Comparativismo Cultural Hoje

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    Comparativismo cultural hoje

    Edgar Czar Nolasco*

    resumo: O ensaio discute o papel e lugar do comparativismo cultural hoje, tendo como pano de fundo o que propem os Estudos Culturais. Para tanto, foram seminais para a discusso o que afirmam os crticos Hugo Achugar e Homi Bhabha. Do primeiro, nos detivemos somente no que o crtico uruguaio diz sobre o conceito de Weltliteratur, na medida em que rediscute o conceito goethiano, o qual serviu de parmetro para a conceitu-ao do que se entendeu por literatura comparada no ocidente. Em seu livro Planetas sem boca, o crtico prope uma reviso crtica da literatura comparada hoje, considerando a era da globalizao do presente. De O local da cultura, de Bhabha, nos valemos do que ele chama de comparativismo cultural. O crtico tambm parte da noo goethiana, mas para subverter tal noo, propondo, inclusive, uma nova forma de se pensar a literatura comparada. Por fim, o ensaio mostra que, apesar de as leituras de Achugar e de Bhabha divergirem entre elas, ambas contribuem sobremaneira para uma rediscusso crtica produtiva em torno do que ainda se entende por literatura comparada nos dias atuais.

    palavras-chave: comparativismo cultural; literatura compa-rada; crtica contempornea.

    abstract: This article discusses the todays cultural compara-tive place and role, having on background what the Cultural Studies propose. Therefore, Hugo Achugar and Homi Bhabhas proposes were very important to this discussion. Of this first one, we utilized only what Uruguayan reviewer says about Weltlite-ratur concept, in so far as discusses again the Goethes concept which was useful for the conceptualisation of what was unders-tood as comparative literature on west. On his book Planetas

    Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).

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    sem boca, the reviewer proposes a review of todays comparative literature, considering the globalization era of this present days. About O local da cultura, by Bhabha, we utilize what he calls cultural comparative. The review also uses the Goethes concept but to subvert this concept, considering, including, a new way of thinking the comparative literature. Finally, the article shows that although the Achugar and Bhabha reading were different between them, both contribute overly for a the productive review redicussion around of what we still understand about comparative literature on these days.

    keywords: cultural comparative; comparative literature; con-temporary review.

    Tantas e to profundas so as transformaes do quadro cultural por que passamos desde que Goe-the colocou em circulao o termo Weltliteratur, em janeiro de 1827, que necessrio periodicamente indagar se essa noo central desde o incio para os estudos de literatura comparada ainda ocupa neles uma posio semelhante.

    CARVALHAL. A Weltliteratur em questo. In: O prprio e o alheio, p. 88.

    do conhecimento de todos os comparatistas que a conceituao do que seja literatura comparada no mundo est diretamente atravessada pela noo do termo alemo Weltliteratur, criado por Goethe em 31 de janeiro de 1827. A noo foi traduzida como literatura mundial para se contrapor ideia de Nationaltliteratur, traduzida como literatura nacional.

    Do conceito de literatura mundial para o de lite-ratura universal, ou mesmo de universal, menos de um passo. Como o que me interessa, nesse primeiro momento, o que guarda a ideia de universal (se que ela ainda guarda alguma coisa importante), sempre em comparao a algo no universal, como se esta fosse a condio para se compreender ainda hoje as produes humanas, vou me deter, sobretudo, em dois crticos culturais contempor-

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    neos que, no mnimo, compreendem de modo diferente o que estava dizendo em 1827 o poeta romntico alemo Wolfgang Goethe.

    Refiro-me aos crticos Hugo Achugar (Uruguaio) e Homi K. Bhabha (Indo-britnico). Do primeiro, vou me valer to somente do captulo sintomaticamente intitulado Weltliteratur: ou cosmopolitismo, globalizao, literatura mundial e outras metforas problemticas, do livro Plane-tas sem boca: escritos efmeros sobre arte, cultura e literatura. Do outro crtico, refiro-me ao livro O local da cultura, especificamente parte da Introduo denominada de Locais da cultura.

    O crtico uruguaio comea seu captulo dizendo que o trabalho ali discutido deveria ser entendido como um balbucio terico, ou seja, uma categoria que, antes de ser pejorativa, pelo contrrio, pode ser considerada como uma forma de resistncia que tenta confrontar ou proble-matizar teorizaes originadas no Commonwealth e que se apresentam como universais (ACHUGAR, 2006, p. 64).

