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UNIVERSIDADE FEDERAL DO SUL E SUDESTE DO PARÁ INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DINÂMICAS TERRITORIAIS E SOCIEDADE NA AMAZÔNIA ÁREA: INTERDISCIPLINAR CRISTIANO BENTO DA SILVA A COMUNICAÇÃO DA USINA HIDRELÉTRICA DE MARABÁ TRADUZINDO UMA SITUAÇÃO SOCIAL DE CONFLITO: reflexões a partir de um território ribeirinho do sudeste paraense MARABÁ-PA 2014

Comunidade Da UHE de Marabá Traduzindo Uma Stuação Social de Conflito

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Trabalho importante sobre a UHE de Marabá

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO SUL E SUDESTE DO PAR

    INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DINMICAS

    TERRITORIAIS E SOCIEDADE NA AMAZNIA

    REA: INTERDISCIPLINAR

    CRISTIANO BENTO DA SILVA

    A COMUNICAO DA USINA HIDRELTRICA DE MARAB

    TRADUZINDO UMA SITUAO SOCIAL DE CONFLITO: reflexes a partir de

    um territrio ribeirinho do sudeste paraense

    MARAB-PA 2014

  • CRISTIANO BENTO DA SILVA

    A COMUNICAO DA USINA HIDRELTRICA DE MARAB

    TRADUZINDO UMA SITUAO SOCIAL DE CONFLITO: reflexes a partir de

    um territrio ribeirinho do sudeste paraense

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de

    Ps-Graduao em Dinmicas Territoriais e Sociedade na

    Amaznia (PDTSA), da Universidade Federal do Sul e

    Sudeste do Par, campus de Marab, como um dos

    requisitos para a obteno do titulo de mestre em

    Dinmicas Territoriais e Sociedade na Amaznia.

    Orientador: Prof. Dr. Alexandre Silva dos Santos Filho

    MARAB-PA 2014

  • CRISTIANO BENTO DA SILVA

    A COMUNICAO DA USINA HIDRELTRICA DE MARAB

    TRADUZINDO UMA SITUAO SOCIAL DE CONFLITO: reflexes a partir de

    um territrio ribeirinho do sudeste paraense

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em

    Dinmicas Territoriais e Sociedade na Amaznia (PDTSA), da Universidade Federal do

    Sul e Sudeste do Par, campus de Marab, como um dos requisitos para a obteno do

    titulo de mestre em Dinmicas Territoriais e Sociedade na Amaznia.

    Aprovado por:

    __________________________________________________________________.

    Prof. Dr. Alexandre Silva dos Santos Filho (Orientador/UNIFESSPA)

    __________________________________________________________________.

    Prof. Dr. Rosa E. Acevedo Marin (Examinadora/UFPA)

    __________________________________________________________________.

    Prof. Dr. Snia M. S. Barbosa Magalhes Santos (Examinadora/ UFPA)

    __________________________________________________________________.

    Prof. Dr. Nilsa Brito (Examinadora suplente/UNIFESSPA)

    Data: ______/______/_____

    MARAB-PA 2014

  • minha famlia.

  • 5

    AGRADECIMENTOS

    Inicio agradecendo a todos os professores do Programa de Ps-graduao em

    Dinmicas Territoriais e Sociedade na Amaznia pela coragem em iniciarem e

    continuarem levando adiante o primeiro programa de mestrado pblico dessa regio.

    De modo igual, agradeo ao professor Alixa por se dispor a conduzir a minha

    orientao e por me auxiliar neste novo caminho/percurso da vida acadmica. Apesar

    das minhas limitaes (terico-metodolgicas e em relao conduo do tema),

    finalmente conseguimos produzir esta dissertao.

    No poderia deixar de agradecer ao migo Bruno Malheiro, por depositar a sua

    confiana em mim e por mostrar que conhecimento social no se faz sem dialogar com

    as experincias e com a realidade concreta das pessoas. Alm disso, devo a ele a

    continuidade das pesquisas sobre esta temtica, j que foi sobre o seu incentivo que

    pude ingressar no mestrado e esticar as pesquisas nesse mbito.

    Indispensvel no lembrar o amigo Marcelo Melo e a amiga Edileuza Miranda,

    j que me auxiliarem nos momentos difceis, e por sempre insistirem no fato de que no

    possvel praticar uma neutralidade diante das questes sociais.

    Agradeo a minha amiga Etiane, pelo incentivo e carinho com que me trata e por

    me emprestar o seu computador, por mais de um ms, diante do fato de que o meu

    resolveu criar vida prpria e decidiu no mais me emprestar os seus servios.

    Tambm a Rita, Mayka e a professora Rosa por permitirem a minha insero, na

    condio de colaborador, na equipe do Projeto Nova Cartografia Social da Amaznia

    (PNCSA) do sudeste paraense. Foram momentos muito produtivos e, com certeza,

    repercutiram no aprendizado que trago na minha bagagem. E claro, pude ver mais de

    perto as tenses com que se defrontam, cotidianamente, as Mulheres Quebradeiras de

    Coco Babau, Indgenas e vrios outros grupos engalfinhados em disputas pela vida em

    seus territrios.

    Agradeo a Priscila, por estar comigo nessa empreitada e por me auxiliar na

    transcrio das entrevistas. Agradeo-a tambm pelo afeto com o qual sempre me

    acolhe.

  • 6

    A todos os habitantes da vila Esprito Santo por compartilharem comigo as suas

    angustias em relao barragem de Marab, e tambm por compartilharem as suas

    histrias e diversos momentos de alegria.

    Agradeo s pessoas que compe o Movimento dos Atingidos por Barragens em

    Marab, em especial a Dani, Rogrio, Cristiano e a Giseli, por fazerem com que eu

    tivesse legitimidade para adentrar na vila Esprito Santo. Em outros termos, eles

    tornaram a minha pesquisa possvel, pois me apresentaram ao grupo e, a partir de ento,

    tive possibilidades de conduzir as entrevistas em campo.

    Tambm agradeo a CAPES pelo apoio financeiro durante boa parte do

    mestrado.

    No posso me furtar a agradecer professora Clia Conglio que brigou para que

    as quatro bolsas iniciais disponveis para o mestrado, e esquecidas em algum lugar

    institucional por ai, fossem achadas e liberadas.

    Aos amigos da minha turma Flvia, Valtey, Renato, Tiese, Andre, Anilson,

    Laecio, Ribamar, Rose, Joyce, Bressan, tambm agradeo pelo tempo em que passamos

    juntos e pelas discusses que travamos, seja em sala de aula ou em qualquer outro

    espao. Fomos as cobaias do mestrado. No fim, s consigo avistar pontos positivos

    em todo esse processo.

  • 7

    RESUMO

    Este trabalho aborda o tema do conflito social tendo como referncia a disputa pelo

    territrio ribeirinho da vila Esprito Santo (sudeste paraense), o qual est sendo

    pleiteado para a construo da Usina Hidreltrica (UHE) de Marab. Os agentes sociais

    daquele espao veem de forma crtica a ideia de terem que deixar o seu territrio, que

    representado, dentre outras formas, tanto como um espao de reproduo material da

    vida, quanto como espao de referncia simblica. Esta situao especfica conduz este

    trabalho a perseguir o seguinte objetivo, qual seja: estudar a dimenso do conflito que

    permeia a relao entre os agentes sociais do territrio ribeirinho da vila Esprito Santo

    e os grupos vinculados ao projeto de construo da Usina Hidreltrica de Marab. No

    plano metodolgico o esforo para discutir o conceito de conflito social buscando um

    dialogo com a noo de territrio na perspectiva geogrfica. Ainda, nessa discusso,

    optou-se por tratar da noo de efeitos sociais para falar do comportamento revelado

    pelos grupos sociais quando estes esto sob a ameaa de barragens. A partir disso foi

    possvel compreender que os conflitos sociais no entorno de projetos hidreltricos no

    s desintegra os grupos, mas impulsiona-os a relaes de cooperao. E o objetivo deles

    a autopreservao. No contexto da vila Esprito Santo as relaes sociais entre os

    habitantes dali e os segmentos empresariais vinculados barragem de Marab no

    nada amistosa. H um processo de construo social do conflito na medida em que falta

    esclarecimento sobre o que vai significar (numa escala mais aprofundada) a presena

    desta tecnologia no referido territrio. Ali, a comunicao/anncio da referida usina

    hidreltrica significa a perda da tranquilidade de viver o presente, e as narrativas se

    referem ao futuro como um lugar de incertezas. Portanto, o futuro sempre tido como

    um tempo onde no vai haver possibilidades de uma vida digna. E isso concorre para

    que a barragem de Marab, j em processo, simbolize algo desastroso para a existncia

    (simblica e cultural) naquele territrio, o que faz dela algo contestvel.

    Palavras- Chaves: Conflito Social; Hidreltrica de Marab; Territrio; Efeitos Sociais;

    Sofrimento Social.

  • 8

    ABSTRACT

    This work addresses the social conflict theme with reference to the dispute over coastal

    territory from the Esprito Santo village (Par southeast), which is being pleaded to the

    construction of the Marab hydroelectric plant. The social agents that space see

    critically the idea of having their territory, which is represented, among other ways, both

    as a space of material reproduction of life, as a space of symbolic reference. This

    specific situation leads this work to pursue the following objective, which is: to study

    the dimension of the conflict that exists in the relationship among the social agents the

    coastal territory from the Esprito Santo village and the attached groups to the Marab

    hydroelectric plant construction project. In the methodological plan the effort is to

    discuss the concept of social conflict seeking a dialogue with the territory in the

    geographical perspective. Yet in this discussion, was chosen to deal with the social

    effects notion to speak of the revealed behavior by social groups when they are under

    threat of dams. From this it was possible to understand that social conflicts around the

    hydroelectric projects not only disintegrates groups, but drives them to relations of

    cooperation. And their objective is self-preservation. In the context of the Esprito Santo

    village the social relations among the inhabitants there and the business segments

    related to dam Marab is nothing friendly. There is a process of social construction of

    conflict in the measure that lack clarity about what will mean (in a more detailed scale)

    the presence of this technology in that territory. There, the communication/advertising

    of said hydroelectric plant means losing the tranquility of living in the present, and the

    narratives refer to the future as a place of uncertainty. Therefore, the future is always

    seen as time where there will be possibilities for a decent life. And it contributes to the

    dam of Marab, in the process, symbolize something disastrous for the existence

    (symbolic and cultural) that territory, making it something questionable.

    Key-words: social conflict; Marab hydroelectric; territory; social effects; social

    suffering

  • 9

    LISTA DE FIGURAS

    FIGURA 1 Barragens no rio Tocantins at 2025.................................................................... 47

    FIGURA 2 Cadeia de barragens na bacia do rio Tocantins at 2025..................................... 48

    FIGURA 3 Projeo da rea atingida pela UHE de Marab................................................... 56

    FIGURA 4 Reserva Indgena Me Maria............................................................................... 58

    FIGURA 5 UMA DAS PORTAS DE ENTRADA E SADA DA VILA APINAJS:

    ilustrao do porto em poca de seca do rio Tocantins........................................

