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Como Viver Para Sempre - Colin Thompson

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  • memria de Beryl Graves1915 2003

    Deya, Maiorca, 1968Eu estava na varanda da casade Robert Graves com a sua

    esposa,Beryl, quando ela disse:

    Lembre-se. Um dia, estessero os seus bons tempos.

    Gostaria que Beryl tivesse sido

  • minha me.

  • Sumrio

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    Sobre o autor

  • Chovia quando as aulasterminaram. Uma chuva pesada e friacaa de um cu de inverno escuro,transformando a tarde em noite. Eramapenas trs horas da tarde, mas todas asluzes da rua estavam acesas, e as

  • vitrines das lojas cintilavam comopinturas vvidas. As ruas estavam quasedesertas, pois todos se abrigavam datempestade. Quem no podia esperarcorria de uma porta a outra, protegendoa cabea.

    Encharcado, Pedro corria debaixo dachuva, chapinhando nas poas, at que, acerta altura, percebeu que no haviamais razo para correr: j alcanava asgrades do museu. Diminuiu ento opasso e saboreou a expectativa depassar pelos portes.

    Do outro lado do gramado, o museuse erguia slido e acolhedor, como sesempre tivesse estado ali, e as paredes construdas com imensos blocos degranito , plantadas no cho, pareciam

  • uma rvore com razes profundas. Pedroatravessou os portes e sentiu, comosempre, que entrava em outro mundo, ummundo que o isolava dos perigos e dosproblemas. Fora dali, ele tinha asensao de ser uma pea de quebra-cabea guardada na caixa errada, mas,no museu, sentia-se protegido.

    Agora, estava em casa. Ol, Pedro o segurana

    cumprimentou-o. Como foi na escola?Mas Pedro j estava em outro mundo

    e no o escutou. Sempre sonhando o homem

    comentou, com um sorriso, observando afigura magra e molhada a danar pelaspoas de gua formadas entre osparaleleppedos.

  • Pedro subiu os degraus e se abrigouda chuva sob os altos arcos. Um bandode pombas infelizes se amontoava notopo das colunas, enquanto pardaischilreavam ansiosamente espera deque a tempestade cessasse. Um grupo deturistas japoneses, embaixo de guarda-chuvas, desceu a escada e entrou em seucarro iluminado.

    Uma piscina formou-se ao redor dosps de Pedro, que comeou a tremer.Era pequeno para um menino de dezanos e estava mal agasalhado, mas o fatode estar ensopado no diminua suafelicidade. Pedro colocou a mo abertasobre a coluna de pedra, como j fizeracentenas de vezes. Mesmo nessa tardeescura, a pedra cinzenta estava quente,

  • como se fosse viva. Queria abraar acoluna, porm ficou inibido por causadas pessoas ao redor.

    Enquanto olhava os visitantespartirem, tomou a deciso que ensaiavahavia meses. Nessa noite, perguntaria me o que exatamente tinha acontecidocom seu pai. Ele j tentara saber, mas aangstia dela diante da pergunta sempreo impedia de prosseguir. Dessa vez, iriaobrig-la a contar tudo.

    Pedro empurrou a porta enorme eentrou. Estava mais quente l dentro, e oambiente cheirava a histria, um aromasuave e envolvente, antigo e intemporal,com um toque de decadncia.

    O porteiro cumprimentou Pedro comum gesto familiar, quando o menino

  • atravessou, correndo, o saguo emdireo s galerias.

    Pedro mal olhou para as peasexpostas, antiguidades esplndidas, cujaidade era difcil calcular. J as viraantes, mas, embora jamais se cansassedelas, estava com frio demais paraparar.

    Na galeria dos fsseis, seu olhar foiatrado para uma pea nova, exposta emuma vitrine. Era o esqueleto do morcegogigante Pteropus patagonicus, que, deacordo com a plaquinha, vivera duzentosmilhes de anos antes, nas montanhas daPatagnia. Pendurado no teto, bem alto,havia um modelo do animal em plenovoo, criao da imaginao de umartista. O modelo estava suspenso por

  • cabos finos, como um planador prestes avoar ao passado distante. Seus olhosbrilhavam na semiescurido, como duasestrelas amarelas, e pareciam seguirPedro pela galeria.

    O menino parou embaixo do modeloe olhou para cima. Imaginou-se no dorsodo animal, agarrado sua pele, voandodurante a noite para lugaresassombrosos.

    Ol, Pedro cumprimentou-o afuncionria da galeria. Como foi naescola? No, no me diga. Uma chatice?

    Sim ele respondeu. Criatura magnfica, no? a

    funcionria comentou. Fantstica!A essa altura, Pedro sentia tanto frio

  • que, em vez de se demorar entre osfsseis, subiu correndo as escadas queatravessavam os sales dos cavalos deporcelana chinesa. Examinaria omorcego mais tarde. Passou pelas salasdas mmias e dos manuscritos e chegouao ltimo piso, que ficava aninhado logoabaixo do telhado, onde as salas erammenores e o teto, mais baixo. Dava paraouvir a chuva batendo contra as telhas,mais forte do que nunca.

    No final do corredor, encontrava-seuma sala pequena onde se perfilavamvitrines repletas de livros antigos,encadernados em couro. O corredorparecia ser o nico acesso sala, masPedro encaminhou-se at uma dasvitrines e a puxou. Os livros eram falsos

  • e disfaravam uma porta que levava aopequeno apartamento onde Pedromorava.

    voc, Pedro? perguntou umavoz em outro cmodo.

    Sim, vov ele respondeu. Voc se molhou? Choveu a tarde

    toda. Sim. V se trocar enquanto eu ponho o

    jantar no forno e fao um ch o velhodisse, saindo da cozinha.

    O av de Pedro parecia um mago delivro infantil. Seu cabelo era brancocomo a neve e se misturava a uma barbato comprida que caa por dentro dacamisa. Mago ou no, usava um aventale tinha as mos sujas de farinha. O velho

  • era o zelador do museu, a pessoa que,todas as noites, recolhia as chaves,trancava os portes de fora e as portasprincipais, isolando Pedro, a me dele ea si mesmo do restante do mundo. Ostrs viviam congelados no tempo e nacadncia das relquias adormecidas dopassado. Era ele tambm quempreparava o jantar, enquanto a me dePedro trabalhava em um dos escritriosdo museu.

    Pedro foi at o av e o abraou. Se omuseu era o centro do universo dePedro, o velho era o centro do museu.Pedro no se lembrava do pai. Jamaisvira uma nica fotografia dele. Porm,nenhum pai teria sido to maravilhosoquanto o av. At comear a frequentar

  • a escola, Pedro pensava que era assimque todas as crianas viviam. Com oav e com a me, s. Descobriu aexistncia dos pais na escola, e tambmum vazio interior que nunca tinhapercebido.

    Veja o que voc fez o velhodisse. Ficou todo coberto de farinha.

    Seu tom, porm, no era derepreenso. Suas mos grandes haviamdeixado o neto branco. Emcompensao, Pedro molhara o av coma gua da chuva. O menino olhou para ovelho e sorriu. Estava seguronovamente.

    O apartamento estava aquecido edourado com a luminosidade que vinhada lareira acesa. Os cmodos estavam

  • atulhados com todo tipo de coisa, comouma rplica do prprio museu. E issono era de surpreender. Tudo ali vinhado museu mveis antigos retirados degrandes residncias, velhos demais ousem nada de especial para serem postosem exibio; animais empalhados quehaviam perdido os pelos ou a pele;panelas e potes velhos; e um milho deitens que a populao doava ao museupor achar que, por serem velhos, seriamexpostos em vitrines. Todas as noites,Pedro, o av e a me usavam pratos deporcelana e slidos talheres de prata.At mesmo o gato, Arquimedes, comiaem uma tigela de cristal. O av de Pedrobrincava que um dia o apartamento seriaposto em exibio, e que eles passariam

  • a jantar diante do olhar do pblico.Pedro foi para o quarto e tirou as

    roupas molhadas. Sentou-se na cama,confiante e feliz. Fora do museu, ele eraapenas o menininho tmido que no tinhapai e no convidava ningum paravisit-lo, mas ali, em seu quarto, dentrodo apartamento, dentro do museu, era umprncipe. Embora fosse sozinho, Pedroraramente se sentia solitrio. Deitava-senos travesseiros abraado a Arquimedese viajava a terras distantes e lugaresfantsticos.

    Dois andares abaixo, em seuescritrio branco, a me de Pedrotrabalhava diante do computador. Namemria da mquina, armazenavacatlogos com tudo o que havia no

  • museu, dos imensos mrmores egpciosao menor osso do menor musaranho pr-histrico, passando pelo pano com que oav de Pedro limpava a pia, que jpertencera cozinha da terceira dama decompanhia da rainha Vitria.

    Depois de trocar de roupa e de secaro cabelo, Pedro sentou-se com o avdiante da lareira, e eles conversaramsobre o dia, como faziam todas astardes. Arquimedes roou as pernas domenino, feliz por encontr-lo, depois depassar o dia dormindo na cama dele. Odia de Arquimedes era a noite, e o seuimprio eram os cantos e os corredoressecretos do museu. Ningum sabiaquantos anos tinha, nem uma vez, em sualonga, longa vida, ele se aventurara fora

  • do museu. Viu o morcego? o velho

    perguntou. Sim, lindo Pedro respondeu.

    Eu estava com muito frio e por isso noolhei com ateno, mas achei-odeslumbrante.

    Sabia que o professor Rottnest fezo modelo a partir de um desenho meu?

    Uau! Pedro exclamou. Como dpara saber a aparncia de uma criaturas por pedaos do esqueleto?

    Existem maneiras Ento,mudou de assunto. Como foi naescola?

    O mesmo de sempre Pedro disse. Uma chatice! os dois troaram em

    unssono.

  • Imagino que o fato de voc moraraqui no ajude muito o av comentou,abraando o neto. A maioria daspessoas mora em uma casa de frentepara uma rua, s vezes com umjardinzinho nos fundos. Quantos vivemdentro do maior museu do mundo,cercados por tantas peas esplndidas?Comparada a isso, a escola deve sermesmo muito chata.

    Pois . Bem, as frias comearam o

    velho disse. Voc vai poder passar odia todo no museu.

    Pedro no tinha nenhum amigoespecial na escola. Tinha Arquimedes, ame e o av. O que mais poderiadesejar? Na escola, era como se olhasse

  • a todos atravs de uma vitrine, como seno estivesse na sala com eles. Tambmno tinha vontade de levar qualquercolega para dormir no museu. Issoestragaria a magia.

    Vov, quero saber sobre meu pai. Sentia-se inseguro de perguntar ao velhosobre o filho dele.

    No h muito para saber. Um diaele foi embora e nunca mais voltou.

    Sim Pedro respondeu , mas nemo senhor nem a mame tocam no assunto.

    O av de Pedro disse alguma coisasobre o jantar e voltou para a cozinha.

    Vou perguntar a ela hoje noite Pedro gritou para o av.

    O velho no respondeu, e Pedroretornou galeria dos fsseis para dar

  • mais uma olhada no morcego gigante.Desde que comeara a dar os

    primeiros passos sozinho, Pedro usava otempo livre explorando o museu, noapenas as reas visitadas pelo pblicodiariamente, como tambm todos oslocais escondidos e os depsitosesquecidos. Gostava mais quando nohavia ningum por perto, de manh bemcedo, quando apenas as faxineiras semoviam em silncio de galeria emgaleria, ou noite, quando todos jtinham ido embora. As noites de veroeram as melhores, pois o sol se punhatarde e as sombras compridas que eleproduzia davam ao ambiente um encantoespecial. A cidade, que se estendia paraalm dos jardins, das paredes altas e das

  • grades, parecia estar a milhes dequilmetros; o zumbido do trnsito eracomo a respirao de um animaladormecido.

    Quando todos dormiam, Pedropegava a chave mestra do av, nogancho prximo porta, e saa paraexplorar. Ele e Arquimedes andavam desala em sala, s vezes juntos, s vezesno.

