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ANAIS DO III ENCONTRO CIENTÍFICO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Dança em Configurações Estéticas – Maio/2013
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COMPOSIÇÃO DE TRAJETÓRIAS COREOGRÁFICAS
TATIANA MELITELLO WASHIYA (ECA/USP)
RESUMO O presente texto visa apresentar algumas reflexões acerca do conceito de trajetórias coreográficas a partir das informações espaciais apreendidas pelo corpo nos espaços de passagem da cidade de São Paulo. Esta investigação é realizada sob a orientação da Profa. Dra Maria Helena Franco de Araujo Bastos, no programa de mestrado do Departamento de Artes Cênicas da Universidade de São Paulo. Com uma abordagem transdisciplinar, esta pesquisa de caráter teórico-prática é realizada pela reflexão sobre a relação entre corpo e ambiente urbano e pelo próprio corpo da autora a partir das experiências e percepções nos lugares de passagem da cidade. Investigamos a construção de espacialidades no processo de pesquisa da composição em dança por meio de trajetórias coreográficas, partindo do pressuposto de que toda movimentação traça um caminho pelo corpo, que está correlacionado aos registros corporais aprendidos na cidade. PALAVRAS-CHAVE: Trajetórias Coreográficas, Espaços de Passagem, Processo criativo da composição.
COMPOSITION OF CHOREOGRAPHIC TRAJECTORIES
ABSTRACT This paper goals to presents some reflections about the concept of trajectories choreographics, from spatial information learned by the body in the city of São Paulo. This research deals with the master’s research that the author investigates under the supervision of theacher Maria Helena Franco de Araujo Bastos in School of Communication and Art from University of São Paulo. This research theoretical-practical is developed through the reflection, the experiences and the perception about de relationship between body and urban environment. We research the consttruction of spatialiy in the process of composition using trajectories cohoreographics, considering that all movement traces a path through the body, which it is correlated to the learning body in the city. KEYWORDS: Trajectories Choreographic, Urban Enviroment, Composition.
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O presente texto visa apresentar algumas reflexões acerca da
correlação entre trajetórias coreográficas e as experiências nos espaços de
passagem da cidade de São Paulo. A partir da observação dos deslocamentos
realizados pelo corpo da autora em estações, interligações, plataformas e
transportes coletivos, são observadas dinâmicas corporais provocadas pelo
fenômeno coletivo de compartilhamento de espaços na cidade. Esta reflexão
colabora para a construção de trajetórias coreográficas no processo criativo da
composição em dança contemporânea.
A construção de espacialidades investigada no processo de pesquisa de
mestrado parte do pressuposto de que o ambiente mapeia uma organização
coerente de espaço no corpo. Estas informações elaboradas pelo corpo em
relação ao ambiente promovem registros corporais que se constituem por meio
de memórias, percepções e imagens que colaboram na elaboração de uma
coreografia.
Diferente de uma construção espacial em dança traçada por trajetórias
coreográficas que pressupõem o deslocamento de um corpo por meio de uma
sequência de passos traçados a priori em um plano bidimensional, abordamos
no processo criativo da composição trajetórias coreográficas traçadas por
dinâmicas de movimentação, exploradas pela prática da improvisação.
Segundo a pesquisadora em dança Cleide Martins (2009), que percebe
a dança por uma visão sistêmica, constituída por formas processuais de
organização pela seleção e reunião de informações que possibilitam uma
coreografia, explica que tanto as informações a priori determinadas por meio de
passos, quanto as escolhas feitas pelo corpo no momento presente da
realização do movimento por meio da improvisação, constituem o sistema da
dança, o que inclui a noção de coreografia. Martins nos informa que estes dois
modos de fazer em dança não são elementos independentes, mas sim
implicados um ao outro.
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Segundo Martins:
a organização do sistema dança inclui a coreografia que se constitui pela seleção e reunião de informações por meio de um planejamento discriminado, e a improvisação em dança se constitui pela habilidade de usar as informações do corpo em combinações que evitam a repetição e que possam emergir no momento em que se processa esta dança” [...] “Cabe, porém ressaltar que tanto a dança coreografada como a dança improvisada pertencem a um único sistema – o Sistema Dança. Podemos dizer, também, que um sistema sempre contém um pouco do outro, ou seja, no movimento não planejado existem aspectos que compõem a estrutura do movimento planejado e vice-versa (MARTINS, 2002: 40).
