Compulsão à repetição e o princípio de prazer - Andre Green

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    133Revista Brasileira de Psicanlise Volume 41, n. 4, 133-141 2007

    Compulso repetio e o princpio de prazer1

    Andr Green2

    Resumo:O autor procura demonstrar que a compulso repetio pode ser tambm encontradaem material distante da atuao. Salienta, em exemplo clnico, a qualidade alucinatria do ato derelembrar como efeito da negao, e no da represso. Complementa ainda os conceitos de ligaoe desligamento, relativos ao princpio de prazer-desprazer, enfatizando a importncia da perda designicado do contedo do objeto, com ou sem atuao.

    Palavras-chave: compulso repetio; negao; ligao; desligamento; perda de signicado.

    Freud inicia seu artigo sobre Recordar, repetir e elaborar lembrando as mudanasda tcnica psicanaltica desde as origens. Todas as tcnicas anteriores a 1914 levaram emconta, direta ou indiretamente, a recordao. Freud fala at de um impulso recordao(SE, v. 12, p. 151). Ele ope esse impulso compulso repetio, observada sempre quea recordao falha.

    Um dos aspectos desse artigo transformador que ele obriga Freud a abandonar suaconana excessiva no recordar. Hoje compreendemos que, na verdade, uma recordaocompleta impossvel. Nenhum paciente pode realmente se lembrar de todas as incidnciase conseqncias de um evento. Se a pessoa se lembra de um fato atravs da memria, elegeralmente est dissociado, para evitar a repetio de sua natureza traumtica vinculada aoutros aspectos seus, isto , a qualidade alucinatria do relembrar, sua qualidade de estra-nheza [uncanny], sua ressonncia no corpo etc. Retomarei esse ponto adiante, no materialclnico. Como Freud descreve no caso de alguns pacientes:

    [] o paciente no se lembra de nada do que ele esqueceu e reprimiu, mas ele o atua. Ele o

    reproduz no como memria, mas como uma ao; ele repete,sem saber, claro, que est repe-

    tindo (Freud, SE, v. 12, p. 150).

    De modo geral, aceita-se que aqui a recordao toma a forma de ao. Desejo dis-sociar a compulso repetio de sua expresso atravs da ao. Do meu ponto de vista, a

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    Conferncia especial apresentada no 45 Congresso Internacional da IPA Berlim 2007: Remembering,Repeating and Working Trough in Psychoanalysis and Culture oday. Ttulo original: Repetition compulsionand the pleasure principle. Traduo do ingls:Denia Hukai (membro aliado do Instituto de Psicanlise deSo Paulo), com RBP.

    2 Membro titular da Socit Psychanalytique de Paris SPP.

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    compulso repetio pode ser encontrada em material que no ao. A repetio no prejudicial em si. O que prejudicial que o paciente parece ignorar totalmente as relaesentre os fragmentos repetidos. Eles so postos lado a lado sem qualquer conexo. Em algunspacientes, a compulso para repetir pode ser precedida por uma paralisia da comunicao.

    O paciente, que foi informado sobre a regra fundamental, faz de conta que no temnada a dizer, apesar de ter uma histria repleta de acontecimentos e de longos relatos dedoenas: Ele est silencioso e declara que nada lhe ocorre (ibid., p. 150). No acredito,como faz Freud, que isso possa ser tomado como mera repetio de uma atitude homosse-xual em relao ao analista, usada como resistncia.

    Chama minha ateno o fato de que o que Freud descreve aqui tenha sido encon-trado tambm pela Escola Psicossomtica de Paris em pacientes que sofrem de limita-es no funcionamento mental. Parece que estamos frente mesma situao: um defeitotemporrio do funcionamento psquico. Se nada ocorre ao paciente, que pode apresentar

    uma mente vazia [blank mind], isso se d obviamente para impedir qualquer associaoe, assim, evitar a possibilidade de atribuir um signicado ao que ocorre na sesso. Essano apenas uma conseqncia da represso; tambm uma expresso mais radical, umefeito da negao.

