Compreendendo a complexidade socioespacial contemporânea

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Compreendendo a complexidade socioespacial contemporneaO territrio como categoria de dilogo interdisciplinar

Maria Teresa Franco Ribeiro Carlos Roberto Sanchez Milani (Orgs.)

SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros RIBEIRO, MTF., and MILANI, CRS., orgs. Compreendendo a complexidade socioespacial contempornea: o territrio como categoria de dilogo interdisciplinar [online]. Salvador: EDUFBA, 2009. 312 p. ISBN 978-85-232-0560-7. Available from SciELO Books .

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COMPREENDENDO A COMPLEXIDADE SOCIOESPACIAL CONTEMPORNEAO territrio como categoria de dilogo interdisciplinar

Universidade Federal da BahiaReitor Naomar Monteiro de Almeida FilhoVice-Reitor

Francisco Jos Gomes Mesquita

Editora da Universidade Federal da BahiaDiretora Flvia M. Garcia Rosa Conselho Editorial ngelo Szaniecki Perret Serpa Caiuby Alves da Costa Charbel Nin El-Hani Dante Eustachio Lucchesi Ramacciotti Jos Teixeira Cavalcante Filho Maria do Carmo Soares Freitas Suplentes Alberto Brum Novaes Antnio Fernando Guerreiro de Freitas Armindo Jorge de Carvalho Bio Evelina de Carvalho S Hoisel Cleise Furtado Mendes Maria Vidal de Negreiros Camargo

Maria Teresa Franco Ribeiro Carlos Roberto Sanchez Milani(Organizadores)

COMPREENDENDO A COMPLEXIDADE SOCIOESPACIAL CONTEMPORNEAO territrio como categoria de dilogo interdisciplinar

Salvador, 2009 EDUFBA

Copyright 2009 by AutoresDireitos dessa edio cedidos EDUFBA. Feito o depsito legal. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida, sejam quais forem os meios empregados, a no ser com a permisso escrita do autor e das editoras, conforme a Lei n 9610, de 19 de fevereiro de 1998.

Capa, Projeto grfico e formatao Heloisa Oliveira de S. e Castro Ilustrao da Capa Anna Cunha Reviso Lcio Farias

Compreendendo a complexidade socioespacial contempornea : o territrio como categoria de dilogo interdisciplinar / Maria Teresa Franco Ribeiro, Carlos Roberto Sanchez Milani (Organizadores). - Salvador : EDUFBA, 2009. 312 p. ISBN : 978-85-232-0560-7 1. Territorialidade humana. 2. Geografia humana. 3. Geografia poltica. 4. Economia urbana. 5. Economia poltica. 6. Ecologia humana. I. Ribeiro, Maria Teresa Franco. II. Milani, Carlos Roberto Sanchez.

CDD - 304.2

EDUFBA Rua Baro de Jeremoabo, s/n Campus de Ondina 40170-115 Salvador Bahia - Brasil Tel/Fax: (71) 3283-6160/6164/6777 [email protected] www.edufba.ufba.br

AgrAdecimentosEste trabalho fruto de um esforo coletivo e do compartilhamento de inquietaes em torno das relaes e tenses entre desenvolvimento, territrio e interdisciplinaridade. Assim, existem algumas pessoas e instituies que a tornaram possvel de forma mais especfica, e gostaramos de registrar aqui os nossos agradecimentos. A todos da Escola de Administrao da UFBA, funcionrios, estudantes, professores e principalmente orientandos, pelo convvio acadmico e pelos momentos de partilha intelectual que animam e renovam as nossas reflexes. FAPESB e ao CNPq pela concesso de bolsa de estudos de psdoutorado e produtividade de pesquisa. Ao IHEAL e ao CREDAL, representados principalmente pela Professora Martine Droulers. A todos os autores que aqui contribuem, agradecemos a confiana e a oportunidade de convvio acadmico e pessoal. Um agradecimento especial ao Professor Georges Benko que, alm da abertura para o dilogo, disponibilizou-nos vrios de seus trabalhos e arquivos. A Cssio Eduardo Viana Hissa, pela cumplicidade na construo de saberes. A Aralina Pereira Madalena, pela responsabilidade e esmero com que cuidou das tradues dos artigos em francs. A Miguel Rivera-Castro, pela traduo do texto em espanhol. A Fernanda Mouro, pelo cuidado da reviso. A Srgio Antnio Silva, pelo projeto grfico. A Adriana Melo, pela traduo simblica e potica da proposta. A Anna Cunha, pela sutileza na ilustrao dos movimentos territoriais. Aos amigos que sempre nos sustentam e ajudam a dar novos sentidos caminhada. A Rosrio von Flash, por ajudar a compreender que o campo da sabedoria mais extenso e profcuo que os territrios dos saberes, e que estes so tambm espaos preciosos de construo, transformao e abertura para novas fronteiras, novos saberes e o autoconhecimento. Maria Teresa Franco Ribeiro Carlos Roberto Sanchez Milani

Vida, e guerra, o que : esses tontos movimentos, s o contrrio do que assim no seja. Mas, para mim, o que vale o que est por baixo ou por cima o que parece longe e est perto, ou o que est perto e parece longe. Joo Guimares Rosa, Grande serto: veredas

PrefcioNo nada fcil prefaciar uma coletnea de artigos. Mas, diante de um tema que me to caro, o do territrio, aceitei com satisfao o desafio. E qual no foi minha surpresa ao me deparar com a qualidade do conjunto do trabalho que, ao contrrio de outras coletneas, foge organizao costumeira e efetivamente possui vrios elos explcitos entre a maioria dos artigos, alm de se preocupar com uma introduo e uma concluso, redigidas pelos organizadores. Para alm de uma coletnea de artigos aqui denominados, por isso mesmo, captulos trata-se, como enfatiza Maria Teresa Ribeiro na introduo, da produo de um campo de reflexes a partir de questes ligadas especificamente ao conceito de territrio e s contribuies possveis na compreenso dos processos de desenvolvimento, reflexes estas construdas deliberadamente numa perspectiva multi ou transdisciplinar. Multi ou transdisciplinar porque esta uma caracterstica inerente no apenas a um conceito como o de territrio, mas tambm a outras discusses recorrentes ao longo dos textos, como a de desenvolvimento (presente j no ttulo dos artigos de Alain Musset e de Ribeiro e Loiola), a de escala (mais explcita em Carlos Brando), a de cincia regional (enfatizada sobretudo por George Benko), a de relaes internacionais (mais explcita na concluso de Carlos Milani) e a de regionalizao (paralela questo das escalas, da economia regional e dos arqutipos espaciais do subdesenvolvimento [Musset]). O reconhecimento da riqueza dessa forma de abordagem a perspectiva multi ou transdisciplinar (ou at mesmo metadisciplinar, como diria Milton Santos, citado por mais de um autor na coletnea) sugere uma leitura do fenmeno scio-espacial, indicada explicitamente no ttulo do livro, atravs de sua complexidade expresso que, nesta obra, adquire conotao ampla, no se restringindo a uma posio epistemolgica de filiao especfica, como a matriz moriniana. Da a reunio de especialistas de diversas reas como a Economia, a Geografia, a Sociologia, a Arquitetura e a Cincia Poltica, e que traduz o territrio

em mltiplas dimenses (do poltico ao econmico e ao cultural) e escalas (da mundial [Hissa], local [Solins], inter-nacional [Milani], glocal [Benko] e estadual [Kraychete]). dispensvel falar da relevncia das temticas territorial e do desenvolvimento nos nossos dias, nas mais diversas reas das cincias sociais. George Benko, por exemplo, lembra que, longe do fim dos territrios, a macroeconomia se abre cada vez mais para o espao e o territrio. Abordagens profundamente renovadas ou releituras mais simples, muito se tem escrito sobre elas. Ribeiro, na introduo, aponta que a gesto territorial do desenvolvimento surge como um foco constante nas polticas governamentais contemporneas. A propsito, lembro de um debate de que participei, h alguns anos, sobre o conceito de territrio que deveria pautar a nova poltica de ordenamento territorial no Ministrio da Integrao Nacional. Delineavamse claramente, ali, duas posies uma, que eu denomino de abordagem mais funcional do territrio, enaltecendo sobretudo suas bases polticas e/ou poltico-econmicas, e outra mais integradora, que inclui a dimenso simblico-identitria. Manifestava-se a um dos principais dilemas que percorre o debate sobre o territrio e a territorialidade humana: seria o territrio uma entidade eminentemente vinculada a processos de dominao poltico-econmica ou estaria tambm impregnado de simbolismos, de valores culturais capazes de sugerir outras formas de apropriao do espao (ou seja, tambm, de territorializao)? No pretendo realizar aqui uma simples re-apresentao ou comentrio geral do contedo discutido pelos autores. Farei, como proposto pelos prprios organizadores, uma espcie de dilogo a partir das consideraes apresentadas. No sei se isto foge tradio dos prefcios, mas acredito que, pela riqueza dessas proposies, uma forma digna de demonstrar o valor do trabalho dos autores, destacando a enorme relevncia de suas colocaes pelos desafios e novos caminhos que nos sugerem. Gostaria de comear destacando a importncia de se tratar seriamente, hoje, de conceitos, em toda a riqueza de posies tericas que se nos apresentam nesta encruzilhada da histria. Mas trabalhar sobre conceitos, como em parte indica o texto introdutrio de Cssio Hissa, exige tomar

algumas precaues importantes. Algumas so aparentemente banais, mas nem sempre atentamos para sua relevncia a comear pela distino entre palavra e conceito. Costumamos associar palavras diferentes a distintos conceitos, mas uma outra posio tambm possvel: mesmos conceitos podem ser trabalhados sob palavras diferentes. Ou seja, muito mais do que sobre palavras, trabalhamos sobre os mltiplos significados que elas incorporam. Territrio, em toda a sua polissemia, bem apontada ao longo deste livro, aparece hoje como um desses conceitos que, s vezes muito amplos, s vezes mais estritos, abarcam processos scio-espaciais que, dependendo da escola, podem ser apreendidos sob outras nomenclaturas. Vide o caso do conceito de lugar dominante hoje na literatura acadmica anglo-saxnica. Na maioria das vezes a ampla concepo de lugar nas investigaes em lngua inglesa corresponde praticamente quilo que, sob o nome de territrio, trabalhamos no nosso contexto latino em especial no latino-americano. Da o carter imprescindvel da localizao epistmica dos conceitos, como tanto enfatiza o chamado pensamento ps-colonial. Cada episteme, cada leitura de mundo, refere-se no apenas ao contexto histrico em que produzida, mas tambm ao ambiente geogrfico em que gestada. Numa analogia geo-histrica, da mesma forma, toda regionalizao exige uma periodizao, e vice-versa, pois os recortes espaciais so sempre datados, valendo apenas para um determinado perodo da histria, assim como para cada periodizao proposta devemos definir a amplitude geogrfica na qual ela pode ser efetivamente utilizada. Todo pensamento tem, ento, um espao-tempo prprio. Todo conceito, portanto, no s historicamente datado mas tambm geograficamente situado. Com relao ao territrio, e profundamente inspirado pela leitura provocadora de muitos dos textos aqui apresentados, gostaria de sintetizar um elenco de proposies, cada uma relacionada a caractersticas fundamentais do territrio e, em sentido mais amplo, dos conceitos dentro da abordagem renovadora aqui desenvolvida. Estas propriedades (algumas presentes em artigos como o de Ribeiro e Loiola) seriam: focalizao, contextualizao/flexibilidade, historicidade/mutao e pluralidade/complexidade.

