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Trecho do litoral do município de Linhares, no Espírito Santo, na tarde de 23 de novembro... COMO SE SALVAR... O DESASTRE DE MARIANA 70 / ÉPOCA NEGÓCIOS / DEZEMBRO 2015 DEZEMBRO 2015 / ÉPOCA NEGÓCIOS / 71 Fotos: GABRIELA BILÓ/AE

COMO SE SALVAReditora.globo.com/.../como-se-salvar-do-mar-de-lama.pdfdessas pessoas se entrelaçasse de uma forma tão inesperada quanto brutal. Naquele momento, rompeu-se um paredão

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Trecho do litoral do município de Linhares, no Espírito Santo, na tarde de 23 de novembro...

COMO SE SALVAR...

O D E S A S T R E D E M A R I A N A

70 / ÉPOCA NEGÓCIOS / DEZEMBRO 2015 DEZEMBRO 2015 / ÉPOCA NEGÓCIOS / 71Fotos: GABRIELA BILÓ/AE

...momento da chegada ao mar da lama da barragem de Mariana, em Minas, a quase 400 quilômetros de distância dali

A extensão da crise, os bastidores da

reação e o incerto caminho de volta da Samarco, a gigante da mineração que

protagonizou a maior tragédia

socioambiental do país / PEDRO CARVALHO,

DE MARIANA,

E RAQUEL GRISOTTO

...DO MAR DE LAMA

O D E S A S T R E D E M A R I A N A

DEZEMBRO 2015 / ÉPOCA NEGÓCIOS / 7372 / ÉPOCA NEGÓCIOS / DEZEMBRO 2015 Fotos: GABRIELA BILÓ/AE

O MAPA DA SAMARCO

3 DUTOS

MG

ES

MARIANAAlém da mina, a Samarco tem três usinas de concentração de minério na região

ANCHIETANo litoral capixaba, a empresa possui quatro plantas de pelotização e um terminal portuário

BELO HORIZONTENa capital mineira, ficam a sede administrativa e a área de projetos da mineradora

O RAIO X DA MINERADORAO QUE É, QUANTO GANHA E QUAL A IMPORTÂNCIA DA SAMARCO

AS MARGENS DO NEGÓCIO FICAM PRÓXIMAS DE 37%

A produção de pelotas de minério de ferro da empresa é 100% voltada à exportação

MILHÕES DE TONELADAS DE PELOTAS DE MINÉRIO DE FERRO PRODUZIDAS

EM 2014*

DA DEMANDA MUNDIAL DESSE

INSUMO É SUPRIDA PELA EMPRESA

72011

2012

2013

2014

6,5

7,2

7,5

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2,6

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2,8

CLIENTES EM 19 PAÍSES COMPRAM DA

SAMARCO

RECEITA LÍQUIDA LUCRO LÍQUIDOFazia uma tarde ensolarada em Maria-na, em Minas Gerais, na quinta-feira, 5 de novembro. Os relógios nas torres das inúmeras igrejas da região marcavam 16 horas. Dentro de um contêiner-labora-tório, próximo à barragem de Fundão, propriedade da mineradora Samarco, o técnico de filtragem Evandro Abreu terminava algumas análises do óleo usa-do em máquinas. A meia hora de carro dali, no bairro do Rosário, ainda em Ma-riana, um senhor moreno e de óculos, chamado José do Carmo, funcionário da empresa há 26 anos, voltava para casa para se arrumar antes de seguir para a mineradora, onde começaria um turno às 19 horas. Em Paracatu de Baixo, um distrito rural da região, Antônio

f 24,1 20% 39

Deutsche Bank, em relatório a clientes e investidores, previu que a Samarco pode ficar sem operar em Mariana até 2019.

Uma das principais preocupações do mercado é a dificuldade de se calcu-lar o valor total que as ações judiciais podem alcançar. Em 2010, após o aci-dente no Golfo do México, a British Petroleum (ou BP) também entrou na mira das autoridades, nos Estados Unidos. Mas a conta só chegou nes-te ano – e atingiu US$ 20 bilhões em compensações.

Especialistas estimam que, se não voltar a operar, a empresa terá caixa para honrar compromissos como dí-vidas e multas somente até o segundo semestre de 2016. O presidente da Sa-marco recusou-se a comentar esse tipo de projeção. No dia 27, a mineradora divulgou uma nota informando que não poderá pagar funcionários e fornecedo-res caso siga com as contas embargadas – ela já tem R$ 300 milhões bloqueados pela Justiça. Se for incapaz de pagar as indenizações, a responsabilidade pode recair sobre a Vale e a BHP. “Quando há danos desse porte, esse tipo de res-ponsabilização é comum”, diz Walfrido Warde Júnior, advogado especializado em direito societário.

A LAMA “CONCRETA” O CHÃO

O dano social provocado na região da mina – com exceção, obviamente,

das mortes – está sendo contornado. Até o momento, 1.265 desabrigados foram alocados em hotéis e pousadas de Mariana. Aos poucos, essas pessoas estão sendo acomodadas em imóveis na cidade. A Samarco mapeou 700 casas que poderiam ser alugadas no muni-cípio. A etapa seguinte é aquela que os

Teotônio aproveitava o sol ameno do fim de tarde para prosear com a irmã, em frente à casa dela. Em um edifício comercial no bairro da Savassi, em Belo Horizonte, a 116 quilômetros dali, Ricar-do Vescovi, o presidente da Samarco, participava de uma videoconferência sobre segurança do trabalho. Faltavam poucos segundos para que o destino dessas pessoas se entrelaçasse de uma forma tão inesperada quanto brutal.

