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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA POLÍTICA CONFIGURAÇÃO POLÍTICA EM MICHEL DE MONTAIGNE Dalton Franco Dissertação apresentada ao Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Ciência Política. Banca Examinadora: _______________________________ Dr. Renato Lessa (orientador) - UFF _______________________________ Dr. Cláudio de Farias Augusto - UFF _______________________________ Dra. Sabrina Medeiros - UFRJ Niterói 2008

CONFIGURAÇÃO POLÍTICA EM MICHEL DE MONTAIGNE Dalton …§ão de 2007... · Os Cinco Tropos de Agripa p. 29 Tropo 1: Disputa p. 29 Tropo 2: Regressão ao Infinito p. 30 Tropo 3:

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA POLÍTICA

CONFIGURAÇÃO POLÍTICA EM MICHEL DE MONTAIGNE

Dalton Franco

Dissertação apresentada ao Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Ciência Política.

Banca Examinadora:

_______________________________

Dr. Renato Lessa (orientador) - UFF

_______________________________

Dr. Cláudio de Farias Augusto - UFF

_______________________________

Dra. Sabrina Medeiros - UFRJ

Niterói2008

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Sumário

Introduçãop. 1

Capítulo 1Aparelho Cético

p. 2

Capítulo 2Aplicação Cética em Michel de Montaigne

p. 36

Capítulo 3Configuração Política em Michel de Montaigne

p. 69

Conclusãop. 103

Anexop. 105

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ResumoO trabalho que segue disserta sobre a chamada teoria política combinando a

apresentação de uma reflexão antiga e uma elaboração moderna. O objetivo

em curso tenta articular o pensamento cético moderno com a política ocidental

do século xvi. Os processos mentais da sképsis parecem caminhar para as

teorias do conhecimento de modo geral, e diante disso tenta-se promover um

esforço de adesão dessa vertente ao pensamento da política, aos seus meios e

objetos que mobiliza. O móbil para esse percurso é a obra do ensaísta Michel

de Montaigne.

Pressupõe-se, por um lado, que há uma conexão causal possível entre a

reflexão ordenada por Sexto Empírico, a recepção e elaboração dada por

Michel de Montaigne, que por sua vez configuram procedimentos de reflexão e

imagens possíveis da política e seus derivados. Ao mesmo tempo, imaginamos

que o trabalho do ensaísta sofre de endemia cética soprada ao longo dos seus

três livros, os Ensaios, e que, portanto, constitui matéria igualmente remetida à

reflexão e imagens dos negócios da cidade.

A partir disso discutimos os argumentos oferecidos por Enesidemo e Agripa,

com o propósito de aclarar a entrada na reflexão não-simétrica de Michel de

Montaigne e, também, conferir uma proposta de introdução que credencie uma

leitura conduzida de um trabalho que parece não possuir vínculos analíticos

sistemáticos ao primeiro golpe de vista. Esse tratamento permite consagrar a

adesão do ensaísta ao que dispôs Pirro de Élis mais de dezoito séculos antes.

Do pirronismo retiramos o fio analítico para procedermos a um ajuste

organizado das diversas produções dos Ensaios de Michel de Montaigne para

o tratamento da política. Observamos assim o trabalho do pensador orientando

parte dos seus esforços filosóficos para esse domínio específico sem ignorar

as limitações que essa métrica impõe. O ensaísta pensa a reflexão e a política,

e esta última de duas maneiras, elaborando um diagnóstico pessimista do

ponto de vista ontológico, bem como prescrevendo um tipo de ordenamento via

ensaios teóricos ou mesmo num domínio retórico.

iii

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Primeiro ato:Os deuses, sentados ao lado de Zeus, estavam reunidos em conselho no salão dourado e, entre eles, a majestosa Hebe servia o néctar. Eles o saboreavam em taças de ouro, contemplando a cidade dos troianos. (Homero, Ilíada)

Segundo ato: O universo tem tantos centros quantos os seres vivos que nele existem. Cada um de nós é o centro do mundo e do universo, e ele se desmorona quando alguém nos sussurra ao ouvido: Está preso! (Alexandre Soljenítsin, Arquipélago Gulag)

Wendel, Yan

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AgradecimentosDepois de alguns anos trabalhando com Indicadores Sociais, efeitos da

UFRuralRJ, imaginava quão abstrata era toda aquela marcha de medição de

caráter fundamental a confecção e também para os resultados de decisões

políticas. Concluí que poderia ser a política, e não solitariamente a economia, o

ponto que conduzia o que havia de mais ou menos trabalhoso nesses esforços,

fosse resultado de alguma interpretação sistemática mobilizada de uma teoria

social ou mesmo de alguma decisão acidental. A UFF me permitiu um novo

esmero profissional. Além da recepção amigável recebida do seu

Departamento de Ciência Política, manifesta pelas generosas entrevistas que

obtive do Prof. Eurico de Lima Figueiredo, agradeço o apoio que recebi do

CNPq por seu intermédio. Simultaneamente sou grato pelo treino intelectual

plural que recebi dessa escola, especialmente as aulas oferecidas pelo Prof.

Renato de Andrade Lessa. Não sei exatamente como apontar no trabalho onde

deveria citar o termo notas de aula, assim, colonizado por essa dúvida que

pervaga, caminhei sem oferecer a transparência adequada ao trabalho desse

mestre, outrossim, sigo solitário com os erros e eventuais equívocos de

interpretação que a minha própria fantasia produziu a partir das matérias.

Ofereço um pavoroso eclipse a vários nomes, mas creio expressá-los por

alguns intelectuais a quem submeti à minha decisão e modo de aderir à política

com os assuntos de minha predileção: Inês Patrício, Georgheton Nogueira,

Rogério Rocha e Délcio Lima. Igualmente, rendo gratidão às audições que a

Pedagoga Ariléa Duarte me ofereceu, bem como a conecto ao Intelectual e

Empreendedor Social Giovanni Harvey, ambos do militante infatigável Instituto

Palmares de Direitos Humanos. Não poderia deixar de anotar a assiduidade e

acuidade que me foi oferecida pela reluzente Daniele dos Santos Grimião,

figura que conduziu comigo e Michel de Montaigne um verdadeiro triálogo.

Agradeço à minha família por acreditar em coisas que não existem e disso à

sabiamente me comunicar estímulos à segui-las. Quatro anos de estudo de

uma jovem senhora chamada Leni Maria Rodrigues Franco conseguiram apoiar

incondicionalmente outros vinte e um até o momento dessa contagem. E dela

estendo à minha eterna gratidão a Elton e Ilton.

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IntroduçãoA teoria contemporânea tenta insistentemente simular as imagens sociais

segundo as coisas que existem, tal como se apresentam num momento e

segundo um padrão de repetição. O esforço invariavelmente deve produzir

soluções concretas aos problemas cotidianos. Essa pressão se abate

sobremaneira a investigadores profissionais que emprestam imagens

constituídas debaixo de gabaritos clássicos para provocações pretensamente

contemporâneas. Trata-se de uma perspectiva que contrata a reflexão como

produto instantâneo, alojado no espaço e sujeito a um padrão ferramental. Não

precisamos de muito exercício para extrair alguns predicados desse plano de

observação, há uma seriada produção intelectual, exalando datas e infestadas

de ferramentas atualizáveis.

Se vasculharmos coerência, podemos acusar que problemas contemporâneos

devem obedecer a artifícios atualizados, e disso proceder a resultados

semelhantes. A resposta a tais interrogações é verificada sob recipientes

incrustados de termos de atenuação da certeza ou ainda da consagração

velada da verdade. Entretanto, seja qual for o veículo e o aspecto que essa

imagem prefigure, ela reiteradamente se presta a falar de uma asserção

privada e evidente para quem à confecciona. E como o resultado não prescinde

de pelo menos uma resposta radicalmente contrária, somos lançados de volta

ao ponto de partida e o monstro horrendo da dúvida se alastra sobre os

diversos percursos da pesquisa, de modo que parecem eternizar a fabulação

humana sob o contraste entre o que é e o seu termo rival.

A máquina que produz coisas que existem supostamente atualizáveis diante de

problemas também tocados de ineditismo replica um e só grande produto, a

pesquisa. Esse é o termo que liga as dúvidas ontem e hoje e que é capaz de

arrefecer boas quantidades de inovações quando olhamos as coisas que não

existiam. E o dragão maldito da dúvida empurra a pesquisa à revelia do

resultado dos seus procedimentos pretensamente renovados de investigação e

simulação da sociedade.

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Capítulo 1

Aparelho Cético

Índice

Apresentação p. 3

Preâmbulo p. 4

Sképsis p. 8Pirro de Élis (Pirronismo) p. 09Sexto Empírico p. 10

Dez Modos p. 11Tropo 1: Diferenças Entre os Animais p. 14Tropo 2: Diferenças Entre os Seres Humanos p. 14Tropo 3: Diferentes Constituições dos Órgãos dos Sentidos p. 15Tropo 4: Circunstâncias que Afetam o Sujeito p. 17Tropo 5: Posições, Intervalos e Lugares ou Circunstâncias do Objeto p. 17Tropo 6: Combinações p. 19Tropo 7: Quantidades p. 20Tropo 8: Relatividade p. 21Tropo 9: Freqüência p. 22Tropo 10: Costumes e Persuasão p. 22

Os Oito Tropos da Causalidade p. 24Tropo 1: Princípio da Não-Confirmação p. 24Tropo 2: Princípio da Pluralidade Causal, ou Monocausalidade Arbitrária p. 25Tropo 3: Princípio da Incompatibilidade Formal p. 26Tropo 4: Princípio da Falácia Analógica p. 27Tropo 5: Princípio da Idiossincrasia p. 27Tropo 6: Princípio da Seletividade p. 28Tropo 7: Princípio da Inconsistência p. 28Tropo 8: Princípio da Incerteza Hiperbólica p. 28

Os Cinco Tropos de Agripa p. 29Tropo 1: Disputa p. 29Tropo 2: Regressão ao Infinito p. 30Tropo 3: Relatividade p. 30Tropo 4: Hipóteses p. 30Tropo 5: Reciprocidade ou Circularidade p. 31

Epílogo p. 32

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ApresentaçãoO presente capítulo versa sobre o ceticismo antigo. Nesta etapa ele é tratado

como um aparelho específico de reflexão filosófica remetido a enunciados

dogmáticos de modo geral. A demonstração do chamado Aparelho Cético

obedece a seis momentos distintos após essa breve apresentação.

A exposição sumária dos obstáculos céticos é precedida de uma visão

preambular que faz uso de um par de assertivas contrárias para erguer um

impasse interpretativo sobre a natureza de algo. Introduzimos a essência de

um fenômeno, objeto ou dado empírico sendo observados por mais de um

intérprete ou teórico social, ao mesmo tempo consideramos outro tipo de

indivíduo que não se ocupa desse tipo de formulação, o homem comum.

Finalmente, apresentamos a resposta cética a esse tipo de disputa teórica.

Fazemos emprego de Pirro e Sexto Empírico para chegarmos aos argumentos

céticos construídos para responder aos dilemas interpretativos erguidos pelos

filósofos dogmáticos. Esse recurso não tem a menor presunção de estabelecer

alguma narrativa exaustiva, pelo contrário, nos servimos da escassa biografia

de ambos para introduzirmos o material cético sistematizado e conhecido.

A partir de Pirro e Sexto apresentamos com parcimônia o trabalho de

Enesidemo, que constitui o terceiro e o quarto momento. Perfazem um total de

18 argumentos enumerados de um a dez e posteriormente de um a oito. Essa

divisão separa a natureza dos dois trabalhos. Os Dez Modos iniciais estão

referidos às tentativas de construção de conhecimentos fundados em base

empírica. Os Oito Modos finais tentam obstruir tentativas de caráter etiológico.

Finalmente, apresentamos Agripa, onde enfatizamos o caráter suspensivo

ventilado pelo ceticismo face ao autismo dogmático.

O sexto ponto desse capítulo articula os cinco que o antecedem. O objetivo

dessa etapa, em termos agregados, é refletir com mais clareza a etapa

seguinte do trabalho, o Capítulo 2, que trata da Aplicação Cética em Michel de

Montaigne.

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Aparelho Cético

PreâmbuloCom uma freqüência disciplinada os filósofos ou mesmo os cientistas põem e

tiram imagens da sociedade, fazem isso com alguma robusta presunção de

que ao colocarem, estão bafejando algo imantado num sistema ordenado pela

razão e que, portanto, constitui um resultado desejoso de certeza. Quando as

removem, com as mais diversas motivações, eles crêem ter um pedaço

específico tal como se fora pinçado com instrumento equivalente de excisão.

Se considerarmos que a sociedade é um objeto de entendimento, que é

expresso por sua vez sob incontáveis narrativas distintas entre si, o que temos

como conclusão constitui um conjunto de afirmações cada qual relatando uma

coleção de conteúdo1. Cada imagem posta na sociedade enceta uma descrição

supostamente tocada por algum nível daquilo que lhe parece ser a verdade.

Nelson Goodman lembra que do lado de fora desse aparelho cognitivo

polifônico há algo que ele chama de homem da rua2. Esse personagem pode

ser compreendido como uma parte da sociedade que de algum modo recebe o

produto dessa experimentação cognitiva do intérprete do objeto sociedade3.

Por coerência, coloquemos mais uma condição à essa reflexão, imaginando

que a sociedade pode ser lida como um mundo social, ou simplesmente

mundo, deduziremos então que há uma grande diversidade de narrativas sobre

o que seja o mundo ou, em termos derivados, os mundos sociais possíveis4.

1 Uso provisoriamente o termo objeto de entendimento para designar, por exemplo, o objeto que provoca a reflexão, tal como explicado pacientemente para Glauco no diálogo. Platão. A República. São Paulo: Martin Claret, 2006. (p. 219)2 Goodman, Nelson. Modos de fazer mundos. Trad. de António Duarte. Porto: Edições Asa, 1995 (Originalmente publicado em 1978). (p. 58)3 Hume, David. Investigação Acerca do Entendimento Humano. São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda, 1999. Interessa-nos contrapor rapidamente a Seção III, Da Associação de Idéias, em que o poeta é colocado ao lado do nosso intérprete: toda poesia, que é uma espécie de pintura, nos coloca mais perto do objeto do que qualquer outro tipo de narrativa, o ilumina com mais força e delineia com mais distinção as menores circunstâncias que, embora pareçam supérfluas ao historiador, servem vigorosamente para avivar as imagens e satisfazer à imaginação. (Col. Os Pensadores) (p. 43)4 Lessa, Renato. Veneno Pirrônico: ensaios sobre o ceticismo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.

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Interessa-nos um ponto ou resultado específico dessas descrições, manifesta

dos seguintes termos:

a. No quadro de referência A, o Sol move-se sempreb. No quadro de referência B, o Sol nunca se move5

Dos enunciados a e b podemos perceber que do mesmo objeto de

entendimento, o Sol, referenciado distintamente conforme A e B, chegamos a

conclusões díspares. Por ansiedade, exercitemos pesquisar alguma coisa

como solução da divergência dos enunciados. Para esse esforço poderíamos

imaginar algo sob o nome de critério, um enunciado c; contudo, o que assim

chamássemos, constituiria outra seleção de conteúdo, nominado agora a partir

de uma nova narrativa idiótica daquilo que constitui o mundo6.

O personagem de Goodman teria razão absoluta de não perceber nenhuma

natureza especial que o abalasse diante do contexto a ou b. Ele poderia

mesmo observar o enunciado c e não verificar nenhuma expressão de

coerência com as imagens tal como elas se apresentam nos fenômenos

cotidianos7. Para ele as assertivas podem lhe inocular inclusive um grau

elevado de estranhamento no caso do terceiro enunciado, uma vez que há

outro tipo de elemento que fornece o parâmetro de decisões no mundo

ordinário, já que opomos a esse, um mundo, não raramente abstrato8.

5 Cf. Goodman, 1995 (p. 39)6 Emprego o termo idiótico para designar uma patologia de tipo autista, referida a autismo, onde se cria um mundo mental autônomo. 7 Estamos tratando do fenômeno representado pelo intérprete dogmático em oposição às representações ordinárias e seus modos de pautarem a decisão do personagem de Goodman. Ainsi l’opposition n’est pas seulement entre choses (pragmata) et discous (logoi), mais entre les représentations des choses, sans que nous ayons à nous soucier de la manière dont les phénomènes sont représentés. Dumont, Jean-Paul. Le Scepticisme et le Phénomène. Paris: Librarie Philosophique, 1972 (p. 174) Deste, ver ainda o trabalho traduzido por Jaimir Comte: Dumont, Jean-Paul. Ceticismo. Originalmente: Scepticisme. Encyclopaédia Universallis France, 1986, p. 509-513. Disponível em: <www.cfh.ufsc.br>, acessado em 08/2007.8 Goodman, Ibid., […] a maioria das versões da ciência, da arte e da percepção afastam-se de várias maneiras do mundo útil familiar que ele atamancou a partir dos fragmentos da tradição científica e artística, e afastam-se também da sua própria luta pela sobrevivência. Este mundo, na verdade, é aquele que mais freqüentemente se considera como real; porque a realidade num mundo, como o realismo num quadro, é largamente uma questão de hábito. (p. 58) Unger, Peter. Ignorance: A Case for Scepticism. Glasgow: Claredon Press, Oxford, 1975. O autor formula o problema about the external world. (p. 11)

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Se precipitarmos sobre c uma atitude anterior a decisão do agente diante dos

enunciados em questão, a suspeição sobre o estatuto de verdade na

proposição a ou da proposição b, opondo uma mera pergunta dubitativa,

teremos como ponto de chegada o nosso interesse imediato. O conjunto de

processos mentais cético não possui nenhuma motivação especial para aceitar

ou negar as proposições9. Essa dúvida quanto à razão presente numa ou

noutra assertiva constitui material suficiente para a interrupção do julgamento.