Por focalizao entendemos que: todo conceito, apesar de moldvel e aberto, tem um foco. Poderamos dizer que o conceito precisa estar focado, ter um ncleo central ordenador, dentro das mltiplas relaes que desenha num grande conjunto, maior, ou, como afirmou Gilles Deleuze, dentro de uma constelao de outros conceitos constelao que constri um corpo terico, uma teoria mais articulada. Mesmo sem limites claros e com mltiplas reas de interseo, o conceito no pode perder seu foco assim, territrio um conceito cujo foco central est colocado nas relaes de poder, seja na viso mais estrita e tradicional do poder centrado na figura do Estado ou de uma classe scio-econmica, seja na viso mais ampla, foucaultiana, do poder num sentido relacional, inerente a toda relao social. Um poder, igualmente, cuja anlise no se restringe a seus efeitos materiais, mas tambm a sua dimenso simblica (como no poder simblico to evocado por Pierre Bourdieu, e que implica a leitura do cultural, sempre, como cultura poltica). Praticamente todos os autores desta coletnea enfatizam, de uma forma ou de outra, que o conceito de territrio no um conceito a-histrico e a-geogrfico, precisa ser localizado em um tempo-espao em outras palavras, exige, como j destacamos, uma contextualizao geo-histrica. Os conceitos so, neste sentido, flexveis, como enunciado por autores como Cssio Hissa. Mas esta flexibilidade, obviamente, tem limites, e estes so dados pelo foco ao qual se dirige cada conceituao (propriedade anterior). Todo conceito no apenas historicamente situado, no sentido da histria social em que produzido, como, ele prprio, tem sua histria (enquanto histria das idias), e preciso respeit-la. Conceitos no so completamente reinventados o tempo todo, eles carregam um longo percurso, quase como se pudessem amadurecer ao longo do tempo (alguns, verdade, assim, tambm fenecem). Com o territrio ocorre a mesma coisa. Como bem destaca Hissa, ele jamais poder ser monopolizado por um campo disciplinar pelo simples fato de que, j no seu nascimento, ele brota em diferentes reas, da Cincia Poltica (com a figura do Estado territorial que so todos os Estados) Biologia (especialmente na Etologia, ao trabalhar com o comportamento territorial

dos animais). Nunca podemos ignorar ou menosprezar essa carga histrica que os conceitos em sua focalizao carregam, em nome de um presente tido como completamente inovador. Diante de um discurso sobre o (pretensamente?) novo, o velho no pode ser negligenciado, seja pelo seu papel sempre ambivalente de resistncia, seja como resduo, sobra ou, de uma maneira mais complexa, reinserido e re-produzido pelos prprios processos tidos como inovadores. Muitas dinmicas globalizadoras atuam neste sentido: acabam por refazer o antigo aparentemente velho em seu prprio benefcio. Vide a valorizao de culturas e produtos locais e o discurso da patrimonializao universalista que acaba por realizar uma espcie de engessamento de parcelas expressivas do espao e do territrio. Autores como Benko e Solins problematizam estes elos e, como afirma Brando, necessrio realizar sempre o devido balano entre rupturas e resistncias, entre o novo e o velho. Que o digam os chamados povos tradicionais (indgenas, quilombolas...) e os agricultores sem-terra, em suas reivindicaes territoriais e em sua longa histria de lutas. Por outro lado, a mutao, a transformao ou, em termos mais estritos, a mobilidade uma caracterstica fundamental dos territrios. Autores como Solins e Hissa lembram a fora das malhas ou tramas de redes na constituio dos territrios, o que traz implcito nosso debate sobre os territrios-rede que, apesar de sempre terem existido, se impem hoje com uma fora inusitada. A mutao e a mobilidade esto to impregnadas nas concepes contemporneas de territrio que estes s podem ser vistos dentro do movimento permanente de des-reterritorializao, como j apontava Claude Raffestin. Tal como lembrado por Musset e por Milani, na nossa prpria conceituao o territrio , muito mais do que coisa ou objeto, um ato, uma ao, uma rel-ao, um movimento (de territorializao e desterritorializao), um ritmo, um movimento que se repete e sobre o qual se exerce um controle. Sem esquecer que, ainda que privilegiemos o movimento, no ignoramos a necessidade por exemplo de sua repetio, ou seja, de algum tipo de permanncia, cujo sentido profundamente diferenciado segundo os sujeitos e as lutas que esto em jogo.

Por fim, uma quarta propriedade, deduzida a partir do prprio ttulo da obra: o territrio em sua complexidade e multiplicidade (decorrente, entre outros fatores, de seu prprio carter inter ou transdisciplinar). interessante destacar que mesmo na sua concepo mais tradicional, vinculada soberania do Estado-nao, o territrio tambm mltiplo. Isto muito bem lembrado por Carlos Milani ao se reportar a Biersteker e s mltiplas formas de soberania, algo frequentemente ignorado fora do mbito da rea de relaes internacionais: a soberania westfaliana um ideal, no uma evidncia efetivamente universal, as soberanias sendo politicamente desiguais e substantivamente dspares. Brando afirma que, a exemplo do prprio capitalismo, o territrio deve ser visto simultaneamente no singular e no plural. Mas no se trata apenas de uma multiplicidade de territrios ou daquilo que denominamos mltiplos territrios os territrios, em si mesmos, so mltiplos, na medida em que se pode no s construir um territrio na mobilidade (pela vivncia sucessiva de diferentes territrios) como tambm, simultaneamente, pode-se acionar ou controlar mais de um territrio, o que o atual aparato tcnico-informacional nos permite. Desdobra-se assim uma multiterritorialidade tanto no sentido sucessivo (pela mobilidade fsica) quanto simultneo (pela mobilidade informacional ou virtual que nem por isso, obviamente, menos real). No sentido mais geral da discusso sobre a natureza dos conceitos, uma propriedade tambm lembrada em mais de um trabalho deste livro a de que um conceito nunca uma mera representao, como se pretendesse fotografar o real. Num jogo entre aquilo que Brando, citando Adam Moore em relao escala, reconhece como categoria analtica e categoria da prtica, o conceito , tambm, ele prprio, como indica de maneira um pouco mais especfica (por se restringir Filosofia) Deleuze, um acontecimento; isto , mais do que mera representao do real, ele , em si mesmo, uma realidade e, dependendo do contexto e de seu contedo poltico acaba tambm por servir como uma espcie de instrumento (transformador) capaz de produzir novas realidades. Dessa forma o territrio, mais do que uma definio acadmica pretensamente bem articulada dentro de uma constelao (terica) de conceitos, tambm um conceito construdo nas lutas sociais que dele

fazem uso, que o demarcam, que o transformam em arena poltica (como ressalta Brando em relao s escalas feitas assim territrio), que o refazem, enfim, como conceito, a partir da prpria prtica social. Territrio, sem dvida, um conceito poltico tanto em seu sentido mais acadmico (enquanto categoria analtica) quanto num sentido mais prtico (como instrumento de/para muitas lutas sociais). Dessa forma, de fato, o territrio passa a ser visto a partir de outro foco, mais geral e nem por isso menos relevante: os sujeitos que o constroem e que fazem dele uma bandeira e/ou arena (arena aqui vista no como palco, mas como constituinte inerente) de luta. Luta esta que no se resume a conquistas de ordem mais estritamente econmicopoltica mas que, envolvendo tambm nossa perda de referncia espacial, como bem lembra Solins, significa um amplo processo de (re) apropriao simblica, nica forma pela qual nos percebemos, muito mais do que como meros usurios, como responsveis comprometidos com o (des)ordenamento dos territrios ambientes de luta e de organizao social indispensveis num mundo que, como sugere este livro, carece de novas utopias que estimulem o engajamento e a transformao sociais. Neste sentido, um bom livro aquele que tambm nos permite levantar grandes questes e esta sem dvida uma obra que no apenas elabora respostas, mas provoca indagaes, srias inquietaes que se abrem para o futuro. Por exemplo, num sentido mais epistemolgico, como encarar a relao entre espao (categoria de anlise? campo ideal?) e territrio (conceito? campo mais pragmtico?)? Se a territorializao, como afirma Solins, construda exclusivamente na e pela sociedade, como inserir a discusso sobre a natureza (e um alegado poder da natureza, indissocivel, hoje, da ao humana) em nossas concepes de territrio? Como caracterizar fronteiras territoriais (no sentido proposto por Cssio Hissa) num mundo em que, ainda mais ambivalentes, elas marcam profundamente tanto a unio/o intercmbio quanto a ruptura/a interdio com a intensificao, por exemplo, da construo de novos muros? Que sentido tem hoje o discurso da segurana e as tantas prticas a ele vinculadas na reconfigurao da abertura e mobilidade dos territrios? Que papel ir adquirir, a partir de agora (especialmente ps-

crise financeira), a chamada excluso social (ou melhor, seguindo Souza Martins, a incluso precria) nos processos de des-reterritorializao? Qual a reconfigurao geo-econmica dos territrios a partir da recente crise do capitalismo financeirizado global? Como construir novas formas de gesto capazes de dar conta da multiplicidade territorial em que estamos mergulhados e, por outro lado, a crescente demanda por um territrio mnimo para tantos? Questes que abrem a agenda de novas e instigantes pesquisas para as quais os autores desta coletnea trazem, sem dvida, valiosas contribuies. Enfim, a questo maior, sugerida por esta obra: dentro do amplo continuum que vai desde os territrios construdos com propsitos meramente funcionais (uma espcie de controle de mo nica, tpico do produtivismo capitalista) at aqueles com forte carga simblica e identitria, como restituir uma territorializao capaz de significar no apenas um controle do espao, em sentido estrito, mas tambm a sua produo e vivncia em novas bases, onde controlar ou exercer poder signifique tambm afetar na dupla condio de afetarmos e sermos afetados pelo ambiente que criamos. Pois, como lembra Spinoza, o aumento do nosso poder para agir significa tambm o crescente poder de sermos transformados pelo afeto dos outros e do territrio que indissociavelmente construmos. Rogrio Haesbaert