Naquele momento, rompeu-se um paredão feito de solo compactado, pe-dras e concreto, que servia de conten-ção para a barragem de Fundão. Foram liberados 55 bilhões de litros de lama e resíduos, como sílica e areia. Esse é um volume tão gigantesco de detritos que qualquer comparação soa elusiva. Ele equivale, por exemplo, a 22 mil piscinas olímpicas. A avalanche soterrou Ben-to Rodrigues, onde moravam cerca de 500 pessoas, em apenas meia hora. Não houve alertas ou sirenes. O tsunami de barro deixou, até onde se sabe, 13 mor-tos – ainda há oito desaparecidos. Para-catu de Baixo, Ponte do Gama, Pedras e Barra Longa eram povoados. Foram devastados. Acompanhando o desnível natural da Serra do Espinhaço, o lixo seguiu por 40 quilômetros na direção nordeste e dois dias depois atingiu o rio Doce, o mais importante da região. Uma quantidade incalculável de peixes e animais morreu. Em 22 de novembro, a lama alcançou o mar. Esse foi o maior desastre ambiental ocorrido no Brasil.

A Samarco, dona da barragem, ori-gem dos problemas sociais, ambientais e econômicos relacionados ao desastre, tem uma conta a pagar que pode passar de R$ 20 bilhões – mais de sete vezes o lucro da empresa no ano passado.

Esse é o valor que o governo federal, em conjunto com os estados de Minas e Espírito Santo, pede, em ação judicial contra a Samarco e suas controladoras, a Vale e a anglo-australiana BHP Billiton, para recuperação ambiental e indeni-zações. Mas a cifra pode ser maior. A real extensão dos danos ainda não está totalmente apurada, na avaliação da Advocacia Geral da União.

No momento, a Samarco está proibida de operar. Para voltar à atividade, depende de acordos com autoridades, o que torna impossível prever quando – ou mesmo se – isso acontecerá. Isso tudo coloca em xeque o futuro da segunda maior exporta-dora de pelotas de minério de ferro do mundo, responsável por 20% do fornecimento global desse insumo. “Tenho trabalhado 16 horas por dia e, quando durmo, acordo várias vezes preocupado com as coisas que preciso fazer”, diz Ricardo Vescovi, o CEO da Samarco (leia entrevista à pág. 84). “Não desejo isso a nenhum gestor.”

RESPINGOS NA VALE E NA BHP

A lama, como se vê, já respinga nas gigantes Vale e BHP Billiton. As

ações de ambas sofreram um baque ex-pressivo. O valor de mercado da Vale desabou R$ 14,7 bilhões entre o dia da tragédia e o fim de novembro. No caso da BHP, a queda foi de US$ 17 bilhões. O desastre de Mariana não é a única razão para esses tombos. Eles sofreram a influência da redução do preço do minério de ferro. Mas isso só agrava a situação. Os principais analistas do setor descartam a possibilidade de a Samarco despejar um centavo de dividendo nos balanços da Vale e da BHP em 2016. O

* a capacidade foi ampliada para 30,5 milhões em 2015

em bilhões de reais

74 / ÉPOCA NEGÓCIOS / DEZEMBRO 2015

O D E S A S T R E D E M A R I A N A

Fotos: THINKSTOCK

voluntários chamam de “solução defini-tiva”. O mais provável é que a empresa construa comunidades inteiras, próxi-mas às destruídas. Não sairá barato, mas parece factível. O dano ambiental na região, porém, é incontornável. A lama que ficou por ali é densa, parecida com argila. À medida que seca, praticamente “concreta” o caminho que percorreu.

Na bacia do rio Doce, o cálculo dos prejuízos é tão grande que ainda não passa de um exercício de imaginação. Especialistas acreditam que o manancial poderá ser recuperado, mas o processo levaria pelo menos dez anos. A Samarco contratou a consultoria Golder Asso-ciates – uma reconhecida empresa de engenharia ambiental – para traçar um plano de resgate das áreas devastadas. A Vale e a BHP irão constituir um fundo, de onde sairão recursos para a execução desse projeto. “Ocorre que a tragédia ainda não terminou”, diz Sandra Cureau, subprocuradora-geral de República e coordenadora da Câmara do Meio Am-biente do Ministério Público. “O crime de poluição está configurado, mas o pro-blema é que a lama ainda está correndo.”

Existem, também, os danos sociais: crises de abastecimento de água, pesca-dores que não terão mais de onde tirar o sustento – e por aí vai. A Samarco assinou termos nos quais garante, por exemplo, o fornecimento de 40 litros diários de água por habitante nas cida-des mais atingidas, assim como a res-ponsabilidade sobre o abastecimento contínuo para hospitais, escolas e pre-sídios dessas localidades. “Tudo o que não puder ser recuperado, de alguma forma precisará ser compensado”, diz Sandra, a subprocuradora-geral do MP. “A punição terá de ser exemplar.”

AS MARCAS DA CATÁSTROFE1) Perto de Bento Rodrigues, uma fazenda foi encoberta pela lama; 2) bancos flutuam no lamaçal, no interior da igreja de Paracatu de Baixo; 3) moradores de Mariana fazem manifestação em apoio à mineradora; 4) Expedito Silva, um dos 1.265 desabrigados pela tragédia; 5) e 6) uma mochila escolar e um quadro, detalhes dos escombros do desastre; 7) e 8) em Paracatu, registro da altura da lama na parede da igreja e as casas destruídas; 9) moradores das áreas atingidas, em frente a um hotel onde estão hospedados, em Mariana

1

7 8

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9

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DEZEMBRO 2015 / ÉPOCA NEGÓCIOS / 77Fotos: PEDRO CARVALHO

O TAMANHO DA TRAGÉDIAOS PROBLEMAS QUE A SAMARCO JÁ ENFRENTA – E O QUE ESTÁ POR VIR

DE QUEM É A CULPA?