Não há conteúdo especial na primeira (a), segunda (b), ou mesmo na terceira

(c) proposição dos enunciados para um cético. Sobre o que fazer exatamente

diante desse dilema do entendimento, entre decidir por uma ou por outra

afirmação, o cético permanece com a pesquisa do objeto. Ele dará o seu

assentimento para a existência dos corpos por um lado, sem, contudo, ser

convencido da razão pela razão10.

Essa relação peculiar com as imagens que aparecem sob características

dogmáticas constitui a postura comum do ceticismo grego antigo. Dentro da

rotina cotidiana, em algum momento do relacionamento dos agentes sociais

com a vida, tal como ela se apresenta, eles são capazes de demonstrar essa

postura, um cético, por sua vez, se utiliza dessa perspectiva rotineira e

sistematicamente diante dos objetos problematizados filosoficamente. Mais do

que isso, eles ordenaram um conjunto de obstáculos contrários à uma

observação e definição nesses termos do que quer que seja algo11.

Podemos nos deter um pouco mais nesse ponto. O que Annas e o próprio

Hume estão afirmando é que os céticos estão, por exemplo, preocupados com

os resultados das proposições filosóficas e que, portanto, não referem o seu

aparelho dubitativo para as proposições ordinárias, os dilemas do homem

comum entre as experiências diárias. Segundo a própria Annas a preocupação

do cético é remover o conteúdo dogmático de nossa esfera de decisão

9 Julia, Annas. The modes of scepticims; Coordenação de Jonathan Barnes. Oxford: Cambridge University Press, 1985. Sceptiques are doubters: they neither believe nor disbelieve, neither affirm nor deny. (p. 1)10 Hume, David. Tratado da Natureza Humana. Tradução: Deborah Danowski. São Paulo: Editora UNESP, 2000. Livro I, IV (p. 220)11 Annas, loc. cit.

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ordinária, primando por uma vida prática, não referida a processos filosóficos

de decisão.

Scepticism, they claimed, by relieving us of our ordinary beliefs, would remove

the worry from our lives and ensure our happiness12. Por essa razão, o homem

da rua de Goodman pode continuar a expressar as suas decisões sobre certo e

errado e também sobre toda sorte de dilemas morais, a julgar pela natureza do

escopo a que o cético emprega o seu sistema filosófico, ou ainda, à sua forma

de filosofar. A prescrição cética é, podemos adiantar, uma vida sob

tranqüilidade ou imperturbabilidade.

Uma vida livre de incômodos acerca da certeza e natureza intrínseca das

coisas é o centro da preconização dos céticos antigos. A atitude dogmática é,

por excelência, aquela que se ocupa obsessivamente dessa postura analítica

decisiva. Mas o que constitui um dogma e do que é feito o seu operador para o

nosso interesse imediato? Responde, abaixo, Renato Lessa.

d. dogma é qualquer proposição que pretenda determinar o que as coisas são por natureza, nelas mesmas, com base em entidades não evidentes (átomos, hexâmeros, apeíron etc...);

e. dogmático é alguém possuído por uma dupla patologia: oiésin e propetéian, que, de acordo com o bom Rev. Bury, signicam self-conceit e rashness; em outras palavras, o dogmático combina uma espécie de narcisismo cognitivo com uma radical – e perigosa – ausência de qualquer hesitação13.

Por sua vez, para Popkin o dogmatismo é desagregável e, por essa razão, o

ceticismo dirigiu seus esforços para fronteiras posteriores às da filosofia,

tratando na mesma bateia os cientistas e os teólogos14. Ou seja, filósofos,

teólogos e cientistas experimentaram igualmente um modo antagonista distinto

de observar a vida e a sociedade, viram uma visão de mundo equipada para a

neutralização de diversos aparelhos cognitivos conforme veremos.

Portanto, a natureza das obstruções do ceticismo antigo estará remetida

primordialmente para d. No seu lugar, diante de proposição com essa estatura, 12 Annas, Julia and Barnes, Jonathan. The Modes of Scepticism: Ancient Texts and Modern Interpretations. New York: Cambridge University Press, 1985. (p. 9)13 Lessa, Renato. Agonia, Aposta e Ceticismo: ensaios de filosofia política. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003 (p. 98)14 Popkin, Richard H. Ceticismo. Organizador: Eigenheer, Emílio M. Niterói: EDUF, 1986 (p. 1)

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o fenômeno e as suas aparências carregam material suficiente para as práticas

da vida sem perturbações15. O operador dogmático (e) tem pela frente então

um tipo de filosofia que a todo instante lhe provocará sistematicamente todas,

ou quase todas, as proposições resultantes de suas elucubrações abstratas e

de resultados decisivos. Ao que aparece, a pesquisa continuada é um caminho

para a felicidade de acordo com a letra de Smith na passagem abaixo.

Tendo suspendido o juízo acerca de todas as teorias filosóficas, inclusive das teorias éticas, o cético não vê como se possa dispor de uma teoria dogmática para orientar nossas vidas. Mais do que isso, entende que uma teoria filosófica não é a melhor garantia da felicidade e, em geral, perturba nossa vida e conduta. A melhor maneira de viver e buscar a felicidade, aos olhos do cético, é simplesmente mergulhar na vida cotidiana e gostosamente deixar-se levar por ela16.

Até o momento definimos explicitamente um dos lados da querela entre dois

sistemas cognitivos, bastante evidenciados inicialmente em d, e em e, mas

também presentes na passagem de transição expressa no excerto do trabalho

de Smith. Estamos então considerando para fins analíticos que há uma

discussão entre os céticos e os filósofos dogmáticos e que, hipoteticamente,

estão em lados opostos. Entretanto, o lado cético dessa disputa ainda carece

de uma demonstração mais detida do conjunto de processos mentais e

dificuldades oferecidas para o seu antípoda. Antecipamos para quem ele olha,

mostramos um pouco de como se comporta e qual objetivo procura, exibiremos

então uma parcela mais expressiva do material que constitui o ceticismo e de

que modo essa composição será empregada ao longo desse ensaio.

Sképsis17

15 Porchat Pereira, Oswaldo. Vida Comum e Ceticismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994, 2 ed. Isso que não podemos rejeitar, que se oferece irrecusavelmente a nossa sensibilidade e entendimento, é o que os céticos chamamos de fenômeno (tò phainómenon, o que aparece). O que nos aparece se nos impõe com necessidade, a ele não podemos senão assentir, é absolutamente inquestionável em seu aparecer. [...] O que nos aparece não é, enquanto tal, objeto de investigação, precisamente porque não pode ser objeto de dúvida. (p. 176)16 Smith, Plínio Junqueira. Ceticismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004 (p. 52)17 Usado a propósito dos filósofos céticos na acepção de dúvida, hesitação, incerteza, o substantivo sképsis tem, contudo, o sentido originário de percepção pela vista, observação, consideração, visto ser derivado de sképtomai, verbo cujo sentido denotativo é voltar o olhar para, olhar atentamente, considerar, observar. Sképtomai é ainda usado com os sentidos figurados de examinar, meditar, refletir. [...] exame, reflexão, especulação, meditação. Nota técnica extraída de: Popkin, Richard H. Ceticismo. Organizador: Eigenheer, Emílio M. Niterói: EDUF, 1986.

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Conforme apresentei brevíssimas pistas na parte anterior desse ensaio, o

ceticismo se apresenta composto de um conjunto de desafios articulados para

a obstrução das proposições dogmáticas. Possui uma história pouco

explicitada diante das grandes escolas do Peloponeso18. Se observarmos as

grandes figuras da filosofia ocidental mais conhecida, dificilmente grassarão os

nomes de seus principais mestres e representantes, salvo indiretamente. Perto

da escola socrática, por exemplo, a posição do ceticismo é bastante diminuta.

Os registros céticos na história são obra de autores bem peculiares dos quais

sabemos muito pouco, e algumas de suas obras são encontradas de modo

incompleto ou por registros indiretos19. Ou seja, o ceticismo constitui uma das

muitas visões de mundo que sofreu com a descontinuidade ou mesmo

ausência de registros sistemáticos se estabelecemos qualquer tipo de

comparação com algumas das mais famosas escolas gregas20. Por certo não

nos ocuparemos de historiá-lo, contudo, passaremos pelos principais

referenciais que nos interessam que estão presentes nessa vertente.

Pirro de Élis (Pirronismo)

Uma das primeiras referências do ceticismo antigo é erguida a partir de uma

figura nebulosa, da qual se tem mais hipóteses do que propriamente

informações seguras21. Há registros razoáveis de sua vida por meio de seu

discípulo Timon em suas obras Silli ou Sátiras22. Há ainda indícios de que Pirro

da cidade Élis tenha seguido viagem com Alexandre o Grande numa de suas

campanhas e teria trazido, portanto, algum resultado intelectual de encontros

com povos da Índia23.

18 Prado Jr, Bento; Porchat Pereira, Oswaldo; Ferraz Jr, Tércio Sampaio. A Filosofia e a Visão Comum do Mundo. São Paulo, Editora Brasiliense,1981 (p. 11). Creio que a leitura de um trabalho de Stanford ajuda na compreensão geral do ceticismo, ao menos por dividir ceticismo e incredulidade: Stanford Encyclopedia of Philosophy. Skepticism. Publicado em 2001 e revisado em 2005, 27p. Disponível em: <plato.stanford.edu/entries/skepticism/>, acessado em 10/2006.19 Cf. Popkin, 198620 Lessa, Renato de Andrade. Vox Sextus, Pluralidade dos Mundos, Estratégias Cognitivas e Conhecimento Ordinário nas Reflexões Políticas dos Modernos. Rio de Janeiro. 1992. Tese de Doutoramento, Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (p. 23)21 Cf. Annas and Barnes, 1985. Pyrrho of Elis is for us a shadowy figure. (p. 10)22 Hankinson, J. R. The Sceptics. London and New York: Routledge, 1995 (p. 52)23 Cf. Annas and Barnes, 1985. The biographical tradition connects Pyrrho’s thought with the Índian ascetics (or ‘naked sophists’ as the Greeks called them) whom Pyrrho allegedly met during his travels with Alexander. (p. 12)

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A vida de Pirro é quase uma incógnita, ao passo que seu trabalho não goza do

mesmo obscurantismo. Ele imprimiu ao ceticismo um modo de vida levando a

cabo uma prática sistemática da canônica cética. Desse modo, pertence a ele

uma das principais identidades e também um guia para o ingresso no ceticismo

antigo24. Do interior da obra de Sexto Empírico, é a partir desse personagem

que a expressão pirronismo emerge; o que faz referência imediata ao conteúdo

conhecido em forma sistêmica25.

Sexto Empírico

A reflexão grega vivia um momento de muita harmonia com o empirismo e o

médico Sexto Empírico também esteve envolto nesse modo de operar o

entendimento26. A medicina estava bastante relacionada com a produção

filosófica, por essa razão ainda, a produção sistemática do material cético hoje

disponível é resultado do trabalho sextiano27. A partir dele o ceticismo ganhou

as feições delineadas tal como hoje as conhecemos ordenadas a partir dos

Tropos, ou argumentos, orientados para a suspensão do juízo28.

The goal of sceptical philosophy, accordin to Sextus, is ataraxia, the state of tranquility which is supposed to attend the purgation of all cares and concerns […], although this is not peculiar to the Sceptics. Ataraxia, on their view (PH 1 25-30), supervenes upon suspension of judgement (epoché) as to the real nature of things; and epoché is induced bu the fact that conflicting appearances are the subject of undecidable disputes […]29.

24 Cf. Annas and Barnes, 1985. Not all that he wrote has survived, but we still posses the Outlines of Pyrrhonism, a general introduction to Pyrrhonism in three books, and a further group of eleven books known collectively as Against the Mathematicians. (p. 16)25 Lessa, Renato. Veneno Pirrônico: ensaios sobre o ceticismo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995. Há uma variante condicionada cética posta de lado momentaneamente – dado que trabalharemos mais detidamente com o pirronismo –, trata-se do Ceticismo Acadêmico. Ele é considerado a derivada dogmática do ceticismo (dogmáticos negativistas, céticos dogmáticos), pois acreditam poder destruir toda e qualquer proposição dogmática. p. 26-28. Um bom representante dessa corrente, conforme faremos menção nesse trabalho é Cícero.26 Annas and Barnes, op.cit., p. 16. Ver também o trabalho de Stough traduzido por Jaimir Conte. Stough, Charlotte. Sexto Empírico. Originalmente como: Dancy, Jonathan e Sosa, Ernest (org.) A Companion to Epistemology. Blackwell Companion to Philosophy, 1997, pp. 475-477. Disponível em: <www.portal.filosofia.pro.br>, acessado em 06/2007. Ver também Vickers, que alia ceticismo, empirismo e reflexão. Vickers, John M. I believe it, but soon I’ll not believe it any more: Scepticism, empiricism, and reflection. Publicado em 2000, revisado em 2003. Acessível em: <www.springerlink.com>, acessado em 12/2006.27 Cf. Annas and Barnes, 1985 (p.16)28 Cf. Annas and Barnes, 1985 In Sextus’ writings we see greek sceptcism fully formed. (p. 17)29 Hankinson, J. R. The Sceptics. London and New York: Routledge, 1995 (p. 155)

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Observando a obra de Sexto Empírico, Renato Lessa dispõe as três

características principais do ceticismo, parcialmente explícitas na passagem

anterior do trabalho de Hankinson: (a) o princípio da isosthenéia: eqüipolência

entre argumentos dogmáticos contrários a respeito de coisas não-evidentes; (b)

a atitude de epoché: suspensão do juízo diante de diferentes proposições

igualmente plausíveis e inverificáveis; (c) a obtenção da ataraxia: estado de

quietude ou imperturbabilidade derivado da interrupção da atividade

dogmática30.

Dez ModosEsse ponto nos pede uma reflexão de corte diretivo. Obviamente há diversos

personagens igualmente importantes para a construção do que chamo aqui de

aparelho cético, contudo considero não incorrermos em perdas demasiadas

introduzindo com parcimônia algumas figuras capitais. Aqui, nos interessa mais

a construção da imagem que lhe dá conteúdo e conformação teórica, e menos

os aspectos biográficos pormenorizados das figuras centrais ou periféricas.

A partir desse ponto do trabalho serão expostos mais claramente os tropos que

dão ou ajudam a dar concretude filosófica ao ceticismo. Para fins explicativos,

iniciaremos os tropos contidos no material de Enesidemo, que são um total de

18 – aqui enumerados de um a dez, sucedidos na apresentação

posteriormente anunciados de um a oito – e conseqüentemente os cinco

argumentos contidos no trabalho de Agripa. Passemos agora aos primeiros

Dez Modos de suspensão.

Enesidemo, no contexto do ceticismo de tipo pirrônico, produziu originalmente

dez tropos sistemáticos orientados para a condução da conclusão da

impossibilidade de conhecimento dogmático31. Os 10 Modos de Enesidemo

observam um tipo específico de oponente, pois essas notações, que primam

30 Cf. Lessa, 1992 (p. 229)31 Striker, Gisela. Essays on Hellenistic Epistemology and Ethics. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. The Ten Tropes of Skepticism are, as histories of philosophy tell us, a systematic collection of all or most important arguments against the possibility of knowledge used by the the ancient Pyrrhonist. The list of eight, nine, or ten tropes, or modes of argument, presumably goes back to Aenesidemus, the reviver of the Pyrrhonist school in the first century B. C. (p.116)

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essencialmente por um resultado suspensivo, estão observando a tentativa de

forja de conhecimento, estabelecido pelos operadores dogmáticos, a partir de

uma base de talho empírico32.

Cada um dos argumentos se dirige a um tipo específico de apresentação de

algumas das esferas possíveis do entendimento a partir do sujeito ou do objeto.

Eles são dispostos detidamente de várias formas e, para Hankinson, assumem

a seguinte notação ou ordenamento sintético:

(1) x appears F relative to a;(2) x appears F* relative to b;(3) at most one of the appearances of (1) and (2) can be true;(4) no decision procedure tells decisively either for (1) or (2);

So

(5) we should suspend judgement as to what x is like in its real nature33.

Pela notação pirrônica, em (1) o objeto x aparece F em a; em (2) o mesmo x

aparece como F* observando b; Em (3) vemos que as duas narrativas [(1) e

(2)] podem ser verdadeiras (isosthenéia ou eqüipolência); em (4) temos que

nenhum procedimento pôde dizer algo que nos conduzisse para a assertiva (1)

ou mesmo (2); finalmente, em (5), somos então guiados a suspender o juízo

sobre a real natureza do objeto x34.

Em (3) e (4) somos dirigidos a uma situação irresoluta, o que por sua vez nos

encaminha para uma conclusão, posta em (5), onde o melhor caminho a ser

tomado é o da suspensão do juízo, ou a atitude de epoché. Como estamos

diante de um percurso cognitivo dogmático para estabelecer à essência de algo

evidente (x) a partir de domínios não-evidentes (F, F*), o cético tem motivação

para concluir pela ataraxia, depois de percorrer a isosthenéia e a epoché35.

32 Cf. Lessa, 1995. Tem por alvo as pretensões de conhecimento empírico, dirigindo-se tanto a aspectos do objeto como a problemas localizados na órbita do sujeito de conhecimento. (p. 29)33 Cf. Hankinson, 1995 (p. 156)34 Os operadores do dogmatismo cético podem ser sumariados na seguinte estrutura atribuída a Arcesilau: (1) Nothing can be known (including that very statement); (2) We should suspend judgement about everything; (3) To eulogon, ‘the reasonable’, is the criterion for conducting one’s life; (4) Assent is not necessary for action. Bett, Richard. Carneades’ Pithanon: A Reappraisal of its Role and Status. Oxford Studies in Ancient Philosophy, New York, Volume VII, n. 1, p. 59-94, Anual, 1989 (p. 67) 35 Cf. Hankinson, 1995 (p. 155)

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Podemos dizer que o material que preenche os Modos de Enesidemo, a partir

da notação apresentada, demonstrará a baixa capacidade que os movimentos

cognitivos dos operadores dogmáticos têm para apresentar a definição da

natureza intrínseca daquilo que aparece36. Se postos lado a lado, seus

resultados prefiguram invariavelmente um resultado diafônico tal como

denotado pelo par (F, F*). O próprio Sexto Empírico é quem nos ajuda com a

antecipação desse material de Enesidemo, abaixo ele faz um sumário rápido

que pode nos ajudar com a descrição que percorreremos em seguida.