SUMRIO

Maria Teresa Franco Ribeiro 21

Introduo

Territrio de dilogos possveis Cssio Eduardo Viana Hissa37Os arqutipos espaciais do subdesenvolvimento

De Lnin a LacosteAlain Musset87

Economia urbana e regional na virada de sculo Georges Benko115Levar na devida conta as contribuies da economia poltica e da geografia crtica para construir a abordagem interdisciplinar

Desenvolvimento, territrios e escalas espaciaisCarlos Brando151

um convite reflexo e ao exerccio do dilogo entre saberes

Gesto do territrio e desenvolvimento:Maria Teresa Franco Ribeiro Elisabeth Loiola 187

A geografia financeira do estado da Bahia: 1995 2004 Elsa Sousa Kraychete227

O que o territrio ante o espao? Germn Solins265

Concluso Carlos Roberto Sanchez Milani289

Os autores309

introduoMaria Teresa Franco Ribeiro

Dois temas voltaram a ocupar os campos do debate acadmico e das aes pblicas, nas ltimas duas dcadas, resultado talvez do fracasso das prescries neoliberais de cunho universalista e do crescimento dos movimentos sociais, que nem sempre so percebidos de forma articulada: a questo do desenvolvimento e a questo territorial. A retomada do debate sobre o desenvolvimento se faz no contexto dos resultados precrios dos processos de globalizao e dos impasses que surgem em todas as perspectivas (econmica, social, cultural, poltica e ambiental), que colocam em xeque os pressupostos e instrumentos que vm dando suporte compreenso e interveno sobre a realidade do desenvolvimento (LEFF, 2006; DUPAS, 2004; CHESNAIS, 1994; BRUNHOFF, 1996; SACHS, 2005). O desenvolvimento e o progresso prometidos pelos princpios e aplicao da cincia moderna mostraramse limitados, excludentes e perversos, o que demonstrado pelo aumento das desigualdades scio-econmicas. Esse contexto expressa a crise da modernidade, que resulta da insero desigual dos indivduos, classes e grupos na sociedade nacional, das naes no sistema internacional, bem como do no-cumprimento das promessas do desenvolvimento. Das diversas abordagens contemporneas que discutem as bases dessa crise, bem como as possibilidades de superao, quatro se destacam: a primeira interpretao da crise do desenvolvimento emana daqueles que a associam ao modo capitalista de produo e sua lgica de acumulao. Portanto, sua superao passa, necessariamente, pela superao desse modo de produzir, distribuir e se apropriar tanto dos resultados da produo quanto do prprio espao social. Segundo David Harvey (2005), as dimenses geogrficas relativas acumulao do capital e luta de classes desempenham um papel fundamental na perpetuao do poder burgus e na supresso dos direitos e aspiraes do trabalhador, no apenas em lugares especficos, mas tambm globalmente; uma segunda abordagem, a crtica antropolgica, revela o papel do etnocentrismo e do eurocentrismo na definio dos valores e normas do desenvolvimento enquanto promessa ocidental, ressaltando a natureza histrica e pretensamente universalizante da modernidade. Para essa

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corrente, os princpios do progresso e da civilizao impuseram lgicas e racionalidades como medidas universais para diferentes realidades socioculturais e contextos histricos, e apontam para a necessidade de dilogo com e entre os povos indgenas e o respeito s diferentes racionalidades (TUCKER, 1999; SAID, 2007); a terceira viso, numa mesma linhagem da crtica ps-moderna, adverte para a impossibilidade do carter universal do desenvolvimento, fruto de uma utopia iluminista que acabou favorecendo os interesses das classes dominantes. Existe hoje um movimento ascendente na Europa da escola ps-desenvolvimentista segundo a qual, assim como o progresso, o desenvolvimento pode trazer conseqncias sobre a vida e a liberdade dos homens, camuflando os interesses de diversos grupos de poder que se beneficiam desse mesmo processo. Defendem o ps-desenvolvimento e a pesquisa sobre modos de panouissement coletivos que no buscam apenas o bem-estar material, responsvel pela desestruturao do ambiente e das relaes sociais, mas respeitam as especificidades dos povos. Ressaltam, assim, a natureza essencialmente plural do desenvolvimento que se desenha de forma sensivelmente diferente no Norte e no Sul (LATOUCHE, 2004; ESCOBAR, 2007; RIST, 1996); finalmente, uma quarta abordagem diz respeito corrente crtica contra-hegemnica que assume os desafios da construo dos valores universais em novas bases. A falta de respostas s questes relacionadas com as desigualdades sociais e a continuidade do tratamento das questes do desenvolvimento, fundamentalmente, na perspectiva econmica, devero ser a tnica das reivindicaes dos movimentos alternativos expressos principalmente no mbito do Frum Social Mundial. Os trabalhos oriundos desse debate sinalizam a natureza polissmica e multidimensional do desenvolvimento. Essa corrente recoloca o debate sobre qual globalizao se quer construir e os caminhos possveis (ESCOBAR, 2007; MILANI, 2006; SOUSA SANTOS, 2001; SANTOS, 2001). Muitos pontos explorados por essas abordagens se entrecruzam, como a questo ambiental e a retomada do debate sobre as dimenses e especificidades dos territrios. Segundo Cssio Hissa (2008), embora a questo ambiental adquira perfil importante nos meios de comunicao

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em geral, as abordagens dessa temtica ainda privilegiam o paradigma disciplinar, impedindo ou, s vezes, dificultando a expresso das vozes do mundo, bem como de suas diversidades epistemolgicas, desconsiderando a diversidade de saberes onde a vida se desenvolve (HISSA, 2008:9). Acrescenta-se a este olhar a anlise da ecologia poltica que combina uma crtica ao desenvolvimento ambientalmente insustentvel com a necessidade de retomar o debate sobre os conflitos distributivos (MARTINEZ-ALLIER, 2007). A ecologia poltica parte do princpio de que os problemas ambientais no afetam todos os indivduos e grupos sociais uniformemente e afirma que a concentrao de riqueza tambm o resultado do controle sobre determinados recursos ambientais (MILANI, 2008). Apesar desse intenso debate, duas verdades ou mitos ainda parecem persistir: a primeira, a idia do desenvolvimento como um caminho linear a ser perseguido a partir de experincias dos pases desenvolvidos, e a segunda, a crena de que a aplicao dos conhecimentos disponveis podem ser transferidos e aplicados de maneira universal. Esses dois princpios partem do pressuposto de que tanto a idia de desenvolvimento como a de cincia seriam neutras e que o avano desta traria necessariamente o progresso para todos. A crena na neutralidade da cincia e na universalidade dos indicadores de desenvolvimento continua a orientar a elaborao de polticas de desenvolvimento tanto no Norte como no Sul. Desconsidera-se a existncia de valores sociais e interesses econmicos implcitos na produo do conhecimento cientfico e tecnolgico, bem como as conseqncias de sua aplicao em contextos histrico-culturais especficos. Deixa-se de lado, entretanto, a contribuio dos estudos sociais da cincia na definio de estratgias de desenvolvimento (LATOUR, 2004). Permeia essa viso a concepo de que a produo cientfica do conhecimento leva sempre eficincia e nega a importncia de outras formas de conhecimento e saberes construdos ao longo da histria, por diferentes sociedades. A partir de reflexes crticas acerca desses mitos universais, alguns estudiosos avanam na construo de novos princpios e conceitos que discutem e desconstroem antigas verdades cientficas, baseadas no modelo cartesiano-newtoniano, e buscam dar conta da intrnseca

introduo

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interconectividade das relaes da sociedade com a natureza e da complexidade dos processos de desenvolvimento (CAMARGO, 2005; HISSA, 2002; NICOLESCU, 2001; MORIN, 1999; MORIN e MOIGNE, 2000; SOUSA SANTOS, 2001, 2003). Esses autores realizam um esforo de crtica epistemolgica e perseveram na construo de novas bases do conhecimento que valorizam o dilogo entre as suas reas, buscando integrar o que foi fragmentado e tornar complexo o que foi simplificado pela cincia moderna. Outro tema retomado com intensidade nos debates acadmicos mais recentes a questo do territrio e da desterritorializao. A partir de experincias exitosas de crescimento, como a terceira Itlia, a dimenso territorial local passa a ser a soluo para o estmulo inovao e ao desenvolvimento, desconsiderando porm a complexidade deste processo histrico e seus fatores estruturais. Como aponta Oliveira (2002), o desafio do desenvolvimento local, analisado em sua polissemia, complexo e comporta tantas quantas sejam as dimenses em que se exerce a cidadania, e qualquer tentativa de transform-lo em um modelo paradigmtico estar fadado ao fracasso. A perspectiva do desenvolvimento local em Oliveira (2002) tem um carter emancipatrio, sem nenhuma pretenso de solucionar todos os problemas no nvel local. Abrem-se a apenas as possibilidades de uma ao crtica e alternativa s propostas unidimensionais neoliberais para o desenvolvimento, mas sem camuflar ou minimizar os complexos interesses em jogo em todas as suas esferas e escalas. Destacam-se, nesse debate, as contribuies de Rogrio Haesbaert (2007), sobre a criao e desaparecimento dos territrios, desenvolvendo um dilogo oculto na medida em que esse no se d de forma explcita e efetiva entre a Geografia e as demais cincias sociais preocupadas com a dimenso espacial da sociedade. Haesbaert, a partir de um levantamento minucioso das diversas concepes de territrio, advindas de diversas reas do conhecimento, como da prpria Geografia, da Antropologia e da Cincia Poltica, constri uma matriz desses referenciais tericos especficos. Essas concepes de territrio se dividem entre o binmio materialismo e idealismo, que se desdobram, por sua vez, em olhares mais totalizantes e mais parciais do territrio em relao aos vnculos