Análises preliminares têm apontado eventuais falhas e negligências,

que podem ter provocado a tragédia – ou aumentado seu estrago. O erro mais gritante foi a ausência de um sistema de alerta em Bento Rodrigues, a apenas três quilômetros abaixo das barragens. A tendência para a inundação do povoado é tão evidente que a própria Samarco, nos últimos anos, tentou comprar a área para realocar os moradores e estender o reservatório até ali. As propostas nunca convenceram a população. O povoado, argumentam alguns moradores, esta-beleceu-se antes da Samarco na região. Fontes da empresa afirmam que, nas próximas semanas, ela deverá anunciar – com flagrante atraso – uma moderni-zação no monitoramento das barragens. O problema é que a lei brasileira não deixa clara a obrigação das mineradoras terem um sistema de alerta desse tipo.

O Estado, com a ineficiência que o distingue, tem culpa na tragédia. Ain-da que siga padrões internacionais, a legislação sobre o tema (chamada Lei de Segurança de Barragens ou Lei Federal 12.334, de 2010) deixa bura-cos em pontos importantes. Ela, por exemplo, menciona a necessidade de as mineradoras terem um plano de emergência. Deixa de lado, contudo, questões básicas, como a exigência das sirenes de alerta. “Além disso, o texto legal não define com clareza qual órgão deve fiscalizar as barragens e com qual frequência”, diz Mônica Zuffo, doutora em segurança de barragens pela Uni-camp. O Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) assume a maior parte dessa tarefa, mas possui um quadro técnico enxutíssimo. Em

Minas, tem quatro funcionários para fiscalizar 736 barragens. No momento, o órgão vive um caos administrativo. O acidente desencadeou uma crise, que resultou no pedido de demissão da diretoria do DNPM.

Outra questão controversa, apon-tada por especialistas, é o eventual uso abusivo da barragem que se rompeu. Em um reservatório desse tipo, não importa apenas a quantidade de rejeitos despe-jados, mas o ritmo em que isso ocorre. Ao longo do tempo, esses dejetos se sedimentam no fundo do reservatório. Isso confere maior estabilidade ao siste-ma. A velocidade desse processo tem de ser respeitada. A produção da Samarco, entretanto, disparou nos últimos anos. Entre 2014 e 2015, a capacidade ins-talada saltou 37%. A empresa, por sua vez, afirma que as barragens possuíam todas as licenças necessárias. “A última fiscalização ocorreu em julho deste ano e indicou que as barragens se encontra-vam em totais condições de segurança”, informou nota da Samarco.

Há, ainda, um terremoto de magni-tude 2.6 registrado na região horas antes do acidente. Os relatos de funcionários e moradores indicam que não foi um tremor corriqueiro. Quando relembram o dia fatídico, eles invariavelmente co-meçam a narrativa com “aquilo” que aconteceu por volta das 13h30 (o rompi-mento deu-se às 16 horas). Todos dizem ter ficado impressionados com um ruído, seguido de um tremor. O fenômeno está sendo investigado por geólogos do mun-do todo, que circulam pelas ruas de Ma-riana. “A terra chegou a tremer até perto de Paracatu [a cerca de 30 quilômetros da barragem]”, diz Antônio Teotônio, um dos milhares de desabrigados.

Antônio Teotônio, 47 anos, nasceu e morou a vida toda em Paracatu de Baixo. Os tios, irmãos, filhos e outros parentes – todo mundo morava no vilarejo, que contava com uma escola de tempo integral e uma bonita igreja matriz. Antônio trabalhava “na roça dos outros, como quase todo mundo”, ele define. Na quinta-feira, pouco depois das 17 horas, ele conversava com a irmã quando notou um alvoroço entre os moradores. Telefonemas tinham alertado que uma barragem havia estourado. Mas existia um clima de descrença: anos atrás, um alerta parecido correu o povoado, mas era somente um vazamento, que resultou na chegada de um pequeno volume de água ao local. Às 17h30, porém, um helicóptero dos Bombeiros pousou no campinho de futebol de Paracatu. Um oficial desceu e informou que os moradores tinham dez minutos para deixar a vila. Em seguida, levantou voo. As pessoas começaram a correr morro acima, amparando os mais velhos e as crianças. Teotônio estava ao lado de um pé de manga, na encosta de um desses morros, quando, no cair da noite, a lama chegou. “Não deu para salvar nada, minhas galinhas ficaram tudo ali embaixo”, diz. Agora, ele espera que a Samarco reconstrua o vilarejo no alto de alguma colina próxima. “Embaixo, eu não moro mais, de jeito nenhum.”

José do Carmo, 56 anos, trabalha há 26 na área de análise de minério da Samarco. Perto das 17 horas do dia do acidente, ele voltava para casa quando parou para conversar com um vizinho. O amigo o alertou sobre o desastre. Carmo pegou o celular para conferir o WhatsApp. No grupo dos funcionários, leu a seguinte mensagem, postada às 16h40: “Alguém tá sabendo que a barragem de Santarém rompeu?”. (Na verdade, havia sido a de Fundão.) Nas postagens seguintes, os colegas manifestavam espanto: “Credo”, “Meu Deus”. Apesar disso, Carmo manteve os planos: tomou banho, se arrumou e pegou o ônibus que o levou à empresa. Começou o turno às 19 horas. “Foi horrível. Todo mundo só falava do acidente, as meninas choravam”, diz. “Fiquei até as 21 horas [o expediente terminaria à 1 da madrugada] e disse ao chefe que voltaria para casa. Ninguém estava com cabeça para trabalhar.” Ainda haveria mais um turno no laboratório, até as 7 horas. No dia seguinte, a Samarco anunciou a licença remunerada e as férias coletivas, até 29 de dezembro, que atingem 85% do pessoal. De lá para cá, Carmo ajuda os desabrigados, prestando pequenos serviços: arrecada roupas, separa as doações. Ele até pagou o IPVA atrasado de um dos atingidos. “Se você não sabe tocar o piano, ajuda a carregar.”