    64

    FIGURA 6 UMA DAS PORTAS DE ENTRADA E SADA DA VILA APINAJS:

    ilustrao do porto em poca de cheia do rio Tocantins.......................................

    65

    FIGURA 7 REGIO DE LOCALIZAO DA UHE DE MARAB: seta laranja

    indicando o lugar de instalao da barragem, que corresponde, ao mesmo

    tempo, ao eixo do territrio da vila Esprito Santo..

    78

    FIGURA 8 PRIMEIRO EIXO DE CIRCULAO: o rio como referncia espacial

    histrica................................................................

    79

    FIGURA 9 SEGUNDO EIXO DE CIRCULAO: a consolidao da estrada como meio

    alternativo de deslocamento.............................................................................

    80

    FIGURA 10 DOIS EIXOS DE INSTALAO DA VILA ESPRITO SANTO: espao

    original de existncia (seta amarela), e o lugar atual onde ela se encontra (seta

    vermelha)..............................................................................................................

    81

    FIGURA 11 IGREJA CATLICA: um dos smbolos da religiosidade presente na dinmica

    da vila...................................................................................................................

    88

    FIGURA 12 SANTURIO DE SANTO EXPEDITO: lugar de culto de mais uma das

    tradies religiosas do grupo............................................................................

    90

    FIGURA 13 PRDIO DA ESCOLA JOS FREIRE DE ALENCAR: hoje ele utilizado

    como residncia e, a rea externa, como estacionamento direcionado aos

    turistas..............................................................................................................

    92

    FIGURA 14 ANTIGA SALA DE AULA DA ESCOLA JOS FREIRE DE ALENCAR:

    marco do primeiro espao voltado para a educao institucionalizada na vila

    Esprito Santo.......................................................................................................

    93

    FIGURA 15 ENCONTRO S MARGENS DO RIO TOCANTINS: o debate sobre as

    repercusses da Usina Hidreltrica de Marab no territrio da Vila Esprito

    Santo.

    107

  • 10

    LISTA DE QUADROS

    QUADRO 1 Alagamento total de reas urbanas pela UHE de Marab........ 57

    QUADRO 2 Alagamento parcial de reas urbanas pela UHE de Marab........ 57

  • 11

    LISTA DE SIGLAS

    ANEEL Agncia Nacional de Energia Eltrica

    BID Banco Interamericano de Desenvolvimento

    CHESF Companhia Hidreltrica do So Francisco

    CNEC Consrcio Nacional de Engenheiros Construtores

    CPT Comisso Pastoral da Terra

    CRAB Comisso Regional dos Atingidos por Barragens

    DNIT Departamento Nacional de Infraestrutura e Trnsito

    EIA Estudo de Impacto Ambiental

    ELETROBRS - Centrais Eltricas Brasileiras S/A

    ELETRONORTE Centrais Eltricas do Norte do Brasil

    EPE Empresa de Pesquisa Energtica

    FUNAI Fundao Nacional do ndio

    LASAT Laboratrio Scio-Agronmico do Araguaia-Tocantins

    MAB Movimento dos Atingidos por Barragens

    RIMA Relatrio de Impacto Ambiental

    SGH Superintendncia de Gesto e Estudos Hidroenergticos

    UHE Usina Hidreltrica

  • 12

    INTRODUO...................................................................................................................

    13

    1.

    BASE E FUNDAMENTOS: ELEMENTOS PARA PENSAR O FENMENO

    SOCIAL DO CONFLITO..............................................................................................

    18

    1.1

    Conflito social: alguns aspectos..............................................................

    20

    1.2 Contribuies da teoria de George Simmel para o estudo do conflito social......... 22 1.3 Territrio e conflito: uma aproximao conceitual necessria................................ 26 1.3.1 Territrio e conflito social: o contexto de edificao da UHE de Belo Monte. 30

    1.4 A disputa pela definio de atingidos por barragens............................................... 35

    1.5 Barragens na perspectiva dos efeitos sociais........................................................... 38

    2.

    USINAS HIDRELTRICAS E CONFLITOS SOCIAIS NO SUDESTE

    PARAENSE.

    46

    2.1

    A atualidade da barragem de Tucuru.....................................................................

    46

    2.2 A barragem de Marab e as demandas em conflito no sudeste paraense........ 54

    3.

    DISPUTANDO O TERRITRIO: A CONSTRUO SOCIAL DO CONFLITO

    NA VILA ESPIRITO SANTO...

    74

    3.1 Discusso metodolgica.. 74 3.2 Espao da pesquisa: dinmica de formao da vila Esprito Santo e do crculo de

    sociabilidade............

    78

    3.3 A experincia do contato com a Usina Hidreltrica de Marab.......... 94 3.4 a nossa vida que vai embora, a vida: a barragem de Marab como marco de

    um tempo de perdas.................................................................................................

    102

    3.5 Autoavaliar-se como atingido................................................................................. 106 3.6 A soluo imprpria: ir morar na cidade............. 110 3.7 Resposta cabvel: possveis solues......

    113

    4. CONSIDERAES FINAIS......................................................................................... 117 REFERNCIAS.......................................................................................................... 119

    SUMRIO

  • 13

    INTRODUO

    Este trabalho aborda o tema do conflito social tendo como referncia a disputa

    por um territrio ribeirinho, no sudeste paraense, que est sendo pleiteado para a

    construo da Usina Hidreltrica (UHE) de Marab. Trata-se da vila Esprito Santo1:

    lcus emprico desta pesquisa. Ali, as experincias e prticas socioculturais

    referenciadas nas guas do rio Tocantins esto ameaadas. Por isto, os agentes sociais

    veem com um olhar crtico a ideia de terem que deixar o seu territrio, o qual

    representado tanto como um espao de reproduo material da vida, quanto como

    espao de referncia simblica.

    A Usina Hidreltrica de Marab foi pensada para a Bacia do Araguaia-

    Tocantins ainda na dcada de 1976, em virtude do primeiro estudo de inventrio

    realizado pela Eletronorte. Depois de muito tempo sem ganhar destaque o referido

    projeto foi reavivado, no limiar do sculo XXI, pelo governo brasileiro. Atravs do

    oficio n. 1173/2005-SGH/ANEEL houve a liberao dos Estudos de Viabilidade

    Tcnica, Econmica e Ambiental desta barragem. frente de tais estudos esto as

    Centrais Eltricas do Norte do Brasil S.A (Eletronorte), e o grupo Construo e

    Comrcio Camargo Corra S.A.

    Conforme apontam os dados da Eletronorte, sero afetadas cerca de 7.888

    pessoas, somando as populaes rurais e urbanas, do estado do Par, Tocantins e

    Maranho. Estes nmeros, traduzidos em termos de famlias, correspondem a 2.075

    grupos familiares. Destes, 858 habitam a zona urbana e 1.217 habitam o meio rural2.

    Entretanto, tais nmeros tm sido contestados pelo Movimento dos Atingidos por

    Barragens em Marab. Ao invs de serem afetados apenas 2.075 grupos familiares, a

    estimativa a de que 10 mil famlias, que vivem as margens do rio Tocantins possam

    ser atingidas pela construo desta tecnologia de utilizao das guas do rio.

    1A vila Esprito Santo esta situada na regio sudeste do estado do Par, margem direita do Rio

    Tocantins.

    2ELETROBRAS/ELETRONORTE. AHE Marab. Cmara Municipal de Vereadores de Marab.

    Apresentao de Power Point. 23 de maio de 2013.

  • 14

    Na regio sudeste do Par, diversos espaos e suas organizaes sociais tambm

    sero afetados, sobretudo, assentamentos, vilas e partes urbanas de municpios

    estabelecidos margem do rio Tocantins. No principal eixo de alagamento est o

    territrio da vila Esprito Santo: espao marcado para servir de canteiro de obras ao

    projeto hidreltrico em destaque. Em virtude disto, a vila tem estado na agenda de

    visitao do Movimento dos Atingidos por Barragens, de pessoas que desenvolvem

    algum tipo de estudo ou mesmo de grupos interessadas em por a vista no primeiro

    territrio a ser desabitado em funo do erguimento da barragem em destaque.

    A comunicao da barragem de Marab repercute de forma desagradvel na vila

    Esprito Santo. Isto porque causa intranquilidade nas mais de 100 famlias que,

    historicamente, habitam aquele espao (RIBEIRO, 2013). Conviver com a notcia de

    que o territrio em que vivem e se reproduzem social, econmica e culturalmente

    dever ser desapropriado para a instalao de uma usina hidreltrica algo inquietante

    para muitos. A situao se agrava quando j se sabe que a rede de relaes sociais,

    experinciada naquele cotidiano atravs do parentesco, da vizinhana, da afiliao

    religiosa, das relaes com outros lugares fora da vila, est em vias de ser

    desconstruda. Essa situao social, no contexto da presente dissertao de mestrado,

    ganha significncia em termos de problematizao.

    Assim, ir aos os lugares de enunciao, isto , dialogar com aqueles agentes

    sociais pode ser promissor no sentido de entender como eles lidam com esta questo e

    de que forma est sendo construda a relao com os grupos a frente deste projeto

    hidreltrico. Tornar essas vozes audveis significa perceber o desdobramento da atual

    situao de ameaa de deslocamento compulsrio, e as dimenses da vida apresentadas

    como afetadas.

    Nesse sentido, e tendo em vista a temtica exposta, uma questo emerge como

    central para orientar esta investigao: de que maneira a comunicao da Usina

    Hidreltrica de Marab expressa uma dimenso de conflito social envolvendo os

    agentes sociais do territrio da vila Esprito Santo e as instituies interessadas na

    construo desta tecnologia?

    Tendo em vista esta problemtica, a proposta estudar a dimenso do conflito

    social que permeia a relao entre os agentes sociais do territrio ribeirinho da vila

    Esprito Santo (sudeste paraense), e os grupos/instituies vinculados ao projeto de

    construo da Usina Hidreltrica de Marab.

  • 15

    A observao de diferentes situaes auxilia na operacionalizao da referida

    pesquisa. Neste percurso necessrio apontar as experincias sociais de conflito

    relacionadas a outros territrios interpelados pela presena de barragens; identificar a

    dimenso dos efeitos sociais traduzida pelas aes de agentes sociais que pe em

    questo este tipo de tecnologia; assinalar as avaliaes feitas pelos agentes sociais da

    vila Esprito Santo diante do processo de comunicao de que a Usina Hidreltrica de

    Marab ser instalada a altura do territrio no qual eles vivem; analisar com esta

    situao de disputa pelo territrio remete a um processo de construo social do

    conflito.