    As noites de vero, iluminadas pelalua no silncio de pedra das grandesgalerias, eram o momento em que Pedrose sentia mais tranquilo; imaginava que,numa dessas noites, poderia virar umaesquina e dar de cara com o pai.

    De vez em quando, Arquimedesvagueava por um corredor no utilizado,

  • e Pedro o seguia na ponta dos ps. Ocorredor parecia no conduzir a lugaralgum, mas, quando Pedro dobrava umaesquina, Arquimedes tinhadesaparecido. O gato ficava sumido pordias a fio, mas o av de Pedro semostrava vago e despreocupado quandoo neto comentava o assunto com ele.

    Arquimedes est bem ele dizia. Conhece este lugar melhor que ningum.Ele tem l as coisas dele para cuidar,coisas de gato. Logo voltar.

    claro que sempre voltava. Com umsolavanco suave, Arquimedes subia nacama, esfregava a testa no cabelo dePedro e ronronava to alto que omenino, ainda meio adormecido,imaginava que o gato tentava lhe dizer

  • alguma coisa. Bem que eu queria entender

    Pedro dizia. Queria saber por ondevoc andou.

    Arquimedes se aninhava a seu lado,no travesseiro, e os dois amigos caamno sono. No inverno, o gato se enfiavadebaixo das cobertas, perto dos ps dePedro.

    Havia segredos no museu, coisasentrevistas pelo canto dos olhos,movimentos bruscos, luzes e rudosabafados, especialmente durante a noite.Tudo aparentemente fora de alcance,como se algum chamasse atravs daneblina, como se algo perdido ou presotentasse fazer contato. Pedro tinhacerteza de que Arquimedes conhecia os

  • segredos, mas naturalmente o gato notinha como lhe contar. Se que queriacontar. Os gatos eram criaturasreservadas, que guardavam tudo para si.

  • s seis da tarde, a me de Pedrochegou. Ela se jogou na cadeira, exausta.Era a mesma coisa todos os dias. Aspessoas passavam o expediente inteiroperguntando a ela onde estava isso,quem tinha aquilo, por que aquelas

  • coisas no estavam onde deveriam estar.Sentia-se cansada demais para falar, eenquanto ficava ali, fitando o fogo,distrada, Pedro e o av desceram pararecolher todas as chaves e trancar omuseu.

    Ao lado da porta principal, elesreceberam as chaves de todos osfuncionrios das galerias, que saampara o mundo de fora. Quando asnoventa e sete chaves foram reunidas e oltimo funcionrio partiu, elesatravessaram o jardim para trancar osportes com uma chave to pesada quePedro s conseguiu segur-la aocompletar trs anos de idade. Quandoadquiriu fora suficiente, implorou aoav que o deixasse levar a chave, e essa

  • se tornou a rotina, uma rotina que nemPedro nem o av desejavaminterromper.

    A seguir, voltaram para dentro,trancaram a porta principal e subiram aoapartamento.

    Hora de jantar o velho disse. O senhor diz isso todas as noites,

    vov Pedro comentou. Bem, hora de jantar o velho riu,

    mexendo no cabelo do neto. E sempre diz isso quando chegamos

    dcima quinta escada. Nesse caso, amanh esperarei at a

    dcima sexta.Depois do jantar, Pedro disse me: Quero saber do meu pai.

  • A me ficou em silncio e fitou ofogo. Comeou a falar, mas logo apertouos lbios e se calou. Pedro viu lgrimasnos olhos dela. Isso sempre aconteciaquando ele lhe perguntava sobre o pai, ea viso da infelicidade da me sempre oimpedira de ir adiante. Dessa vez,porm, insistiria.

    Por favor ele pediu. Ele tem o direito de saber disse o

    av, que geralmente no interferia naconversa.

    No h muito a dizer a me dePedro comeou. Ele foi embora umpouco antes de voc nascer.

    E onde est? No sei. Jamais tive notcias dele. Mas

  • No o que parece o avinterveio, tentando defender o filho. Certa noite, ele saiu do apartamentopara fazer o servio que eu fao hoje, enunca mais o vimos.

    Como eu disse, ele foi embora. Tenho certeza de que ele no tinha

    essa inteno o av de Pedro disse. Quero dizer, a chave da porta principalestava pendurada no gancho. Tudoestava trancado. Ele no tinha como sairdo museu. Simplesmente desapareceu.

    O que quer dizer com isso? Pedroperguntou.

    Quero dizer que ele simplesmentedesapareceu o av respondeu ,evaporou!

    Mas

  • Aquilo no tinha sentido. As pessoasno evaporam, nem se desintegram, nemmesmo dentro dos museus, onde tudo muito velho.

    D no mesmo a me disse. Elenos abandonou.

    Ela estremeceu e se aproximou dalareira.

    s vezes acrescentou este lugarme d calafrios.

    O av contou que eles tinhamvasculhado todos os corredores e todasas galerias. Chegaram at a chamar apolcia, mas no encontraram pistaalguma, um leno cado ao lado de umaporta fechada, um pedao de tecidorasgado, nem uma carta ou vestgios desangue, nada.

  • Sei que deveria ter lhe contado ame de Pedro disse, com uma voz sememoo , mas nada havia a dizer, a noser que ele tinha sumido, e tocar noassunto no o traria de volta. Serviriaapenas para que ns no esquecssemos.

    Ela suspirou e se levantou. Dirigiu-sea Pedro e o abraou.

    Bem, agora voc sabe tanto quantons ela disse, triste. Vou me deitar.

    Quando ficaram sozinhos, o av fezPedro se sentar, e os dois fitaram o fogo.

    Deve ter acontecido alguma coisacom ele o velho disse, balanando acabea. Ele no iria embora sem dizeruma palavra. A menos que no tivesseescolha.

    Como ele era? Pedro perguntou.

  • Como voc o av respondeu. Era parecido com voc, um meninomagricela como voc, os mesmos olhoscastanhos, o mesmo cabelo desalinhado,que parece despenteado mesmo depoisde escovado. Vocs tm muitassemelhanas.

    O velho fechou os olhos e sorriu. Sabe ele disse , antes eu fechava

    os olhos e o via como se estivessemesmo aqui, mas a cada ano fica maisdifcil lembrar os detalhes. Ento eleacrescentou com um sorriso , bastaolhar para voc.

    Pedro ficou triste como o av. Comoo velho, sentia um vazio dentro de si, nolugar que o pai deveria ocupar. Ele sesentou perto da cadeira do av e pousou

  • o brao em seu ombro. Sabe de uma coisa? o velho

    prosseguiu. Continuo acreditando queele est em algum lugar por aqui.

    Como assim? Os corredores e as salas que voc

    explora durante a noite, aonde ningumvai, alguns no parecem infindveis? Euacho que ele est perdido ou preso e noconsegue voltar o av disse.

    Ento, ao ver a expresso do neto,acrescentou:

    Achava que ningum sabia das suasaventuras? Talvez a sua me no saiba,mas eu sei. Eu gostaria de ser maisjovem para acompanh-lo, mas sintomuita necessidade de dormirultimamente.

  • A esta altura, com certeza, ele jteria achado o caminho de volta Pedrodisse.

    Talvez, mas voc ver que aqui hlugares por onde no se pode andar.

    Antes que Pedro conseguisse pedirexplicaes, o av voltou para acozinha.

    V fazer a lio de casa elemandou. J tarde.

    As aulas acabaram, vov. Notenho lio Pedro respondeu, mas oav j remexia potes e panelas na pia,cantarolando baixinho.

    Pedro sentou-se na cadeira da me eolhou fixamente para o fogo. Muito bem,perguntara sobre o pai, mas nodescobrira nada de novo. Ps-se a

  • pensar se estariam escondendo algumacoisa dele. Obviamente, a ideia de que opai poderia estar preso em algum lugardo museu dava s suas exploraes umanova importncia. Agora tinha algo paraprocurar, apesar da possibilidadeassustadora de que, depois de tantotempo, o pai pudesse estar morto.

    A dana das chamas j comeara ahipnotiz-lo quando ouviu um estrondona cozinha, ao qual se seguiu umsilncio.

    Pedro correu e encontrou o avsentado no cho, to branco quanto oprprio cabelo.

    O que aconteceu, vov? Pedroperguntou, com medo de toc-lo.

    No foi nada o velho respondeu

  • , s uma pontadinha no corao. Quer que eu chame a mame? No, no, companheiro, no

    preciso. Para que deix-la preocupada? s o velho Eisenmenger. Nada demais. Logo estarei bem.

    Pedro ficou assustado. Nunca vira oav daquele jeito e percebeu que haviaalgo errado. No tinha ideia do quepoderia ser um Eisenmenger, masparecia srio. As doenas poucoimportantes costumavam ter nomes maissimples, como gripe ou tosse.

    No h motivo para se preocupar o av disse. Vou me sentar um pouco elogo estarei bem.

    Tem certeza?O velho assentiu com a cabea.

  • Pedro se aproximou e tentou levantar oav, sem sucesso. Ento, ajoelhou-se,sem saber o que fazer.

    No vai contar sua me, no ? o av pediu. Sabe como ela .

    Quando Pedro comeou a fazerobjees, o velho repetiu que estavatudo bem, mas o menino sabia que eleestava mentindo.

    Pedro sempre imaginara que o avviveria eternamente. Se ele morresse,Pedro e a me provavelmente teriam dedeixar o museu e morar em outro lugar.O menino sempre pensara que, maisvelho, assumiria o lugar do av quandoele se aposentasse.

    Ele terminou de lavar a loua, equando secou o ltimo prato, o av j

  • estava sentado na cadeira, novamentecorado. Pedro fez uma xcara de chpara o av e foi para a cama, no semantes ouvir novamente que estava tudobem e prometer que nada contaria me.

    Nessa noite, tinha a cabea cheiademais para sair em suas jornadasexploratrias. Deitou-se na cama e fitoua escurido. Impossvel dormir comtantos pensamentos desordenados. Suainquietude perturbou Arquimedes, e ogato saiu sozinho.

  • No centro do museu ficava abiblioteca, uma sala circular, grandecomo uma catedral. Distribudas aolongo das paredes altas, treze galeriasde livros, cada uma ligada de baixopor uma escada de metal. E, acima das

  • galerias, um anel de cento e quatrojanelas sustentava o imenso tetoabobadado, pintado de azul-celeste.

    Na biblioteca e nas centenas dedepsitos por trs das galerias estavamtodos os livros j escritos. Algunsestavam nas prateleiras desde afundao do museu, e milharespermaneciam intocados h centenas deanos.

    Alguns jamais haviam sido lidos.Ningum conhecia os segredos

    fantsticos ocultos em suas pginas.Segredos sobre alquimia, imortalidadeou uma tcnica para ensinar as galinhasa falar poderiam estar espera de seremdescobertos.

    Todos os dias, a biblioteca se enchia

  • com o rudo dos passos de pessoas quesubiam e desciam as escadas retirandolivros. Ao contrrio do que acontece nasbibliotecas de bairro, porm, o leitortinha de preencher um formulrioexplicando por que queria aquele livroespecfico. Tambm no era permitidolevar o livro para casa. Era necessrioexamin-lo em uma das cento ecinquenta mesas com tampo de couroque se enfileiravam diante dasescrivaninhas das bibliotecrias,situadas no centro da sala. Todos osdias, s nove da manh, cidados detodo o mundo formavam filas na portada biblioteca para ter acesso ao crebrode todos os escritores e aos maisvariados temas.

  • Uma vez l dentro, eles se dirigiam bibliotecria e faziam o pedido. Ento,um exrcito de funcionrios estudavaminuciosamente as interminveisprateleiras, vasculhando, com cuidado,as treze galerias e os depsitosadjacentes at encontrar o que osleitores queriam. Havia um movimentoincessante de livros, j que asbibliotecrias viviam reorganizando-ose catalogando-os novamente. To logot o d o s estavam acomodados, novosexemplares chegavam, e as prateleirasprecisavam ser arrumadas mais uma vez.