First, the mode depending on the variations among animals; second, that depending on the differences among humans; third, that depending on the differing constitutions of the sense organs; fourth, that depending on circumstances; fifth, that depending on positions and intervals places; sixth, that depending on admixtures; seventh, that depending on the quantities and preparations of existing things; eighth, that deriving from relativity; ninth, that depending on frequent or rare encounters; tenth, that depending on persuasions and customs and laws and belief in myths and dogmatic suppositions37.

O que podemos extrair da enumeração de Sexto é que há Modos mais

articulados com o sujeito de entendimento, com os objetos de entendimento, e

ainda uma combinação dos modos do sujeito e objeto38. No primeiro, segundo,

terceiro e quarto Modos, o (a) sujeito está em destaque, constituindo um grupo;

no sétimo e décimo tropos, o (b) objeto julgado está sob a mira cética; no

quinto, sexto, oitavo e nono modos, (c) sujeito e objeto estão na bateia cética39.

Tropo 1: Diferenças Entre os Animais:

(1) x parece ser F a animais do tipo K;(2) x parece ser F* a animais do tipo K*;

36 Acredito que fazemos justiça se mencionarmos a notação de Annas and Barnes apresentada no trabalho de Renato Lessa de onde poderemos notar uma distinção na quantidade de termos: (1) x aparece como F em S; (2) x aparece como F* em S*; (3) não podemos preferir S a S*, ou vice-versa (eqüipolência); (4) não podemos afirmar ou negar que x seja realmente F ou F* (suspensão do juízo). E, a partir desse ponto, todas as notações expressas em idioma português são extraídas do mesmo trabalho. Cf. Lessa, 1995 (p. 47)37 Empiricus, Sextus. Outlines of Scepticism. Trad. de Annas, J. and Barnes, Jonathan. Cambridge: Cambridge University Press, 1994 (p. 13). Desse ponto em diante como Hipotiposes Pirrônicas, essa e as demais edições, representado por: HP I, 36-39.38 Dumont, Jean-Paul. Les Sceptiques Grecs: textes chosis. Paris: Presses Universitaires de France, 1966 (p. 50) 39 Cf. Annas and Barnes, 1985 (p. 19)

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(3) eqüipolência entre K e K*;(4) suspensão do juízo a respeito de F ou F*.

Há mais de um sujeito de entendimento, é o que sustenta o ceticismo, por essa

razão o Tropo 1 se ocupa de explicitar essa diversidade. Os objetos se

apresentam distintamente para diversos intérpretes, constatamos uma grande

variedade de diferenças físicas entre os animais, o que por sua vez pode ser

compreendido como uma miríade de seres e percepções díspares40. Em (1) ele

aparece como F aos animais de tipo K, por conseguinte, em (2) ele se

apresenta para animais de tipo K* como F*. Novamente estamos diante do par

(K, K*), ou dito de outra forma, podemos encará-lo como uma pareada

patologia idiótica que tenta explicar aquilo que aparece a partir do não-

evidente. Sexto leva ao limite essa comparação entre animais, elege o

cachorro e inicialmente as capacidades de seu olfato e demonstra que a

afirmação de desigualdade da comparação não apresenta pertinência, apenas

para a debilidade cognitiva do self-satisfied41.

Tropo 2: Diferenças Entre os Seres Humanos:

(1) x parece ser F a seres humanos do tipo H;(2) x parece ser F* a seres humanos do tipo H*;(3) eqüipolência ente H e H*;(4) suspensão do juízo a respeito de F ou F*.

Se por outro lado fecharmos o escopo em apenas um desses tipos de

intérpretes, somos arrastados para um dilema não menos cativo do resultado

suspensivo de acordo com o Tropo 2. Pela notação, vemos que o objeto

aparece como F a seres humanos do tipo H, por outro lado, o mesmo x

aparece F* para seres humanos de tipo H*. Para Sexto cada corpo é assolado

por um tipo específico de humor, afecção, e assim em função deles a

aparência das coisas pode variar e:

40 Cf. HP I, 36-55. […]That the animals’ eyes contain mixtures of different humours, that they should also get different appearances from existing objects […] Smell too will differ depending on the variation among animals. Perfume, paladar e etc. são outros exemplos que ele explorará contra os self-satisfied. (p. 13-16)41 Cf. HP I, 60-65.

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[…] there are many differences in our choice and avoidance of external things; for Indians enjoy different things from us, and enjoying different things shows that varying appearances come from existing objects42.

Para os propósitos globais desse ensaio, cabe notar a referência que Renato

Lessa faz das tentativas de resolução das objeções entre si. Segundo anota,

Sexto aventa quatro alternativas: i. que acreditemos em todos os homens, com

efeitos sujeitos a toda sorte de crença em julgamentos díspares; ii. que

acreditemos em alguns, o que nos sujeitaria a decidir em quais, recuperando a

eqüipolência; iii. que acreditemos na maioria, com efeitos igualmente

suspensivos, uma vez que ninguém está apto a consultar e distinguir sem

idiossincrasia o conjunto da humanidade para entender o que apraz a sua

maioria; iv. que acreditemos nos sábios, o que, onde mais facilmente

poderíamos opor o fato de que, eles mesmos, entre si, não concordam sobre a

natureza do que quer que seja43.

Tropo 3: Diferentes Constituições dos Órgãos dos Sentidos:

(1) x parece ser F ao sentido S;(2) x parece ser F*ao sentido S*;(3) eqüipolência entre S e S*;(4) suspensão do juízo a respeito de F ou F*.

Na passagem anterior, em (iv), se tivéssemos depositado um pouco de

confiança num desses intérpretes, o Tropo 3, nos devolveria a situação

suspensiva por outro meio ainda mais radical. Nem mesmo a solidão cognitiva

do sábio, imune a contaminação opiniática, poderá ser tomada como infensa à

dúvida cética44. Aqui uma menção rápida a um personagem é imperativa,

antecipando um período posterior, entre os desafiantes do ceticismo, a fábula

de Descartes caminha na experimentação do caminho oposto, ainda que seja

modesta no começo da jornada rumo à certeza do sujeito45. Abaixo, Sexto

comenta o absurdo do operador dogmático, eles são mera parte na disputa.

42 Cf. HP I, 80.43 Cf. Lessa, 1992. (p. 246)44 Ibid., loc. cit.45 Descartes, René. Discurso do Método. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Pode ser que me engane e talvez não passe de um pouco de cobre e de vidro o que tomo por ouro e diamantes. Sei o quanto estamos sujeitos a nos enganar naquilo que nos diz respeito, e também o quanto os pensamentos de nossos amigos nos devem ser suspeitos, quando são a nosso favor. (p. 7)

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When the self-satisfied Dogmatists say that they themselves should be preferred to other humans in judging things, we know that their claim is absurd. For they are themselves a part of the dispute, and if it is by preferring themselves that they judge what is apparent, then by entrusting the judging to themselves they are taking for granted the matter being investigated before beginning the judging46.

O terceiro tropo é derivado direto do segundo e concentra a querela mais

radicalmente no equipamento que interage com o sujeito. O par (F, S) e o par

(F*, S*) põe os sentidos em desacordo inarredável sobre a essência do objeto,

ao sentido S ele se apresenta com uma propriedade, ao mesmo tempo, se

mostra com outra conformação ao sentido S*. Abaixo segue outro pequeno

excerto do próprio Sexto sobre o experimento do mel.

[…] and honey appears pleasant to the tongue (for some people) but unpleasant to the eyes; it is impossible, therefore, to say whether it is purely pleasant or unpleasant.

Após um conjunto de objetos experimentados, Sexto conclui e sugere a

transição para o modo de circunstâncias:

Hence we will not be able to say what each of these things is like in its nature, though it is possible to say what they appear to be like on any given occasion47.

Tropo 4: Circunstâncias que Afetam o Sujeito:

(1) x parece ser F a y, estando y em situação S;(2) x parece ser F* a y, estando y em situação S*;(3) eqüipolência entre S e S*;(4) suspensão do juízo a respeito de F ou F*.

De acordo com a notação, o objeto aparece ora como F, ora como F*, e que

para isso o sujeito estará envolto na situação de tipo S, e que o sujeito em

seguida estará inserido na situação de tipo S*. Novamente estamos diante de

um par de proposições (F, F*) erguidas com o mesmo estatuto de convicção e

caminho mental cognitivo, ou seja, a explicação daquilo que aparece, com base

em coisas não observadas.

46 Cf. HP I, 90.47 Cf. HP I, 92-93.

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Por S e S* temos que há um conjunto de circunstâncias que se colocados em

perspectiva, podem interferir decisivamente sobre os processos de julgamento

e demais constrangimentos orgânicos com rebatimento sobre o sujeito. O

quadro pode ser aplanado por uma pergunta de tipo: que circunstâncias

oferecem a melhor posição para a operação inequívoca do sujeito? Conforme o

fragmento, Dumont faz a provocação mais detalhada do sujeito.

Selon que les dispositions des sujets sont conformes ou non à la normale les onjets leur procurent des impressions différents. Les sujets en proie à la frénésie ou à l’extase croient entendre des voix surnaturelles, et nous nullement; de même ils diset souvent sentir des exhalasisons de résine, d’encens ou autre, et mainte autre chose encore, alors que nous ne sentosn rien48.

O estado normal ou o patológico, a juventude ou a velhice, o movimento ou o

repouso? Os objetos se abatem sobre nós de maneiras diversas. Essas são

algumas das circunstâncias que expressam conteúdo suficiente para a

suspensão do juízo quando a condição das coisas é alvo da consideração

cética49.

Tropo 5: Posições, Intervalos e Lugares ou Circunstâncias do Objeto:

(1) x parece ser F na condição C;(2) x parece ser F* na condição C*;(3) eqüipolência entre C e C*;(4) epoché a respeito de F ou F*.

Ou ainda,

(1.5a) x appears F at interval I(2.5a) x appears F* at interval I*(1.5b) x appears F in background B(2.5b) x appears F* in background B*(1.5c) x appears F in posture P(2.5c) x appears F* in posture P*50

Como podemos perceber dos dois mapas, o objeto oferece um conjunto de

circunstâncias analíticas ao sujeito, capazes de lhe oferecer um painel obscuro

para a decisão e a condução ao resultado certo de tipo dogmático. O intervalo

48 Cf. Dumont, 1966 (p. 68)49 Cf. Dumont, 1966 (p.69). Ver também Annas and Barnes, 1985 (p. 78)50 Cf. Annas and Barnes, 1985 (p.102)

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de aparições do objeto, o lugar e a posição são motivos suficientes para

produzir um conjunto narrativo polifônico do que quer que seja o objeto ao olho

do sujeito de conhecimento. As posições e intervalos são bem marcados no

fragmento abaixo.

Since, then, all apparent things are observed in some place and from some interval and in some position, and each of these producers a great deal of variation in appearances, as we have suggested, we shall be forced to arrive at suspension of judgment buy these modes too51.

Como podemos depreender da análise das duas representações do quinto

tropo, há um conjunto de circunstâncias que desmobilizam a certeza, senão

vejamos. O objeto (x) aparece como F na condição C, que por sua vez pode

ser representada pelo conjunto (I, B, P); ao mesmo tempo, considerando um

diálogo entre apenas dois self-satisfied, ele aparece como F* na condição C, ou

seja, sob o conjunto linear simplificado de tipo (I*, B*, P*). Como introdução ao

conteúdo provocativo do Tropo número 5, exercitemos imaginar apenas

intervalos contínuos (I) na condição C e intervalos descontínuos (I*) na

condição C*. Desse modo, a conclusão do excerto anterior nos ajuda com a

resposta desse breve parêntese.

Tropo 6: Combinações:

(1) x aparece como F em S;(2) x aparece como F* em S*;(3) eqüipolência entre S e S*;

A combinação M = x + y + ... Parece ser FA combinação M = x + y + ... Parece ser F1

A combinação M = x + y + ... Parece ser Fn

Alarguemos o parêntese. Estamos diante de um movimento de desagregação

da notação geral do ceticismo conforme expusemos pelo desenho ampliado de

Hankinson. Assim, a passagem do Tropo 5 para o Tropo 6 também expressa

uma espécie de continuidade do macro objetivo contido na referência inicial do

trabalho, narrada pelo caminho cognitivo eqüipolência, suspensão do juízo e

ataraxia. No Tropo 4, vimos que o sujeito não consegue depreender por si, o 51 Ibid., p. 99 Grifo nosso

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que seja o objeto sem considerar certas circunstâncias, por sua vez, no Tropo

5, quando ele concentra os esforços no contexto, percebe que ele se apresenta

de diversas formas. Essa constatação nos conduz para observarmos então as

manifestações do sujeito com as apresentações do contexto.

O objeto se apresentará, segundo o Tropo 6, necessariamente interado com

outros objetos de um cenário, que por sua vez poderá ser observado sobre

uma variedade diversa de interações52. Para sermos fiéis ao vocabulário do

Tropo, o objeto será combinado de tantas formas possíveis, de maneira que o

julgamento operará sob condição quase infinita de organizações de cenários de

entendimento. Vejamos então como pode ser concluída a questão.

[...] toda ação perceptual traz consigo a ação de um juízo automático. Sua finalidade seria, diante do amorfismo das combinações, estabelecer recortes e ênfases, tornando possível, dessa maneira, a emissão de proposições a respeito do mundo.

[...] Perceber um objeto é percebê-lo como algo53.

Se tomarmos mais da combinação das circunstâncias que afetam o sujeito

(Tropo 4) e das que afetam o objeto (Tropo 5) para então observarmos as

diversas combinações do objeto com o ambiente (Tropo 6), teremos como

ponto de chegada o segundo termo apresentado no ponto em questão. Um

sujeito sobre efeito de icterícia terá o seu equipamento perceptual sujeito a um

tipo de observação ocular de um mundo de tendências amarelas. Os

mecanismos perceptuais alteram de modo necessário as condições externas

dos objetos54.

Dessa forma, não falamos numa circunstância que enceta eqüipolência, mas

sim numa estrutura que expressa uma linguagem binária, a combinação M,

expressando uma aparência de tipo F55. Podemos demonstrar o argumento,

acredito que mais adequadamente como M↔F, ou em termos mais

unidirecionais M→F. As diversas combinações (M), implicando uma aparência

52 Un objet ne nous apparaî jamais seul, mais toujour uni à quelque autre chose: à l’air, à la chaleur, à la lumière, au froid, au mouvement. Dans ce mélangue, comment connaître l’objet lui-même? Brochard, V. Les Sceptiques Greecs. Paris: Librarie Philosophique, 1986 (p. 257)53 Cf. Lessa, 1995 (p. 62)54 Ibid., p. 6355 Ibid., p. 64

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distinta (F). Com esse Modo, a relatividade aparece como mecanismo

inerradicável da percepção [...]56.

Tropo 7: Quantidades:

(1) x parece ser F em quantidade Q;(2) x parece ser F* em quantidade Q*;(3) eqüipolência entre Q e Q*;(4) epoché a respeito de F e F*.

Os objetos se abatem sobre o sujeito perturbados por diversos predicados, é o

que denota o Tropo 7. Eles podem vir em proporção e forma distinta, e se

considerarmos que são perecíveis, teremos então motivações adicionais para

concluirmos pela relatividade. Eles assumirão sempre um grande número de

aparências, o que para Sexto parece claro.

That none of the external objects affects our senses by itself but always in conjunction with something else, and that, in consequence, it assumes a different appearance, is, I imagine, quite obvious57.

A notação resume o Modo que se detém nos objetos e também caminha para a

suspensão. Nela podemos ver o retorno do pareamento (Q, Q*) e a suspensão

do par (F, F*). O Modo é curto no trabalho de Sexto e também carregado de

exemplos. Entre eles um nos interessa em especial, pois dá uma boa dimensão

do argumento em questão. Abaixo, a apreensão do som pela audição humana

na letra sextiana.

And since the same sound seems of one quality in open places, of another in narrow and windings places, and different in clear air and in murky air, it is probable that we do not apprehend the sound in its real purity; for the ears have crooked and narrow passages, which are also befogged by various vaporous effluvia which are said to be emitted by the regions of the head58.

Tropo 8: Relatividade:

(1) x aparece como F no contexto relacional R;

56 Ibid., loc. cit. 57 Empiricus, Sextus. Outlines of Pyrrhonism. Translated by R. G. Bury. Great Books in Philosophy. Nova York: Prometheus Books, 1990 (p.53). Desse ponto, cito como: HP I, 125.58 Ibid., loc. cit.

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(2) x aparece como F* no contexto relacional R*;(3) eqüipolência entre R e R*;(4) suspensão do juízo a respeito de F ou F*.

Reposto o caminho suspensivo, esse Modo deseja mostrar que as coisas

aparecem para nós em contextos relacionais. As coisas aparecerão para o

intérprete de maneiras distintas, sendo um homem, acusará uma característica,

se animal, outra. Assim, as coisas serão iguais ou diferentes relativas a algo.

De acordo com Sexto:

We have thus established that all things are relative, we are plainly left with the conclusion that we shall not be able to state what is the nature of each of the objects in its own real purity, but only what nature it appears to possess in its relative character. Hence, it follows that we must suspend judgment concerning the real nature of the objects59.

Esse Modo assume uma feição síntese dos demais60. Sua característica se

expressa definidamente dizendo que todas as afecções dogmáticas são

relativas, tal como vem sendo tratado desde o Modo do Sujeito. Ele se

apresenta como a matriz resumo do conteúdo dos demais61.

Tropo 9: Freqüência:

(1) x aparece como F na freqüência f;(2) x aparece como F* na freqüência f*;(3) eqüipolência entre f e f*;(4) suspensão do juízo a respeito de F ou F*.