    O importante o elo no reconhecido entre o ato e seu contedo, que tambmpode ser encontrado de outras maneiras. A especicidade da compulso repetio o fatode se repetir de diferentes modos, mas sem nenhuma conscincia de que se est repetindoum mesmo contedo similar. As diferentes formas de repetio parecem no se relacionarumas s outras. A falha de reconhecimento dos diferentes modos de repetir responsvel

    por sua recorrncia continuada.Em outras palavras, no h reconhecimento dos diferentes modos da repetio; o

    fato de todos eles lidarem com o mesmo contedo negado. Entretanto, quando Freudretomar esse tpico uma segunda vez, emAlm do princpio de prazer,em 1920 seis anosdepois , ele examinar de que maneira essa compulso se relaciona com o princpio deprazer:

    Mas, como a compulso repetio a manifestao do poder do reprimido se relaciona com

    o princpio de prazer? claro que a maior parte do que reexperimentado sob a compulso re-

    petio tem de causar desprazer para o ego, j que traz luz atividades dos impulsos instintivosreprimidos. Este, entretanto, desprazer de um tipo que ns j consideramos e no contradiz o

    princpio de prazer: desprazer para um sistema e, simultaneamente, satisfao para outro. Mas

    ns agora chegamos a um fato novo e muito digno de nota, ou seja, que a compulso repetio

    tambm traz de volta, do passado, experincias que no incluem a possibilidade de prazer e

    que nunca podem, mesmo num passado remoto, ter trazido satisfao, mesmo para impulsos

    instintivos que tenham, desde ento, sido reprimidos (Freud, SE, v. 18, p. 20).

    Assim, esse parece ser o m da soberania do princpio de prazer; sob a presso de

    uma compulso, as situaes indesejadas e as emoes dolorosas so repetidas. A hiptesede uma compulso repetio parece mais primitiva, mais elementar, mais instintiva doque o princpio de prazer, que ela sobrepuja (ibid., p. 23). Essa a armao mais extremade Freud sobre a compulso repetio.

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    Estamos denitivamente alm do princpio de prazer? Podemos pensar que o queFreud expe em 1920 a sua opinio nal, mas estaramos errados. Na verdade, abando-nar a soberania do princpio de prazer foi uma deciso muito perigosa, pois abrir caminhopara as pulses destrutivas reforou a compulso repetio. Freud tambm acrescenta:

    [] a compulso repetio e a satisfao instintiva, que imediatamente prazerosa,parecem convergir, aqui, para uma relao ntima (ibid., p. 23). Encontramos aqui maiscomplementaridade do que antagonismo.

    Retomando novamente o assunto em O problema econmico do masoquismo, de1924, Freud considera os perigos do masoquismo. Em decorrncia, amplia o poder do prin-cpio de prazer: Estamos tentados a chamar o princpio de prazer de vigia da nossa vida,ao invs de meramente da nossa vida mental (SE, v. 19, p. 159). Pois, aps a introduode ambas as pulses, a de morte e a destrutiva, no apenas a vida mental que tem de serprotegida, mas, na verdade, toda a nossa vida.

    Percebendo que errara em compreender o princpio de prazer em termos mera-mente quantitativos isto , reduzindo tenses , Freud conclui que era necessrio levarem conta alguma caracterstica dele que [se pudesse] descrever apenas como qualitativa(ibid., p. 160) e atribui ao instinto de vida a tarefa de representar as demandas da libido: Aconcluso a ser tirada dessas consideraes que a descrio do princpio de prazer como o

    vigia de nossa vida no pode ser rejeitada (ibid., p. 161).Vemos ento que, depois da onda de difuso do instinto de morte, num movimento

    posterior o poder do princpio de prazer-desprazer restaurado. Embora sejamos con-frontados com uma fuso dos instintos de vida e morte, estar vivo um testemunho da

    preeminncia da ao combinada das pulses de vida e do princpio de prazer-desprazer.Terminando sua obra com o Esboo, Freud conclui:

    O id obedece ao inexorvel princpio de prazer. E no apenas o id. Parece que a atividade dos

    outros agentes psquicos tambm apenas capaz de modicar o princpio de prazer, mas no de

    anul-lo; e permanece uma questo da mais alta importncia terica, e uma que ainda no foi

    respondida, quando e como seria possvel, em algum momento, o princpio de prazer ser supe-

    rado (Freud, SE, v. 23, p. 198).

    Parece, aqui, que inexorvel seria uma qualidade mais apropriada para qualicar acompulso repetio.Como deveramos encarar as contradies e mudanas de opinio de Freud? Sem

    dar uma resposta denitiva a essas questes, talvez alguns argumentos do captulo nal deAlm do princpio de prazer(cap. 7) nos dem uma indicao. Freud escreve:

    Descobrimos que uma das funes mais primitivas e mais importantes do aparelho mental

    ligar os impulsos instintivos que vm de encontro a ele. [] A ligao um ato preparatrio que

    introduz a dominncia do princpio de prazer (Freud, SE, v. 18, p. 62).