    Normalmente, Pedro via a bibliotecaapenas noite, pois s maiores dedezoito anos tinham permisso parafazer pesquisas ali. Havia momentos em

  • que ele precisava de material para aescola. Nessas ocasies, esperava ahora do dia em que o ltimo visitantesaa e as bibliotecrias guardavam todosos livros.

    Ol, Pedro disse Brenda, umadelas. Mais pesquisa para a escola?

    Sim Pedro respondeu.Ele explicou que precisava pesquisar

    sobre Eisenmenger, mas no podiaexplicar por qu. Se algum percebesseque seu av estava doente, poderiadespedi-lo.

    Parece um tema muito complicadopara um menino de dez anos Brendadisse.

    Sim. Por isso preciso pesquisar. Tem ideia do que isso?

  • Alguma doena Pedro respondeu. Eu acho acrescentouapressadamente.

    Nenhum dos dois sabia direito comose escrevia a palavra, mas, depois dealgumas tentativas, Brenda encontrou-ano computador.

    , voc est certo ela disse. Siga-me.

    Brenda levou Pedro nona galeria.Ela parou e olhou para baixo, sorrindo,com a mo apoiada na balaustrada. Asbibliotecrias eram importantes demaispara procurar os livros ali em cima.Elas passavam o dia inteiro na ilha deescrivaninhas no centro da sala. Aqueletrabalho era responsabilidade doexrcito de assistentes.

  • Acho que h uns dez anos que euno subia aqui ela comentou. Venha.

    Havia mais de trezentos dicionriosmdicos em ingls, um sem-nmero emtodas as lnguas que se possa imaginar ealguns em outras inimaginveis.

    Pode escolher Brenda disse.Pedro pegou um livro e achou a

    pgina.

    Eisenmenger, sndrome de. s. Defeitodo septo interventricular que causasevera hipertenso pulmonar, hipertrofiado ventrculo direito e cianose latente oumanifesta < descrita por VictorEisenmenger em 1897 >

  • Antes de ler o verbete, Pedrodesconhecia o significado de uma spalavra. Agora esse nmero aumentara,mas havia termos para os quais ele noprecisava de explicao. Defeito esevera, por exemplo, que pareciammuito ruins. Tenso tambm no era umacoisa boa, por isso, Pedro concluiu quehipertenso era ainda pior, comoquando uma criana corre para l e parac e os adultos dizem que ela hiperativa. Ele pegou mais dicionrios eprocurou as outras palavras, mas cadaexplicao continha mais termosdesconhecidos, e logo o menino se viucercado por uma pilha de livros e maisconfuso. Porm, descobriu que o avtinha um buraco no corao.

  • Achou o que queria? abibliotecria perguntou, enquanto oseguia pela biblioteca.

    Como no conseguiu dizer nada, omenino apenas assentiu com a cabea.Pedro no encontrara o que queria.Encontrara o que no queria, algo queconfirmava seus piores temores, e agoragostaria de no t-lo feito. A palavra emsi, Eisenmenger, no parecia to ruim,mas o que estava escrito no dicionrioera terrvel. O texto dizia que a doenaera severa. O av iria morrer, e Pedrono poderia salv-lo. Se houvesse cura,com certeza o dicionrio a teriamencionado.

    Sempre que se sentia triste, Pedro serefugiava nos corredores secretos, onde

  • poderia ficar s. Atrs das galeriasabertas ao pblico, existiam dezenas dedepsitos escuros e atulhados comtesouros e teias de aranha, alguns dosquais no eram visitados havia trinta,quarenta ou at cem anos.Aparentemente, ningum sabia dizerquantas salas havia nem o que estavaguardado nelas. No computador, a mede Pedro mantinha milhes de peascatalogadas, mas apenas as que estavamexpostas ou guardadas nos depsitosregulares. Essa lista no registrava nemum dcimo dos tesouros escondidos nomuseu.

    Sob o telhado, espremido entre omadeiramento, ficava um sto, e erapara l que Pedro ia quando desejava

  • estar s. Sentia-se mais confortvel alido que em outros lugares. Os corredoreseram mais estreitos; as salas, com seuteto baixo e inclinado, menores e maisaconchegantes. Alm disso, elasestavam sempre cheias de coisasconfortantes, como ursinhos de pelcia epoltronas velhas. parte o gatoArquimedes, os ps de Pedro foram osnicos a subir aquelas escadas nosltimos anos.

    O sto dispunha de claraboias sujase cheias de teias de aranha. Atravsdelas, era possvel avistar o telhado domuseu e os das casas da cidade. O vidroestava to sujo que Pedro imaginou vera cidade tal qual ela era uma centena deanos antes. Ali era to alto que no se

  • escutava o som do trnsito, e o meninochegou a pensar que escutava o clip-clop de cavalos e vozes distantes.

    Pedro dirigiu-se sua sala prediletae se sentou no velho sof desbotado,cercado por um oceano de ursos depelcia pudos. Arquimedes dormia emuma das almofadas; Pedro colocou-o nocolo e chorou em seus pelos. Odiava odoutor Eisenmenger, mesmo sabendoque era ridculo culp-lo pelo problemado av.

    Talvez a tristeza profunda pelodesaparecimento do filho tivesse abertoo buraco no corao do velho.

    Tinha de ser isso. As pessoas noficam com buracos no corao de umahora para outra. Sendo assim, se ele

  • encontrasse o pai e o trouxesse de volta,o buraco poderia se fechar e o avvoltaria a ficar bem.

    Temos de encontr-lo disse aArquimedes. Ele tem de estar emalgum lugar.

  • A estante falsa que levava aoapartamento em que Pedro morava noera a nica porta secreta. Elas estavamem toda parte, embora a maioria daspessoas no soubesse onde. Pedro,porm, tinha um bom faro para elas. Ao

  • olhar para uma parede com painis decarvalho, sabia instintivamente seexistia uma passagem secreta. Um giroem um entalhe e uma grande coluna depedra, aparentemente fixa como umamontanha, abria-se e revelava umaescada subterrnea em espiral. Umdeslizar de dedos sobre uma salincia euma parede girava, para dar acesso auma sala do tamanho de uma casa.

    Quando Pedro fizera cinco anos, oav lhe dera de presente um dirioencadernado em couro, com umafechadura de lato e uma chave dourada.Desde ento, ele desenhava mapas. Nodirio, havia diagramas de corredoresque se ramificavam como teias dearanha. Desenhos de centenas de portas

  • com instrues de abertura, coisas comoa maneira de dobrar o dedo paradestravar o ferrolho. E tambminstrues de como fechar a porta demodo que ningum o seguisse, alm deextensas listas de coisas fantsticas quePedro no queria esquecer. Tudo erasegredo. Nem o av nem a me sabiamque ele levava a chave dourada em umcordo fino, preso ao pescoo.

    O pai continuava a frequentar seuspensamentos, e Pedro sentia que, dealguma forma, ele ainda estava vivo. Namanh de segunda-feira, depois que ame foi para o escritrio, Pedroconversou com o av.

    Tenho certeza de que ele est emalgum lugar. Nunca vi ningum, nem

  • mesmo uma pegada, mas, s vezes, tenhouma sensao muito forte de que estouacompanhado.

    Eu no alimentaria muitasesperanas o velho disse. Faz muitotempo. Voc nem era nascido quando eledesapareceu.

    Eu sei Pedro respondeu , mastenho de tentar.

    S no quero que fiquedesapontado o velho retrucou.

    Andei tanto quanto consigo em umdia, mas nem assim cheguei ao fim Pedro disse. Existe sempre mais umaporta e mais um canto. Se eu for maislonge, talvez no consiga voltar na horado jantar. E a mame?

    No se preocupe com ela. Digo que

  • voc foi visitar um amigo. O que, decerta forma, verdade. Pegue, j no sem tempo o velho disse, entregando aPedro uma fotografia.

    Um rosto familiar lhe sorriu, familiarno porque reconhecesse suas feies,mas porque se tratava de uma versomais velha da imagem que vira noespelho pela manh. Era a primeira vezque via uma foto do pai. Ele estavaencostado em uma das colunas demrmore da galeria egpcia principal,sorridente e descontrado, como se notivesse qualquer problema na vida.Pedro observou que aquela coluna era anica na sala que tinha uma portasecreta, e ficou pensando se o pai teriaconhecimento disso. Ser que a foto

  • continha uma pista do desaparecimentodele? Pedro j entrara naquela passagemsecreta, mas, pelo que se lembrava, eladava em um corredor de depsitos.

    O senhor tem alguma ideia do quepode ter acontecido a ele? Pedroperguntou.

    O velho negou com a cabea.Abraou o neto.

    Ento, sem dizerem mais nada, o avvoltou para o po que estava fazendo, ePedro subiu ao sto. Normalmente, eleia devagar, parando nas salasconhecidas para apreciar os tesourosfavoritos. Dessa vez, porm, passoucorrendo pelos locais que j conhecia,at chegar ao limite das jornadasanteriores.

  • O corredor dobrava para a esquerda,para a direita e para a esquerdanovamente. A cada trinta passos, maisou menos, uma claraboia filtrava umaluz empoeirada, e as salas continhamsempre as mesmas coisas: ursos,brinquedos, pilhas de revistas, roupasvelhas e mveis tortos.

    De repente, o ar, que at entoparecera no ter temperatura, comeou aesfriar. Pedro sentiu um leve cheiro defumaa e, l longe, pensou ter ouvidouma voz. Longe demais para decifrar aspalavras. Parou e apurou os ouvidos,mas no escutou nada. Comeou achover l fora, uma chuva leve aprincpio, como um sussurro, e depoismais forte, a ponto de abafar os outros

  • sons.Pela primeira vez na vida, Pedro

    sentiu medo. Sabia que nada tinha atemer. Passara a vida no museu, masagora parecia haver algo estranho no ar,algo que no sentira antes. Em todas asexploraes que fizera pelos corredorese tneis ocultos, jamais chegara ao final,mas sabia que tinha de existir um fim.

    Nada dura para sempre, elepensou, embora tivesse a sensao deque algumas coisas talvez durassem.

    Ao passar debaixo das claraboias,sentiu a chuva bater contra o vidro comopunhos minsculos. Os cantos escurospareciam abrigar figuras ameaadoras,que se fundiam s paredes, e as pessoasde semblante rabugento, retratadas em

  • quadros antigos, observavam-no. Vozessussurrantes ecoavam pelo sto,avisando da chegada iminente de Pedro.

    Ele apressou o passo. Disse a simesmo para parar e voltar aoapartamento, porm sabia que tinha deprosseguir. Sentiu os olhos se encheremde lgrimas e comeou a correr. Oscorredores ficavam cada vez maisescuros e pareciam interminveis, comoum labirinto, levando-o cada vez paramais longe, em direo s sombrasinexploradas. Ele correu mais rpido,mas a cada esquina um novo corredoraparecia.

    Pedro encostou-se na parede pararecuperar o flego. Algumas teias dearanha se prenderam em seu cabelo, e

  • ele as afastou com a mo. Sentou-se e,lentamente, comeou a se acalmar.Desejou que Arquimedes estivesse ali,mas o gato sara durante a noite e nohavia retornado.

    Pedro tinha ido longe demais e noconseguiria voltar ao apartamento antesdo anoitecer. Parou, dividido entre oscorredores frente e o pensamento deque a me ficaria preocupada com ele,no entanto, sabia que o av resolveria oproblema nessa noite. Era a primeiravez que ficava fora de casa at to tarde.Sempre encontrava mais uma esquinapara dobrar, mais uma escada parasubir, mas, at esse momento, sempreparara e voltara.

    Dessa vez era diferente. Algo o

  • chamava e o impedia de se sentirculpado ou preocupado em relao me. Pedro ouviu um barulho frente eArquimedes surgiu.

    Ol, Arquimedes o menino disse,acariciando-o. Como que chegouaqui antes de mim?

    Ele pegou o gato no colo e o afagou.Quando Pedro estava triste, com medoou machucado, Arquimedes sempre ofazia sentir-se melhor. Quando acordavade um pesadelo, o peso do gato sobre oacolchoado era suficiente para lheoferecer segurana.

