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Gladson Pereira da Cunha O DEMÔNIO NO BRASIL COLÔNIA Algumas considerações sobre as impressões da figura do diabo no imaginário popular no período colonial Trabalho apresentado na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em cumprimento as exigências da disciplina Tópicos Especiais de Teologia e História da Igreja I - TEO2277 do Programa de Pós- graduação em Teologia Prof. Dr. Luís Corrêa Lima, S.J.

Comunicação - O Demônio No Imaginário Colonial Brasileiro

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Gladson Pereira da Cunha

O DEMÔNIO NO BRASIL COLÔNIAAlgumas considerações sobre as impressões da figura do

diabo no imaginário popular no período colonial

Trabalho apresentado na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em cumprimento as exigências da disciplina Tópicos Especiais de Teologia e História da Igreja I - TEO2277 do Programa de Pós-graduação em Teologia

Prof. Dr. Luís Corrêa Lima, S.J.

Rio de JaneiroNovembro de 2015

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O DEMÔNIO NO BRASIL COLÔNIAAlgumas considerações sobre as impressões da figura do diabo no imaginário

popular no período colonial

Introdução

O demônio é o senhor do inferno! Por certo, essa afirmação seria algo bem claro na mentalidade cristã no medievo. Então, num silogismo bem simples, se o inferno era uma maneira de se referir a colônia portuguesa na América, mesmo que essa fosse batizada como Terra de Santa Cruz, logo, o Brasil colonial, era a terra do demônio ou o próprio inferno! Tanto, que os impostos que seguiam do Brasil para Portugal eram conhecidos como “o quinto dos infernos”. Mais do que um desprezo ou preconceito da metrópole, esse conceito parece ter se firmado dentro do imaginário português-cristão muitíssimo influenciado por uma teologia popular que evidenciava a figura do demônio dentro da religiosidade do povo lusitano.

A presente comunicação, portanto, pretende apresentar algumas considerações sobre as impressões da figura do diabo no imaginário popular no período colonial. Procurar-se-á apresentar aquilo que se pode, em linhas gerais, delinear a partir de textos importantes para essa compreensão, como o estudo extenso de Laura Souza de Mello, O diabo na terra de Santa Cruz, bem como do folclorista Luís da Câmara Cascudo, em Dicionário do Folclores Brasileiro, entre outros.

Apontamentos Iniciais: A religiosidade no Brasil colônia

Dentro do cenário da religiosidade popular brasileira, a figura do demônio é algo tão antigo quanto a própria descoberta destas terras pelos portugueses, ou ainda mais antiga, quando o primeiro indígena pôs os pés aqui e se amedrontou com os sons e ruídos vindos das matas. Aliás, os próprios índios eram

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considerados o povo do diabo, como afirmavam os jesuítas. Desta forma, o diabo também seria senhor das terras descobertas, de modo que o ele “não entregaria o seu povo de mão beijada ao inimigo; a cada avanço da evangelização, ele esbravejava, demonizando a natureza e se inscrevendo no cotidiano”. Assim, a presença diabólica era oficialmente proclamada pela Igreja no Brasil do século XVI, e fartamente documentada pela Visitação do Santo Ofício ao Brasil, em dois volumes.

O fato é que havia uma confusão instalada na mentalidade portuguesa que teve lugar no cristianismo desde a Idade Média. Paulatinamente, o demônio foi sendo colocado em evidência dentro do cristianismo. O ensino pastoral passou a priorizar o mal e suas consequências, ao invés de dar atenção ao foco da religião, Deus e seu amor e graça. Até mesmo os reformadores não abriram mão desse modelo de pregação, dando a entender que os demônios eram vorazes oponentes dos homens, os quais deveriam ser destruídos, como o próprio Lutero expressa no seu mais conhecido hino, Castelo Forte: “Deus é castelo forte e bom, defesa e armamento. Assiste-nos com sua mão, na dor e no tormento. O rei infernal das trevas do mal, com todo o poder e astúcia quer vencer: Igual não há na terra”. Assim, o caráter medieval da teologia medieval teria a função norteadora da religiosidade e da vida da sociedade luso-brasileira no período de formação da sociedade-cultura colonial.

Isso não significa que a teologia medieval se baseava na figura do demônio. Longe disso. Sabe-se que a partir do século XIII, importantes produções teológicas tiveram lugar na história da cristandade, como a Summa Theologica, de Tomás de Aquino, bem como as formulações do Concílio de Latrão IV e, por fim, já no século XVI, o Concilio de Trento. Apesar de todo esforço da ação evangelizadora dos jesuítas, as influências dessa teologia, principalmente de Trento não se fez sentir antes do século XVIII,

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ficando o povo, em geral, a mercê se suas próprias interpretações da fé, o que chamamos de religiosidade popular, a qual exige sua teologia popular.