    Grifo a palavra universais porque, ao final do captulo, Achugar centra-se na pergunta: O que , ento, o uni-versal? (ACHUGAR, 2006, p. 78). Comentando a cena primordial da histria da literatura no ocidente no dilogo de Goethe em 1827, Achugar reconhece, ali, alguns ele-mentos dessa histria: cosmopolitismo versus exotismo ou extico, localismo versus universalismo, estranheza e familiaridade, assim como um movimento homogeneizador e inclusivo que, longe de distingui-las, integra as diferenas em um Todo qualificado como razoavelmente burgus (ACHUGAR, 2006, p. 66). Transcrevo, a seguir, a parte da cena (dilogo) que mais interessou ao crtico:

    Hoje, a literatura nacional no significa grande coisa; chegou o momento da literatura mundial, e todos devemos contribuir para apressar o advento dessa poca. No entanto, em nosso estudo do estrangeiro, devemos cuidar de no nos limitarmos a considerar uma s coisa como modelo. [...] Para satisfazer nossa necessidade, devemos, de algum modo, retroagir

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    aos gregos, em cujas obras se expressa a beleza humana. Devemos considerar o resto como puramente histrico, apropriando-nos, quando possvel, do que eles tiveram de bom (ACHUGAR, 2006, p. 67 Grifos do autor).

    Depois de dizer que foi a, pela primeira vez, que Goe-the formulou a noo de Weltliteratur, na verso/traduo usada por Achugar, como literatura mundial, e que, da a meses, em 15 de julho, Goethe volta a usar o termo, mas nesta ocasio traduzido como literatura cosmopo-lita, o crtico uruguaio conclui que o fato de a noo de Weltliteratur ter sido traduzida como mundial, universal e cosmopolita traz consigo alguns dos problemas presentes na atual discusso terica, tanto na academia do Primeiro Mundo quanto na da Amrica Latina (ACHUGAR, 2006, p. 67). Quero, aqui, apenas lembrar que o ensaio do crtico uruguaio de 2003 e seu livro publicado em Montevidu de 2004.

    Achugar discute a homogeneizao do mundo que Goethe realizou na passagem, alm de mostrar que a pas-sagem revela a concepo de universalidade do mundo do poeta, ambas implicadas na noo de literatura mundial. Lembra-nos Achugar que Goethe, ao formular, pela primei-ra vez, uma noo de literatura mundial, inclui tambm em tal noo uma espcie de imperativo esttico que tambm tico.

    De acordo com o autor de Planetas sem boca, o retorno aos gregos em busca da beleza humana no casual e reafirma a genealogia hegemnica da chamada cultura ocidental, que permanente e que se contrape ao resto. a partir desse sujeito do conhecimento criado por Goethe que ele se apropria do mundo outro, ou do mundo dos outros, nas palavras de Achugar.

    Noutra cena de seu texto, na qual mostra que Marx e Engels tambm mencionam o termo literatura mundial no Manifesto comunista, Achugar argumenta que a noo est ligada tanto ao estabelecimento de uma nova ordem mundial na qual o nacional pareceria ter comeado a

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    perder significado como ao desenvolvimento do mercado mundial (ACHUGAR, 2006, p. 71). Tendo por base o que postula Achugar, e considerando a cultura do dinheiro na qual estamos imerso neste sculo XXI, posso dizer que o termo literatura mundial nunca esteve to contextuali-zado e literalmente na moda como nos dias atuais.

    Mais adiante em seu texto, ao discutir o que propunha Franco Moretti (2000), de que as metforas rvores e ondas tentam resolver a oposio dualista de Goethe (literatura nacional x literatura mundial), o crtico uruguaio chega num dos pontos que mais nos interessam em seu captulo. Lembra-nos que Emily Apter mostra um problema que Moretti deixa sem soluo, e que, apesar de no se deter na anlise de Moretti, Apter considera e aponta diversos paradigmas:

    literatura global(Jameson; Masao Miyoshi), Cosmopo-litismo (Bruce Robbins; Timothy Bresinam), literatura mundial (Damrosch; Moretti), transnacionalismo literrio (Spivak), Estudos ps-coloniais e estudos diaspricos (Said; Bhabha; Lionnet; Chow). Ela esquece de mencionar o Cosmopolitismo Appadurai, Chakrabarty, Mignolo e cia (que, lamentavelmente, no tenho tempo de discutir neste momento), mas considera crticos como Lowe, Gip-ta, Pratt, Balobar, Robbins e muitos outros (ACHUGAR, 2006, p. 77).

