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 Estudos em Jornalismo e Mídia • Ano VII Nº 1 • Janeiro a Junho de 2010 ISSNe 1984-6924 http://www .periodicos.ufsc.br/index .php/jornalismo 173 Marcos Paulo da Silva* Resumo: A definição conceitual de noticiabilidade não elimina o campo jornalístico de uma das principais indagações sobre o assunto: como ocorre a definição de tais critérios ou, em outros termos, como os acontecimentos, de fato, tornam-se notícia? Neste cenário, a deli- mitação do conceito de noticiabilidade carece de complementação a partir do aprimoramen- to teórico dos critérios que antecedem e caracterizam a seleção de notícias. O objetivo do artigo é revisitar o debate concei tual a respeito da noticiabilidade c om a intenção de compre- ender seus processos no interior de um quadro de referência próprio das teorias discursivas a partir das contribuições de Patrick Charaudeau. Palavras-chave:  Jornalismo; noticiabilidade; discurso social. How does the events become news:  A review of the con cept of newsworthiness with discursive contributions Abstract: The conceptual definition of newsworthiness does not eliminate one of the main questions about the subjetc in journalism investigation: how are such criteria defined or, in other words, how do the events, actually, become news? Delimiting the newswor- thiness concept needs the complementary theoretical achievements over the criteria that lays behind and before the selection of news. The objective of this article is to revisit the conceptual debate about the newsworthiness, intending to understand processes within the theoretical frame offered by discursive analysis, particularly as understanded by Patrick Charadeau. Keywords: Journalismo; newsworthness; social discourse. * Mestre em Comunicação pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) e Doutorando em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e T ecnológico (CNPq). [email protected] Artigo recebido em: 3 de fevereiro de 2010 Aprovado em: 5 de maio de 2010 Como os acontecimentos se tornam notícia: Uma revisão do conceito de noticiabilidade a partir das contribuições discursivas

Como os acontecimentos se transformam em notícias

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Autor: Marcos Paulo da Silva

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  • Estudos em Jornalismo e Mdia Ano VII N 1 Janeiro a Junho de 2010ISSNe 1984-6924

    http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/jornalismo173

    Marcos Paulo da Silva*

    Resumo: A definio conceitual de noticiabilidade no elimina o campo jornalstico de uma das principais indagaes sobre o assunto: como ocorre a definio de tais critrios ou, em outros termos, como os acontecimentos, de fato, tornam-se notcia? Neste cenrio, a deli-mitao do conceito de noticiabilidade carece de complementao a partir do aprimoramen-to terico dos critrios que antecedem e caracterizam a seleo de notcias. O objetivo do artigo revisitar o debate conceitual a respeito da noticiabilidade com a inteno de compre-ender seus processos no interior de um quadro de referncia prprio das teorias discursivas a partir das contribuies de Patrick Charaudeau.

    Palavras-chave: Jornalismo; noticiabilidade; discurso social.

    How does the events become news:A review of the conceptof newsworthiness with discursive contributions

    Abstract: The conceptual definition of newsworthiness does not eliminate one of the main questions about the subjetc in journalism investigation: how are such criteria defined or, in other words, how do the events, actually, become news? Delimiting the newswor-thiness concept needs the complementary theoretical achievements over the criteria that lays behind and before the selection of news. The objective of this article is to revisit the conceptual debate about the newsworthiness, intending to understand processes within the theoretical frame offered by discursive analysis, particularly as understanded by Patrick Charadeau.

    Keywords: Journalismo; newsworthness; social discourse.

    * Mestre em Comunicao pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) e Doutorando em Comunicao Social pela Universidade Metodista de So Paulo (UMESP). Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq).

    [email protected]

    Artigo recebido em:3 de fevereiro de 2010Aprovado em:5 de maio de 2010

    Como os acontecimentosse tornam notcia:Uma reviso do conceito de noticiabilidadea partir das contribuies discursivas

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    1. Para situar o debate

    Por que as notcias so como so? O questionamento elaborado em 1988 por Michael Schudson e retomado anos depois em obras de autores como Nelson Traquina (2008) e Jorge Pedro Sousa (2002) sintomtico de um debate que permeia o jornalismo desde sua gnese e percorre discusses tericas ainda nos dias atuais.

