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  • Como a histria dos erros recentes do governo do PTalterou a memria social e a estrutura da lngua no

    Brasil

    Leda Verdiani TfouniProfessora Titular do Dep. de Psicologia e Educao da FFCLRP

    Universidade de So Paulo- Brasil

    Pesquisadora do CNPq

    Resumo: Neste trabalho, pretende-se analisar o efeito que recentes fatos -relacionados polticaconduzida pelo Partido dos Trabalhadores no Brasil- tiveram sobre a memria social do pas, e tambmverificar os modos pelos quais esses fatos se inscreveram na lngua, criando deste modo, novas veredaspara a constituio da Histria e da identidade do povo brasileiro.

    Escndalos financeiros, envolvendo o PT, e, muito provavelmente, tambm o governo Lula, abalaramrecentemente a confiana quase absoluta que a populao tinha acerca dos procedimentos ticos dopartido e de suas lideranas.

    O caso dos Correios e tambm o da distribuio de propinas entre parlamentares da oposio, a fim degarantir o apoio nas votaes de projetos cruciais ao governo, entre outros, abalaram a confiana que opovo depositava no PT. O envolvimento de ministros e polticos ligados ao governo, ou cpula do PT,deixaram quase evidente o envolvimento de Lula nesses escndalos.

    Do ponto de vista adotado neste trabalho, encaramos como impossvel que fatos histricos destamagnitude no deixem um lastro na memria social, e tambm no deixem suas marcas na estrutura dalngua.

    Assim, pretendemos mostrar aqui que, em decorrncia desses acontecimentos, novas palavras surgiram nolxico do portugus brasileiro, com a funo de expressar essas novas zonas de sentido que foraminauguradas pelo processo descrito acima. Do mesmo modo, do ponto de vista sinttico, construes queantes eram quase impossveis de ser materializadas tornaram-se possveis.

    Pretendemos mostrar, deste modo, que a articulao entre memria, lngua e histria, indissocivel dopoltico.

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  • Aspectos tericos- A Anlise do Discurso de tradio francesa (AD), criada por Pcheux na dcada de1980, prope uma regio de entremeio entre lngua e fala, que seria o discurso. Para estudar as produeslingsticas no seu sentido mais amplo, enquanto discurso, necessrio fazer a articulao entre:enunciado e enunciao (segundo Courtine (1999), a mesma diferena que existe entre fabricao eobjeto fabricado). Uma conexo possvel para lidar com a relao entre enunciado e enunciao possibilitada pela atuao da memria e da Histria.

    Pensar o assujeitamento do sujeito falante ordem do discurso implica, ao mesmo tempo, articular edissociar dois nveis de descrio: A) O nvel da enunciao (o eu, aqui, agora, do discurso) e B) O nveldos enunciados- ou interdiscurso (pr-construdo)- srie de formulaes que se articulam em formaslingsticas determinadas (citao, repetio, parfrase, oposio, anttese, etc.). a, no interdiscurso,que temos o domnio da memria, ou seja, a exterioridade constitutiva dos enunciados, espao no qual osujeito falante no tem um lugar j definido, visto que, no domnio da memria, temos uma voz sem dono(Courtine, op. cit.).-

    A AD prope-se interpretar os enunciados de um corpus atravs do desvelamento do processo que oscolocou em funcionamento, ou seja: suas condies de produo. O que constitui as condies deproduo de um discurso? O quadro institucional, o aparelho ideolgico no qual esse discurso se inscreve,as representaes imaginrias que esto subjacentes, a conjuntura poltica na qual ele foi produzido, asrelaes de foras, os efeitos estratgicos (de persuaso) procurados, etc.

    Todo e qualquer dizer tem um carter inescapavelmente histrico, ou seja, impossvel pensar nalinguagem, no sujeito e no sentido fora dessa relao, que caracterizaremos como visceral: condionecessria de constituio e de funcionamento de todo discurso. isto que confere ao acontecimento delinguagem um carter repetvel, especialmente por sua relao com uma (ou mais) formao discursiva:os dizeres possveis em determinado momento scio-histrico. O acontecimento da ordem do repetvel, aoentrar em contato com o novo, especfico de um dado tempo, re-atualiza a enunciao, o que pode levar emergncia de um novo sentido em um enunciado, ou, ainda, a um novo enunciado.

    No processo acima, a memria que regula, conserva e, ao mesmo tempo, promove o rompimento, odeslocamento da ordem (r)estabelecida do sentido de um enunciado. Este conceito ancora-se em umadinamicidade que se mostra tambm na forma como os acontecimentos histricos so ou no inscritos namemria, em como so aspirados por ela ou nela instituem uma falha, uma fissura.