    Na sequncia, Achugar parece endossar as proposi-es de Apter, para quem tais paradigmas, mesmo quando prometem um compromisso vital com tradies no ociden-tais, no oferecem solues metodolgicas ao problema pragmtico de como fazer crveis as comparaes entre diferentes lnguas e literaturas (ACHUGAR, 2006, p. 77). J que tais paradigmas no apresentam solues na opinio de Apter nem, muito menos, na de Achugar, fica entendido que deva haver um forte debate no mbito da teoria e da crtica literria, e no s em torno do Weltliteratur, mas tambm das implicaes polticas e culturais que esse ins-

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    trumento terico estabelece no debate contemporneo, em termos de presente globalizao (ACHUGAR, 2006, p. 77). Esse debate, nas palavras do crtico, est associado a questes de Literatura comparada, mas tambm vincula-do ao mais geral do universalismo versus particularismo.

    Sem concordar plenamente com Achugar, entendo que tais conceitos endossam a discusso em torno de uma possvel literatura geral, na medida em que conceitos como local, ps-colonial, diasprico, entre outros, discutem diferenas entre povos, nao, lnguas e, por conseguinte, manifestaes culturais especficas. Que o mundo, e por extenso, a cultura, global, parece ser um consenso deste sculo XXI; o que no parece, nem pode ser um consenso, seria a convico de que no se podem estudar as especificidades culturais de uma nao, lugar ou local, sem passar, necessariamente, pelo global. Na verdade, o modo de ler tais especificidades j traz em sua episteme a conscincia desse Universal Global, mas no pode ser mais a condio para se interpretar o trao caracterizador das especificidades culturais locais.

    Aps formular a pergunta sobre o que fazer com a narrativa contempornea na Amrica Latina, Achugar, na esteira de Volpi, Fuguet e outros presentes em seu ensaio, considera que parece que se deveria dissolver o nacional e tambm as categorias regionais. E, por fim, refere-se ao tema dos universais implcito na noo goethiana de Weltlitera-tur. Depois de perguntar se vlido discutir a categoria de literatura universal, ou mundial, ou cosmopolita, Achugar se pergunta: podemos e, sobretudo, devemos escapar da armadilha do dilema nacional versus global ou universal? Que sentido tem falar da universalidade de Homero, Go-ethe, Borges, Garca Mrquez, Clarice Lispector, Rigoberta Mench, Paulo Lins, Paul Auster ou Onetti? Ou, haver universalidades mais universais que outras? (ACHUGAR, 2006, p. 78).

    Em vista do exposto, Achugar constata que essa discusso deveria levar o crtico, ou mesmo obrig-lo, a repensar alguns temas; entre os mais bvios, destaca: os

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    das literaturas nacionais, das tradies locais, mas tam-bm o tema dos valores, do cnone e, sobretudo, o que se supe que devemos transmitir s geraes vindouras (ACHUGAR, 2006, p. 79). A outra questo a que isso obriga o crtico a repensar as preocupaes intelectuais e polticas, como as do prprio crtico uruguaio, trata-se do sujeito da narrao que construmos para poder contar a histria do que, at hoje, foi conhecido como Literatura e cultura latino-americana. Ou seja, ainda nas palavras do crtico, repensar a questo do sujeito do conhecimento em termos do nacional, do regional, do universal, dos despossudos, dos marginais, dos subalternos, do colonial. Nesse ponto, Achugar lembra Said, que toma a acepo do sujeito como uma mscara ou personae potica, de Mary Louse Pratt, que, ao discutir literatura comparada na poca do multiculturalismo, concebe o sujeito como um cidado global, descrevendo-o como gente multilngue ou multicultural que tem uma cidadania global, e de Ldia Santos, que v o sujeito como um sujeito cosmopolita, alm de lembrar o sujeito migrante, de Antonio Cornejo Polar (Cf. ACHUGAR, 2006, p. 79). Em vez de querer entender que Achugar se volta para uma possvel ideia de sujeito cosmopolita, quero pensar que ele est propondo a discusso desse sujeito. E mais: que repensar quaisquer dessas categorias, como a de sujeito subalterno, requer um posicionamento poltico-crtico prprio, bem como uma prtica comparatista que saiba ler ambos os sujeitos nela implicados na diferena.