Ao observarmos as situações cotidianas em espaços de passagem na
cidade de São Paulo, percebemos que os deslocamentos não são realizados
de forma totalmente previsível ou controlada, existem graus de
imprevisibilidades nesta ação, mas também existem permanências no modo do
caminhar. Estes deslocamentos cotidianos que dependem do movimento do
outro para acontecer nos espaços de compartilhamento coletivo, são
provocados por constantes ajustes e reajustes corporais.
Estes acordos realizados em meio à grande concentração de pessoas
em espaços de passagem, tais como transportes coletivos, são percebidos por
pequenos deslocamentos produzidos por movimentos mínimos. Nestes trajetos
o corpo vai se ajustando em relação aos outros corpos, não por transições
rápidas ou bruscas, mas sim de modo contínuo e lento, com algumas pausas
quando na impossibilidade ou resistência do outro.
Estas percepções e observações de acordos coletivos realizados por
meio de movimentos como desviar do outro, oferecer passagem ao outro,
empurrar o outro e esperar o outro, são trabalhados pelo próprio corpo da
autora por meio de trajetórias traçadas pelo movimento espiral. A rememoração
das situações nestes lugares de passagem, a observação das possibilidades
articulares do corpo e a produção de imagens destas situações espaciais, são
trabalhadas em dinâmicas de movimentação investigadas por meio da
improvisação no processo criativo da composição.
Desta forma, o modo como abordamos trajetórias coreográficas na
presente pesquisa difere da configuração espacial que determina os percursos
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a serem seguidos pelas sequências de passos previamente traçados em
partituras ou delineados a partir da notação, mas sim utilizamos trajetórias
coreográficas como próprio disparo de criação na construção de uma dança.
Segundo Monteiro (1998), a criação de uma coreografia se baseava na
escrita de passos sobre percursos traçados em partituras. O caminho a ser
percorrido, denominado por Feuillet no início do ano de 1700, se baseava “à
linha sobre a qual se dança” (MONTEIRO, 1998: 340). Na corte de Luiz XIV, o
coreógrafo francês Raoul-Auger Feuillet publica em 1700 a obra Choréographie
ou l’Arte de Décrire la Danse par Caractères Figures et Signes Démonstratifs,
em que aparece pela primeira vez o termo coreografia e o primeiro sistema de
notação em dança. A autora Marianna Monteiro explica no seu livro Noverre
Cartas sobre a Dança que “Essa obra expõe os princípios da notação
coreográfica, que seria amplamente utilizada durante a primeira metade do
século XVIII.” (MONTEIRO, 1998: 340).
Segundo Monteiro:
Thoinot Arbeau, cônego de Langres, foi o primeiro a destacar-se pelo tratado que publicou em 1588, que ele intitulou Orchéosographie. Escrevia acima de cada nota da música os movimentos e os passos de dança que lhe pareciam convenientes. Beauchamps, a seguir, deu uma forma nova à coreografia, aperfeiçoando o engenhoso esboço concebido por Thoinot Arbeau; encontrou meios de escrever os passos por intermédio de signos aos quais atribuía significações e valores diversos, e acabou sendo declarado o inventor dessa arte, por decisão do Parlamento. Feuillet ligou-se intensamente a ela e também nos deixou algumas obras sobre esse assunto (MONTEIRO,1998: 339).
Para o curador e professor associado do Departamento de Performance
da Universidade de Nova York André Lepecki (2010), a coreografia que se
embasa pela execução de uma dança criada de antemão por meio de um
desenho diagramático, pressupõe a transposição do plano de composição da
folha de papel em branco para o chão de uma sala de dança. Segundo Lepecki
esta transposição por uma coreografia e sistema de notação que surge “a
priori” por uma formatação gráfica, realizada em um plano bidimensional (folha
de papel), implica na percepção de um “espaço branco, neutro, chato e livre de
rachaduras”, ou seja, um espaço que perde sua historicidade. Para Lepecki, no
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método de Feuillet, o “contato com mundo é reduzido a um ponto geométrico e
cuja trajetória desenha uma linha de deslocamento no plano folha/chão”.