NÃO DEU PARA SALVAR NADA, ATÉ AS

GALINHAS FICARAM SOB

A LAMA”

FOI HORRÍVEL: SÓ SE FALAVA

DO ACIDENTE. AS MENINAS CHORAVAM”

ANTÔNIO TEOTÔNIO, 47 ANOS,ex-morador de Paracatu de Baixo

JOSÉ DO CARMO, 56 ANOS,funcionário da Samarco há 26 anos

Apenas pelos danos ambientais já constatados, a mineradora recebeu cinco autos de infração do Ibama e uma multa do governo de Minas Gerais

MULTAS

O Ministério Público de Minas Gerais pediu a criação de um fundo para uso emergencial, que também serve como caução no caso de insolvência da Samarco

FUNDO DE EMERGÊNCIA

Consideradas as vendas do ano passado, assim como as variações na capacidade produtiva e no preço do minério, a empresa estaria perdendo R$ 23 milhões de receita ao dia com a paralisação

OPERAÇÃO EMBARGADA

Executivos da Samarco podem responder criminalmente pelos danos ambientais provocados pela catástrofe. Ainda que no momento seja vista como remota, existe a possibilidade de prisão desses funcionários

RISCO CRIMINAL

Dadas as dimensões da tragédia e a pressão da opinião pública, a mineradora deverá enfrentar dificuldades até para conseguir autorizações que permitam a retomada das operações em Mariana

DANO À IMAGEM

Fontes: Ibama, Procuradoria-Geral da República, Semad e especialistas do mercado

367TOTAL

MILHÕES

R$

1TOTAL

BILHÃO

R$

O governo federal, junto aos estados de Minas Gerais e Espírito Santo, anunciaram uma ação conjunta contra a mineradora e suas controladoras, a Vale e a BHP

INDENIZAÇÕES

20TOTAL

BILHÕES

R$

O D E S A S T R E D E M A R I A N A

78 / ÉPOCA NEGÓCIOS / DEZEMBRO 2015 Fotos: THINKSTOCK

cancelam reservas em hotéis de Maria-na. No mais, um linchamento público em redes sociais criou a impressão de que a Samarco é irresponsável, com funcionários que estariam morrendo de vergonha da empresa e uma população vizinha revoltada com sua negligência.

A realidade é outra. A Samarco é frequentemente apontada como a me-lhor mineradora do país. Tem padrões de segurança, processos empresariais

e até salários mais elevados do que as concorrentes. NEGÓCIOS conversou com dezenas de especialistas e executi-vos do setor – em São Paulo, Mariana e Belo Horizonte – e ouviu um rosário de elogios ao ambiente de trabalho, à quali-dade dos equipamentos e à preocupação da companhia com questões legais. Na região de Mariana, é consenso que um emprego na empresa é mais cobiçado do que ser efetivado, por exemplo, na

mesmo após a tragédia, não se mos-travam envergonhados. Os cerca de 400 trabalhadores que agora ajudam os desabrigados, em Mariana, ainda usam o uniforme cinza com o logo-tipo da empresa. Nas ruas da cidade, a população também não demonstra revolta. Na manhã de 21 de novembro, cerca de 300 moradores – a maioria não funcionários – percorreram as ruas da cidade levando cartazes com dizeres

Vale. “Aqui todo mundo sabe: a Samarco é mãe, a Vale é madrasta”, diz o funcionário José do Carmo. Tudo isso só faz

jogar fermento na questão sobre o por-quê da tragédia.

Carmo e boa parte dos mais de 3 mil funcionários da mineradora,

COMO REAGIR À CRISE

A Samarco tem um documento que fixa seu plano de gestão de crises.

Há, inclusive, um capítulo específico so-bre acidentes em barragens. Ele estabe-lece o que deve ser feito em situações de risco. O problema é que não considerava a hipótese de um desastre de tamanha proporção, com um rompimento total da estrutura. O plano, porém, não deixa-va dúvidas quanto a outra questão: era preciso agir rápido – e in loco.

Nas dependências da unidade de Mariana, foi organizado o quartel--general de crise. Dez executivos da companhia foram deslocados para o local (inclusive o presidente), para formar um comitê que passaria a tomar as decisões mais prementes. As instalações da empresa também se transformaram em base de apoio para os caminhões e os dez helicóp-teros dos Bombeiros destacados para o socorro às vítimas. Os veículos que removem a terra para abrir caminho em Bento Rodrigues usam a Samarco como centro de operação.

Ao mesmo tempo em que tratava da lama, a empresa precisava esclarecer a população sobre o que acontecia. Assim que a tragédia se tornou pública, a equipe de comunicação da Samarco passou a receber cerca de cem solicitações de en-trevistas ao dia, vindas de TVs e jornais do mundo todo. No final de novembro, esse volume ainda era de 60 pedidos diários. Além de jornalistas, também autoridades, parentes de moradores e analistas eco-nômicos demandavam uma infinidade de respostas. No dia 16 de novembro, a FleishmanHillard, a terceira maior agên-cia mundial de reputação corporativa, foi chamada para ajudar nessa tarefa.