A constância e a raridade com que nos deparamos com os objetos são

decisivos para oferecermos considerações ao seu respeito. Se os vemos com

freqüência, temos uma relação de um tipo, se não, a raridade nos coloca numa

posição peculiar diante do mesmo. Vejamos um exemplo concreto, narrado por

Sexto do Modo em questão.

How much amazement, also, does the sea excite in the man who sees it for the first time! And indeed the beauty of a human body thrills us more at the first sudden view than when it becomes a customary spectacle62.

59 Cf. HP I, 137-140.60 Cf. Lessa, 1995 (p. 66)61 Cf. HP I, 137-140.62 Cf. HP I, 141-144.

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O caminho do self-satisfied atribuirá uma propriedade conforme a raridade do

objeto, como a preciosidade atribuída ao cometa, o mesmo movimento

explicaria a relação ordinária que se têm com a água. Assim temos que o Modo

se refere aos pares: raro, trivial; inédito, não-inédito; estranho, familiar63. Não

podemos afirmar nada sobre o par (F, F*).

Tropo 10: Costumes e Persuasão:

(1) x aparece como F à persuasão P;(2) x aparece como F* à persuasão P*;(3) eqüipolência entre P e P*;(4) suspensão do juízo a respeito de F ou F*.É possível extrair desse Modo ainda alguns elementos mais marcados no

trabalho sextiano com corte comportamental: ethics, being based on rules of

conduct, habits, laws, legendary beliefs, and dogmatic conceptions64. Um a um,

um contra outro, o Modo trabalha a suspensão de juízo. Vejamos como Sexto

Empírico manifesta a oposição de leis na passagem.

And law we oppose to law in this way: among the Romans the man who renounces his father’s debts, but among the Rhodians he always pays them; and among the Scythian Tauri (habitants of the Crimea) it was a law that strangers should be sacrificed to Artemis, but with us it is forbidden to slay a human being at the altar65.

Regras de conduta, Hábitos e Costumes, Leis, Crenças derivadas de lendas e

finalmente, Concepções Dogmáticas. Tratando, por ordem de entrada, como R,

H, L, C, D, o Modo da relatividade assume uma feição aterradora que oporá (R,

R*), (R, L), (R, L*)... Procederíamos assim até a última combinação possível.

Desse contexto, a notação pode ser expressa num apontamento síntese,

manifesto sob a forma de persuasão66. Por essa rubrica compreendemos as

várias manifestações resultantes dos antagonismos em disputa pela certeza

dos objetos. Seria no mínimo enfadonho fazermos um exercício caso a caso

nesse momento, contudo, segue abaixo uma rápida aplicação.

63 Cf. Lessa, 1995 (p. 69)64 Cf. HP I, 144-148.65 Cf. HP I, 148-152.66 Cf. Lessa, 1995 (p. 70)

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(a1) x aparece como F a R1, H1, L1, C1, D1;(a2) x aparece como F* a R2, H2, L2, C2, D2;(a3) eqüipolência entre (R1, H1, L1, C1, D1) e (R2, H2, L2, C2, D2);(a4) suspensão do juízo a respeito de F ou F*.

Nenhum dos domínios internos possui qualidade melhor ou pior, boa ou má.

Contra princípios dogmáticos, Sexto opõem aquilo que aparece contra o seu

equivalente: we oppose law to belief in myth [...] e também na conformação de

leis com o mesmo movimento intelectual: we oppose law to dogmatic

supposition67. Como podemos perceber, um dogma grassa ao mesmo nível de

mitos, lendas e hábitos. Não há conteúdo que qualifique um dogma ao mesmo

tempo em que desqualifique aquilo que é patente.

Os Oito Tropos da Causalidade68

Dos Dez Modos de Enesidemo, seguem-se outros Oito narrados por Sexto

empírico69. Diferente dos caminhos suspensivos armazenados nos dez

primeiros, eles perseguem outra patologia do autismo dogmático, presente nas

descrições etiológicas. Isto é, nessa exposição do material pirrônico, a

explicação da aparência sob o domínio do não-evidente sofrerá oposição dos

Modos de Causalidade.

No instante em que o personagem de Goodman e o intérprete do objeto o

mobilizam, o dogmático lhe emprestará uma causa. A origem do efeito terá

uma explicação não evidenciada para demonstrá-la. No entanto, a cadeia

causal sofre uma quase infinita quantidade de interferências e hipóteses, de

sorte que o seu conteúdo explicativo pode não passar de uma máxima interna

do intérprete. Vejamos como Smith apresenta esse ponto.

É fundamental notar que há uma enorme diferença entre a causa desse processo (um objeto) e o efeito produzido em nós (uma percepção). E isso não nos deve espantar, já que esse processo, ainda que complexo e eficaz, é muito precário e sujeito a excessivas variações e deformações para que possa nos dar, no final, uma informação verdadeira sobre sua causa inicial70.

Tropo 1: Princípio da Não-Confirmação:

67 Cf. HP I, 148-152. 68 As notações que seguem são extraídas da interpretação conferida por Renato Lessa ao legado cético.69 Cf. HP I, 148-152.70 Cf. Smith, 2004 (p. 13)

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De acordo com Sexto Empírico, não há clareza explicativa contida na narrativa

de tipo se causa, logo, efeito (causa→efeito). Aquilo que aparece não pode ser

explicado pelo seu contrário, o domínio de tipo não-evidente. Abaixo, um

fragmento do próprio Sexto:

[…] Is the mode in accordance with which causal explanation, which are all concerned with what is unclear, have no agreed confirmation from what is apparent71.

A enfermidade dogmática pressupõe o conhecimento da natureza do mundo

para explicar aquilo que aparece, contudo, para Sexto, aquilo que aparece

deve ser explicado pelo seu equivalente72. De modo contrário o dogmático cai

numa regressão ao infinito. Hume aponta que se nós perguntássemos a um

homem porque acredita num fato, obteríamos como resposta uma razão, que

por sua vez seria baseada noutro fato73. O espírito nunca pode encontrar pela

investigação e pelo mais minucioso exame o efeito na suposta causa74. A

regressão pode então ser posta do seguinte modo: (A) aquilo que aparece ←

(B) explicado por uma máxima privada ← (B-1) baseada num experimento ou

nova máxima privada ← (A-1) aquilo que aparece.

Tropo 2: Princípio da Pluralidade Causal, ou Monocausalidade Arbitrária

Liberado da preocupação com a trilha até a suspensão, esse Tropo se

apresenta ante a certeza dogmática de pautar uma explicação numa única

causa. Por outro lado, Sexto, lembra da multiplicidade delas, expostas ao

sujeito, presentes nesse tipo de investigação.

[...] Some people often give an explanation in only one mode, although there is a rich abundance enabling them to explain the subject of investigation in a variety of modes75.

71 Cf. HP I, 180-186 (1994).72 Cf. Lessa, 1992 (p. 272) 73 Cf. Hume, 1999. Um homem, ao encontrar um relógio ou qualquer outra máquina numa ilha deserta, concluiria que outrora havia homens na ilha. [...] E constantemente supõe-se que há uma conexão entre o fato presente e aquele que é inferido dele. Se não houvesse nada que os ligasse, a inferência seria inteiramente precária. (p. 49)74 Cf. Hume, 1999 (p. 51)75 Cf. HP I, 181.

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Segundo Renato Lessa, quando alcançam alguma generosidade, os

dogmáticos conseguem hierarquizar um conjunto de causas submetidas a uma

causa central do objeto. Por outro lado, ela é uma das patologias suscitadas

pela indecidibilidade provocada pela pluralidade de causas76. Smith as põe

numa posição distinta, de modo que o cético tem na verdade uma hipótese de

pluralidade, fazendo então a vez do refutável, já que sua base (hipotética) se

fixaria na posição de onde o sujeito é afetado por uma diversidade de causas

sem ter como decidir pela real77. Sob essa perspectiva, o dogmático estaria

sujeito a seguinte síntese.

(a) eu não sei que não-H (H é uma hipótese cética);(b) se eu não sei que não-H, então eu não sei que C;(c) logo, eu não sei que C.

Visto dessa perspectiva, o cético ataca com uma multiplicidade de hipóteses

causais, por outro lado, a caminhada cognitiva de corte etiológico está aferrada

ao conhecimento C. A tríade pode ser relida da seguinte maneira: i. não sei se

o cético está errado; ii. como não posso afirmar isso, logo não posso afirmar

conhecer; iii. se não posso afirmar isso, não tenho conhecimento.

Tropo 3: Princípio da Incompatibilidade Formal

[...] they assign causes that display no order to things that take place in an ordered way78.

Esse princípio se reporta ao invólucro da etiologia. Segundo Sexto os

dogmáticos estão opondo uma causa sem ordem a um mundo ordenado. Os

fenômenos estão sob um tipo de organização natural, ao passo que o caminho

etiológico vem de uma matriz de tipo atomista. Uma origem difusa não pode ser

rebatida sobre eventos estáveis79.

(d) Desordem → (o) Ordem

76 Cf. Lessa, 1992 (p. 276)77 Cf. Smith, 2004 (p. 18); Ver também Hume e a aplicação com as hipóteses sobre a bola de bilhar, op. cit., 1999, p. 51.78 Cf. HP I, 18279 Cf. Lessa, 1992 (p. 277)

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(o) Ordem fenomênica → (o) Ordem fenomênica

Segundo o esquema, a incompatibilidade formal está no fato de uma origem

difusa e obscura explicar um curso naturalmente ordenado prescindindo de

uma causa fundamental. Para um pirrônico, ordenamento fenômeno explica

ordenamento fenômeno, i.e, (o) contra (o). Aqui é importante a lembrança de

um personagem do ceticismo pirrônico do Século XVI, Michel de Montaigne,

que vai introduzir a questão de maneira distinta, onde serão possíveis

pareamentos combinados do nosso esquema simplificado80.

Tropo 4: Princípio da Falácia Analógica

Esse Tropo se volta contra o princípio de analogia entre coisas díspares. Uma

vez que o domínio do não-evidente não pode ser corretamente definido, não se

pode estabelecer vínculo automático com o aparente. A evidência não

estabelece a existência ou o domínio seguro do não-evidente81. Desse ponto, o

dogmático emite uma definição do que seja algo, contudo, constitui uma

assertiva privada do que seja, explicando por sua vez aquilo que aparece.

Desse modo, os dogmáticos produzem uma decisão a respeito do caráter

objetivo e pré-representacional do mundo82. Nas palavras de Sexto Empírico a

explicação toma a seguinte forma:

[...] when they have grasped how apparent things take place, they consider that they have apprehended how non-apparent things take place. But perhaps unclear things are brought about similarly to apparent things, perhaps not similarly but in a special way of their own83.

Tropo 5: Princípio da Idiossincrasia

[...] just about all of them give explanations according to their own hypotheses but reject what opposes them, even when this has equal plausibility84.

80 Montaigne, M. Ensaios. São Paulo: Nova Cultural, 1996. Trad. de Sérgio Milliet (L I, Cap.I, p. 33) Por diversos meios chega-se ao mesmo fim; e (LI, Cap. XXIV, p. 129) Uma mesma linha de conduta pode levar a resultados diversos. (Coleção Os Pensadores)81 Cf. Smith, 2004 (p. 19)82 Cf. Lessa, 1992 (p. 278)83 Cf. HP I, 18384 Cf. HP I, 184

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De certa forma esse Tropo foi antecipado de maneira pulverizada no trabalho

até aqui, contudo, conforme o fragmento, ele lembra que as afirmações dos

dogmáticos, pautadas em hipóteses, são privadas, ainda que rejeitem as

máximas opostas. Mais do que isso, o dogmático despreza veementemente o

primado da inscrição e das circunstâncias conforme vimos no Tropo

equivalente. Ao contrário, a estratégia dogmática, tipicamente idiótica, define

de forma automática seus próprios constrangimentos. E ainda, os

constrangimentos da cognição dogmática definem um cenário de radical

solidão85.

Tropo 6: Princípio da Seletividade

[...] they often adopt what is concordant with their own hypotheses but reject what oppose them, even when this has equal plausibility86.

A explicação do Tropo 6 é ainda mais econômica que a do anterior. Pelo

princípio da seletividade, o dogmático faz uso seletivo ao desconsiderar, pelo

menos, dimensões importantes para a compreensão a que se submetem.

Dentro de seu autismo há um imperativo de coleta daquilo que lhe empresta

concordância. Por outro lado, ele despreza aquilo que lhe parece estranho,

outrossim, gozam desse estatuto as afirmações contrárias, conforme a breve

definição de Sexto. Há depreensão menos angélica: A objeção, aqui, dirige-se

menos à epistemologia do que ao domínio de uma ética do conhecimento87.

Tropo 7: Princípio da Inconsistência

[...] they often assign causes which conflict not only with what is apparent but also with their own hypotheses88.

O argumento fala então da inconsistência primária de algumas hipóteses dos

dogmáticos, aqueles imperitos que aventam contra as próprias bases. Esse

intérprete parece desprezar, ignorar ou pelo menos não concordar com o

85 Cf. Lessa, 1992 (p. 281)86 Cf. HP I, 183.87 Cf. Lessa, 1992 (p. 282); Hume, por sua vez, acha que essa redução e sistemática simplificação é o máximo que podemos alcançar dentro da problematização cética. Op. cit., 1999 (p. 52).88 Cf. HP I, 184.

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comportamento do seu par do Tropo 6. Ele parece ser menos competente, ou

pelo menos ético, portanto, já que uma definição é o que procura. Com boa

vontade, podemos dizer, ele sofre de dilemas éticos e também lógicos.

Tropo 8: Princípio da Incerteza Hiperbólica[...] often when what seems to be apparent is just as puzzling as what is being investigated, they rest their teaching about what is puzzling upon what is puzzling89.

Diante do embaraço apresentado sobre a quantidade de incertezas atinentes

ao objeto, o dogmático deflagra uma busca desesperada por explicação fora do

domínio aparente. O caminho que percorre, uma vez colocada a dúvida no

interior de sua pesquisa, é o de procurar sanar uma dúvida por outra com teor

ainda menos explicativo. Pois, diante da impossibilidade de validar, através dos

fenômenos, proposições esotéricas, os dogmáticos acabam constrangidos a

buscar confirmações em enunciados esotéricos subseqüentes90.

Os Cinco Tropos de AgripaOs argumentos de Agripa perpassam toda a narrativa do ceticismo na obra de

Sexto Empírico, por essa razão, os cinco tropos poderão ser percebidos como

circunstâncias nas quais a suspensão do juízo é novamente colocada na

ordem da postulação cética. Há mesmo quem os veja como uma síntese para

expressar a impossibilidade do dogmático apresentar uma crença justificada, é

o caso de Lammeranta91.

Tropo 1: Disputa

O Modo da disputa centra a posição cética na diaphonía, o desacordo de

proposições, dirigida tanto a dogmáticos quanto ao senso comum. Nessa

circunstância então, as certezas dogmáticas podem ser entendidas como

afecção que se abate sobre o homem comum em suas certezas sobre as

essências daquilo que lhe aparece no dia a dia. Dessa maneira, o ceticismo

89 Cf. HP I, 184.90 Cf. Lessa, 1992 (p.283)91 Lammeranta, Makus. The Pyrrhonian Problematic. In. The Oxford Handbook of Skepticism, ed. J. Greco. Disponível em: www.external.stir.ac.uk. Acessado em 14/05/2007.

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pode ser percebido como o meio filosófico para observar o desacordo

incorrigível presente entre os homens onde quer que grasse o dogmatismo92. O

Tropo é angular em relação aos demais, diante do qual os dogmáticos traçarão

estratégias escapistas93.

De acordo com Lemmeranta, o Tropo 1 de Agripa pode ser expresso tal como

se segue:

(1) S1 believes that p.(2) S2 believes that ~p.(3) At most, one of them is right.(4) The disagreement between S1 and S2 is irresolvable.(5) We should suspend judgment about p.

Tropo 2: Regressão ao Infinito

Ao tentar escapar da suspensão posta pelo Tropo da Disputa, o dogmático

deflagraria uma corrida para superar a eqüipolência por outros meios. Assim,

nessa circunstância ele apresentaria uma proposição a1 apoiada numa

evidência e1 que, por sua vez, necessitaria de um conteúdo que a

comprovasse de tipo c1. A prova da evidência c1 estaria sujeita a mesma

narrativa para fins de comprovação, o que por sua vez daria início a regressão.

Assim, a evidência (e1) oferecida como prova de uma asserção (a1) necessita

de prova (c1)94.

Tropo 3: Relatividade

Segundo Renato Lessa esse argumento não parece ter origem no material de

Agripa, uma vez que Sexto faz remissão ao Modo anterior, das Hipotiposes.

92 Para Hankinson o Tropo 1 de Agripa pode também ser expresso segundo a seguinte notação: (1) it now seems to me overwhelmingly (subjectively) likely that p; (2) not-p is compatible with absolutely any degree of evidence E that p, and hence that; (3) E cannot entail p; (4) p is certain only if not-p is not possible, then; (5) I cannot be certain that p; Hence; (6) I suspend judgement as to p. Cf. Hankinson, 1995 (p. 184)93 Cf. Lessa, 1995 (p. 92)94 Cf. Lessa, 1995 (p. 92)

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Assim, trata-se de reafirmar que nada é apreendido a não ser em conexão com

circunstâncias que afetam os objetos e os sujeitos de conhecimento95.

Tropo 4: HipótesesO modo das hipóteses se apresenta como a circunstância em que o dogmático

parece não subscrever a regressão ao infinito, por meio de uma estratégia

pretensamente isenta da diaphonía (desacordo infinito). Para evitar a

regressão, ele firma um patamar a partir do qual pode então ter um argumento

que não demanda prova. Uma vez revelados em seu mergulho em direção ao

infinito, os dogmáticos teriam como único recurso – além daquele representado

pela completa rendição – o apego a proposições inegociáveis96.