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sociedade-natureza e s dimenses sociais privilegiadas (econmica, poltica e/ou cultural). H ainda as contribuies que valorizam a historicidade do conceito a partir de duas compreenses: a de sua abrangncia histrica, se se trata de um componente ou condio geral de qualquer sociedade ou se est circunscrito a um determinado perodo ou grupo social, e a de seu carter absoluto ou relacional. Ou seja: no seu sentido fisco-concreto (como coisa, objeto), ou no sentido scio-histrico ou relacional (HAESBAERT, 2007:45). Haesbaert ressalta, entretanto, que, apesar dessas diferentes abordagens, percebe-se hoje um grande entrecruzamento das diferentes concepes tericas, numa tentativa de superar as dicotomias material/ideal do territrio, envolvendo a dimenso espacial concreta das relaes sociais e o conjunto de representaes sobre o espao ou o imaginrio geogrfico que tambm move essas relaes. No se percebe hoje uma relao biunvoca entre a base filosfica do pesquisador e o referencial terico que este explora. Esse ecletismo seria um dos legados do psmodernismo, que se abre para o dilogo entre diferentes matrizes tericas, em um movimento multifacetado. As posturas em relao aos sentidos dos territrios vo desde aquelas que defendem o seu fim (inter alia, LVY, 1993; BADIE, 1994; CASTELLS, 1996; VELTZ, 1996) quelas que acreditam que a territorializao seria a soluo para todos os problemas, pensamento dominante, hoje, nas polticas pblicas de vrios pases, sejam do Norte ou do Sul (GIRAUT e ANTHEAUME, 2005; HAESBAERT, 2006). Os que defendem o fim do territrio acreditam na extino de determinadas formas e relaes construdas sobre o domnio dos Estados nacionais, que no do conta dos interesses dos novos atores e movimentos que se articulam no nvel internacional, nem das estratgias das grandes corporaes, tampouco dos diversos movimentos sociais transnacionais possibilitados pelo avano das novas tecnologias da informao. Como todo conceito, o tempo do territrio e sua capacidade de compreender a realidade so historicamente datados. Neste momento em que a complexidade das dinmicas scio-econmicas aponta para a importncia da

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dimenso local de emancipao, o conceito de territrio reassume relevncia conceitual e metodolgica. Assim, no nvel das polticas pblicas, a gesto territorial do desenvolvimento passa a ser o foco dos governos, seja do Norte ou do Sul. Mas o que esse conceito de territrio aporta? Quais as suas especificidades e particularidades? O que o torna funcional ao processo de expanso capitalista? Como o territrio representaria uma porta para a compreenso de diversas dinmicas socioculturais e a possibilidade de se estabelecer um dilogo entre diferentes saberes e o exerccio da interdisciplinaridade? Sob a influncia do conjunto das cincias sociais, o territrio passa da situao de uma descrio de uma malha espacial (no sentido jurdicoadministrativo) para o estatuto de conceito que busca dar conta da complexidade da realidade e das construes scio-econmicas inseridas em um espao fsico. O conceito de territrio remete tanto aos aspectos formais (distribuio no espao de materiais naturais e construdos, divises administrativas, polticas e jurdicas), bem como os aspectos ligados ao sentido dessas formas (as ideologias espaciais, representaes e sistemas de valores), como lembra Benko (2007). O poder do lao territorial revela que o espao est investido de valores no apenas materiais, mas tambm ticos, espirituais, simblicos e afetivos. Nesse sentido, o territrio cultural precede o territrio poltico e precede o espao econmico (HAESBAERT, 2006). O territrio um lugar compartilhado no cotidiano, criador de razes e laos de pertencimento e smbolos. atravs do conhecimento desses smbolos que podemos restituir toda a riqueza de valores que do sentido aos lugares e aos territrios de vida. Numa perspectiva crtica, o territrio visto como um campo de foras, uma teia, uma rede de relaes sociais que, apesar de sua complexidade interna, define ao mesmo tempo um limite, uma alteridade: a diferena entre ns e os outros. Territrios so relaes sociais projetadas no espao, uma rede de relaes sociais e produtivas capazes de produzirem singularidades (SOUZA, 1995). Milton Santos incorpora o conceito scio-espacial derivado do conceito de formao socioeconmica. Para o autor, o modo de produo, a formao socioeconmica e o espao so categorias interdependentes e indissociveis (SANTOS, 1978).

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Esse debate no s me despertou para a necessidade de aprofundar, mas de compreender melhor os sentidos do territrio, a sua relao com o desenvolvimento, e de estabelecer um dilogo epistemolgico com outras reas do conhecimento. Assim, parti para o ps-doutoramento no Institut des Hautes tudes sur lAmrique Latine IHEAL, Centre de Recherche et Documentation sur lAmrique Latine CREDAL. A insero nos debates, cursos e seminrios como os de Georges Benko e Alain Musset foram fundamentais para a compreenso da complexidade desses conceitos e das suas interrelaes. Da nasceu a idia deste livro. Ao invs de um trabalho solitrio e dentro do entendimento de que todo saber coletivamente construdo, por que no organizar um espao de dilogo entre pesquisadores brasileiros e franceses envolvidos com a temtica do desenvolvimento e do territrio? Pensava-se no apenas em uma coletnea de artigos, mas na produo de um campo de reflexes a partir das seguintes questes: qual o significado do conceito de territrio a partir de seus campos de estudo? Quais contribuies podem aportar para a compreenso dos processos de desenvolvimento? Espera-se que o elo condutor dessas abordagens situado na concepo do territrio como espao de construo social, poltica, econmica e simblica contribua para o debate na academia sobre os desafios das sociedades contemporneas e a necessidade de se integrarem saberes distintos na compreenso das dinmicas socioculturais, polticas e econmicas. Espera-se, tambm, que essas contribuies alimentem a reflexo das aes territoriais realizadas pelos diferentes tipos de atores, fundamentalmente, os formuladores de polticas pblicas voltadas para o desenvolvimento. Acredita-se que sua leitura ser proveitosa para estudantes de economia, geografia, economia poltica, urbanismo e administrao, sociologia, cincia poltica e relaes internacionais. A apresentao dos trabalhos procurou dar conta das perspectivas privilegiadas por cada autor, de tal forma que permitisse a construo de um dilogo ou sinergia em torno do territrio. Embora esse tenha sido um difcil exerccio de ordenamento, no teve uma preocupao de hierarquizao. A preocupao se deu mais em termos metodolgicos, no sentido de se abrir o debate com os trabalhos que exploram mais

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a perspectiva histrico-terica e avanar com aqueles que direcionam o olhar para a dinmica socioeconmica, com contribuies empricas para o debate. Para destacar a importncia do dilogo entre as reas e as dimenses do tema central deste livro, a contribuio de Germn Solins consubstancia a necessidade de um pensamento metadisciplinar, que ainda no existe de forma codificada, para dar conta da complexidade dos fenmenos sugeridos para anlise, das diferentes escalas do territrio e das mudanas nas relaes entre espao construdo, espao poltico e espao simblico. Solins fecha sua contribuio colocando uma questo que parece ter sido deixada de lado, e que to cara aos intelectuais das dcadas de 60/70: qual nova utopia orientar os novos territrios? Essa questo colocada por Germn Solins est presente no livro de David Harvey, Espaos da esperana. O autor aponta para a importncia de compreender os desenvolvimentos geogrficos desiguais, explorando todas as escalas de anlise pertinentes e, a partir dessa perspectiva, fortalecer os espaos de esperana. Condies desiguais oferecem abundantes oportunidades de organizao e ao poltica (HARVEY, 2006:98). Esse um ponto que perpassa os diversos olhares aqui apresentados. Em um esforo de sntese, tentando alinhavar os pensamentos e inquietaes dos diversos autores, e tendo como pano de fundo a questo proposta e os conceitos-chave desenvolvimento, territrio e interdisciplinaridade, Carlos Milani assume a difcil tarefa de concluir, fazendo-o com criatividade, a partir do seu campo de investigao: o territrio em que se do as relaes internacionais. Abrimos o livro com a contribuio de Cssio Eduardo Viana Hissa que, de uma forma mais ensastica, apresenta elementos e conceitos que respaldam o debate sobre a complexidade da construo do dilogo interdisciplinar. Embora no mbito do discurso as disciplinas expressem o desejo de dilogo e ampliao do campo de saber, ainda h uma longa caminhada, de muitos pr-conceitos a serem compreendidos para serem superados. Na verdade, a nica possibilidade frtil para a construo desse dilogo est na compreenso de que o mundo , por natureza, o mediador desse desejado entrelaamento. Dentro desse escopo de anlise e de forma provocativa, questiona-se a existncia de um real desejo da cincia em dar ouvido s vozes do mundo, para que ela tambm

