2
52 TOQUE DE CONSCIÊNCIA “A minha consciência tem milhares de vozes E cada voz traz-me milhares de histórias E de cada história sou o vilão condenado.” Shakespeare, Rei Ricardo II, ato V. Você tem medo da morte? Não se deses- pere. Não porque seja uma das duas coisas inevi- táveis – outra são impostos –, e sim porque é essa mesma consciência que permite a alguns ouvir a nona de Beethoven e sentir a leveza alada ou perceber a música nos versos de seu poeta preferido. Consciência é uma nova maneira de observá-la e escutá-la. É isso que tenta fazer o neurocientista português António Damásio, hoje professor de Neu- rociência na University of Southern California (EUA). Um estudioso de neurobiologia do comportamento humano e investigador das áreas cerebrais respon- sáveis pela tomada de decisões e conduta, que em 2010 editou o a obra O Livro da Consciência. Antes, já tinha lançado O Erro de Descartes e E o Cérebro criou o Homem, entre outros livros. Em vez de olhar o comportamento e interpretá-lo, que é o usual, devemos olhar a mente e pesquisá-la. Tentar buscar técnicas científicas que permitam expli- cá-la. Tarefa hercúlea e, talvez, inalcançável, daí o termo mistério – aquilo que desafia. Ciência é assim, sem limites, movida a curiosidades. A ideia de consciência está ainda em seu estádio pri- mário, mas quem participou do primeiro campeonato jogando como craque foi o velho Freud – não reparem, é afetivo, pois passei boas horas lendo-o. Isto é, foi ele quem deu o primeiro passo em busca da natureza humana. Como todos nós, acertou e errou. Hoje, sob uma perspectiva – digamos – mais científica, mais errou do que acertou. Mas, convenhamos, é raro na paisagem intelectual encontrar alguém que não reco- comportamento nheça a existência do inconsciente ou que negue suas virtudes de grande escritor, capaz de influenciar toda a vida cultural, incluindo a invenção de uma linguagem. No plano cultural temos a sensação de que suas ideias são nossas ideias, tal a introjeção de seus con- ceitos. Mesmo quem nunca fez psicanálise ou não a conhece, usa, sem saber, a sua linguagem. Não é pouca coisa. Ao disseminar a introspecção, fez com que perdêssemos a inocência. Quem a mantém é alie- INFLUÊNCIAS E TRANSFERÊNCIAS...

comportamento TOQUE DE CONSCIÊNCIA

  • Upload
    others

  • View
    0

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: comportamento TOQUE DE CONSCIÊNCIA

52

TOQUE DE CONSCIÊNCIA

“A minha consciência tem milhares de vozesE cada voz traz-me milhares de históriasE de cada história sou o vilão condenado.”

Shakespeare, Rei Ricardo II, ato V.

Você tem medo da morte? Não se deses- pere. Não porque seja uma das duas coisas inevi-

táveis – outra são impostos –, e sim porque é essa

mesma consciência que permite a alguns ouvir a nona

de Beethoven e sentir a leveza alada ou perceber a

música nos versos de seu poeta preferido.

Consciência é uma nova maneira de observá-la

e escutá-la. É isso que tenta fazer o neurocientista

português António Damásio, hoje professor de Neu-

rociência na University of Southern California (EUA).

Um estudioso de neurobiologia do comportamento

humano e investigador das áreas cerebrais respon-

sáveis pela tomada de decisões e conduta, que em

2010 editou o a obra O Livro da Consciência. Antes, já

tinha lançado O Erro de Descartes e E o Cérebro criou

o Homem, entre outros livros.

Em vez de olhar o comportamento e interpretá-lo,

que é o usual, devemos olhar a mente e pesquisá-la.

Tentar buscar técnicas científicas que permitam expli-

cá-la. Tarefa hercúlea e, talvez, inalcançável, daí o

termo mistério – aquilo que desafia. Ciência é assim,

sem limites, movida a curiosidades.