    A ligao vista como uma funo preliminar que serve para mostrar o caminho paraa eliminao nal no prazer da descarga. Tal preliminar parece estar ausente na compulso repetio. Freud nos d uma explicao esclarecedora sobre isso. No despertar da vida, h

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    muitas falhas que impedem o princpio de prazer de funcionar nas formas primrias da vidamental. Posteriormente, o domnio do princpio de prazer muito mais assegurado (ibid.,p. 63). No incio da vida mental a luta por prazer muito mais intensa do que em pocasposteriores, porm mais restrita; tem de se submeter a freqentes interrupes.

    Quero especicar que minha compreenso de ligao diferente da de Freud. Paraele, o processo primrio uma expresso de desligamento. Visto de uma perspectiva maismoderna, na qual as pulses so consideradas menos elementares e a organizao pulsionalest presente desde o incio, o conceito de ligao pulsional tambm est presente nesse es-tgio. No precisamos relacionar a ligao apenas passagem do processo primrio para oprocesso secundrio. A ligao uma caracterstica da organizao pulsional mesmo antesde se tornar uma expresso dos processos primrios. Portanto, uma forma de atividade pri-mitiva intensificada pela organizao pulsional, antes mesmo da passagem do processoprimrio para o secundrio. Em outras palavras, o desligamento est relacionado a meca-

    nismos muito primitivos; uma das expresses de falha que impedem o acesso ao princpiode prazer-desprazer.

    Podemos identicar nessas falhas uma das razes pelas quais o surgimento da com-pulso para repetir no estabelece relaes entre os fragmentos repetidos, sua tendncia descarga e sua expresso por contedos tanto desprazerosos como prazerosos. Descargano signica atuao, mas livrar-se do signicado do contedo, com ou sem atuao.

    Como a ligao trabalha em conjuno com o desligamento, as falhas de ligao emarmar o domnio do princpio de prazer podem ser atribudas a um desenvolvimento exces-sivo dos processos de desligamento. Isso acontece sempre que h uma recusa das respos-

    tas do objeto, como forma de protestar contra sua natureza insatisfatria. Nunca nenhumsentido geral revelado para formar um grupo coerente de idias. O desligamento tornaqualquer grupo de idias descoordenado e sem sentido. E quando esta est no auge que opaciente se torna silencioso. Nada lhe ocorre e, mesmo que ocorra, ele no ser capaz deexpress-lo.

    Assim, a ao ou a atuao no o nico meio pelo qual a compulso repetio seexpressa. A perda de signicado uma conseqncia de as experincias serem desligadas.

    Exemplo clnico

    A paciente, uma mulher em torno dos cinqenta anos, uma psiquiatra que trabalhanuma instituio para adolescentes que sofrem de desordens de carter. Eu a vejo h mais dedezoito anos numa relao face a face, trs vezes por semana. Ela havia feito vrias tentativasde suicdio e apresentava comportamento compulsivo. Inicia a sesso dizendo que ocorreraum estupro na sua instituio. Acrescenta que as coisas mudaram: no passado, o estupradorteria sido excludo da instituio imediatamente, sem que os funcionrios quisessem ouvirnada sobre as circunstncias do estupro. Hoje diferente, a situao investigada. Tanto a

    vtima do estupro como o estuprador so ouvidos com um esforo de compreenso. Supus

    que ela talvez quisesse compreender mais sobre aspectos de sua prpria histria.Depois de ouvi-la por algum tempo, decidi intervir e lhe disse que esse relato doestupro talvez a tivesse feito pensar sobre as relaes sexuais entre os pais dela, sobre asquais me falara muitas vezes no passado. Ela respondeu: Voc quer dizer sodomia? Ah, eu

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    at diria que com eles era um tipo de exibicionismo, gritos, choros, respirao arfante, umaagitao que no parava. Essa era a interpretao que dava toda aquela excitao.

    A paciente estava convencida de que seu pai era violento a me noite. Todo anoite-cer ela descarregaria o revlver que ele deixava trancado na mesinha-de-cabeceira para se

    defender de potenciais agressores. Ao terminar a sesso, mantenho a associao para mimmesmo.