No que diz respeito à transpa-rência das informações, as principais críticas foram dirigidas à Vale. Logo após o acidente, a BHP convocou uma coletiva para esclarecer o ocorrido. “Re-conhecemos nossa responsabilidade de apoiar a Samarco e as autoridades bra-sileiras”, afirmou Andrew Mackenzie, o presidente da mineradora. Nos dias seguintes, ele desembarcou no Brasil para monitorar de perto o desastre. Quem acompanhou o executivo afir-ma que, mesmo quando ele estava fora da mira das câmeras, sua atitude era de nítida preocupação. A Vale, por sua vez, reagiu de forma diferente. Executivos da empresa se prontificaram em dizer que suas operações e as da Samarco eram independentes e que não existiria responsabilidade solidária (expressão jurídica que significa que o controla-dor responde pelos erros das compa-nhias controladas). Depois, a empresa mudaria o discurso. Murilo Ferreira, o presidente da Vale, apareceu em público seis dias após o desastre. Depois disso, só voltaria a se pronunciar em 27 de no-vembro, em uma coletiva de imprensa.

UM SHOW DE MAL-ENTENDIDOS

A tragédia foi acompanhada por outro fenômeno igualmente pro-

blemático: informações equivocadas e mal-entendidos de toda a sorte empor-calharam os debates sobre o desastre. Para começar, Mariana, uma cidade turística forjada no ciclo do ouro, não viu uma gota de lama. Bares e restau-rantes não pararam de funcionar e, na praça central, jovens se reuniam para bebericar à noite. Os distritos atingi-dos ficam a quase uma hora de carro dali. Ainda assim, todos os dias turistas

Sob o olhar de jornalistas do mundo todo, líderes da Samarco, Vale e BHP falam sobre a tragédia

O D E S A S T R E D E M A R I A N A

DEZEMBRO 2015 / ÉPOCA NEGÓCIOS / 8180 / ÉPOCA NEGÓCIOS / DEZEMBRO 2015 Foto: ELISEU DAMASCENO/FUTURA PRESS/FOLHAPRESS

JOSÉ CARLOS FURQUIM, 52 ANOS,Gerente-geral da Samarco

como “somos todos Samarco”, “Justiça sim, desemprego não” e “Fica Samarco”. Não é para menos: a mineradora paga, apenas em impostos diretos, R$ 5,5 mi-lhões ao mês para Mariana, cidade que tem uma arrecadação total de R$ 19,5 milhões ao mês. Dos 1.586 empregados da unidade, 736 moram na cidade. Ou seja, também pagam impostos, conso-mem nas lojas... Além dessas pessoas, a mineradora gera outros 2 mil empregos indiretos em Mariana. A cidade tem 60 mil habitantes.

FONTE ÚNICA DE RECEITA

A mina de Germano, em Mariana, é a única da Samarco. É de lá que

ela extraiu todo o minério que, no ano passado, resultou em uma receita de R$ 7,5 bilhões e em um lucro líquido de R$ 2,8 bilhões. Ao lado da mina, ela possui três usinas de concentração, necessárias porque o minério extra-ído na região tem baixo teor de ferro – por isso, precisa ser concentrado. Depois disso, uma polpa formada por água e minério faz uma viagem de 400 quilômetros, através de três dutos da empresa, até Anchieta, no litoral do Espírito Santo. O desnível no percurso é tal que em apenas dois pontos exis-tem mecanismos de bombeamento: no resto do trajeto, a mistura é empurrada pela gravidade.

No litoral capixaba, a Samarco tem quatro usinas de pelotização, onde é feito o produto final: as pelotas de mi-nério. Elas são exportadas por um porto próprio, na Ponta de Ubu. A empresa tem ainda um prédio de escritórios em Belo Horizonte, onde ficam a sede ad-ministrativa e a área de projetos. Além de possuir 3 mil funcionários próprios,

Evandro Morais Abreu, 57 anos, voltou do almoço às 13 horas e entrou no contêiner-laboratório onde trabalha, para analisar amostras de óleo. Depois de 15 minutos, ele escutou um barulho “seco”. “Fez um ‘brrrrooow’”, ele imita. O laboratório tremeu. “Para mim, era um terremoto”, diz. Depois de três minutos, outro ruído parecido sacudiu ainda mais o contêiner – “isso é mesmo terremoto”, pensou o técnico. No rádio dos funcionários, alguém comentou: “Rapaz, mais um balanço desses e vai desalinhar as máquinas todas”. Não houve outro tremor, e o pessoal voltou ao trabalho. Até que, pouco depois das 16 horas, um colega entrou no local e o alertou sobre o estouro da barragem. “Não brinque com coisa séria”, disse Evandro. E ouviu: “Pois vá ver a confusão que está lá embaixo”. Ele saiu do contêiner e olhou na direção da barragem. Enxergou, primeiro, uma fumaça esbranquiçada. “Então, reparei que a montanha estava secando”, relembra. Aí começou a correria. “Passei por meninas chorando, gente correndo. Pensei: vou vazar daqui.” Evandro desceu os 200 metros que levam até a portaria da empresa, onde encontrou uma aglomeração de funcionários e um ônibus que o tirou dali. Desde então, está em uma espécie de folga forçada, que se recusa a chamar de férias. “Ficar sem trabalhar é um inferno.”

José Carlos Furquim, 52 anos, participava de uma reunião na sede da Samarco, em Belo Horizonte, no último dia 5, quando outro gerente foi chamado ao telefone. Ao voltar, ele avisou que a reunião estava encerrada. Uma série de ligações começou a ser disparada. Furquim, quase imediatamente, foi nomeado o interlocutor entre os trabalhadores da unidade de Mariana e os de Belo Horizonte. A primeira coisa que fez foi ligar para o responsável pelas barragens, na cidade histórica mineira. Queria ouvir pessoalmente a confirmação da notícia. No dia seguinte, Furquim foi realocado: passou a integrar o comitê de gestão de crise e partiu para Mariana, onde se tornou o responsável pela assistência humanitária aos desabrigados. Ali, organizou o “QG dos voluntários”, improvisado em uma loja de móveis da cidade. “Sou engenheiro, mas nessa hora a definição tradicional dos cargos desaparece”, diz. Furquim afirma que, apesar de prestar contas de todos os gastos correntes nessa força-tarefa, ainda não existe um limite orçamentário para a ação. “Eu corro maratonas. Disse aos voluntários que isso também será uma maratona, não uma prova de cem metros”, afirma.