    Podemos dizer que existe, assim, um mecanismo( ideolgico) de naturalizao dos sentidos, que captura osujeito, e que pode atualizar-se na lngua atravs da escolha de um lxico, por exemplo. Bakhtin, sob opseudnimo de Voloshinov (1986) j afirmava que as palavras de uma lngua so carregadas de umcontedo ideolgico, que reflete a histria da luta de classes. Deste modo, podemos dizer que todoacontecimento de atualizao da lngua atravs da introduo de novas palavras no seu lxico assume asfeies da verdade do sujeito. Assim, as formaes metafricas, que concretizam a deriva (origem doacontecimento) inserem-se tambm na histria particular, ou seja, na memria. Deste modo, asatualizaes na lngua so produto da Histria social e da histria particular, as quais possibilitam aosujeito alocar-se em stios de significao (materializados em cadeias de significantes): lugaresespecficos no interdiscurso, que vo servir de ncora para sujeito do discurso durante o ato deenunciao.

    A memria processo dotado de um mago dialtico: por um lado, o que pode e/ou deve ser retomado,recuperado; por outro lado, o que pode e/ou tem por obrigao/condio transformar, deslocar. A

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  • materialidade discursiva estruturada de forma emaranhada, intrincada (...) a memria discursiva seriaaquilo que face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os implcitos ( querdizer, mais tecnicamente, os pr-construdos, elementos citados e relatados, discursos transversos, etc) deque sua leitura necessita: a condio do legvel em relao ao prprio legvel. (Pcheux, 1990:52). agarantia da legibilidade, e ao mesmo tempo a possibilidade de irrupo do novo, via deslizamento desentidos.

    Para ilustrar, apresentaremos uma anlise de fatos recentes que ocorrem na atualidade do cenrio polticobrasileiro. Os escndalos das propinas distribudas pelo partido do governo aos parlamentares em troca deapoio poltico, e do desvio de verbas dos fundos de penso, constituiu-se em um fato recente da Histria,que, como tal, enquanto acontecimento, veio causar um desarranjo na rede da memria j estabilizada, nointerdiscurso. Essa instabilidade caracteriza uma irrupo do novo, e, dialeticamente, clama porinterpretao, ao mesmo tempo em que requer que novos arranjos enunciativos sejam elaboradosdiscursivamente. Provoca, nesse movimento, um rearranjo nas redes de memria discursiva, afetando ofuncionamento da lngua.

    Deste modo, temos, como conseqncia, que um novo lxico foi adicionado ao dicionrio, ou aoarquivo, no sentido dado por Pcheux (1997) de as coisas a saber. Palavras como ms, que tinham,em sua rede associativa anteriormente constituda, mensal, mensalidade, sob a influncia dos novosacontecimentos histricos, tm suas redes de memria desviadas, refeitas, reformuladas, ampliadas.Assim, mensalo e seu oposto jocoso, mensalinho, so introduzidos a, nesse ndulo de memria, epassam a funcionar em relao de parfrase com o lxico j existente, acompanhados de uma mudanamorfossinttica que afeta a lngua: o uso inovador da flexo de grau (diminutivo e aumentativo), queantes no se aplicava palavra mensal, alm da transformao do adjetivo em substantivo, sotestemunhos, na materialidade lingstica, de que todo fato histrico reclama por uma atualizao dodiscurso, atualizao essa que vem atravs de mecanismos de substituies, parfrases, retomadas,acrscimos, apagamentos, etc. ocorridos na estrutura da lngua. Neste caso, pode-se constatar quemensalo foi a palavra cunhada pela imprensa para designar os milhares de reais que foram pagos aparlamentares a fim de garantir aopio poltico aos projetos do presidente Lula. O aumentativo presta-se aquase que a exprimir uma interjeio de espanto: to grande era a mesada que o grau ordinrio dosubstantivo no daria conta semanticamente do espanto causado pela descoberta da rede de corrupo quecorria solta nos pores do Senado e da Cmara. Por outro lado, mensalinho surgiu por uma intenojocosa, como parte de uma piada criada pelo povo, para referir-se a pequenas vantagens que funcionriospblicos recebem do governo, como, por exemplo, o ticket alimentao e o vale transporte. Nummovimento de tentativa de aliviar-se da carga emocional criada pela descoberta do esquema corrupto, avoz do povo carnavaliza (usando uma expresso de Bakhtin, 1999) os fatos atravs da criao doneologismo.