    Hugo Achugar termina seu texto lembrando-nos da necessidade de discutir noes como literatura universal e cultura universal, entre as diferentes comunidades acad-micas, ou entre as diversas partes do mundo. A argumentao do crtico implica ainda descartar ou desconfiar da afirma-o de que o local relevante de um modo ou de uma maneira diferente; isto , que as tentativas de se escrever literatura universal, quer seja na Cidade do Mxico, Berlim, Filadlfia, Paris, Ancara, Montevidu ou Moambique, pode ser um projeto eurocntrico que necessita ser mais dis-

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    cutido (ACHUGAR, 2006, p. 80). Sem querer discordar do crtico, mas levando-se em conta o contexto cultural e poltico no qual nos encontramos, entendo que o projeto de se escrever literatura, ou de fazer qualquer arte universal, hoje, mais do que falido, posto que impossvel. Antes de mais nada, deveramos nos perguntar: universal em relao a quem, ou a qu? E, mesmo se soubssemos tal resposta, ser que de fato nos interessaria saber? Ou melhor: teria um valor a mais? Talvez tivesse um valor tico, esttico, poltico, cultural, que fosse bom para toda a humanidade, mas que, no fundo, no passaria de utpico, uma vez que nunca realizvel na face da Terra.

    Crtico cuidadoso que , Achugar conclui que esse assunto em torno do universal merece especial ateno porque h mais coisas entre o cu e a terra, Hugo, do que pode sonhar tua filosofia, como Hamlet disse a Horcio. Nem tanto ao cu, nem tanto Terra, quando o assunto for universal e particular, global e local, sobretudo nos dias atuais. S uma perspectiva no binria nos permitiria enfrentar tal dualismo sem grandes medos. Agora, uma coisa fato neste incio de sculo, e isso quem vem nos ensinando a prpria crtica nesta virada de sculo, a reflexo contempornea converge para o mapeamento dos localismos, como forma, talvez, de compreendermos melhor o universal do outro. Como j dissemos em Para onde devem voar os pssaros depois do ltimo cu?, o universal alhures. Que o crtico na contemporaneidade no esteja com os dois ps no presente e olhando para o passando achando que, assim, compreender melhor o prprio presente. Ledo engano crtico.

    De agora em diante, detenho-me na Introduo ao livro de Bhabha, intitulada Locais da cultura, como j se disse. Antes, porm, convm-nos dizer que a leitura de Achugar contrape-se de Bhabha, por ser esta uma leitu-ra eminentemente ps-colonial. No captulo 2 de Planetas sem boca, intitulado Lees, caadores e historiadores: a propsito das polticas da memria e do conhecimento, o crtico uruguaio deixa clara sua oposio. Da Introdu-

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    o de Bhabha, vamos chamar a ateno apenas para as passagens que, de alguma forma, ilustram nossa discusso aqui, que se d em torno do que Bhabha diz sobre a noo de literatura mundial de Goethe. Entendo que o modo como Bhabha l a noo de Weltliteratur, ou seja, de dentro de uma leitura assentada na perspectiva ps-colonial, j mostra uma diferena entre sua leitura e a de Achugar. Talvez aqui nos reste perguntar, com uma certa ironia, qual seria a perspectiva crtica que embasa a leitura do crtico uruguaio, j que, como todos sabemos, ele fala do lugar/local chamado Uruguai.

    pgina 23 de sua Introduo, Bhabha diz algo que marca a diferena de sua leitura:

    O presente no pode mais ser encarado simplesmente como uma ruptura ou um vnculo com o passado e o futuro, no mais uma presena sincrnica: nossa autopresena mais imediata, nossa imagem pblica, vem a ser revelada por suas descontinuidades, suas desigualdades, suas minorias. Diferentemente da mo morta da histria que conta as contas do tempo sequencial como um rosrio, buscando estabelecer conexes seriais, causais, confrontamo-nos agora com o que Walter Benjamin descreve como a exploso de um momento mondico desde o curso homogneo da histria, estabelecendo uma concepo do presente como o tempo do agora (BHABHA,1998, p. 23).