    A ideia de existncia de critrios de noticiabilidade remete, ao menos, a Johan Galtung e Mari Holmboe Ruge (1999)1, pioneiros em apresentar uma lista sistematizada de valores-notcia. Ao desenvolverem um estudo sobre a cobertura de trs crises internacionais Congo, Cuba e Chipre em jornais estrangeiros, os pesquisadores dinamarqueses so os primeiros tericos a re-conhecer a existncia de critrios de noticiabilidade como critrios suscetveis de permitir a atribuio de valor noticioso a fatos e acontecimentos de forma a se sobrepor subjetividade jornalstica. Os autores partem do entendimento de que a comunicao noticiosa estrutura-se como uma cadeia, sendo esta ini-ciada a partir dos acontecimentos caticos do mundo e encerrada na imagem pessoal produzida pelo receptor. Assim, focam-se na etapa inicial do processo: a percepo, a seleo e a construo de uma imagem dos acontecimentos pe-los meios de comunicao.

    O estudo de Galtung e Ruge (1999) consiste na primeira experincia terica de elaborao de uma tipologia para os critrios de noticiabilidade no jornalis-mo. Decorre da o fato de a pesquisa ter se tornado referncia nos estudos co-municacionais que adotam jornais como recorte emprico. Contudo, o modo como os autores apresentam sua perspectiva, amparados em hipteses que seguem relaes matemticas (o que revela uma ancoragem no modelo positi-vista da cincia), enrijece as categorias de valores-notcia e coloca o estudo em uma posio passvel de revises crticas a partir de abordagens guiadas pela perspectiva culturalista.

    Muito antes de Galtung e Ruge, que elaboram seus estudos sobre jornalismo na dcada de 1960, esboos da concepo de noticiabilidade j eram indicados em trabalhos seminais, como o caso da famosa tese de Tobias Peucer2, defen-dida em 1690, na Alemanha. Apesar de aparentemente no ter pretendido uma teoria para o jornalismo, Peucer acabou por delinear importantes conceitos retomados sculos depois em pesquisas sobre jornalismo (SOUSA, 2004). A concepo de notcia trabalhada pelo autor alemo essencialmente descritiva, embora universal e atual, e dilui-se em diferentes partes do trabalho (SOUSA, 2004, p. 36-37). Em resumo, segundo Tobias Peucer, as notcias constituem relatos expositivos e escritos; sobre singularidades; selecionados entre vrios relatos possveis segundo a sua importncia; condicionados por fatores como o tempo; que se orientam para os acontecimentos; e que so novos, isto ,

    1 O estudo original data de 1965: GALTUNG, J. e RUGE, M. The structure of foreign news. Journal of Internacional Peace Research, n.1, 1965. O texto foi traduzido e publicado em lngua portuguesa, em 1999, com o ttulo A estrutura do noticirio estrangeiro A apresentao das crises do Congo, Cuba e Chipre em jornais estrangeiros como captulo do livro organizado por Nelson Traquina: TRAQUINA, Nelson (org). Jornalismo: questes, teorias e estrias. 2. Ed. Lisboa: Veja, 1999.2 O estudo De Relationibus Novellis, de Tobias Peucer, tem suas principais partes traduzidas em lngua portuguesa no texto Tobias Peucer: o progenitor da Teoria do Jornalismo, de Jorge Pedro Sousa, publicado no Brasil pela Universidade Federal de Santa Catarina. (SOUSA, 2004).

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    oferecem novidades, o que satisfaz a curiosidade humana (SOUSA, 2004, p. 37). Tais peculiaridades dialogam com questes contemporneas relativas ao estudo do jornalismo, tais como os constrangimentos sofridos no processo de seleo das notcias, a atividade de gatekeeping, o foco nos acontecimentos (em detrimento s problemticas) e, sobretudo, a existncia de critrios de noticiabilidade.

