953, p. 268.

6 CÍCERO, De República, I, 29 apud QUEIRÓS, Lima, Euzébio, Teoria do Estado, Rio de Janeiro, ed. 1951, p. 229.

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"Todos os Estados, todos os domínios que exerceram ou exercem poder

sobre os homens ou são repúblicas ou principados."

7 No discurso sobre a

Última Década de Tito Lívio, rejeitou a divisão tripartite de Aristóteles,

inspirada num conceito ético e político de formas puras e impuras de

governo, para afirmar que os governos se sucedem em ciclos fatais e

inexoráveis. Com uma visão realista do assunto, Machiavelli afirmou não

haver nenhum governo justo como tipo ideal, todos têm em proporção de bem

e de mal, não sendo conveniente, pois, separar as boas das más formas,

uma vez que as formas corrompidas não são senão simples alterações das

primeiras.

Assiste razão ao professor Darcy Azambuja quando diz, na sua Teoria Geral do

Estado, que Machiavelli não propôs a divisão dicotômica das formas de Estado

em monarquia e república. De fato, se levarmos em consideração o que está

escrita em O Príncipe, na passagem acima transcrita, não há duvida quanto à

afirmativa do eminente professor sul-riograndense. Mas, é necessário

atentar-se para o fato de que, tendo Machiavelli escrito que todos os Estados

ou são repúblicas ou principados, encontram-se consubstanciadas neste

enunciado as formas de governo admitidas pelo político florentino, o que não

nega Darcy Azambuja.

4. Montesquieu Revive a Tipologia Clássica.

Uma das mais apreciadas doutrinas modernas foi exposta por Montesquieu, na

sua conhecida e admirada obra L'esprit des Lois, de fundamental importância na

estruturação dos regimes contemporâneos. Discrepando um pouco de

Aristóteles na sua nomenclatura, conserva Montesquieu o esquema

tripartido das formas de governo, dividindo-as em: republicana, monárquica

e despótica, podendo a primeira forma distinguir-se em democracia e

aristocracia. A nota característica da classificação tripartite de Montesquieu

está no princípio social que a movimenta, as passions humaines, ao

contrário do Estagirita, que explica as formas de governo pela estrutura

numérica dos seus componentes. Assim, para Montesquieu, o princípio em

que se fundamenta a democracia é a virtude, a aristocracia, na honra, e o

despotismo, no medo.

8

7 MACHIAVELLI, Nicolò. The Prince. Britanica, v. 23, capítulo I, p. 3

8 MONTESQUIEU. L’esprit des Lois. 1, 2, c.1, p.9, ed. 1862.

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5. A Doutrinação de Yellinek, Kelsen e Hermann Heller Sobre as Formas de

Governo.

Yellinek procura situar a doutrinação sobre as formas de governos tendo em

vista um critério científico de fixação das principais características do Estado,

no que se distanciou em muito das classificações conhecidas até então,

embora conservasse o critério dual firmado por Machiavelli, em O Príncipe.

Para Yellinek, a ciência antiga partiu de um critério instável ao considerar "o

número das pessoas diretoras do governo em elemento éticos e sociais, com

o que se introduziu precisamente categorias indistintas e difíceis de serem

determinadas no princípio de divisão", suscetíveis de não serem bem

estimadas na sua aplicação. Os elementos formais é que são conhecidos em

todas as circunstâncias, identificando-se a questão das formas do Estado

com a da distinção jurídica das Constituições. Acrescenta o eminente

Professor de Heidelberg, na sua monumental Teoria Geral do Estado:

O princípio de distinção jurídica não pode ser outro que o do modo da formação da vontade do Estado. Duas possibilidades jurídicas se dão aqui: ou a vontade suprema que põe em movimento o Estado se forma segundo a Constituição, mediante um processo psicológico, isto é, natural, ou por um processo jurídico, isto é, artificial. No primeiro caso tem lugar a formação da vontade dentro de uma pessoa física, no outro caso, a vontade do Estado se forma mediante um procedimento jurídico, nascendo as vontades físicas e jurídicas da aplicação de princípios de Direito mediante um procedimento constitucional previamente

determinado.9

E, conclui Yellinek, a divisão do Estado em Monarquia e República é a divisão

suprema. Ambas as formas podem ser subdivididas, podendo lograr-se,

deste modo, todas as distinções possíveis na organização do Estado.

Para Hans Kelsen, na sua Teoria Geral do Direito e do Estado, a classificação

dos governos é o problema central da teoria política, o qual, do ponto de

vista jurídico, trata da distinção entre diferentes arquétipos de

Constituições.

9 YELLINEK, Georges. Teoria General del Estado. Buenos Aires, ed. 1954, p. 504.

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Quando o poder supremo de uma comunidade pertence a um individuo, diz-se que o governo ou Constituição são monárquicos. Quando o poder pertence a vários indivíduos, a Constituição se chama republicana. O critério de classificação, conforme o número dos indivíduos que exercem o poder, é superficial, não há dúvida, e já Aristóteles havia descrito o Estado como ordem. Portanto, o poder do Estado reside na validez e eficácia do ordenamento jurídico.10

Se o critério de classificação das formas de governo consiste, de acordo com

a Constituição, na maneira como a ordem jurídica é criada, então, diz Kelsen,

o correto será distinguir apenas dois tipos de Constituições: democracia e

autocracia, ao invés da tricotomia tradicional. Esta divisão, segundo

Kelsen, é a que mais se aproxima do tipo ideal, se bem que não exista tipo

puro ou ideal em qualquer das classificações, porquanto há sempre a mescla

de elementos de ambos os tipos, que se interpenetram produzindo

múltiplas variações, a que Max Weber propôs a denominação de

"autocefalia" e "heterocefalia", à mudança de autocracia em democracia.11

Outros eminentes escritores alemães, dentre eles Kraneburg, Oskar G.

Fischbach e Hermann Heller acolhem o critério dual das formas de governo.

Para Fischbach, na sua Teoria Geral do Estado, "esta divisão é relativamente

mui tôsca; na realidade existe uma grande quantidade de formas

intermediárias".12 Hermann Heller, por sua vez, na sua Teoria do Estado,

nenhuma restrição faz à divisão dicotômica, acentuando: "a democracia é

uma estrutura de poder construída de baixo para cima; a autocracia

organiza o Estado de cima para baixo".13 Kranenburg adota o sistema

dual, acrescentando-lhe tão somente algumas subdivisões.14

10

KELSEN, Hans. Teoria General del Derecho Y del Estado. México, 1950, p. 297. 11

Id. Teoria General del Estado. Barcelona, 1934, p. 416. 12

FISCHBACH, Oskar G. Teoria General del Estado. Madrid, 1949, p. 163. 13

HELLER, Hermann. Teoria Del Estado. México, 1955, p. 265. 14

KRANENBURG. Teoria Política. México, 1941, p. 75-131.

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6. Georges Burdeau, Maurice Duverger e a Interpretação dos Regimes

Políticos Atuais.

Se, adverte-nos o eminente professor da faculdade de Direito de Paris, a

imprecisão e a multiplicidade de fórmulas empregadas para distinção das

formas políticas conduzem, em nossos dias, à mais desenvolvida fantasia

em assunto que exige um rigor científico na observação dos fenômenos

em causa, por isso é que na linguagem corrente tornou-se indiferente a

expressão Estado, regime ou governo democrático, numa ambigüidade

terminológica de modo algum defensável, mas que apresenta o mérito

de tornar imediatamente sensível a diversidade de pontos de vista nos

quais é possível colocar-se o estudioso para estabelecer uma diferença

entre as formas políticas. São eles:

1 - pode em primeiro lugar considerar o fundamento do Poder que se exerce no Estado; 2 - uma segunda atitude consiste em caracterizar o regime pelos fins que ele persegue; e, 3 - enfim, pode-se empregar ao exame da organização dos poderes públicos e das relações que eles mantêm entre si. 15

Apesar da utilização desses elementos na caracterização das formas de

governo, reconhece Burdeau que os quadros jurídicos tradicionais

tornaram-se impotentes para conter as modalidades políticas atuais,

porque, imaginados para servir às manifestações de um certo tipo de vida

social e político, eles se apresentam insuficientes ou por demais estreitos

desde que os fundamentos mesmos da sociedade se transformaram e

ganharam um complexidade antes desconhecida. Em assim sendo, a melhor

maneira de distinção dos regimes políticos é ater-se à opinião profana

expressa comumente ao considerar as duas grandes formas políticas que

entre si disputam predominância no mundo hodierno, dividindo-as em

regimes autoritários e regimes democráticos, podendo esta última forma, na

concepção de Burdeau, consistir nas variantes: democracia governada e

democracia governante.

Entanto, em escritos mais recentes, o emitente tratadista gaulês procura ligar a

sua concepção sobre as formas de governo a uma visão realista dos

regimes políticos contemporâneos, e propõe classificar os regimes segundo

as forças políticas que os movem, os fins (ou seja, de qual idéia o Estado é

15

BURDEAU, Georges. Traité de Science Politique, Paris,1952, t. IV, p. 353.

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instrumento) que perseguem, e os meios técnicos de que dispõe o poder

para sua realização, em monocracias populares e democracias pluralistas.16

Maurice Duverger, conhecido e admirado mestre da Universidade de

Bordeaux, oferece-nos, por sua vez, interessantes elementos de estudos

sobre os regimes políticos no seu Manuel du Droit Constitutionnel et de

Science Politique, estabelecendo como critério de uma distinção dos tipos de

governos o modo de escolha dos seus mandatários, em: autocráticos e

democráticos. A autocracia corresponde às doutrinas autoritárias. E aduz, em

explicação: "A forma mais comum de governo autocrático é o hereditário.

Mas ela não é a única; a cooptação, a conquista, a tiragem em sorte, a

nomeação por outro governante devem ser consideradas como formas de

governo autocrático.” 17

O governo democrático apresenta três tipos dentre as formas tradicionais:

democracia direta, democracia semidireta e democracia representativa. Após

a Segunda Guerra Mundial, obteve grande popularidade entre as nações

vitoriosas, que entre si reclamavam o epíteto de democracias, a distinção

dual: democracia política e democracia social, cuja definição obtemos em

Duverger:

Democracia política corresponde à definição geral de democracia, e consiste no fato de que os governantes são designados mediante eleições livres e sinceras. A democracia social coloca-se num plano bem diferente. Ela visa realizar a igualdade antes que fazer reinar a liberdade.

E acrescenta: "Longe de serem opostas na sua essência, a democracia política

e a democracia social se completam; pode-se admitir que a democracia

verdadeira não será realizada senão pela conjunção dos dois princípios." 18

Mais recentemente, o consagrado constitucionalista gaulês admite como tipos

básicos de uma classificação das formas de governo a distinção dicotômica

que faz dos regimes políticos em que se divide o mundo contemporâneo, por

ele denominados: democracias clássicas e ditaduras. Dentre as

democracias clássicas estão compreendidos os regimes que se

16

Id. Droit Constitutionnel et Institutions Politiques. Paris, 1957, p. 134 e segs. 17

DUVERGER, Maurice. Manuel de Droit Constitutionnel et de Science Politique. Paris, 1948, p. 34 e 41.

18 Id. Droit Constitutionnel et Institutions Politiques. Paris, 1955, p. 234.

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organizaram segundo o modelo da Grã-Bretanha, Estados Unidos, França,

Itália, Suíça, Uruguai, Brasil e alguns mais países da América Latina. Na

categoria de ditaduras estão colocados os regimes comunistas e os

regimes fascistas, existindo numa e noutra classificação uma variedade de

regimes. Esse critério de distinção das formas políticas atuais, está visto, traz

uma série de inconvenientes que estão à vista.

7. Apreciação Crítica às Doutrinas das Formas de Governo.

É comum adotar-se como critério de julgamento das formas de governo

expostas pelos filósofos e doutrinadores antigos que, partindo a divisão

tricotômica de conceitos sociais e éticos, difíceis e instáveis para serem

determinados, seriam por isso insuficientes e estreitos para abarcar a

totalidade dos fenômenos sociais e políticos existentes. Com a autoridade que

caracteriza os escritos de Yellinek, Kelsen, Laun e outros eminentes juristas,

censuram a tipologia da classificação antiga por lhe faltar um elemento

científico que distinga das demais formações sociais o poder estatal, que

tanto se forma mediante um processo psicológico, natural, numa

determinada individualidade, ou por um processo jurídico, artificial.19

Não há dúvida sobre a procedência da restrição oposta, sobretudo se

levarmos em conta que a inclusão do elemento jurídico como critério

diferenciador das Constituições ou governos trouxe uma contribuição

apreciável à tipologia do Estado, organizado de acordo com princípios

racionais do Direito, como quer Mirkine-Guetzevitch, quando estuda as

organizações jurídicas do chamado Estado de Direito.20

Certamente não seria necessário um grande esforço de interpretação da

tipologia tradicional das formas políticas para perceber a interpenetração

das diversas distinções adotadas. Origens, formas de exercício da

autoridade governamental e fins assinados às atividades estatais

constituem, juridicamente, elementos distintos numa classificação. Mas os

fatos políticos contemporâneos não autorizam o emprego de fórmulas tão

simples na caracterização dos regimes existentes, que, muitas vezes

19

LAUN, Rodolfo. A Democracia. São Paulo, 1935. 20

GUETZEVITCH-MIRKINE. Modernas Tendências del Derecho Constitucional. Madrid, 1934, p. 74.

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antitéticos, guardam entre si indisfarçável correlação quanto à origem e ao

modo de exercício do Poder, como é o caso dos regimes fascistas e

comunistas. Não haverá uma profunda diversidade de regimes políticos

dentre os que se organizam segundo o modelo parlamentarista? Por outro

lado, embora semelhantes na sua estrutura constitucional, é possível

admitir-se diferenças apenas de superfície entre os regimes

presidencialistas dos Estados Unidos da América do Norte e o praticado no

Brasil?

Tem razão Duverger quando escreve a este propósito no seu livro

intitulado Droit Constitutionnel et Institutions Politiques:

Ainsi, on dit un "Six Cylindres" pour désigner un moteur que renferme beaucoup d´autres éléments. Ici, le terme régime politique est pris dans son sens plein: il désigne un ensemble complet d´institutions, coordonnées et articulées, qui se réfèrente à la fois au fondement du pouvoir, au hoix des governants, à leur structure et à leur limitation. On l’a dit: les régimes politiques sont des constellations dont les institutions sont les étoiles. Il s’agit bien entendu de constellations naturelles, telles quelles existent en fait et non d’un agencement idéal et théorique d’institutions.21

Cada regime político apresenta uma certa dose de originalidade, de acordo

com as condições históricas, geográficas, sócio-econômicas, espirituais e

morais, engrandecidas num complexo sociológico peculiar, que reage aos

esquemas lógicos da tipologia estatal. Oliveira Viana, ao estudar o idealismo

das nossas Constituições, chamava a atenção das elites brasileiras para o

fato que considerava de suma importância para a vida nacional, uma vez

que a falta de suporte sociológico das nossas estruturas institucionais fazia-

as perder a autenticidade para colocar-se no plano de uma política silogística

de que nos falava Joaquim Nabuco.22

21

DUVERGER, Maurice. Droit Constitutionnel et Institutions Politiques.op. cit., p. 233. 22

OLIVEIRA, Viana. Instituições Políticas Brasileiras. Rio de Janeiro, 1949, v. 2, p. 13, e, no mesmo livro, citando um pensamento de Joaquim Nabuco sobre a política silogística que caracterizava o pensamento de alguns brasileiros, quando dizia: “É uma pura arte de construção no vácuo: a base são as teses – e não os fatos; o material, idéias – e não homens; a situação, o mundo – e não o País; os habitantes, as gerações futuras – e não as atuais.” Vide Gilberto Freyre, in Brazil an Interpretation, New York, 1945, sobre a influência das condições históricas, geográficas, sócio-econômicas, raciais e culturais na determinação das coordenadas de uma política externa para o Brasil. Ver também a importante análise sob os mesmo aspectos feita por Adolpho Justo Bezerra de Menezes, diplomata brasileiro, cujo trabalho ganha importância maior pela sua atualidade no lineamento de uma política exterior para o País, em consonância com os sentimentos nacionalistas que animam os povos ásio-africanos, em livro intitulado O Brasil e o Mundo Ásio-Africano.