    Sabe de uma coisa? ele disse aogato. Acho que voc meu melhoramigo.

    Arquimedes esfregou o focinho no

  • queixo de Pedro e ronronou alto. Por umsegundo, o menino foi invadido por umaonda de tristeza diante do pensamento deque o melhor amigo no podia conversarcom ele.

    Abraado a Arquimedes, Pedrosentiu-se seguro novamente. A chuva eraapenas chuva, e as vozes sussurradastinham silenciado. O gato pulou no choe dobrou a esquina.

    Pedro costumava imaginar queArquimedes sabia falar. Tinhaconversas mentais com o animal, e,nesse momento, o gato lhe dizia parasegui-lo.

    Os corredores eram ainda maisescuros nesse ponto, as claraboias erammenores e as teias de aranha, mais

  • espessas, de modo que a luz era maisfraca. Tudo estava imerso em umasemiescurido, e as portas pelas quaispassavam tambm tinham teias dearanha. Porm, com Arquimedes trotanto frente, Pedro deixou de sentir medo.

    Dava para perceber no ar queningum andava por ali havia tempo.Experimentou algumas portas, mas elasestavam trancadas. Ps-se a imaginarpor que se dar ao trabalho de tranc-las,j que ningum visitava o lugar.

    O corredor virava esquerda, depois direita e, mais uma vez, esquerda,tornando-se sempre mais escuro, atficar mais parecido com um tnel.Virando mais uma esquina, deu em umbeco sem sada.

  • frente, uma parede sem marcas,sem porta, sem indcio de porta, semuma reentrncia que pudesse esconderum ferrolho, nada. Ainda assim, eraevidente que no fora sempre assim.Algum erguera uma parede de tijolosno meio do corredor. Arquimedesfarejou o cho e soltou um som agudo.

    O que foi? Pedro perguntou,agachando-se ao lado do gato. Novejo nada.

    Levantou-se e se virou. Estavarealmente infeliz. No porque todas asportas estivessem trancadas ou porquetivesse chegado to longe para nada,mas porque o lugar cheirava adecrepitude e morte, algoavassaladoramente deprimente e triste,

  • como nenhum outro ponto do museu.Todos os outros lugares eram repletosde mistrio, de milhes de coisas dopassado que mantinham a magia; porm,ali, o tempo havia parado. O que querque estivesse atrs das portaspermaneceria desconhecido parasempre. Seria algo terrvel demais paraalgum presenciar? Seria simplesmentechato? Ou as salas estariam vazias? Omuseu inteiro parecia acolh-lo, esomente ali Pedro se sentia um invasor.

    Vamos l, gatinho, vamos embora ele disse. Isto aqui horrvel.

    Arquimedes, porm, ignorou-o. Foiat a ltima porta direita e bateu nelacom a pata.

    No, vamos embora, gato, esto

  • todas trancadas Pedro disse. Ao sevirar, porm, ouviu uma voz.

  • Trouxe-o at mim, amiguinho?Era uma voz de mulher, aguda e

    quebradia como papel amassado, evinha de trs da porta que Arquimedesarranhava. A primeira reao de Pedrofoi correr. Seu corao disparou, a

  • respirao se acelerou. A ideia sensatade que no poderia haver ningum alicruzou sua mente, mas logo desapareceu.Pois havia algum ali. A menos quefosse um fantasma. No fundo da alma,sempre sentira que no estava sozinhonessa imensa cidade de corredores esalas desertas.

    Nunca houvera indcio algum que olevasse a tirar essa concluso, nem umsom sequer, uma pegada no p, umaimpresso digital nas portas ou umfragmento de lixo deixado para trs. Eleapenas sentia outra vida.

    Vamos, vamos a voz disse e,tentando parecer um pouco mais suave,acrescentou: Traga-o para dentro.

    Arquimedes empurrou a porta com a

  • pata. Pedro tirou as teias de aranha docaminho e seguiu o gato. L dentro, foienvolvido pelo cheiro de livros midose roupas molhadas. Tambm havia umaroma de terra encharcada de chuva euma mistura de todos os outros cheirosque Pedro j experimentara: algunsdeliciosos, como o de aguarrs e o derosas; outros desagradveis, como o demofo e o de repolho.

    Vamos, vamos a voz incitou-os. No tenho o dia todo.

    Pedro perscrutou a escurido. Bem, na verdade tenho o dia todo

    a voz continuou, agora conversandoconsigo mesma. Tenho o dia todo etodos os dias, todos os dias que seforam e todos os que esto por vir.

  • Tenho todos eles, querendo ou no, e amaioria deles eu no quero, nem quis.Cem anos sentada janela, at conhecercada gro de areia do cimento queassentou os 687 tijolos que vejonaquelas duas chamins, uma delasmorta, a outra soltando a fumaa deinverno produzida na lareira, em tornoda qual voc, sua me, seu av eArquimedes se renem. Conheo os1.704 padres de fumaa que elaproduz. Sei de cor os milhes depadres que o gelo forma nas janelasnas manhs de inverno e seria capaz dedesenh-los vendada. Disponho de umaquantidade infinita de dias, e graas aisso minha alma virou p. Meu coraoest morto, mas no para de bater.

  • Venha c, meu jovem, venha at a luz.Pedro caminhou pelas sombras. No

    centro de um tapete persa com vrioscentmetros de altura de sujeira, cercadapor mveis escuros, viu as costas deuma cadeira velha. A voz vinha dali. Erauma voz rpida e aguda, cheia deimpacincia.

    Venha, venha ela disse. Andelogo. No temos tempo a perder. Mas oque so alguns minutos a mais depois detodos estes anos perdidos? Quediferena podem fazer uns minutos ouat mesmo alguns dias? Nenhuma,absolutamente nenhuma. Um segundo ouum sculo no faz diferena.

    Pedro aproximou-se. Uma senhorapequena, de cabelo branco, estava

  • sentada na cadeira. As teias de aranha,onipresentes, agarravam-se nelatambm, misturadas ao cabelo, ambosfinos e prateados. Pedro observou o seurosto, e o que viu lhe pareceu ser aaparncia da morte. A mulheraparentava ser muito, muito velha, quasevelha demais para estar viva. A pele eraplida e enrugada, quase transparente.Os clios se mostravam cansados aponto de no conseguirem se erguer,mas, ainda assim, Pedro percebeu nosolhos dela algo da juventude da prpriame. Queria correr, mas os ps nosaram do lugar.

    Oh ela disse ao ver o menino. voc, o garoto, to crescido, toparecido com o pai. Eu pensei bem,

  • no importa o que eu pensei. Perdi anoo do tempo, e ele se perdeu de mim.

    Aparentemente, ela esperava outrapessoa. Pedro aguardou que a velhadissesse quem deveria ter chegado emseu lugar, mas ela no o fez. Acenou-lhecom impacincia.

    Bem, me ajude ela disse. Tenhode lhe contar tudo? Imagino que sim,imagino que sim.

    Eu no esperava Pedrocomeou.

    Esperava, esperava, esperava oqu? a velha devolveu. Ningumespera. Quem espera? Voc? Eucertamente nada espero, mas aindaassim espero tudo, sim, tudo e nada.Afinal, qual a diferena? Ah, muita

  • filosofia com certeza!Ela se levantou da cadeira de

    espaldar alto e parou na frente de Pedro.Dava na altura dos ombros dele. Otempo parecia t-la transformado nomenor adulto que ele j vira; ela no eraapenas baixa, mas pequena por inteiro,como se tivesse encolhido.

    Arquimedes ronronou e esfregou-senas pernas dela. A velha era to frgilque quase perdeu o equilbrio.

    Tenha cuidado, amigo peludo eladisse , ou vai me derrubar. At pareceque no me v h dias.

    Eu no esperava encontrar algum Pedro explicou.

    No seja ridculo a velharetrucou. claro que esperava.

  • claro que esperava. Por que veio ataqui, ento?

    Eu estava apenas explorando Pedro mentiu, incapaz de falar do paicom uma estranha.

    No, no, no, no. No assimfcil a velha disse. Sou Betina. Sim,sim, Betina. Que estranho!

    O qu? Meu nome, meu nome. H dez anos

    que no ouvia meu nome. Ou seja,provavelmente h dez anos no ouo osom de minha prpria voz. A menos queeu fale dormindo. Eu falo dormindo? Eufalo no sonho dos outros, mas ser quefalo durante os meus? Quem saber?

    Ela resmungou baixinho que Pedrotinha levado muito tempo para ach-la.

  • Pedro pensou em protestar.Explorava o museu desde que aprenderaa andar. Percorrera milhares decorredores e inmeras salas. Comopoderia saber que ela estava ali?

    Mas voc sempre soube que euestava aqui Betina disse.

    Eu bem eu Diga a verdade, criana, sabia que

    eu estava aqui. No. como se eu pensasse que

    havia algum Pedro tentou explicar. Talvez, talvez a velha retrucou ,

    mas sempre esteve a caminho daqui. Mas Eu no falava com voc nos

    sonhos? claro que sim, claro quesim.

  • Pedro lembrou-se de sonhosestranhos nos quais uma pessoa quejamais via o chamava com palavras queele nunca conseguia ouvir direito. Essessonhos quase o tinham enlouquecido, atque ele aprendeu a interromp-los,acordando. Quando os sonhos vinham,ele se sentava no escuro e balanava-se,para a frente e para trs, at a voz sumir.

    Era a senhora? ele perguntou. Eu no conseguia ouvir. Pensei quefosse apenas um pesadelo.

    Betina pareceu surpresa. Ora, as pessoas ela disse,

    sacudindo a cabea. Pareo umpesadelo? melhor no responder. Eupareo mesmo um pesadelo. So osratos, so os ratos. Eles fazem ninho no

  • meu cabelo. Sim, sim, eu sei, e o meurosto tem mais rugas que um papel bemamassado.

    Ela pegou as mos de Pedro e oolhou nos olhos. O toque daquelas mos,frias como um frango congelado, fezPedro estremecer. Os olhos dela, negroscomo a noite, miraram bem em seucorao.

    Escute ela disse com uma vozsubitamente suave , no tente ser tovelho. S as crianas tm a menteaberta, porm, quando elas se tornamadultas, as portas se fecham, as cortinascaem e a viso delas fica prejudicada,voc sabe. No deixe isso acontecercom voc. Siga o exemplo deArquimedes e aceite tudo. Est

  • pensando que nada disto pode estaracontecendo. Lembre-se de que, svezes, o que real pode parecer umsonho e o que parece um sonho pode serreal. Voc estava perambulando por a,como sempre fez desde que aprendeu aandar, e afinal me encontrou. Sim, sim,encontrou. Voc viu tantas coisasesplndidas e surpreendentes nestelugar, coisas que nenhum ser vivo viunem poder ver, mas, como criana,imaginou que fossem normais. Vocnunca questionou nada, nem uma portacolocada em um lugar estranho, nem umartefato que s existe aqui, que no podeser encontrado em nenhum livro, talvezem nenhum planeta, em nenhuma poca.Voc aceitou tudo. Portanto, aceite que

  • me encontrou. Mas isso diferente Pedro

    respondeu. A senhora est viva. Todoo resto so objetos que no se mexem.Como consegue coisas como comida?

    Ah, a comida Betina disse, com oolhar distante. Como sinto falta decomida! Coelho, cozido, torta de ma,sanduche de toucinho. Daria um olhopara prov-los novamente, para senti-los limpar as teias de aranha da minhagarganta. Sim, pois hoje no preciso decomida. Faz tanto tempo que no comoque tenho medo de ter esquecido comose faz. Minhas entranhas esto cheias dep.

    Nesse ponto, ela acordou dodevaneio e disse:

  • Escute, deve me aceitar com amesma naturalidade com que aceitariaum livro. Se no acreditar em mim dofundo do corao, no poderei ajud-lo.

    Ajudar em qu?A velha fez uma pausa. Sem joguinhos, sem perguntas ela

    respondeu. Sei tudo o que voc sabe.Sei que seu pai foi embora e que seu avest doente.