    Mesmo construdo historicamente a partir da contribuio de estudos que se tornaram referenciais, como a tese de Peucer e a tipologia de Galtung e Ruge, todavia, o conceito de noticiabilidade ainda consiste em tema de re-correntes controvrsias entre os prprios profissionais jornalistas, conforme alerta Traquina (2008): Diversos estudos sobre o jornalismo demonstram que os jornalistas tm uma enorme dificuldade em explicar o que notcia, de explicitar quais so seus critrios de noticiabilidade, para alm de respostas va-gas do tipo o que importante e/ou o que interessa ao pblico (TRAQUI-NA, 2008, p.62). Na contramo das controvrsias, o prprio autor portugus oferece uma definio lcida do conceito:

    Podemos definir o conceito de noticiabilidade como o con-junto de critrios e operaes que fornecem a aptido de merecer um tratamento jornalstico; isto , possuir valor como notcia. Assim, os critrios de noticiabilidade so o conjunto de valores-notcia que determinam se um acon-tecimento, ou assunto, susceptvel de se tornar notcia, isto , de ser julgado como merecedor de ser transformado em matria noticivel e, por isso, possuindo valor-notcia. (TRAQUINA, 2008, p. 63).

    A definio conceitual de noticiabilidade, entretanto, no elimina o campo jornalstico de uma das principais indagaes sobre o assunto: como ocorre a definio de tais critrios ou, em outros termos, como os acontecimentos, de fato, tornam-se notcia? Neste cenrio, a delimitao do conceito de no-ticiabilidade carece de complementao a partir do aprimoramento terico dos critrios que antecedem e caracterizam a seleo de notcias. Em ltima instncia, no basta questionar o porqu de as notcias se caracterizarem como tais, mas ainda alm quais os motivos que levam determinados assuntos a receberem a valorao de notcias em detrimentos de outros.

    Este artigo localiza-se em torno de tais questes. O objetivo revisitar o debate conceitual a respeito da noticiabilidade com a inteno de compreen-der seus processos no interior de um quadro de referncia prprio das teorias discursivas a partir das contribuies de Patrick Charaudeau (2003).

    2. Noticiabilidade:as contribuies da teoria discursiva de Charaudeau

    Entre as principais contribuies levadas ao campo das cincias sociais pelo terico francs Patrick Charaudeau figura-se uma viso peculiar dos proces-

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    sos de trocas simblicas embutidos nos discursos sociais. neste sentido que Charaudeau localiza dois de seus principais compromissos tericos: as arti-culaes entre os planos situacional e lingustico e entre os planos macro e microssocial.

    Neste cenrio, o terico francs procura entender cada discurso social como uma articulao ntima, bidirecional, no determinista, entre os planos situ-acional e lingustico (NOGUEIRA, 2004, p. 3); compromisso que se opera-cionaliza em torno da concepo de contrato de comunicao.

    Para Charaudeau, todo ato de linguagem realiza-se dentro de um tipo especfico de relao contratual, implicitamente reconhecido pelos sujeitos, e que define, por um lado, as-pectos ligados ao plano situacional - qual a identidade dos parceiros, seus objetivos, o assunto de que falam, em que circunstncias materiais - e, por outro, aspectos relativos ao plano comunicacional e discursivo - quais as maneiras de dizer ou quais as estratgias discursivas pertinentes. (NO-GUEIRA, 2004, p. 3).

    Ainda no interior da concepo de contrato, Charaudeau prope uma compreenso diferenciada para os dilogos estabelecidos nos planos macro e microssocial percepo que foge das interpretaes mecanicistas ou deter-ministas dadas a esses planos:

    Os atributos decorrentes das posies macroestruturais ocupadas pelos sujeitos s tornam-se relevantes em articula-o com as circunstncias microssociais em que eles atuam. Charaudeau vai, no entanto, ainda mais longe. No basta a existncia de uma adequao entre a localizao macroes-trutural do sujeito (com os atributos da decorrentes) e as circunstncias e objetivos de sua atuao. necessrio que esses atributos sejam reconhecidos pelos sujeitos destina-trios para que eles se tornem operantes, e esse reconheci-mento ocorre, justamente, dentro do encontro linguageiro, atravs da interao e avaliao mtua dos interlocutores. (NOGUEIRA, 2004, p. 4).