    As argumentaes sobre o fenmeno social (e sociolgico) do conflito esto

    assentadas na teoria simmeliana, a qual trata este fenmeno da sociedade afirmando que

    ele possui uma escala gradativa de manifestao e tambm revela uma tendncia de

    aproximao entre grupos que esto sob a ameaa de inimigos em comum. Alm disso,

    as situaes de ameaas refletem positivamente na coeso interna de determinados

    grupos sociais. Esta coeso, de acordo com Simmel (1983), aparece na forma de uma

    unidade tanto em termos de pensamento quanto de ao.

    Esta abordagem importante para apreender este universo no qual a barragem

    de Marab est em processo e apresentada como um fato consumado, principalmente,

    nos discursos dos grupos empreendedores (ELETRONORTE e Camargo Corra). Na

    tentativa de exercitar a interdisciplinaridade, e tambm de dar conta de uma dimenso

    mais ampla da realidade pesquisada, buscou-se apoio na concepo de territrio do

    ponto de vista do entendimento de Haesbaert (2004).

    Para este autor, o territrio que, de uma forma sinttica, representa a

    espacialidade humana precisa ser analisado a partir de uma perspectiva integradora. Ou

    seja, ele carrega sempre, de forma indissocivel, uma dimenso simblica, ou cultural

    em sentido estrito, e uma dimenso material, de natureza econmico-poltica

    (HAESBAERT, 2004, p. 74). Quando se trata da construo de empreendimentos

    hidreltricos pode-se encarar a disputa por territrios como o centro dos conflitos.

    Geralmente, o que se apresenta a valorizao do territrio numa perspectiva

    econmica e poltica, onde a acumulao de capital d a tnica do processo. Ornelas

    (2008), analisando a questo por essa perspectiva, reflete que no espao-tempo da

    Amrica Latina os conflitos sociais no esto mais concentrados nos espaos da

    explorao- como o mercado e a fbrica- e da poltica. Eles tem se espraiado at os

  • 16

    territrios e afetado diversas modalidades de vida, as quais se referenciam (simblica e

    geograficamente) nestes espaos. E ai a conflitualidade vai se desenhando em funo da

    disputa pela existncia. E isto vlido para a compreenso das relaes na rbita da

    Usina Hidreltrica de Marab, partindo do territrio da vila Esprito Santo.

    A importncia desta pesquisa est ancorada em alguns aspectos. Ela relevante

    porque, na situao atual em que se encontra a barragem de Marab, h uma certa

    carncia de estudos dimensionando o modo como este projeto vem se inserindo no

    sudeste paraense, apesar de que ele est em andamento (estudo) desde 2005. Ento,

    oportuno trazer esse debate, a partir dos relatos de campo coletados na vila Esprito

    Santo, porque ele contribui com a visibilidade do processo de chegada desta tecnologia

    na regio.

    Outro ponto que o estudo mencionado pretende construir um registro histrico

    da forma como os agentes sociais da vila Esprito Santo esto lidando com a barragem

    em destaque. E isto significa entender esta tecnologia atravs das narrativas coletadas

    naquele territrio. Nesse sentido, possvel anotar que dimenses da vida compe o

    contedo dos relatos, quando estes trazem tona o sentido de ameaa presente na Usina

    Hidreltrica de Marab. Por outro lado, ficar evidente tambm o quanto as instituies

    ligadas a este projeto vm estreitando (ou no) o dialogo com o grupo do territrio

    pesquisado.

    No plano terico, este trabalho pretende contribuir com os estudos que abordam

    a temtica do conflito social, envolvendo projetos hidreltricos, articulando-a com uma

    dimenso da vida, que o territrio- base de reproduo material e simblica de povos e

    comunidades tradicionais, sobretudo, na Amaznia. Para isto abordou-se o exemplo do

    recorte emprico feito a partir do territrio da vila Esprito Santo, nesse momento de

    presena da barragem de Marab.

    As argumentaes desta dissertao esto dispostas em trs captulos. O

    primeiro captulo demonstra a fundamentao conceitual do estudo, trazendo o conceito

    de conflito social baseado no entendimento simmeliano. Ainda, nessa perspectiva,

    verifica-se como este fenmeno da sociedade tem sido inscrito em contextos marcados

    pela construo de barragens, e qual tem sido o papel da disputa por territrios em todo

    esse processo.

  • 17

    O segundo captulo mostra, baseado em situaes concretas a partir do sudeste

    paraense, a manifestao do conflito social e as suas relaes com a disputa pela vida

    nos territrios. E isto se traduz, por exemplo, quando se demonstra a atualidade do

    conflito no entorno da barragem de Tucuru, e tambm o desencadeamento das reaes

    aps a comunicao da barragem de Marab.

    O terceiro captulo pretende fornecer uma viso de como a comunicao da

    Usina Hidreltrica de Marab repercute entre os agentes sociais da vila Esprito Santo, e

    quais so os desdobramentos dessa situao. Ainda, a ideia verificar as experincias e

    relaes sociais contabilizadas como ameaadas naquele territrio. Alm disso, busca-se

    compreender o modo como as relaes estabelecidas entre os segmentos ligados esta

    tecnologia e os grupos da vila Esprito Santo configura uma situao social de conflito.

  • 18

    CAPITULO 1- BASE E FUNDAMENTOS: ELEMENTOS PARA PENSAR O

    FENMENO SOCIAL DO CONFLITO

    Numa perspectiva sociolgica, a origem do

    conflito encontra-se na estrutura social. Em

    todas as sociedades h interesses desiguais

    para os cidados e para os grupos, o que leva

    alguns deles a assumirem posies de domnio

    relativamente aos outros. Por seu turno, e da

    parte dos restantes surge a recusa desse

    domnio.

    Maria da Saudade Baltazar

    O conflito impe um passo alm do agora

    construdo. Ele uma ao desencadeadora de

    reviravoltas, mudanas sociais, constituindo-se

    num componente regular do prprio cotidiano

    e substncia existente nos diversos

    movimentos efetuados pelas mudanas nas

    relaes humanas.

    Jos O. Alcntara Junior

  • 19

    O presente captulo se prope a discutir a fundamentao conceitual desta

    pesquisa a partir de uma imerso na teoria sociolgica do conflito3de Simmel (1983),

    especialmente. A ideia verificar como esse mbito do conhecimento sociolgico pode

    contribuir para a compreenso das relaes de conflitualidade em contextos

    reivindicados para a instalao de projetos hidreltricos, sobretudo, na vila Esprito

    Santo- lcus desta pesquisa emprica. Ainda em termos de fundamentao conceitual, e

    na tentativa de dar conta da realidade pesquisada, lanou-se mo do conceito de

    territrio baseado na perspectiva de Haesbaert (2004).

    Ornelas (2008) j sinalizava a fecundidade de pensar as relaes de disputa por

    esta perspectiva. Para ele, no contexto da Amrica Latina o substrato dos conflitos

    sociais transita dos espaos da explorao (o mercado, a fbrica) e da poltica at o

    territrio. Desta maneira, o conflito tem chegado ao conjunto das esferas da existncia

    social e tende a se expressar em sua maior agudeza em aquelas que constituem o

    substrato da vida: as comunidades, suas condies de existncia e seus espaos

    geogrficos e simblicos (ORNELAS, 2008, p. 93). Em outros termos, a expanso da

    lgica capitalista alcanou uma escala to ampla que chegou a afetar os territrios onde

    diversos grupos constroem as suas experincias de vida. Estes, por sua vez, se recusam

    a ter as suas histrias escritas pela ao de outros que no sejam eles prprios. E ai a

    conflitualidade vai se desenhando.

    Na Amaznia brasileira, o conflito entre as populaes indgenas, pescadores,

    extrativistas, mulheres quebradeiras de coco babau, pequenos comerciantes de beira de

    rio, assentados e os propositores de usinas hidreltricas tende a revelar este aspecto. Os

    efeitos sociais dessa conflitualidade mostram que a conduta humana, em tais situaes,

    no pacifica.

    Por isto, pensar as relaes entre o setor eltrico e os povos e comunidades

    tradicionais que esto no eixo das barragens, por assim dizer, pensar em relaes de

    disputa pela existncia nos territrios. Alis, a conflitualidade que modela as relaes

    3 necessrio ressaltar o pioneirismo de Karl Marx na anlise sociolgica do fenmeno social do conflito.

    Engels (2003) demonstra que, de acordo com o pensamento de Marx, tanto os conflitos polticos,

    religiosos, filosficos, quanto os embates no plano ideolgico so expresses, mais ou menos claras, de

    luta entre classes. Os conflitos entre classes, por sua vez, seriam condicionados pelo grau de

    desenvolvimento da situao econmica destes agentes, e tambm pelo modo de produo e de troca no

    qual eles esto inseridos. Embora no tenha deixado um tratado sociolgico sobre esse tema, o legado de

    Karl Marx engloba esta discusso principalmente pelo mbito da luta de classes.

  • 20

    entre estes segmentos da sociedade tem vrios desdobramentos, conforme se ver ao

    longo da exposio.

    1.1 CONFLITO SOCIAL: ALGUNS ASPECTOS

    O conflito social tem sido analisado, cada vez mais, por diferentes abordagens.

    Tem havido teorizaes diversas sobre este fenmeno, o que, de certo maneira,

    enriquecedor para a temtica. Tavares dos Santos (1999), por exemplo, demonstra que,

    na busca pelos homens e mulheres que tecem o espao social, necessrio se apoiar na

    noo de relaes sociais e de agentes sociais.

    De acordo com o referido autor, estes agentes sociais devem ser entendidos,

    dentro das suas complexidades, pela posio de classe, de gnero ou de etnia; e

    diferenciados internamente em classes, fraes de classe, categorias, grupos sociais

    (TAVARES DOS SANTOS, 1999, p. 19). Ou seja, preciso observar a variedade de

    sujeitos que esto na linha de confronto com os poderes dominantes e, com base nisso,

    atentar para o fato de que todo esse conjunto constitudo por foras sociais e pode

    engendrar estratgias de manuteno ou de transformao da ordem social.

    Para Tavares dos Santos (2004), as relaes de sociabilidade passam por uma

    espcie de transformao, que recente, onde coexistem processos como os de

    integrao comunitria e de fragmentao social, de massificao e de individualizao,

    de ocidentalizao e de desterritorializao.

    As questes sociais se acirram, no incio do sculo XXI, o que faz desencadear

    um processo de excluso social e o resultado pode ser visto na existncia dos sem

    classe', 'sem terra', aqueles que vivem a excluso digital, os 'sem teto', aqueles que

    passam fome ou os 'sem trabalho' (TAVARES DOS SANTOS, 2004, p. 4 grifos do

    autor). Somado a isso, esto as repercusses das inovaes tecnolgicas, principalmente

    no campo, onde acarretam grandes mudanas na dinmica de existncia individual e

    coletiva de muitos agentes sociais.

