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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE LETRAS DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM GRAMÁTICA E ENSINO DE LÍNGUA. PORTUGUESA ENSAIO CRÍTICO: A Teoria da Relatividade Lingüística: quando o erro não é erro e a norma está inadequada Simone Dorneles Severo

Conceito de Erro, Norma e Adequação Linguistica

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Ensaio crítico abordando o conceito de erro, norma e adequação linguisticos

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SULINSTITUTO DE LETRAS

DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULASCURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM GRAMÁTICA E ENSINO DE LÍNGUA.

PORTUGUESA

ENSAIO CRÍTICO:

A Teoria da Relatividade Lingüística: quando o erro não é erro e a norma está inadequada

Simone Dorneles Severo

Porto Alegre2008

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Apresentação

Este ensaio crítico aborda os conceitos de erro, norma e adequação lingüísticos.

Foi solicitado pela Disciplina de Estudos Lingüísticos II (módulo da Prof.ª Lúcia

Sá Rebello) do Curso de Especialização em Gramática e Ensino da Língua Portuguesa –

edição nº 3, ano de 2008, realizado na Escola Técnica de Comércio da Universidade

Federal do Rio Grande do Sul e coordenado pela Prof.ª Sabrina de Abreu Pereira.

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A Teoria da Relatividade Lingüística: quando o erro não é erro e a norma está inadequada

Quem disse que a magnífica Teoria da Relatividade se aplica somente à Física, enganou-se, pois, hoje, Linguagem (boa!) = adequação lingüística ao quadrado:

L=al2

Errar é muito relativo... Depende se ele é escolar1, num texto de vestibular, na internet e com quem você está se comunicando. Melhor dizendo, copiando Bagno2: “Como sempre, tudo vai depender de quem diz o quê, a quem, como, quando, onde, por quê e visando que efeito...” Inicialmente é bom definirmos que a linguagem tem vários “campos magnéticos”: a linguagem oral e a linguagem escrita. Nessas, também tudo é muito relativo! Os erros em relação à norma “deslocam mais massa” quando ocorrem na escrita. Na linguagem oral, por ser um “corpo fluido”, os erros são valorizados de forma menos importante e diferentemente.

Sem contar, também, que a “energia” de uma interfere na da outra. E aí, está um dos “enigmas” do problema de adequação lingüística: até que ponto se pode “fundir” uma com a outra? Quanto de massa podemos deslocar da linguagem oral para a linguagem escrita? Em que tipos de “massa” (textos)?

Ao lermos um texto, um erro em relação à norma gramatical (ortografia) será mais insignificante do que um erro semântico (ambigüidade, por exemplo), pois o intuito fundamental da teoria da relatividade é: produzir boa e forte comunicação (energia). Se você se faz entender, na sociedade, é o que contará para você produzir “energia comunicativa”. O texto abaixo, produzido na campanha contra a AIDS em um presídio, é um excelente exemplo de texto formulado com graves erros em relação à norma gramatical. Um texto formal, seguindo as normas da gramática tradicional ou de campanhas televisivas tradicionais, direcionadas ao público padrão brasileiro (na norma culta padrão), não teria tanto impacto naquele grupo social:

Aqui é bandido: Plínio Marcos. Atenção malandrage (sic)3!Eu num vô pedir nada, vô te dá um alô! Te liga aí: Aids é uma praga que roi até mais fortes, e rói devagarinho. Deixa o corpo sem defesa contra a doença. Quem pega essa praga está ralado de verde e amarelo, de primeiro ao quinto, e sem vaselina. Num tem doto que dê jeito, nem reza brava, nem choro, nem vela, nem ai, Jesus. Pegou Aids, foi pro brejo! Agora sente o aroma da perpétua: Aids pega pelo esperma e pelo sangue, entendeu?, pelo esperma e pelo sangue! (Pausa) Eu num to te dando esse alô pra te assombra, então se toca! Não é porque tu ta na tranca que virou anjo. Muito pelo contrário, cana dura deixa o cara ruim! Mas é preciso que cada um se cuide, ninguém pode vale pra ninguém nesse negócio de Aids. Então, já viu: transá, só de acordo com o parceiro, e de camisinha! (Pausa)Agora, tu aí que é metido a esculacha os outros, metido a ganha o companheiro na força bruta, na congesta!Pára com isso, tu vai acaba empesteado! Aids num toma conhecimento de macheza, pega pra lá, pega pra cá, pega em home, pega em bicha, pega em mulhé, pega em roçadeira!