    Na sequncia, Bhabha diz que, cada vez mais, as culturas nacionais esto sendo produzidas a partir da pers-pectiva de minorias destitudas. O efeito mais significativo desse processo no a proliferao de histrias alternati-vas dos excludos, que produziriam, segundo alguns, uma anarquia pluralista (BHABHA, 1998, p. 25). Continua dizendo que a moeda corrente do comparativismo crtico ou do juzo esttico, no mais a soberania da cultura nacional concebida, como prope Benedict Anderson, como uma comunidade imaginada com razes em um tempo vazio homogneo da modernidade e progresso (BHABHA, 1998, p. 25).

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    Bhabha deixa claro que a crtica ps-colonial d teste-munho de pases, comunidades e lugares constitudos de outro modo que no a modernidade. Para ele, tais culturas de contramodernidade ps-colonial podem ser contingentes modernidade, descontnuas ou em desacordo com ela, resistentes a suas opressivas tecnologias assimilacionistas; porm, elas tambm pem em campo o hibridismo cultural de suas condies fronteirias para traduzir, e portanto reinscrever, o imaginrio social tanto da metrpole como da modernidade (Cf. BHABHA, p. 26). (Aqui vale a pena lembrar que o hibridismo de Bhabha contrape-se radicalmente ao de Canclini em Culturas hbridas, posto que este parece ler a hibridez de dentro do velho projeto moderno da Amrica Latina. Podemos, por extenso, pensar que a hibridez de Bhabha contrape-se tambm heterogeneidade proposta por Achugar. Mas no meu propsito discutir isso neste momento.)

    O que o autor de O local da cultura defende caminha na contramo de um dilogo com a tradio e, por ex-tenso, com um possvel cordo umbilical que se ligaria origem, isto , ao universal. Nesse sentido, vejamos o que diz Bhabha:

    O trabalho fronteirio da cultura exige um encontro com o novo que no seja parte do continuum de passado e presente. Ele cria uma ideia do novo como ato insurgente de traduo cultural. Essa arte no apenas retoma o passa-do como causa social ou precedente esttico; ela renova o passado, refigurando-o como um entre-lugar contingente, que inova e interrompe a atuao do presente. O passado-presente torna-se parte da necessidade, e no da nostalgia, de viver (BHABHA, 1998, p. 27).

    Ao se referir noo de literatura mundial de Go-ethe, Bhabha prope uma leitura no mnimo inovadora. Segundo ele, Goethe sugere que a possibilidade de uma literatura mundial surge da confuso cultural ocasionada por terrveis guerras e conflitos mtuos (BHABHA, 1998,

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    p. 32). At a, tudo bem. E Bhabha, no diferente de outros, como Achugar, constata a leitura eurocntrica de Goe-the. Mas, tendo por base a afirmao de Goethe, Bhabha prope uma inverso da literatura mundial: a natureza interna de toda a nao, assim como a de cada homem, funciona de forma inconsciente (BHABHA, 1998, p. 33). Quando isso ocorre, para Bhabha pode haver a ideia

    de que a literatura mundial possa ser uma categoria emer-gente prefigurativa, que se ocupa de uma forma de dissenso e alteridade cultural onde termos no consensuais de afilia-o podem ser estabelecidos com base no trauma histrico. O estudo da literatura mundial poderia ser o estudo do modo pelo qual as culturas se reconhecem atravs de suas projees de alteridade. Talvez possamos agora sugerir que histrias transnacionais de migrantes, colonizados ou refugiados polticos essas condies de fronteira e divisas possam ser o terreno da literatura mundial, em lugar da transmisso de tradies nacionais, antes o tema central da literatura mundial (BHABHA, 1998, p. 33).

    Veja-se que Bhabha subverte por completo a proposta da Literatura Comparada no Ocidente: de cosmopolita, digamos, passaria a subalterna. Para ele, o centro de tal estudo no seria nem a soberania de culturas nacionais nem o universalismo da cultura humana, mas um foco sobre aqueles deslocamentos sociais e culturais anmalos que Morrison e Gordimer representam em suas fices estranhas (BHABHA, 1998, p. 33). De meu ponto de vista, a esse nem o universalismo da cultura humana que a leitura de Achugar no consegue rechaar; muito pelo contrrio, toda sua leitura converge para o fortaleci-mento desse humanismo demasiado humano. Parece-me que a leitura defendida pelo crtico uruguaio refora aquele velho projeto de modernidade ideal para se compreender a Amrica Latina. Quero pensar que, enquanto a crtica endossa tal projeto, as produes culturais latino-ameri-canas viro sempre a reboque do que se fez em nome de uma tambm velha Civilizao Ocidental. O projeto da

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    modernidade parece ter naufragado em meio s diferenas, ou heterogeneidades, que caracterizam os povos, as lnguas e as culturas que constituem a Amrica Latina, com sua diversidade cultural mpar.