    Conforme o mencionado autor, todos estes processos devem-se, especialmente,

    predominncia da mercantilizao do social, o que resulta na destruio de formas de

    sociabilidades coletivas. E isto no deve ser visto s como um problema sociolgico,

    mas tambm da sociedade.

  • 21

    Silva (2011), tambm analisando a dimenso do conflito social, demonstra que

    no se pode deixar s a cargo das perspectivas macro-histricas e macrossociolgicas a

    compreenso deste fenmeno. Isto porque, cada nao, cada cultura, cada sociedade

    engendra modelos de relaes sociais que so, peculiarmente, tecidas com os fios do

    conflito. Nesse sentido, as avaliaes baseadas em parmetros microssociolgicos

    poderiam contribuir com estes estudos na medida em que se preocupam, muito mais,

    com as situaes particulares.

    Entre criticas e consenso, Tavares dos Santos (2002) analisa que deve haver um

    permanente dialogo com diferentes instrumentos tericos, sobretudo, incorporando

    aqueles que primeiro se debruaram sobre o estudo dessa temtica, fazendo-os dialogar

    com os aportes tericos praticados na contemporaneidade das cincias sociais. Com

    base nisso, as possibilidades de acompanhar a dinmica da(s) realidade(s) pelo prisma

    do conflito se tornam mais elsticas.

    A atualidade dos estudos a respeito de situaes de conflito bastante profcua.

    Elementos de aparente irrelevncia tm sido problematizados no mbito das cincias

    sociais. Trata-se da incluso do sofrimento social, e da dor desencadeada por ele, no rol

    das abordagens. Koury (1999) ressalta que a manifestao destes fenmenos est

    intrnseca a exposio de populaes a situaes de risco determinadas. O sofrimento

    social e a dor so fenmenos que no esto circunscritos, unicamente, s experincias

    individuais. Tambm preciso avaliar as suas manifestaes no perdendo de vista a

    coletividade. Ou seja, tem ai uma dimenso social.

    De acordo com as anlises de Koury (1999, p. 76), a dor e o sofrimento podem

    ser pensados como categorias analticas no quadro de uma cincia social. Por isso,

    preciso, antes de tudo, buscar o espao social em que esses fenmenos se manifestam

    para perceber as relaes que os originam. Em contextos de conflito, esses elementos

    ganham notoriedade. Por outro lado, Barreto (2001) ressalta que o sofrimento social,

    apesar de ser senso comum que ele faz parte da vida, dentro do campo das cincias

    sociais tem sido timidamente abordado.

    O sofrimento social remete a questo das emoes e est ligado com valores e

    sentimentos do tipo dor, contentamento, honra, vergonha, humilhao, embarao,

    orgulho, rejeio, medo, respeito, amor, inadequao, nojo, repugnncia, raiva, pesar

    (BARRETO, 2001, p. 16). O conjunto destes elementos, no entanto, no deve ter suas

  • 22

    origens imputadas, nica e exclusivamente, a motivaes puramente subjetivas. Eles

    surgem das relaes objetivas de poder presentes na sociedade.

    O sofrimento social, quando considerado por esse prisma, tem relaes com as

    aes dos poderosos e tem sua visibilidade na esfera pblica, contrastando com aquele

    sofrimento que se desenrola dentro da esfera privada e tem o individuo como seu

    principal sujeito (BARRETO, 2001, p. 16). A configurao das relaes de

    conflitualidade que influencia o desencadear desse elemento.

    De acordo com Baltazar (2007), o comportamento humano bastante

    complicado e tem mltiplas faces, sendo muito pouco provvel que uma nica

    perspectiva terica possa dar conta de todas as suas caractersticas. Mas, como

    identificar situaes de conflito? Baltazar (2007) ressalta que os primeiros passos

    devem ser dados no sentido de apreender o contato entre os grupos. Sem contato entre

    os setores em querela, no pode haver manifestao dos interesses em antagonismo.

    Assim:

    [] quanto mais frequente e sistemtica a comunicao, maior e mais clara a percepo da diferena de interesses entre os possveis adversrios, o que

    por sua vez tende a intensificar aquela comunicao e contribuir para a sua

    dinmica comportamental (BALTAZAR, 2007, p. 99).

    Comunicar-se pode significar, alm da demarcao das diferenas de interesses,

    a projeo de uma dada perspectiva da realidade como a nica vlida. E isto j se

    apresenta no contexto em que a Usina Hidreltrica de Marab est em processo. Alis, o

    que parece est em evidncia a sobreposio da lgica de explorao das guas do rio,

    baseada na gerao de energia eltrica, como a forma legtima de utilizar aquele recurso

    natural. Alm disso, a projeo desta tecnologia pode significar a anulao do lado

    oposto que, no caso da realidade aqui estudada, o territrio da vila Esprito Santo.

    1.2 CONTRIBUIES DA TEORIA DE GEORGE SIMMEL PARA O ESTUDO DO

    CONFLITO SOCIAL

    A teoria simmeliana reconhece que as sociedades, ao longo da histria, foram

    edificadas com base em relaes onde se verifica a unidade dos grupos ou ento a

    contrariedade dessas unidades. Nesse sentido, a contradio e o conflito, ao contrrio,

  • 23

    no s precederam esta unidade como operam em cada momento de sua existncia

    (SIMMEL, 1983, p. 124). Harmonia e desarmonia, associao e competio, tendncias

    favorveis e opostas estiveram sempre presentes na dinmica da vida.

    De acordo com a perspectiva em destaque, o fenmeno social do conflito possui

    variantes que esto em permanente dilogo. Ele tem em seu substrato aspectos positivos

    e caractersticas negativas. Na realidade concreta, o referido fenmeno expressa as suas

    duas faces de maneira articulada. Por isso, elas podem at ser separadas no plano

    conceitual, o que no deve ocorrer no plano emprico.

    O esforo da teoria simmeliana ocorre no sentido de tomar o conflito que emerge

    das esferas sociais e problematiz-lo a partir de uma perspectiva sociolgica. Para o

    referido autor, todas as formas sociais aparecem sob nova luz quando vistas pelo

    ngulo do carter sociologicamente positivo do conflito (Idem, 1983, p. 123). A crtica

    simmeliana recai sobre as abordagens em que tal fenmeno aparece somente como algo

    negativo, no sentido de que desarticulador dos grupos. E os tpicos tradicionais da

    sociologia teriam dado uma grande contribuio a este respeito.

    A teoria de George Simmel demonstra que as discordncias existentes no seio da

    sociedade no so absolutamente meras deficincias sociolgicas ou exemplos

    negativos. As foras em contradio concorrem, decisivamente, para a formao de

    sociedades com arranjos coletivos e sociais especficos. Ainda, de acordo as anlises

    deste autor:

    O desaparecimento de energias de repulso (e isoladamente consideradas, de

    destruio) no resulta sempre, em absoluto, numa vida social mais rica e

    plena (assim como o desaparecimento de responsabilidades no resulta em

    maior propriedade), mas num fenmeno to diferente e irrealizvel quanto se

    um grupo fosse privado das foras de cooperao, afeio, ajuda mtua e

    convergncia de interesses (SIMMEL, 1983, p. 127).

    Jnior (2005, p. 8), analisando a questo do conflito definido por George

    Simmel como algo tambm positivo, reflete sobre o fato de que, quando considerado

    enquanto uma forma social, o conflito pode possibilitar momentos de construes e

    destruies, quer sob as instituies, estruturas, arranjos, processos, relaes e

    interaes sociais. A positividade mencionada no sentido de que o referido fenmeno

    social no s destrutivo, isto , desagregador de grupos sociais. Ele tem influncia na

  • 24

    organizao e aproximao dos grupos que esto em situao de querela com um poder

    dominante. Na situao de conflito social, os defensores de interesses comuns tendem a

    se tornar mais coesos.

    Alm de entender o conflito como algo que repercute no processo de integrao

    social, se reconhece tambm os seus diferentes graus de manifestao. Dependendo das

    circunstncias, ele pode se expressar de forma latente, isto , pela averso e por

    sentimentos de mtua estranheza e repulso que, num contato mais ntimo, no importa

    quo ocasional, transforme-se imediatamente em dio e lutas reais (SIMMEL, 1983, p.

    128). O conflito, nessa perspectiva, vai sendo modelado e construdo socialmente e nas

    disputas.

    De acordo com Junior (2005, p. 9), em anlise do conflito na perspectiva

    simmeliana, este fenmeno social tende a se expressar sob a forma de um gradiente,

    indo das relaes sociais speras at, s vezes, ao confronto fsico. Importante reter

    este carter processual do conflito. Se encarado dessa forma, isto , em seus diferentes

    nveis de existncia e manifestao, a possibilidade de estuda-lo quando ele ainda no

    desembocou em dimenses mais acirradas de confronto pode ser viabilizada.

    A teoria simmeliana demonstra que a antipatia a fase preliminar do

    antagonismo concreto que engendra as distncias e as averses (SIMMEL 1983, p.

    128). Ratificando o pressuposto de que o conflito um processo, a referida teoria

    assinala que este fenmeno social deve ser buscado, tanto no mbito emprico quanto

    terico, em conjunto com as situaes de cooperao. preciso entender como, nestas

    situaes, os grupos esto buscando articulaes entre si e se tornando mais coesos,

    internamente.

    No sentido posto, h uma conexo entre as situaes sociais de conflito e a

    aproximao dos membros internos de determinados grupos sociais, e destes com

    grupos externos. Esta aproximao tem um propsito essencial, que o de defesa. Nos

    casos envolvendo os enfrentamentos com projetos hidreltricos o que se defende a

    continuao da vida nos espaos pretendidos para a instalao deste tipo de tecnologia.

    Em outros termos, o impulso da autopreservao.

    O conflito, na perspectiva simmeliana, tambm um elemento ordenador dos

    confrontos. ele quem define e normatiza os embates. Assim,

  • 25

    Se o conflito causado por um objeto, pela vontade de ter ou controlar

    alguma coisa, pela raiva ou por vingana, tal objeto ou estado de coisas

    desejado cria as condies que sujeitam a luta a normas ou restries

    aplicveis a ambas as partes rivais (SIMMEL, 1983, p. 133-134).

    As partes envolvidas na querela tendem a entrar em conflito por uma

    determinada causa. E esta quem vai definir o formato do confronto. O conflito existe,

    conforme demonstra Simmel (2011, p. 568), com o fito de resolver dualismos

    divergentes, uma maneira de conseguir algum tipo de unidade, mesmo que seja

    atravs da aniquilao de uma das partes em litgio. Nesse caso, torna-se necessrio

    que o grupo pratique um comportamento semelhante, em uma situao tambm

    idntica. Este um principio importante para a unidade grupal. Assim, as organizaes

    sociais se apresentam de forma diferente nos tempos de paz e em tempos conflituosos,

    onde a cada situao corresponde uma formatao social especifica.