OLHEI PARA BAIXO

E VI QUE A MONTANHA

ESTAVA SECANDO”

EU DISSE AOS VOLUNTÁRIOS:

VAI SER UMA MARATONA,

NÃO UMA PROVA DE CEM

METROS”

EVANDRO MORAIS, 57 ANOS,técnico terceirizado da Samarco

MARIANA FOI a primeira vila, a primeira cidade e a primeira capital de Minas. Nascida no ciclo do ouro, no século 18, viveria novo boom após 1970, com o ferro HISTÓRIA

a mineradora contrata serviços de deze-nas de outras companhias que, no total, somam outros 3 mil empregados. “No momento do acidente, nossa empresa tinha quase 40 pessoas trabalhando dentro da Samarco, apenas para cui-dar da lubrificação de máquinas”, diz Evandro Abreu, técnico de filtragem da SIL, uma das subcontratadas.

Até o desastre, a Samarco era uma máquina de ganhar dinheiro. A margem de lucro da empresa batia em 37,2%, bem superior à de concorrentes como a Vale (0,2% no ano passado) e da Arcelor-Mittal (8,2%). Como o minério de baixo teor de ferro demanda altos investimentos na linha de bene-ficiamento, a Samarco criou uma forte cultura de disciplina financei-ra. Tem um dos mais baixos custos por tonelada de pelota produzida no mundo. Chegou a figurar no topo do “ranking de baixo custo” da Wood Mackenzie, uma respeitada empresa global de informações comerciais.

Ao mesmo tempo em que gasta pouco, produz muito. A cada usina ou mineroduto que constrói, a Sa-marco amplia sua capacidade de extrair e vender minério. Um exemplo é a quarta planta de pelotização, inau-gurada em fevereiro. Para alimentá-la, a empresa havia feito novos duto e con-centrador. O conjunto, que custou R$ 6,4 bilhões, fez crescer em 37% a capacidade de produção, para 30,5 milhões de to-neladas de pelotas de minério ao ano. Para equilibrar essas contas, a Samarco contava com uma vantagem: o minério pelotizado tem um mercado externo mais amplo, menos dependente da Chi-na. No ano passado, 23,1% das vendas da empresa foram para clientes na África e

no Oriente Médio, enquanto 16% tive-ram como destino o mercado chinês – ao todo, ela exporta para 19 países.

O LONGO CAMINHO DE VOLTA

Para operar novamente, no entanto, a Samarco não depende mais das

próprias pernas. O eventual retorno está nas mãos do poder público, o que torna imprecisa qualquer previsão a respeito de prazos. Mas, ainda que fosse autorizada a operar, a empresa precisa-ria resolver uma série de questões de

ordem prática. A mais importante: en-contrar um novo lugar para armazenar os rejeitos. Uma opção seria recuperar a barragem destruída, o que é tecnica-mente viável. Outra seria construir uma nova barragem próxima dali ou usar a cava de alguma mina antiga da região. “Em qualquer um desses casos, a em-presa teria dificuldade para conseguir as permissões necessárias”, diz Her-nani Mota, professor da Universidade Federal de Ouro Preto, um especialista em mineração. “A pressão da opinião pública, no momento, é muito grande.”

Um ano, no mínimo, seria consumido entre a definição do plano, a execução das obras e a obtenção das licenças.

Enquanto isso, a empresa poderia gerar algum caixa usando as plantas de pelotização no Espírito Santo – que não foram embargadas – para beneficiar minério comprado de outras empresas, como a própria Vale. Esse beneficiamento aumenta o valor da commodity e resul-taria em lucro para a Samarco. Não é, no entanto, algo simples do ponto de vista logístico. O transporte até a usina pro-

vavelmente seria feito por navios ou caminhões, opções mais caras e me-nos práticas do que os minerodutos.

Além de todos esses percalços, a Samarco terá de lidar com aquele que talvez seja seu mais indelével prejuízo: o dano à reputação da companhia. A face eficiente e res-ponsável da empresa era – e, de certa forma, ainda é – desconhecida do público. A marca tornou-se um sinônimo de tragédia desde o 5 de novembro. “Recuperar a imagem não é uma tarefa que ela possa realizar sozinha”, diz Ana Luisa Almeida, professora da Fundação

Dom Cabral especializada em reputação corporativa. “Esse é um trabalho que precisa ser feito em conjunto com a sociedade e os governos.”

A mina de Germano, em Mariana, ainda tem fôlego para mais 38 anos de operação. A Samarco fez investimentos bilionários na região e seria outra catás-trofe ver essa infraestrutura se esfarelar. Ricardo Vescovi, o presidente da compa-nhia, avalia que, no momento, a retomada das atividades não é a prioridade. “Temos preocupações mais emergenciais”, diz. E não são poucas, tampouco irrelevantes.