    Desta maneira, elucidados ainda que sucintamente os referidos com-promissos tericos de Patrick Charaudeau, permite-se a introduo das refle-xes estabelecidas pelo que o autor em torno do discurso da informao, ou seja, do tipo especfico de discurso que rege a mdia. O objetivo tirar deste debate novas reflexes para o entendimento da dinmica de funcionamento dos valores-notcia, tema do presente trabalho.

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    3. As engrenagens da mquina miditica

    Patrick Charaudeau (2003, p.11) defende os meios de comunicao como suportes institucionais que se apoderam de diferentes conceitos para integr-los em suas diferentes lgicas: econmica, tecnolgica e simblica. Porm, segundo o autor, uma lgica especfica se sobressai no mbito do discurso da informao: a simblica.

    Sem nenhuma dvida, a lgica econmica e a lgica tecno-lgica so elementos inescapveis, mas aqui nos interessa a lgica simblica, que trata do modo como indivduos regu-lam os intercmbios sociais e constroem as representaes que do aos valores que so subjacentes em suas prticas, quando criam e manipulam signos. Assim produzem senti-do e, finalmente, no h o menor dos paradoxos no fato de que seja esta lgica que rege as demais. (CHARAUDEAU, 2003, p. 12). [traduo do autor].

    Na contramo das interpretaes que observam na mdia apenas mo-tivaes econmicas ou determinaes tecnolgicas, Charaudeau (2003) ar-gumenta que os indivduos envolvidos na elaborao dos discursos sociais (entre esses discursos est o miditico) agem a partir da construo de siste-mas de valores. Assim, caem por terra trs premissas vistas por Charaudeau (2003, p.13-15) como mal-entendidos tericos, a saber: os meios de comuni-cao so instncias de poder; os meios de comunicao so manipuladores da sociedade; e os meios de comunicao so reprodutores transparentes da realidade social. Por outro lado, na concepo do autor francs, os veculos de mdia devem ser vistos como construtores particulares do espao pbli-co.

    Os meios de comunicao, se so um espelho, somente so um espelho deformante ou, ainda melhor, so vrios es-pelhos ao mesmo tempo daqueles que, nas frias, e apesar da deformao, do testemunho, cada um a sua maneira, de uma parcela amplificada, simplificada e estereotipada do mundo. (CHARAUDEAU, 2003, p.15). [traduo do au-tor].

    Segundo Charaudeau (2003, p. 22-23), seguindo em sua perspectiva concei-tual, a articulao entre as trs lgicas econmica, tecnolgica e simblica no discurso da informao (chamada pelo autor de mquina miditica) ocorre em trs lugares de pertinncia: nas condies de produo (instncia de enunciao), na construo do discurso propriamente dito e nas condies de interpretao (instncia de recepo), conforme ilustra o modelo grfico (figura 1).

    Por se tratar de um estudo sobre valores-notcia, o presente trabalho foca-se nos dois primeiros lugares de pertinncia da mquina miditica. Aborda-se, desta forma, os processos de seleo dos acontecimentos (lugar das condies

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    de produo) e de construo noticiosa (lugar de construo do discurso).

    Conforme observvel no modelo grfico, o lugar das condies de pro-duo das notcias (instncia de enunciao) se estrutura em dois espaos distintos: o externo-externo, que compreende as condies socioeconmicas envolvidas no processo comunicacional; e o externo-interno, responsvel por abarcar as condies semiolgicas da produo. Assim, ao entender a notcia como produto de uma determinada empresa cuja organizao est regida por prticas institucionalizadas (que se relacionam com os estatutos e as funes dos atores nela envolvidos), o externo-externo configura-se como uma pro-blemtica de ordem socioeconmica. Este espao (externo-externo), emara-nhado nas prticas profissionais da organizao, dialoga num processo de in-fluncias mtuas com o espao externo-interno, responsvel pela realizao propriamente dita (escolhas temticas, entre outras) do produto miditico. Em outros termos, pode-se dizer que as variveis socioeconmicas que ca-racterizam o espao externo-externo influenciam as escolhas discursivas dos jornalistas na construo da notcia (externo-interno), e vice-versa. Ademais, entende-se que a instncia de enunciao da mquina miditica trabalha com efeitos propostos, j que o destinatrio no conhecido e, numa perspec-tiva ideal, s pode ser considerado como um vazio a ser preenchido pelas significaes propostas.