    Mas Pedro tentou protestar.Ficou perturbado com a ideia de umaestranha conhecer todos os seuspensamentos.

    No tenha medo a velha disse. Sei tudo o que acontece neste lugar, nasua cabea e na de todos. Arquimedesme mantm informada. Sei que o doutor

  • Eisenmenger mora no corao do seuav.

    Oh! Pedro exclamou. E o meupai? Sabe onde ele est?

    Betina ignorou a pergunta e, antes quePedro pudesse repeti-la, agarrou-o pelamo e o arrastou at a janela, com forae rapidez notveis. Remexendo nasroupas, ela achou um livrinho queentregou ao menino. Era muito velho,encadernado com um couro macio, gastopelo manuseio de milhares de mos. Nalombada, uma inscrio em ouro:

    Como Viver para Sempre

    Tome ela disse.Pedro abriu o livro, mas no

  • conseguiu ler uma palavra. A velhapegou-o de volta e fechou-o comviolncia.

    Voc no deve l-lo disse. Sinto muito. Deveria ter dito antes deentreg-lo. Voc tem de levar o livropara o Menino Velho. Sim, sim, issoque tem de fazer. Leve o livro aoMenino Velho e todos os problemassero resolvidos. Existe um segredo.No sei o que , mas sei que ele existe eque s o Menino Velho o conhece. Elembre-se: acima de tudo, acima dasnuvens e do cu, no conte isso aningum, ningum, nem mesmo a seuav. E jamais leia o livro.

    Mas Pedro protestou. Acredite em mim Betina disse ,

  • se ler o livro, viver para sempre. Sim, isso mesmo, para todo o sempre, semamm no final.

    E o que h de errado nisso? Pedro perguntou. A ideia de noenvelhecer, no ficar doente, viver parasempre, parecia maravilhosa.Obviamente, todos desejam isso.

    No se vive para sempre a velhaexplicou. Para-se de crescer. Quantosanos voc tem? Dez? Quer ter dez anospara sempre? Quer ver sua meenvelhecer e morrer, quer ver seusamigos crescerem, se apaixonarem eterem filhos, enquanto voc fica com dezanos para sempre? No, no, no.

    Eles no poderiam ler o livrotambm? Meu av no pode ler?

  • Se todos lessem o livro, o tempopararia a velha explicou. Todosviraramos esttuas. O tempo morreria.Os relgios parariam de funcionar. No,criana, no leia o livro, no importaquem lhe pea isso. Prometa-me quejamais voltar a abri-lo.

    Ela escondeu o livro entre as dobrasdas roupas e arrancou a cortina develudo vermelho da janela.

    Tomarei uma precauo ela dissee, rasgando a cortina em tiras, amarrou olivro at ele ficar parecido com umammia. A seguir entregou-o a Pedro.

    Voc deve encontrar o MeninoVelho. Ele tem todas as respostas.Agora, prometa-me que, no importa oque acontea, no importa seu grau de

  • desespero, no importa quem lhe pea,jamais ler o livro. Estas so aspalavras mais importantes que voc jescutou na vida. So, sim. Inscreva-as afogo no crebro e no corao. Nunca,nunca, nunca leia o livro. Promete?

    Pedro assentiu com a cabea. Notinha palavras. Ou melhor, havia tantaspalavras rodando em sua cabea que eleno sabia quais escolher. Para comear,se o livro era to perigoso, por que avelha o estava dando a ele? Se ningumpodia l-lo, qual a necessidade de lev-lo embora? Por que a velhasimplesmente no o queimara?

    Percebendo a confuso do menino,Betina pegou-o pelo brao e disse:

    Vejo que no est convencido.

  • Venha comigo. Vou lhe mostrar.Ela o conduziu a um cmodo quase

    vazio. No havia tapetes sobre oassoalho, e a nica pea de moblia erauma cmoda encostada na parede maisdistante. Em todos aqueles anos deexplorao, Pedro jamais vira uma salacomo aquela. Todos os locais quevisitara eram atulhados de coisas.

    Betina foi at a cmoda e abriu agaveta de baixo.

    Venha c ela chamou , me ajudea abrir. Faz cinquenta anos que notenho fora para fazer isso sozinha.

    Pedro puxou a gaveta. Erainacreditavelmente pesada. Quandoconseguiu abri-la, entendeu por qu.Estava cheia de tijolos velhos.

  • Para mant-lo seguro Betinaexplicou. H dias em que a mente delevagueia, e o corpo quer segui-la. Venha,ajude-me a tir-los daqui.

    Para manter quem seguro? Voc ver Betina respondeu.Pedro esvaziou a gaveta, que foi

    retirada pela velha e colocada de lado. Agora, a de cima ela disse.Aquela tambm estava cheia de

    tijolos, que Pedro removeu. O mesmoaconteceu com as duas gavetassuperiores. Quando as quatro gavetasforam esvaziadas e retiradas, Betina seinclinou e entrou na cmoda.

    Venha ela disse. Siga-me.Retirando uma chave do bolso, ela

    abriu uma porta pequena no fundo do

  • mvel. Pedro arrastou-se atrs dela atuma sala escura, sem janelas. Um cheiroforte de ar viciado invadiu-os como umadoena. A velha acendeu uma luz. Umafigura grotesca estava enrolada comouma bola no centro de um emaranhadode trapos e palha que cobria o cho.Parecia uma criana mais ou menos daidade de Pedro, porm, quando acriatura acordou, Pedro viu rugasprofundas em seu rosto. Criatura era anica palavra para descrever aquelacoisa que, visivelmente, um dia fora umacriana. Ela virou o rosto na direo daporta e apertou os olhos diante da luzque no via havia meio sculo.

    a senhora, mame? a criaturaperguntou.

  • Sim, querido Betina respondeu.A velha se ajoelhou ao lado da figura

    pattica e aninhou a cabea dela em seusbraos frgeis.

    A senhora descobriu um jeito? No a velha respondeu. Mas

    no vai demorar. Achei uma pessoa paralevar o livro.

    Ela comeou a chorar e pegou o filhono colo. Choraram juntos, misturando aslgrimas. Arquimedes aproximou-se eroou o focinho no rosto do menino.

    Sentindo que tambm ia chorar,Pedro saiu da sala. A velha no precisoulhe explicar, pois ele entendeuimediatamente. Aquela figura triste tinhalido o livro, e um jeito significavauma maneira de envelhecer e morrer.

  • Aquele Bernardo, meu filho avelha disse, depois que as gavetas e ostijolos foram recolocados no lugar. Quando o livro caiu nas minhas mos,muitos anos atrs, pensei que fosse umpresente de Deus. Meu preciosoBernardo estava quase morrendo de umadoena incurvel, e eu achei que ele sesalvaria se lssemos o livro juntos.Voc viu o resultado. Bernardopermaneceu no limiar da morte. O livrono cura, apenas congela o tempo. Meulindo menino envelhece, voc viu asrugas no rosto dele, mas no cresce nemir morrer. Desde que leu o livro, elenada bebeu, nada comeu, mas noconsegue morrer, assim como eu.

    No h nada que se possa fazer?

  • Pedro perguntou. Voc tem de levar o livro at o

    Menino Velho ela respondeu. Assim,todos os que foram afetados pelamaldio se libertaro.

    Como eu acho o Menino Velho? ele perguntou.

    No sei Betina disse. Acha que,se eu soubesse, no teria ido atrs deleh muito tempo?

    E o meu pai? Pedro interrogou-a.A velha se virou, mas ele a segurou

    pelos ombros. Ela parecia um saco degravetos, daqueles bem finos que o avusava para acender a lareira. Era tomagra que Pedro achou que viraria p sea apertasse demais.

    Conte-me ele insistiu.

  • Aqui a velha disse, enfiando amo na roupa. Pegue isto.

    Ela entregou a Pedro um relgio depulso. Faltava metade da pulseira decouro. A outra metade estava rachada.Os ponteiros, parados, marcavam duashoras e vinte minutos, mas no davapara saber se eram duas da tarde ou danoite.

    dele ela explicou.Pedro olhou o relgio, boquiaberto. Est quebrado ele disse. No, est apenas adormecido.

    Quando voc chegar ao mundo em queele est, o relgio comear a funcionarnovamente. Agora v e encontre oMenino Velho.

    Mas por onde eu comeo?

  • Siga-me Betina gritou. Sim,sim, isso mesmo. Siga-me. Sei por ondecomear, mas isso tudo o que sei.

    A velha voltou ao corredor e foicontando as portas. Perdeu a conta duasvezes, ento, mandou Pedro retornar econt-las de novo.

    Setenta e trs ele disse. na 92 Betina disse. Sim, 92.Chegaram nonagsima segunda

    porta, mas ela estava trancada. Talvez seja na 93 Betina sugeriu,

    porm ela tambm estava trancada. Euno morro, mas o mesmo no acontececom minha memria.

    Depois de mais algumas tentativas,Betina imaginou que talvez 192 fosse onmero.

  • Sim, sim ela disse. aqui. Olugar cheira do lado de fora.

    Arquimedes j estava l, sentado. Tanta conta a velha disse

    quando bastaria ter seguido o gato.Ela abriu a porta, e ento, em vez de

    outra sala, surgiu uma escada quemergulhava na escurido.

    Desa ela ordenou, segurando asmos de Pedro. No conte a ningumsobre nosso encontro. Nem a seu av.

    Mas ele comeou. No, nem mesmo a ele Betina

    disse. Sei que voc o ama do fundo docorao, mas nem ele deve saber donosso encontro, nem do livro.

    Mas talvez ele pudesse ajudar Pedro argumentou.

  • No, no Betina insistiu. Elepoderia ter medo de perder voc comoperdeu o filho, e tentar impedi-lo de ir.

    Ir? Ir para onde? No posso dizer mais nada Betina

    retrucou.Ela se virou e foi embora. Vai dar tudo certo disse.Ao dobrar uma esquina do corredor,

    acrescentou, agourenta: Embora no tenha dado antes.Pedro fitou o relgio. Virou-o para

    cima e para baixo e o levou ao nariz,para ver se sentia o cheiro do pai.Tentou dar corda nele, mas noadiantou.

    O relgio do pai.

  • O pai o tocara, dera corda nele eajustara os ponteiros. Com lgrimas nosolhos, Pedro enfiou o relgio no bolso eseguiu Arquimedes escada abaixo.

  • Pedro e Arquimedes saram nagaleria ao lado do apartamento. Aparede se fechou atrs deles. O meninoobservou-a de todas as formas com seuolho de especialista, mas no descobriucomo abri-la pelo lado de fora.

  • O apartamento estava escuro, e elefoi para a cama imaginando o que fazerem seguida. J tinha decidido que noiria contar me sobre o relgio;entretanto, no sabia como resolver aquesto com o av.

    Era impossvel dormir. A respiraode Pedro produzia pequenas nuvensbrancas em contato com o ar frio, mas omenino queimava por dentro. Sentia-semuito distante at mesmo do av, paraquem no tinha segredos.

    No at esse momento.Sabia que estava prestes a partir,

    embora no tivesse a menor ideia de seudestino nem soubesse se iria voltar.

    As lgrimas lhe rolavam pelo rosto, eele ficou surpreso diante do prprio

  • choro. Tinha a cabea to cheia que nemnotara que estava chorando. Queria irpara a cama da me e se aconchegar nosbraos dela. Queria conversar com oav e lhe dizer adeus, mas sabia que nopodia fazer nem uma coisa nem outra.Contava apenas com Arquimedes, pormo gato sara correndo to logo voltaramao apartamento.

    Pedro permaneceu deitado no escuro,segurando o livro. Sentiu-o mexer-sedentro da priso de veludo vermelho. Avontade de rasgar as tiras ficava cadavez mais forte. A voz de Betina ecoavaem sua mente, repetindo sem parar omesmo aviso

    Prometa-me que, no importa o queacontea, no importa seu grau de

  • desespero, no importa quem lhe pea,jamais ler o livro.

    Porm, outra voz, mais sombria emais distante, dizia-lhe que a velha erauma tola, que ela estava enganada e nohavia mal algum em dar uma espiada nolivro e ler algumas palavras da primeirapgina.