    Na sesso seguinte ela no vem. Na outra, ela aparece excessivamente surpresa: Dr.Green, eu no sei o que aconteceu depois da ltima sesso. Eu tinha parado de beber faziadois meses, mas depois da sesso eu bebi uma garrafa e meia de champanhe. alucinante!E ela repete: alucinante!. Eu digo a ela: Sim, aquela evocao das relaes sexuais dosseus pais foi para voc como uma alucinao que a levou a beber. Estou convencido de que,em paralelo evocao verbal da cena, um funcionamento alucinatrio estava ativo e ela se

    viu apanhada por ele. Sua compulso a beber novamente tinha o sentido de reviver em seu

    corpo uma excitao supostamente associada com a cena. A embriaguez tinha o sentido decompletar a expresso verbal usada na recordao do passado.

    Algum tempo depois, a paciente me contou que havia parado de beber. Mas, passadosdois anos, durante uma fase de conito com a me, ela teve um pesadelo incompreensvelque a deixou transtornada. O pesadelo era muito difcil de descrever, representando pes-soas com rostos estranhos. A paciente chegou a dizer que as pessoas tinham rostos muitoincomuns e que no conseguia reconhec-los. Moviam-se juntas, agindo de maneira queela no era capaz de descrever. Dessa vez, a estranheza a subjugava completamente. Ela nocompreendia o que estava por trs das cenas que sonhara e no podia fazer qualquer suges-

    to sobre seu signicado. A exemplo dos pacientes de Freud, quando questionada minhapaciente se manteve em silncio, dizendo que nada lhe ocorrera e que ela no conseguiaencontrar nenhum signicado para isso.

    Para mim, era bvio que o pesadelo trazia um mesmo contedo de antes, era outraverso de uma fantasia da cena primria que ela no poderia admitir que ainda estivessepresente nela, e ainda ativa. A paciente estava um tanto deprimida e apresentava umamente vazia [blank mind]. Permaneceu aproximadamente dois meses nesse estado desuspenso de qualquer atividade mental. Nenhum dos meus encorajamentos para queassociasse surtiam efeito, at que, de repente, ela reatuou comigo o mesmo comporta-

    mento que havia tido com seu analista anterior, um colega muito hbil. Ela se evadiu, nocomparecendo s nossas sesses posteriores, fazendo-se inalcanvel, sem dar nenhumajusticativa para a interrupo, apesar dos vrios convites para que viesse me ver. Devoconfessar que eu j havia considerado essa possibilidade, mas me sentia falsamente pro-tegido contra essa eventualidade, j que a transferncia estava bem enraizada e resistira atais ameaas no passado.

    O que quero enfatizar que, alm da expresso verbal do trauma no passado, umaexcitao concomitante a ela a forou a completar a ao das palavras atravs da neces-sidade de repetir a excitao no corpo. Quando ela diz Isso alucinante, no se trata ape-

    nas de uma gura de expresso; esta revela tambm um processo alucinatrio potencial queinunda a lembrana ao vir tona. A alucinao, de um lado, e a embriaguez, de outro, estosaturando a experincia. Mas no pesadelo o contedo estava muito perto de ser compreen-dido por ela. Tinha de ser negado.

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    Quando a compulso repetio produz o pesadelo, nada da lembrana anterior reconhecido. Ao contrrio, sentimentos de estranheza relacionados ao misterioso, ao si-nistro [uncanny], no permitem reconhecer nada. A ansiedade, entretanto, est aqui, maisimportante do que nunca, e a nica soluo fugir, o que em si tambm uma repetio.

    Portanto, durcharbeiten(a elaborao) requer da paciente coragem para suport-la. A fugapode ser compreendida ainda como manifestao do princpio de prazer contra a conscin-cia da compulso repetio, s custas de perder a possibilidade de encontrar um signi-cado para ela.

    Concluso

    Como devemos compreender as relaes entre a compulso repetio e o princpiode prazer?

    Um ponto central na teoria de Freud a relao das pulses com o corpo. As pulsesno so expresses diretas do corpo. Por exemplo, no Esboo, Freud escreve: No podehaver dvidas de que a libido tem fontes somticas, que ela ui para o ego a partir de vriosrgos e partes do corpo (SE, v. 23, p. 151). No mesmo trabalho escreveu tambm sobre oid: [] ele contm os instintos que se originam da organizao somtica e que encontramuma primeira expresso psquica aqui [no id], em formas que nos so desconhecidas ( SE,

    v. 23, p. 145). Dessa ltima observao, segue-se que, mesmo quando estreitamente ligada organizao somtica, h uma transformao da primeira expresso psquica numa formaque nos desconhecida.