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8. Conceito de Governo.

Estudos de sociologia política de eminentes juristas e sociólogos como

Timasheff, Georges Gurvitch e Duguit, analisando o problema das estruturas

das sociedades, demonstram que no processo de diferenciação dos

grupos sociais entre governantes e governados se caracteriza a

existência do Poder estatal. Pretendem ser o Estado a diferenciação

política entre governantes e governados, e o governo é justamente o

conjunto de indivíduos que dirigem o Estado, a corporificarão pessoal do

Estado, ou, de acordo com Adolfo Posada, na sua obra denominada Ciência

Política, "o conjunto das magistraturas políticas".23

No Brasil, o assunto mereceu igual atenção de consagrados juristas. Pedro

Calmom, Pontes de Miranda, Pinto Ferreira, Cláudio Pacheco e Sampaio

Dória, dentre muitos outros, estabeleceram a distinção das esferas teóricas

em que se situam a forma de Estado, forma de governo e o regime

político, com mestria e inegável exatidão. Assim é que, dentre os juristas

patrícios acima nomeados, citamos o eminente Magnífico Reitor da

Universidade do Brasil, no seu livro Teoria Geral do Estado:

Imaginamos, assim, três esferas teóricas: a forma de Estado (ou seja o Estado considerado quanto à zona espacial de validez de sua norma jurídica); a forma de governo (quanto à categoria de sua magistratura suprema); e o regime político

(quanto à maneira de execução do mesmo governo).

24

23

TIMASHEFF, Nicholas, S. Teoria Sociológica. Rio, 1960; GURVITCH, Georges. Sociologia Jurídica. Rio de Janeiro: Kosmos Editora, 1946; FERREIRA, Pinto. Sociologia. 2º v. Rio, 1955, p. 312; DUGUIT. Traité de Droit Constitutionnel, 2ª. ed., 1920-27; POSADA, Adolfo. Ciência Política. Barcelona, s/d, p. 141 e segs.

24 CALMON, Pedro. Curso de Teoria Geral do Estado. Rio, 1949, p. 250; MIRANDA, Pontes de.

Democracia, Liberdade, Igualdade (Os três caminhos). Rio, 1945, p. 157 e segs; DÓRIA, Sampaio. A. de. Direito Constitucional. São Paulo, 1953, p. 142 e segs; PACHECO, Cláudio. Tratado das Constituições Brasileiras. Rio, 1958; NOGUEIRA, Nélson Saldanha. As formas de Governo e o Ponto de Vista Histórico. Ed. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, 1960.

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CAPITULO SEGUNDO

1. Conceito de democracia.

2. O Ideal democrático: liberdade e igualdade sob proteção da

lei.

3. Democracia política e democracia social.

4. Tipos históricos de sua realização.

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1. Conceito de democracia.

Democracia é o governo do povo e para o povo, já pensaram os gregos, e

desta forma continuamos a defini-la, sobretudo quando em ocasiões

excepcionais de grandeza humana este sentimento se une ao irresistível

reconhecimento de que só os governos do povo pelo povo e para o povo são

capazes de unir os espíritos em torno de objetivos comuns como predicava

Lincoln nas cerimônias do Cemitério de Gettysburg.

Pelos tempos em fora vários significados se têm emprestado a esse sistema

de governo, variando os critérios de acordo com os princípios postos em

evidência na sua enunciação conceitual. Daí proceder naturalmente a

variedade de concepções da democracia, o que acentua a preeminência da

forma de governo que ainda agora obtém o maior acatamento no mundo

moderno.

Assim é que, para algumas correntes doutrinárias, a democracia se define

como o império da maioria (Laun, Yellinek, Barthélemy-Duez, Queirós Lima,

Darcy Azambuja e Pontes de Miranda), outros eminentes pensadores põem

em evidência a liberdade como princípio essencial à democracia (Stuart Mill,

Madison e Kelsen). Por sua vez, Schmitt, Max Webber, Laski e Lenine crêem

que a democracia se realiza desde que assegure a idéia de igualdade,

enquanto que Sanderson, Hobhouse e Pedro Calmon a tem como um

ambiente de equilíbrio, uma verdadeira filosofia de vida, de fundamentos

éticos e espirituais, possuidora de uma atração irresistível, como escreve

Barthélemy, no seu livro que se tornou clássico, intitulado La Compétence

dans la Démocratie, quando diz:

Uma atração profunda, misteriosa, irresistível, poderosa e fatal como uma força da natureza encaminha os povos para a democracia... Pode-se criticar o movimento democrático, mas deve-se levar em conta que isso constitui um trabalho tão vão como o de criticar o curso das estações ou a atração dos astros.

Há mesmo quem, como Rougier, pressinta na democracia a força de uma

mística, em La Mystique Démocratique, ao dizer, quanto ao espírito

democrático, que "ele se assenta sobre a crença de que não há

razoavelmente outra forma de governo possível senão o governo

democrático, nem politicamente outra forma desejável".

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Na realidade, a democracia se apresenta como um regime político portador

da complexidade dos elementos que a fazem ao mesmo tempo uma

realidade sociológica e um sistema de governo, exigindo uma definição

ampla e capaz de acolher no seu enunciado todos esses elementos, como

"idéias operantes", ou seja, as crenças que mantêm como existente um tipo

histórico de Estado. Nesse sentido, A. D. Lindsay nos adverte que:

basta ler a Oração Fúnebre, de Péricles, para dar-se conta de uma sociedade democrática. Platão e Aristóteles – os grandes críticos da democracia grega - encontram na democracia as mesmas características que encontramos na democracia

moderna - igualdade e liberdade.25

O caráter compósito do conceito democrático podemos aprendê-lo em duas

definições que daremos a seguir, revelando cada um a natureza dos

elementos postos em evidência, como em Duverger, quando diz ser a

democracia "um regime no qual os governantes são designados pelos

governados por meio de eleições livres e sinceras", e melhor ainda em

Hauriou, ao definir a democracia como "o estado de um povo no qual o poder

soberano reside na universalidade dos indivíduos, iguais entre si ante a lei" 26,

cujos enunciados evidenciam os verdadeiros princípios da democracia

exsurgindo da realidade sócio-jurídica da sua conceituação moderna.

2. O ideal democrático: liberdade e igualdade sob a proteção da lei.

Uma das mais importantes contribuições do pensamento greco-romano à

Ciência Política contemporânea é a idéia da organização dum sistema de

governo democrático tendo como princípios básicos a liberdade e a

igualdade sob a proteção legal de uma Constituição. A organização de um

Estado democrático, constituído pela opinião comum dos cidadãos da polis

grega e tendo como fim a formação de uma sociedade justa, já a

encontramos em Aristóteles ao estudar a democracia no seu livro A Política,

evidenciando os dois princípios de liberdade e igualdade, quando escreveu:

Cada cidadão, diz-se, deve ser igual, e assim numa democracia um pobre tem mais poder do que um rico, porque existem mais pobres e a vontade da maioria é suprema. Esta,

25

LINDSAY, A. D. El Estado Democrático Moderno. México, 1945, p. 359. 26

HAURIOU, Maurice. Princípios de Derecho Público y Constitucional. 2ª ed., s/d, p. 213.

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então, é uma nota de igualdade que todos os democratas afirmam ser o princípio do seu Estado. Um outro é que o homem deve viver como ele desejar. Este, dizem, é o privilégio de homens livres, pois, de outra forma, não como o homem deseja, é a marca do escravo. Esta é a segunda característica da democracia, daí levantar-se o clamor de os homens não serem governados por ninguém, se possível, ou, se isto não for possível, governar e ser governado ao seu turno; pois isso é uma condição da liberdade baseada na igualdade.27

Em Roma, Tácito nos dá o seu testemunho quando escreveu nos Anais que

liberdade e o consulado foram estabelecidos por Lucius Brutus, sob a

monarquia, e que as ditaduras se estabeleciam por crises temporárias no

Estado Romano. Gibbon, ao analisar em profundidade as causas do Declínio

e Queda do Império Romano, salienta os motivos que determinaram o

declínio da influência e a queda do maior Império e talvez do mais importante

cenário da história da humanidade,28 e em vários passos afirma a existência

da concepção da soberania popular na doutrina romana de que só era lei o

que havia sido aprovado pelo povo de Roma.

Porém, a mais importante contribuição feita por Roma à teoria moderna do

constitucionalismo foi a apreensão e formulação do conceito do direito

natural, a qual se originou com uma concepção muito dela, a do jus gentium,

que, mediante os editos dos pretores, elaborara um corpo jurídico do direito

das gentes, construído sob princípios racionais. Este direito se fundiu com a

idéia estóica de um direito natural, ideal apreensível por todos os homens e

aplicável a todos, o qual foi adotado posteriormente pelo Cristianismo.

Uma passagem famosa da Epístola de São Paulo aos Romanos deu

autoridade cristã à concepção do direito natural que haveria de exercer uma

influência poderosa sobre o pensamento ocidental, ao enunciar: "Porque os

gentios que não têm lei, naturalmente fazendo o que é lei, ainda que não

tenham lei, eles são a lei em si mesmos: mostrando a obra da lei em seus

corações" (Romanos, II, 14, 15). A doutrina da igualdade humana teve no

Cristianismo uma profundidade e uma força que lhe emprestaram os

ensinamentos da Igreja, na palavra dos Apóstolos das Gentes: "Não há

Judeu nem Grego; não há varão nem virago; porque todos vós sois um em

Cristo Jesus" (Gálatas, III, 28). Decerto, quando São Paulo assim escrevia,

27

ARISTOTLE. Politics. Book VI, 2, p. 520. Britannica, v. 9. 28

GIBBON. The Decline and Fall of the Roman Empire. Britannica, v. 40-41.

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não apregoava a igualdade dos seres humanos em habilidade e capacidade,

e sim na sua igual relação com Deus. É uma igualdade que se sobrepõe às

suas diferenças individuais, porém não a nega.

Com a quebra da unidade espiritual e moral do Sacro Império Romano, a

civilização ocidental foi profundamente modificada com os movimentos da

Reforma e da Renascença, que produziram a idéia do Estado nacional,

absolutista e secularizado, posteriormente impregnado pelos ideais da

Revolução Francesa, pela Revolução Industrial e o movimento da

Independência Americana. O Estado democrático baseado num estatuto

constitucional que dava o esplendor merecido aos princípios políticos de

liberdade e igualdade a todos os cidadãos. A democracia política liberal-

burguesa se instalava no mundo à base de declarações formais dos seus

ideais em letra de forma, como se vê no preâmbulo da Declaração de

Independência, adotada pelo Congresso dos Estados Unidos da América do

Norte, em 4 de julho de 1776:

We hold these truths to be self-evident, that all men are created equal, that they are endowed by their Creator with certain unalienable rights, that among these are life, liberty and the pursuit of happiness. That to secure these rights, governments are institutes among men, driving their just powers from the

consent of the governed29

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, decretada pela

Assembléia Nacional de França, em 26 de agosto de 1789, enuncia em

linguagem candente aqueles princípios:

Les hommes naissent et demeurent libres et égaux en droit. Le but de toute association politique est la conservation des droits naturels et imprescriptibles de I'homme; ces droits sont la liberté, la propriété et la resistance à I'oppression. Le principe de toute souveraineté reside essentiellement dans la Nation, nul corps, nul individu ne peut exercer d'autorité que n'en émane expressément. La loi est l'expression de la volonté

générale.30

Os progressos da ciência e da técnica científica unidos aos ideais de um

governo democrático construíram a grandeza desse regime nos séculos XIX

e XX, e, porque não dizê-lo, motivaram também as grandes crises sociais,

29

JEFFERSON, Thomas. American State Papers. Britannica, v. 43, p.1. 30

LIMA, Queiros. Teoria do Estado, em citação à p. 85.

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espirituais e institucionais com que se defronta a democracia em nossa

época.31

3. Democracia política e democracia social.

A democracia política corresponde em suas linhas gerais ao conceito da

democracia e consiste na realização das técnicas da liberdade e igualdade.

Além destas, outras condições são necessárias à sua realização, como a

existência de liberdades públicas (liberdade de imprensa, de associação, de

reunião, de culto, etc.); reclama ainda o maior respeito aos partidos e

personalidades da oposição, enfim, a promoção do bem-estar geral de acordo

com as normas legais e constitucionais que presidem o seu sistema jurídico e

a estruturação institucional dos poderes estatais. A democracia social visa

antes à realização do princípio da igualdade do que fazer reinar a liberdade.

Por isso pugna mais pelo afastamento das condições econômicas que

propiciam a subordinação de uns indivíduos a outros, ou, a evitar a

"exploração do homem pelo homem", utilizando como técnica de sua

realização o desenvolvimento das leis e obras de Previdência Social;

substituição das formas capitalistas das empresas privadas por

cooperativas; nacionalização dos setores básicos da produção, etc.

Burdeau admite que o problema das relações entre as nações de

democracia política e de democracia social situa-se antes num plano de

perspectiva histórica do que num plano lógico e transcende em muito ao

simples jogo de palavras ou à exposição de linificantes profecias. Nenhum

critério teórico ou material autoriza a distinção entre o domínio político e social.

Historicamente, a delimitação dum domínio social é a conseqüência duma

atitude adotada pelos governantes que abandonaram certas atividades à

liberdade dos comportamentos individuais e as decepções acumuladas pelo

uso dessa liberdade conduziram presentemente a sonhar com uma

intervenção do Poder para assegurar uma liberação futura. Para nós, é

Burdeau quem elucida o assunto, quando escreve:

31 Ver: GETTEL, Raymond G. Historia de las Ideas Políticas, Espanha, 1950, v. 1, capítulos VIII a

XIII; G. Mosca e G. Bouthol. História das Doutrinas Políticas, Rio de Janeiro, 1958, e J. J. Chevalier. Los Grandes Textos Políticos (desde Maquiavelo a nuestros dias, Madrid, 1954).