    Por sua vez, o lugar de construo do discurso se configura segundo uma organizao semiodiscursiva, ou seja, a partir da disposio de formas que per-tencem, predominantemente, ao sistema verbal e a outros sistemas semiolgi-cos, como o icnico, o grfico e o gestual. Diferentemente do lugar das con-dies de produo, baseado essencialmente em questes de intencionalidade (j que o destinatrio s pode ser imaginado idealmente), o lugar da constru-o do discurso estrutura-se numa relao de co-intencionalidade, uma vez que se reconhece o destinatrio num processo de intercmbio comunicativo (resultando em efeitos possveis):

    Figura 1: Os lugares de pertinncia da mquina miditica

    Fonte: CHARAUDEAU, 2003, p. 23

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    Por uma parte, a instncia de enunciao somente pode ima-ginar o receptor de uma maneira ideal, quer dizer, constru-lo por hipteses em um destinatrio supostamente adequado s suas intenes, sem prejulgar, portanto, sobre sua ativida-de interpretante real, e como, por outra parte, esta instncia de enunciao no pode pretender dominar a totalidade de sua prpria intencionalidade, dito que, como ser coletivo, leva consigo vrios campos de significao dos quais no necessariamente possui conscincia, nos vemos obrigados a concluir que o texto produzido portador de uma co-inten-cionalidade que se estabelece entre o enunciador e o desti-natrio (seres de fala) e no entre o produtor e o receptor (seres atuantes). (CHARAUDEAU, 2003, p. 25). [traduo do autor].

    Conclui-se, neste contexto, que texto jornalstico nasce carregado de efei-tos possveis, ao passo que somente uma parte desses efeitos corresponde s intenes conscientes do enunciador; outra parte, no necessariamente a mes-ma, ser reconstruda pelo receptor (idem, p. 26).

    Portanto, nas circunstncias de anlise de produtos noticiosos (entendidos como atos comunicativos), convm distinguir os efeitos propostos (locali-zados no lugar das condies de produo) dos efeitos possveis (localiza-dos no lugar de construo do discurso) e dos efeitos produzidos (locali-zados no lugar de interpretao) (ibidem, p. 45). Assim, as selees de fatos noticiveis e as subsequentes escolhas lingusticas realizadas na construo das notcias devem ocorrer sempre em funo de receptores pr-idealizados e dos efeitos pretendidos. Tratam-se, portanto, de processos de seleo, seja no mbito do falar, do comunicar ou do informar:

    evidente que falar, comunicar, informar, tudo seleo. No somente seleo de contedos para transmitir e de formas adequadas para expressar-se de acordo com as nor-mas corretas e de clareza, mas tambm seleo de efeitos de sentido para influir sobre o outro, quer dizer, no final das contas, seleo de estratgias discursivas. (ibidem, p. 47). [traduo do autor].

    Intrnsecos em tais escolhas residem os processos de construo de sentido do discurso informativo so dois, chamados de transformao e transa-o (ibidem, p.50-21). Entende-se que o ato de informar se inscreve em um processo tpico de transformao, pois responsvel por descrever, contar e explicar algo, ou, em outras palavras, por transformar um mundo por signifi-car em um mundo significado. Tal processo de transformao regido, no entendimento da teoria discursiva de Patrick Charaudeau (2003), pelo proces-so de transao. Assim, o ato de comunicar inscreve-se tambm em uma din-mica de transao, pois, para que seja vlido, os interlocutores devem estar em condies de reconhecer o mesmo marco de intencionalidade. Os processos podem ser visualizados segundo o modelo grfico:

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    Figura 2: Dinmica dos processos de transformao e transao

    Fonte: CHARAUDEAU, 2003, p. 52

    Assim, todo discurso, antes de manifestar o mundo, manifesta uma relao. A mesma lgica vale para o discurso informativo. O sujeito informante, pre-so nas redes do processo de transao, somente pode construir sua informa-o (processo de transformao) em funo de dados especficos da situao de intercmbio (CHARAUDEAU, 2003, p.52).