A figura do demônio é uma figura bíblica. Na literatura bíblica e na tradição judaico-cristã o diabo aparece como uma espécie de membro da corte celestial com um entre os demais anjos, cuja função encontra-se presente em seu nome Satanás: o Acusador. Esta condição pode ser percebida no texto de livro de Jó 1.6-12:

6Num dia em que os filhos de Deus vieram apresentar-se perante o SENHOR, veio também Satanás entre eles.7Então, perguntou o SENHOR a Satanás: Donde vens? Satanás respondeu ao SENHOR e disse: De rodear a terra e passear por ela.8Perguntou ainda o SENHOR a Satanás: Observaste o meu servo Jó? Porque ninguém há na terra semelhante a ele, homem íntegro e reto, temente a Deus e que se desvia do mal.9Então, respondeu Satanás ao SENHOR: Porventura, Jó debalde teme a Deus?10Acaso, não o cercaste com sebe, a ele, a sua casa e a tudo quanto tem? A obra de suas mãos abençoaste, e os seus bens se multiplicaram na terra.11Estende, porém, a mão, e toca-lhe em tudo quanto tem, e verás se não blasfema contra ti na tua face.12Disse o SENHOR a Satanás: Eis que tudo quanto ele tem está em teu poder; somente contra ele não estendas a mão. E Satanás saiu da presença do SENHOR. [grifo nosso]

É nítido, no texto grifado acima, que o diabo teria acesso à presença divina, e com Deus poderia dialogar e ao mesmo tempo se opor e ainda lhe obedecer (Jó.1.12). No entanto, não só de um ser bem composto e articulado é construída a imagem do demônio na Bíblia. O demônio bíblico é descrito por figuras de tamanho horror. Pela Bíblia, pode-se ouvir o rumor do dragão, da antiga serpente, do leviatã e outros monstros da mitologia judaica que serviria para descrever o lugar e o papel do demônio dentro da religião judaica com também da cristã. Em todos os casos, essas descrições são arquétipos do anticristo ou antideus.

Essa perspectiva de terror e pavor do demônio muito se desenvolveu na Idade Média, como temos afirmado. Os próprios afrescos, pinturas e as gárgulas das catedrais europeias davam

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o tom de terror, tendo como finalidade criar no fiel o desinteresse pelo mal, e incentivá-los à piedade para se livrarem do horror de terem que se ver com o demônio e seu séquito. Embora, os demônios pudessem de alguma maneira serem bons, para Câmara Cascudo, o diabo luso-brasileiro seria absolutamente mal e a personificação de tudo que é ruim. Não seria sem razão, que o mesmo fosse figurado naqueles animais considerados imundos ou de qualidade negativa, como os gatos e os bodes. Diante disso, muitas superstições floresceram acerca do diabo e seu séquito demoníaco, cujo interesse maior era trazer o mal as pessoas, principalmente, aquelas que dizem respeito a aparições fantasmagóricas e de assombrações – leia-se lobisomens, mulas-sem-cabeça, o saci-pererê e outras formas, derivadas dos índios, que eram entendidas como manifestações demoníacas.

Nesse sentido, a compreensão que se tinha das enfermidades era que a sua origem estava no próprio Diabo. Não poucas vezes, a ideia de se ter uma cramunhão ou um capeta-de-garrafa, tinha relação a essa crença. Por meio de um pacto, o sujeito se ligava ao diabo, que em troca lhe dava um pequeno demônio que protegeria o cidadão enquanto vivo de males e desavenças, mas que também levaria a alma do sujeito para o inferno depois da morte.

Contudo, a imagem do demônio nem sempre era de causar espanto. O fato de muitas vezes também ser posto em oposição a Deus, como se seu equivalente malévolo fosse, o diabo era considerado na religiosidade popular colonial uma espécie de outro Deus, o Deus do Mal, ao qual poder-se-ia recorrer, quando o Deus da Igreja falhasse ou demorasse em atender as necessidades dos fiéis. A figura do diabo era, portanto, ambivalente. Ora era educada e obediente, ora era agressiva e impenitente. Ora impunha o medo, ora impunha a devoção. Em todo caso, essa figura sempre foi uma antítese de Deus e da sua

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bondade. E assim como crer em Deus, acreditar no demônio e em sua ação no mundo sempre foi uma regra da religiosidade popular em qualquer recôndito do território brasileiro.

Mas, por outro lado, o diabo também é visto como um ser ludibriável. Muitas vezes descrito como um ser quase ingênuo. Como descrito por Câmara Cascudo, o diabo é, no imaginário popular nordestino, alguém que vira e mexe é passado para trás por espertos sertanejos o enganam, fazendo-o objeto de sátira e gracejos.

Considerações Finais

Mas por que isso? Por que havia uma quase devoção ao diabo no Brasil colonial? Uma das razões, sem dúvida, era a grande dificuldade da instrução religiosa no medievo. Principalmente, quando se considera a presença de poucos religiosos para dar conta dos que vinham tentar a sorte na colônia ou para aqui eram desterrados a contragosto. Todo o hiato deixado aberto pela autoridade eclesiástica que era e ainda é a detentora do conhecimento oficial, é um espaço ganho para a ressignificação popular da teologia e religiosidade. Quando desamparado por Deus, a quem se apegar? Quem poderá valer? O demônio para ser uma solução para os pobres coitados que aqui estavam.

Ainda mais quando se considera o que pode ter representado o encontro cultural com os índios brasileiros, que necessariamente, não eram os bons selvagens de Rousseau. A própria religiosidade indígena era percebida como demoníaca, portanto, se valer dela era se valer do demônio. Longe de todas as possibilidades, o que era possível era apenas se apegar com o que se tinha a disposição. Nesse sentido, o que podemos considerar não é uma conversão ao demônio, mas a ressignificação do que não se entende como demoníaco. A leitura equivocada do cristão- luso-brasileiro da religiosidade

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indígena não poderia ser outra. Não apenas a cultura, mas o próprio homem indígena fora demonizado.

Assim, a aparente devoção ao demônio se fez pela necessidade. Diante do obscuro e desconhecido, o melhor é aquele que vale nos momentos de imensa incerteza. Acender uma vela para Deus e outra para o diabo, era duas faces de uma mesma coisa: o medo do incerto. O medo e o termo, ajuntado com uma precária compreensão da própria fé, tiveram como resultado a exaltação do demônio como elemento da religiosidade brasileira.