__________________1 POSSENTI, Sírio. Por que não ensinar gramática na escola. Campinas-SP: Mercado de Letras, 1996. 95 p. (Coleção Leituras no Brasil) 2 BAGNO, Marcos. Preconceito lingüístico: o que é, como se faz. 5ª ed. São Paulo: Loyola, 1999. pág. 131.3 Dispensarei os demais sic para não me tornar pedante.

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Pra essa peste num tem bom! Quem bobeia fica premiado. E ficaum tempão sem sabe. Daí, o mais malandro, no dia da visita, recebe mamão com açúcar da família e manda pra casa o Aids! 4

Através do exemplo acima podemos inferir que as noções de erro, norma e adequação lingüística são ligadas à Teoria da Comunicação (emissor, mensagem, canal, receptor)4 e à Teoria da Argumentação4, as quais não abordaremos aqui, de forma pormenorizada, pois fogem de nosso “foco de energia”(enfoque). Também, por esse texto, podemos verificar que quem entende mesmo de adequação lingüística são os publicitários, que usam e abusam da transgressão da língua, sem “preconceitos”, em prol da aceitação de sua mensagem. A eles não importa o que os “comandos paragramaticais”5 comentam... Acho que eles até gostam da discussão que causam com slogans do tipo “vem pra caixa você também” (uso errado do Imperativo de acordo com a norma) e “a persistirem os sintomas” (de acordo com a norma), que causou dúvida para a maioria da população...Qual é o mais adequado? Qual foi o mais aceito? Para Bagno deve-se encontrar um ponto de equilíbrio na “fusão do átomo”: nos adequar à situação de uso da língua em que nos encontramos. Se for uma situação formal, tentaremos usar uma linguagem formal e se for uma situação descontraída, uma linguagem descontraída, seguindo as “leis dinâmicas” da adequabilidade e aceitabilidade.

Um foneticista investigador, ao tentar decifrar quem expressou determinado discurso, quando, como e onde, se vale dos preceitos de adequação lingüística, norma e erro para constatar a fonte correta. Por exemplo, um funcionário de alto escalão empresarial, de uma empresa multinacional, jamais se expressará da mesma forma, ao roubar, do que um rapaz esperto querendo usurpar dinheiro de uma esposa rica e bonita. Um ladrão do Sul e um ladrão do Norte do Brasil empregarão vocabulário, acentos (stress) e entonações diferentes e, conforme a idade, também se expressarão de maneira diversa um do outro. O uso de gírias (caracteriza a linguagem do falante), os arcaísmos (recuperam a época), os neologismos (caracterizam o falante e a época), os regionalismos e os estrangeirismos (caracterizam a procedência do falante) e os jargões (caracterizam a competência de quem utiliza) empregados por eles serão índices de informação para o investigador6.