    A relao antagnica com um poder exterior provoca o estreitamento entre os

    membros do grupo, intensificando a sua unidade em conscincia e ao. Simmel (1983)

    salienta que, nos tempos de paz, o grupo permite aos antagonistas conviverem

    conjuntamente em seu interior, mesmo sabendo que h divergncias. Entretanto, uma

    condio de conflito, todavia, aproxima os membros to estreitamente e os sujeita a um

    impulso to uniforme que eles precisam concordar ou se repelir completamente

    (SIMMEL, 1983, p. 154). Quando ocorre a convivncia com os indivduos de

    pensamento e conduta desviantes na situao de conflito, nada mais do que uma

    aparente tolerncia, mas o objetivo o de expuls-los com maior tenacidade e

    definitivamente do convvio com o grupo.

    A teoria de George Simmel destaca que no so todas as situaes de conflito

    que concorrem para a formao de uma unidade entre o grupo. Quando ele est

    ameaado, essa possibilidade torna-se mais real. Ou seja, especialmente favorvel

    unificao se, em vez da luta real contra o inimigo, existe uma ameaa permanente de

    sua parte (SIMMEL, 1983, p. 162 grifos do autor). A unificao, nesse sentido, decorre

    de uma situao de conflito sempre latente, mas nunca detonada. no processo do

    confronto que os grupos tendem a cooperar.

    O trabalho de George Simmel tem importncia nesta pesquisa por dois fatores

    fundamentais: primeiro porque apresenta o conflito na sociedade como a causa da

    aproximao entre grupos; segundo, porque mostra que o conflito possui diferentes

    graus de manifestao. No primeiro caso, o conflito o fator que se inscreve na

  • 26

    sociedade como algo que aproxima as pessoas cujos interesses so comuns. Mais que

    isso, essa atitude representa um grau de maturidade poltica do grupo, adquirido em

    funo da circunstncia conflituosa. Todavia, situaes como estas, e continuamente

    importante enfatizar, so sempre corrosivas, individual e tambm socialmente.

    O segundo fator est relacionado s indicaes simmelianas sobre os diferentes

    graus de manifestao do conflito na sociedade. As possibilidades de ir s situaes de

    confronto o mais prematuramente esto dadas, levando em considerao o modo como

    as relaes sociais esto sendo construdas. Nesse sentido, essa perspectiva terica pode

    nos auxiliar na compreenso da forma como esto sendo construdas as relaes entre os

    segmentos empresariais ligados construo da Usina Hidreltrica de Marab, e os

    agentes sociais da vila Esprito Santo (sudeste paraense). Compreender estas relaes

    pode significar um entendimento do prprio processo de construo social do conflito,

    j que a comunicao da barragem destacada j ecoa, naquela realidade, modelando a

    opinio e o comportamento do grupo.

    O que tem se revelado que os conflitos na rbita dos projetos hidreltricos

    devem-se, de uma forma geral, s disputas por territrios. Nesse sentido, o territrio

    acaba sendo visto pelos grupos econmicos interessados na construo dessas

    tecnologias como uma fonte de recursos de onde se pode extrair lucros. Por outro lado,

    desconsideram o fato de que este espao , ao mesmo tempo, abrigo econmico, poltico

    e simblico- cultural da diversidade de grupos e classes sociais que o habitam. Cabe

    ancorar aqui a definio de territrio sobre a qual este estudo constri as suas

    argumentaes, relacionando-a, ao mesmo tempo, com o conceito de conflito social

    aqui utilizada. Alis, sobre esta definio que o tpico a seguir pretende se debruar.

    1.3 TERRITRIO E CONFLITO: UMA APROXIMAO CONCEITUAL

    NECESSRIA

    O conflito, tanto do ponto de vista conceitual quanto emprico, fornece uma base

    essencial para este estudo. Quando se fala das relaes sociais de conflito envolvendo

    diferentes agentes sociais afetados por projetos hidreltricos, preciso levar em

    considerao que estes conflitos tm uma causa. Em geral eles se originam da disputa

    por territrios, os quais, na maioria das vezes, so habitados por agentes sociais

  • 27

    distintos e so, ao mesmo tempo, reivindicados pelo setor eltrico para erguimento de

    barragens.

    A argumentao sobre o fenmeno social do conflito nesse cenrio amaznico

    em que a barragem de Marab (e tantas outras) est em processo pretende ocorrer

    articulada ao entendimento de territrio na perspectiva de Haesbaert (2004). O referido

    autor prope a discusso do conceito de territrio a partir de uma abordagem

    multidisciplinar. Ainda que este conceito esteja presente em vrias disciplinas das

    Cincias Humanas, o debate e a reflexo nesse sentido so bastante precrios.

    De fato, o conceito de territrio deriva de uma diversidade de reas do

    conhecimento, onde cada uma aborda este tema a partir de sua diretriz especifica.

    Haesbaert (2004, p. 37 grifos do autor) demonstra que:

    Enquanto o gegrafo tende a enfatizar a materialidade do territrio, em suas

    mltiplas dimenses (...), a Cincia Poltica enfatiza sua construo a partir

    de relaes de poder (na maioria das vezes ligada concepo de Estado); a

    Economia, que prefere a noo de espao de territrio, percebe-o muitas

    vezes como um fator locacional ou como uma das bases da produo

    (enquanto fora produtiva); a antropologia destaca sua dimenso simblica, principalmente no estudo das sociedades ditas tradicionais; a Sociologia o

    enfoca a partir de sua interveno nas relaes sociais, em sentido amplo, e a

    Psicologia, finalmente, incorpora-o no debate sobre a construo da

    subjetividade ou da identidade pessoal, ampliando-o a escala do individuo.

    Os mltiplos enfoques assinalam a polissemia deste conceito. Deixam evidentes,

    tambm, que perigoso tomar uma dessas perspectivas isoladamente, pois h um risco

    de deixar de fora questes nas quais as outras abordagens podem auxiliar. Estas

    separaes, conforme aponta o trecho acima, ocorrem devido aos recortes disciplinares.

    De todas estas noes de territrio, quatro delas ganham centralidade: a

    concepo politica, a simblico-cultural, a econmica e a natural. A concepo poltica

    ou jurdico-politica diz respeito s relaes entre o espao e o poder. Nesta concepo,

    que a mais difundida, o territrio tido como um espao delimitado e controlado por

    meio do qual se exerce um determinado poder. Este poder, na maioria dos casos, mas

    no somente, est relacionado ao poder poltico do Estado.

    A segunda abordagem remete aos espaos de vivncia e interaes sociais nos

    quais determinados grupos imprimem as suas marcas. A esta perspectiva d-se o nome

    de cultural ou simblico-cultural. O territrio, nesse sentido, visto, sobretudo, como o

  • 28

    produto da apropriao e valorizao simblica de um grupo em relao ao seu espao

    vivido.

    Um terceiro sentido de territrio, e com menos expresso, o que enfoca a

    dimenso espacial das relaes econmicas. Concebe-se o territrio como fonte de

    recursos que est ligado luta entre classes sociais e ao embate da relao capital-

    trabalho, que permeia a diviso territorial do trabalho. A quarta definio de territrio

    a mais antiga e pouco usual. Ela procura estabelecer uma relao entre o

    comportamento dos homens- comportamento este tido como natural- e o seu ambiente

    fsico. a viso natural de territrio.

    De acordo a perspectiva haesbaertiana, para compreender com maior clareza o

    conceito de territrio e as suas distines (estas mencionadas acima), necessrio

    organizar o raciocnio em uma escala mais ampla. Ou seja, preciso ir alm da

    diferenciao jurdico-poltica, simblico-cultural, econmica e natural deste conceito, e

    buscar a fundamentao filosfica correspondente a cada abordagem. Nesse sentido,

    Haesbaert (2004, p. 41 grifos do autor) organiza as perspectivas tericas por ele

    adotadas na sua abordagem sobre o territrio segundo:

    a) O binmio materialismo-idealismo, desdobrado em funo de duas outras perspectivas: i. a viso que denominamos parcial de territrio, ao enfatizar uma dimenso (seja a natural, a econmica, a poltica ou a cultural); ii. a perspectiva integradora de territrio, na resposta a problemtica que, condensadas atravs do espao, envolvem conjuntamente todas aquelas esferas.

    b) O binmio espao-tempo, em dois sentidos: i. seu carter mais absoluto ou relacional: seja no sentido de incorporar ou no a dinmica temporal (relativizadora), seja na distino entre

    entidade fsico-material (como coisa ou objeto) e social-histrica (como relao); ii. sua historicidade e geograficidade, isto , se se trata de um componente ou condio geral de

    qualquer sociedade e espao geogrfico ou se est historicamente circunscrito a determinado

    (s) perodos (s), grupos(s) social (is) e/ou espao (s) geogrfico (s).

    Aqui, aparece a necessidade de pensar o conceito de territrio com base em mais

    de uma perspectiva terica. Nesse sentido, o territrio envolve, simultaneamente, a

    dimenso espacial material das relaes sociais e o conjunto de representaes sobre o

    espao ou o imaginrio geogrfico que no apenas move como integra ou parte

    indissocivel destas relaes (HAESBAERT, 2004, p. 42). Neste caso, ele possui um

    sentido material e tambm simblico.

  • 29

    Fragmentar a noo de territrio entre a concepo jurdico-politica, a

    econmica, a naturalista extremamente arbitrria. Alis, todas estas abordagens, em

    alguns momentos, vo dialogar com o campo do simblico, e todas elas fazem parte do

    mundo do vivido, isto , da realidade concreta das pessoas.

    Tendo em vista as diferentes perspectivas apresentadas, o autor prope uma

    abordagem de territrio chamada de integradora. Passa-se, ento, a compreender que

    o territrio tem intrnseca uma dimenso simblico- cultural, e uma dimenso material

    cuja natureza predominantemente econmico-poltica. Justificando essa abordagem, o

    autor destaca que:

    [...] se a Etologia tende a colocar a questo de porque muitos animais se

    comportam territorialmente, a Cincia Poltica procura discutir o papel do espao na construo de relaes de poder, e antropologia trata da questo de

    smbolos atravs do territrio. No caberia ento Geografia, por privilegiar

    o olhar sobre a espacialidade humana, uma viso integradora de territrio capaz de evidenciar a riqueza ou a condensao de dimenses sociais que o

    espao manifesta?(HAESBAERT, 2004, p. 75 grifos do autor).

    A leitura de territrio que o considera a partir de suas diferentes dimenses

    (natural, poltica, econmica e simblico-cultural) remete, ao mesmo tempo, ao

    conjunto das experincias humanas. Nesse processo, todas as esferas do vivido entram

    no debate referente a esta categoria, que no s conceitual, mas tambm emprica.