Esse tipo de recurso pode ser também compreendido como um tipo de petição

de princípio, pois, nesse momento, o dogmático fixa um ponto a partir do qual

as coisas têm que ser aceitas necessariamente97. Formalmente o Modo da

Hipótese pode ser expresso como segue:

Se diaphonía, então regressão;Se interrupção da regressão, então hipótese;Se hipótese, então diaphonía98

Tropo 5: Reciprocidade ou Circularidade

(a) P1 deriva de P2;(b) P2 deriva de P3;(c) P2 deriva de P1

P1 (posterior) é assumido como verdadeiro porque deriva de P2

P2 é assumido como verdadeiro porque deriva de P1 (anterior)

Estamos diante de uma tentativa de provar uma asserção com base num termo

derivado de si mesmo. Qualquer desdobramento que faça com que algum Pn

95 Cf. Lessa, 1995 (p. 93)96 Cf. Lessa, 1995 (p. 94)97 Genovesi, Antonio. A Instituição da Lógica. Rio de Janeiro: Editora Documentário, 1977. Textos Didáticos do Pensamento Brasileiro. Vol. IV (p. 125)98 Cf. Lessa, 1995 (p. 94)

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derive de P1 incorrerá em absurdo lógico se temos em vista que P1 é ao

mesmo tempo um termo anterior e também posterior da proposição99.

Assim sendo, o dogmático, depois de tentar bloquear a regressão ao infinito

por meio de uma interrupção, com o recurso de uma hipótese, agora tenta

desprezar ambas as tentativas e propõe a demonstração por meio de algo

derivado de si mesmo.

Epílogo

Acaso tenha obtido algum êxito nessa etapa do trabalho, demonstrei em

algumas palavras algo da ambição do conhecer humano, manifesto mais

claramente na presunção dogmática, de modo geral, pronunciadamente na

pretensão de alguns ramos da ciência e, mais amplamente, na filosofia. Da

mesma maneira, contrapus a essa mesma ambição um domínio da ação

humana pouco ou nada coerente com esse tipo de manifestação da reflexão.

Para tanto, usei como títere a imagem social estereotipada pelo personagem

de Goodman, o homem da rua.

Por um lado, estão colocadas as pretensões idióticas e narcísicas de um

sujeito que pesquisa e que interpreta a aparência dos fenômenos com vistas à

emissão de pareceres amplos e definitivos do que seja a essência desses

reféns do entendimento. Por outro lado, de qualquer forma o homem comum

encontra-se em contato com os produtos das afecções oriundas dessa atitude

cognitiva. Pouco atento a questões que expressem aquilo que seja algo por

meio de processo análogo de pesquisa, mas que, de algum modo, direta ou

indiretamente trava contato com essa produção.

Essa elaboração extenuada da natureza das coisas acontece a todo instante

com os filósofos. Num bar, bebendo um chope, segundo a imagem aplicada

por Porchat Pereira, os filósofos diriam mais ou menos as mesmas coisas

sobre a aparição dos fenômenos, ao passo que divergiriam radicalmente

quando dissessem sobre os fenômenos. A representação dessa perspectiva é

99 Cf. Lessa, 1995 (p. 95)

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bastante didática. O excerto é longo, porém, bastante útil para revelarmos em

nuance a diaphonia.

Suas diferentes doutrinas oferecem leituras diferentes e entre si incompatíveis dessa experiência comum que eles consensualmente descrevem, elas interpretam os fenômenos de diferentes maneiras.

Cada um deles certamente rejeitaria as interpretações de todos os outros e pretenderia ser a sua própria leitura filosófica do fenômeno comum em questão a única capaz de dele dar integralmente conta. Sua discordância doutrinária é total, tanto quanto seu acordo pré-filosófico sobre o fenômeno e como descrevê-lo é, suponhamo-lo, inteiro100.

Dessa explosão de discursos, podemos dizer, emerge uma figura em

perspectiva do ceticismo. Inicialmente ele se apresenta como a concepção que

atesta e derruba a diversidade de narrativas sobre a existência real das coisas

em si, colocando-as sob um constrangimento avassalador; noutro momento, e

assim que é compreendido, pode e deve ser observado como uma das

filosofias em disputa, constituindo outra narrativa em curso imersa na

diaphonia.

Desse ponto então pode ser verificado como uma posição filosófica preenchida

de caracteres positivos e particularmente orientada para a vida prática livre de

perturbações dogmáticas. Essa conclusão, a meu ver, é capaz de bloquear em

boa medida alguma ênfase interpretativa que conduza o pirronismo, por

exemplo, a uma chave para a paralisia. Ao contrário, o cético não se precipita

com a facilidade que o dogmático se permite, o que faz dele um inquiridor

infatigável.

O tratamento dado aqui a vertente grega da sképsis, conforme dito, organizado

de maneira sistemática por Sexto Empírico, privilegiou a apresentação genérica

e particular dos conteúdos de Enesidemo, Agripa e as considerações de Sexto

Empírico. Em conjunto, guiados pelas notações ou, na letra cética, tropos, o

conteúdo conhecido orienta para o caminho isosthenéia, epoché e ataraxia.

100 Pereira, Oswaldo Porchat. Sobre o que a parece. Revista Sképsis, São Paulo, Ano 1, n 1, p. 7-42, 2007 (p. 19). Disponível em: <www.skepsis.com>, acessado em 10/2007.

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Os Dez Modos de Enesidemo dão a materialidade e a sistematicidade

necessárias para expressarmos formalmente o caminho cético que clareia o

percurso cognitivo dogmático quando este articula sujeito e objeto para o

entendimento. O resumo dos dez argumentos iniciais manifesta os obstáculos

e constrangimentos a que está submetido o percurso para a essência. A

variedade de animais, seres humanos, composições orgânicas, circunstâncias

que afetam o sujeito, circunstâncias que afetam o objeto, combinações,

quantidades, relatividade, freqüência e persuasão são o material sistemático

para tanto. Eles constituem a primeira bateria de argumentos erguidos nesse

ensaio para demonstrar a incapacidade de alguns recursos cognitivos e que,

por conseguinte, nos conduzem a suspensão do juízo: agrupados, são

descritos como Modos do Sujeito, Modos do Objeto e Modos Mistos.

Desse ponto seguem os Oito Modos de Enesidemo. Esse material privilegia o

caminho para a ataraxia, sem explicitar a suspensão de juízo, interrompendo

as ambições etiológicas. A gana de conhecer a origem daquilo que aparece é

obstruída sistematicamente, a sua explicação por algo que não aparece, o não-

evidente, é o sintoma mais pronunciado do self-satisfied.

O primado do caminho causa, então, efeito é alvo da obstrução sistemática do

primeiro dos oito tropos. A escapar disso, o dogmático incorre num movimento

de arbitrariedade causal, onde elege idiossincraticamente uma única causa. O

terceiro movimento manifesto na patologia dogmática é a incompatibilidade

formal entre as ordens que supõe conectar, o não-evidente pelo seu contrário,

o evidente. Na seqüência, a analogia entre o indefinível e o evidente é o objeto

refém do cético. O princípio da idiossincrasia é diluído entre os demais tropos,

uma vez que as assertivas do dogmático só lhe dizem respeito. Seu

pressuposto, por exemplo, tem compartilhamento estreito, alcança o seu

próprio emitente.

Com traços que apontam para questões que podem envolver éticas (impostura,

probidade) e pesquisa, o princípio de seletividade manifesta uma atitude de

coleção arbitrária de conteúdo para a confirmação daquilo que se quer

asseverar sobre o fenômeno. A inconsistência é outro tipo de manifestação

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dogmática que denota, senão fragilidade intelectual, pelo menos franca

imperícia. Diante desse quadro, o dogmático tem como engenho de escape a

pronúncia de incontáveis afirmações daquilo que não aparece para explicar o

evidente.

O material de Agripa apresenta alguns elementos não explorados nos tropos

anteriores que elegemos para esse trabalho. E de um total de cinco, o Modo da

Disputa se ocupa de denunciar e consagrar a diaphonia filosófica como

resultado imediato da produção de corte dogmático. Uma clara distinção

presente nesse argumento diz respeito ao alvo da obstrução cética, dessa vez

referida a qualquer tipo de dogma. Por outro lado, a partir de estratégias de

fuga dessa atitude de obstrução cética, podemos entender os demais

argumentos remetidos para um conjunto de circunstâncias onde o self-satisfied

fantasia estar posto em segurança da ameaça da sképsis.

Ao tentar posicionar aquilo que diz ser a prova (1) evidente de sua afecção, o

dogmático se vê obrigado a apresentar uma prova (2) de sua prova (1), que por

sua vez necessitará de uma prova (3) para a prova (2), que por sua vez não

prescindirá desse movimento, configurando uma infinita regressão (Tropo 2).

Seguiu-se então na apresentação proposta que para a vertente cética nada se

apresenta dissociável. Os fenômenos têm suas representações relativas a algo

e segundo quem o recebe (Tropo 3).

Outro comportamento sisífico inaugura uma assertiva inegociável na figura de

hipótese. Esta posta, não se remove a objeção, apenas se apresenta uma

petição de começo segundo um critério meramente arbitrário, e que, portanto,

só diz respeito ao seu emissor (Tropo 4). Finalmente, outro expediente aplicado

representa como prova da assertiva algo derivado da mesma, ou seja, o

enunciado é verdadeiro se sua prova for um derivado de si mesmo (Tropo 5).

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Capítulo 2

Aplicação Cética em Michel de Montaigne

Índice

Apresentação p. 37

Preâmbulo p. 38

Cético p. 43

Conhecimento p. 49

Religião p. 55

Aplicação p. 61

Epílogo p. 66

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ApresentaçãoO presente trabalho expõe uma proposta de recepção do ceticismo antigo no

Século XVI no cerne do trabalho do Ensaísta Michel de Montaigne. Seu

estribilho é manifesto pelo ceticismo de aplicação. Essa tentativa também está

dividida em seis momentos distintos a exemplo do capítulo que antecede a

esse.

Em primeiro lugar forjamos Montaigne como pensador que repercute uma obra

pulverizada de ceticismo antigo e acadêmico no seio das discussões

intelectuais do seu século. Para os nossos propósitos ele o faz de duas

maneiras distintas, sob uma arguta interrogação das suas próprias faculdades

intelectuais, manifestando um “eu” que fala, consigo mesmo, bem como

interrogando as questões e definições demonstradas ou praticadas no coração

da disputa fincada em França.

Decorre dessa visão que a comunicação entre Montaigne e seu juízo e

Montaigne e os fenômenos em curso são repercutidos por intermédio do

legado cético. Assim sendo, o esforço que segue a essa proposta procura

evidências claras em seu trabalho que manifestem essa disposição.

O terceiro momento procura uma atenção de Montaigne para a elaboração das

teorias e o conhecimento de modo geral, bem como especulamos, segundo os

Ensaios, que tipo de elaboração está sendo ensaiada. Foi possível capturar

nessa pesquisa que nos Ensaios há um forte enaltecimento do pensamento

livre.

Na seqüência interrogamos então que tipo de adesão ele lança sobre a religião

e também o tipo de elaboração que surge do que chamamos de Aplicação

Cética em Michel de Montaigne. O sexto ponto também articula os cinco

anteriores, a exemplo do tratamento que demos ao capítulo anterior. O objetivo

dessa etapa é configurar ao menos como Montaigne pensa para disso extrair o

que ele pode pensar sobre o objeto política, ou seja, traçar mais claramente

como e o que ele supostamente pensa da política no terceiro capítulo.

Aplicação Cética em Michel de Montaigne

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PreâmbuloDada a sua especificidade analítica, a elaboração cética possui certamente

múltiplas portas de entrada na vida intelectual ocidental depois da sua

fundação no período helênico, há ainda um período posterior ao seu

nascimento onde supostamente foi esquecida. Ela foi retomada mais

explicitamente no século XVI na Europa e França, que constitui o principal

período de interesse desse ensaio. Esse momento conteve pelo menos um

grande debate peculiar que apresentaria o aparelho cético contra as

proposições teóricas contidas nos movimentos de reforma religiosa e também

no de contra reforma, com efeitos diversos, às vezes análogos, para ambos os

lados em disputa101.

Para Popkin, um dos expoentes na historiografia do ceticismo, com a

redescoberta do trabalho de Sexto, o composto cético se empresta a função de

centro da disputa filosófica entre os lados opostos no contexto da querela

religiosa.

Com a redescoberta no século XVI dos escritos do pirrônico grego Sexto Empírico, os argumentos e pontos de vista dos céticos gregos tornaram-se parte do núcleo filosófico das lutas religiosas que ocorriam nesta época102.

Por outro lado, no mesmo documento, convém destacar, Popkin é

curiosamente bastante duro com relação ao trabalho de legado

verdadeiramente sextiano para o ceticismo, e, por conseguinte só o coloca

numa posição angular para a formação do pensamento cético dos modernos

pela sua natureza única e, implicitamente, acidental. Nesse sentido o valor da

obra do grego será posto pela mera capacidade de apresentar um relato

sistemático apto a dar concretude a uma postura filosófica. Senão, segue:

Foi um escritor do helenismo, obscuro e sem originalidade, cuja vida e carreira são praticamente desconhecidas. Mas, por ser o único cético pirrônico grego

101 Maia Neto, José Raimundo. Panorama historiográfico do ceticismo renascentista. Revista Sképsis, São Paulo, V. 1, n. 1, p. 83-97, Ano 1, 2007 (p. 86) Disponível em <www.revista-skepsis.com.br>, acessado em 10/2007.102 Popkin, Richard. História do Ceticismo: de Erasmo a Spinoza. Trad. Danilo Marcondes de Souza Filho. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2000. (p. 49)

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cuja obra sobreviveu, acabou por desempenhar um papel fundamental na formação do pensamento moderno103.

De qualquer forma que a qualifiquemos, a obra sextiana consiste a fonte direta

ou indireta para a grande profusão de recepções dos pensadores modernos, da

mesma maneira para Michel de Montaigne104. Para Popkin, a publicação da

obra de Sexto no XVI, por Henri Estienne em 1562, foi capital para a retomada

coordenada do ceticismo, especialmente na obra de Montaigne.

Foi apenas após a publicação das obras de Sexto que o ceticismo tornou-se um movimento filosófico importante, especialmente como resultado de Montaigne e seus discípulos105.

Entretanto, com relação a Michel de Montaigne, há um aspecto persistente na

obra de Popkin que o instala numa época e num tempo onde a dúvida primaz

do conflito religioso tenha sido o estopim para a postura do filósofo. Passa

então uma mensagem na qual o contexto teria amoldado a resposta automática

de feições céticas como necessárias. O século traz, nessa perspectiva, uma

insistente componente que empurra o espírito do perigordiano ao aparelho

cético. Segundo essa visão, o refúgio a um mundo de crenças abaladas,

imediatamente posterior ao fim da idade média, é acompanhado de um

encontro de Montaigne com a obra de Sexto seguido de conseqüências

pirrônicas explosivas em sua obra. Dessa crise contextual, segue-se para

Popkin aquilo que deflagraria uma crise cética privada, mais marcada no

ensaio Apologia de Raimond Sebond. Assim, segundo ele:

Os sistemas intelectual e religioso, que haviam sido construídos na Idade Média, estavam desmoronando e tornava-se cada vez mais difícil dizer em que acreditar. Justamente quando o mundo de Montaigne se desfazia, aconteceu ele ler o principal trabalho cético antigo sobrevivente: a obra de Sexto Empírico106.

Skinner também trabalha de fora pra dentro quando olha Montaigne, ainda que

explore um pouco mais o humanismo, o faz de maneira não menos

103 Cf. Popkin, 2000 (p. 49-50)104 Moureau, Pierre. Montaigne – O Homem e a Obra, in M. de Montaigne, Ensaios. Brasília/São Paulo, Ed UnB/Hucitec, 1987, vol. 1.Trad. Sérgio Milliet. 1-92 p. […] graças ao velho médico grego, os céticos modernos recolhiam as armas dos céticos antigos. (p. 9)105 Cf. Popkin, 2000 (p. 74)106 Popkin, Richard H. Ceticismo. Organizador: Eigenheer, Emílio M. Niterói: EDUF, 1986. (p. 20-21)

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automatizada que Popkin. Do pesquisador do pensamento político moderno

todo o contexto do quinhentos é capaz de explicar a movimentação de

Montaigne para decidir pela introspecção. A partir disso, sua criatividade seria

mobilizada para uma exploração de si como resultante quinhentista.

Essa ênfase na capacidade criativa do homem veio a tornar-se uma das doutrinas mais influentes e ao mesmo tempo mais características do humanismo renascentista. Acima de tudo, contribuiu para se voltar maior interesse para a personalidade do indivíduo. O homem passou a sentir-se em condições de utilizar sua liberdade, de modo a fazer-se arquiteto e explorador de sua própria pessoa. Isso, por sua vez, permite compreender a maior complexidade psicológica que constatamos em boa parte da literatura quinhentista, assim como a paixão pela introspecção que mais tarde levaria Montaigne a dedicar toda a sua energia criativa ao estudo de sua própria natureza107.

A corrente liderada pelo Popkin parece mais conforme o apetite de Montaigne,

preenchida de substantivo pirronismo e claramente defronte a uma disputa de

caráter teórico e concomitantemente de rebatimentos práticos, diferente da

preconização marcada pela exaltação da capacidade criativa do homem

postadas acima de tudo. É patente que o ambiente de crise intelectual surgida

do fim da idade média e início do renascimento são uma boa medida para a

experimentação, mas o que merece destaque é que a matéria montaigniana

não está embalada em invólucro tão otimista conforme veremos.

Ainda que se trate de uma abordagem historiográfica diversa, o escrutínio de

Maia Neto do registro cético do renascimento põe, a meu ver, em linhas planas

a efetiva contribuição de Montaigne, segundo a vertente que ele batiza como

Popkin-Schimitt. O trabalho enumera várias passagens da contribuição dessa

dupla de historiadores do ceticismo, para os nossos propósitos uma delas

constitui substância elucidativa:

Entronizaram (sobretudo Popkin) Montaigne como pirrônico e fideísta e como o principal cético renascentista e principal responsável pela grande influência do ceticismo na filosofia moderna108.