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II apparait, en définitive, que la différence entre démocratie politique et démocratie sociale ne peut être trouvée dans une diversité toute extérieure des buts ou du champ d'action des gorvernantes. Elle tient à la nature et aux

fondements mêmes du Pouvoir. 32

Na opinião de outro eminente jurista gaulês, Maurice Duverger, sendo o fim

precípuo da democracia assegurar a cada um a liberdade tão plena quanto

possível na vida da comunidade e os seus erros não só esquecer as

condições materiais que o exercício da liberdade exige, lançando um véu

pudico sobre a dominação dos poderes da economia capitalista, na medida

em que a democracia social tentar fazer face a estes dois erros, ela

prolongará o esforço da democracia política para um regime de verdadeira

liberdade. Porquanto:

loin d'être opposées dans leur essence, la démocratie politique et la démocratie socialle se complètent au contraire; on peut penser que la démocratie véritable ne

sera réalisée que par leur conjoction.33

Entre nós, Pontes de Miranda, no seu conhecido livro Democracia, Liberdade e

Igualdade (Os três caminhos), dedicou-se ao assunto com a profundidade de

argumentação que lhe é peculiar, demonstrando em gráficos a extensão do

campo de atividade da democracia do domínio político aos domínios

econômico e social, sendo o poder estatal o agente da democracia

social.34

4. Tipos Históricos de sua realização.

A democracia, como vimos, não é servida por uma doutrina que se não retifica

ao contato das idéias e dos progressos da humanidade. Muito ao contrário

disso, ela ajusta o conteúdo do seu ideário à paisagem social, ao ambiente

psicológico da época histórica a que serve, englobando, enfim, as

motivações internas e externas de fatores sociológicos muitas vezes

discrepantes, num aprimoramento constante das suas técnicas de realização

da democracia, baseada nos conceitos universais em que se firma.

32

BURDEAU. Traité. op. cit., t. VI, p 358. 33

DUVERGER, Maurice. Droit Constitutionnel et Institutions Politiques.op. cit., p. 41. 34

MIRANDA, Pontes de. op. cit., p. 157 e segs.

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I - Comumente distinguem-se três tipos históricos de expressão da

democracia, segundo a soberania do povo é exercida, em: direta,

representativa e mista, modalidade mais aceita por insignes juristas do direito

público moderno, a cujos tipos nos referiremos apenas de passagem numa

tentativa de fixação dos seus princípios.

a) A democracia direta é aquela em que o povo exprime diretamente a sua

vontade e exerce ele próprio as funções de governo. Para os dias atuais é

mais uma curiosidade histórica, como assinala Burdeau. Existiu na Grécia

antiga e, atualmente, em alguns cantões suíços subsiste essa modalidade

de governo de Conselho Aberto ou Assembléia Geral (a Landsgemeinden),

com órgãos que exercem funções legislativas, representativas e outras. Em

Uri, o Landrat exerce o poder legislativo. Em Obwalden e Appenzel (Ródano

exterior), é o Conselho de Cantão; em Glaris é um triplo Conselho que

tem a competência que na antiga democracia só exercia a Assembléia

popular; em Nidwalden é o Conselho Comunal, e em Appenzel (Ródano

interior), a competência precitada pertence ao Grande Conselho.35

A democracia direta como forma de governo seria inaplicável em nossos

diais, nos Estados-Nações de vastas extensões territoriais e de populações

muito grandes. Na polis grega e nas Cidades-Estados romanas bem assim

como nos pequenos cantões suíços o "governo do povo e pelo povo" alcançou

um ambiente propicio à sua realização.

b) A democracia representativa é a forma de governo que mais se adapta às

condições atuais dos Estados, pelas vantagens que oferece ao sistema de

representação popular das forças políticas, econômicas e sociais,

constituindo-se por isso no fundamento do moderno Estado de Direito. Carré

de Malberg assim o define na sua Teoria Geral do Estado:

Em sua acepção política, que é também sua acepção corrente e vulgar, o termo “regime representativo” designa, de uma maneira que chegou a ser hoje tradicional, um sistema constitucional no qual o povo se governa, por meio de seus eleitos, em oposição, tanto ao regime de despotismo, no qual o povo não tem qualquer ação sobre seus governantes, como ao regime do governo direto, no qual os cidadãos governam por si mesmos.36

35

YELLINEK. Teoria General del Estado. Op. cit., p. 546. 36

MALBERG, Carré. Teoria General del Estado. México, 1948, p. 916.

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A origem do sistema remonta ao fim do século XII, na Inglaterra, formado pelos

cavalheiros dos condados e os deputados dos burgos que representavam a

nação. Na França, a convocação dos Estados Gerais em 1614 já implicava no

embrião da representação política, constituindo-se no direito público anterior a

1789, “uma relação de mandato, de delegação, de comissão”, como ensina

Carré de Malberg. Após a convocação dos Estados Gerais em 1789, na

Constituição de 1791 se deu uma transformação radical naquele conceito de

representação anterior, pois que os deputados passaram a ser representantes

da Nação na sua totalidade, como defendeu o abade Sieyés, de acordo com a

vontade nacional, que é “o resultado das vontades individuais, do mesmo modo

que a Nação é o conjunto dos indivíduos” (Qu’est-ce que le Tiers-État? cap. VI,

apud Malberg, op. cit., p. 949).

Montesquieu foi, sem dúvida, o teórico de maior vulto do sistema de governo

representativo, no seu livro L’esprit des Lois, assim como J. S. Mill, no seu

Representative Government, um dos mais valorosos e conscientes

sustentadores, quando escreveu: "But since all cannot, in a community

exceding a single small twon, participate personnally in any but some very

minor portions of the public business, it folows that the ideal type of a perfect

government must be representative." 37

No Brasil, o eminente Professor Cláudio Pacheco, na sua recente e

monumental obra denominada Tratado das Constituições Brasileiras, trata do

assunto em profundidade, focalizando de modo especial o sistema

constitucional brasileiro, que adota a doutrina da representação nacional

para a eleição dos seus mandatários ao Congresso Nacional. Assim se

expressa o ilustrado mestre sobre o verdadeiro caráter da representação

no Brasil:

A Constituição atual, como já o fizera a de 1891, no limiar do período republicano, conserva no Congresso um poder constituinte potencial, pelo qual, sem mandatos especialmente conferidos pelos eleitores, sem necessidade de determinada renovação dos mesmos mandatos em eleições previamente advertidas, o órgão legislativo comum pode reformá-la quase inteiramente. É o maior de todos os pôderes, assim conferidos sem prévias instruções, com extensão e profundidade quase ilimitadas, inteiramente à base de mandatos livres, resultando assim que de algum modo mais

37

MILL, J. S. Representative Government. Britannica, v. 53, p. 350.

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nos aproximamos da teoria da representação propriamente dita.38

c) A democracia mista, também chamada de democracia semidireta, é uma

composição dos dois sistemas anteriormente descritos e representa uma

contribuição notável para o aprimoramento das instituições da democracia

representativa com o da consulta popular nos termos designados pela

Constituição. Teve essa modalidade grande aceitação após a Segunda

Guerra Mundial, com a instituição do referendum, a iniciativa popular e

o direito de revogação como institutos constitucionais do direito público

moderno.39

II - Democracias populares. Por "democracias populares" são conhecidos os

regimes políticos dos países submetidos aos princípios marxistas, e que se

organizaram segundo o modelo constitucional da URSS. Na sua origem,

compreendem os países da Europa central que ficaram ocupados pelo Exército

Vermelho na última guerra mundial, inclusive a Alemanha Oriental. A China

Comunista, embora se tenha organizado de acordo com os princípios

marxista-leninistas, encontrou para o seu regime a definição de "ditadura

democrática popular", como se lê na Constituição de 1954. A Iugoslávia, após o

"cisma" de 1948, passou a ter um regime de características próprias, embora

continue reafirmando fidelidade à ideologia marxista.

Tem-se, como motivo principal da atitude russa em relação aos pequenos

países ocidentais da Europa central, o fato de nos acordos de Yalta-

Potsdam, haver sido assentado que os países ocidentais teriam uma

influência política na organização dos governos locais, guardadas as

proporções do entendimento secreto entre Churchill-Stalin, de outubro de

1945, prevendo percentagens de influência soviética na Rumânia, Bulgária e

Hungria. Logo após a capitulação do Japão, em agosto de 1945, o governo

americano suspendeu todas as operações baseadas na lei de Empréstimos e

Arrendamentos, com os favores da qual Stalin esperava refazer o seu país dos

tremendos prejuízos sofridos com a guerra. Stalin, em violenta reação, em

1946, respondeu ao que chamou de "reação internacional", desfechando uma

série de "golpes" de Estado contra os governos dos países da periferia russa.

38

PACHECO, Cláudio. Tratado das Constituições Brasileiras. Op. cit., v.II, p. 44. 39

DUGUIT. Traité, op. cit., v. II, p. 447; MALBERG, Carré de. Teoria Geral do Estado. op. cit., Mirkine-Guetzeitch. Modernas Tendências. op. cit.

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Iniciava-se um outro capítulo que se convencionou chamar de guerra fria

e a luta pela supremacia mundial entre os dois blocos passou a contar com o

apoio de governos periféricos da Rússia, organizados de acordo com o

modelo comunista, na Polônia, Rumânia, Bulgária, Tchecoslováquia,

Iugoslávia, Hungria e Alemanha Oriental.40

Há dois momentos bem distintos na organização das democracias populares:

um corresponde ao período de 1945-1948; outro se inicia no período de 1947-

1948. Nenhum fato de ordem política interior explica e, sim, os acontecimentos

internacionais que levaram à ruptura de relações entre os aliados de 1941 e a

guerra fria, que deu ensejo à criação defensiva da “cortina de ferro” russa.

No primeiro período as democracias populares se apresentam com uma

organização mista de influências soviéticas e ocidentais, com predominância

da primeira influência. Em matéria econômica, ao lado de um setor

nacionalizado, um setor privado e um outro cooperativo, as reformas agrárias

permitem as pequenas propriedades e são em pequenas quantidades os

organismos do tipo kolkhose. Com exceção da Tchecoslováquia, que guardou

semelhança com as organizações estatais do tipo ocidental, e da Iugoslávia

que calcou a sua constituição no modelo soviético, as demais se

organizaram em regimes mistos, com o estabelecimento de fronts

partidários, onde o Partido Comunista procurava predominância e

manipulava as eleições, através dos postos-chaves que ocupava na

organização dos governos. A oposição era permitida, dispondo de jornais, com

cadeiras no Parlamento, caracterizando-se a vida política pela predominância

do governo.

No segundo período (1947-1948), grandes modificações se processam nos

países em que se dividiram os dois blocos do Leste e Oeste, passando as

democracias populares a se alinhar pelo modelo soviético, com a supressão

de governos de “coalizão” e a instalação dum regime próximo da ditadura do

proletariado. Economicamente, distinguem-se pela manutenção dum setor

privado e um setor cooperativo mais ou menos vasto; politicamente, pela

sobrevivência duma espécie de pluralismo partidário agrupado no seio de

fronts dirigidos pelo Partido Comunista e por um ou mais traços de

concepções ocidentais mantidos nas Constituições.

40

OLYMPIO, Guilherme. URSS & USA. Rio, 1955, p. 43-44.

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Salvo na Tchecoslováquia e na Iugoslávia, que fez um “cisma” em 1953, as

instituições políticas das demais democracias populares observam o mesmo

esquema constitucional da URSS: um Parlamento, um Presídio e um

Conselho de Ministros, embora com denominações adaptadas às tradições

locais. Politicamente, a mudança se processou no sentido da supressão da

oposição, sendo que, a partir de 1949-1950, a luta contra a oposição se deu

no seio do Partido Comunista, com a eliminação de Kostov, na Bulgária, de

Gomulka, na Polônia, Ana Pauker, na Rumânia, e Slansky, na Hungria.

A Iugoslávia, em 1953, tomou uma atitude de interpretação do Estado

socialista que chamou para si as atenções do mundo inteiro. Embora se

declarando "marxista-leninista", a doutrina socialista da Iugoslávia baseia-se

em dois pontos fundamentais: igualdade entre os Estados socialistas e a

degenerescência interna do marxismo na Rússia.

Com efeito, afirma a URSS que, sendo ela o primeiro e o maior Estado

socialista, a sorte mundial do regime depende dela, com isso significando

que a revolução mundial deve ser orientada por Moscou e as democracias

populares ficar sob sua dominação. Para os iugoslavos a interpretação é

assaz diferente: cada país deve fazer a sua própria revolução, do contrário

os sentimentos nacionais reagirão contra a marcha da revolução, que deve

ser feita pela ação interna das forças do país e não com a ocupação

territorial pelo Exército Vermelho. A Revolução pode ter formas diferentes e

não copiar o modelo soviético, pois, quando um país adota o regime da

democracia popular, é normal que uma amizade e uma aliança se dêem entre

os demais países socialistas e a URSS. Mas esta aliança não implica numa

subordinação e dominação pela Rússia.41

O outro ponto de divergência é a dominação interna por uma burocracia que

centraliza todos os poderes políticos, intelectuais e econômicos, tendendo

assim a um capitalismo de Estado.

A Constituição da Iugoslávia de 1953 tende a instaurar uma descentralização

econômica, um self-goverment social e uma descentralização política e

administrativa, mantendo como instituições políticas a Assembléia Popular e

o Conselho dos Produtores, de concepção original. Os órgãos executivos são

considerados como emanação da Assembléia Federal e seguem o princípio

41

VEDEL, Georges. Les Démocraties Marxistes. Paris, 1953.

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da delegação vertical do Poder, que, distribuindo os poderes entre os

órgãos de "função executiva" e órgãos de "função administrativa", pretende

aplicar o princípio de luta contra a burocracia.

A Iugoslávia deu ao mundo uma contribuição notável na interpretação prática

do socialismo, tanto mais porque a própria URSS reconheceu em 1955, em

declaração comum, que vários caminhos podem conduzir ao socialismo e

que a Iugoslávia é autenticamente um Estado socialista.42 Em Cuba, com o

regime de Fidel Castro, instalou-se um regime forte como emanação de um

processo revolucionário contra o governo de Batista, com um impulso

renovador característico do nacionalismo que faz trepidar o mundo ásio-

africano como os países da América na luta contra o subdesenvolvimento e o

colonialismo.43

42

Ver sobre o assunto as obras de VEDEL, Georges. Les Démocraties Marxistes. Paris, 1953; BURDEAU. Traité, op. cit., t. VII, p. 517 e segs.; DUVERGER, Maurice. Droit Constitutionnel et Institutions Politiques. op cit., p. 359 e segs.

43 MENEZES, Adolpho Justo Bezerra de. O Brasil e o Mundo Ásio-Africano. op. cit.

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CAPÍTULO TERCEIRO

1. Evolução das técnicas de realização da democracia política.

2. Tendência à concentração de poderes.

3. Seus instrumentos jurídicos: a legislação, as técnicas para-

legislativas governamentais.

4. O novo ethos politico-democrático e o problema finalístico do

Estado.

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1. Evolução das técnicas de realização da democracia política.