    Pedro pegou a ponta da tira de tecidoe a enrolou entre os dedos.

    Isso mesmo, no tenha medo umavoz sombria disse. Havia outra coisa.Ele no sabia de onde viera aquelaideia, mas, de repente, ela estava l,dominando-lhe os pensamentos. Tinhade colocar a fotografia do pai dentro dolivro.

    Pedro acendeu o abajur para dar uma

  • ltima espiada nela. Fitando os olhossorridentes do pai, tentou adivinhar noque ele estaria pensando. No pulso dele,viu o relgio que Betina tinha lhe dado.O menino segurou o relgio na frente dafoto, como para mostr-lo ao pai, massentiu-se estpido e o colocou de voltano bolso.

    Ele apagou a luz e retirou a primeiratira de veludo. A seguir, procurou aponta da segunda. medida quedesamarrava o livro, via Bernardoencolhido em seu leito de palha.

    No! Pedro gritou.Ele saltou da cama e acendeu a luz. A

    claridade ps fim tentao. O meninopegou a foto do pai e, de olhos fechados,enfiou-a no meio do livro, forando-a

  • entre as pginas sem erguer a capa.Recolocou as fitas, uma a uma, em tornodo exemplar e foi at a cozinha atrs deum barbante, para amarr-lo ainda maisem um oceano de ns.

    Na escurido, viu que uma figuraestava recurvada sobre a mesa. Seucorao disparou.

    Seria seu pai? Teria ele estado nomuseu o tempo todo, escondendo-se detodos por razes que Pedrodesconhecia?

    No, era seu av. O velho estavaimvel e no ouvira Pedro chegar. Omenino ps-se a observ-lo com arespirao contida, pois no queria queele o escutasse. Obviamente, o velhoqueria ficar sozinho.

  • Ser que um dia isto ter fim? elemurmurou, com um grande suspiro.

    Enquanto o av falava sozinho, Pedrosaiu da cozinha na ponta dos ps, antesque a vontade de correr e abraar ovelho tomasse conta dele.

    No voltou ao quarto. Com o livroparcialmente esquecido, desceu aomuseu deserto. Uma grande tristeza oinvadiu. Como todas as crianas, Pedrotinha crescido acreditando que aspessoas a quem amava viveriam parasempre, e agora percebia que no seriaassim. Seu av morreria, e, um dia, suame tambm.

    Talvez todos ns pudssemos ler olivro, ele pensou.

    Lembrou-se, porm, das palavras de

  • Betina: Prometa-me que, no importa oque acontea, no importa seu grau dedesespero, no importa quem lhe pea,jamais ler o livro. Se isso nobastasse, havia a imagem de Bernardodeitado na palha.

    Deve haver excees, Pedropensou.

    E se algum estivesse doente, comoseu av? Com certeza essa pessoapoderia ler o livro. Mas Pedro sabiaque, mesmo que o velho lesse o livro evivesse para sempre, ele ficaria como ofilho de Betina, eternamente doente.Seria pior.

    No, Pedro tinha de achar o MeninoVelho. Segundo Betina, ele resolveriatudo.

  • Nessa noite, o silncio das galeriasparecia ainda mais pesado. No haviasinal de Arquimedes, e at mesmo apoeira fina que costumava danar aoluar permanecia imvel sobre asvitrines.

    Venha aqui.Era a voz que tentara convenc-lo a

    ler o livro. Ela no estava realmente ali,mas dentro da cabea de Pedro, e noestava prxima, e sim em um corredordistante, chamando-o.

    Pedro sentiu que enveredava por umcaminho que no tinha escolhido. Foiandando sem pensar at chegar a umlugar que no visitava havia anos. Erauma sala anexa galeria egpciaprincipal, uma sala pequena e estranha,

  • que dispunha apenas de uma cadeira euma vitrine com um gato mumificado,enfaixado com um tecido desbotado.

    Sente-se a voz disse. Relaxe.Pedro sentou-se. Estava muito

    cansado. Ele fechou os olhos e sentiuque ia dormir.

    No durma.Dois grandes braos invisveis

    saram de trs da parede e oenvolveram. A princpio, eles foramgentis, mas logo apertaram o abrao edificultaram a respirao de Pedro. Omenino entrou em pnico, pois noconseguia se libertar. Ele abriu a bocapara gritar, mas quem quer que oestivesse segurando calou-o antes quepudesse emitir um som.

  • No lute contra mim a voz disse. No desperdice as suas foras.

    A cadeira se inclinou para trs eparou, perfeitamente equilibrada sobreduas pernas.

    Nos vemos mais tarde a vozdisse, agora muito distante.

    A cadeira se inclinou ainda mais paratrs, passando do ponto de equilbrio.Os braos que seguravam Pedro comtanta fora desapareceram, e a cadeiracaiu, deixando o menino esparramado nocho, sozinho, no escuro.

    Ele se levantou, subitamente alerta, epercebeu que no estava mais na salaanexa. As paredes haviam se tornadocurvas e cheias de livros. Pedro sevirou. Estava na biblioteca.

  • Era a nona galeria.Exceto pelo fato de que tudo estava

    diferente.Quando Pedro se sentara na sala do

    gato mumificado era noite; agora, o diaj raiara. O sol nascente entrava pelas

  • janelas e se refletia no teto decorado ecurvo, enchendo a biblioteca com umbrilho dourado intenso. As nuvenspareciam ter entrado com o sol.Pairavam no alto, escuras e nervosas.

    medida que o sol subia, o douradodava lugar a uma nova luz, a luz de umnovo dia. Do lado de fora, acima dodomo, o cu escureceu ainda mais,embora do lado de dentro aluminosidade tivesse aumentado. Umanvoa subia, e a grama sob seus ps

    Grama, que grama?, Pedro pensou. estava coberta de orvalho.Pedro olhou para os ps e viu uma

    grama macia no lugar em que deveriaestar o piso de ao da galeria. Umatrilha gasta no gramado acompanhava a

  • curva do recinto nas duas direes. Umpassarinho pousou na balaustrada, aalguns centmetros de Pedro. Eleinclinou a cabea para um lado e, se que isso possvel para um pssaro,sorriu para o menino como se dissesse:Nunca o vi por aqui antes.

    A grama, porm, no era a principaldiferena.

    A nvoa dissipou-se aos poucos erevelou um lago no ponto em quedeveriam estar o piso de mogno e asfileiras de mesas envernizadas. O lagose estendia de um lado a outro dabiblioteca, um oceano infinito de guaque chegava ao nvel da primeiragaleria. No meio do oceano, onde antesficavam as mesas das bibliotecrias,

  • erguia-se uma ilha; atravs da nvoa sse podiam ver os picos das montanhas.O lugar parecia muito maior, quase togrande quanto o mundo. Pedro inclinou-se sobre a balaustrada e fitou o lago,boquiaberto. Ficou encantado com suamagia. Ondas grandes e regularestransformavam a gua em umacolchoado dourado a cobrir um giganteadormecido.

    Um barco pequeno surgiu na outraextremidade. O som distante da descargado motor atravessou o lago, mas logo foiabafado pelo barulho frentico de umbando de gaivotas.

    Pedro considerou a cena ridcula.Dentro da maior biblioteca do mundo,no corao do maior museu do planeta,

  • um pequeno oceano. As pessoaspoderiam se perguntar por que o marno transbordava pelas portas e sepreocupar com o fato de todos aqueleslivros antigos estarem cobertos pelagua, mas Pedro sabia que nada dissoera problema. A gua era perfeita, maisperfeita do que foram, um dia, as mesase as luminrias. To perfeita que nadapodia estar errado. Obviamente, ele nopoderia voltar pelas escadas em espiral,porm a ideia de faz-lo parecia-lheagora irrelevante.

    No entanto, o mar tambm noconstitua a maior mudana do ambiente.A grande diferena estava nos livros.

    Pedro observou que, em todas asgalerias da biblioteca, os livros tinham

  • ganhado vida. No eram mais objetosque pudssemos segurar com as mos,pois tinham, agora, a altura de uma casa,e, como em uma casa, apareceram portase janelas nas lombadas. Vrias janelasestavam iluminadas. Portas se abriam epessoas entravam e saam. Ao passarpor Pedro, sorriam e lhe desejavambom-dia, sem se mostrar minimamentesurpresas por v-lo ali. Todos os livros,agora transformados em moradias altas efinas, eram habitados por pessoasrelacionadas ao ttulo da obra. Pedroestava na parte da biblioteca queabrigava os livros de marcenaria. O arrecendia a aguarrs. O cheiro de vernizde madeira misturava-se ao de cola esndalo, e as pessoas corriam para as

  • outras galerias para entregar cadeiras debeb e banquinhos para ordenhar leite,bancos de jardim, chaises-longues epoltronas reclinveis.

    Ao longe, um galo cantou. Um novodia comeava, mas um novo dia de outromundo, no do mundo de Pedro.

    H quanto tempo voc est aqui? perguntou uma voz atrs dele. Espervamos que chegasse na prximasemana.

    O barquinho que navegava em meio nvoa ia exatamente na direo domenino. Quando Pedro se inclinou sobrea balaustrada para conferir o destino dobarco, a voz se aproximou e repetiu:

    Ei, eu perguntei h quanto tempovoc est aqui.

  • Arrancado de seu devaneio, Pedrovirou-se.

    O qu?A menina tinha mais ou menos a

    idade dele. Ela carregava Arquimedesno colo e lhe fazia ccegas atrs daorelha. Era magra como Pedro e tinhacabelos castanhos. E, como ele, tinhaolhos castanhos agitados, que iam de umlado a outro sem se deter em nada. Oprimeiro pensamento de Pedro foi tirar ogato dela Arquimedes pertencia a ele, mas sabia que, no fundo, os gatos nopertencem a ningum, ao contrrio doscachorros, que se entregam ao dono decorao.

    A menina trajava um vestido brancode festa.

  • Estou indo a uma festa ela disse. Voc s deveria chegar na semana quevem.

    Do que voc est falando? Pedroretrucou.

    Voc s deveria chegar na semanaque vem ela repetiu, como se estivesseconversando com algum no muitointeligente.

    No sou burro Pedro respondeu. No precisa falar assim. Pelo que eusei, no deveria ter chegado aqui nunca.

    As meninas no eram a melhor coisado mundo, e aquela ali era a provadisso.

    Deveria, sim ela disse, dando umpasso para trs , mas s na semana quevem.

  • No Pedro respondeu comfirmeza. Eu estava sentado na salaanexa do gato mumificado

    Bastin, o deus-gato a meninaexplicou.

    Sim. E, depois, eu ca e atravesseia parede.

    Sei. Aquela parede no fica perto da

    biblioteca Pedro continuou. Portanto, no fao a menor ideia decomo vim parar aqui. Quero dizer,quando eu vim para c, l era noite.

    Exatamente a menina disse. Comoa resposta no tinha sentido, Pedroachou que ela estava to confusa quantoele. Ela parecia um pouco constrangidae ps Arquimedes no cho antes de

  • estender a mo e se apresentar. Meu nome Festa. Sou sua

    Zeladora. Zeladora? Como assim, zeladora?

    Pedro respondeu. Zeladores eram velhoscomo o seu av, que cuidavam dosprdios, no meninas estranhas emroupas de festa. Aquela biblioteca vivalembrava Alice no Pas das Maravilhas,mas a menina era ainda maisextravagante, e Pedro no tinha a menorinteno de apertar a mo estendida.

    A fascinao por aquele lugarfantstico estava desaparecendorapidamente, e Pedro queria achar aporta de volta sala do gatomumificado.

    minha funo tomar conta de

  • voc enquanto estiver aqui Festadisse. Todo visitante dispe de umZelador. Fui designada para vocporque nascemos exatamente no mesmominuto. Desculpe, fui um pouco rude,mas disseram que voc viria na prximaquarta-feira.

    Quem disse? Ningum me dissenada Pedro questionou.