(LEPECKI, 2010: 14).
Segundo Lepecki:
no plano mais aplainado, tocos de corpos que foram negligentemente enterrados, descartados, esquecidos pela história e seus algozes brotam do chão emperrando nossos passos, provocando desequilíbrios, quedas, paragens ou movimentos cautelosos, ou, então, gerando uma necessidade de nos movermos a uma velocidade alucinante, ou em permanente zigue-zague, porém atenta e cuidadosamente (LEPECKI, 2010: 15).
Ao invés de abordarmos trajetória como “Caminho percorrido por um
corpo” (RODITI, 2005: 226) descrito pelo Dicionário de Física do Instituto
Antônio Houaiss, que pressupõe o deslocamento de um corpo de um ponto “A”
para outro “B” no espaço, abordamos trajetória como caminho percorrido pelo
corpo.
Com a compreensão de que toda movimentação traça um caminho pelo
corpo, abordamos trajetórias coreográficas como fluxos condutores de
memórias, informações e imagens que transitam pelo corpo. Estes fluxos
condutores de informações agenciados pelo corpo ao longo do tempo em
relação ao seu ambiente de existência possibilitam registros corporais. A
compreensão de que trajetórias coreográficas traçam caminhos do movimento
que estão diretamente relacionados com os registros das experiências no
ambiente é promovida na pesquisa de mestrado pelas reflexões propostas por
pesquisadores de diferentes campos do conhecimento.
Ao considerarmos o corpo como extensão do ambiente em que habita,
entendemos que os cruzamentos destas informações que percorrem o corpo
que dança estão vinculadas às situações vivenciadas cotidianamente no
ambiente. Ao contrário do entendimento de que as informações externas são
“recebidas” pelo corpo, compreendemos que estas são constantemente
elaboradas pelo corpo através da troca com o ambiente. Compreendemos que
as informações internas e externas se processam por cambialidades mútuas
entre corpo e ambiente.
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A teoria Corpomídia concebida pelas professoras do Departamento de
Linguagens do Corpo da PUC/SP Helena Katz e Christine Greiner (2005),
colabora neste entendimento de corpo. Segundo as autoras o corpo é “um
processo co-evolutivo de trocas com o ambiente”. Katz e Greiner explicam que:
As relações entre o corpo e o ambiente se dão por processos co-evolutivos que produzem uma rede de pré-disposições perceptuais, motoras, de aprendizado e emocionais. Embora corpo e ambiente estejam envolvidos em fluxos permanentes de informação, há uma taxa de preservação que garante a unidade e a sobrevivência dos organismos e de cada ser vivo em meio à transformação constante que caracteriza os sistemas vivos. [...] O corpo não é um lugar onde as informações que vêm do mundo são processadas para serem depois devolvidas ao mundo. [...] O corpo é o resultado desses cruzamentos, e não um lugar onde as informações são apenas abrigadas. É com esta noção de mídia de si mesmo que o corpomídia lida, e não com a idéia de mídia pensada como veículo de transmissão.” (KATZ e GREINER, 2005: 130-131).
Abordamos no processo criativo em dança uma construção espacial
composta por trajetórias coreográficas processadas pelo registro da cidade no
corpo. O conceito de “Corpografia Urbana” concebido pelas professoras do
Programa de Pós-Graduação em Dança da UFBA Fabiana Dultra Britto e Paola
Berenstein Jacques (2010), possibilita “compreender as configurações urbanas
como memórias espacializadas nos corpos que as experimentam” (BRITTO e
BERENSTEIN, 2010: 15).
Segundo Britto e Berenstein, a corpografia urbana, se baseia na
hipótese de que “a experiência urbana inscreve-se, sob diversos graus de
estabilidade, no próprio corpo daquele que a experimenta” (BRITTO e
BERENSTEIN, 2010: 14).