    No contexto do contrato de comunicao, marcado em sua dinmica pela influncia dos dados externos ou seja, pelas prticas sociais que carac-terizam os condicionamentos situacionais e, ao mesmo tempo, pelos dados internos localizados no interior propriamente dito das escolhas discursivas (condicionamentos discursivos) os processos de transformao e transao

    podem ser ilustrados da seguinte maneira:Por conseguinte, abordar o modo como aparecem e circulam os discursos

    sociais (entre eles o discurso miditico) consiste, primeiramente, em tentar descrever os condicionamentos situacionais e discursivos dos contratos de comunicao em que se inserem e adquirem sentido; e, em um segundo mo-mento, os tipos de estratgias que aparecem de maneira recorrente no interior deste campo contratual (idem, p. 82).

    4. O acontecimento miditico

    Apresentados conceitualmente os modos de funcionamento da chamada mquina miditica e do contrato de comunicao na perspectiva de Patrick Charaudeau (2003), parte-se para o entendimento, no mbito da teoria dis-

    Figura 3: Processos de transformao e transao no mbitodo contrato de comunicao de Patrick Chareudeau (2008)

    Fonte: CHARAUDEAU, 2003, p. 83

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    cursiva, da dinmica de seleo e construo dos acontecimentos miditicos reflexo que permite dilogo com as abordagens conceituais sobre critrios de noticiabilidade no jornalismo.

    Segundo Charaudeau (2003, p. 79), um dos principais dados externos do contrato de comunicao consiste no tema, ou, em seus termos, naquele dado que possibilita a fragmentao semntica do mundo (tematizao). Por sua vez, a noo de tema liga-se intrinsecamente ao conceito de acontecimen-to, ou seja, os acontecimentos do mundo, conforme define o autor francs, somente adquirem sentido por meio de uma estruturao que lhes do os atos de linguagem e de tematizao (idem, p. 117).

    Para Charaudeau (p. 118), o acontecimento se encontra no mbito do mundo a comentar (processo de transformao) e, portanto, nunca pode ser transmitido em estado bruto (j que depende de uma determinada signifi-cao). Assim, compreende-se que no mundo surgem acontecimentos a todo momento e numa ordem complexa, configurando-se em estados (conjun-to de qualidades ou caractersticas). Tais estados so constantemente modifi-cados, fenmenos que somente adquirem existncias significativas por meio de um processo de percepo-captao-sistematizao-estruturao trazido tona por um sujeito lingustico pois, ao serem relatados os acontecimentos corporificam um significado.

    O trabalho de ordenamento de sentido dos acontecimentos (passagem do mundo a comentar ao mundo comentado) rege-se, segundo Charaudeau (ibidem, p. 122), por uma dupla faculdade: a percepo dos fenmenos estruturados no tempo e no espao; e a estruturao temtica do mundo ao ser comen-tado por meio da linguagem. Nesta perspectiva, um aconteci-mento nasce, vive e morre no interior de um processo dialti-co que depende do sujeito que interpreta o mundo (ibidem, p. 122). Portanto, em um estudo sobre a construo do sentido (bem como em um estudo sobre noticiabilidade), no interessa o acontecimento em si (fenomnico), mas o processo de construo do acon-tecimento.