    Sendo assim, o territrio pode ser concebido a partir da imbricao de mltiplas

    relaes de poder, do poder mais material das relaes econmico-polticas ao poder

    mais simblico das relaes de ordem estritamente cultural, conforme analisa

    Haesbaert (2004, p. 79).

    Cabe esclarecer que a dimenso poltica do territrio no deve estar restrita ao

    poder do Estado. H outros grupos que tambm exercem, de certa maneira, determinado

    poder sobre um dado territrio. Por isso, de acordo com as proposies deste autor,

    fundamental, para uma anlise mais rica das questes sociais, ter certo cuidado na hora

    de definir o territrio. Conforme as suas anlises:

    [...] o territrio no deve ser visto nem simplesmente como um objeto em sua

    materialidade, evidncia emprica (...), nem como um mero instrumento

    analtico ou conceito (geralmente a priori) elaborado pelo pesquisador.

    Assim como no simplesmente fruto de uma descoberta frente ao real,

    presente de forma inexorvel na nossa vida, tambm no uma mera

    inveno, seja como instrumento de anlise dos estudiosos, seja como parte

    da migrao geogrfica dos indivduos (HAESBAERT, 2004, p. 91 grifos do autor).

  • 30

    O que define este espao so as relaes estabelecidas nele, por determinados

    grupos sociais, num contexto especfico. O territrio pode significar abrigo, fonte de

    recursos, espao de controle e de referncia simblica, de acordo com o grupo ou a

    classe social que o habita. H, por exemplo, grupos que se apropriam do territrio e

    fazem dele um espao revelador de parte ou de todas essas dimenses. Por outro lado,

    existem grupos mais inclinados a se apoderar do territrio para exercer, puramente, a

    dominao econmica ou poltica.

    Estes casos remetem ao contexto da Amaznia, onde cresce exponencialmente a

    construo de projetos hidreltricos e, consequentemente, a disputa pela vida nos

    territrios. Nestas situaes, todas as dimenses do territrio tendem a aparecer, mas a

    valorizao econmica e poltica busca, a todo custo, se sobrepor a outras formas

    (lgicas) de apropriao e uso destes espaos. o que ocorre, por exemplo, no entorno

    da construo da Usina Hidreltrica de Belo Monte (rio Xingu).

    1.3.1 TERRITRIO E CONFLITO SOCIAL: O CONTEXTO DE EDIFICAO DA

    UHE DE BELO MONTE

    O projeto de construo da Usina Hidreltrica de Belo Monte um dos mais

    polmicos, atualmente, na Amaznia. Tambm a construo das usinas hidreltricas de

    Santo Antonio e de Jirau (ambas no rio Madeira), no estado de Rondnia, no mostra

    grandes diferenas nesse sentido. As relaes de conflitualidade so protagonizadas,

    sobretudo, por povos e comunidades tradicionais que no se rendem a dominao de

    seus territrios por empreendimentos hidreltricos.

    Para ilustrar-ainda que de forma breve- a dimenso destes conflitos tomando

    como exemplo o que ocorre na rbita da barragem de Belo Monte, um resgate das

    modificaes sofridas por este projeto fundamental. As origens desta tecnologia data

    da dcada de 1970, na ocasio do desenvolvimento de estudos de Inventrio

    Hidreltrico da Bacia Hidrogrfica do Rio Xingu (MELLO, 2013). Quando os estudos

    foram apresentados pela Eletronorte, ainda na dcada de 1980, previu-se que o

    aproveitamento total da Bacia Hidrogrfica do Rio Xingu seria feito com base em sete

    barramentos. As intervenes naquela bacia hidrogrfica seriam, ento, responsveis

    pela gerao de 19 mil megawatts (MW) de energia.

  • 31

    As sete usinas, caso fossem construdas, inundariam cerca de 18.000 km,

    atingindo 12 Terras Indgenas e outros diversificados grupos sociais da regio.

    Conforme ressalta Mello (2013), a Usina Hidreltrica de Belo Monte (11 mil MW), at

    ento denominada de Karara, faria parte do Complexo Hidreltrico de Altamira,

    juntamente com a Usina Hidreltrica de Babaquara (6,6 mil MW). Ambas deveriam ser

    construdas no rio Xingu.

    No entanto, este primeiro projeto no se efetivou. Aps abandonar o projeto

    original, o governo resolve retomar a construo da Usina Hidreltrica de Belo Monte

    em 2005, modificando-o, em algumas partes, se comparado com o projeto anterior

    (BERMAM, 2012). Nesse novo traado, o referido projeto passaria a ter um

    reservatrio de 400 km, e no mais de 1. 225 km, como antes.

    Mello (2013) analisa que o abandono do primeiro projeto da barragem de

    Belo Monte deve-se forte resistncia dos grupos indgenas, movimentos sociais,

    organizaes da sociedade civil, Igreja Catlica e partidos polticos de esquerda

    durante a dcada de 1980. O momento mais decisivo foi o Grande Encontro dos

    Povos Indgenas do Xingu, ocorrido em fevereiro de 1989, em Altamira (PA).

    Neste evento houve uma cena, destacada por Alves (2010) como

    emblemtica, que reveladora da dimenso do conflito que se instaurou desde o

    anncio da Barragem de Belo Monte, at os dias atuais. O evento emblemtico

    consiste no ato em que a ndia Tura, de posse de um faco, atrita aquela ferramenta

    no rosto do ento presidente da Eletronorte.

    Na atualidade, de acordo com Bermam (2012, p. 7), a retomada da construo da

    Usina de Belo Monte representa o paradigma para o processo de expanso da fronteira

    hidreltrica na bacia amaznica. Tal paradigma vem se afirmando, conforme este

    autor, pela negao da democracia e desconsiderao das populaes tradicionais da

    regio, e das relaes destas com os seus territrios. Por outro lado, a cena emblemtica

    descrita no pargrafo anterior revela a existncia vigorosa de um processo de resistncia

    encabeado, principalmente, por grupos indgenas que no parecem estar dispostos a

    recuar.

    Se ningum recua, as situaes de conflito continuam a modelar as relaes

    sociais. Em 2008, no contexto de negao e disputa em relao instalao da Usina

    Hidreltrica de Belo Monte, outro acontecimento emblemtico reatualiza a histria das

    relaes entre os indgenas e a Eletronorte. Trata-se do Encontro dos povos do Xingu,

  • 32

    organizado pelo Movimento Xingu Vivo que congrega uma diversidade de agentes

    sociais contrrios a construo daquele projeto hidreltrico. Neste evento estavam

    reunidas entidades governamentais e no governamentais, tribos indgenas, movimento

    de mulheres, religiosas da Prelazia do Xingu, dentre outros (ALVES, 2010).

    O objetivo daquela coletividade era debater as consequncias da construo da

    barragem de Belo Monte para os grupos afetados. O desenrolar do evento foi

    interpelado por uma ao que parecia espelhar a imagem daquela ao protagonizada

    pela ndia Tuira. De acordo com Alves (2010, p. 7) no segundo dia, um dos diretores

    da Eletronorte em seu discurso de apresentao, foi ferido por um ndio, gerando vrios

    outros momentos de conflitos. Este fato teve repercusso nacional e revelou a

    dimenso do conflito ali instaurado.

    Apesar da existncia de situaes como estas, reveladoras da tenacidade com a

    qual os indgenas dizem no construo daquela obra, o empreendimento no recua.

    O ato de no recuar implicou na utilizao de estratgias para que o projeto continue

    avanando.

    A estratgia de diminuio da rea de alagamento resultou na retirada das Terras

    Indgenas Juruna do Paquiamba e Terra Indgena Arara da Volta Grande do eixo de

    inundao. O curso do rio ser modificado atendendo as estas exigncias. Para Bermam

    (2012), o uso deste artificio tem como objetivo a no sujeio do governo e empresrios

    aos princpios constitucionais que asseguram o direito de escuta das opinies dos

    indgenas, e a aprovao do Congresso Nacional, em casos de remoo dos indgenas

    dos territrios em que habitam.

    Esta ao dos interessados na construo da Usina Hidreltrica de Belo Monte

    pode significar, entretanto, algo desastroso para os agentes sociais que necessitam da

    normalidade do curso do rio Xingu para manter a reproduo de seus modos de vida. De

    acordo com Mello (2013, p. 128), O desvio do rio Xingu impede, na prtica, a

    existncia fsica e social dos grupos que vivem em seu curso, uma vez que seu modo de

    vida altamente dependente da existncia de um rio ntegro que permita a coexistncia

    de usos diversos. revelia de todas estas questes a referida usina hidreltrica est

    sendo materializada.

    Para Bermam (2012), este avano na construo da Usina Hidreltrica de Belo

    Monte significa, em contrapartida, o retrocesso na democracia, fato este demonstrado

  • 33

    quando os grupos indgenas, e outras populaes tradicionais da regio de Altamira,

    foram desconsiderados no processo decisrio a respeito da edificao daquela obra. Em

    um desses momentos,

    Os indgenas sofreram toda sorte de constrangimentos para participar dos

    debates, as comunidades no foram consultadas, e as crticas levantadas

    acabaram desconsideradas de forma sistemtica por um Painel de

    Especialistas constitudo por cientistas e professores de importantes

    universidades brasileiras (BERMAM, 2012, p. 11).

    O respeito ao poder decisrio dos grupos indgenas, e outros agentes sociais, em

    relao ao licenciamento da Usina Hidreltrica de Belo Monte representaria para os

    empreendedores, de acordo com Mello (2013), um risco democrtico. O risco

    democrtico, nesse sentido, o de que a sociedade prejudicada pela obra decidisse,

    amparada na legislao pertinente, no se submeter a um tipo de investimento

    econmico que ela entenda que, em ltima instncia, trar consequncias danosas para

    si (MELLO, 2013, p. 130). O fato que, conforme destaca Bermam (2012), o governo

    brasileiro virou as costas, por assim dizer, ao debate sobre as repercusses que esta obra

    de engenharia pode acarretar vida e ao territrio de muitos agentes sociais.

    Mello (2013), analisando o posicionamento dos indgenas Jurunas diante dos

    acontecimentos desencadeados pela presena desta tecnologia, destaca alguns pontos

    criticados. As crticas se relacionam, principalmente, falta de esclarecimentos sobre a

    dimenso das interferncias que o territrio deste grupo social ir sofrer.

    A incerteza sobre o que acontecer com a gua do rio Xingu, j que nela so

    despejados dejetos advindos dos canteiros de obra da barragem, uma das situaes

    apontadas. Ainda, nessa perspectiva, os indgenas Jurunas julgam que os

    empreendedores deveriam atentar para os efeitos do projeto sobre as atuais condies de

    existncia no territrio. Com a diminuio das guas do rio Xingu, a pesca poder ser

    inviabilizada e as doenas podero se proliferar. Em funo disto, os indgenas

    ressaltam que a sada ir morar na cidade, local representado como perigoso, o que

    implica em perda de liberdade de se deslocar tranquilamente (MELLO, 2013).