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se transforme, bem como as possibilidades de o territrio, como lugar, expresses de mundo, ser o espao que convida e acolhe o dilogo entre saberes. a partir deste captulo que abrimos o espao para a apresentao dos diferentes olhares sobre as possibilidades, os limites e a pertinncia do entrelaamento desses conceitos. O artigo de Alain Musset situa-se no campo histrico-conceitual. A partir do confronto de pensamento de tericos liberais e gegrafos marxianos, como Yves Lacoste, procura resgatar o sentido dos conceitos de espao e territrio negligenciados ou subvertidos pela lgica do pensamento liberal e das clivagens ideolgicas. Yves Lacoste foi um dos primeiros gegrafos a apontarem a clivagem ideolgica da noo de subdesenvolvimento e a superar as fronteiras acadmicas que fragmentam as cincias sociais, ressaltando a importncia no apenas de multiplicar as escalas de anlise, mas tambm de cruzar os olhares disciplinares. De forma criativa, Musset mostra que com a reduo dessas clivagens poltico-econmicas a arqutipos espaciais como centro-periferia, cidadecampo e Norte-Sul, o discurso do subdesenvolvimento desterritorializouse para se transformar em uma alegoria das relaes de poder nas escalas intercontinental, nacional ou regional. Georges Benko faz uma reviso das contribuies da cincia regional nas trs ltimas dcadas apontando os pontos de inflexo e mudanas. Prope-se a decifrar a lgica da formao do pensamento em geografia econmica e sinalizar as riquezas das evolues recentes. Segundo Benko, dois movimentos ocupam a cena do debate: a abertura da macroeconomia para o espao e o territrio e os trabalhos de Paul Krugman (1991 e 1995), que se apresentam como uma nova geografia. Os trabalhos que priorizam a territorialidade seja das inovaes, seja das organizaes econmicas e sociais a partir dos anos 70 rompem no apenas com o estruturalismo global como com as teorias das etapas do desenvolvimento. Georges Benko faz um resgate dos debates e dos autores que procuram captar as principais mudanas que ocorreram no mundo, no momento do chamado fim da modernidade ou o incio dos ps-ismos, neo-ismos e novos -ismos. Para ele, atrs do debate daqueles que privilegiam a estruturao do local e daqueles que, de outro lado, privilegiam as regras do global, esconde-se uma certa incapacidade de se identificar os traos

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do ps-fordismo e mesmo a coexistncia de modelos locais muito diferentes, no centro, de uma rea global nica. Para Benko, apesar de todo o movimento de desqualificao da cincia regional, h ainda um grande espao para essa rea do conhecimento, por natureza multidisciplinar. Mas, se a cincia regional deseja ir mais longe do que uma disciplina neopositivista, utilizando tcnicas e mtodos economtricos e ferramentas da goegrafia quantitativa de um tempo ido (denominada outrora, nos anos 60, a nova geografia), ela deve alargar seus fundamentos epistemolgicos e, a um s tempo, seus campos de conhecimento e ao. Carlos Brando explora a contribuio que a economia poltica e a geografia crtica podem dar para a construo de uma abordagem interdisciplinar sobre o desenvolvimento, territrio e escalas espacias. Acredita que muitas das questes exploradas por essas duas abordagens so negligenciadas nas anlises das dinmicas territoriais do desenvolvimento. Para o autor, entre as transformaes sistmicas do desenvolvimento e suas repercurses na produo do(s) territrio(s), no pode haver determinaes lineares e fceis, e ele reivindica o estabelecimento das inmeras mediaes complicadas e delicadas entre essas duas dimenses. Seu texto sinaliza, assim, a necessidade de se construir mediaes tericas e histricas para se pensar e comparar os diversos capitalismos. O autor ainda prope o uso da escala como categoria e unidade de anlise recurso epistemolgico e heursitico e como categoria prtica, campo e instrumento das lutas sociais, que d concretude a bandeiras e aes polticas. Cada problema tem sua escala espacial especfica, e Brando prope a escala como recorte para a apreenso das determinaes e condicionantes dos fenmenos sociais circunscritos ao territrio. A partir do dilogo entre a economia poltica e a geografia crtica, o texto ressalta a importncia de se buscar a natureza e o sentido das escalas, inerentemente dinmicas como expresso das mudanas tecnolgicas, formas de organizao dos seres humanos e das lutas polticas. Elizabeth Loiola e eu discutimos a natureza do processo de desenvolvimento e o sentido da crise contempornea, demostrando como

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a corrente hegemnica e conservadora da cincia econmica deu pouca ateno dimenso espacial, e, quando o fez, reduziu-a e restringiu-a s preocupaes com relao distncia e seu impacto nos custos de produo. Procuramos ressaltar a importncia da economia poltica e da geografia crtica como suportes terico-metodolgicos para a explorao do territrio como espao de dilogo e ao interdisciplinar. Com base na reviso de vrias constribuies nesses campos de anlise, refletimos, ainda, sobre o foco das polticas locais e territoriais que no tm levado em considerao a complexidade das escalas em que os conflitos e interesses se expressam, seja qual for o recorte da anlise. Dentro dessa perspectiva, o texto tambm analisa os limites e espaos do conceito e das polticas focadas nos arranjos produtivos locais e os desafios e necessidades de um dilogo epistemolgico entre as reas do conhecimento. Elsa Kraychete, a partir de uma investigao minuciosa do sistema de informao do Banco Central do Brasil, anlisa a estrutura bancria e financeira do estado da Bahia, entre 1995 e 2004. Existem poucos estudos sobre o papel da moeda e do sistema financeiro nas dinmicas econmicas urbanas e regionais da a originalidade, riqueza e atualidade desta pesquisa para se compreender a articulao entre os fluxos reais e financeiros no processo de desenvolvimento. Demonstra como a mesma lgica de concentrao e centralizao do capital financeiro nos nveis internacional e nacional se reproduz s vezes de forma mais perversa, nas regies e mesoregies. Ao mostrar que o capital financeiro alimenta o desenvolvimento desigual em termos patrimoniais e espaciais Elsa Kraychete retoma um debate recorrente sobre o modelo de desenvolvimento e o alcance das polticas pblicas na reduo desses efeitos perversos. Trata-se de um trabalho que corrobora as discusses realizadas pela maioria dos autores e ilustra o rebatimento desse modelo de desenvolvimento em todos as escalas de anlise. Por fim, esperamos que essas contribuies semeiem novas reflexes e estimulem o debate e a busca da compreenso desse visvel esgotamento do processo de reestruturao do sistema capitalista iniciado nos anos 70, sob a gide do capital financeiro e a desregulao dos mercados, e que atinge a maioria dos pases, agora aparentemente

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sem fronteiras, mas com conseqncias seguramente desiguais sobre aqueles que ainda tm grande parte de sua populao margem do processo de desenvolvimento e do progresso. Que os espaos da esperana sinalizem as novas utopias territoriais, onde tempo e espao se combinem em polticas mais harmnicas e solidrias de convivncia e criatividade. Citando meu mestre Fbio Erber (2003), ao contrrio da perspectiva hegeliana defendida pelos reformistas institucionais, Herclito a norma: nunca mergulhamos na mesma gua duas vezes e no h mapas do caminho.

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introduo

territrio de dilogos possveisCssio Eduardo Viana Hissa

o corpo do mundo: vAloresO mundo inteiro uma fico. A chamada aldeia global no existe. apenas uma construo. Eu sempre desconfio de tudo o que apresentado como sendo global, pois falta sentido a esse conceito. Meu ponto de partida so os valores. Estes podem at se tornar mundiais, mas o ponto de partida local. Milton Santos

O mundo inteiro poder ser mesmo visto como uma fico. Mas isso tambm valer para a cidade inteira, o lugar inteiro, o territrio inteiro. H recortes de mundo no interior do corpo do mundo. Do mesmo modo, h recortes de lugar, de cidades, assim como recortes de territrio no interior do corpo do territrio1. Alm disso, o mundo inteiro feito de movimentos que procuram se ajustar diversidade de movimentos exercidos pelos recortes de mundo. Os movimentos nos fazem pensar a dialtica dos processos. A cidade e os lugares, assim como os territrios, nunca so completos e sempre caminham no sentido da sua totalizao. certo, contudo, que a idia de mundo inteiro parece nos cativar em sua aparente inteireza certamente mais hoje do que no passado mais distante pelo menos por duas razes. A primeira delas se refere prpria globalizao que nos traz as sensaes de proximidade e as de que se pode ter o mundo nas mos. Para isso tambm muito contribui o desenvolvimento da tcnica, da tecnocincia, da velocidade e da instantaneidade das informaes a circular por todos os recortes de mundo. A segunda delas se refere imagem que temos hoje do mundo fsico, desenhado, cartografado a partir das tcnicas mais modernas. O mundo fsico emerge, na modernidade contempornea, como uma imagem de corpo inteiro se comparado com a presente imagem de incompleto mundo fsico medieval, na desconsiderao de que o mundo no a fsica do mundo e de que o mundo transformao. H, portanto, outros1

Cf. HISSA; CORGOSINHO (2006).

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mundos no mundo. Tambm por tais motivos, a palavra mundo, que j se transforma em uma palavra-conceito ou em uma palavra-categoria , produz, na contemporaneidade, algumas incompreenses. Aqui, utiliza-se a palavra mundo em diversas situaes. Quando se diz que o mundo est nos lugares, faz-se referncia a uma imagem de mundo que tambm decorre do processo de globalizao mercantil. Mas aqui, ainda, faz-se referncia ao mundo fsico e diversidade de mundos fsicos, recortes de mundo fsico, que so plenos de contedo social: a natureza social do mundo fsico. Diante das circunstncias, justa a interrogao: que mundo fsico no seria social? Ainda se utiliza a palavra mundo como um conceito-metfora no exatamente como fico na expresso corpo do mundo. J se adianta que um dos sentidos da palavra mundo sobrepese a um dos sentidos da palavra lugar. Os sujeitos do mundo so os sujeitos dos lugares onde se existe. Abre-se espao terico para se pensar a forte relao entre os sujeitos do mundo e os diversos corpos sociais de mundo. As anotaes de Milton Santos, entretanto, poderiam ser apresentadas em outros termos, como ele prprio as discutiu em diversos estudos2. O mundo se expressa nos lugares, escrever o gegrafo. Cada qual a seu modo, os lugares so expresses de mundo. Mas a que mundo ele se refere? No, certamente, geometria do mundo ou sua esfericidade planetria. Ele se refere ao mundo dos sujeitos da existncia que, inevitavelmente, se d nos lugares, na escala do cotidiano. No se existe no mundo, mas nos lugares onde a vida social se desenrola. Contudo, ainda que recortes de mundos estejam nos lugares, menos ou mais intensamente, so construidas imagens de mundo aparentemente descoladas dos lugares e dos cotidianos. Como poder ser? Um mundo subtrado dos sujeitos do mundo sujeitos dos lugares? O mundo no est fora dos sujeitos do mundo, dos cidados. Est dentro de cada um, assim como est nas comunidades ou nos lugares sociais. Diante disso, no poderia causar estranheza, posta a questo nesses termos, a observao de que a construo de uma epistemologia da existncia se aproximaria, inevitavelmente, de uma epistemologia dos lugares.2 Um de seus trabalhos poder servir de justo exemplo. Trata-se de obra intitulada Da totalidade ao lugar, que rene os seis primeiros captulos de Espao e sociedade, que no mais seria editada pela Edusp, assim como uma srie de comunicaes e de conferncias por ele proferidas ao longo dos anos 90. Sugere-se, portanto, a leitura das referidas obras: SANTOS, 1979; SANTOS, 2005.