107 Skinner, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. Trad. Renato J. Ribeiro e Laura T. Motta. São Paulo: Companhia das Letras. (grifo nosso) (p. 119) 108 Cf. Maia Neto, 2007 (p. 87)

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De fato Montaigne se revela como um grande expoente de um tempo e

observou um ambiente de turbulência inigualável, contudo seu trabalho é, ao

que parece, introspectivo e só então voltado para os problemas de sua época.

É quase impossível mesmo expressar uma linha ou um conjunto causal nítido

para dizer quem determina a sua matéria cética, se seu tempo o determina ou

se o contrário, se ele é voluntariamente um cético109. Contudo, esta constitui a

hipótese da qual esse trabalho mais se aproxima, imaginando, a partir disso,

que sua filosofia é mais manifesta pelo percurso epistemológico internalista e

então cognitivo.

Não é um (1) tolo quem não desconfia afinal de seu juízo, se reconhece ter sido por ele enganado mil vezes? Quando me convenço, diante dos argumentos que me apresentam, de que minha opinião é errônea, não é tanto a ignorância que se evidencia a meus olhos – seria pouco – é minha fragilidade que constato, é a (2) traição de minha inteligência, e chego a conclusão de que tudo está a exigir reforma.

Em todos os meus outros erros, ajo da mesma maneira e tiro dessa regra grande proveito na vida. Não olho, no caso, o fato, como uma pedra em que ocasionalmente tropeço; (3) o que ele me revela é que possivelmente tudo precisa ser revisto e reajustado. Saber que dissemos ou fizemos uma tolice, pouca importância tem; (4) o importante é saber que somos tolos110.

O que precede a análise do fato é uma avaliação detidamente no juízo, sua

mobilidade está sob a mira do autor, o que ele frisa é a alta capacidade deste

nos conduzir no mais das vezes ao engano. Quando se convence da

fragilidade do juízo, não acha motivo especial no equívoco resultante dos

processos deste, acha na verdade um meio claro de demonstração de

ignorância permanente. A conclusão é que o seu equipamento cognitivo

merece reforma, suas aplicações epistêmicas devem se repetir com

constância. O fato, entendido como qualquer resultado do processo de

cognição, demonstra a necessária constância da reforma da opinião.

Finalmente, em (4), mais importante no fato é a sua capacidade de conduzir a

109 Bencivenga se ocupa de observer os jogos mentais produzidos por Montaigne, uma das razões para repousar sobre esse trabalho essa posição pouco taxativa. Bencivenga, Ermanno. The Discipline of Subjectivity: An Essay on Montaigne. Princeton: Princeton University Press, 1990 (p. 49-62) 110 Montaigne, Michel de. Ensaios. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996. (Coleção os Pensadores) LIII, XIII, p. 362 De agora em diante, quando me referir a essa coleção farei uso da citação de Livro representado pela letra “L” (LIII), capítulo em Romanos (XIII), e página representada em algarismos precedidos da consoante “p.” (p.362). Desse modo, a mesma citação seguiria como: Cf. LIII, XIII, p. 362

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conclusão de que somos tolos e pouco ou nada equipados para dele

extrairmos opinião definitivamente verdadeira.

É preciso então uma elaboração sofisticada para apresentarmos o contexto

conduzindo o pensamento de Montaigne, é patente que ele se relaciona com o

ambiente intelectual em curso, mas o ponto é que o gênio de sua obra pode ser

mais bem observado numa chave internalista onde o fato pode não ser

condição automática de sua matéria111. Ele pode, colateralmente, através de

sua narrativa, revelar mais sobre o perigordiano, do que sobre este e o

ambiente.

É mais difícil do que parece acompanhar o espírito na sua marcha insegura, penetrar-lhe as profundezas opacas, selecionar e fixar tantos incidentes miúdos e agitações diversas. É uma ocupação inédita e excepcional, mas das mais recomendáveis, que nos afasta das ocupações habituais a que se entrega em geral a gente.

Não há descrição mais difícil do que a de si próprio, nem mais aproveitável, mas é necessário enfeitar-se, arranjar-se para se apresentar em público. Assim, enfeito-me sem descontinuar, por isso que me descrevo constantemente112.

A primeira passagem deixa uma forte sugestão de que a companhia e

observação introspectiva devem ser levadas a efeito em profundidade, o

espírito promove por si um conjunto de acidentes e agitações que conferem

mobiliário legítimo para uma pesquisa. Esse trabalho lhe apresenta a

capacidade de se afastar de análises exteriores e habituais com resultados já

conhecidos e narrados, desse modo, o trabalho de se observar é composto por

motivação suficiente para não sair de si mesmo113.

Fixar um ponto em si se apresenta antecipadamente à dificuldade presente em

qualquer pesquisa de tipo factual, o movimento humano lhe atrai mais114. O

homem constitui então um objeto de conhecimento tão ou mais precioso do

111 Cf. LII, X, p. 349 Não se preste atenção à escolha das matérias que discuto, mas tão somente à maneira por que as trato.112 Cf. LII, VI, p. 325 (grifo nosso)113 Cf. LII, VI, p. 321114 Cf. Moreau, 1987 […] Montaigne deixa-se tentar pelo ceticismo. O movimento universal, essa ‘passagem’ perpétua – esse vir a ser sem fim que transporta, segundo Heráclito, os seres e as coisas – obsedam-lhe a imaginação [...]. (p. 5)

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que aquilo que o cerca115. É um labirinto que deve ser observado e também

que, em síntese, o mapa do singular apresentaria mais substância provocativa

do que os universais, conforme apresenta Friedrich:

Montaigne parfait définitivement dans l’observation de soi as conviction que le singulier est plus riche que l’universal et que l’on ne vient jamais à bout du labyrinth humain. Il est à lui-mème le labyrinth le plus surprenant, mais aussi le plus accessible et le plus précieux pour la connaissance116.

Assim, o que está em representação é uma observação de Montaigne de duas

maneiras distintas: uma que o vê contextualmente, e outra que o recebe como

pensador de uma natureza idiossincrática bem marcada, ainda que seja

legitimamente um pensador de talho geral quinhentista117. E, pela abordagem

sugerida, a partir dos fragmentos montaignianos, diversa da visão de Lima, a

pesquisa introspectiva resulta em análises do ambiente expressas em

embalagens enfeitadas ou dissimuladas, para se apresentar em público num

contexto de enfermidade, também segundo ele mesmo118.

CéticoO ponto que conecta originalidade e o contexto montaigniano pode ser

encarado como cético, perpassado por outros cem números de influências

igualmente amoldadas ao que ele próprio considera e, ao cabo, assimila como

seu119. Friedrich assinala que scepticisme et ignorance sont des conditions

élémentaires de sa sagesse120.

115 Cf. LII, X, p. 349 (Ibid)116 Friedrich, Hugo. Montaigne. Paris: Gallimard, 1968. Trad. Robert Rovini. (Col. Tel) (p. 220)117 Cf. Popkin, 1986 Montaigne apresentou a crise do homem moderno, que não conseguia encontrar qualquer fundamento para acreditar em algo. Qualquer crença era possível de ser contestada (p. 21)118 Para quem Montaigne está a apresentar-se realmente sem os adornos retóricos. Lima, L. Costa. Montaigne: A História Sem Ornatos. Revista de História e Estudos Culturais, Rio de Janeiro, V. 3, n. 2, p. 01-115, Ano 3, 2007 (p. 5) Disponível em <www.revistafenix.pro.br>, acessado em 08/2007. Na seqüência Cf. LII, XVIII, p. 48 Pintando-me para outrem, pintei a minha alma com cores mais nítidas do que a apresentava primitivamente. Cf. LIII, IX, p. 278 Tenho-me livrado de tudo, [ele se refere à guerra] mas lamento que isso se deva ao acaso – e também a minha prudência – mas não a justiça. (grifo nosso)119 Cf. LII, XVII, p. 38-39 Quem desejasse saber a autoria dos versos que cito nesta obra, colocar-me-ia em grande dificuldade. Entretanto, não bati senão a portas conhecidas e célebres, não me contentando com o valor intrínseco do pensamento, mas cioso de que proviesse de quem o tivesse rico e honroso e cuja autoridade se juntasse à razão. Também em LII, X, p. 349 Quanto às razões, às comparações e aos argumentos que transplanto para meu jardim, e confundo com os meus, omiti muitas vezes, voluntariamente, o nome dos autores [...] (o grifo é nosso) 120 Cf. Friedrich, 1968 (p. 317)

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O tamanho da pretensão capciosa de Montaigne dá uma boa confirmação do

diagnóstico de Friedrich. Ele está ocupado da descrição humana, ao passo que

os demais procuram a verdade para educar; ele percorre um caminho diverso,

está em busca da descrição para só então descobrir algo da natureza humana.

Em qualquer caso poderíamos ter uma ordem direta, na qual o descobrir seria

posteriormente acompanhado da narrativa noticiosa do conhecimento, por

conseguinte seguida de algum procedimento pedagógico. Seu movimento é

mais original, pois descrever revelará, ou não, a capacidade de se conhecer o

homem.

Outros autores têm como objetivo a educação do homem; eu o descrevo. E o que assim apresento é bem malconformado. Se o tivesse de fazer, faria-o sem dúvida bem diferente. Acontece que já está feito. Os traços deste seu retrato são fiéis, embora variem e se diversifiquem121.

A autodescrição que por um lado se expressa recheada de pouca ambição, por

outro, no fim do fragmento, já apresenta sintomas de uma segurança adicional

de percurso. Ela manifesta que o seu traço é fiel, ou seja, pelo menos uma

descrição de natureza pode ser oferecida, não obstante, a cada momento.

Dessa maneira, os traços estão sujeitos a quantidades ímpares de variações e,

dentro delas ainda, há grandes diversificações. A segurança sobre a fidelidade

não põe de lado a qualidade da análise, ela não está isenta de dificuldades,

apenas aponta um caminho metodológico. As coisas mudam continuamente, o

que torna a fixação algo com dificuldades quase obstrutivas.

O mundo é movimento; tudo nele muda continuamente; [...] tudo participa do movimento geral e do seu próprio; e a imobilidade mesma não passa de um movimento menos acentuado. Não posso fixar o objeto que quero representar: move-se e titubeia como sob o efeito de uma embriaguez natural122.

Como resposta a esse movimento contínuo, a embriaguez natural do

movimento do indivíduo e do geral, temos um forte motivo que explica o

recurso ao ensaio, a tentativa contínua, a expressão e preferência por uma

busca pirrônica infatigável do quer que seja algo. O pressuposto da ignorância

relatada por Friedrich é o composto adicional.

121 Cf. LIII, II, p.153 (o grifo é nosso)122 Cf. LIII, II, p.153 (grifo nosso)

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A esse geral e particular que se movem continuamente dificultando uma

narrativa definitiva dos objetos, ele procede alguns recursos, dentro do ensaio

livre, com completa falta de pauta definitiva, mas articulada por um método,

uma certeza na qual prevalecerão tentativas de um ensaio de si que não

termina. Se connaître est plus urgent que connaître lês choses como um

movimento já bem conhecido da filosofia antiga123.

Os Ensaios se materializam como uma busca constante de apresentar algo em

face de tamanha fragilidade do juízo. O sistematismo não contém consistência

nem mesmo no sujeito, e por essa razão, quando vai aos objetos, o resultado

já é cativo de corrupção124. A imaginação trará embaraços tamanhos que a

qualidade do que seja estará sujeita a um ambiente indefinível. Observar e fixar

alguns acidentes, e pintá-los como aparecem num fragmento de momento, é

assim a alocução dos Ensaios.

Observo e anoto os diversos (a) acidentes que ocorrem dentro de mim e as (b) concepções mais ou menos fugidias que minha imaginação engendra, as quais são por vezes (c) contraditórias ou porque tenha mudado eu, ou porque o objeto da observação apareça dentro de um (d) quadro e de uma luz diferentes. Daí acontecer-me, não raro, cair em contradição [...] Se minha alma pudesse fixar-se, eu não seria hesitante; falaria claramente, como um homem seguro de si. (e) Mas ela não pára e se agita sempre à procura do caminho certo125.

Os acidentes, a contradição, o quadro de referência e a conclusão pela

pesquisa interminável passam pela marcação proposta acima. Podemos vertê-

las em conjunto (a, b, c, d, e) no quarto, quinto, sexto e oitavo tropos do

material suspensivo de Enesidemo126. Assim, o sujeito está constrangido a um

conjunto de afecções internas que deterioram as tentativas de fixação de algo,

some-se a isso a ação da imaginação, as contradições mobilizadas dessa

origem difusa e os infinitos quadros de referência nos quais o sujeito opera.

123 Cf. Friedrich, 1968 (p. 222)124 Cf. LII, XXVII, p. 73 Eu, que mais me preocupo com o alcance e o interesse de meus comentários do que com a ordem e a lógica da apresentação, não hesito em incluir aqui uma bela história, pois, quando valem realmente à pena, arrasto-as até pelos cabelos.125 Cf. LIII, II, p.154126 Woodruff, Paul. Aporetic Pyrrhonism. Oxford Studies in Ancient Philosophy, Oxford, Clarendon Press, V. 6, p. 139-168, Annual, 1988 (p. 154). O autor confere autoria aos Modos de Enesidemo e questiona alguns aspectos da originalidade de Sexto, bem como demarca um campo para o pirronismo aporético.

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Como portas de saída Montaigne têm a constatação quase infinita e ao mesmo

tempo momentânea da suspensão do juízo127.

A substância mais sistemática de aplicação cética em Montaigne está

concentrada no seu mais longo Ensaio, Apologia de Raimond Sebond – que

será bastante explorado nesse trabalho –, talvez por causa daquilo a que

propõe, qual seja, fazer a defesa de Sebond contra os ataques da razão128.

Considerando ao menos em termos temporais, as duas colunas do ceticismo

passam pelo crivo de Montaigne ao longo de boa parte dos Ensaios, contudo, a

atitude pirrônica é mais explícita que o conteúdo de viés acadêmico. Essa

divisão, notoriamente, não é muito pedagógica, mas podemos apresentar

esquematicamente o cético acadêmico como um indivíduo intoxicado pela

certeza de que não é possível se atingir o saber, ou, dito de outra forma, se

uma assertiva puder ser falsa, então ela não é conhecimento129.

Por sua vez, um pirrônico diria que isso é a demonstração da outra face do

dogmatismo, o de corte negativista, e que, portanto, nem isso é possível ser

afirmado. Segundo Striker, os acadêmicos nem sempre afirmam que não é

possível o conhecimento e que, logo, está mais inclinada a pensar que a

própria corrente cética pirrônica expressa mais uma school politics than of

differences in content130.

Os expoentes do ceticismo dito acadêmico e pirrônico são apresentados

indistintamente no trabalho, assim, podemos entender que Montaigne não se

aferra a esse tipo de demarcação131. Carnéades, Arcesilau, Cícero, Pirro e

Sexto Empírico entram de acordo com o curso dos Ensaios, mas são

oportunamente convocados na Apologia. Segundo Montaigne, o fundamento

das idéias humanas dogmáticas precisa ser derrubado, e para tanto ele não

127 Cf. LIII, II, 165 Luto na medida de minhas forças, [diante de mais uma metamorfose] mas sem saber até onde poderei chegar. O que quer que aconteça, entretanto, quero que saibam de que altura caí.128 Cf. LII, XII, p. 370 (Apologia de Raimond Sebond - Apologia)129 Striker, Gisela. Essays on Hellenistic Epistemology and Ethics. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. O trabalho dedica um capítulo especial a essa discussão, On the difference betwen the Pyrronists and the Academics. (p. 135-149) 130 Cf. Striker, 1996 (p. 136)131 Cf. LII, XXIX, p. 77 Pirro, num ensaio de título que remete a virtude, é alvo de uma pintura de conteúdo inverso.

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escolhe fixamente a maneira, vejamos então, inicialmente, parte da energia

desferida contra a opinião fundamentada:

É preciso dominar tão tola vaidade e solapar ousada e energicamente os fundamentos ridículos sobre os quais se erguem as opiniões errôneas132.

O ataque é coordenado de um jeito particularmente cético, ou seja, o golpe

sobre a tentativa ostensiva de se fixar um fundamento, não evidente, para a

explicação de um fenômeno. Sob a bateia do sistematismo, o extrato é capaz

de transmitir uma virulência de corte negativo, o que desenharia um Montaigne

Acadêmico. Todavia, a passagem abaixo pode enfronhar grande obscuridade a

esse tipo de divisão.

(a) O próprio Cícero, que aufere todo o seu valor de seu saber, principiava, em sua velhice (segundo Valério Máximo) a desprezar as letras. (b) Quando as cultivava, fazia-o sem optar por nenhuma solução, tendendo ora para uma seita ora para outra, segundo o que lhe parecia mais certo, (c) sem contudo se afastar da dúvida da Academia: ‘Vou falar, mas em nada afirmar; tudo investigarei, sempre desconfiado de mim mesmo’133.

Podemos ler o fragmento em pelo menos três direções diferentes. A primeira

onde Montaigne delinearia um Cícero pirrônico, francamente inclinado a não

cortejar as letras, lida como conhecimento, e que quando se aproximava, não

pendia para uma ou outra direção, numa postura de epoché. Na segunda

direção, em (b), Montaigne retoma a divisão clássica. Ao cabo, podemos

concluir que o tratamento dado não se fixa nas divisões esquemáticas, ainda

que ele empregue ocasionalmente mais ou menos a distinção de corte mais

nítido entre a vertente antiga e a de Cícero134.