As autoras explicam que:
A cidade é percebida pelo corpo como um conjunto de condições interativas e o corpo expressa a síntese dessa interação configurando uma corpografia urbana: uma espécie de cartografia corporal, em que não se distinguem o objeto cartografado e sua representação, tendo em vista o caráter contínuo e recíproco da dinâmica que os constitui. Uma ideia baseada na hipótese de que a experiência urbana inscreve-se, sob diversos graus de estabilidade, no próprio corpo daquele que a experimenta, e simultaneamente também configura sua corporalidade, mesmo que involuntariamente (BRITTTO e JACQUES, 2010: 14).
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As autoras afirmam ainda que:
As corpografias formulam-se como resultantes da experiência espaço-temporal que o corpo processa, relacionando-se com tudo o que faz parte do seu ambiente de existência: outros corpos, objetos, ideias, lugares, situações, enfim; e a cidade pode ser entendida como um conjunto de condições para essa dinâmica ocorrer. O ambiente (urbano inclusive) não é para o corpo meramente um espaço físico disponível para ser ocupado, mas um campo de processos que, instaurado pela própria ação interativa dos seus integrantes, produz configurações de corporalidade e ambiência (BRITO e BERENSTEIN, 2010: 14).
Esta cartografia corporal provocada pela experiência de espacialidade
na cidade, configurada pelas memórias corporais e referências informativas do
ambiente abordadas por Britto e Berenstein, colaboram para a construção de
espaços no processo criativo.
Abordamos na pesquisa uma compreensão de espaço que é
cotidianamente experimentada pelo corpo nos espaços de passagem em
transportes coletivos, observados em períodos de grande movimento. O
antropólogo Marc Augé (1994), observa estes lugares, onde “são criadas
instalações para a circulação acelerada de pessoas e bens de consumo”, como
por exemplo, grandes centros comerciais, vias expressas, aeroportos e trevos
rodoviários, utilizando o conceito de Não Lugares. Para o autor, a organização
da circulação nos Não Lugares implica na continuidade da manutenção de uma
sociedade industrial voltada à subordinação do corpo para o crescimento da
produção.
O fluxo de circulação dos corpos que acontece nos lugares de
passagem, ditos Não Lugares por Augé, se encaixa na investigação do
conceito da presente pesquisa, que observa determinadas dinâmicas do
movimento do corpo promovidas nos lugares de passagem como ônibus, trens
e metrôs.
Ao compreendermos que o desdobramento de um movimento produzido
pelo corpo gera trajetórias, a presente pesquisa traça correlações espaciais
entre o fluxo percebido no ambiente urbano e o fluxo do movimento no corpo.
O fluxo deste ambiente esta correlacionado às negociações corporais
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percebidas em horários de grande pico de tráfego cheio em partes do dia,
nestes lugares de passagem da cidade de São Paulo.
Ao relacionarmos uma organização espacial percebida nos espaços de
passagem com a construção de trajetórias coreográficas no processo criativo
da composição, colabora à presente pesquisa o conceito de Coreografia Social
empregada pelo pesquisador Andrew Hewitt (2005). O autor emprega o termo
coreografia social para denotar a tradição do pensamento sobre a ordem
social, este termo derivado do campo da estética aborda a incorporação desta
ordem no nível do corpo.
Hewitt explica que a forma como operamos no ambiente configura uma
“linguagem de expressão da experiência social”. Isto é, o sistema social é
incorporado no nível do corpo. Segundo o autor, esta ordem social é derivada
de situações econômicas e políticas, que interferem diretamente na dinâmica
de trabalho da arte na medida em que estão vinculadas ao sistema social de
produção.
Hewitt afirma que:
Eu uso o termo coreografia social para denotar a tradição do pensamento sobre a ordem social, este termo derivado do campo da estética aborda a incorporação desta ordem no nível do corpo. Na sua forma mais explícita, esta tradição é observada pela dinâmica coreográfica e aplica formas do campo social e da esfera política (HEWITT, 2005: 3).