    Do mesmo modo, Severino ressignificado. um substantivo prprio, que tem sua constituio em umadjetivo, cuja histria de formulao discursiva remete a memria a grande nomes da literatura brasileira,como Graciliano Ramos e Joo Cabral de Melo Neto, dois dos maiores escritores brasileiros (Quem noconhece Morte e Vida Severina, ou Vidas Secas?). Assim, o contexto histrico em que este lxico foiutilizado at a atualidade, que se filia, pela memria enunciativa, a regies do interdiscurso amarradas porsemelhana semntica, sofre, por influncia da ideologia, os efeitos da contradio. Severino, deste modo,passa por uma modificao semntico-discursiva, e muda de sentido. Antes, o sentidode Severino eraassociado, pela memria discursiva, a dignidade; agora, depois que se descobriu que o presidente doSenado, Severino Cavalcanti, tambm cobrava pesadas mesadas do gerente do restaurante do Senado,

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  • passou a significar tambm seu oposto: desonestidade. O significado da palavra, portanto, mudou, eampliou-se, sob o efeito do acontecimento (Histria) e isto afetou as redes de memria.

    De agora em diante, sempre que estes significantes forem ativados no interdiscurso, essa histria deconstituio de sentidos atualizada por novos fatos ir ativar-se, e a palavra, quando enunciada, alm deum sentido literal, que advir do contexto lingstico no qual ocorrer, carregar consigo toda avirtualidade semntica que a comps historicamente. Deste modo, um enunciado como : Ele umseverino, que antes dos fatos atuais, significava mais ou menos algo como Ele um pobre coitado,sofredor, porm digno e honesto, a partir de agora pode ser usada em um contexto de enunciaocompletamente oposto. A repetio da palavra, mesmo que ela continue imutvel no dicionrio da lngua,ser daqui para frente sempre afetada por uma memria que Courtine (1981) denomina de repetiovertical. Trata-se de uma repetio da ordem de uma memria lacunar ou com falhas, que ocorre reveliado sujeito enunciador, sob a influncia da Histria, e que se ope a uma repetio de elementos deextenso, da ordem de uma memria cheia, saturada.

    No s no nvel morfolgico, no entanto, que a Histria afeta a lngua. Ela o faz em todos os nveis.Vamos considerar um enunciado como: O PT um partido desonesto/ no-confivel. Levando-se emconta a Histria recente da constituio desse partido poltico, esta era uma asseverao do campo doimpossvel, e seria tida como semanticamente anmala, caso posse enunciada. Tal como Pcheux (1989)comenta para o enunciado A Terra redonda, se fosse produzido antes de Coprnico, do mesmo modoa frase acima estava interditada ao dizer - no podia ser formulada devido a fatores ideolgicos. Atmesmo os partidos inimigos do PT nunca se tinham atrevido a fazer tal afirmao. No entanto, luz dosnovos fatos histricos (polticos), aquilo que era impossvel tornou-se possvel, e o enunciado O PT umpartido desonesto/no confivel j circula em algumas formaes discursivas, mesmo entre as deresistncia ordem recm-estabelecida. Isto efeito do interdiscurso. Courtine (1999: 22) coloca estaquesto da seguinte maneira: Existem, portanto, dois modos de determinao do ato de enunciao pelaexterioridade do enuncivel, ou interdiscurso: o interdiscurso como preenchimento, produtor de um efeitode consistncia no interior do formulvel, e o interdiscurso como oco, vazio, deslocamento, cujainterveno provoca um efeito de inconsistncia (ruptura, descontinuidade, diviso) na cadeia doreformulvel.

    Pretendemos mostrar, com esta anlise, que, alm daqueles sentimentos que comumente nos assolamdiante de acontecimentos como esses (desolao, tristeza, revolta, etc.), tambm h conseqncias maisprofundas, que extrapolam o nvel das individualidades, pois afetam o modo de funcionamento daHistria, alm de fazerem inscries na lngua e na memria que nunca sero apagadas.

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  • Referncias

    BAKHTIN, M. (1999) A Cultura Popular no Renascimento e na Idade Mdia. So Paulo: HUCITEC

    COURTINE, J.J. (1981). Analyse du discours politique. Langages, 62, Paris: Larousse.

    COURTINE, J. J. (1999). O chapu de Clmentis. Observaes sobre a memria e o esquecimento naenunciao do discurso poltico. IN: Os mltiplos territrios da Anlise do Discurso. Org: Freda Indurskye Maria Cristina Leandro Ferreira. Porto Alegre: Editora Sagra Luzzatto.

    PCHEUX, M. (1969). Semntica e discurso: uma crtica afirmao do bvio. Campinas: Editora daUnicamp.

    PCHEUX, M. (1999). Papel da memria. In: P. Achard (Org.). Papel da memria. (Traduo de JosHorta Nunes). Campinas: Pontes..

    PCHEUX, M. (1997) Ler o arquivo hoje. In Orlandi, E. P. Gestos de Leitura- da Histria no discurso.Campinas, SP: Editora da UNICAMP

    VOLOSHINOV, V. N. (MIKHAIL BAKHTIN). (1986) Marxismo e Filosofia da Linguagem. So Paulo:Editora Hucitec

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