    O que essa transio? Como podemos imagin-la? Quando Freud se critica por suaassim chamada inspirao biolgica, esquece-se que ele no mistura a organizao somticacom a primeira expresso psquica. Em nossa compreenso, esse, fundamentalmente, otrabalho que leva s pulses, por misterioso que seja.

    Propomos compreender a passagem da organizao somtica para a primeira expres-so psquica como resultado da interao entre dois seres. Em outras palavras, o contatocom a me que cria a primeira expresso psquica.

    Assim, a referncia s pulses no implica, de modo algum, uma referncia a algumaorganizao psquica elementar. Em perodo recente, ao discutir se determinadas organiza-

    es mentais so psicossomticas ou psicopticas, diferentes autores chegaram concluso deque faltava algo na suposta organizao pulsional do paciente, como se tivssemos ido almda organizao pulsional. Chegamos concluso de que a essa organizao, diferentemente doque se costuma compreender, j uma organizao complexa, aspecto que Freud no poderiadescobrir em razo da sua falta de experincia com estruturas mentais regredidas.

    Talvez Freud tenha tomado a atividade pulsional como elementar por ter em menteapenas neurticos e psicticos, casos que so, na verdade, estruturas mentais solidamenteorganizadas. Hoje o nosso contato com estruturas menos organizadas desordens de perso-nalidade borderline, constelaes psicossomticas muito mais freqente. Comparados

    a elas, os neurticos e s vezes os psicticos parecem pelo menos mais claros de seremdecifrados, mesmo quando mais difceis de tratar e modicar. por isso que hoje conside-ramos a atividade pulsional mais organizada do que pensvamos. Temos tambm de nosquestionar sobre o princpio de prazer.

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    Talvez devssemos retornar s primeiras intuies de Freud. No incio, aproximada-mente at 1915, Freud usa indistintamente representaes inconscientes e impulsos ins-tintivos, sem estabelecer nenhuma diferenciao precisa entre as duas expresses. Depoisdo artigo sobre Recordar, repetir e elaborar, ele adotar apenas a expresso impulsos

    instintivos. Lemos em O estranho (1919):

    possvel reconhecer o domnio, na mente inconsciente, de uma compulso a repetir que

    se origina dos impulsos instintivos e provavelmente inerente prpria natureza dos instin-

    tos uma compulso sucientemente poderosa para prevalecer sobre o princpio de prazer ,

    emprestando a certos aspectos da mente o seu carter demonaco e, ainda, muito claramente

    expresso nos impulsos das crianas pequenas (Freud, SE, v. 17, p. 238).

    Ele acrescenta que tudo o que nos lembre dessa compulso a repetir percebido

    como estranho e observa tambm que essa compulso sucientemente forte para se colo-car acima e alm do princpio de prazer.

    Portanto, o carter demonaco, que provavelmente se relaciona estreitamente como poder repetitivo dos impulsos instintivos, sobrepe-se a uma organizao mais delicada efrgil: o princpio de prazer, este construdo sobre uma base menos trabalhada do funciona-mento mental. Seria possvel que o princpio de prazer se construsse menos sobre impulsosdo que sobre representaes inconscientes nascidas da experincia? Freud posteriormenteabandonar a referncia s representaes inconscientes, deixando sem resposta as origensdo princpio de prazer.

    A verdadeira mutao ocorrer em 1923, em O ego e o id.No nal do captulo 1,Freud descarta o conceito de inconsciente; forado a admitir vrias formas de ser incons-ciente, ele se distancia do conceito:

    [] ns temos de admitir que a caracterstica de ser inconsciente comea a perder signicado

    para ns. Ela se torna uma qualidade que pode ter muitos signicados, uma qualidade que so-

    mos incapazes de tornar, como teramos desejado fazer, a base de concluses de grande alcance

    e inevitveis (Freud, SE, v. 19, p. 18).

    Com a introduo do id, qualquer aluso a representao inconsciente desaparecee de fato substituda pelo impulso instintivo, que agora se torna o modo de qualicar avida mental elementar.