Compreendemos a coreografia social por meio de determinadas “regras”
sociais observadas em espaços coletivos, como, por exemplo, em transportes
coletivos. Nestes, por exemplo, raramente alguém coloca o pé no banco que
outra pessoa irá se sentar. Nestes espaços de passagem também observamos
modos de se locomover por pequenos movimentos, onde o corpo precisa
constantemente se rearranjar no espaço numa dinâmica de mobilidade
reduzida.
Com estas observações abordamos no processo criativo da composição
em dança construções de trajetórias coreográficas através de segmentações
de movimentos mínimos. A atenção ao corpo em deslocamento em meio à
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grande concentração de pessoas que tentam ocupar um espaço é relacionado
na pesquisa por meio de “esquadrinhamentos do corpo”. Este termo é
concebido pelo filósofo Michel Foucault (1987) que aborda a técnica
desenvolvida na modernidade para criar corpos dóceis e úteis utilizando o
conceito de “disciplinas”, que se configura pela tática disciplinar visando o
controle minucioso de poder sobre o singular e o múltiplo.
Segundo Foucault:
A unidade – regimento, batalhão, seção, mais tarde “divisão – torna-se uma espécie de máquina de peças múltiplas que se deslocam em relação umas às outras para chegar a uma configuração e obter um resultado específico. As razões dessa mudança? Algumas são econômicas: tornar útil cada indivíduo [...] Daí a necessidade encontrar uma prática calculada das localizações individuais e coletivas, dos deslocamentos de grupos ou de elementos isolados, das mudanças de posição, de passagem de uma disposição a outra; enfim, de inventar uma maquinaria cujo princípio não seja mais a massa móvel ou imóvel, mas uma geometria de segmentos divisíveis cuja unidade de base é o soldado móvel com seu fuzil; e, acima do próprio soldado, os gestos mínimos, os tempos elementares de ação, os fragmentos de espaços ocupados ou percorridos (FOUCAULT, 1987; 138).
A realização de gestos mínimos para percorrer e ocupar um espaço em
meio à grande quantidade de pessoas, é também provocado pela percepção
dos lugares de passagem como um espaço útil, ou seja, voltado para o fluxo da
circulação que torna possível a produção. Segundo o geógrafo e sociólogo
Milton Santos, “os fluxos se tornam mais importantes ainda para a explicação
de uma determinada situação” (2008;.268).
Santos (2008) aborda o conceito de “espaço urbano” como um conjunto
de sistemas de objetos e de ações, constituído pelo “fator de evolução social”.
O autor explica que o fluxo da circulação possibilita à produção econômica de
um “subespaço” do espaço urbano.
Para Santos:
Num mesmo subespaço, há uma superposição de redes, que inclui redes principais e redes afluentes ou tributárias, constelações de pontos e traçados de linhas. Levando em conta seu aproveitamento social, registram-se desigualdades no uso e é diverso o papel dos agentes no processo de controle e de regulação do seu funcionamento.
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Como, no processo global da produção, a circulação prevalece sobre a produção propriamente dita, os fluxos se tornam mais importantes ainda para a explicação de uma determinada situação (Santos, 2008: 268).
A compreensão de que estas informações incorporadas cotidianamente
no ambiente urbano, estão diretamente implicadas na construção de uma
coreografia e o entendimento de que as margens entre o dentro e o fora do
corpo estão constantemente sendo intercambiadas por processos co-evolutivos
pelas informações que se apresentam no espaço, bem como o trânsito entre
estas no singular e no coletivo, colaboram para a construção das trajetórias
coreográficas abordadas na pesquisa.
Para Katz (2005), “já há alguns anos o “onde” deixou de ser apenas o
lugar em que o artista se apresenta, transformando-se em um parceiro ativo
dos produtos cênicos. Ao invés de lugar, o onde tornou-se uma espécie de
ambiente contextual (KATZ e GREINER, 2005: 130). A professora Christine
Greiner (2005) explica que as trocas entre as elaborações e agenciamentos
singulares realizados por cada corpo em relação às informações presentes no
ambiente são realizadas por representações cognitivas.