A democracia que conhecemos como forma de governo em nossos dias não

apresenta certamente as mesmas características idealizadas por seus

patronos e fundadores, embora guarde a fidelidade aos mesmos princípios

que a animaram e são imanentes à pessoa humana. Ao longo de sua

trajetória histórica, os mais variados fatores sociais, econômicos, espirituais e

morais foram se cristalizando nos sentimentos e na mente do povo onde ela

recolhe a validez da sua expressão jurídica e constitucional, e reclamaram

uma solução aos ingentes problemas que ameaçam a sua própria

sobrevivência.

De um lado, a criação de um regime político que se destinava quase que

exclusivamente à proteção do indivíduo contra o poder, dos seus direitos

fundamentais e sagrados, imobilizava o Estado como simples espectador ou

como simples gendarme, ante aquilo que Sir Henry Maine chamou "a benéfica

guerra privada" 44, em que o laissez faire laissez fasser constituía-se na

regra suprema da indiferença às competições e aos egoísmos individuais.

Do outro lado, a crítica oportuna e vigilante, exercida sobretudo pelos

socialistas contra o regime das franquias individuais e o abuso do poder

econômico, tornavam ilusórios aqueles princípios de liberdade sem a igualdade

correspondente das oportunidades.

Para alcançar a solução desejada, objeto das reivindicações populares mais

sentidas, era preciso não recear, como diria M. Bouglé, "um audacioso salto

para a frente", e foi o que fizeram os pensadores e homens públicos

responsáveis pelos destinos do governo democrático. Deram-lhe novos

instrumentos legais de ação, a fim de que a democracia voltasse a ser eficaz

na sua atuação e não perdesse a confiança e autoridade perante as grandes

massas populares. Mesmo porque, como acentua Burdeau:

O Estado moderno implica na existência de uma autoridade capaz de conceber os fins políticos, de estabelecer as regras jurídicas que permitirão atendê-los e de controlar a aplicação que nêle se fizer tanto pelos indivíduos como pelos inumeráveis organismos públicos ou semi-públicos encarregados de pô-los em execução. 45

44

MAYNE Henry. Popular Government. p. 50, apud LASKI, Haroldo. Razón, Fé y Civilización. op. cit., p. 23

45 BURDEAU, Georges. Traité. op. cit., v. VIII, p. 236.

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Regime que tolera a livre manifestação dos contrários como condição da sua

razão de ser, não poderia omitir-se, sem graves riscos, diante das contradições

geradas dentro dos seus próprios domínios sociais, resultantes da

organização industrial das sociedades modernas, com a fábrica de

produção em massa e a sociedade anônima e a formação das classes

operárias, que pretendiam engendrar, como bem o disse Disraeli, "duas

nações dentro de uma mesma sociedade: duas nações que raras vêzes falam a

mesma linguagem, que raras vêzes sabem manter uma unidade de ação".

46

Tinha razão Harold Laski, nas suas Reflexões sobre a Revolução do Nosso

Tempo, quando escrevia ser necessário agir celeremente com objetivo de

mudar a estrutura da sociedade capitalista, uma vez que os seus

dirigentes estivessem convictos de que a democracia era a melhor forma

de governo, pois "cada sociedade está edificada sobre um sistema de

postulados cuja continuação em vigor deve comprometer-se a manter os

membros de dita sociedade" 47, sob pena de cederem lugar às filosofias das

dissensões políticas, recorrendo à disciplinação das suas atividades em

proveito do bem-estar geral da sociedade.

Conta-nos a História uma passagem na qual Xerxes, rei da Pérsia, muito se

admirava da tenacidade com que lutavam os espartanos, que não conheciam

a liberdade, e perguntou a um general preso qual o sentimento que os animava

a se bateram tão valorosamente. Ao que o espartano Demerato replicou:

"Livres, sim, o somos, mas não livres sem freio, pois soberana têm a lei da

Pátria, a qual temem muito mais do que a vós os vossos vassalos."

48 Vê-se

que a disciplinação jurídica dos fenômenos sociais é uma noção antiga

arraigada no consenso geral, determinada por fatores vários na vida coletiva

das sociedades, por um lado, ao postular medidas legais que acompanhem a

expansão das atividades estatais, por outro lado, como sistema de proteção e

defesa das instituições existentes. A democracia política, como sistema de

governo, não fugiu ao reconhecimento dessa situação de fato, ao apreciar o

perigo que devia enfrentar em consequência das contradições internas da

sociedade capitalista, quer estendendo o seu campo de atividades aos

domínios econômicos e sociais, quer utilizando o poder em defesa contra os

que, usando o clima de liberdade existente, promoviam movimentos tendentes

46

DRUCKER, Peter F. A Guerra e a Sociedade Industrial. Rio, 1944, p. 97. 47

LASKI, Harold. Razón, Fé y Civilización. Buenos Aires, 1945, p. 24. 48

LINDSAY, A. D. El Estado Democrático Moderno. Méxio, 1945, p. 78.

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ao seu aniquilamento.

Aliás, os precedentes já eram conhecidos, quando Mussolini, em 1923,

utilizando-se das facilidades concedidas pelas instituições

constitucionais, fêz a Marcha sobre Roma, inaugurando o regime

fascista na Itália. Hitler, em 1933, usou a mesma tática, quando

Chanceler do Reich alemão, criando o nacional-socialismo. Diante destes

precedentes históricos, a democracia tomou o caminho da regulamentação

legal das atividades político-partidárias, prevendo o modo de sua organização

e promovendo a sua fiscalização mediante a Justiça Eleitoral.49

Nos Estados Unidos da América do Norte, a lei Internal Security Act de

1950 e a Communist Control Act de 1954 compreendem as medidas de

segurança interna e internacional contra as infiltrações comunistas naquele

país, que aboliu os direitos e privilégios concedidos ao Partido Comunista. No

Brasil, idêntico procedimento se verificou com a cassação do registro do

Partido Comunista pela Justiça Eleitoral, decisão tomada em 7 de maio de

1947, no plano interno, e, no plano internacional, o rompimento das relações

diplomáticas com a Rússia.50

Ao lado da posição defensiva assumida em proteção das instituições

governamentais, poderosas forças econômicas e sociais requeriam uma

mobilização em torno dos fins a que se propõe o Estado no regime democrático,

com a organização dos sindicatos de classes e os grupos de pressão.

Os sindicatos, na América do Norte, não tem vinculação às organizações de

caráter político e se interessam mais em apoiar os que se comprometem a

satisfazer as suas reivindicações. A Congress of Industrial Organization

(CIO), assim como a American Federation of Labor (AFL) e outras

organizações de classes como a National Farms Union, a American Farm

Bureau Federation, etc. têm-se manifestado contrariamente ao Comunismo,

porém agiram como grupo de pressão em favor da política do New Deal de

Roosevelt, que sempre contou com o apoio das massas trabalhadoras

americanas.

49

Sobre os sistemas de organização dos partidos políticos, interessante ver o livro de Maurice Duverger, Les Partis Politiques, Paris, 1954.

50 BRANDÃO, A. C e PALMEIRA, D. Repertório Eleitoral. Rio, 1945.

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Na Inglaterra, as Trade Unions vincularam-se ao Labor Party inglês, tendo

nele o veículo das suas reivindicações classistas. Servem muitas vezes de

intermediários entre o Poder oficial e os órgãos de deliberações das Trade

Unions, encaminhando os entendimentos para solucionar as divergências

acaso surgidas contra suas reivindicações. No Brasil, os sindicatos

constituem a aspiração maior da organização política das classes operárias

inaugurada pelo Presidente Vargas, a cuja memória se encontram presos

os trabalhadores brasileiros, vinculados ao partido político por ele

fundado, o Partido Trabalhista Brasileiro, que congrega as aspirações do

operariado nacional em torno de programas de reivindicações sociais e

classistas.

Além daqueles organismos operários, outros meios são utilizados pelo povo

na conquista das suas reivindicações classistas ao organizar-se em poderosos

grupos vinculados às atividades econômicas e sociais, conhecidos pelo

nome de pressure groups ou grupos de pressão. Importantes órgãos dessa

natureza existem em quase todos os países com o fim de mobilizar a opinião

pública na luta por determinadas reivindicações classistas, dispondo de

grandes recursos financeiros, de imprensa, rádio, etc., atuando não só nos

períodos eleitorais como também sobre os poderes oficiais, quer seja Executivo

ou Legislativo, pressionando-os no sentido de atendimento das suas

pretensões.

Na América do Norte, poderosas organizações vinculadas aos diversos

setores econômicos e sociais formam os grupos de pressão sem, no entanto,

emprestar-lhes um caráter político na sua atuação. Na Europa como no

Brasil, a atuação desses organismos sindicais como os vinculados às

atividades econômicas e sociais têm uma orientação que se complementa com

o exercício de manifestações de caráter político.51

2. Tendência à concentração de poderes.

A tendência à concentração de poderes nos regimes democráticos

modernos é uma conseqüência natural das múltiplas atividades sociais a que

é chamado desempenhar o Estado, instado a satisfazer às exigências

populares que se expressam em forma de solicitações mais ou menos

51

DUVERGER. Droit Constitutionnel. op. cit. p. 315. BURDEAU. Traité. op. cit., p. 136.

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prementes de solução dos complexos problemas existentes numa sociedade.

Sendo o poder estatal o árbitro desses constantes chamamentos coletivos,

decerto está na contingência de agir, e agir com rapidez e eficácia, devendo

para isso aparelhar-se com os instrumentos governamentais indispensáveis à

sua movimentação.

É do nosso conhecimento que o regime democrático liberal, como foi

concebido pelos patronos do liberalismo, tendia mais à quietude, à inércia

provocada por uma distribuição de poderes pelos órgãos constitucionais do

governo que se equilibravam segundo o sistema de freios e contra-pesos, com

o sentido de assegurar aquela situação predicada por Montesquieu, em le

pouvoir arrête le pouvoir, para evitar a tirania dos governos todo-poderosos.52

Georges Burdeau sintetiza magistralmente o assunto com a sua peculiar

clarividência, quando diz que os objetivos do Poder tendo mudado,

il ne s’agit plus alors de freiner le Pouvoir, mais bien, au contraire, de faciliter son action. Codition de sa efficacité, sa concentration exclut tous les mécanismes imaginés pour le paralyser et, au primier chef, le système des contrepoids chex aux constitutioanalistes de l’État libéral.

Sendo evidente a necessidade de concentração do Poder pelo próprio

desenrolar da vida política, as três categorias de instituições em que

tradicionalmente se divide a soberania da vontade popular nos regimes

constitucionais: o bicameralismo, o federalismo e a separação dos poderes,

todas três estão em regressão, afirma o consagrado Mestre da Universidade

de Paris.

Opinião idêntica, sobre a decadência das três categorias institucionais,

encontramos no eminente e acatado constitucionalistas patrício, Prof. Cláudio

Pacheco, no seu Tratado das Constituições Brasileiras, quando diz que "a

separação de podêres é uma fórmula já superada", e, com respeito à

Federação

já não se pode encobrir a realidade com o dizer que estaria havendo apenas um processo de racionalização do nosso

52

Sobre o assunto, ver a tese do eminente Prof. Cláudio Pacheco, Separação de Poderes, Teresina; também a monografia do Prof. Pinto Antunes, sob o título Da Limitação de Poderes, Belo Horizonte, 1955, em que o A. estuda a matéria em relação à sistemática do constitucionalismo brasileiro.

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federalismo, pelo qual os critérios políticos de organização federal estariam cedendo lugar a critérios jurídicos mais adiantados e progressistas. A crueza dos poderes de ingerência econômica e social e a concentração do poderio financeiro, além do poderio militar que em sua nova envergadura técnica só pode afluir para o centro, estão cumulando o govêrno federal de todos os meios de fortalecimento e de influência que só podem transitar para acrescer, além de toda esperança de moderação e equilíbrio, o predomínio de Estado Federal. 53

A concentração de poderes nas democracias ocidentais atendeu ao imperativo

do novo ethos político exigindo a coordenação de medidas necessárias ao

planejamento de uma sociedade que sofrera a provação de duas guerras

mundiais, assim como a crítica exercida pelo socialismo em todo o

mundo. As conseqüências nas concepções jurídicas deviam ser

aguardadas mas foram recebidas, não sem perplexidade, pois o Direito novo

que o regime democrático reclamava parecia conter em si o germe que

abalaria a confiança nos postulados tradicionais em que se assentava a

ordem jurídica vigente, sobretudo se levarmos em consideração que os

apelos feitos eram dirigidos no sentido de uma maior intervenção do Estado

nos domínios econômicos e sociais. Nos regimes presidenciais, como nos

Estados Unidos e no Brasil, os poderes de que dispõem os seus Presidentes

são de uma amplitude enorme, como assinala Harold Laski:

A amplitude das funções do presidente é enorme. É o chefe cerimonial do Estado. É uma fonte vital de sugestões legislativas. É a fonte última das decisões executivas. É o expoente autorizado da política exterior da nação. Combinar todas estas atividades com a necessidade permanente de ser ao mesmo tempo o representante da nação e o líder de seu partido político, implica, sem dúvida, uma exorbitante tarefa imposta às energias de um só homem, que não tem comparação com as exigências de nenhum outro cargo político do mundo. 54

Por outro lado, além da necessidade de enfrentar dificuldades da hora

presente, a democracia não poderia desconhecer que a sua filosofia otimista,

de crença no progresso científico e nas técnicas de sua realização em

proveito da sociedade hodierna, teria que captar as aspirações do povo e

canalizá-las ao Poder Jurídico instituído, pois o Poder não deve ser exercido

53

PACHECO, Cláudio. Tratado das Constituições. op. cit., 1º v., p. 367 54

LASKI, Harold. El Sistema Presidencial Norte-Americano. Buenos Aires, 1948, p. 26.

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senão com a condição de realizar continuamente as aspirações do povo,

como o diz Mazarik, no seu livro La Democratie.

Em conseqüência, escreve Georges Ripert:

Uma democracia é necessariamente atuante, porque tem um ideal que nunca pode atingir. Ela estabelece como princípio o progresso indefinido da sociedade e liga esse progresso ao desenvolvimento da civilização material. Para assegurar o progresso é necessário reformar continuamente o direito tradicional. Uma aristocracia pode contentar-se com defender e conservar; uma democracia deve inevitavelmente conquistar e desenvolver. 55

Encontramos em Harold Laski, preclaro teorista das doutrinas socialistas no

pós-guerra , uma análise segura e completa sobre o que considera injusto na

ordem jurídica imperante e que deve ser mudado, ao escrever:

quando os trabalhadores estão profundamente convencidos de que a presente distribuição da riqueza é injusta; quando, organizados em um grande partido político, declaram o sistema presente da propriedade privada, não meramente desigual, mas incompatível com a riqueza potencial de que podem participar; quando, em tôdas as partes em que predomina a civilização ocidental, estão de modo crescente convencidos de que pobreza que padecem é desnecessária e está ocasionada pelo sistema econômico presente; quando os trabalhadores insistem que hão intentado reorganizar a forma e o espírito de tôdas as instituições sociais; quando, de modo algum, a decadência da fé religiosa lhes permite esperar no Além uma recompensa de suas penúrias neste mundo; então, pode dizer-se, o cenário está preparado para uma daquelas revoluções fundamentais de que a Reforma é o exemplo supremo nos tempos modernos. 56

Diante da enorme tarefa de reformulação social como a acima descrita, o

poder estatal deve ser forte para realizá-la, o que preocupa eminentes

juristas como Paul Roubier, na sua Théorie Générale du Droit:

L'exigence d'un pouvoir fort, au milieu des multiples groupements qui doivent peupler la vie sociale, parait toute naturelle, mais ne conduit-elle pas à I'absolutisme? Comment l’accorder avec le maintien de ces libertés

55

RIPERT, Georges. O Regime Democrático e o Direito Civil Moderno. p. 9. 56

LASKI, Harold. Reflexiones sobre a Revolução do Nosso Tempo. op. cit., p. 50-51.