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Mais adiante, se desejssemos a profundidade tanto como o espraiamento da reflexo, o desenvolvimento de uma epistemologia dos lugares3 no seria apenas uma distante e esvaziada metfora que se recusaria a se desdobrar em dilogos constitutivos com uma epistemologia dos saberes socioespaciais, tambm socioambientais.4 Pelo contrrio. O mesmo poder dito das epistemologias do territrio, das paisagens, das regies. Todas estas, articuladas, cada qual com a sua suposta especificidade, cobririam de significados, tambm articulados, as epistemologias dos conhecimentos disciplinares e, mais adiante, as epistemologias dos saberes socioespaciais nos quais se incluem, tambm, as geografias do mundo. A radicalizao da modernidade, por sua vez, produziu imagens de mundo supostamente para alm das existncias, ultrapassando a sensao das concretudes experimentadas na rotina, assim como as subjetividades do cotidiano. Isso significa que a radicalizao da modernidade, na construo de uma hipermodernidade, tambm disseminou uma imagem de mundo abstrata, imagtica, informacional, digitalizada que se rivaliza com a prpria presena do mundo nos lugares. A idia de mundo, produzida pela modernidade, contraditoriamente, portanto, desejou assumir mais concretude social do que a das ruas, a das esquinas, a dos lugares plenos de cotidiano. De algum modo, tal idia de mundo empreendeu uma racionalidade global, que negaria a racionalidade dos lugares e estabeleceria uma fora que tenderia a subtrair lugares e a neutralizar os sujeitos dos lugares. Poder ser? Como conceber a ausncia dos sujeitos, no mundo dos lugares? Como o mundo poder existir nos lugares, bem como se expressar atravs deles, na ausncia dos sujeitos dos3 Milton Santos (1996b), em conferncia proferida na abertura do XVI Encontro Estadual de Professores de Geografia, faz referncia a uma epistemologia da existncia que estaria associada construo dos territrios da cidadania. Haver um conhecimento ou um saber socioespacial que no seja social? Haver um conhecimento ou um saber social que no seja ambiental? As respostas dependero do prprio contexto epistemolgico do qual se originam as questes. H quem separe o espao ou o territrio da sociedade. H quem separe a cultura da natureza. Na modernidade ocidental, inclusive, a separao a regra a partir da qual se estabelece o pensamento. Um pensamento feito de fraturas e de dicotomias. 4 Haver um conhecimento ou um saber socioespacial que no seja social? Haver um conhecimento ou um saber social que no seja ambiental? As respostas dependero do prprio contexto epistemolgico do qual se originam as questes. H quem separe o espao ou o territrio da sociedade. H quem separe a cultura da natureza. Na modernidade ocidental, inclusive, a separao a regra a partir da qual se estabelece o pensamento. Um pensamento feito de fraturas e de dicotomias.

territrio de dilogos possveis

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lugares sujeitos do mundo? Os lugares so os sujeitos dos lugares, sujeitos do mundo. No h lugar, assim como no h territrio, sem os sujeitos do lugar. Admitiu-se que o processo de globalizao hegemnica, mercantil, tal como se desenvolveu sobretudo a partir das duas ltimas dcadas do sculo XX, tenderia a produzir nebulosidades a encobrir lugares e, at mesmo, a construir imagens tericas acerca de uma certa homogeneizao espacial e, radicalmente, uma idia acerca da supresso do espao e do territrio e dos conceitos que a eles se referem. Nada disso, entretanto, se produziu. A modernidade essencialmente produtora de limites, de zonas de apartheid. Certo que tais zonas so, tambm, ambientes transicionais que, por natureza, so feitos de contatos motivadores de conflitos e, de outra parte, de possibilidades de dilogo. Entretanto, os limites parecem prevalecer no apenas porque esto disseminados de modo a fazer a existncia cultural da modernidade, mas, sobretudo, porque so parte integrante da moderna condio humana, individual e coletiva. Boaventura de Sousa Santos (2007) faz referncia s linhas abissais estruturantes do pensamento moderno. Tais linhas so representaes de profundas fraturas, extensos e aparentemente estreis vazios, que se pem a dividir os diversos mundos do mundo. O pensamento moderno fraturante: um pensamento abissal, para que se recorra s ricas reflexes de Boaventura de Sousa Santos. De que ele se constitui? Conforme as anotaes de Boaventura de Sousa Santos (2007:3-4):Consiste num sistema de distines visveis e invisveis, sendo que as invisveis fundamentam as visveis. As distines invisveis so estabelecidas atravs de linhas radicais que dividem a realidade social em dois universos distintos: o universo deste lado da linha e o universo do outro lado da linha. A diviso tal que o outro lado da linha desaparece enquanto realidade, torna-se inexistente, e mesmo produzido como inexistente. Tudo aquilo que produzido como inexistente excludo de forma radical porque permanece exterior ao universo que a prpria concepo aceite de incluso considera como sendo o Outro. A caracterstica fundamental do pensamento abissal a impossibilidade da co-presena dos dois lados da linha. Este lado da linha s prevalece na medida em que se esgota o campo da realidade

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relevante. Para alm dela h apenas inexistncia, invisibilidade e ausncia no dialtica. Para dar um exemplo baseado no meu prprio trabalho, tenho vindo a caracterizar a modernidade ocidental como um paradigma fundado na tenso entre a regulao e a emancipao social. Esta distino visvel fundamenta todos os conflitos modernos, tanto no relativo a fatos substantivos como no plano dos procedimentos. Mas subjacente a esta distino existe uma outra, invisvel, na qual a anterior se funda. Esta distino invisvel a distino entre as sociedades metropolitanas e os territrios coloniais. De fato, a dicotomia regulao/emancipao apenas se aplica a sociedades metropolitanas. Seria impensvel aplic-las aos territrios coloniais. Nestes aplica-se uma outra dicotomia, a dicotomia apropriao/violncia que, por seu turno, seria inconcebvel aplicar deste lado da linha.

Trata-se, portanto, de um pensamento que produz linhas-limite, dicotomias naturalizadas, que se exercita culturalmente para dividir o que no se divide sem mutilaes. Pode-se fazer referncia a um mutilador e essencial apartheid: o que separa as sociedades as culturas da natureza. A denominada racionalidade humana, racionalidade moderna, constituda basicamente pelo processo de exteriorizao da natureza e, conseqentemente, de inferiorizao da natureza transformada, ento, pela moderna idia de mundo, em recursos naturais. Assim, a natureza um outro, fabricado sociolgica, poltica e culturalmente pelas modernidades ocidentais.5 Ela no faz parte do humano que, tambm, a ela no pertence de modo a permitir a pretensa e ocidental percepo racional do mundo assim como a percepo racional que o humano cultiva acerca de si prprio. Livra-se o humano de parte do seu corpo para que ele possa constituir a sua humanidade, j assim mutilada. Perde-se tal parte para que ele possa explor-la como um recurso e no para desfrut-la como um bem essencial do qual ele pertence, tal como o colonizador explora o trabalho escravo ou indgena, assim como se desenvolve, tambm, a explorao entre os prprios homens na produo de riqueza. A partir do percurso histrico atravs do qual o homem se separa da natureza para que se sinta e se perceba racional, resta-lhe o corpo: mas um corpo mutilado; menos do que isso, talvez, um corpo de valores mutilados. Qual5 Opta-se pelo plural: h modernidades diversas nos interiores do corpo ocidental do mundo. Com os processos de internacionalizao do capital e do pensamento moderno, concebe-se a existncia de corpos ocidentais moventes atravs da totalidade do mundo.

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o carter desse corpo? De que ele feito? Quais so as relaes entre esse corpo e o corpo do mundo? Qual a natureza do corpo do mundo? Ser interessante, para a reflexo, se pensssemos os corpos de mundo a partir da noo de totalidade. A totalidade do corpo do mundo no equivalente idia de um total, fsico e definitivo corpo do mundo. No se trata da soma de corpos sociais espacializados. No se trata, tambm, de um conjunto que se conhece, absoluta e definitivamente, a partir do conhecimento das suas partes porque todo o conjunto e todas as partes esto em movimento. Decorre dessa assertiva que o conhecimento deveria ser um processo sempre em movimento, aberto. A transformao da cincia em tcnica, contudo, fornece a imagem de que o conhecimento tcnico algo sempre em movimento. Mas no . O que se pe em movimento, aqui, a tcnica que se transforma, para conhecer melhor a si mesma, para que alguns a conheam melhor e possam rapidamente aperfeio-la. No se trata, portanto, de um conhecimento que se pe em permanente movimento o movimento seria a razo processual da existncia do conhecimento com o propsito de percorrer e de mapear os movimentos do mundo. Seria mesmo necessrio que fosse assim, nesse caso e nessas circunstncias, pois a totalidade, sempre incompleta, estar sempre em movimento procura da totalizao. Mesmo assim, acolhe-se a leitura feita por Milton Santos (1996a: 95), para quem O conhecimento da totalidade pressupe [...] [a sua] diviso. A cincia moderna: inevitvel a construo da armadilha que a denuncia. Como conhecer a totalidade se o movimento das partes, muitas vezes, constri a invisibilidade de vrias outras? Ainda assim, o conceito de totalidade parece importante para o esforo que aqui se faz. A totalidade do corpo do mundo incorpora corpos de mundo que interagem, menos ou mais intensamente, atravs de contraditrias e conflituosas relaes dialticas. Nessas relaes entre os corpos sociais, h o fortalecimento das desigualdades, das excluses, vigorando, na escala das relaes internacionais regulamentadas pela progressiva expanso capitalista , referncias equivalentes ou muito prximas da