    Quando Freud decide dar preferncia ao impulso instintivo e abandona a repre-sentao inconsciente, a diferena entre ao e impulso se torna muito pequena. Pode estara a razo pela qual, na compulso para repetir, o paciente s vezes atue em vez de lembrar,como se tivesse tomado o caminho mais curto do impulso para a atuao. Nenhuma me-diao, nenhuma representao, nenhum adiamento. Na compulso repetio, a descargano est na manifestao da atuao, mas na prpria repetio, que o contrrio da elabo-

    rao, visto que, nesse caso, os mesmos contedos so innitamente renovados para ajudarno aparecimento de um novo signicado ou de um signicado oculto.Uma escolha fundamental foi aqui colocada: descarga na eliminao da tenso ou

    elaborao levando representao do objeto.

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    Para evitar o problema da repetio, o sujeito tem de incluir a relao com o objeto.Minha paciente sempre pensou que sua me sabia tudo sobre ela. Segundo costumava dizer,a me sabia melhor sobre seus pensamentos do que ela prpria Ela no tinha nenhumaidia sobre si mesma e, alm disso, segundo disse, no sabia como pensar ou nem mesmo

    o que era pensar. Sua vida era muito restrita. A compulso repetio era um substitutopara o pensamento. Mas, quando a compulso repetio envolveu seu trauma principal, asituao se tornou insuportvel.

    Ao escrever que a hiptese de uma compulso para repetir parece mais primitiva,mais elementar, mais instintiva do que o princpio de prazer, que ela sobrepuja (SE, v. 18, p.22), Freud talvez esteja sugerindo que o princpio de prazer se a em fenmenos complexos:representaes inconscientes, alguma forma de elaborao das pulses, alguma capacidadede escolha entre o prazer e o desprazer, a evitao do desprazer etc.

    Compreendemos, assim, que o princpio de prazer no seja de modo algum um me-

    canismo bsico. O princpio de prazer frgil, delicado, como somos lembrados nas ar-maes de Freud no ltimo captulo deAlm do princpio de prazer. Parece que, mudandopara o modelo da segunda tpica, Freud estava interessado no apenas na descrio de umaatividade mais primitiva do que o inconsciente, mas tambm numa espcie de modo in-domado de funcionamento. E, se o princpio de prazer inexorvel, as pulses destrutivasparecem s-lo ainda mais quando no esto fusionadas com a pulso de vida. como se aorganizao psquica mais antiga, aquela que nunca pode ser domada, fosse a das pulsesdestrutivas. Portanto, mesmo que escolhamos permanecer com a idia de que esse princpiode prazer o vigia sobre nossa vida, tal questo est menos baseada em material em estado

    bruto, mas implica algum tipo de transformao das pulses.Finalmente, podemos sintetizar nossa posio como se segue: se a compulso repe-

    tio demonaca, isso parece decorrer de sua natureza narcsica, que est fadada a se repetirinnitamente. O princpio de prazer se origina de uma evoluo na resposta do objeto epode anal se tornar inexorvel, perdendo sua qualidade de nos salvaguardar, de agir comoguardio da nossa sobrevivncia, e acabar se tornando um aliado da compulso repetio.Mas, em geral, ele age do lado de Eros para preservar nossa vida e lutar contra as pulsesdestrutivas, que ocorrem, em sua maior parte, do lado da repetio.

    Compulsin a la repeticin y el principio del placer

    Resumen: O autor trata de demostrar que la compulsin a la repeticin se puede tambin encontrar en

    el material lejos de la actuacin. Destaca, en ejemplo clnico, la calidad alucinatoria del recordar como

    efecto de la negacin, y no de la represin. Complementa aun los conceptos de ligacin y desligamiento,

    relativos al principio del placer-desplacer, enfatizando la importancia de la prdida de signicado del

    contenido del objeto, con o sin actuacin.

    Palabras claves: compulsin a la repeticin; negacin; ligacin; desligamiento; prdida del signicado.

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    Repetition compulsion and the pleasure principle

    Abstract: Te author tries to demonstrate that compulsion to repetition can also be found in material

    that is distant from acting-out. He highlights, in a clinical example, the hallucinatory quality of remem-

    brance as an effect of denial and not of repression. Te concepts of bonding and separation, related to the

    principle of pleasure-displeasure, are complemented, emphasizing the importance of the loss of meaning

    of the objects content, with or without an acting-out.

    Keywords:compulsion to repetition; denial; bonding; separation; loss of meaning.

    Andr Green

    Socit Psychanalytique de Paris

    9 Avenue de lObservatoire

    75006 Paris France

    [email protected]