A ideia de consciência está ainda em seu estádio pri-

mário, mas quem participou do primeiro campeonato

jogando como craque foi o velho Freud – não reparem,

é afetivo, pois passei boas horas lendo-o. Isto é, foi

ele quem deu o primeiro passo em busca da natureza

humana. Como todos nós, acertou e errou. Hoje, sob

uma perspectiva – digamos – mais científica, mais

errou do que acertou. Mas, convenhamos, é raro na

paisagem intelectual encontrar alguém que não reco-

comportamento

nheça a existência do inconsciente ou que negue suas

virtudes de grande escritor, capaz de influenciar toda a

vida cultural, incluindo a invenção de uma linguagem.

No plano cultural temos a sensação de que suas

ideias são nossas ideias, tal a introjeção de seus con-

ceitos. Mesmo quem nunca fez psicanálise ou não

a conhece, usa, sem saber, a sua linguagem. Não é

pouca coisa. Ao disseminar a introspecção, fez com

que perdêssemos a inocência. Quem a mantém é alie-

INFLUÊNCIAS E TRANSFERÊNCIAS...

Page 2: comportamento TOQUE DE CONSCIÊNCIA

53

música

Trilhas do Iátrico

TO SOMEONE(Último Romântico)

1. SOLITAIRE(Neil Sedaka, Phil Cody)Neil Sedaka

2. LET’S STAY TOGETHER(Al Green, Willie Mitchell, Al Jackson Jr.)Al Green

3. THE OLD FASHIONED WAY(Charles Aznavour)Charles Aznavour

4. I’LL BE THERE(Berry Gordy, Bob West, Willie Hutch, Hal Davis)Trijntje Oosterhuis e Keith John

5. INTO WHITE(Cat Stevens)Carly Simon

6. MY LOVE FOR YOU(A. Silver, S. Wayne)Johnny Mathis

7. WHAT KIND OF FOOL(Barry Gibb, Albhy Galuten)Barbra Streisand e Barry Gibb

8. I DON’T WANT TO TALK ABOUT IT(Danny Whitten)Rod Stewart

9. AND I LOVE YOU SO(Don McLean)Shirley Bassey

10. I STILL BELIEVE(Paul Michael Barry, Mark Taylor, Lionel B. Richie Jr)Lionel Richie

Confira as trilhas sonoras do Iátrico no Portal do CRM-PR.

nado, não sabe operar na realidade.

Como o contato humano reflexivo é quase inexis-

tente, em nossa cultura há a necessidade de inter-

mediários que façam esse papel. É o caso do filme

Fale com ela, de Almodóvar. Uma história de amor

impossível entre homens e mulheres, um manual

de decifração das mulheres. A impossibilidade do

encontro desejado, perene e permanente, que leva

a redescobertas, esperanças e renovação do amar.

Teoriza Damásio: “Temos duas consciências. Uma

é nuclear, a dos animais, simples, que respeita apenas

aqui e agora. A outra é alargada, confere um sentido

de passado e futuro; é, portanto, histórica e biográfica.

Permite, por exemplo, que façamos previsões, sem o

que não vivemos bem.

Nosso estádio de entendimento na matéria é inicial,

até primário. Nem mesmo sabemos quando começa

a consciência nuclear. Lá pelos 18 ou 24 meses deve

começar a consciência alargada, quando a memória da

criança começa a fazer conexões biográficas com os

pais e o meio.

Alguns primatas têm um arremedo de consci-

ência alargada, certo grau de memória conectiva.

Mas só o ser humano expandiu sua consciência e

se capacitou a ter linguagem, inteligência e criati-

vidade, que por sua parte expandem cada vez mais

a mesma consciência. É o mundo das ideias, tra-

duzidas em palavras, num carrossel ininterrupto

e assombroso.

Essa consciência propiciou aos homens algumas

de suas criações mais nobres: além da linguagem,

a música, a poesia, a ciência, a tecnologia e, princi-

palmente, o código de valores morais. Ou, no dizer de

Damásio: “A consciência é uma capacidade que per-

mite a aquisição de todas as capacidades.