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idia do desenvolvimento6 desigual.7 Nesses termos, j observara Neil Smith (1988:212) que o mundo poderia ser pensado como uma superfcie de lucro. Ele observa: O capital se move para onde a taxa de lucro mxima (ou, pelo menos alta), e os seus movimentos so sincronizados com o ritmo de acumulao e crise. (SMITH, 1988:212). A totalidade do corpo do mundo pensada como uma superfcie de lucro encaminha a reflexo na direo da histria das relaes internacionais de comrcio: sempre foram capitalistas, independentemente da existncia de Estados que tentaram se organizar atravs de projetos socialistas. A partir dos ltimos 20 anos do sculo XX, observa-se a disseminao do capitalismo atravs da globalizao que , conforme observava Milton Santos (1999:34), o pice do processo de internacionalizao do mundo capitalista. Em outros termos, a globalizao hegemnica poder ser interpretada como a internacionalizao do corpo ocidental do mundo que, no prprio Ocidente, produz ausncias ou invisibilidades de outros corpos de mundo. So evidentes as repercusses desse processo no mbito das concepes de mundo8, da cincia e das epistemologias, que cria uma imagem de reduo de alternativas. Acompanharemos, para a continuidade da reflexo, a crtica levada adiante por Milton Santos (1999:37): Nunca pensamos o mundo a partir da Amrica Latina. [...] A gente pensa Europa, Estados Unidos e exclui a frica e a sia. [...] Essa a realidade que cobra de ns uma outra epistemologia. V-se que h excluses. A leitura do corpo ocidental do mundo exclui6 A literatura que trata da teoria do desenvolvimento j farta e rica. Os tradicionais conceito e modelo de desenvolvimento so permanentemente interrogados ao longo da histria (WOLFE, 1976; SACHS, 2000). Mas seria preciso reinventar o conceito de desenvolvimento, reinventando o prprio desenvolvimento. Entretanto, isso se daria a partir de prticas e de referncias que contradizem as prprias idias de progresso contidas nos projetos desenvolvimentistas, tambm disseminadas pelos diversos corpos sociais de mundo. Em curto prazo, como resolver tal dilema? No ser mesmo possvel. 7 Cf. SMITH,1988. 8 Sobre os significados de concepo de mundo, Henri Lefebvre (1974) encaminha anotaes que so incorporadas argumentao. O que uma concepo de mundo? uma viso de conjunto da natureza e do homem, uma doutrina completa. Num sentido, uma concepo de mundo constitui o que chamamos, tradicionalmente, uma filosofia. Contudo a expresso possui um significado mais amplo do que o termo filosofia. Em primeiro lugar, toda a concepo do mundo implica uma aco, isto , algo mais do que uma atitude filosfica. [...] Em segundo lugar, uma concepo do mundo no , forosamente, obra deste ou daquele pensador. Tratase, antes, do produto e da expresso de uma poca.

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outros corpos de mundo. No apenas um problema da cincia, mas um problema-dilema que decorre da mutilao do corpo-pensamento. Outra epistemologia, como nos diz Milton Santos, demandaria uma transformao de ns mesmos para que pudssemos pensar a partir das nossas mutilaes j naturalizadas. Somente assim poderamos pensar e caminhar na direo de outro mundo. O corpo do mundo: um conceito-metfora? certo que o corpo do mundo no seria restrito ao corpo ocidental do mundo. Entretanto, o corpo ocidental do mundo o corpo hegemnico do mundo. Ainda so indispensveis algumas anotaes substantivas, diante das adjetivaes. O corpo ocidental do mundo no um corpo geomtrico que se restringe ao ocidente do mundo. H ocidentes disseminados por todo o mundo, na contemporaneidade. A disseminao da modernidade implicou a ocidentalizao de diversos recortes de mundo que no esto nas cartografias convencionais do Ocidente. Entretanto, ainda que o lugar sociolgico do nosso discurso seja ocidental, a reflexo terica que se faz poder ultrapassar a leitura do no-ocidental feita pelo ocidental. A partir do instante que se concebe a existncia de corpos de mundo alternativos ao hegemnico e ocidental corpo do mundo, pretende-se no apenas descortinar o mundo em sua diversidade como, sobretudo, respeitar a diferena de modo a compreender, noutros termos, a prpria diversidade. O corpo ocidental do mundo incorporou valores que o distingue dos demais corpos de mundo. Tal distino procura os caminhos da hierarquia de modo a compreender o que se distingue como superior ao que no hegemnico. Portanto, a distino no apenas desrespeita a diferena como refora a desigualdade entre corpos sociais de mundo. Ser o corpo ocidental de mundo aqui tomado, em primeiro lugar, como o tecido prevalente, na modernidade ocidental, de relaes sociais contextualizadas pelos hegemnicos ambientes econmicos, polticos e culturais. Em segundo lugar, ser tal corpo aqui considerado mesmo como o corpo social coletivo e hegemnico que, na sua hegemonia, de diversas naturezas, se movimenta de modo a contagiar e a absorver os demais corpos de mundo a ele alternativos. Diante disso, h uma suposta tendncia padronizao social espacializada que, contudo, no se realiza por motivos fundamentais: a) o corpo do mundo, ocidental, carrega

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consigo as fraturas, conflitos e mutilaes que lhe concederam existncia: ele no produto de um consenso, mas de um permanente conflito; b) a diversidade alternativa de corpos de mundo tambm coletivos movimentam-se no sentido contrrio das hegemonias. No se trata, pois, aqui, de reforar o antagonismo, na teoria social, entre o indivduo e o social coletivo: entre Weber e Marx, entre as individualidades e as estruturas, entre o micro e o macro. Diante do que se expe e se discute, a individualidade do corpo do sujeito de algum modo est encarnada no corpo social coletivo. O corpo mutilado do sujeito repercute no apenas na mutilao do coletivo corpo social como, tambm, na estruturao do corpo social do mundo. Os processos de mutilao do corpo se exercitam como mediaes dialticas entre as individualidades e as coletividades, entre os sujeitos e as estruturas sociais que, por sua vez, portanto, ainda naturalizam a social mutilao do corpo atravs de valores universais que se degradam e perdem significado. certo que as individualidades so mais percebveis e explicitadas no universo das comunidades do que no universo das sociedades. Entretanto, h mais complexidade terica implcita na observao. H diversidade nos interiores de todos os universos. Ainda assim, a complexidade desconsiderada pelos modelos convencionais produzidos e utilizados pela cincia moderna e pela teoria social convencional. A desconsiderao das individualidades pela leitura estrutural decorrente de dificuldades e precariedades metodolgicas tal como concebidas pela cincia moderna e por seus paradigmas. O mesmo dever ser dito acerca das leituras das individualidades que, por ausncia de foco terico e interpretativo, vem diludas as suas identidades nas estruturas. Entretanto, as individualidades e as diversidades sempre estaro presentes nas estruturas e, mais do que isso, sempre sero definidoras, de alguma maneira diversificada, por intermdio de relaes complexas e dialticas, tambm, das estruturas sociais. Contudo, a leitura oposta tem encontrado na teoria social crtica mais legitimidade: as estruturas seriam definidoras das individualidades. Como reagir questo posta? H relao dialtica, complexa, processual, dinmica entre as individualidades e as estruturas. Se a cincia moderna, desde os clssicos da teoria social, no supera tal problema porque, atravs dos paradigmas da modernidade ocidental, procura muito

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mais explicar como a realidade na pressuposio da existncia de uma ensimesmada realidade objetiva, supostamente fora do eu , com a utilizao de metodologias tambm fundamentadas em tal pressuposto, e muito menos fornecer interpretaes crticas e criativas de um mundo que, aos nossos olhos, torna-se progressivamente mais complexo. Ser preciso, atravs de modelos que desejam ser alados condio de teorias, reduzir ou simplificar para explicar? inevitvel porque o corpo da cincia , tambm, um corpo mutilado e mutilador. Seria preciso uma cincia reinventada, a partir de outros pressupostos que ultrapassassem os da cincia moderna, a partir de outros paradigmas fundamentados na diversidade epistemolgica do mundo, para construir respostas mais fortes para as questes postas pelo mundo moderno e para fornecer imagens tericas mais crticas compatveis com as interrogaes originrias da crise do mundo: crise do corpo do mundo, individualidades e coletividades. Por enquanto, ser preciso sublinhar que as individualidades esto encarnadas no corpo dos sujeitos do mundo, sempre sujeitos dos lugares, que fazem coletivamente o ocidental corpo do mundo. Por sua vez, o ocidental corpo social do mundo estruturado a partir de relaes sociais que se do, tambm, entre as individualidades, entre os sujeitos dos lugares. A natureza de tais relaes permite aproximaes de compreenso acerca do carter do corpo dos sujeitos e do prprio ocidental corpo do mundo. O mundo aparentemente assumiu uma condio predominantemente econmica. Os mercados se tornariam globais ou tenderiam a se estender na direo dos espaos econmicos globais. Apesar das diversidades existentes entre territrios culturais e socioeconmicos, foram construdas as trajetrias conceituais que permitiriam a concepo de uma denominada economia global, de um mercado global feito da integrao perversa e desigual das mais variadas economias regionais e continentais. A partir de um determinado momento da histria, os fluxos econmicos j no mais apenas circulariam globalmente nos ritmos convencionais da economia: j se estaria, nos umbrais do sculo XXI, no territrio dos mercados econmicos digitais, no mbito da globalizao econmica e hegemnica digitalizada. Isso faz imaginar um mundo recoberto por uma pelcula, supostamente sem lacunas de qualquer espcie, estruturada pelo capital e pelos valores mercantis. O corpo do mundo estaria sendo, progressivamente, ao longo