Bagno7 explanou sobre as várias definições de norma elaboradas por Castilho (1978), Lucchesi (1994) e Mattos e Silva (1995). Castilho define três tipos: norma objetiva (linguagem efetivamente praticada pela classe culta, escolarizada); subjetiva (atitude que o falante assume perante a norma objetiva) e prescritiva (combinação da norma objetiva com a subjetiva). Lucchesi propõe três conceitos: norma padrão (formas prescritas pelas gramáticas normativas); norma culta (forma efetivamente depreendidas da fala dos segmentos plenamente escolarizados - com curso superior completo) e norma vernácula (padrões lingüísticos das classes mais baixas, não escolarizadas, que se oporiam de forma nítida aos padrões das classes média e alta, escolarizadas). ______________4 FIORIN, José Luiz, SAVIOLI, Francisco Platão. Lições de texto: leitura e redação. 4ª ed. São Paulo: Ática, 2000. 5 Comandos paragramaticais clássicos: livros destinados ao público em geral, escritos por autoproclamados defensores da língua portuguesa que investem contra erros comuns, a invasão de estrangeirismos, a ruína do idioma de Camões, a pobreza da língua da atual geração e outros males igualmente graves. Comandos paragramaticais modernos: difundidos através da mídia (jornal, revista, cd-rom, internet), que tomam para si a missão de defender a Língua Portuguesa.6 FIORIN, José Luiz. SAVIOLI, Francisco Platão. Para entender o texto: leitura e redação. 4ª ed. São Paulo: Ática, 2003. pág. 957 BAGNO, Marcos. Dramática da língua portuguesa: tradição gramatical, mídia e exclusão social. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2000. págs. 141-151

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A de Mattos e Silva, que se aproxima mais com a de Bagno, define dois tipos:

a. norma normativo-prescritiva, norma prescritiva ou norma-padrão, conceito tradicional, idealizado pelos gramáticos pedagogos, diretriz até certo ponto para o controle da representação escrita da língua, sendo qualificado de erro o que não segue esse modelo. De fato, a norma normativo-prescritiva passa a ser a norma codificada nas gramáticas pedagógicas que se repetem tradicionalmente de gramático a gramático. Dis-tancia-se da realidade dos usos, embora com alguns deles se interseccione, e é parcialmente reciclada ou atualizada ao longo do tempo pelas imposições evidentes, decorrentes da razão universal de as línguas mudarem e suas normas também, entre elas, a que serve de modelo à norma-padrão; b. normas normais ou sociais, “objetivas” e quantificáveis(?), atuantes nos usos falados de variantes das línguas. São normas que definem grupos sociais que constituem a rede social de uma determinada sociedade. Distinguem-se em geral: b.1 normas “sem prestígio social” ou estigmatizadas; b.2 normas “de prestígio social”, equivalentes ao que se denomina norma culta, quando o grupo de prestígio que a utiliza é a classe dominante e, nas sociedades letradas, aqueles de nível alto de escolaridade.

Como também ocorre na metafísica, também na metalinguagem da lingüística há confusão e ambigüidades no uso do termo norma. Bagno, então, propõe, através da “fusão” dos conceitos de Castilho, Lucchesi e Mattos e Silva, um uso restritíssimo do termo norma: como a concepção de língua das gramáticas normativas, dos comandos paragramaticais e instituições afins, bem como da ideologia que atua sobre as representações que as pessoas têm do que seja língua e gramática. Sua definição se aproxima a de Dubois et al (1978) em seu Dicionário de Lingüística: “chama-se norma um sistema de instruções que definem o que deve ser escolhido entre os usos de uma dada língua se se quiser conformar a um certo ideal estético ou sociocultural. A norma, que implica a existência de usos proibidos, fornece seu objeto à gramática normativa ou gramática no sentido corrente do termo.”

Para Câmara Júnior8, “norma é uma força conservadora na linguagem, mas não impede a evolução lingüística que está na essência do dinamismo da língua, como de todos os fenômenos sociais. Em muitas sociedades evoluídas a norma se torna operante e agressiva por meio do ensino escolar e da organização de uma disciplina gramatical”, que são temas muito debatidos por Bagno. A norma é contrariada pela variabilidade lingüística intrínseca que se verifica de um lugar para outro, de uma classe social para outra, de um indivíduo para outro. Câmara Júnior define três espécies de erros: regionalismos, vulgarismos (traço lingüístico do uso da língua nas classes populares) e os erros individuais, que correspondem ao idioleto.