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publiques, auxquelles les hommes de I'Occident ont été habitués, et qui leur paraissent si précieuse? 57

Em Jean Dabin, na sua Teoria Geral do Direito, encontra-se uma afirmação

consagradora quanto aos fins sociais a que se destinam as regras do

Direito, quando escreve:

política e direito se juntam, pois, no mesmo fim (bem público); mais exatamente, enquanto que a política é a ciência e a arte do bem público, a regra de direito está a serviço da política e a prudência que rege a elaboração do direito, ou prudência legislativa, é uma parte da prudência política.58

Dentro do mesmo critério valorativo (ou axiológico) que caracteriza os

estudos de Max Scheler, Luís Recasens Siches procura interpretar a situação

do problema jurídico segundo um escalão de valores determinados pelos fins

a que se propõe o Estado e os conflitos possíveis entre as noções de

segurança, certeza e justiça numa sociedade ou quando se achem em jogo

interesses que estejam relacionados com os supremos valores, tais como

a dignidade e liberdade da pessoa individual, os direitos fundamentais do

homem, os das mais elementares exigências da justiça social, então, não há

dúvida de que se deve dar primazia à justiça sobre a certeza e a segurança

formais. Quando os interesses em jogo estão fundados em valores

relativamente secundários, de escalão inferior aos mencionados antes, a

correção de uma injustiça não aconselha quebrar o mínimo de certeza e

segurança convenientes para o bom funcionamento da ordem social. 59

A problemática dessas noções axiológicas se situa em torno de escalões

categoriais de valores no qual a liberdade e a igualdade se impõem de

maneira inequívoca, não só no domínio dos atributos da personalidade

humana como também como condição de justiça social, quer traçando os

limites que se devem exigir parar a ação do Estado, quer facilitando-lhe meios

legais de efetivação da igualdade dentro da sociedade.

Daí se explicar o sentido da evolução nas concepções das liberdades públicas,

fundamentais no Estado democrático.

57

ROUBIER, Paul. Théorie Génerale du Droit. Recueil Sirey, Paris, 1951, p. 207. 58

DABIN, Jean. Teoria General del Derecho. Madrid, 1955, p. 207. 59

SICHES, Luis Ricasens. Nueva Filosofia de la Interpretación del Derecho. México, 1956, p. 285.

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De modo geral, os liberais do século XIX admitiam a idéia de um conflito

permanente entre as exigências do indivíduo e as da sociedade. O Estado,

o governo, aparecia como um mal necessário, sendo então imprescindível

limitar ao máximo a sua atividade. Quando Saint Just dizia on ne governe

pas innocenment, revelava a filosofia profunda de um enunciado que tinha

suas origens nas doutrinas liberais religiosas, políticas e econômicas que

presidiram à formação dos princípios básicos do liberalismo de que o poder

é sempre perigoso, os que o exercem são sempre levados a abusar dele,

convindo, então, limitar as atividades tanto quanto possível. A liberdade passou

a ser um direito de resistência aos governantes.

Modernamente não se concebe a ação do Estado como sendo sempre

nociva à liberdade individual, como em Stuart Mill;

60 em alguns casos, a

intervenção do Estado é benéfica e assegura o exercício das liberdades aos

cidadãos. À concepção da liberdade-resistência substitui-se

gradativamente, na teoria e na prática, o pensamento jacobino de Liberdade-

-participação, que teve na análise marxista das liberdades formais e

liberdades reais um forte apoio para a sua evolução. Ademais, a influência de

Adams Smith na economia clássica, revelando que a intervenção do Estado

nos domínios da economia privada é sempre má,61 foi perdendo o impulso

e sendo rejeitados os seus postulados com a evidência de que a intervenção

do Estado na economia nem sempre é má.

Nos países onde ainda predomina a economia liberal, como nos

Estados Unidos, o desenvolvimento da intervenção na economia é notória

com o New Deal de Roosevelt, sem se falar nos regimes socialistas como a

Rússia e as democracias populares, onde a economia está inteiramente nas

mãos do Estado.

Esta evolução doutrinária está estreitamente ligada aos fatos da vida

presente em que há uma solicitação da presença do Estado para conter os

excessos do liberalismo, como também, em determinados casos, o equilíbrio

da moeda, a estabilidade dos preços, o controle dos investimentos, o

60

MILL, J. S. On Liberty, p. 43, escreveu: “The struggle between Liberty an Autority is the most conspicous feature in the portions of history with which we are earliest familar, particularly in that of Greece, Rome, and England... By Liberty was meant protection against the tyrany of the political rulers. The rulers are conceived (except in some of the popular governments of Greece) as in a necessarily antagonistic position to the people whom they ruled”.

61 SMITH, Adams. An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nation. Britannica, v.

39, ver especialmente o livro IV.

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planejamento e execução de serviços de interesse geral exigem a

intervenção do Estado; assim como as disponibilidades financeiras são

condições essenciais ao aproveitamento da energia atômica, à exploração e

ao estudo dos espaços siderais, etc., a cujos empreendimentos a economia

privada não se dedicaria por falta de recursos ou porque não tivesse uma

finalidade lucrativa, que é a sua razão de ser.

A redefinição dos conceitos clássicos se fez inevitável; voltaremos, ainda, ao

assunto.

3. Seus instrumentos jurídicos: a legislação, as técnicas para-legislativas

governamentais

O procedimento legislativo nas democracias modernas está a exprimir uma

modificação substancial nas fontes de inspiração das leis votadas bem como

uma tendência à comprovação de tenacidade, difícil de se encontrar nos meios

parlamentares, dado que a lei perdeu o sentido de regra geral, tal como era

concebida pelos fundadores da democracia clássica, passando a enfocar

casos particulares que somente uma extrapolação de sentido empresta-lhe

ainda um caráter abstrato.

Tornando-se solução antes que princípio de solução, a lei é solidária com

os problemas resolvidos na democracia pluralista, mas perde o caráter

de impessoalidade. Também cai em dessuetude, uma vez solucionado o

problema que lhe dera causa, provocando uma sensação de descontinuidade

na ordem jurídica imperante ao mesmo tempo que para uns revela

sintomas de incerteza e insegurança social, como pareceu a Ripert.

É que a sua inspiração se encontra na possibilidade de captação dos

fenômenos sociais pelos partidos políticos, nos interesses e nas intenções

governamentais em movimentarem o poder estatal com vistas à solução dos

ingentes problemas que lhe são postos. E a multiplicidade de providências

legais adotadas parece infundir nos espíritos afeitos à tradicionalidade do

direito jusprivativista a impressão de subversão da ordem estabelecida nos

Códigos, que "il ne faut y toucher que d'une main tremblante", como diria

Cambacérès.

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Por outro lado, os reclamos sociais, financeiros e econômicos exigem um

poder vigilante e vigoroso nas suas manifestações de ordenamento social e

a movimentação do governo só pode ser feita regularmente nas

democracias mediante a autorização legislativa pelo Congresso. Este é

lento nas suas deliberações, oferecendo uma flagrante contradição entre os

princípios constitucionais que informam o regime democrático e a

necessidade que tem o governo de agir rapidamente mediante

legislação governamental, atendendo aos justos apelos do povo que é a

própria sede de onde emana a organização do poder estatal.

Este fato se observa não só nos países como a Inglaterra em que a

Constituição permite a legislação delegada, como nos governos de tipo

presidencial, em que a delegação ou é legislativa ou motivada por uma

resignação parlamentar. E é realmente impressionante a sua ocorrência nas

democracias modernas onde tudo ou quase tudo se faz por meio de uma

legislação delegada ao poder governamental, o que o torna ainda mais forte

diante dos demais poderes constituídos, notadamente com a utilização dos

decretos executivos estatuindo normas de conduta estatal para todas as

situações em que o Estado é chamado a intervir.

Todos os setores da vida coletiva interessam ao Estado, por consequência, a

extensão do seu poder legiferante torna-se amplo na medida das solicitações

feitas, publicizando o direito, o que para Portalis é de uma "desconcertante

imprecisão". Ripert vê no fato que chama de legislação em demasia um dos

sintomas mais impressionantes do declínio do Direito. Para outro, aparece

como a proteção dos legítimos interesses do povo, face ao novo ethos

político, democrático, intimamente ligado ao problema finalístico do Estado, na

hora presente.

4. O novo ethos político-democrático e o problema finalístico do Estado.

O problema da finalidade do Estado sofre as naturais transformações

decorrentes de fatores sociais, econômicos, culturais, científicos, morais,

políticos, jurídicos e religiosos. Por isso, torna-se imprescindível a revisão

constante dos valores estimativos das atividades estatais e a consequente

adaptação desse critério de valores para a fixação de novos modelos

estruturais encarregados de assegurar a ação administrativa do Estado.

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Cada época ou estágio da vida humana tem o seu ethos político, condizente

com a evolução social e cultural que o informa, mas, de modo geral, as

instituições modelares se criam e se fazem vigentes numa mesma época e

para os povos que comunguem dos mesmos ideais.

E, dada a inter-relação cultural verificada nos dias que correm, em virtude

da facilidade de comunicações e do intercâmbio econômico e cultural-

-científico, tornou-se possível visualizar a solidariedade de propósitos

humanos para objetivos idênticos num mundo só, como o definiu Wendell

Wilkie, embora persista a heterogeneidade sócio-cultural e política que

apenas diversifica e embeleza a paisagem da civilização humana.

Dentro deste quadro toscamente descrito atuam os Estados como

entidades de direito público, buscando cada qual cumprir as finalidades

que representam ou encarnam como expressões legítimas e multitudinárias

das respectivas nacionalidades, erigindo na forma de governo adotada o

instrumento natural de exteriorização desses propósitos.

Georges Burdeau, no seu magnífico Tratado de Ciências Políticas, analisando os

regimes contemporâneos face ao novo ethos político, econômico e social

hodierno, assim se expressa:

Sur Le fond des divisions évidentes qui opposent les deux types de civilization entre lesquelles le monde est partagé, ressort un trait commun, unique peut-être mais si riche en virtualités qu'il pourrait, à lui seul, résorber tous les antagonismes. Ce point de rencontre entre I'ouest et l'est, c'est la reacherche du bien être collectif dont se réclament les deus régimes. 62

Com efeito, diferem entre si as fontes informadoras das duas democracias em

que se divide o mundo. A democracia liberal tem como marco histórico o ano

de 1791 e se assenta no intenso movimento filosófico-doutrinário oriundo

dos princípios cristãos laicizados, com o reconhecimento da dignidade

transcendental da pessoa humana e dos seus direitos inalienáveis; na

convicção de que o Estado deve representar os anseios da coletividade

atuando através dos seus representantes nos Parlamentos, escolhidos pelo

sufrágio universal e na admissão da livre iniciativa e da mais ampla liberdade

62

BURDEAU. Traité. op. cit., v. VI, p. 357.

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em todos os setores das atividades humanas, cujos princípios constituem a

base doutrinária do Individualismo. A democracia socialista tem a sua

gênese no regime instalado na Rússia após a revolução de 1917, e nas

democracias populares do centro europeu e na China Comunista. Baseia-se

na concepção materialista da História e dos fenômenos sociais e

econômicos, erigindo o Estado monolítico em suma potestas, no qual se

subsume o indivíduo.

Acredita-se na inconciliabilidade destes dois mundos nos quais os princípios

se opõem como em discussão entre o Bem e o Mal, sem embargo do que

muitas inteligências das mais brilhantes em nossos dias hajam procurado

conseguir, sobretudo no domínio prático das atividades assinadas ao

Estado, uma identificação propiciadora da grande solução de síntese

intelectual entre os dois regimes.

Um fato parece ganhar importância entre os mais abalizados escritores do

nosso tempo: é que se faz necessária uma redefinição de conceitos face aos

tremendos problemas que enfrenta o mundo moderno, não só no plano

interno da vida das nações como e especialmente nos domínios da

convivência internacional dos povos, pois, como observa Harold Laski: "o

mundo moderno há comprovado que tanto os dogmas religiosos como os

sistemas ideológicos do passado deixaram de ter validez frente aos tremendos

problemas da sociedade atual". 63

No mesmo sentido se expressa John Randall, professor da Universidade de

Columbia, sem precisar, contudo, qual a natureza da síntese intelectual

que poderá constituir a base do pensamento da sociedade industrial do

futuro, quando escreve:

No ano da graça de 1950 há homens inteligentes que profetizam a iminente reaparição na Europa de qualquer coisa que se pareça sequer remotamente à civilização e cultura que conhecemos por mais de dois séculos... Mas, apesar de nossos apaixonados programas para conjurar a crise de hoje, não podemos dizer com segurança que forma ou formas assumirá eventualmente a organização da sociedade moderna. Menos ainda podemos predizer a natureza da nova síntese; se, em realidade, podemos esperar uma vez mais, salvo durante breves períodos de crise a consecução de um sistema

63

LASKI, Harold, J. Fé, Razon y Civilización. op. cit., p. 19.

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de fé, e de saber como os que se encontram tanto no século XIII como no século XVIII. 64

Embora reconhecida a dificuldade de aproximação entre os dois mundos

estranhamente diferentes, os contatos obrigatórios tomados em face da

necessidade de entendimento para a convivência num mundo que se tornou

pequeno ante os avanços científicos de conquistas siderais e foguetes

teleguiados, facilidades de intercâmbio oferecidas pela civilização, e a

coincidência dos objetivos estatais para a solução dos grandes problemas

mundiais dão-nos alentadoras esperanças de que será encontrado um

terreno comum onde se abriguem os maiores interesses de todos os povos

da Terra.

64

RANDALL, John. La Formación del Pensamiento Moderno. Buenos Aires, 1952, p. 396.

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CAPITULO QUARTO

1. Democracia social: fontes de sua inspiração.

2. Técnicas de realização da democracia social.

3. O problema da utilização do poder estatal.

4. Solução "ocidental": necessidade de um compromisso. Solução

marxista: a conciliação dialética.

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1. Democracia social: fontes de sua inspiração.

As origens mais remotas ligadas ao pensamento doutrinário da democracia

social podemos encontrá-las no momento mesmo em que se elaborava a

teoria da liberdade-resistência, princípio básico do individualismo liberal.