    Na verdade, no sei quem so eles Festa respondeu. Um dia, duaspessoas vieram nossa casa e disseramque voc estava para chegar e que euseria sua Zeladora. Explicaram que eudeveria esper-lo aqui na prximaquarta-feira, verificar se voc estavacom o livro, lev-lo para a minha casa eesperar. Papai e mame tomaram um

  • pouco de champanhe para comemorar;eu tambm, mas no gostei.

    Livro? Champanhe? Exatamente. claro que tnhamos

    de comemorar. uma grande honra serdesignada Zeladora.

    A explicao de Festa serviu apenaspara deixar Pedro mais confuso.

    Estou sonhando, pensou, mas,quando ele lhe deu um belisco, amenina pulou para trs e gritou.

    Por que fez isso? Pensei que eu estivesse sonhando

    Pedro respondeu. Voc muito estranho Festa disse

    exatamente a mesma coisa que Pedropensara dela, embora j no a achasseto pssima como no incio.

  • Onde est o livro? ela quis saber. Que livro? Voc sabe, aquele que no deve ser

    lido. Como? Voc se encontrou com a velha,

    no? Vai me dizer que isso noaconteceu ainda?

    Ah! Pedro exclamou, voltando realidade, ou to prximo dela quantopossvel. Deve estar falando da velhado telhado?

    Sim Festa respondeu. ComoViver para Sempre . Aquele livro queela lhe deu. Onde est?

    Debaixo da minha cama Pedrorespondeu. Vamos l pegar?

    Festa pareceu confusa.

  • No, voc no pode fazer isso eladisse. Deveria t-lo trazido. Ningumlhe explicou?

    Ningum quem? Bem, espera-se que algum

    explique tudo antes que a pessoa chegueaqui Festa respondeu. Tem certezade que ningum conversou com voc?Quando foram minha casa, disseram-me que voc estaria a par de tudo esaberia o que fazer.

    No sei do que voc est falando Pedro respondeu. Talvez eu devesseter conversado com meu av. Talvez elesaiba o que fazer.

    Talvez Festa disse. Mas Betina me disse que no era

    para conversar com ningum, nem

  • mesmo com vov Pedro continuou. Quem lhe contou sobre o livro?

    No sei Festa respondeu. Minhame e meu pai, imagino. Todo mundosabe do livro.

    Essa informao confundiu Pedro devez. Ainda no se convencera de queno estava sonhando. Porm, se tudo nopassasse de um sonho, era hora deacordar e voltar para o quarto.

    S que ele no estava sonhando.Quando andava pelos corredores

    ocultos do museu, de vez em quando sesentia no limiar de outro mundo.Pressentia que, a qualquer momento,atravessaria uma espcie de portalinvisvel e entraria em um lugar onde asregras normais no valiam, um lugar

  • onde tudo era possvel. Pedro concluraque sua imaginao era frtil demais,mas a estranha fantasia havia setransformado em uma estranharealidade.

    Percebeu que Festa tambm estavaconfusa. Estava a ponto de explodir emlgrimas.

    No acredito que ningum lhe dissenada ela choramingou, assustada.

    Tinha sido mandona e rude ao verque Pedro chegara antes da hora, pormagora voltara a ser uma menininha. Elaabaixou a cabea e cruzou as mos.Pedro sentiu pena dela.

    Tudo bem ele a confortou. Nosei do que voc est falando, mas tenhocerteza de que vamos resolver o assunto.

  • Vou voltar e conversar com meu av.Venha comigo, se quiser.

    Pedro ps a mo no ombro de Festa. No podemos ela respondeu.Ele pensou que ela se referia ao

    aviso de Betina. Ento vamos procurar as pessoas

    que foram sua casa ele continuou. Elas sabero o que fazer.

    Eu no sei quem elas so Festarespondeu. Ningum sabe. Elassimplesmente aparecem quando umvisitante est para chegar.

    A menina comeou a chorar e, antesque Pedro conseguisse dizer algumacoisa, saiu correndo pela galeria.

    Aonde voc vai? Pedroperguntou.

  • Segredo. H no tenho permissopara lhe contar ela respondeu,visivelmente afogueada.

    Ela parou um homem e lhe cochichouuma pergunta. O homem apontou para aescada e disse alguma coisa. Pedro souviu: Nvel trs, eu acho, maspergunte quando chegar l.

    Por que no vamos perguntar aosseus pais? ele sugeriu, enquanto aseguia pela escada de metal.

    Eles no sabem Festa respondeu.A menina se apressou. Ela pediu

    informaes a outras duas pessoas, atque algum disse Nvel dois.

    Vamos visitar os Trs Sbios Festa gritou para Pedro. Eles voresolver tudo.

  • Trs sbios? Parece uma boa ideia Pedro disse. Vamos l.

    Foi exatamente o que eu disse Festa retrucou.

    Est bem. Exatamente a menina concluiu.

    Eles moram na segunda galeria, noSextante Chins.

    No seria no Quarteiro Chins? Pedro perguntou.

    No. Quarteiro d a ideia dequadrado, e a galeria circular Festaexplicou. Trata-se da sexta parte docrculo.

    Ela tinha razo. L embaixo, nasegunda galeria, havia uma fileira delivros decorados com imagens ecaligrafia orientais. As portas e as

  • janelas eram recobertas de fina lacavermelha, e, sobre os degraus dasentradas de vrios livros, estavamdispostos drages entalhados em jade epratos rasos vitrificados com pinturas deamoreiras.

    Com licena Festa disse para umasenhora idosa que saa de um livro-mercearia. Sabe me dizer onde moramos Trs Sbios? Faz muito tempo queno venho aqui e acho que esqueci oendereo exato.

    Trs Sbios? Trs Sbios? asenhora repetiu. Trs Patetas meparece uma definio melhor.

    Mas No chegam a ter inteligncia

    suficiente para serem chamados de

  • idiotas outra velhinha disse. Voc deveria perguntar ao

    Arquimedes atalhou uma terceira. Mas ele um gato, ora bolas

    Festa retrucou. No entendo o que elediz.

    Ela fez cara de quem ia chorar denovo. As coisas estavam ficandocomplicadas demais.

    Ele se faria explicar melhor do queos trs imbecis a primeira velhinhadisse. Eles moram logo ali, mas vocvai perder tempo. Eles no saberiamexplicar como ferver a gua semqueim-la.

    Bem, j que estamos aqui, vamosdar um pulinho l Pedro concluiu.

    Exatamente Festa concordou.

  • Arquimedes estava esperando poreles porta dos Trs Sbios. Festatocou a campainha. Ouviu-se umacomoo do lado de dentro.

    No a minha vez de abrir a porta disse uma voz.

    Bem, fui eu que abri da ltima vez respondeu outra voz.

    Pois eu no posso abri-la replicou uma terceira voz. No lembrocomo que se faz.

    Diante do comentrio, os outros doissbios zombaram e riram, e todoscomearam a discutir novamente.

    Vamos embora Pedro sugeriu. Eles parecem uns inteis.

    Viram s? Igualzinho ltima vez e penltima tambm a segunda voz

  • disse. Esto indo embora. No, por favor, no Festa

    sussurrou, para que Pedro no ouvisse. Por favor, abram a porta. Sejam sbiose, por favor, por favor, por favor, meajudem.

    Voc disse que abriu a porta daltima vez disse a primeira voz. Seeles foram embora da ltima vez, vocno abriu porta alguma.

    Eu no estava falando desse dia asegunda voz respondeu. Estavafalando da ltima vez que a porta foiaberta, quando fomos s compras,ontem.

    Isso no conta a primeira vozretrucou. Eu estava falando de abrir aporta quando algum toca a campainha.

  • Qual campainha? perguntou aterceira voz. A campainha tocou? Temalgum porta?

    Arquimedes empurrou a porta, e elase abriu. Pedro e Festa seguiram o gatopara dentro e ficaram parados diante dostrs velhos, enquanto eles discutiamquem tinha esquecido de trancar a portana ltima vez que haviam sado de casa,o que poderia ou no ter acontecido navspera, quando tinham ido fazercompras, ou naquela manh, quando umdeles, no se sabe quem, deixara o gatoescapar.

    O interior da casa dos Trs Sbiosera como as antigas imitaes deporcelana chinesa, em que tudo parecemuito plano e pintado de azul sobre

  • branco. Trata-se de uma estranha ilusode ptica. At mesmo os trs velhoseram azuis e brancos. A pele deles erabranca como porcelana chinesa, o queno era de surpreender, j que elestambm eram chineses. Suas roupaseram brancas e azuis. Se no estivessemse movimentando, o cmodo inteiropareceria um prato pintado.

    No o seu gato o Primeiro Sbioexplicou a Pedro. O nosso gato, quepode ou no ser irmo

    Ou irm atalhou-o o SegundoSbio.

    Ou irm o Primeiro Sbiocontinuou do seu gato.

    Embora, naturalmente, nosso gatoseja completamente diferente o

  • Terceiro Sbio disse. Ele um gatosbio e no se parece nem remotamentecom o seu gato.

    Defina remotamente desafiou-oo Primeiro Sbio. Os dois tm quatropatas, pelos, orelhas, rabo e dentes.

    Sim, mas o gato do garoto faz miaue o nosso, grrrrr concluiu o SegundoSbio.

    Ento o seu gato um cachorro evocs so todos imbecis Festa disse.

    No somos, no senhora os trsresponderam em unssono. Somos osTrs Sbios.

    Bem, ento parem com essaconfuso e nos ajudem Festa retrucoue lhes contou que Pedro havia chegadosem o livro.

  • Livro? o Terceiro Sbioperguntou. Ns temos um livro. Temoscentenas de livros. Somos sbios. Ossbios sempre tm toneladas de livros.Quer levar um emprestado?

    Ela est falando DO LIVRO, idiota o Primeiro Sbio disse. Mas temosum livro no andar de cima que nosexplicar o que fazer. Vou peg-lo.

    Isso mesmo o Segundo Sbiogritou para o que partia. o trigsimostimo, a partir da esquerda, na nonaprateleira, contando de baixo para cima,na parede oposta da janela.

    E se chama O que fazer quandoalgum chega sem o Livro completouo Terceiro Sbio.

    No, acho que se chama O que

  • fazer quando chegam sem o Livro disse o Segundo Sbio.

    Eu sei o ttulo o Terceiro Sbiorespondeu. Afinal, fui eu que escrevi olivro. Um best-seller na poca.

    Quando foi isso? Pedroperguntou.

    No prximo dia quatro de relembro o Terceiro Sbio respondeu.

    Bem, se foi voc que o escreveu,deveria se chamar O guia do idiotasobre o que fazer quando chegam sem oLivro o Segundo Sbio concluiu.

    Se foi o senhor quem o escreveu,por que simplesmente no nos diz o quefazer? Festa perguntou.

    No assim to simples. Por que no?

  • Porque eu esqueci. Quer dizer que esqueceu porque

    no assim to simples ou que esqueceuo que est escrito no livro?

    Provavelmente. Quer um pouco dech verde? muito bom para o crebro.

    Como sabe? o Terceiro Sbioperguntou. Voc nunca tomou um.

    Escutem aqui, sabem quem podenos ajudar? Festa perguntou.

    claro que sim respondeu oSegundo Sbio. Para comear, somosmuito, muito sbios. E conhecemos todomundo. Portanto, com certeza, sabemosquem poder ajud-los.

    A menos que eles morem na casaao lado atalhou-o o Terceiro Sbio. Eles acabaram de se mudar, e ainda no

  • os conhecemos. Est bem, est bem. Conhecemos

    todos, exceto os da casa ao lado. Tem tambm o Eremita. No o

    conhecemos. Sim, sim, mas tambm no

    conhecemos o Papai Noel. Estou falando de pessoas reais. o

    Terceiro Sbio respondeu. Papai Noele o Eremita no existem.

    Existem, sim Festa disse. Noturno disse o Terceiro Sbio.