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das ltimas dcadas, recoberto por uma derme de natureza mercantil. Do corpo do mundo, aparentemente pouco escaparia desse processo de mercantilizao, ainda que resistncias notveis, que se do nos lugares, na escala dos cotidianos, e que ecoam na escala social dos territrios, merecessem discusses e reflexes especficas. Em princpio, poder-se-ia pensar que o contedo desse corpo terminaria por ser contaminado ou infiltrado por tal pelcula cultural e de natureza mercantil. O resultado desse processo: a relao entre a derme e todo o corpo uma relao social, poltica, cultural tender a transformar o corpo e, conseqentemente, o sentimento e o pensamento do corpo. Entretanto, ainda h o que pensar sobre as relaes entre os corpos e a referida derme. O corpo e a derme so, de fato, um s processo: tal como formas e contedos. Mais do que isso, as formas so providas de contedos que se apresentam exclusivamente como formas, aparentes, e tais contedos refletem o vazamento, dos interiores para os exteriores, de contedos do corpo. A incorporao do movimento inverso que, por sua vez, sempre se articula ao movimento dos contedos na direo da derme ou das superfcies constitui algo que se assemelha idia de totalidade: da derme para o corpo h vazamentos e, a partir de ento, j no se pode afirmar que derme e corpo sejam processos distintos ou universos feitos de contedos de natureza distinta. Contudo, a presente reflexo terica no se fecha. Ela a representao de um campo aberto. Por qual razo bsica? Porque a prpria diversidade, inscrita nas individualidades, nos sujeitos, nas comunidades, assim como nos corpos sociais alternativos de mundo, contraria a existncia de um modelo geral referente ao processo que envolve formas e contedos, dermes e corpos. O corpo que sente para pensar um corpo que pensa, a partir de ento, na contemporaneidade, sob referncias predominantemente mercantis. Sendo assim, os valores e a moral do corpo do mundo ocidental so progressivamente alterados e no se reconhecem, sem constrangimentos, diante dos valores que se referem tica, justia social, emancipao (SANTOS, 2006, 2007). Entretanto, isso no tudo. A derme mercantil do ocidentalizado corpo do mundo capitalismo que se intenacionaliza ignora a diversidade de corpos do mundo. O corpo do mundo feito de vrios corpos de mundo, e o mundo so vrios. No entanto, o corpo moderno e ocidental do mundo incorpora os valores que tendem

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a ignorar ou invisibilizar, deslegitimar ou desqualificar os demais corpos do mundo. Tal processo no apenas mutila a totalidade dialtica do corpo do mundo, como, tambm, o prprio corpo moderno ocidental do mundo. Talvez por tal razo, tambm, percebe-se, cada vez mais, a presena do princpio dialtico da apropriao/violncia nos lugares do mundo onde supostamente haveria a exclusividade do princpio da regulao/emancipao (SANTOS, 2007). O fascismo social, tal como observa Boaventura de Sousa Santos (2007), uma dessas presenas no mundo europeu. Por outro lado, as conseqncias da radicalizao conservadora da economia moderna uma manifestao da radicalizao da modernidade so, na contemporaneidade, bastante perceptveis. A lgica do mercado, diante disso, estaria a se inserir, progressivamente, em todos os setores da vida social. Com o processo de espraiamento dos mercados, portanto, algumas importantes transformaes se sucederam nos domnios das sociedades e das culturas. Os valores econmicos no apenas se transformaram definitivamente em hegemnicos como, tambm, contaminaram todos os demais valores. Sublinha-se a interrogao: como conceber, sem indignao, a degradao de valores, especialmente ticos, a partir das inevitveis prevalncias, sobretudo nas sociedades ocidentais, de valores mercantis? De algum modo, menos ou mais intensamente, todos os setores das sociedades modernas experimentaram e ainda fortemente experimentam os impactos de tal processo. A prpria leitura do mundo assim como dos vrios mundos trabalhada pela cincia j extremamente contaminada pela transformao dos valores. A cincia e a universidade modernas, com especificidades regionais e continentais a serem trabalhadas, curvaram-se diante de um mercado invasor que no s contamina valores acadmicos mas, tambm, faz com que a prpria academia, em algumas circunstncias no veloz ritmo da economia, se transforme em mercado. A partir de ento, a prpria idia de invaso, nos termos em que se pensa o referido movimento, passa a ser interrogada. O mercado deixa de ser invasor quando a universidade se transforma em mercado. Na contemporaneidade, a leitura do mundo em permanente transformao poder, afinal, ser mesmo econmica. Ainda assim, ao escapar de forte economicismo, imagina-se que a leitura econmica do mundo,

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crtica e reflexiva, o conceberia para alm da convencional leitura econmica que dele costumeiramente se faz. Imagina-se que a prpria economia se serviria de suas fronteiras, de suas zonas de contato, para que pudesse, ento, criticamente se transformar com base nas demais leituras do mundo, sobretudo nas contra-hegemnicas: as cincias econmicas vistas, assim, para alm dos seus conservadores limites. Aqui, j se est, pois, no domnio da teoria crtica a se repensar, assim como no territrio das utopias que servem no apenas como referncias mas, sobretudo, como um exerccio que nos devolve a prxis transformadora a se inserir no prprio processo de produo do conhecimento. Conhecer o mundo saber o mundo, aprender o mundo para desaprend-lo, e, coletivamente, j no processo solidrio de produo do conhecimento, tranformar o mundo tal como nos caberia fazer. Para tanto, o empreendimento de transformao do mundo pressupe, antes de tudo, a transformao de ns mesmos. Isso valeria, talvez mais, para as cincias sociais e, particularmente, para a economia. Entretanto, no h conhecimento ou saber que impunemente possa se ausentar dos processos de transformao. No h neutralidade ou imparcialidade e, j no seu primeiro momento, o discurso terico prtica que transforma. Tal referncia, diante da ampla crise, deveria valer, portanto, para a cincia e para todas as disciplinas que desejam a sabedoria. H, contudo, grandes dilemas que merecem ser focalizados. A despeito das condies predominantemente econmicas, o mundo no a economia do mundo, exclusivamente, ainda que os no solidrios valores disseminados do mercado tenham subvertido a prpria idia cultural de valor. O mundo feito da histria dos sujeitos do mundo que carregam dilemas essenciais: a vida e a vida de qualidade, por exemplo, no se submeteriam, sem indignao, aos valores institudos pelo mercado. A vida no se curvaria aos valores mercantis que subvertem o sentido da vida. Em outros termos, os significados da vida no poderiam se corromper sem perder os seus prprios significados, diante dos valores mercantis. A referida corrupo compromete a prpria vida para alm dos valores que incorporou para sobreviver como vida indigna. A modernidade poder fazer com que se viva mais. Entretanto, no contexto de subverso de valores, no cenrio de extrema barbrie e de competio, a referida

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alterao no tempo de vida no se traduz em uma vida melhor.9 O sujeito do mundo se expressa atravs de um corpo histrico mutilado pelos valores da modernidade. Tal situao representada por contradies, fraturas, assim como por dilemas incorporados pelos sujeitos do mundo diante da crise de mundo: crise do corpo e do pensamento do mundo. inevitvel que caminhemos na direo, aqui, das recentes referncias fornecidas por Boaventura de Sousa Santos (2007). Carregamos, dentro de ns, as linhas abissais, linhas-limite, que nos pem em conflito e que nos dividem. A indignao diante da referida mutilao poder mesmo, como observava Milton Santos (2001), originar-se dos denominados homens lentos, da pobreza e da excluso, dos territrios do Sul sociolgico: indignao que se manifestaria atravs do desejo de transformao, distante das classes corrompidas pela fbrica cultural do consumo, distante das fraes sociais mais abastadas e comprometidas com os interesses hegemnicos. Entretanto, tambm eles, homens lentos, podero carregar consigo os sonhos de uma incluso cujo processo est estruturado pelo prprio processo que os excluem. Assim, nesses termos, carregariam o desejo de transformao, mas, contraditoriamente, o da permanncia. Por qual razo isso se d? Porque no contexto do terror e da barbrie, a competio que aniquila emerge como a nica alternativa de defesa nas circunstncias de ausncia ou fragilidade de solidariedade coletiva. A soluo para os sofrimentos da vida indigna, aqui, nos termos em que se apresenta a questo, na ausncia da crtica indignao, na prevalncia dos paradigmas da modernidade conservadora, no passaria pela reconstruo dos valores da vida, dos valores sociais e culturais. Ainda que a economia tenha subvertido corpos, tanto os fixos como os moventes, dotando-os de imagens e de valores econmicos, ser sempre possvel compreend-los a partir da relao que estabelecem com o mundo que no exclusivamente mercado de mundo que, por sua vez, expressa-se nos lugares, nos territrios, nas paisagens. O mundo, em si, em princpio, uma idia histrica desterritorializada. Entretanto, ainda se poderia dizer que o mundo em si no existe porque nada existe por si s. O mundo em si no passa de uma suspeita abstrao, quando se pensa9

Cf. HISSA (2008a).

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que a vida e as existncias se do nos lugares, na escala dos cotidianos. A existncia do mundo se d a partir da concepo de conceitos hbridos: mundo-lugar; mundo-territrio; espao-mundo. Existiria, portanto, uma escala sociolgica de mundo que se expressaria nos lugares da vida cotidiana, nos territrios que, utilizados, expressam-se de diferentes modos. Contudo, haveramos sempre de nos perguntar: qual mundo, dentre tantos, no encontraria as suas espacialidades para que pudesse existir? Como pensar, na teoria crtica contempornea, o tempo e o espao como categorias puras e independentes? No seria possvel: o que estaria a dizer a teoria social crtica reinventada a partir de referncias distintas daquelas que constroem a cincia moderna. A presente discusso poder ainda ser expandida atravs de uma reflexo sobre a existncia do corpo nas paisagens que se transformam, menos ou mais intensa e rapidamente, constituda por objetos fixos por algum tempo, por objetos em trnsito, efmeros conforme a natureza dos fluxos. Corpos fixos e em trnsito: a sua categorizao est subordinada aos ritmos e velocidades dos movimentos; a sua datao a marca da sua transitoriedade ou da sua relativa permanncia. Os processos econmicos podem ser compreendidos a partir da compreenso dos feixes de fluxos provocados por pontos fixos, tal como observava Milton Santos (1988:78). Dado o movimento constante, desenvolve-se a imagem terica do que fixo, assim como da imutabilidade da prpria paisagem ou do espao-paisagem, como desejou Milton Santos (1978). Tal como pensa o gegrafo, a paisagem, espao-paisagem, cumpriria papis de testemunha ou da memria de um presente que j foi (SANT