Segundo Greiner:
As representações dispositivas com base nas quais o movimento ocorre estão localizadas nos córtices pré-motores, gânglios basais e córtices límbicos. Existem dados que indicam que elas ativam tanto os movimentos do corpo como as imagens internas do movimento do corpo (GREINER, 2005: 72).
Além da dança também se processar no espaço pelas informações
internas, mapeadas “pelas mudanças que ocorreram no nosso organismo”
(GREINER, 2005: 73), a pesquisadora e crítica de dança Helena Katz alerta
ainda que “não se pode reduzir a dança a deslocamentos espaciais” (KATZ,
2007: 197).
Segundo Katz (2007), a dança pode acontecer mesmo sem
necessariamente haver um deslocamento de um corpo de um ponto a outro no
espaço. Para Katz, a construção espacial se apresenta em co-dependência
com o movimento realizado.
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A autora explica que:
não se pode reduzir a dança a deslocamentos espaciais, porque eles podem simplesmente não acontecer e, mesmo assim, aquele evento continuar a ser um evento de dança. Existem muitas danças em que a espacialidade é explorada de modos muito inusitados, sem pernas nem braços riscando o ar (KATZ, 2007:197).
Assim, estas reflexões propostas por estes pesquisadores, bem como as
experiências nos espaços de passagem da cidade de São Paulo, colaboram na
readequação do conceito de trajetórias coreográficas investigada no processo
criativo da composição em dança pela autora. A linguagem aprendida pelo
corpo na cidade traz reflexões sobre as regras percebidas e aprendidas
coletivamente nestes ambientes de passagem. Esta relação entre corpo e
ambiente promovida por estes diferentes pesquisadores possibilitam a
construção de trajetórias coreográficas. Estas são trabalhadas no processo da
pesquisa por meio de registros corporais, memórias, percepções e
informações. A observação e percepção do corpo nos deslocamentos pelos
lugares de passagem da cidade, as experiências no fazer em dança, bem
como as reflexões promovidas por pesquisadores de diferentes campos do
conhecimento, possibilitam a investigação de trajetórias coreográficas no
processo de pesquisa teórico-prático.
Com estas configurações de espaço no corpo, investigamos até que
ponto as informações espaciais aprendidas pelo corpo na cidade interferem na
construção de trajetórias coreográficas. E se as informações do ambiente são
negociadas pelo corpo constantemente, não poderíamos dizer que trajetórias
coreográficas também podem ser traçadas pelo imprevisível, além das
trajetórias coreográficas realizadas por um conjunto de passos traçados a
priori?
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Referências
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HEWITT, Andrew. Social Choreography: ideology as performance in dance and everyday movement. Durham and London: Duke University Press, 2005.
KATZ, Helena. Corpo, Design e Evolução. In: Edith Derdyk (org) Disegno, Desenho, Desígnio. São Paulo: Senac, 2007, p.195-205.
LEPECKI, André. Planos de Composição. In: GREINER, Christine; SANTO, Cristina Espírito; SOBRAL, Sonia. Cartografia: Rumos Itaú Cultural Dança Criações e Conexões. São Paulo: Itaú Cultural, 2010, p.13-20.
______________. Coreopolítica e Coreopolícia. In: ILHA v.13, nº1, UFSC, 2011, p.41-60.
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RODITI, Itzhak, Dicionário de Física. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.
SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço. São Paulo: Edusp, 2008.
VIRILIO, Paul. O espaço Crítico. São Paulo: Editora 34, 1993.
Tatiana Melitello Coreógrafa e bailarina. Bacharel em Comunicação Social. Entre os lugares que estudou dança destaca-se o Estudio Nova Dança e o Henny Jurriens Stichting Foundation (Amsterdã). Formou-se em Pilates pelo CGPA. Entre os solos de dança que concebeu e interpretou estão “A troco” selecionado pelo CCSP/Feminino na Dança em 2005. “Alvéolos” (Proac/Criação 2008) e “Temporários Escapes” (contemplado pelo Proac/Criação 2009). E-mail: [email protected]