    No o conhecemos. claro que no respondeu o

    Segundo Sbio. Ningum o conhece. Apenas o prprio Noturno

    retrucou o Terceiro Sbio. Eleconhece Noturno. Voc realmente

  • precisa aprender a ser mais preciso. Ora, v comer as calas!

    devolveu o Segundo Sbio. Viu? exatamente isso, ou

    precisamente isso que quero dizer respondeu o Terceiro Sbio. Souchins. Sou um Sbio Chins. Uso robesde seda tecidos mo. No visto calas,como posso com-las?

    Eu estava sendo muito preciso oSegundo Sbio respondeu. No mereferi s calas de vestir, e sim scalas de chocolate que voc guarda emuma caixinha ao lado da cama e quebelisca no meio da noite, para no ter dedividi-las conosco.

    Voc andou comendo minhascalas? o Terceiro Sbio perguntou.

  • No, foi ele o Segundo Sbiodisse, apontando para a escada.

    Pedro percebeu que conversar comaqueles trs era como tentardesembaraar uma corda gigante. Era otipo de coisa que podia enlouquecer umapessoa. Talvez eles tivessem sidosbios em um passado distante, masagora eram to malucos quanto oschapeleiros. Ainda assim, se os TrsSbios realmente possussem um livroque pudesse lhes explicar o que fazer,valia a pena esperar.

    O Terceiro Sbio pegou uma chaleirade ferro no parapeito da janela e serviuas crianas. O ch estava frio, mas,como o velho os encaravainsistentemente, Pedro e Festa tiveram

  • de beb-lo. Sente seu crebro melhorar? ele

    perguntou.O Segundo Sbio sentou-se mesa e

    tentou construir uma pirmide de cartasde baralho. O Terceiro Sbio chegoubem perto da parede e se ps a falarsozinho.

    Meia hora depois, Festa disse: Se vocs sabem exatamente onde o

    livro fica, por que ele est demorandotanto?

    Ele no sabe ler o Segundo Sbioexplicou.

    Normalmente, Pedro no questionavanada que um adulto lhe dissesse, mesmoque a informao lhe parecesse ridculaou totalmente mentirosa, porm, dessa

  • vez, no conseguiu ficar quieto. Bem, que tal se ele contasse

    Pedro comeou, mas logo percebeu queo Primeiro Sbio provavelmentetambm no sabia contar. No temproblema. Eu mesmo vou pegar o livro e correu para cima.

    Por que disse que Papai Noel noexiste? Festa perguntou assim quePedro saiu. Eu sei que ele no existe,mas Pedro ainda poderia acreditar nele.

    Bem, eu tambm acredito oTerceiro Sbio respondeu. Apenasfingi que no acreditava.

    Pedro desceu a escada, carregandoum livro grande.

    Vocs dois estavam errados eledisse aos velhos. O livro se chama

  • Aposto que voc queria saber o quefazer quando chegam sem o Livro. Eele no serve para nada.

    Tem certeza de que no se chama Oguia do idiota para aposto que vocqueria saber o que fazer quandochegam sem o Livro? o SegundoSbio perguntou.

    O que ele diz? Festa perguntou. E o que o velho estava fazendo l emcima? ela sussurrou para Pedro.

    Estava sentado no cho, chupando odedo ele respondeu. O livro intilporque no h nada escrito nele. Veja.

    O livro estava totalmente em branco,exceto pela pgina do ttulo.

    Trata-se de um trabalho emandamento o Terceiro Sbio explicou.

  • Ainda estou pesquisando. Elas tinham razo Pedro disse.

    Vocs so idiotas. Por que diabos sochamados de sbios?

    Temos um bom empresrio oTerceiro Sbio respondeu.

    As duas crianas se viraram epartiram, e Arquimedes seguiu-os com orabo empinado.

    Se descobrirem o que fazer, vocsvo nos contar? o Segundo Sbiogritou.

    Posso acrescentar segunda ediodo livro o Terceiro Sbio completou.

    Quem o Eremita? Pedroperguntou quando eles saram doSextante Chins.

    Ele um sbio de verdade Festa

  • respondeu. Meu pai calcula que ele apessoa mais velha do mundo. Se existealgum que sabe o que fazer, essealgum ele.

    Mas o velho disse que ele noexiste.

    Oh, ele disse isso provavelmenteporque tem cime do Eremita, que sbio mesmo Festa respondeu.

    E onde ele mora? Pedroperguntou.

    Esse o problema ela disse,apontando para o telhado. Ele mora nadcima terceira galeria. claro que eusabia que deveramos ter ido l de cara,mas era muito mais fcil vir at aqui.Por isso, decidi procurar os Trs Sbiosprimeiro, para o caso de o Eremita ter

  • lhes contado o que fazer quando algumchega sem o livro.

    Pedro fez uma expresso de quemno acreditava naquela hiptese.

    Bem, ele poderia ter contado Festa disse, enquanto se encaminhavam escada que ligava as galerias.

    O que estamos esperando? Vamosl! Pedro disse.

    No podemos subir alm do nonoandar. E ele mora no dcimo terceiro.

    Por que no? Porque perigoso Festa

    respondeu. O lugar habitado porpessoas ms e por monstros.

    Voc j viu algum? claro que no, mas sei que esto

    l. Meu pai me contou tudo sobre eles.

  • Alm disso, noite, ns ouvimosbarulhos assustadores. De vez emquando, coisas despencam das galerias.

    Que tipo de coisa? Cadveres Festa respondeu.

    Minha amiga me contou que um dia elaviu um brao. Ela disse que o brao caiuna escada de entrada da casa dela. Lem cima tambm h criaturas estranhas.

    Criaturas? Que espcie decriaturas? Pedro perguntou.

    Eu no sei. Nunca vi nenhuma Festa respondeu. Mas meu pai diz queele j viu. E que elas estavamestropiadas demais para seremidentificadas.

    Parece o tipo de coisa que osadultos dizem quando querem conseguir

  • alguma coisa das crianas Pedrodisse.

    Festa concordou, mas ainda pareciaassustada.

    No temos escolha, no ? Acho que no ela respondeu. Vai dar tudo certo ele disse.

    Somos dois, ficaremos bem.Na nona galeria, as crianas olharam

    para cima e verificaram que os livrospareciam velhos e malcuidados. Asjanelas estavam sujas; algumas,quebradas e lacradas com tbuas. Oslivros abandonados estavam com asportas arrombadas, e os que pareciamocupados tinham uma aparnciaaterrorizante. Pedro j tinha visto, nacidade, ruas nesse estado, ruas onde

  • gatos, ces e at mesmo pessoasreviravam o lixo em busca de comida.Porm, l fora, ele passava segurodentro de um carro. Enquanto subiam asescadas, Festa foi ficandoverdadeiramente apavorada. Ele tentouacalm-la, mas nada parecia animar amenina.

  • Chegaram escada que conduzia aodcimo andar. Havia ali um porto deferro com um aviso que dizia: Noentre. A corrente e o cadeado quemantinham o porto fechado tinham sidoarrebentados por uma fora descomunal.

  • Os elos de ao, mais grossos que umdedo, tinham sido esticados como sefossem feitos de massa de modelar.Pedro empurrou o porto e comeou asubir pelo lixo.

    Venha ele disse, tentando parecercorajoso. Est tudo bem.

    Eu sei Festa respondeu em voztrmula.

    medida que andavam sobre o lixoacumulado nos degraus, as crianassentiam o pnico aumentar, mas nohavia volta.

    O dcimo andar parecia quasedeserto. Alguma coisa correu peloentulho encostado ao p dos livros. Aolonge, um grupo de figuras estranhascircundava uma fogueira. Pedro e Festa

  • tentaram se manter nas sombras para noserem vistos, mas um cachorro queestava ao lado do fogo os farejou e saiulatindo em sua direo.

    Quem est a? uma das figurasgritou quando Pedro e Festa alcanarama escada para o dcimo primeiro andar.

    Ningum os seguiu. Olhando parabaixo, Pedro os viu reunidos no p daescada, mas ningum, nem mesmo ocachorro, ps um dedo sequer noprimeiro degrau.

    Quem eram eles? Pedroperguntou.

    Eu no sei Festa respondeu. Meu pai me disse que o lugar habitadopor criminosos e loucos, porqueningum ir incomod-los ali.

  • A grama macia havia sido substitudapor ervas silvestres e saras quearranhavam as pernas das crianas. Nohavia sinal de vida, embora oemaranhado de plantas escondessepedaos de mquinas enferrujadas eossos brilhantes. Os ossos estavam toescondidos que no dava para saber seeram ou no humanos, mas alguma coisaos tinha limpado. Nem Pedro nem Festaqueriam parar para descobrir.

    Parece no haver ningum vivo poraqui Pedro disse enquanto eles seencaminhavam para a escada seguinte.

    Ele falou cedo demais. O jantar disse uma voz. Mais

    uma presa fcil.Uma porta se abriu subitamente

  • diante dos dois, batendo na balaustradae bloqueando a passagem. Outra porta seabriu atrs deles. Pedro e Festa se virampresos entre dois livros cujas portasabertas revelavam apenas escurido.

    Uma raridade outra vozcomentou. Crianas. Do umarefeio excelente.

    Sim, sim, vamos com-las vivas respondeu a primeira voz.

    , vamos deix-las vivas e cortar oque precisamos todos os dias completou a segunda voz.

    Se tomarmos cuidado, elas poderodurar uma semana, antes de sucumbir dor.

    Primeiro tiramos a lngua, assimelas param de gritar.

  • Faz um tempo que no como umalngua a primeira voz disse. omelhor pedao.

    As mos tambm so boas respondeu a segunda. Basta colocaralcatro fervente nos tocos para evitar osangramento.

    Pedro e Festa se abraaram comfora. As vozes vinham do interior deum dos livros abertos, mas l dentroestava to escuro que eles noenxergavam nada.

    No conseguem nos ver, no ? aprimeira voz perguntou.

    No a segunda respondeu. Vero ainda menos quando comermosseus olhos.

    Os olhos tambm so gostosos. No

  • to bons quanto a lngua, pormmelhores que as mos.

    Mas no so mais gostosos que osmiolos, especialmente se forem sugadospela orelha.

    Ai, eu adoro miolos! Voc acha que ficamos mais

    inteligentes quando comemos miolos? Suponho que isso dependa da

    inteligncia do dono dos miolos. Nunca pensei nisso. Talvez a gente fique menos

    inteligente se o dono for muito burro. Nunca pensei nisso tambm. Voc

    um menino esperto a primeira vozdisse. Mame est orgulhosa de voc.Talvez fosse melhor examin-los antesde comer seus miolos, para ver se so

  • inteligentes ou burros. Boa ideia a segunda voz

    respondeu. Ei, crianas, o meninoprimeiro. Quanto dois vezes a raizquadrada de quatro?

    Oitenta e trs Pedro respondeu,imaginando que seria poupado se dessea resposta errada.

    Correto a segunda voz disse. No, senhor, est errado Festa

    disse, olhando de porta em porta. Eles no conseguem ver onde

    estamos, conseguem? a primeira vozperguntou.

    No. Vamos dar uma pista? No.

  • Quem vamos comer primeiro, omenino ou a menina?

    Um pedao de cada. Um no almoo,outro no jantar.

    Ns ns temos de ver o E-E-E-Eremita Festa gaguejou.

    Isso mesmo Pedro continuou. Se no chegarmos at ele, vocs tero p-p-p-problemas.

    Voc disse p-p-p-problemas? aprimeira voz perguntou. Ento, algumsabe que vocs esto aqui.

    claro que sim Festa respondeu. Minha m-m-m-me e meu p-p-p-pai.

    Sua m-m-m-me, ? Sim, e se no voltarmos at a hora

    do ch, eles viro atrs de ns. Ora, ora. Deixaram que viessem at

  • aqui sozinhos? a segunda voz disse. Que descuidados! Tenho trs respostaspara vocs.

    Pelo menos a primeira vozcompletou.

    Primeira: esto mentindo. Segunda:se no esto mentindo, como seus paisiro encontrar vocs? Terceira: se elesencontrarem, teremos ainda maiscomida.

    E quarta: vocs esto mentindo disse a primeira voz.

    Eu j disse isso. No disse.