    Parodiando Homi Bhabha, que se vale de uma frase da escritora Morrison, diria que, tratando-se do modo crtico de ler a Amrica Latina e, por extenso, suas produes culturais, algo est fora de controle, mas no fora da possibili-dade de organizao (Cf. BHABHA, 1998, p. 34). Tal frase da escritora torna-se, segundo o crtico, uma declarao sobre a responsabilidade poltica do crtico: o crtico deve tentar apreender totalmente e assumir a responsabilidade pelos passados no ditos, no representados, que assom-bram o presente histrico (BHABHA, 1998, p. 34). Nessa direo, fao uma digresso crtica no tempo, mas com a inteno de avanar: se, antes, Roland Barthes falava em um compromisso com a forma, talvez influenciado por um alto modernismo, agora, e cada vez mais, podemos dizer que a responsabilidade do crtico deve passar pelo conte-do, ou seja, ler as produes culturais (culturas, povos, histrias) de dentro delas para fora, privilegiando, assim, o locus, ou contexto histrico-cultural, no qual elas foram geradas. As formas ainda podem at ser importadas, mas os contedos esto atravessados por seu bio e pelo bio do sujeito-produtor. De tudo, uma coisa j ficou clara, pelo menos no campo da crtica na contemporaneidade: a ne-cessidade de localizao, de locus, do sujeito crtico, como forma de no incorrer mais em leituras que poderiam soar em falso no tocante ao contexto cultural no qual o objeto, ou produo cultural, foi pensado. Se pararmos para pensar atentamente, veremos que tal localizao por parte da per-sona crtica tambm caminha na contracorrente daquele velho universalismo que, quase sempre, encobria feito um fantasma que retorna num contexto para o qual no pode ter nenhum valor. Devo lembrar aqui, na esteira do que postulam os estudos subalternos, que o crtico nunca estaria completamente habilitado para falar pelo outro, principalmente quando este outro se inscreve na cultura

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    sob a rubrica de minorias, uma vez que nunca ocuparia o lugar desse outro. Nessa direo, falar pelo outro implica reforar aquela ideia universalizante, ou pelo menos de um discurso universalizante que partiria daquela ideia do isso bom para todos. No por acaso, Bhabha nos diz que a relao entre

    pblico e privado, passado e presente, o psquico e o social desenvolvem uma intimidade intersticial. uma intimidade que questiona as divises binrias atravs das quais essas esferas da experincia social so frequentemente opostas espacialmente. Essas esferas da vida so ligadas atravs de uma temporalidade intervalar que toma a medida de habitar em casa, ao mesmo tempo em que produz uma imagem do mundo da histria. Este o momento de distncia esttica que d narrativa uma dupla face que, como o sujeito sul-africano de cor, representa um hibridismo, uma diferena interior, um sujeito que habita a borda de uma realidade intervalar (BHABHA, 1998, p. 35).

    Intimidade intersticial, temporalidade intervalar, hibri-dismo e realidade intervalar so palavras que nos ajudam a ler as manifestaes culturais, como o prprio texto literrio, por fora da perspectiva binria e moderna por excelncia que predominou e ainda predomina nas leituras feitas das produes latino-americanas. (Vale a pena lem-brar aqui que discursos crticos, hoje, que no sabem tratar devidamente de conceitos como local, lugar, regionalismos, locus cultural, zona de contato, esto caminhando para trs quando se trata da redefinio, inclusive conceitual, que estudos culturais (subalternos) tm proposto para uma nova Amrica Latina.)

    Todo o resto da Introduo ao livro de Bhabha d-se em torno da discusso do binarismo. Na esteira dos romances que analisa, bem como pelo que prope Levinas, Bhabha lembra-nos que a arte-mgica do romance con-temporneo reside em sua maneira de ver a interioridade a partir do exterior (BHABHA, 1998, p. 38). Ver o interior tendo por base o exterior, ou vendo o interior passando

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    pelo exterior, pode ser um alerta necessrio para desbara-tar aquela leitura binria que est calcada na relao fora e dentro, universal e particular, antes e depois etc, como se esta fosse a condio a qual estivssemos condenados a respeitar. A lio ensinada por Bhabha requer um mo-vimento de afastamento de um mundo concebido em termos binrios, requer um afastamento do poltico como prtica pedaggica, ideolgica, da poltica como necessidade vital do cotidiano a poltica como performatividade.