ANALISTAS CALCULAM QUE,

SE NÃO VOLTAR A OPERAR, O CAIXA

DA SAMARCO SÓ DURA ATÉ

O 2º SEMESTRE DE 2016

O D E S A S T R E D E M A R I A N A

DEZEMBRO 2015 / ÉPOCA NEGÓCIOS / 83

O PESADELO ÉPOCA NEGÓCIOS O senhor é o principal executivo da companhia associada à maior tragédia socioambiental do país. Como lida com essa situação? RICARDO VESCOVI Está muito puxado. Quan-do eu recebi a notícia, gelei. Imediata-mente, pensei nas pessoas, nos funcio-nários. Onde estavam? Como estavam? Pessoalmente, estou sofrendo muito. Nós já pedimos desculpas tanto para o povo do Espírito Santo como para o de Minas Gerais, para as famílias impacta-das, para os funcionários. Não foi para isso que construímos essa empresa. Não foi para isso que trabalhamos durante tantos anos. Não desejo essa situação a nenhum gestor. Isso não é um processo simples para líder nenhum. É muito pesado. Aconteceu um acidente que ninguém queria que acontecesse. Mas aconteceu. Agora, é preciso ter coragem para trabalhar e reverter as coisas.

ÉPOCA NEGÓCIOS Quais têm sido os seus desafios? RICARDO VESCOVI É uma situação-limite, de dedicação de tempo, de gestão de fadiga, de necessidade de tomar deci-sões rápidas. Eu, os diretores, toda a equipe estamos em campo, na linha de frente desde o primeiro dia, decidindo e fazendo coisas diferentes da nossa rotina. Na noite do acidente, por exem-plo, ainda havia muita gente ilhada e, junto com o Corpo de Bombeiros, nós tivemos de pensar em como usar nossos caminhões e nossos equipamentos – que são de mineração, não de resgate –, para liberar o caminho até Bento Rodrigues.

ÉPOCA NEGÓCIOS O que mudou na sua ro-tina desde o dia da tragédia?

RICARDO VESCOVI Tudo. Eu trabalho de for-ma quase ininterrupta, 16 horas por dia. Quando durmo, acordo várias vezes preocupado, pensando nas coisas que preciso fazer. Dedico muito tempo à unidade de Germano, onde o acidente aconteceu, e à região atingida. Passo noites seguidas em Mariana e, às ve-zes, venho para Belo Horizonte, porque muitas coisas precisam ser comandadas daqui. Nos breves intervalos, passo em casa para ver minha mulher e meus filhos.

ÉPOCA NEGÓCIOS Como você re-cebeu a notícia da queda da barragem? RICARDO VESCOVI Eu estava aqui [na sede da empresa, em Belo Horizonte], participando de uma reunião para discutir jus-tamente segurança do trabalho. Então, o telefone de um dos participantes tocou, ele olhou para mim e disse: rompeu a barragem de Fundão. Eu gelei. Perguntei: Como assim? Como a barragem rompeu? Desceu? Imediatamente, acionamos nosso comitê de crise – for-mado naquele momento por 10 pro-fissionais – e seguimos para Germano.

ÉPOCA NEGÓCIOS Qual foi a sua sensação ao ver as proporções do desastre? RICARDO VESCOVI O acidente foi no fim da tarde. Quando chegamos, estava escuro, não dava para ver o que havia aconteci-do. No dia seguinte, logo cedo, sobrevoei a região de helicóptero e, quando olhei pela primeira vez, pensei: inacreditável. [Vescovi leva as mãos ao rosto e esfrega os dedos sobre a testa]. O modo como

essa barragem desceu é algo inacre-ditável. Do ponto de vista técnico, é inacreditável que isso tenha acontecido.

LEGISLAÇÃO E FAMÍLIA ÉPOCA NEGÓCIOS A Lei de Crimes Am-bientais prevê a prisão de executivos à frente de empresas responsáveis por danos ao meio ambiente. Em 19 de novembro, o senhor conseguiu um habeas corpus preventivo. Pensou que poderia ser preso? RICARDO VESCOVI Essas questões eu dei-xo para o quadro jurídico da Samarco.

O que posso fazer é trabalhar. Estou empregando toda a minha energia, fa-zendo o melhor que posso para liderar e engajar as pessoas.

ÉPOCA NEGÓCIOS O senhor tem dois filhos pequenos. Como está tratando o pro-blema da Samarco em casa? RICARDO VESCOVI A situação está explicada para eles, no limite do entendimento de crianças que são [com 10 e 7 anos]. Aconteceu uma coisa muito importante na minha vida. Uma coisa difícil, com

todos os elementos de dificuldade que se possam imaginar. Eu e minha mulher sentamos e contamos a eles. Eu peguei um papel e desenhei o que estava acon-tecendo. Na minha família é assim. A gente conversa. Sobre as coisas boas e sobre as ruins.

ÉPOCA NEGÓCIOS Em algum momento o senhor pensou que poderia não dar conta de toda essa situação? RICARDO VESCOVI Sinceramente, não. Não tive medo. Eu tive a humildade para re-conhecer que estou diante de um desa-

fio enorme e busquei coragem para enfrentar. Cheguei à Sa-marco como estagiário. Entrei pelo portão da unidade de Ubu, às 7h14 da manhã, em 1 de feve-reiro de 1993. Construí minha carreira aqui, assim como cen-tenas de outros funcionários. Eu acredito nos valores des-sa empresa. Estou aqui agora como líder, meu papel é liderar. VALE E BHP BILLITON ÉPOCA NEGÓCIOS Vale e BHP Billi-ton são as donas da Samarco. Como está a sua relação com

os executivos das empresas? De que maneira eles reagiram à tragédia? RICARDO VESCOVI Assim que eu soube do acidente, avisei a Vale e a equipe do Brasil da BHP. Desde o primeiro mo-mento, eles se colocaram à disposição. Não me senti desamparado.

ÉPOCA NEGÓCIOS Não foi essa a percepção externa. Executivos da Vale, no início, tentaram desvincular-se de qualquer responsabilidade sobre as operações da Samarco. Por que isso aconteceu?