Os dois últimos excertos removidos da Apologia têm conteúdo emblemático do

tipo de aplicação cética de Montaigne que poderia ser compreendida como

uma postura de ceticismo pirrônico com utilizações contextualizadas de feições

132 Cf. LII, XII, p. 410133 Cf. LII, XII, p. 419-420134 Dumon, Jean-Paul. Le Scepticisme et le Phénomène: essai sur la signification et les origins du pyrrhonisme. Paris: Librarie Philosophique J. Vrin, 1972. O emprego sistemático do material de Sexto o leva concluir por uma postura de respeito à fidelidade histórica. Cette distinction constitue, par l’insistance avec La maintient Montaigne, um retour décisif à la fidelité historique. (p. 42). Cf. LII, XII, 470 O próprio Montaigne apresenta a definição das correntes céticas. Ele faz menção, inclusive, a postura probabilística assumida em alguns momentos entre os acadêmicos.

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negativistas. Observando quadro a quadro a Apologia, talvez ele penda para

Sexto Empírico, conforme a intenção de Dumont, não obstante, esse trabalho

se aproxima da hipótese de que ele use a ambas indistintamente de acordo

com o resultado da pesquisa de si que deseja transmitir, face aos fenômenos

que verifica135.

O ceticismo de aplicação em Montaigne faz dele um tipo inovador pelo menos

na medida em que ostensivamente faz uso para narrar a si mesmo e, por

extensão, como percebe os fenômenos, como os pensa e como lhes pinta136.

Da tomada de posição na querela político-religiosa ele se pronuncia de fora da

vertente de Pirro, afinal, não será mil vezes preferível evitar um julgamento a

se meter em discussões fantasistas e puramente polêmicas?137 Como corolário,

temos que estão na disposição montaigniana tanto as fragilidades incontestes

do juízo acompanhados de uma pesquisa interminável via Ensaios, bem como

a aplicação útil dessa decisão diante da introdução violenta de questões

evidentes como a partição do agregado social francês138.

Podemos mesmo observar na passagem outra matéria, onde ele teria a

posição firme do lado da vertente sextiana, não obstante, essa leitura pode

facilmente ser fragilizada se de um lado descortinarmos a substância das

discussões fantasistas. Façamos a coisa de pelo menos um axioma básico: ele

135 Cf. LII, XVII, p. 28 Há pelo menos igual talento em dar realce a um assunto vazio de sentido quanto em defender outro de peso. Sugiro aqui um forte conteúdo de isosthenéia. Cf. LIII, XIII, p. 364 A atenção que de há muito aplico em analisar-me, habilita-me a julgar com algum discernimento. Pouilloux, Jean-Yves. Lironie Du Sort. In Montaigne et L’Histoire. Textes réunis par Claude-Gilbert Dubois. Paris: Editions Klincksieck, 1988. p. 91-101 A perspectiva do trabalho é historiográfica e introduz alguns dos temas que provocam as elaborações de nosso interesse. Montaigne va s’efforcer, en dépit de tout, en dépit de l’acharnement du sort (de la peste, de l’anarchie civile, de la confusion politique et religieuse) d’interroger l’énigme de l’histoire qu’il vit. (p. 92) 136 Cf. LII, XII, p. 466 E quem não entende de si, de que há de entender? [...] Não pode ser a medida de tudo já que não conhece a própria medida. Cf. LIII, XIII, p. 364 [...] E quando me esforço, poucas coisas me escapam das que se verificam ao redor de mim e possam auxiliar-me nessa tarefa: fisionomias, raciocínios, tendências. Tudo estudo: o que convém evitar e o que cumpre imitar. Cf. LIII, IX, 301 Gosto de andar dando cabriolas, à maneira dos poetas, que é ligeira, alada, demoníaca, como diz Platão. 137 Cf. LII, XII, p. 422138 Cf. Moreau, 1987 As próprias perturbações e desordens preparam uma sociedade em que as verdadeiras paixões religiosas e as convicções políticas se dissipam em uma elegante corrupção. (p. 13). Também em LI, XXIII, p. 128 [...] uma inovação que acaba por se impor pela violência [...]

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está ao lado do partido católico139. Se percebermos que na ocasião o lado

católico é apresentado como uma das partes nas fantasias em disputa, como

conseqüência, nós temos que ele está momentaneamente fora, pelo menos, da

vertente de Pirro de Élis.

A flexão de Montaigne verte a matéria cética ora por uma alça, ora por outra,

por si ou para si. Ele antecipa a confissão de ignorância num contexto menos

definido de disputa e, então, vejamos nisso uma última passagem dessa

definição do que chamo de ceticismo de aplicação.

Imagine-se uma contínua confissão de ignorância, um juízo sempre indeciso acerca de todos os assuntos, e ter-se-á a escola de Pirro. Se tento descrever como me é possível esse estado de espírito, é porque muitos não o percebem e mesmo os que escrevem a respeito fizeram-no com obscuridade, de diversas maneiras140.

ConhecimentoEssa posição de radical aplicação cética produz um relacionamento igualmente

antipático com o que seja o conhecer, tal como enfaticamente apresentado

pela ciência e filosofia dogmáticas observadas por Montaigne. O aparelho

cético está posto na obra de Montaigne num concentrado extraordinário contra

a razão e os seus hipotéticos operadores primaciais. No entanto, uma pausa

para a perspectiva de Villey pode ajudar na montagem de uma reflexão um

pouco mais calma.

Villey, um dos intérpretes de viés fasista ou etapista da obra de Montaigne, vê

o ceticismo como mais uma das múltiplas influências do gascão em direção a

um eterno auto-retrato, a pintura de si. E segundo essa perspectiva, Montaigne

foi se desenhando e, durante esse percurso, teria empregado autores à medida

que os lia, do mesmo modo com Sexto Empírico.141 Num parco resumo aqui da

139 Cf. LII, XIX, p. 51 É freqüente vermos as boas intenções, quando mal orientadas, provocarem os piores resultados. Nesse conflito que leva a França à guerra civil, o melhor partido, o mais justo, é sem dúvida o que tem como objetivo a manutenção da religião e do governo que existiam antes da perturbação da ordem. Ressalvados os exageros de conduta católica inclusive. (grifo nosso) Ver também: Burke, Peter. Montaigne. São Paulo, Edições Loyola, 2006. Trad. Jaimir Conte. (Col. Mestres do Pensar). 116 p. Montaigne não simpatizava com o protestantismo [...] (p. 42)140 Cf. LII, XII, p. 423141 Villey, Pierre. Os Ensaios de Montaigne, in M. de Montaigne, Ensaios, Brasília/São Paulo, Ed UnB/Hucitec, 1987, vol. 2. Trad. Sérgio Milliet. 1-78 p. Como acreditar que Sexto Empírico

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obra de Villey, podemos dizer que ele observa Montaigne por meio de uma

audaciosa cronologia: um período estóico, uma crise cética e a conclusão do

auto-retrato.

Podemos oferecer a essa tentativa, bem como a intentos correlatos de

disposição linear, algo que concorra a submeter boas narrativas sem fundo

cético. Para o gascão, qualquer espírito engenhoso é capaz de extrair de

frases simples um conteúdo disparatado do sentido original. A passagem é

pródiga pelo menos em convicção.

[...] (a) cada qual traz em si a causa das aparências. [...] (b) De quantas falsidades ou mentiras uma frase clara, pura e perfeita quanto possível, não é ponto de partida! [...] (c) Há tantas maneiras de interpretar, que é difícil, qualquer que seja o assunto, um espírito engenhoso não descobrir o que lhe convenha142.

(d) Vede como estudam e aprofundam Platão, cada qual se vangloriando de o ter a seu lado e interpretando a seu modo. Passeiam-no por todas as opiniões do século e obrigam-no a tomar partido. Forçam-no mesmo à contradição segundo as idéias em voga. [...] (e) Os pirrônicos teriam dito não saberem se [o mel] é doce ou amargo, se não é doce nem amargo, ou se é doce e amargo, pois chegam sempre à conclusão de que o ponto litigioso se presta a dúvida143.

Há um gosto inequívoco aproximado muito perifericamente de uma adesão as

correntes da filosofia e ciência no fragmento como também noutros momentos

dos Ensaios144. Não obstante, Villey observa pela margem de Montaigne,

parece tratar como diminuto o descaso e obstrução quase generalizada dos

movimentos da razão filosófica e científica. Uma questão pode introduzir o

desacordo com essa posição: por que então ele seguiria os Ensaios de acordo

com uma razão desarrazoada? A marcação dos Ensaios em tempos, épocas

onde ele estaria mais ou menos afeito a um ou outro pensador que estivesse

lendo, se rebateria, nessa perspectiva, dentro dos Ensaios. Entretanto, o andar

montaigniano é muito afeito a cabriolas145.

conduzirá, ele também, Montaigne à pintura de seu Eu? Plutarco trata de assuntos familiares, mas um filósofo apegado ao mais abstrato dos problemas filosóficos, o problema do conhecimento? Sexto parece dar as costas à direção que Montaigne segue. (p. 31) Villey, Pierre. Les Essais de Montaigne. Paris: Librairie Nizet, 1992 (189p)142 Cf. LII, XII, p. 490143 Cf. LII, XII, p. 491144 Cf. LII, XVIII, p. 49; Também em LI, XX, p. 92 145 Cf. LI, X, p. 58-59 O acaso é meu senhor: a oportunidade, a companhia, o próprio fogo das minhas palavras atuam sobre o meu espírito que produz então muito mais do que quando com ele me isolo, o consulto e o obrigo a trabalhar.

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Na anotação proposta, temos, pelo menos, uma forte amostra da aversão a

razão científica e filosófica dogmática. Estão presentes, ao menos diretamente,

a idiossincrasia, indeterminação causal, hipóteses, e uma forte alusão de

simpatia aos enunciados de preenchimento pirrônico. Essa proposta

externalista não é unânime e a corajosa tentativa de Villey não goza de

sucesso, por exemplo, na interpretação de Hartle e Schaefer146. Sobre o

registro temporal, a resposta de Schaefer, que procura uma clara postura

política de Montaigne nos Ensaios, traz mais concordância com as cabriolas

montaignianas. Ante a sugestão dos tempos estóicos da obra de Montaigne, o

início do desmonte acontece da seguinte maneira nas grevas de Schaefer:

It is not difficult to find a multitude of instances where the text of the Essays contradicts Villey’s interpretation. On the one hand, many of the chapters that Villey assigns to Montaigne’s early period contain thoughts he attributes to the ‘late’ Montaigne147.

A interpretação de Villey parece desprezar a endêmica componente cética na

observação dos fenômenos do sujeito analisados por Montaigne148. A posição

de Montaigne com relação à ciência e filosofia dogmática é obstruída se o

colocamos a sofrer passivamente a influência coordenada e linear de Plutarco

ou Sêneca com efeitos nos Ensaios149. A montagem do conhecimento em

Montaigne passa pela tentativa de observar fenômenos internos e só então

146 Hartle, Ann. Michel de Montaigne: Accidental Philosopher. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. Villey’s thesis may capture something of the changing tone of the three books [periodo estóico, crise cética e auto retrato], but it cannot stand as an accurate account of Montaigne’s thought, even if one believes him to be simply a philosophical follower, for he quotes dozens of philosophers with apparent approval throughout all three books. (p. 11) Schaefer, David Lewis. The Political Philosophy of Montaigne. Ithaca and London: Cornell University Press, 1990.147 Cf. Schaefer, 1990 (p. 26)148 Cf. LI, III, p. 39 Nunca estamos em nós; estamos sempre além. [...] é necessário adquirir antes de mais nada o conhecimento de si próprio e daquilo a que está apto. Ver também a figuração do eu, em: Marin, Louis. L’ecriture de soi. Paris: Presses Universitaires de France, 1999 (p. 113-125)149 Cf. LII, XII, p. 457 Não querem pronunciar-se francamente acerca da ignorância e da fragilidade da razão humana para não fazer medo às crianças, mas as revelam suficientemente sob a aparência de sua ciência confusa e contraditória. Cf. LII, XII, p. 457 Direi o mesmo da filosofia. Tem tantas formas diferentes e tanto falou, que abarcou todos os nossos sonhos e devaneios. A fantasia humana nada mais pode conceber que não se depare nela: ‘nada se dirá, por mais absurdo, que não tenha sido dito por algum filósofo’. (o fragmento em aspas é de Cícero). Isso me proporciona maior liberdade ainda para divagar publicamente, tanto mais quanto, embora emanando de mim só, e sem que ninguém mos tenha sugerido, meus propósitos terão sempre alguma relação com outros já mantidos e não faltará quem diga um dia: eis de onde os tirou. Ainda em LII, X, p. 349

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externos. As experiências generalizadas dos sujeitos e a sua própria confecção

de conhecimento são determinantes para tomada de decisão na vida ordinária,

pois é o que importa para uma vida sem a perturbação promovida pelas

especulações sobre a verdadeira natureza das coisas150.

Fenômenos internos e externos podem ser relidos numa matriz cética,

apresentados como uma plataforma da qual poderemos traduzir o

conhecimento de corte dogmático pelo seu entendimento como mera opinião. A

natureza e o acaso assumem papel determinante na perspectiva montaigniana.

O conhecimento de percurso dogmático é mais uma das asserções justificadas

com o mesmo peso das asserções injustificadas. As primeiras estão baseadas

em hipóteses que são passíveis de assertivas radicalmente antagônicas se

erguidas pelo mesmo caminho cognitivo, assim especialmente as que almejam

o estatuto de regras gerais. Finalmente, para Montaigne, a certeza absoluta, a

fantasia e a insegurança andam juntas. Assim sendo, acredito que depois dos

excertos podemos seguir sem o empréstimo de Villey.

Minhas idéias são o que as fez a natureza. Para formá-las procurei não seguir nenhuma regra; [...] A que doutrina se ligam? Só o soube depois de as expor e julgar do resultado: pertenço a uma nova espécie, sou um filósofo que se tornou filósofo por acaso e sem premeditação151.

Aos que, para combater, se apóiam em hipóteses, cumpre opor como axioma as teses contrárias àquelas acerca das quais se discute. Todas as que o homem é capaz de imaginar podem emitir-se; têm todas igual autoridade, se entre elas a razão não estabelece uma diferença. É preciso, pois, compará-las; e antes de tudo as que se apresentam como regras gerais e pesam mais. Querer chegar a uma certeza absoluta é, até certo ponto, prova de loucura e de extrema insegurança152.

Tentativas de forjar algum mapa das operações daquilo que pensa Montaigne

com respeito a algum tipo de produto dogmático devem obedecer ao mínimo

de observância com relação à vertente freqüentada por Pirro153. A formação

das idéias para Montaigne tem como ponto de partida um fundamento possível

150 Cf. LIII, XII, p. 334 Não precisamos de muita ciência para vivermos satisfeitos.151 Cf. LII, XII, p. 453152 Cf. LII, XII, p. 457153 Cf. Hartle, 2003 O trabalho marca três aspectos que conduzem ao tom cético dos Ensaios: o elogio da diversidade de opiniões, o senso comum cético e moderação com relação a idéias diferentes e, finalmente, a reiterada fala elogiosa ao ceticismo. (p. 13)

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em pelo menos três fontes, todas essas sob ordenação pouco nítida: a

operação dos sentidos, a operação da razão e a interferência da paixão154.

A soma da aplicação dos sentidos e das operações da razão sofrerá a

interferência contínua de uns cem números de afecções definidas como

paixão155. Essa notação será capaz de produzir, no ponto de chegada, uma

infinita quantidade de idéias dessemelhantes. A conclusão é pelo menos

diafônica, o que sobra para o conhecimento de matriz dogmática é resultado de

profecia e das adivinhações156.

No lugar do conhecimento erguido sob hipóteses, premissas, petições de

princípio e o convite a autoridades de outros autores, ele promoverá um

julgamento livre e permanente157. A razão e os sentidos são as principais

motivações para uma postura experimental, tal como preconizada por

Montaigne. Uma das explicações não poderia ser menos cética: a razão não se

abate diretamente sobre as coisas, ela é guiada pelos sentidos e estes, apenas

operam pelos objetos que conseguem captar158.

Assim tem-se que os objetos se apresentam aos sentidos, aos que os homens

possuem, e da recepção se dirigem então a razão, esta que finalmente, quando

vai comunicá-los, o faz pelos sentidos. O processo racional de interpretação do

mundo exterior começa e termina pelos sentidos. O homem está condicionado

154 Cf. LII, XII, p. 475155 Sugiro aqui simplesmente a operação orgânica das faculdades sensitivas do indivíduo. Essas faculdades são aqui observadas por Montaigne, conforme sugerimos, segundo os tropos do sujeito e objeto do material de Enesidemo. E sobre a razão, sugiro os seguintes fragmentos: Cf. LII, XII, p. 472-473 Razão: (1) aparência de juízo que cada um forja em si mesmo (2) e que a respeito de um mesmo assunto pode levar a cem apreciações diversas e contraditórias, (3) instrumento feito de chumbo e cera, que se estica e dobra (4) e se ajeita a todas as circunstâncias, a todos os compromissos, (5) e que um pouco de habilidade basta para levar a amoldar-se a quaisquer moldes. Ainda em LI, XXIII, p. 118 [...] A razão humana é um amálgama confuso em que todas as opiniões e todos os costumes, qualquer que seja a sua natureza, encontram igualmente lugar. Infinita em sua matéria, infinita na variedade de formas que assume. (os grifos são nossos)156 Cf. LII, XII, p. 475 157 Quesnel, François. Montaigne. Publicado na web, Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2004. (p. 3-6) Disponível em <www.seop.leeds.ac.uk/montaigne/> Acessado em 10/2006. 158 Por ordem de entrada, sugiro os seguintes fragmentos: Cf. LII, XII, p. 491 Esta dissertação induziu-me a considerar os sentidos a grande causa e a prova, a um só tempo, de nossa ignorância. Cf. LII, XII, p. 491-492 São a via pelas quais a evidência penetra no santuário do espírito humano. Cf. LII, XII, p. 492 Não me parece seja o homem provido de todos os que existem na natureza.