E, por extraordinária coincidência, a doutrina dissidente que inspirou os

jacobinos teve início também em Rousseau, retomada por Babeuf, Blanqui e

pelos socialistas, ao curso do século XIX, em críticas feitas às liberdades

tradicionais e à oposição estabelecida por eles entre as "liberdades formais" e

as "liberdades reais", com o que deram decisivo golpe na noção de "liberdade-

-resistência". Por fim, as doutrinas econômicas contemporâneas, no

pensamento de Sombart e Cassirer, que repudiaram o liberalismo de

Masnchester e se aliaram no mesmo sentido.

A redefinição das liberdades públicas tornou-se um imperativo da época, como

examinaremos a seguir.

Benjamin Constant, que viveu intensamente as lutas liberais do século XIX,

distinguiu o que chamava a liberdade dos modernos, caracterizada pela

independência individual, da liberdade dos antigos, que se compõem pela

participação ativa no poder coletivo, opondo-se vigorosamente a esta, por

considerá-la um sofisma, por ele chamada "liberdade-participação".

Duverger diz encontrar-se em Rousseau a origem de tal concepção,

quando conclui, ao examinar o poder soberano: "demander jusqu'òu

s'etendent les droits respectifs du souverain et des citoyens, c'est demander

jusqu' à quel point ceux-ci peuvent s'engager avec eux-mêmes..." (Contrat Social, II, 4.)

E acrescenta o eminente pensador francês: "A participação de cada um na

formação da vontade geral define sua liberdade: em face da vontade geral,

as vontades particulares devem ceder."

Crítico da obra genial de Rousseau, como J. J. Chevalier, sustenta que o seu

pensamento tende no fundo a resolver a antinomia indivíduo-sociedade. E,

mais fundamentalmente, ele considera a liberdade como vinculada

essencialmente à participação da vontade geral. Coube a Mably, discípulo de

Rousseau, desenvolver o seu pensamento nesse ponto, cujo pensamento

foi admiravelmente resumido por Benjamin Constant, como segue: "Il veut

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que les citoyens soient complètement assujetis pour que le peuple soit

libre" 65

Aceita-se como fato de evidência histórica que o sentimento da liberdade à

época de Robespierre e Saint Just não era concebido como um princípio de

resistência ao poder, mas como a sua participação no poder. Daí parte uma

concepção da democracia e da liberdade, com fortes traços de Marx, Lenini

e nos regimes socialistas atuais. Pois, aos que dizem que na URSS não existe

liberdade, os seus apologistas retrucam: "Todos são livres porque o povo está

no poder, e que liberdade de resistência só pode existir quando o governo é

mau, mas, quando o governo é bom, se exprime a vontade popular, a base da

teoria da liberdade-resistência se esvanece."

66

As considerações feitas acima com respeito ao problema da liberdade numa

democracia social são, a nosso ver, da maior importância para uma

exposição equilibrada dos princípios informadores do regime que, pela sua

própria denominação social, importa num deflagrar de energias criadoras que

se impõem como um processo revolucionário em busca do poder, que tem

muito daquilo que Buderau caracteriza como "dinamismo irracional", quanto aos

meios a serem empregados para atingir as finalidades a que se propõe.

Fugindo às definições, sobretudo em assuntos complexos como o presente,

pode-se considerar como democracia social uma sociedade da qual

são excluídos os privilégios econômicos que conferem a fortuna, a situação social o ou tipo de atividade à qual se dedica o indivíduo. O principio de uma tal sociedade é a igualdade. Não só a igualdade política, mas igualdade de oportunidade para todos.

67

Ensina o consagrado mestre da Universidade de Paris no seu monumental

Tratado de Ciências Políticas, e, nesse sentido a democracia social pode ser tida

como "o regime do bem-estar com Justiça". Não importa a maneira como é

possível obter esse resultado, por uma conjuntura econômica

excepcionalmente favorável ou por motivo de uma regulamentação

rigorosa, pois num caso seria espontânea e no outro seria construída,

65

CONSTANT, Benjamin. L'Ésprit de Conquête et D'usurpation, apud Duverger, op. cit., p. 205, e abbé Mably,

Législation. 66

DUVERGER. Droit. op. cit., p. 205. 67

BURDEAU. Traité. op. cit., v. VI, p. 343.

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fazendo uso dos procedimentos técnicos de que dispõe a democracia,

estendendo-a do domínio político ao plano econômico e social como já nos

advertia Pontes de Miranda, no seu livro Democracia, Liberdade e Igualdade,

com a submissão total das suas atividades à determinação do grupo social.

A coordenação das atividades numa democracia social se faz com o objetivo

de aproveitar os recursos naturais, humanos, culturais e técnico-científicos

pelo poder que tem sob a sua responsabilidade de criar condições de nível de

vida aceitável por cada um, justiça diante dos encargos da vida em sociedade

e igual segurança em face dos riscos da existência. O essencial então, é que

a direção dos negócios públicos esteja em mãos capazes de perseguir estes

objetivos.

2. Técnicas de realização da democracia social.

Tivemos oportunidade de nos referir acima a algumas características

princípio-lógicas da noção de democracia social, definida como o regime do

bem-estar social com justiça. A justiça social, entanto, para ser obtida

pressupõe a existência de um "ambiente de equilíbrio", de que nos fala o

Magnífico Reitor Pedro Calmon, mediante o jogo de mecanismos destinados a

assegurar uma repartição dos bens com equidade: pleno emprego, salários,

repouso, ajuda em caso de doença, de invalidez ou velhice, direito a moradia

à Previdência Social devem constituir numa democracia social garantia aos

cidadãos integrantes de uma sociedade.

Se a democracia política procurou opor a liberdade a toda sorte de servirão

do homem ao poder político, a democracia social se empenha em afastá-lo

de todas as formas de dominação econômica e social, utilizando para isso os

recursos sociais, mobilizando-os a serviço do bem-estar geral da coletividade.

A generosidade de uma tal idéia certamente poderia despertar suspeição em

espíritos menos avisados que não acreditam nas possibilidades que a

ciência oferece à humanidade, se fosse colocada a seu serviço, tanto na

ordem interna como internacional, com o desenvolvimento da tecnologia

científica em proveito de uma economia do bem-estar de que nos fala A. C.

Pigou

68. A extrapolação dos recursos científicos num sentido construtivo e

68

PIGOU, A. C. La Economia del Bienestar. Madrid, 1946.

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liberal muito contribuiria também para amenizar os monopólios de que se

serve o capitalismo imperialista na subjugação econômica dos povos

subdesenvolvidos69 estabelecendo novos métodos nas relações entre os

povos e concorrendo decisivamente para o progresso da humanidade ao

invés da aplicação de recursos preciosos em busca de uma competição

armamentista e técnica que põe em risco a paz mundial.

Tolstoi, citado por Aldous Huxley, em seu livro Science, Libert And Peace, assim se

expressa:

Se a organização da sociedade é má (como a nossa o é), e um pequeno número de pessoas detém o poder sobre a maioria e a oprime, cada vitória sobre a Natureza servirá inevitavelmente só para aumentar esse poder e opressão. É isso o que está acontecendo atualmente.

E Aldous Huxley acrescenta, ironicamente, após verificar a que nos poderá

conduzir o progresso científico em relação à liberdade: “In the past, personal

and political liberty depended to a considerable extent up on governmental

inefficiency”, e conclui cético: “In practice, faith in the bigger and better future

is one of the most potent enemies to present liberthy.”

70

Encontramos em Bertrand Russel, no seu livro Panorama Científico, uma

apreciação mais otimista sobre o pensamento científico da nossa época e o

que ele significa para a humanidade:

Não é o conhecimento que origina tais perigos. O conhecimento é bom. Má é a ignorância. A este princípio não encontra exceção o amante do mundo. Nem tampouco é o poder em si e por si a origem do perigo. Perigoso é o poder manejando por amor ao poderio, e não o poder manejando por amor ao bem genuíno. 71

Após examinados estes aspectos intimamente vinculados às possibilidades da

extensão de níveis mais altos aos indivíduos componentes de uma

sociedade, passemos a algumas técnicas de realização de um governo

tendente a pugnar pela adoção de medidas necessárias ao

estabelecimento de uma democracia social, quer seja por motivo espontâneo,

numa economia de abundância, em períodos de grande prosperidade

69

NORMANO, J. F. A luta pela América do Sul. São Paulo, 1944. 70

HUXLEY, Aldous. Science, Liberty and Peace. Londres, 1946, p. 1 e 33. 71

RUSSEL, Bertrand. O Panorama Científico. São Paulo, s/d, p. 189.

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material, quer seja através de medidas emanadas do poder estatal no

sentido de construir com os recursos de que dispõe uma situação de bem-

estar geral.

A nosso ver, em dois grupos podem ser reunidas as técnicas de realização da

democracia social em nossa época: 1 - o socialismo científico e suas escolas, e

2 - o socialismo liberal e humanista.

1 - A corrente doutrinária, denominada genericamente de Socialismo, coloca-

se em oposição ao Individualismo, postulando soluções novas aos problemas

econômicos, sociais, jurídicos, éticos e culturais, projetando-se nos tempos

modernos com uma importância que dificilmente poderá ser exagerada.

Chega mesmo a constituir verdadeiro evangelho político de enorme sedução

para boa parte da humanidade que acredita encontrar, no importante corpo

de idéias socialistas, uma nova fé e o caminho certo que a levará a cumprir

destino grandioso na história dos povos civilizados.

O Professor Harold Laski, analisando a importância dessa doutrina,

sobretudo em relação à crise por que atravessa o mundo, assim se exprimia:

Achamo-nos em meio de um período de mudança revolucionária que é provável seja mais profundo que qualquer outro da historia moderna da raça humana. Não compreenderemos sua natureza íntima a menos que o reconheçamos tão significativo em sua essência como aquele que viu a queda do Império Romano, o nascimento, com a Reforma, da sociedade capitalista, ou, como em 1789, o capitulo final da dramática ascensão ao poder da classe média.

Historicamente, os fundamentos doutrinários estão contidos nos ensaios

denominados utopias ou "comunismo filosófico", de Platão, Tomás Morus e

Campanella; no “socialismo utópico”, de Babeuf, Blanqui e Owen; no

"socialismo liberal", de Laski, Atlee, Staford Cripps, os esposos Sidney e

Beatrice Webb, Siches e tantos outros; no “socialismo científico”, de Marx,

Lenine, Stalin, Vischinsky e Kruchev, e no “socialismo humanista e liberal”, de

Roosevelt e Wallace, e ainda em outras irradiações do pensamento socialista,

cujos princípios importam numa réplica às imperfeições da sociedade

industrial moderna, formada e engrandecida pelo capitalismo,

pretendendo suplantá-la com um governo social justo e igualitário que

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atue por meio da socialização da riqueza até lograr a satisfação das

necessidades do homem.

Mas, que é o socialismo? Cavignac responde, em seu Catecismo Socialista, de

1849:

É o evangelho em ação. Como? O socialismo tem por fim

realizar entre os homens os quatro princípios fundamentais do

Evangelho: amai-vos uns aos outros; não façais ao demais o

que não quereis que vos façam; o primeiro de vós será o servo

dos demais; paz a todos os homens de boa vontade.72

Cujo pensamento está de acordo com as conclusões de Lerner e Mac Iver e

outros que, também, vêem nessa ideologia uma forte tonalidade religiosa,

ostentado na figura algo exótica dos seus primeiros asseclas a configuração

dos cristãos primitivos. Jaurès definiu o socialismo como o "individualismo

lógico e completo; continua aumentando-o o individualismo

revolucionário".73

De todas as doutrinas socialistas, a mais importante é, sem dúvida, aquela

exposta por Karl Marx, em sua monumental obra denominada Das Kaipal,

especialmente pela enorme transcendência de suas concepções filosófico-

políticas sobre o Estado, as quais lograram invulgar popularização e

constituíram tendências políticas dominantes no século XX.

A doutrina marxista ou socialismo científico baseia-se numa visão realista do

mundo inspirada nos postulados científicos de observação e discussão dos

fenômenos sociais, no conceito hegeliano do constante vir a ser e no

materialismo dialético de Feuerbach, afirmando que não é a idéia que põe

em movimento evolutivo constante o mundo, vale dizer, ao invés das

categorias lógicas preexistentes de cuja existência fala Hegel, que Marx

qualifica como o ideal, tendo em conta que o ideal é para ele o material

transposto e traduzido na cabeça do homem, resulta todo o processo

histórico-social tendente à matéria absoluta por movimento ordenador

dado pelas condições de produção, sendo o espírito reduzido a um

conceito material, pois existe unicamente uma realidade moral.

Este movimento produz a realização de um processo tricotômico donde as

72

RANDALL, John H. Jr. opus cit., p. 462. 73

JAURÉS. Revue de Paris. n. 1112/1848, p. 499, apud Ripert, op. cit., p. 132.

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forças de produção constituem a tese, os conceitos morais, jurídicos e

culturais a antítese, e a resultante ou síntese, uma nova sociedade, fruto de

ditas forças de produção, do consumo, da moral, da cultura, jurídica e

religiosa; operando-se esta transformação social com vistas à socialização da

humanidade.74

Com os princípios informadores de sua doutrina, Marx traçou e desenvolveu, em

O Capital, as suas idéias, planejando laboriosamente a sociedade comunista

que mais tarde veria posta em prática na URSS, com Lenine, Stalin, após a

Revolução Russa de 1917, cujo sistema de governo monolítico e com

instituições organizadas à base de pirâmide, com distribuição vertical de

poderes delegados, passou a dominar em vários países da Europa

Central e na China continental, com a denominação de democracias

populares.

Deve-se a Stalin uma síntese preciosa da natureza do sistema, quando diz:

Os caracteres gerais da sociedade comunista são dados nos trabalhos de Marx, Engels e Lenine. Em resumo, a anatomia da sociedade comunista pode ser descrita como segue. É uma sociedade na qual: a) não haverá propriedade dos meios de produção, mas a propriedade social e coletiva; b) não haverá classes ou Estado, porém trabalhadores na indústria e na agricultura, realizando seus afazeres econômicos como uma livre associação de operários; c) a economia nacional, organizada de acordo com um plano, será baseada na mais apurada técnica, tanto na indústria, como na agricultura; d) os produtos serão distribuídos segundo o princípio dos velhos comunistas franceses, a saber, ‘de cada um, conforme suas capacidades, a cada, um, de acordo com as suas necessidades’; e) a ciência e a arte gozarão de condições, que as elevarão ao seu mais altos desenvolvimento; f) o indivíduo, livre dos choques diários da luta pela vida, e da necessidade de se curvar aos ‘poderosos da terra’, tornar-se-á livre... Claramente, nós estamos ainda bem longe de tal sociedade. 75

Outras variantes como o Revisionismo, fundado por Eduard Berenstein,

cuja teoria é uma combinação da filosofia de Marx com os princípios do

criticismo de Kant; o Neo-marxismo de Max Adler e o Bolchevismo, doutrina

exposta por Bucharin, Trotsky e L. Kameneff, apenas citadas de passagem,

74

MARX, Karl. The Capital. Britannica, prólogo. 75

STALIN, Joseph. Leninism. N. York, 1933, p. 70-71, apud FERREIRA, Pinto. Princípios Gerais do Direito Constitucional Moderno, p. 609-610.

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não tiveram aplicação prática a não ser o Bolchevismo de Lenine.