    Algumas consideraes de Patrick Charaudeau sobre o processo de sele-o dos acontecimentos miditicos so relevantes para o entendimento da di-nmica dos valores-notcia no jornalismo. Para o autor, a construo de um acontecimento noticioso depende, quase necessariamente, de que ele seja, no mundo fenomnico, um acontecimento inslito (dinmica que ressalta o inesperado como valor-notcia). Assim ocorre, pois os meios de comunica-o buscam tratar os acontecimentos em seus aspectos acidentais em oposio regularidade.

    Patrick Charaudeau (ibidem, p. 125) ainda refina seu raciocnio e argumenta que a finalidade da informao miditica dar conta do que ocorre no espao pblico. Na viso do autor, o espao pblico no possui significao por si mesmo, mas depende dos vrios discursos sociais (entre eles o discurso midi-tico) que o fazem inteligvel. Os discursos que permitem a inteligibilidade do mundo, por sua vez, dependem dos grupos sociais nos quais esto inseridos e dos sistemas de valores por eles produzidos (CHARAUDEAU, 2003, p. 165).

    Todo discurso, antes de

    manifestar o mundo, manifesta

    uma relao

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    Neste debate, insere-se a problemtica do acontecimento noticioso. Segun-do Charaudeau (2003, p. 174), se por um lado aceita-se como premissa o fato de que a seleo efetuada pelos meios de comunicao tende a impor uma determinada diviso do espao pblico e uma determinada caracterizao do acontecimento, por outro, necessrio delimitar quais so os critrios que regem tal seleo. O autor prope uma classificao a partir de dois tipos de critrios: externos e internos.

    Entende-se por critrios externos aqueles que se referem ao modo de apari-o do acontecimento e que podem ser classificados de trs formas:

    O acontecimento como fatalidade: aquele que no pode ser previsto por sistemas de expectativas da vida social; O acontecimento programado: marcado pela existncia de um calendrio que dispe de organizao e desenvolvimento da vida social; O acontecimento suscitado: preparado e provocado por algum setor institu-cional com fins estratgicos de presso sobre a opinio pblica. (CHARAU-DEAU, 2003, p. 174-175).

    Por critrios internos entendem-se aqueles marcados pelas opes realiza-das na instncia miditica. Tais opes dependem do modo como os meios representam a inteligibilidade social e da maneira como criam hierarquias para os acontecimentos. A relao entre os critrios externos e internos no de-terminista (relao de causa e efeito), mas a partir de um jogo constante de tenses. Em decorrncia do processo de hierarquizao dos acontecimentos estabelecido pelos critrios internos e externos de seleo, estabelece-se a di-viso miditica do mundo (idem, p. 177).

    Na perspectiva de Patrick Charaudeau, um acontecimento miditico sele-cionado e construdo em funo de seus potenciais de atualidade (estatuto que caracteriza a distncia temporal entre o acontecimento fenomnico e o momento de sua informao miditica); sociabilidade (diz respeito aos as-pectos que afetam os cidados no espao pblico); e imprevisibilidade (ca-pacidade de captar a ateno, o interesse e o afeto do destinatrio idealizado pelo enunciador; o acontecimento eleito deve perturbar a tranquilidade do sistema de expectativas do sujeito consumidor de informaes).

    Conforme exposto, nota-se que a concepo de noticiabilidade de Patrick Charaudeau (2003) est intimamente relacionada noo de espao pblico. Tal relao, por sua vez, est sujeita a um duplo jogo de influncias centrpe-do e centrfugo no interior de um grupo social.

    O espao pblico no algo nico, no um fato nem um ponto de partida. Resulta da conjuno das prticas sociais e das representaes. As primeiras constituem o motor das segundas, e estas do quelas sua razo de ser ao atribu-las valores que tendem a reafirm-las ou modific-las. Esta in-terao dialtica constri um espao pblico plural e mvel. (CHARAUDEAU, 2003, p. 132). [traduo do autor].

    Segue-se a esta definio o raciocnio de que os meios de comunica-

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    o no se apoderam do espao pblico, mas participam constantemente de sua constituio e transformao. Neste raciocnio, o tema (dado que pos-sibilita a fragmentao semntica do mundo) entendido conceitualmente como componente do contrato de comunicao se inscreve no processo de construo do acontecimento miditico. Atua, assim, na diviso do mundo em universos de discurso, abordando-os segundo critrios de atualidade, sociabilidade e imprevisibilidade. Projetando o debate para o campo jor-nalstico, seriam estes os valores-notcia que regem a lgica de tematizao do mundo.