    Alm disso, a referida autora demonstra a existncia de outros aspectos

    apontados como problemticos em relao construo da barragem de Belo Monte.

    Dentre estes esto: a) as informaes desencontradas dos tcnicos sobre a real dimenso

    da barragem e dos impactos que, muitas vezes, so at omitidos; b) a indefinio sobre

  • 34

    o que vai acontecer com os grupos sociais situados a jusante4 da barragem, j que a gua

    que transcorrer por ali ficar submetida ao controle humano, e no mais da natureza; c)

    os impactos sobre a sade mental de muitos agentes sociais, em especial dos mais

    velhos, que se veem obrigados a conviver com a ideia de que a vida tradicional e a

    natureza vo mudar drasticamente; c) a preocupao com a proliferao de carapan e

    mosquitos transmissores da malria, os quais se reproduzem em pocas da seca do rio

    Xingu, nas guas paradas, e podero inviabilizar a vida nas aldeias; d) anota-se,

    tambm, o receio em relao presso que os territrios indgenas iro sofrer, em

    decorrncia da chegada de pessoas oriundas de cidades e estados diferentes; e) so

    criticados, tambm, os limites temporais das indenizaes, pois as pessoas que nascem

    naquele contexto esto sujeitas a um futuro incerto e no esto sendo, sequer, cogitadas

    no EIA/RIMA.

    Todos estes aspectos representam, no entendimento dos grupos indgenas que

    esto nas reas ditas de influencia da barragem de Belo Monte, situaes que deveriam

    constar nos Estudos de Impacto Ambiental daquele empreendimento. O conflito pela

    defesa da vida nos territrios se estende a outros segmentos sociais, como o caso dos

    pescadores.

    No ms de setembro de 2012, pescadores5 mobilizados fizeram um protesto em

    que chamaram a ateno para as condies de uso do rio, do ponto de vista da

    navegabilidade, e tambm da atividade da pesca. A pesca-protesto se consubstanciou

    numa estratgia de protesto orquestrada pelos pescadores, e teve durao de oito dias.

    Sem serem ouvidos, os agentes sociais em questo, munidos de oito barcos desfilaram

    pelas obras da barragem, atravessando o rio Xingu de margem a margem.

    O desfile nos barcos simbolizava aquilo que para eles ser uma incgnita no

    futuro. A inteno era saber se haver possibilidades de navegao, naquele rio, quando

    a estrutura de concreto da barragem j estiver montada. A Usina Hidreltrica de Belo

    4O termo tcnico que nomeia a rea abaixo do reservatrio de uma barragem jusante. E o termo que

    nomeia a rea localizada acima do reservatrio montante.

    5Informaes extradas de MOVIMENTO XINGU VIVO PARA SEMPRE. Pescadores continuam

    acampados em protesto contra Belo Monte. Disponvel em

    http://www.xinguvivo.org.br/2012/09/25/pescadores-continuam-acampados-em-protesto-contra-belo-monte/ Acessado em outubro de 2013.

  • 35

    Monte representa um ncleo de agitao social de onde emergem situaes de conflito

    evidenciando disputas distintas pela existncia nos territrios de sua influncia. E ai se

    torna clara a valorizao econmica e poltica impondo ao territrio um ordenamento

    capitalista, o qual se sobrepe a outras formas de apropriao deste espao- o caso dos

    indgenas Jurunas e dos pescadores ilustra com clareza esta questo.

    1.4 A DISPUTA PELA DEFINIO DE ATINGIDOS POR BARRAGENS

    A conflitualidade no entorno de projetos hidreltricos emerge por uma

    diversidade de prismas. Neste tpico, a ateno est voltada para a disputa pela

    definio de atingidos por barragens. Uma definio insuficientemente formulada,

    consequentemente, produz srias implicaes na realidade social de quem vitimado

    pela implantao deste tipo de projeto.

    Vainer (2008) destaca a dimenso econmica e financeira com que esta noo

    aparece em documentos tcnicos do setor eltrico. Conforme analisa este autor, definir

    atingidos por barragens s com base em pressupostos tcnicos e econmicos bastante

    insuficiente.

    Buscando alargar essa compreenso, Nbrega (2011, p. 131) demonstra ser

    preciso considerar atingidos tambm os grupos e comunidades ameaadas por projetos

    de barragens, independente das possibilidades de sua execuo. Em outros termos, os

    momentos que precedem a materializao de um projeto desta natureza podem ser

    bastante ricos, de um ponto de vista analtico.

    Vainer (2008) aponta a existncia de grupos sociais, famlias e indivduos que

    sentem os efeitos de projetos hidreltricos a partir do momento de sua comunicao.

    Outros comeam a se sentir prejudicados aps a instalao do projeto, quando o

    reservatrio enche. De certo modo, Anlises cuidadosas indicariam que ao longo do

    ciclo do projeto, diferentes grupos e indivduos so afetados, de diferentes maneiras

    (VAINER, 2008, p. 54). Muitas das consequncias antes da instalao de um projeto

    deste tipo esto relacionadas incerteza em relao ao que fazer da vida, j que o

    territrio est prestes a ser reapropriado por terceiros.

    Este o caso, por exemplo, dos grupos que no sabem se podem continuar com

    o curso normal da vida, semeando, investindo, fazendo novas aquisies para a sua

    propriedade, ou se interrompem os projetos para o futuro (DAOU, 2013). Alm disto,

  • 36

    de acordo com Daou (2013), a noo de atingido dos responsveis pela elaborao de

    estudos nas reas de populaes a serem afetadas por empreendimentos hidreltricos se

    ancora em perspectivas etnocntricas e em parmetros urbanos da vida.

    O fato que, reconhecer uma abrangncia da noo de atingidos por barragens

    para alm dos aspectos tcnicos e financeiros significa reconhecer direitos e os

    detentores desses direitos e, consequentemente, inseri-los na agenda dos grupos

    interessados na edificao de projetos hidreltricos.

    Em outras palavras, estabelecer que determinado grupo social, famlia ou

    individuo , ou foi, atingido por determinado empreendimento significa

    reconhecer como legitimo- e, em alguns casos, como legal- seu direito a

    algum tipo de ressarcimento ou indenizao, reabilitao ou reparao no

    pecuniria (VAINER, 2008, p. 40).

    Ainda que haja o reconhecimento de que um grupo social foi afetado por uma

    determinada barragem, geralmente, se reconhece e se repara os danos materiais.

    Entretanto, os problemas de ordem moral e as redefinies de identidade social, de certa

    maneira, permanecem irreparveis (ALMEIDA, 1996).

    A noo de atingidos varia conforme o contexto poltico-social e com o espao-

    tempo em que est inscrita. Ela est tambm relacionada como o desenrolar e

    desenlace dos conflitos opondo diferentes atores sociais envolvidos no processo de

    concepo, implantao e operao de projetos hidreltricos (VAINER, 2008, p. 40-

    41). A imposio dos agentes sociais tem grande repercusso nos rumos que a noo de

    atingidos pode tomar. Como se evidencia, a atmosfera que circunda a construo de

    Usinas Hidreltricas tende a ser conflituosa. Isto porque os interesses em jogo no so

    os mesmos. Alis, esto cada vez mais polarizados.

    Uma srie de implicaes sobre os direitos territoriais de quem foi,

    forosamente, inscrito no grupo dos atingidos por barragens aparece como

    desdobramento. O desrespeito por esses direitos, ademais, parece ser a principal

    implicao. Em decorrncia disto, a disputa e os conflitos tem, necessariamente, se

    desenrolado nas realidades pretendidas para implantao de usinas hidreltricas.

    O fato que uma definio mais clara e que englobe o mximo de dimenses

    possveis da vida humana afetadas pela implantao de barragens configura apenas o

    incio de uma poltica socialmente responsvel. Isto somado

  • 37

    [...] a adoo de avaliaes consistentes e rigorosas de alternativas, o exame

    efetivo dos impactos previsveis, a opo por estratgias baseadas no

    principio da preocupao e, acima de tudo, o respeito a processos

    democrticos que garantem, desde a concepo do projeto (inventrio,

    viabilidade, etc.), a efetiva e informada participao das populaes

    interessadas nos processos de avaliao e de deciso (VAINER, 2008, p. 39-

    40).

    Essas especificaes do conta no s do que deve haver, mas do que no existe

    nas formulaes que o setor eltrico pe em prtica. Se no h, por exemplo, uma

    oferta rigorosa de alternativas aos atingidos e, muitas vezes, a opinio destes no

    levada em considerao no processo decisrio sobre o erguimento de barragens, torna-

    se pouco certo que no haver conflito no entorno da implantao desse tipo de

    tecnologia.

    O que se revela, portanto, o fato de que o setor eltrico tem como parmetro

    definies incipiente de atingidos por barragens. A concepo territorial-patrimonialista,

    destacada por Vainer (2008) como a mais tradicional, demonstra um dos primeiros

    parmetros excludentes de definio de atingidos por barragens. Nesta concepo, o

    simples fato de uma determinada rea constar como sendo de interesse dos

    empreendedores j era motivo suficiente para que ela fosse declarada de interesse

    pblico. O interesse pblico se consubstanciava no discurso legitimador das aes do

    Estado e dos grupos econmicos a ele adjacentes.

    Caso o ento proprietrio do lugar requerido manifestasse opinio em desacorde

    com os interesses do setor eltrico, o dinheiro (indenizao) era depositado em juzo,

    ficando sujeito contestao via judicirio pelo dono da propriedade, se achasse injusto

    o valor. Nesta perspectiva, no h um debate sobre atingidos e nem a respeito de seus

    direitos, e a desapropriao para atender o interesse pblico mascara e pe em suspenso

    essas questes.

    Nos dias de hoje, as prticas herdadas da concepo e das estratgias territoriais

    patrimonialistas ainda se mantm vivas. Isto fica claro, de acordo com Vainer (2008, p.

    44), quando o problema dos atingidos tem permanecido sob duas dimenses exclusivas:

    o territrio atingido concebido como sendo a rea a ser inundada e a populao

    atingida constituda pelos proprietrios da rea a ser inundada. Ou seja, a questo

    continua sendo insuficiente analisada, e muitos agentes sociais atingidos so

    invisibilizados no processo.

  • 38

    Embora tenha havido um crescente esforo das agencias multilaterais (a

    International Financial Corporation, ligada ao Banco Mundial, o prprio Banco Mundial

    em suas diretrizes e o Banco Interamericano de Desenvolvimento BID) no sentido de

    alargar a concepo de atingidos, Vainer (2008) afirma que, na prtica, a maioria das

    empresas continua a agir com base na orientao ofertada pela concepo territorial-

    patrimonialista de atingido.