2 - O socialismo liberal e humanista, defendido por pensadores e estadistas

como Harold Laski, Clement Atlee, Staford Cripps, Ricasens Siches, foi

inspirado no movimento fabiano da Inglaterra, tendo à frente como figuras

principais, dentre outros, Aldous Huxley, H. G. Wells, Bernard Shaw e os

esposos Sidney e Beatrice Webb, e pugna pela transformação gradativa e

constitucional da sociedade, mediante a revolução pelo consentimento

(revolution by consent), de Laski, ao passo que o socialismo

proletário, guiado por Lenine, Stalin, e, atualmente, por Molotov, Vishinsky

e Kruchev, predica a modificação violenta do statu quo social, dentro da

técnica marxista de reação pela violência (revolution by violence), contra a

exploração da sociedade capitalista.

Sustentando a máxima "socialismo e liberdade", o socialismo liberal se propõe

a realizar uma democracia socialista, utilizando-se dos métodos

constitucionais que permitem a gradativa transformação da sociedade

mediante uma legislação eficiente e cuidadosamente elaborada de acordo

com as necessidades emergentes, enquanto o socialismo proletário

estriba-se no princípio da "legalidade revolucionária", de Archipoff,

constituindo o centro da revolução comunista mundial para conseguir a sua

finalidade de predomínio e conquista do poder.

Estas tendências práticas do socialismo liberal e do socialismo proletariado

como é de ver, encontram adeptos no Brasil, especialmente entre os

intelectuais patrícios, os quais buscam, inquietos, solução para os

angustiantes problemas que nos afligem na hora presente, contando-se, dum

lado: João Mangabeira, Hermes Lima, Domingos Velasco, Alberto

Pasqualini76, Pinto Ferreira, podendo-se mencionar parlamentares

brasileiros que continuam a linha política e socializante de Rui Barbosa, e,

de outro lado, o Partido Comunista Brasileiro, orientado por Luís Carlos

Prestes, Jorge Amado, Sinval e outros.

Na Inglaterra, após a Segunda Guerra Mundial, foi feita uma experiência em

largo estilo de governo liberal socialista comandada pelos líderes do

Labor Party, empreendendo a nacionalização de alguns setores básicos da

produção e do crédito, experiência que não teve prosseguimento com a

76

PASQUALINI, Alberto. Bases e Sugestões para uma Política Social. Rio, 1958.

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substituição de Clement Atlee no gabinete pelos conservadores ingleses,

em virtude da tendência manifestada pelo esclarecido eleitorado britânico,

que discordou dos métodos energéticos empregados pelo trabalhismo

inglês na execução das medidas socializantes. Ficaram, no entanto, além dos

ensinamentos concretizados na atuação prática do valoroso Partido

Trabalhista britânico que se constitui no maior partido oposicionista, com

possibilidades de voltar ao poder por força de ascensão mundial do

movimento em favor de um governo atento às legítimas aspirações

coletivas. 77

Nos Estados Unidos, um intenso movimento efetivou-se no sentido da

democratização econômica da grande nação irmã através de Roosevelt, com

o seu célebre brain trust, tendo como finalidade eliminar os privilégios

existentes na vida, quer fossem de nascimento, crença, raça, classe,

especialmente os de natureza econômica. Roosevelt, ao assumir a presidência

do seu país, chamou a atenção do povo norte-americano para a tarefa

enorme de reconstrução social a que se devia empenhar e, ao mesmo

tempo, demonstrava no seu "credo" ser necessário volver aos princípios em

que se basearam os Pilgrim's Fathers quando construíram a nação, assim se

expressando: "Devemos volver aos princípios; devemos fazer do

individualismo norte-americano o que se pensou que ele realmente devia

ser: igualdade de oportunidade para todos e direito de exploração para

ninguém".78

Com este pensamento, Roosevelt conseguiu empreender a política

econômica New Deal, em oposição aos grandes interesses econômicos

ligados a Wall Street, que representa a tradição mais viva do capitalismo

ianque do qual Charles A. Beard nos oferece uma magnífica interpretação,

em seu livro Uma Interpretação Econômica da Constituição dos Estados Unidos.

Roosevelt predicou uma política de "segurança econômica do homem do

povo", na afirmação de Henry Wallace79, que encontrou desamparado pelo

desemprego em virtude do crash econômico de 1929, através do

planejamento da vida econômica do país, maior taxação dos lucros

extraordinários, com o sentido de empregar os recursos da nação numa

economia de abundância e planejada para que não se tornassem ilusórias

77

ATLEE, Clement. Bases e Fundmentos do Trabalhismo. Rio. 1947. 78

ROOSEVELT, F. D. Olhando para o Futuro. Bahia, s/d, p. 169. 79

WALLACE, Henry. O século do Homem do Povo. Rio, 1944.

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as liberdades políticas do individualismo, "planejamento para liberdade e

não arregimentação", como ensinava Karl Manheim, na Universidade de Nova

York.80

Com o lend and lease, Roosevelt ajudou enormemente o esforço de guerra

dos países aliados, inclusive a Rússia, na luta contra o totalitarismo nazi-

fascista e promoveu em seguida uma política internacional de ajuda aos

países subdesenvolvidos na América do Sul, de objetivos bem mais

consentâneos com os princípios que devem reger as relações entre países

que participam das mesmas responsabilidades no Hemisfério Sul.

A 7 de janeiro de 1941, Roosevelt anunciava ao mundo, em discurso, a

definição que fazia do conceito de liberdade para os povos que emergiam

de uma guerra sem precedentes na História, de cujas liberdades se

tornou o paladino, ao número de quatro: freedom of e freedom from.

Infelizmente, a generosa política rooseveltiana não teve prosseguimento na

grande República do Norte, após a sua morte.81

Não seria possível concluir estas considerações sobre as técnicas de

realização de democracia social sem mencionar o papel da doutrina cristão,

que, não sendo uma técnica, age como um fermento espiritual sobre as

concepções do mundo ocidental, inspirando os conceitos éticos que informam

a nossa civilização que é, de resto, uma resultante dos princípios cristãos

laicizados. Poder espiritual, a Igreja através dos ensinamentos fecundos

da fé cristã, tem-se mantido presente à ebulição das idéias pelos tempos

em fora participando delas embora com o caráter de universalidade que

caracteriza os seus ensinamentos e os seus postulado de Fé.

Leão XIII fê-la participar nos tempos modernos do intenso movimento em

defesa de condições mais dignas para o operariado, analisando as implicações

e responsabilidades do capitalismo em nossa época, com a publicação da

Encíclica Rerum Novarum, confirmada pela Quadragésimus Annus, de Pio

80

MANNHEIM, Karl. Libertad, Poder y Planificación Democrática. México, 1953. 81

As 4 liberdades de F. D Roosevelt: “In the future days wich we seek to make secure, we look foward to a world founded upon four essential freedoms. The first is freedom of speach and expression-everywhere in the world. The second is freedom of every person to worship God in his own way – everywhere in the world. The third is freedom from want, which, translated into world terms, means economic understandings which will secure to every nation a healthy peacetime life for its inhabitants – everywhere in the world. The fourth is freedom from fear, which, translated into world terms, means a world-wide reductions of armaments to such a point and in such a through

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XII, as quais norteiam o pensamento católico sobre a questão social, onde

pontificam Jacques Maritain, Ducatillon, e, entre nós, Tristão de Ataíde, como

pensadores de grande atuação na orientação doutrinária dos católicos,

pugnando por um regime de igualdade e justiça social no qual sejam

preservados os direitos inalienáveis da pessoa humana, como diz Mariatain,

numa "sociedade política destinada a desenvolver condições de vida

comum que, procurando primeiramente o bem, o vigor e a paz do todo,

ajudam positivamente cada pessoa na conquista progressiva desta liberdade

de expansão, que consiste antes do mais na floração da vida moral e racional,

e dessas virtudes interiores (imanentes) que são as virtudes intelectuais e

morais".82 Cuidando do homem como cidadão de dois mundos moral e

material, a doutrina católica o defende daquilo que Ortega Y Gasset

83

descreveu como sendo o complexo do "señorito satisfecho" da época de

massificação da sociedade em que o “homem-massa" está aparentemente

satisfeito, mas apresenta um vazio interior que a agitação da vida

cotidiana não consegue dissimular completamente, situação definida com

precisão por Max Scheler, ao dizer: "Isto é absolutamente essencial: na raiz

desta sede exterior, que não cessa de devorar o homem moderno,

encontra-se a sua angústia religiosa e metafísica".84

3. O problema da utilização do poder estatal.

O problema da utilização do poder estatal numa democracia social está

intimamente ligado aos fundamentos mesmos do princípio emanador dessa

concepção – o povo ou "homem massa" sujeito de um todo orgânico, do ser

coletivo de uma teoria universalista da sociedade que reclama do poder

satisfação para as suas necessidades mais imediatas. A técnica a ser

adotada para a consecução dos seus objetivos parece para ele menos

fashion that no nation will be in a position to commit an act of physical agression against neighbour – anywhere in the world.”

82 MARITAIN, Jacques, nas seguintes obras: Humanismo Integral, São Paulo, 1942; Os Direitos do

Homem, ed. 1945, p. 61; Cristianismo e Democracia, ed. 1945; O Homem e o Estado, ed. Agir, Rio, 1956.

83 GASSET, Ortega y. El Tema de Nuestro Tiempo. Ed. Cultura, Chile, 1937. Neste livro Ortega y

Gasset assim se expressa sobre o fenômeno da ascensão das massas: “Todo o bem, todo o mal presente e do futuro imediato têm nesta ascensão geral (das massas) do nível histórico sua causa e sua raiz”, p. 17, e, mais adiante: “Este personagem que agora ainda por tôdas as partes e aonde vai impõe a sua barbárie íntima é, com efeito, o menino mimado da história humana.” (id. Ibidem, p. 82.

84 SCHELER, Max. Vom Umsturz Der Werte, II, p. 316, apud Leonel Franca, em A Crise do Mundo

Moderno. Rio, 1951, p. 207, em notas.

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importante do que a solução rápida e eficaz dos seus problemas através da

intervenção do poder estatal.

Nos países socialistas, como na URSS, e nos regimes das democracias

populares, a democracia social se fez mediante a apropriação do poder

pelos trabalhadores, utilizando o seu dinamismo na construção de uma

sociedade sem classes da qual seria afastada a "exploração do homem

pelo próprio homem". Nos Estados Unidos, com o humanismo liberal de

Roosevelt, estabeleceu-se um equilíbrio entre as tendências espontâneas

dos princípios liberais e o intervencionismo econômico e social, sem, no

entanto, comprometer a estruturação constitucional do regime, realizando

uma política econômico-social baseada nos princípios norteadores da

definição constante do novo Bill of Rights, objeto da mensagem presidencial

de Roosevelt ao Congresso, em 1944.

São dois modos de encarar os problemas sociais postos frente ao Estado para

a efetivação da democracia social. Num lado, a democracia social era o

instrumento do poder popular perseguindo um objetivo que jamais cessa

de legitimá-la: o estabelecimento de uma ordem assegurando o bem-estar

social do povo. No outro lado, os princípios informadores eram os

norteadores do liberalismo, procurando o bem-estar pelo esforço individual, a

livre empresa e a concorrência.

Nos países da Europa, como no Brasil, não havia uma definição, como é

fácil de ver, nas constituições elaboradas após a guerra mundial, pelas

dificuldades que a proximidade dos regimes socialistas parecia aumentar,

provocando assim a ambigüidade na determinação dos seus enunciados, no

campo econômico e social. Porque, se optassem pelos quadros do

liberalismo político, aparecia como de inspiração reacionária, ao mesmo tempo

que seria perigoso traçar uma política dinâmica e social, pois representava

uma concessão feita ao Comunismo. Não sendo possível a opção, os países

europeus afirmaram os seus objetivos com vigor, como está notório das

Declarações dos Direitos Sociais levadas a efeito pelas democracias

ocidentais, na Constituição da Organização Internacional do Trabalho,

adotada pela Conferência Internacional do Trabalho, em sua 29º sessão,

Montreal, 9 de outubro de 1946 85, como estágios de uma política favorável à

democracia social.

85

Constituição e Regulamentos da OIT, Rio de Janeiro.

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1 - O compromisso de realizar a democracia social se faz então pela

submissão da democracia política às pressões do povo, mediante as

atuações dos partidos políticos, das reivindicações dos sindicatos que

obrigam o poder a uma constante revisão das suas estruturas básicas

tendo em vista as exigências de uma democracia social.

Não há dúvida quanto à originalidade do processo seguido, consistindo em

evitar que, pelo desespero, as massas desamparadas se inclinem por

soluções violentas, desde que as suas energias revolucionárias e

reivindicantes são canalizadas para os aparelhos legais da decisão estatal,

em dosagem sempre renovadas das quais participam todas as tendências da

coletividade. Os mecanismos da democracia política são conservados, mas

para movê-los faz-se apelo às energias da democracia social.

"São duas técnicas de realização da democracia social, que não importam os

meios de ação empregados ou as técnicas de elaboração das regras, quer

elas se dirijam ao campo de ação político, econômico ou social", como

acentua Georges Vedel, na sua obra, ao estudar os campos históricos de

atuação da autoridade pública, no político, econômico e social.86 No liberalismo,

o econômico e social eram domínio individual, processando-se as suas

relações através dos princípios consagrados pela democracia política. Na

democracia social, através das regras do Direito elaboradas com a intervenção

do Estado, o domínio desses campos de atuação da autoridade passou a ser

estatal.

2 - Na realidade, nenhum argumento de ordem moral ou doutrinária justifica

a abstenção do Estado dos domínios econômico e social, a não ser por

egoísmo do capitalismo burguês encastelado nos privilégios conseguidos em

nome do liberalismo tradicional. Ademais disso, a ausência do Estado destes

setores importantes da vida coletiva importaria em consagração do privilégio

de uma minoria e não oferecia senão a servidão à maioria do povo, em

nome da liberdade, como observou certa feita, com ironia, Molotov ao dizer

que "concebia mal o que pudesse significar a liberdade de um choumeur

americano".

86

VEDEL, Georges. Démocratie Politique, Démocratie Économique et Sociale, ed. 1947.

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E assinala Burdeau:

As massas consentem na disciplina coletiva que supõe a reconquista de comando que o Estado havia inconsideradamente renunciado ao indivíduo. Mas este apelo à restrição não deve ser tomado como uma renúncia da liberdade. Tudo como a liberdade liberal, a coação não é senão uma técnica. O objetivo final continua imutável. À liberdade pela liberdade se substitui a liberação pela coação. 87

O consentimento das massas na realização da democracia econômica e social

pressupõe que, não sendo a democracia um fim em si mesmo, terá como

objetivo precípuo o estabelecimento de uma ordem social democrática, para

o que coloca as suas instituições a serviço desse ideal. Politicamente se

manifesta pela liberação do indivíduo das arbitrariedades do Poder estatal e a

sua participação nas regras que são editadas pelo poder. Economicamente e

socialmente caracteriza-se pela criação de condições que assegurem a

cada cidadão a segurança e o bem-estar no seio da coletividade, excluídos

os privilégios econômicos e as desigualdades que possam ter origem na

fortuna, onde os trabalhadores estejam ao abrigo da opressão, do desemprego

e se sintam protegidos contra os riscos de vida.