Ricardo Vescovi, CEO da Samarco, vive o pesadelo de estar à frente da empresa envolvida

no maior desastre ambiental do país. Em entrevista exclusiva, ele narra o desafio

de gerir uma crise dessas proporções / RAQUEL GRISOTTO, DE BELO HORIZONTE

“NÃO DESEJOA NINGUÉM O QUE

ESTOU PASSANDO”

“QUANDO VI A CENA PELA PRIMEIRA

VEZ, PENSEI: INACREDITÁVEL.

DO PONTO DE VISTA TÉCNICO, É

INACREDITÁVEL QUE TENHA OCORRIDO”

DEZEMBRO 2015 / ÉPOCA NEGÓCIOS / 8584 / ÉPOCA NEGÓCIOS / DEZEMBRO 2015 Foto: CLAUDIO BELLI/VALOR/AGÊNCIA O GLOBO

O D E S A S T R E D E M A R I A N A

RICARDO VESCOVI Eles estiveram aqui, pres-taram apoio a mim, à empresa. O Muri-lo [Ferreira, presidente da Vale] esteve aqui. Nós falamos juntos com a impren-sa. Como eu disse, as controladoras se colocaram à disposição. E fizeram isso publicamente.

AS CAUSAS DO ROMPIMENTO ÉPOCA NEGÓCIOS Especialistas em segu-rança dizem que seria impossível a barragem ruir sem que antes apare-cessem sinais de problemas. O Minis-tério Público de Minas diz que “houve negligência” da Samarco. RICARDO VESCOVI Essa é uma opinião deles. Não é a nossa. A barragem de Fundão era operada por especialistas, monito-rada pelo estado da arte de instrumen-tação em barragem. Ela era visitada por técnicos do mundo todo, que vinham somente para olhar o que estávamos fazendo aqui. A governança dos nossos sistemas é tida como exemplar

ÉPOCA NEGÓCIOS Então, o que deu errado? RICARDO VESCOVI É o que estamos tentando entender. Hoje, há vários especialistas avaliando a questão. Não vou dar de-talhes de documentação, mas eu pos-so dizer que todo report que precisa ser feito, foi feito. Todos os órgãos que precisam receber nossas informações estavam recebendo.

ÉPOCA NEGÓCIOS A produção da Samarco aumentou mais de 30% entre 2013 e 2014, o que significa milhares de toneladas a mais de rejeito ao ano. A barragem tam-bém estava recebendo rejeitos da Vale. Isso pode ter contribuído para o desastre? RICARDO VESCOVI Não houve aumento de deposição de minério de um dia para o

outro. Foi tudo planejado, licenciado, aprovado. Os rejeitos da Vale respon-diam por até 5% do volume total da barragem. Não é nada excepcional e não é algo novo.

ÉPOCA NEGÓCIOS O senhor está tranquilo de que as investigações não irão apon-tar falhas nos processos da Samarco? RICARDO VESCOVI A gente está investigan-do. Com todos os elementos que tenho, posso dizer que, do ponto de vista de licenciamento, de cumprir o que nos era colocado, de monitorar a barragem e de planejamento, estávamos em dia com tudo. Nós não sabemos as causas. Precisamos chegar ao final das análises.

O FUTURO DA SAMARCO ÉPOCA NEGÓCIOS Hoje, a Samarco está com operações embargadas em Minas. A empresa vai voltar a operar? RICARDO VESCOVI O foco não é esse. A minha prioridade é dar as melhores condições possíveis às pessoas que foram impac-tadas. É, ainda, tratar das questões am-bientais – porque temos uma situação ao longo do rio Doce para resolver, junto com governos e outras instituições. Te-nho de garantir a estabilização para as barragens de Germano, para ficarem num limite de segurança superior.

ÉPOCA NEGÓCIOS Mas certamente há pes-soas dentro da empresa pensando nis-so. Não há pressão dos controladores nesse sentido? RICARDO VESCOVI Tem gente pensando quais seriam as opções. Mas como líder, neste momento, dentro de uma crise, não posso sair daqui para cuidar dessa outra parte. Eu não posso dar a solução e um cronograma, agora.

ÉPOCA NEGÓCIOS Alguns analistas apon-tam que, sem operar, a Samarco tem caixa suficiente para arcar com seus compromissos apenas até o primeiro semestre de 2016. É verdade? RICARDO VESCOVI Na posição que eu estou agora, não posso precisar isso. Não consigo. É preciso entender com mais clareza o que eles estão assumindo como compromissos.

ÉPOCA NEGÓCIOS Mas a Samarco está sem geração de caixa. Isso não preocupa? RICARDO VESCOVI Sim, não temos geração de caixa. E, sim, preocupa. Mas, de novo, essa não é nossa prioridade.

ÉPOCA NEGÓCIOS Tecnicamente, o que falta para a empresa voltar a operar? RICARDO VESCOVI É preciso encontrar uma solução para os rejeitos de Ger-mano. Pode ser desde a disposição em cava ou o uso de outra tecnologia. Em princípio, quando você olha a Samarco Mariana e a Samarco Espírito Santo é um processo interligado. Então, em princípio, se você não consegue ope-rar em Mariana também não consegue operar no Espírito Santo. Mas eu não sei. É preciso sentar e pensar nas solu-ções de futuro. Elas podem aparecer.

ÉPOCA NEGÓCIOS Quando o senhor espera que a situação se normalize? RICARDO VESCOVI O mais breve possível. Mas uma empresa, para existir, pre-cisa ter permissão da socidade, mani-festada nas instituições. O tempo de discutir a volta das operações com a sociedade, com o mercado, com quem a gente toma dinheiro vai chegar. Eu só não posso precipitar isso.

O D E S A S T R E D E M A R I A N A

86 / ÉPOCA NEGÓCIOS / DEZEMBRO 2015