    Porm, apenas ali onde a resistncia organizada das populaes se mostrou

    capaz de confrontar a intransigncia e estreiteza das empresas foi possvel observar

    avanos prticos (VAINER, 2008, p. 63). Os avanos na disputa pela definio de

    atingidos tem, necessariamente, que dialogar com a realidade e demandas dos prprios

    atingidos. Se esta conexo est presente na definio de atingidos por barragens, pode

    haver possibilidades de uma construo de elaboraes menos falveis e mais justas,

    nesse sentido.

    O avano de projetos hidreltricos sobre uma diversidade de grupos sociais faz

    surgir reflexes e anlises em diversos sentidos, dado que o comportamento humano

    bastante imprevisvel nessas situaes. A implantao da tecnologia de barragem

    demonstra que o ser humano, nessas realidades, busca seu protagonismo apesar da

    correlao de fora desigual. Longe de se acomodar s situaes impostas, os agentes

    sociais tm reagido de diferentes maneiras. Tais reaes entram na literatura, sobretudo

    scio - antropolgica, como efeitos sociais. dessa discusso que o tpico a seguir

    pretende se ocupar.

    1.5 BARRAGENS NA PERSPECTIVA DOS EFEITOS SOCIAIS

    A noo de efeitos sociais ilustra o comportamento humano em face da presena

    de tecnologias que operam baseadas no deslocamento forado. O deslocamento

    compulsrio, um dos impactos mais marcantes e incisivos na vida dos grupos sociais

    afetados por barragens, convm anotar, no tem sido operacionalizado conforme as

    pretenses dos empreendedores. Tal evento demonstra que os agentes enredados nesses

    contextos so mais que vtimas testemunhais de um destino imposto pelo setor eltrico.

    Eles tambm so protagonistas dessas relaes.

    A definio de efeitos sociais, nesse sentido, pode prolongar a noo de

    impactos sociais e ajudar a entender as situaes que envolvem o deslocamento forado.

  • 39

    Daou (2013, p. 85), destacando a pertinncia de Sigaud (1986) ao propor a definio de

    efeitos sociais, ressalta que aquela autora Problematizava ento o uso da noo de

    impacto no sentido de que no haveria respostas nicas e similares em decorrncia da

    implantao de um mesmo tipo de projeto- hidreltrica. Era preciso buscar as

    descontinuidades das aes, e no aquilo que as faziam semelhantes.

    Para Sigaud (1992), a noo de impactos trai o protagonismo humano ao se

    preocupar mais em visibilizar a incidncia das aes dos dominadores sobre os

    dominados, de que com outras situaes ocorridas nesse processo. Tal preocupao no

    deixa de ser relevante. Entretanto, o que os agentes sociais esto fazendo diante da

    situao de dominao (ou dos impactos) tambm deve ser analisado.

    Reis (1998) tambm reconhece que, pensar o contexto de construo de

    barragem pela perspectiva dos impactos sociais no deixa de ser relevante para a

    compreenso das mudanas socioculturais que tais empreendimentos acarretam. Por

    outro lado,

    Sua fragilidade reside, porm, no fato de assumirem uma perspectiva

    unilateral, em relao virtual possibilidade dos atores sociais intervirem no

    processo de mudanas, desencadeado pela implantao dos grandes projetos.

    Isto , as populaes locais ou regionais afetadas por estes projetos foram

    pensadas como agentes passivos, sendo supervalorizado o papel dos agentes

    governamentais, a quem caberia a implantao das obras em questo (REIS,

    1998, p. 06).

    Por isso, de acordo com Sigaud (1992, p. 19), deve-se estar atento para O

    quanto os efeitos de uma determinada opo tecnolgica so tambm o produto das

    relaes sociais concretas, dos enfrentamentos e dos conflitos [...]. Alguns destes

    efeitos tem sido invsibilizados por estudos que tratam, de forma simplificada, os

    aspectos da vida em sociedade (Idem, 1992). A ao dos agentes sociais postos em

    situao de subalternidade, por sua vez, fica invisibilizada.

    A fim de desvelar a dimenso do comportamento humano onde as usinas

    hidreltricas se instalam- dimenso esta traduzida pela definio de efeitos sociais-

    buscou-se apoio na literatura de Daou (1996, 2013); Magalhes (1996, 2007); Sigaud

    (1992, 1996) e Vianna (2012). Tais autores so pioneiros nessa discusso de cunho

    scioantropolgica.

  • 40

    Uma primeira reflexo por este ngulo est contida na anlise do processo de

    construo da barragem6 de Sobradinho (1972 a 1979), no rio So Francisco, a 50 km

    de Juazeiro, na Bahia e encabeada pela Companhia Hidreltrica do So Francisco-

    CHESF.

    De acordo com o que analisa Sigaud (1996), a comunicao de que a barragem

    de Sobradinho iria ser construda foi recepcionada com uma total descrena por muitos

    camponeses que viviam s margens do rio So Francisco, na cidade de Itapera. Os

    camponeses no acreditaram na possibilidade de que o relato pudesse ser verdico. Para

    eles, a cheia do rio comunicada no passaria de uma eventualidade, como as que

    conheciam ou a respeito das quais os mais velhos lhes falavam (SIGAUD, 1996, p.

    552). Essa situao acabou por mostrar que, tanto a crena quanto o comportamento

    dos agentes sociais frente comunicao da barragem pode assumir formas distintas.

    A proposta inicial da Companhia Hidreltrica do So Francisco CHESF- foi a

    de que os camponeses consentissem em abandonar a beira do rio. Muitos no aceitaram

    tal proposta, ao passo que outros aderiram a ela. A adeso s recomendaes da CHESF

    foi entendida, naquele contexto, como uma forma de morte social. Isto em decorrncia

    das perdas materiais e de prestgio junto ao grupo familiar que seriam acarretadas para

    alguns camponeses.

    Por outro lado, para muitos indivduos significava uma oportunidade de

    ascenso social e de aquisio de prestgio (SIGAUD, 1996). De fato, houve quem

    obtivesse, no novo lugar de moradia, bens materiais superiores aos que possua no lugar

    anterior. Isso lhes agregava prestgio, principalmente, familiar.

    Os camponeses de Itapera, em meio situao de ameaa de deslocamento

    forado, mantiveram firmeza na oposio barragem e ao que lhes havia sugerido a

    empresa. Conforme ressalta Sigaud (1996, p. 567 grifos da autora), Diante da recusa

    expressiva [DOS CAMPONESES] em partir, a empresa viu-se constrangida, como no

    caso de outros povos, a construir o ncleo na borda do lago. O ncleo aqui

    considerado a cidade de Itapera, reconstruda s bordas do lago da barragem de

    Sobradinho em atendimento s exigncias daqueles agentes sociais. A maneira como os

    camponeses se comportaram em face do deslocamento compulsrio foi decisiva para a

    6A materializao da barragem de Sobradinho resultou no deslocamento de cerca de 70.000 pessoas.

    Conforme demonstra Daou (1996, p. 477), deste nmero 80 % eram camponeses que viviam nas margens e ilhas do trecho do rio onde se formou o lago de Sobradinho, com 4214 km de extenso [...].

  • 41

    mudana no rumo desta poltica.

    A situao de conflito descrita acima configura, basicamente, uma resposta dos

    agentes sociais que estiveram na disputa pela existncia em um territrio cujas

    caractersticas atendem as suas especificidades. Suas aes resultaram, ao menos em

    parte, na imposio de decises que criaram certos constrangimentos para as empresas.

    o protagonismo humano que se revela, apesar da correlao de fora desfavorvel.

    Pensar as relaes sociais, nestas conjunturas, tendo como referncia s a ao dos

    chamados poderosos pode ser pouco produtivo, o que destaca o trecho abaixo:

    Como as populaes so obrigadas a abandonar locais de trabalho e moradia

    pela fora- a fora dos decretos- lei e a fora das guas- tende-se a acreditar

    que tudo aquilo que ocorre nestas situaes efeito direto da atuao

    daqueles que promovem o deslocamento, como se tudo se devesse ao poder

    dos que tm poder para exercer aquela fora (SIGAUD, 1996, p. 569).

    Os efeitos sociais da presena de barragens no se resumem, to somente,

    deciso dos grupos dominantes em deslocar, compulsoriamente, os agentes sociais

    afetados. Ou seja, a via no de mo nica. Tais efeitos, em grande medida, derivam da

    conduta e do protagonismo dos agentes sociais ao reagirem diante da situao que lhes

    imposta pelo processo de deslocamento e reassentamento compulsrio. Cabe assinalar,

    entretanto, que os camponeses de Itapera, mesmo tendo exercido influencia no processo

    de deslocamento compulsrio, no conseguiram obter a reproduo do modo de vida e

    das relaes sociais conforme aspiravam (SIGAUD, 1996). Fora das condies do

    tempo de antes da barragem, essa tarefa parecia difcil. Isso mostra o quo irreparvel

    pode ser a violncia cometida pela implantao da tecnologia de barragens.

    Vianna (2012), em anlise das aes desencadeadas pelos camponeses da

    comunidade de Lajeado Pepino (municpio de Paim Filho, Rio Grande do Sul), quando

    estes se depararam com a comunicao da barragem de Machadinho (construda na

    bacia do rio Uruguai, no inicio dos anos de 1980), revela o quo determinante foi o

    protagonismo daqueles agentes sociais para a mudana nos rumos que a barragem iria

    tomar e, tambm, as suas vidas.

    Ao longo dos anos de 1980, nas regies que estavam na rea de interferncia do

    lago da barragem de Machadinho, ocorreram vrias aes, principalmente, de colonos

    que se sentiam ameaados em face da presena do referido projeto hidreltrico. Aes

    como prises de funcionrios da ELETROSUL, empresa interessada no

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    empreendimento; expulses de funcionrios dos domnios dos colonos; destruio e

    retirada dos marcos delimitadores do reservatrio da barragem; bloqueio de estradas,

    dentre outros processos de enfrentamento, constituram as estratgias de oposio

    quela barragem (VIANNA, 2012). Alm das prises, ameaas e etc., os colonos

    articulavam essa ao com outra estratgia: chamavam a ateno da mdia para

    visibilizar o acontecimento.

    Assim que os colonos da comunidade de Lajeado Pepino participaram,

    ativamente, apesar de rotulados de politicamente atrasados, nas decises que mudaram o

    curso dos acontecimentos naquele contexto. Um dos atos mais decisivos foi a priso de

    um dos tcnicos a servio dos empreendedores, no ano de 1987 (Idem, 2012). As

    prises eram realizadas objetivando, principalmente, negociar a liberdade da pessoa

    detida por um acordo com a ELETROSUL.

    No enredo deste conflito estava presente a Comisso Regional dos Atingidos por

    Barragens (CR