Por outro lado, quando as condições políticas, econômicas e sociais são

favoráveis, torna-se necessário um esforço consciente para introduzir a

justiça e a liberdade no meio onde prevalecem a desigualdade e a servidão,

passando a democracia social a ser obtida mediante a ação do poder estatal,

controlando, orientando e planejando as atividades sociais.

3 - Como vimos, a realização da democracia social pela extensão da

democracia política aos domínios econômicos e sociais não acarreta

necessariamente a mudança dos titulares do poder estatal que continua

sendo utilizado segundo as regras estabelecidas pela sua estruturação

constitucional. O New Deal de Roosevelt, a política laborista do

trabalhismo inglês e, no momento em que escrevemos, a política esboçada

pelo Presidente Jânio Quadros, no Brasil 88, em quase nada afetam a estrutura

e a titularidade do poder de mando, embora constituam exemplos

significativos do esforço consciente no sentido de restabelecer o

equilíbrio social com medidas progressivas e de grande alcance sobre

87

BURDEAU. Traité. Op. cit., v. VI, p. 366. 88

Mensagem do Presidente Jânio Quadros ao Congresso Nacional, em 15 de março de 1961.

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as estruturas econômicas, sociais e administrativas desses países,

operando-se um reajustamento institucional às novas condições propostas.

Consideradas nas suas conseqüências, observa-se serem positivos os

resultados da aplicação dessas medidas, uma vez que o controle da

economia, paralisando a organização de trustes e de privilégios, afasta o

trabalhador da sua dependência aos detentores do capital; a legislação social

garante-lhes a segurança: a redistribuição da renda nacional pelo imposto

progressivo assegura recursos vultosos à administração e suprime as

desigualdades chocantes; a planificação subordinará a utilização das

riquezas e das energias ao serviço do grupo; a contenção dos preços cessa o

aviltamento dos salários; a revisão da propriedade agrária estimula a

produção; a admissão dos trabalhadores à gestão das empresas e dos

serviços públicos devolve-lhes a confiança nos seus destinos.

Neste ponto é possível verificar se a confluência do pensamento socialista

dos democratas cristãos e dos ideais predicados por Roosevelt e o seu brain

trust , assim como os postulados básicos que animam a democracia brasileira,

reafirmando a necessidade da utilização do poder estatal para uma

reformulação da estrutura social, especialmente na luta contra o

subdesenvolvimento onde quer que se apresente ou sob quaisquer rótulos

que os batizarem. Burdeau vem em nosso auxilio a dizer:

Ni libérale, ni marxiste la formule à laquelle les circonstances obligeaient de se rallier était celle d'une démocratie socialle ou le Pouvoir, maintenu dans la forme traditionelle, se chargeait lui-même d'opérer la révolution.89

Outros, no entanto, pensam de modo diferente, quando dizem não ser

possível a obtenção da democracia social sem uma ruptura do sistema da

democracia política, aceitando as conclusões de Marx, Lenine e Stalin, como

Georges Vedel quando escreve: "...l'extension de la démocratie de I'ordre

propement politique à I'ordre économique et social répond à une exigence

d'unité à la fois logique et historique".90 Sustentam que a dinâmica da

democracia social reclama sem cessar o aumento do seu poder e em breve o

povo verificará que as instituições liberais fazem apenas concessões naquilo

que lhe sobra nos domínios econômicos e sociais representando o poder que

89

BURDEAU. Traité. op. cit., v. VI, p. 365. 90

VEDEL, George, op. cit., p. 196.

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a anima uma resultante dos dois traços fundamentais do liberalismo político:

duma parte, o direito donde procede, doutra parte, o lugar que concede a

liberdade dentre as técnicas de estabelecimento da ordem social e, a não ser

que a democracia liberal se servisse da liberdade para suprimi-la, os

trabalhadores em breve sentiriam que, havendo "a legislação social

democratizado a sociedade, ela é importante por si só, para democratizar o

poder". 91

Harold Laski repõe o assunto no seu devido lugar numa passagem do livro

A Crise da Democracia:

Nossa experiência nos diz, pelo contrário, que a liberdade só começa a ter significação quando se há chegado a um plano de igualdade. Sem esta última, como diz Hobhouse, a liberdade é uma palavra de sonoração nobre e de míseros resultados, porque é a igualdade que proporciona as bases sobre as quais começa a liberdade a ter um significado positivo. Não serve para nada oferecer-se a um homem liberdade de palavra, se não se educou para que possa utilizar essa faculdade... Onde a liberdade parece não ter sustentação, é porque está divorciada da igualdade. Exceto em sentido formal, toda liberdade se converte em um privilégio especial enquanto falta um acesso igual à igualdade. 92

4. Solução "ocidental": necessidade de um compromisso. Solução

marxista: a conciliação dialética.

Tivemos oportunidade de examinar que os postulados da democracia social

são defendidos pelos sistemas doutrinários que informam a estruturação dos

regimes modernos de governo, tanto do lado ocidental como daqueles que

se formaram seguindo o modelo da teoria marxista, que admitem a

presença do Estado nos domínios político, econômico e social com o fim

precípuo de liberar o homem da ação das forças do poderio econômico afim

de que possa ser garantido o exercício real das liberdades que lhes são

concedidas. Contudo, ambas as partes divergem quanto à forma de utilização

do poder para consecução do bem-estar geral num ambiente de justiça social

para todos.

91

BURDEAU. Traité. op. cit. v. VI, p. 360 92

LASKI, Harold. Jr. La Crisis de La Democracia. Buenos Aires, 1946, p. 190.

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Jacques Maritain no seu recente livro sobre O Homem e o Estado, narra que

"durante uma das reuniões da Comissão da UNESCO, na qual se discutiam os

Direitos do Homem, espantou-se alguém de que proponentes de ideologias

violentamente opostas houvessem concordado no levantamento de uma lista

de direitos. Sim, replicaram eles, concordamos na enumeração dêsses

direitos contanto que não nos perguntem por quê. A partir do por quê,

começa a divergência".93

Do lado das democracias ocidentais a solução consiste em manter um

sistema de liberdades públicas e de limitação dos poderes estatais pelos

mecanismos constitucionais estabelecidos no decorrer no século XIX num

equilíbrio entre "a autoridade incontrastável e a liberdade insubmissa",

como quer o ilustre professor J. Pinto Antunes em interessante monografia

sobre a Limitação dos Poderes,94 pela introdução de certas reformas

inspiradas nas novas concepções que agitam o mundo. De acordo com o

país, verifica-se a variação da dosagem de elementos da democracia

tradicional com os apelos das novas concepções mais sensíveis, na

elaboração programática dos partidos políticos.

Nos Estados Unidos sofreu regressão a política econômica e social

empreendida pelo Presidente Roosevelt no governo subsequente de

Eisenhower, esperando-se que a “revolução da esperança” anunciada no

discurso de posse do Presidente John Kennedy venha reavivar a política

rooseveltiana defendida pelos democratas norte-americanos.

No Brasil, após a política desenvolvimentista do Presidente Kubitschek,

as medidas anunciadas por Jânio Quadros em sua Mensagem de

reabertura dos trabalhos do Congresso Nacional dão conta de um

Executivo vigilante e sensível à conjuntura da hora presente, exercendo

a liderança nacional no sentido da promoção de uma política que se

apóia nas tendências renovadoras da democracia social. Esta solução

corresponde a um compromisso com as exigências da opinião pública,

lutando pela elevação do nível de vida da coletividade, sem, no entanto,

perder o gosto pelo exercício das liberdades públicas a que se habituou.

93

MARITAIN, Jacques. O Homem e o Estado. Ed. Agir, Rio, 1956, p. 92. 94

PINTO, Antunes, J. Da limitação dos Podêres. Monografia editada pela Faculdade de Direito da UMG, Belo

Horizonte, 1955.

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Do outro lado, a solução marxista se encaminha no sentido da

conciliação dialética prevista de acordo com um plano de duração dos

estágios a que se propõe realizar. Ao invés de liberdade no sentido

ocidental, admite a liberação do trabalhador pelo Estado das forças que

o oprimem. A primeira fase é a do Estado capitalista tal qual existe

atualmente. As liberdades públicas são formais e encobrem a

exploração econômica do trabalhador pela burguesia capitalista. Apesar

do mal que representa, tem consigo a vantagem de permitir a crítica ao

sistema e de propiciar a propaganda que acelera o processo de

desagregação do regime, dando-se a revolução e instalando-se em

seguida a “ditadura do proletariado” De posse do poder, o operariado

remove todos os meios de exploração capitalista, num regime duro,

onde a liberdade é concebida apenas como o direito de cada cidadão

participar no poder revolucionário, modificando-se por completo a

posição tradicional: as liberdades não são meios de resistir ao Estado, é

o Estado que cria as condições de liberdade: o Estado é o libertador.

Por último, quando os restos do capitalismo e do espírito burguês forem

definitivamente afastados, e que a economia capitalista eleve

consideravelmente a produção e o nível de vida, a ditadura do proletariado

terá fim, sucedendo-se a fase superior do Comunismo. O Estado

desaparece para um museu, dizia Hegel, e gradualmente os governantes

desaparecem e os homens serão realmente livres. Neste ponto devem

harmonizar-se e se conciliar todas as concepções de liberdade.

A previsão socialista, escreve o prof. Pinto Ferreira, de que "na sociedade

do futuro o gôverno das pessoas será substituído pela administração das

coisas e pela direção do processo de produção, não discorda em

profundidade da visão do Estado consignada no pensamento de Duguit,

Mac Iver, Laski e outros eminentes representantes do direito público

moderno" 95, o que permite comprovar que a previsão marxista não é tão

destoante como à primeira vista poderia se supor.

Por outro lado, o determinismo do processo histórico, na concepção de

Marx e Engels, não apresenta uma contradição ou antagonismo entre

determinismo dialético e liberdade ética, no sentido de que essa liberdade

95

FERREIRA, Pinto. Princípios Gerais do Direito Constitucional Moderno. V. II, p. 661.

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seja a antítese absoluta ou o pólo contrário da idéia determinista. Neste

sentido nos adverte o professor Brown, na sua obra intitulada Psychology

and the Social Order, citado pelo professor Pinto Ferreira:

But for purposes of ethics one may speak of freedom as a corollary of determinism rather than its antithesis. For certainly humanity grows in its Powers over nature with the growth of science and the abolition of ignorance. The freedom of primitive to starve, to be attacked by all the forces of nature over which he had no control, to believe only in his limited mythologies and cosmologies is a poor thing compared with the richness which scientific determinism gives to modern life. For ethical purposes freedom may be redifined as being greatest where knowledge of determinism is greatest.96

A liberdade seria, no caso, concebida como a ausência de coação,

inclusive das forças da Natureza, possibilitando aquelas condições

sociais ideais como garantia necessária da felicidade individual, de que

nos fala Laski no seu livro A Liberdade no Estado Moderno.97

96

FERREIRA, Pinto. Princípios Gerais do Direito Constitucional Moderno. v. II, p. 663. 97

LASKI, Harold, J. A Liberdade no Estado Moderno. Buenos Aires, 1945, p. 17.

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CONCLUSÃO

Ao longo desse trabalho não procuramos encontrar a forma ideal de governo.

Seria estultice de nossa parte se pretendêssemos colher nesse estudo algo

mais do que dados e informações úteis que pudessem servir de orientação no

mare magnum da discussão ideológica em que se desenrola um dos períodos

mais impressionantes das sociedades modernas na busca inquieta de um

equilíbrio social, tendo como base um bem-estar geral da coletividade num

ambiente de justiça para todos os cidadãos.

Ao terminá-lo, vemos que duas atitudes são compatíveis no

encaminhamento de soluções práticas dos fins a que se propõe o Estado

moderno: a solução predicada pelas democracias ocidentais e a proposta

pela dialética marxista de interpretação dos fenômenos históricos. Há os que,

como Artur Koestler, num livro de retumbante sucesso, intitulado O Yoque e o

Comissário, não pressintam que a solução dos nossos problemas atuais

possa ser obtida mediante uma redefinição daquelas concepções que se

opõem como dois sistemas filosóficos, duas doutrinas de governo baseadas

em princípios morais e jurídicos diferentes, quando escreve:

Uma delas é cristã e humanitária: ela declara o indivíduo sagrado e afirma que as regras da aritmética não se aplicam às unidades humanas, o que, em nossa equação, representa seja zero ao infinito. A outra concepção parte do principio fundamental de que o fim coletivo justifica todos os meios e não somente permite mas exige que o indivíduo seja de toda maneira sacrificado e subordinado à comunidade que dele pode dispor como de um carneiro que se oferece em sacrifício. A primeira concepção poder-se-ia denominar de moral anti-vivisseccionista, a segunda, de moral vivisseccionista. Os fumantes e diletantes têm procurado sempre misturar as duas concepções, mas isso é impossível.98

O fato é que as duas concepções se relacionam no governo dos povos

tendendo a estabelecer uma democracia que estenda o seu âmbito de

ação aos domínios econômicos e sociais, embora ainda divergindo

profundamente nas postulações iniciais das doutrinas que informam e se

98

KOESTLER, Arthur. O Yoque e o Comissário. São Paulo, 1947, p. 177.

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encarnam no poder estatal. Identificando-se quanto às finalidades, utilizam o

mesmo instrumento – o Estado, para a sua concepção. E as tarefas assinadas

à democracia social são de tal natureza ambiciosas e complexas que se torna

imperativo recorrer ao poder estatal e armá-lo dos meios indispensáveis para

bem desempenhar se da missão que lhe é acometida. Talvez, em nenhum

outro período da História o homem tenha tido à sua disposição um

instrumento de ação de tal natureza poderoso para refazer o seu destino

como acontece atualmente, quando as técnicas de governo confluem em

favor do Estado como agente desse processo de remodelação da sociedade.

Tudo indica que as nações do mundo não continuarão a assistir ao embate

entre as superpotências que dividem entre si as atenções e ansiedades dos

demais países, quando já existe uma conjunção de propósitos sobre os

objetivos internos e internacionais a serem perseguidos pelo Estado,

constantes das novas Declarações de direitos econômicos e sociais a serem

realizados pela democracia social na luta contra o subdesenvolvimento e o

colonialismo que diminuem e aviltam as nações nos concertos internacionais.99

Colhendo em ambos os sistemas os elementos para uma síntese preciosa

do que existe de perene no liberalismo tradicional com o que é justo na

formulação socialista de uma democracia, e possível afirmar-se que a

democracia social seja a forma de governo em que o poder se coloca a

serviço do povo para a satisfação dos seus legítimos anseios de melhoria de

nível de vida; do amparo contra o desemprego; dos riscos decorrentes da

existência em sociedade, da proteção contra doença, a invalidez e velhice

etc. e a segurança contra todas as forma de opressões ou coações a fim de

que tenha sentido o gozo da liberdade.

99

HOFFMAN, Stanley. Organizations Internationales et Pouvoirs Politiques dês Etats. Aramand Colin, Paris, 1954.