    Por fim, seguindo a perspectiva de Patrick Charaudeau (2003), a dinmi-ca de constituio do espao pblico e seu consequente dilogo com a concep-o de construo do acontecimento miditico (noticiabilidade) permite uma reflexo pertinente de ordem qualitativa: 1) se a seleo dos acontecimentos fenommicos e sua transformao em acontecimentos miditicos est ligada noo de espao pblico; 2) e se a noo de espao pblico, por definio, no universal, mas depende das especificidades culturais dos grupos sociais (o espao pblico plural e mvel); 3) logo, a seleo de acontecimentos miditicos no pode ser encarada de maneira enrijecida por estar intimamente relacionada aos padres culturais de cada grupo. Refina-se esta concluso com os compromissos tericos de Patrick Charaudeau apresentados inicialmente: as articulaes entre os planos situacional e lingustico e entre os planos ma-cro e microssocial.

    5. Consideraes finais

    Por que as notcias so como so? O questionamento seminal deste traba-lho permanece latente nos estudos tericos que se preocupam com o fazer jornalstico. Procurou-se, neste sentido, fornecer uma contribuio ao deba-te por meio das contribuies discursivas, adicionando novos elementos na complexa grade conceitual para o entendimento da lgica dos valores-notcia no jornalismo. Este caminho, evidente, ainda est por ser pavimentado (e complementado com novas perspectivas), mas a contribuio do presente tra-balho j se coloca como espcie luz para a discusso. Desta forma, as reflexes aqui estabelecidas firmam-se como um ponto de partida para anlises empri-cas a respeito do emprego dos valores-notcia na prtica jornalstica.

    Alguns pontos merecem ser sublinhados. Em primeiro lugar, a perspecti-va de cunho no-determinista localizada na obra de Patrick Charaudeau. Por conseguinte e finalmente, ressalta-se que o entendimento da concepo de noticiabilidade a partir das contribuies do autor francs significa, em ltima instncia, valorizar os lugares de pertinncia do contrato comunicacional, a lgica dos processos de transformao e transao na problemtica da cons-truo do sentido e a relao entre estruturao dos acontecimentos noticio-sos e a tematizao do espao pblico, bem como e sobretudo a articulao entre os aspectos situacionais (externos) e lingusticos (internos) que se mo-bilizam na estruturao do discurso informativo.

  • Como os acontecimentos se tornam notcia:Uma reviso do conceito de noticiabilidade a partir das contribuies discursivasMarcos Paulo da Silva pp. 173 - 184

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    6. Referncias bibliogrficasCHARAUDEAU, Patrick. El discurso de la informacin: la construccin del espejo social. Barcelona: Gedisa Editorial, 2003.GALTUNG, Johan, RUGE, Mari Holmboe. A estrutura do noticirio estran-geiro A apresentao das crises do Congo, Cuba e Chipre em quatro jornais estrangeiros. In: TRAQUINA, Nelson (Org.). Jornalismo: questes, teorias e estrias. 2.ed. Lisboa: Veja, 1999.NOGUEIRA, Cludio Marques Martins. Consideraes sobre o modelo de anlise do discurso de Patrick Charaudeau. In: Revista Ensaio. V.6. N.1. UFMG, julho 2004.SOUSA, Jorge Pedro. Teorias da notcia e do jornalismo. Chapec/Floria-npolis: Argos/Letras Contemporneas, 2002.SOUSA, Jorge Pedro. Tobias Peucer: Progenitor da Teoria do Jornalismo. In: Revista Estudos em Jornalismo e Mdia. UFSC, v.1, n.2, 2004.TRAQUINA, Nelson. Teorias do jornalismo: a tribo jornalstica / uma co-munidade interpretativa internacional. 2.ed. Florianpolis: Insular, 2008.