Bagno9 declara que reavaliar a noção de erro é romper com o círculo vicioso do preconceito lingüístico e com a ideologia dominante, a qual discrimina a maioria da população brasileira que se considera falar e ou escrever errado sua própria língua materna10. A própria classe escolarizada da sociedade brasileira emprega sua variedade “dita culta”, que desvirtua da gramática normativa e, aqui, podemos citar os exemplos

_____________8 CÂMARA JÚNIOR, J. Matoso. Dicionário de Lingüística e Gramática: referente à Língua Portuguesa. 11ª ed. Petrópolis: Vozes, 1984. 286 p.9 BAGNO, Marcos. Preconceito lingüístico: o que é, como se faz. 5ª ed. São Paulo: Loyola, 1999. págs. 122-125.10 Marcos Bagno organizou o excelente livro Lingüística da Norma, que aborda cientificamente a norma como exercício de poder e preconceito, a teoria da desregulamentação lingüística, entre outros temas polêmicos relacionados com a ideologia que se perpetua através da gramática.

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de “a nível de”, a estratégia da relativização cortadora (como em “as coisas Ø que eu me refiro”), o emprego incorreto dos verbos na 2ª pessoa do singular no Sul do Brasil, entre tantos outros “erros” cometidos por pessoas cultas e importantes socialmente. Assim como os países que dominam a tecnologia da energia nuclear são respeitados por serem temidos, também a língua é temida e os “preconceitos” de norma e erro estão a desserviço da sociedade, cerceando as relações sociais e aumentado as diferenças de classes no segundo país do planeta com mais diferenças sociais. E o pior, ressalta Bagno, que quase ninguém se dá conta desse poder maligno e subjetivo da língua.

Segundo ele, reina uma confusão de língua em geral com escrita e, mais reduzidamente ainda, com ortografia oficial. O que se rotula erro de Português é, na verdade, apenas um mero desvio da ortografia oficial.

Ninguém comete erros ao falar sua própria língua materna, assim como ninguém comete erros ao andar ou respirar. Só se erra naquilo que é aprendido, naquilo que constitui um saber secundário obtido por meio de treinamento, prática e memorização: erra-se ao tocar piano, erra-se ao dar um comando ao computador, erra-se ao falar/escrever uma língua estrangeira. A língua materna não é um saber desse tipo: ela é adquirida pela criança desde o útero, é absorvida junto com o leite materno. Por isso, qualquer criança entre os 3 e 4 anos de idade (se não menos) já domina plenamente a gramática de sua língua.

Para ele, “podemos até dizer que existem erros de português, só que nenhum falante nativo da língua os comete! Por exemplo, seriam “errados” os enunciados abaixo:

(1) Aquela garoto me xingou(2) Eu nos vimos ontem na escola”.

A noção de erro é vinculada erroneamente com português, gramática normativa e variedade padrão.

Possenti11 concorda com Bagno de que não há formas ou expressões intrinsecamente erradas, mas salienta que na escola, onde o aluno está para aprender a variedade culta que não domina (ninguém domina!), pode ocorrer que o aluno utilize variantes não padrões em situações nas quais a variante padrão seria exigida. Um segundo tipo de erro escolar decorre de estar o aluno aprendendo uma variedade nova. Como as variedades novas só se aprendem pela formulação de hipóteses, é possível que algumas das hipóteses que o ele formule sejam inadequadas. Ele propõe o ensino através da (nesta ordem): gramática internalizada, gramática descritiva e, por fim, a normativa. Para ele, todas podem conviver na escola: o que o aluno produz reflete o que ele sabe (a gramática internalizada), a comparação das variedades da língua, sem preconceitos (a gramática descritiva) e a explicitação da aceitação ou rejeição social das formas é a tarefa da gramática normativa.

A correção pode ser feita pela simples apresentação da forma correta (aceita e adequada) e cabe ao professor a tarefa de corrigir o aluno sem perpetuar o preconceito de que ele não sabe sua língua, que é fraco ou sem capacidade para aprender português, pois isso lhe influenciará por toda a sua vida escolar.

_______________11 POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas-SP: Mercado de Letras, 1996. 95 p. págs. 86-91(Coleção Leituras no Brasil)