    Nesse sentido, podemos dizer que tambm a crtica contempornea, apesar de estar pensando aqui especifi-camente no comparativismo cultural hoje, no devesse passar, talvez, de uma performance, de natureza crtica e poltica ao mesmo tempo.

    Gostaria de fechar esta breve discusso sobre o papel e lugar do comparativismo cultural hoje, retomando uma pergunta que Denlson Lopes faz ao abrir seu ensaio Notas sobre crtica e paisagens transculturais: qual seria o papel do crtico de crtica de cultura e de arte diante dos desafios da globalizao que se intensificaram a partir dos anos 90, simbolicamente iniciados com a queda do Muro de Berlin e ampliados pelos eventos de 11 de setembro? (LOPES, 2010, p. 21). Quero entender que, ressalvadas as diferenas que possa haver, a mesma pergunta vale para o compara-tista cultural hoje. Desse modo, no resisto tentao de perguntar qual seria o papel do comparatista hoje depois da exausto da prpria disciplina de Literatura Comparada? A pergunta fundamenta-se quando constatamos que a disciplina teve de acompanhar as demais tendncias crti-cas que surgiram nesta virada de sculo, como os estudos culturais e os estudos subalternos, por exemplo. Nunca demais lembrar que a disciplina que, pelo menos no Brasil, sempre defendeu a abertura, como a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade, teve parte de seus estudos recuados diante dos estudos culturais. Constata-se tal afirmao em livros especficos de literatura comparada publicados no pas nas duas ltimas dcadas.

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    Corrobora nossa discusso o que Lopes afirma na se-quncia: defendo a importncia de um crtico que saiba transitar por fronteiras culturais e no seja necessariamente especialista em uma cultura nacional, nem procure resgatar esta categoria, nem se situa apenas a partir de um olhar abstrato, terico, filosfico, sem se relacionar com as obras artsticas, produtos culturais e prticas sociais (LOPES, 2010, p. 21). Entendemos que se encontra a uma possvel conceituao para o que podemos chamar de comparatista cultural hoje, uma vez que compete a essa figura ocupar um no lugar, ou entre-lugar (S. Santiago) por excelncia, situando-se numa relao intervalar entre os discursos e as disciplinas, que saiba cruzar as fronteiras de linguagens sem se voltar para um nacionalismo chinfrim. Assim, um comparatista cultural hoje seria aquela persona que dialo-ga, que tem gosto, opinio, que intervm, que faz apostas (LOPES, 2010, p. 21).

    Curiosamente, Denlson Lopes lana uma outra pergunta que, a seu modo, poderia ter desencadeado a discusso que propomos neste ensaio: para onde foi parar a fecundidade do comparatismo brasileiro nos estudos lite-rrios to produtivos dos anos 70 aos anos 90? (LOPES, 2001, p. 24). Grosso modo, entendemos que a sada pode estar na atitude do crtico comparatista cultural de no agir mais de forma dualista, disciplinar, supervalorizando como outrora ocorrera com a prpria literatura comparada. Podemos dizer que nos anos 1970 e 80 era at compre-ensvel o discurso crtico ser mais fechado numa visada disciplinar, como de fato ocorrera, mas que, depois de metade dos anos 1990, qualquer leitura crtica que no leve em conta aquela tarefa cumprida exausto pela prpria literatura comparada, no tocante quebra de paradigmas, por exemplo, est fadada ao esquecimento. Compete ao comparatista cultural buscar criar novos conceitos, novas formas de ver o mundo.

    Por fim, como reitera Lopes, os desafios so tantos e o tempo to pouco, muito h para se construir para alm de um universalismo ocidentocntrico mas que ao ocidente

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    no recusa, para alm da iluso de um provincianismo localista, nacionalista ou continental que torna a periferia um fetiche (LOPES, 2010, p. 25).

    Referncias

    ACHUGAR, Hugo. Planetas sem boca: escritos efmeros sobre arte, cultura e literatura. Trad. de Lyslei Nascimento. Belo Horizonte: UFMG, 2006.

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