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a essas limitações, não chegará à essência ou a verdade sobre o que quer que

seja, pois os objetos se apresentam sempre sobre disposições enviesadas ou

estranhas ao seu equipamento perceptual159.

O exercício de buscar a verdade absoluta será apresentado como uma

atividade de prestidigitação, onde o formato terá mais a dizer do que o

conteúdo160. A experiência do sujeito lhe basta, já que a verdade e o

conhecimento não se abatem igualmente sobre todos os indivíduos com

mesma forma e conteúdo, cada qual o receberá de um modo único161. Dessa

maneira, com um conhecimento da verdade se abatendo com uma grande

diversidade de formas, o que se produz é uma verdade atenuada e

idiossincrática162.

Dessa posição podemos refinar algumas conexões, das quais, convém

destacar, pelo menos rudimentarmente antecipadas: a substituição da verdade

e do conhecimento pela opinião, o pensamento livre no lugar da busca de

universais. Pelo menos mais um pequeno excerto dos Ensaios pode tornar

menos inóspito o que pensa Montaigne do homem em geral e também daquilo

que constitui a porta de saída do seu labirinto cético para os propósitos desse

rápido ensaio no que diz respeito à reflexão.

Parece-me que a origem dos maiores erros de nosso julgamento, tanto do indivíduo como da massa, e o que nos mantém vivos, é a opinião demasiado favorável que o homem tem de si. Esses sujeitos que cavalgam a órbita de Mercúrio e vêem tão claramente o que ocorre no céu, fazem-me dar de ombros163.

159 Cf. LII, XX, p. 54 A fraqueza de nossa condição faz que não possamos apreciar as coisas em sua simplicidade e pureza naturais [...]160 Cf. LIII, VI, p. 228 É fácil verificar que os grandes autores, ao tratar das causas de tais ou quais fatos, não se referem apenas às que acreditam serem verdadeiras, mas também às que não imaginam justas, conquanto comportem alguma beleza e invenção. Dir-se-ia que pensam expressar-se de maneira útil e certa desde que expresse com talento. Não podendo estar seguros da causa principal, enumeram umas tantas outras, na esperança de que se encontre por acaso entre elas [...]161 Sugiro as seguintes páginas e fragmentos: Cf. LIII, XII, p. 332, 333, 334 e 338. Cf. LIII, XIII, p. 354, 355 (O que encontramos nas coisas mais semelhantes é a diversidade, a variedade), 362 162 Cf. LIII, XIII, p. 356 Sabemos por experiência que a pluralidade de interpretações dissipa e desagrega a verdade.163 Cf. LII, XVII, p. 25

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Da passagem temos uma origem desordenada e difusa produzindo um efeito

benéfico para o agregado humano. A arrogância da razão humana produzindo

algo fora do seu controle, o efeito não tem nada haver com a causa, a

manutenção do ordenamento e a preservação da massa dependendo ainda da

intervenção do julgamento. O que Montaigne antecipa indiretamente na

passagem é a motivação particular desejando vaidosamente interferir no

agregado, em outros termos, a ingerência humana sobre a melhor maneira de

se promover a organização social e religiosa.

ReligiãoA opinião e o pensamento livre operam sobre um referencial claro no

pensamento de Montaigne, eles estão represados na experiência aceita pela

sociedade. A opinião coletiva sobre as referências sociais serão o guia

privilegiado das ações de modo que um produto intelectual, seja ele originário

da opinião do vulgo ou na do filósofo, não sobrepõe outro. Por opinião coletiva

podemos ler o estatuto do hábito e da tradição, o efetivo uso, aquilo que está

em curso entre as práticas sociais são o invólucro, o amálgama da sociedade.

Aquilo que a sociedade compreende habitualmente como aceito para as

práticas diárias são o guia seguro e isento ante as perturbações vaidosas e

precipitadas dos dogmáticos.

A ontologia montaigniana pode ser lida numa perspectiva agostiniana, tal como

lembrado por Friedrich, disso a uma antropologia escrita pelo ensaísta que põe

o homem rebaixado, sobretudo num momento onde é este mesmo homem e

sua vaidade que inflamam e colaboram para a partição do agregado

humano164. Vista pelo momento de crise e disputa de dois partidos religiosos de

plataformas pouco distintas, aquilo que o uso corrente consagrou, na visão do

perigordiano, é o insólito critério capaz de resolver ou aplacar a ambição

vaidosa da verdade preconizada pelos reformadores165.

164 Agostinho, Santo. Confissões. São Paulo, Editora Nova Cultural, 2004 (p. 263) Há, porém, coisas no homem que nem sequer o espírito que nele habita conhece. Mas Vós, Senhor, que o criastes, sabeis todas as suas coisas. Cf. Friedrich, 1968 (p. 120)165 Birchal, Telma de Souza. Fé, Razão e Crença na Apologia de Raymond Sebon? Somos cristãos como somos perigordianos ou alemães? Kriterion, Belo Horizonte, n. 111, 2005, p. 44-54 (p. 48)

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Dessa posição de Montaigne emerge então uma refletida e ostensiva adesão

pela religião e partido católico, face ao absurdo humano trazido pela razão,

dessa vez erguida com pretensão de reformar aquilo que é evidente pelo seu

termo rival166. O predomínio dessa razão que deseja transformar, em termos

concretos, claramente leva ao estado de doença daquilo que é um corpo

concreto e de vida sadia se guiado pelo hábito. O que Montaigne observa no

homem constitui um corpo frágil e débil, operado pela razão pesquisadora

inclinada a ficções e quimeras protagonistas de efeitos devastadores, pois

desejar definir e abarcar o que é e deve ser seguido pela massa traz sim a

capacidade de uma ampla e irrestrita perturbação167. Dito de outra maneira,

aquilo que é informe, desejando reconformar algo já conformado e consagrado

pela sociedade, ou ainda, o desordenamento esperando aplicar o seu inverso,

o ordenamento social. Defronte a isso cabem pelo menos duas perguntas

percussivas.

Poremos fim algum dia a essa mania de interpretar? Teremos feito algum progresso no caminho da tranqüilidade?168

O experimento humano pode caminhar sem a submissão a uma experiência

ontológica meramente privada, dessa maneira, ouvir a experiência em curso na

comunidade, aquela condição estatuída e que preserva o corpo público, é

primordialmente o que deve pautar uma vida sem perturbações de efeitos tão

incontroláveis169. A insistência na revelação da verdade por meio de um

intérprete operado pela razão quimérica, a declarar os reais desejos divinos, é

algo pelo menos bizarro para uma natureza humana tão corrompida. Pois uma

discussão binária e idiossincrática sobre aquilo que é aceito no público, é, ao

menos, uma discussão de fundo racional170.

166 Cf. Birchal, 2005 A aceitação da autoridade da Igreja funda-se, de forma mais geral, numa reflexão sobre os poderes da razão e de seus limites, o que se revela claramente no título de um de seus capítulos: ‘É loucura condicionar ao nosso discernimento o verdadeiro e o falso’. (p. 51) Cf. Birchal, 2005 Submeter os dogmas da religião ao crivo da razão significaria uma ignorância maior: a ignorância de si mesmo, ou dos limites da razão. (p. 52)167 Cf. LIII, XI, p. 331 Todos esses exemplos confirmam o que disse a princípio; que a procura da causa se antecipa por vezes em nós à constatação do resultado e isso vai tão longe que chegamos a julgar não o que existe, mas o que não existe. (grifo nosso) Eva, Luis. A. Sobre as Afinidades Eletivas Entre a Filosofia de Francis Bacon e o Ceticismo. Kriterion, Belo Horizonte, nº 113, Jun/2006, p. 73-97 (p. 85)168 Cf. LIII, XIII, p. 356169 Cf. LIII, XIII, p. 362170 Cf. Popkin, 1996 (p. 2)

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O ponto impõe uma rápida pausa. O tópico colocado por Montaigne, hoje, pode

incitar pelo menos uma fúria anacrônica, contudo, convém sublinhar, uma

posição de moderação e adesão aos costumes, em quase nada lembram as

posturas e identidades políticas dicotômicas em curso. A conservação no seu

trabalho se coloca para a manutenção da vida, o que ele preconiza são os

particulares, a adesão e respeito ao conteúdo da religião consagrada por uma

comunidade171. Tal preconização poderia ventilar, em tese, algo

contemporâneo como um princípio de autodeterminação dos povos172.

Decisões intelectuais sobre a verdadeira relação com Deus rendem-se a

dogmatismos de efeitos humanos deletérios na religião, na sociedade e na

política173. Assim, a conservação do agregado se dá pela moderação como

critério adequado a manutenção do uso ante a verdade ou essência universal

teológica, filosófica ou científica174. Isso, se temos em vista que a precipitação

dogmática se manifesta, ao tempo montaigniano, pela eliminação prática e

casuística, pois é idiossincrática, do seu adversário175. Voltemos ao ponto.

Tal discussão só pode ser cativa de mau gosto e extravagâncias, o que justifica

pelo menos a concentração nos seus próprios ensaios. Contudo, a capacidade

de refletir, dada pela natureza, o impele a um senso de identidade social e

política, assim, os próprios Ensaios podem contribuir para aplacar a nutrição da

arrogância176.

171 Cf. LIII, I, p. 147 Minha palavra e a confiança que possa inspirar pertencem, como tudo o que há em mim, à minha comunidade.172 Cf. LIII, IX, p. 294 Envergonho-me com ver meus compatriotas hostilizarem e criticarem os costumes contrários aos seus; parece-lhes estar fora de seu elemento, mal saem de sua aldeia. Ainda em: LI, XXIII, p. 122 Os povos, afeitos à liberdade e a se governarem por si mesmos, encaram qualquer outra forma de governo como monstruosa e contrária à natureza.173 Decisões mobilizadas pelos intelectuais na política tais como desenhados por Tocqueville séculos depois de Montaigne. Tocqueville, Alexis. O Antigo Regime e a Revolução. São Paulo, UnB/Ucitec, 1989. 3 ed. (p. 143) 174 Cf. LIII, I, p. 144, 145 (Nada impede que inimigos leais se conduzam de maneira sensata. Tratemos com igual moderação, senão com idêntica afeição – pois esta pode realmente variar – e não nos dediquemos a ninguém a ponto de lhe dar o direito de tudo exigir de nós.), 152 e 153 (... atentemos para exemplos mais humanos).175 Cf. LIII, IX, p. 282 Mil vezes vi-me recolhido em minha residência a imaginar que, naquela noite mesmo, seria vítima de alguma traição e trucidado; e pedia ao destino que isso acontecesse sem delongas inúteis e sem que eu me sentisse amedrontado.176 Cf. LII, XVIII, p. 47

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A fim de forçar nossa imaginação a pôr ordem no próprio devaneio e conduzi-la na direção de dados objetos, impedindo-a de se perder em extravagâncias, nada melhor do que desenvolver as idéias ocasionais. É o que faz que dê atenção às minhas, pois impus a mim mesmo consigná-las em meus escritos177.

Apresentada uma de suas motivações para a confecção dos Ensaios é

imperativo narrar como a reflexão de Montaigne se posta analiticamente diante

da querela religiosa levantada. Se pensarmos a partir de pelo menos um

pressuposto, no qual temos que há uma controvérsia em curso, disso se

imporá que deve haver uma solução. A sugestão forte de Montaigne é uma

solução pela moderação, a calma e, preferencialmente, que se acomodem a

diversidade de opiniões, ou noutra chave, a diversidade de crenças justificadas.

A solução é pela vertente de Pirro.

Uma vez que o edifício da razão está erguido sobre um alicerce viciado, os

sentidos, de onde se começa e se finda o conhecimento dos objetos exteriores,

se temos assim estrutura comprometida, todo o prédio está por desabar178. A

querela então pede um juiz, alguém que decidirá o objeto em questão. Isso

introduz a passagem abaixo pelo menos como cavilosa e empresta ao

ceticismo apelidos como o de máquina de guerra179.

Dizemos que quando se trata de controvérsias religiosas seria necessário um juiz neutro, isento de preconceito ou preferência, o que não se encontra entre os cristãos. [...] Fora preciso alguém que nunca tivesse estado em nenhum desses casos para que se pronunciasse sem prevenção por uma ou outra das diversas opiniões em presença. Ora, um juiz desse tipo não existe180.

Da passagem podemos perceber pelo menos uma posição contra o próprio

campo em disputa, já que entre os cristãos não há sequer um indivíduo

equipado e isento de preconceito e preferência. Os dois lados são tragados

pela análise montaigniana, ele pega com a mesma bateia os reformadores e

contra reformadores181. Mais do que isso, a passagem, entre tantas de igual

obscuridade, apresenta como conclusão evidente pelo menos uma questão:

177 Cf. LII, XVIII, p. 49 (o grifo é nosso)178 Cf. LII, XII, p. 501 179 Cf. Popkin, 1996 (p. 26)180 Cf. LII, XII, p. 501 (o grifo é nosso)181 Cf. LIII, IX, p. 300 Nessas dissensões que nos perturbam e fizeram da França a presa dos partidos, cada qual (mesmo os melhores) defende sua causa com dissimulação e mentira.

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Montaigne não está ao lado da religião católica? Deixemos a resposta em

suspenso e vejamos mais uma pequena passagem de conteúdo suspensivo

por meio da regressão ao infinito.

(a) Para aquilatar da aparência das cosias, precisaríamos de um instrumento aferidor; para controlar esse instrumento necessitaríamos de experiências e mais um instrumento para comprová-las. (b) Se os sentidos não podem decidir serem imperfeitos, é preciso que a razão decida. Mas nenhuma razão se aceitaria sem que outra lhe demonstrasse a validez; e eis-nos de volta ao ponto de partida182.

Os dois pontos destacados prestam-se ao mesmo efeito, qual seja o de

conduzir a isosthenéia. A invenção de uma máquina de decisão isenta de

defeitos humanos, para assentar sobre impasses humanos haveria de ser

aplicada por eles, o que comprometeria o uso e o resultado do equipamento,

desse modo pendendo para um dos lados. Como alternativa, o recurso a uma

razão humana traria consigo o problema da demonstração suscetível de ser ou

não aceita por uma outra razão. Essa razão, se humana, não se encontra

dentro ou fora do universo cristão, já que não existe um juiz sem prevenção.

Como resposta a pergunta levantada anteriormente, temos que a resposta é

preliminarmente sim183. Ainda que todo material bélico aponte para católicos e

huguenotes, o recurso a suspensão do juízo, via eqüipolência, para ambos os

lados deseja a promoção da moderação. A virulência cética está postada

contra o despautério humano, a anomalia, a intolerância exibida pela guerra

civil184. O aparelho cético foi empregado por ambos os lados em disputa, o que

gera então uma aquecida dúvida se de fato ele é um católico185. Podemos

concordar que em sendo, ele é de fundo racional, pois é depois de um longo

percurso da reflexão que ele conclui pelo catolicismo.186

182 Cf. LII, XII, p. 501. (o grifo é nosso)183 É o que pensa também Weiler. Weiler, Maurice. Para Conhecer o Pensamento de Montaigne, in. M. de Montaigne, Ensaios, Brasília/São Paulo, Ed. UnB/Hucitec, 1987, vol. 3. Trad. Sérgio Milliet. 1-132 p. [...] não é necessário acreditar que tenha mentido quando se disse bom católico. Sem dúvida imaginava sê-lo. (p. 55); Também Cf. LIII, X, p. 313 Nas agitações que perturbam atualmente o país, meus interesses não me fazem desprezar as qualidades louváveis de meus adversários nem ignorar os defeitos de meus correligionários. 184 Cf. Skinner, 1996 (p. 552-555)185 Cf. LIII, I, p. 144 […] pois entendo não ser escravo senão da razão, e ainda assim mal o consigo. 186 Cf. Weiler, 1987 (p. 55)

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Resultam dessa perspectiva de Montaigne as considerações sobre o fideísmo

cético187. Como a religião e a fé pertencem a domínios distintos, ao céu e a

terra, a discussão racional pode passar ao largo de considerações sobre a

revelação. É o domínio racional o vetor que opera a doença do século de

Montaigne, ou pelo menos uma fé fraca e humana, quem deflagra a guerra

civil, sendo assim, ambos os lados podem perfeitamente ser atacados188. O

emprego do pirronismo serve como elemento capaz de arrefecer, curar a

patologia do século, ele constitui o antídoto contra a depauperação do

agregado189. Noutra ponta, isso não impede que Montaigne conserve sua fé e

sua devoção a religião conforme a liberdade que a sua comunidade lhe dá190.

A manutenção da defesa do catolicismo e da conservação tem preocupação

diretamente associada à pretensão corretora e conversora presentes na letra

reformadora que impele e agita191. Os efeitos imediatos dessa disputa fazem

Montaigne se perder para levar alguém à perdição, portanto, ele sai do seu

caminho habitual, para entrar no berço da disputa.

Quanto ao método de discussão que venho empregando, cumpre só recorrer a ele em última instância; é em caso de desespero que largamos nossas próprias armas para usar as do adversário; é golpe secreto que cabe utilizar raramente e com discrição192.

Com a passagem podemos afirmar com mais segurança que a preocupação de

Montaigne não se reduz a um auto-retrato. Há uma preocupação fina com a

filosofia e os seus vínculos com a vida em curso. A observação internalista por

uma lado é perceber a limitação de si, por outro, compreender o meio.

Montaigne não faz que fale a loucura como teóloga ou intelectual tal como

Erasmo193. Mas promove a comunicação de uma razão limitada, incrustado

187 Cf. Popkin, 2000. Também em Brahami. Brahami, Frédréric. Le scepticisme de Montaigne. Paris: Presses Universitaires de France, 1997 (p. 29-33, 73-79)188 Cf. LII, XXIX, p. 80. Cf. LIII, X, p. 313 […] uma obra não perde seus méritos só porque foi escrita contra mim. Salvo quanto à razão essencial do debate (pois sou e continuarei católico), mantenho-me equânime e indiferente: fora das exigências da guerra, não desejo nenhum mal a meus inimigos.189 Cf. LII, XXVII, p. 70 Nossa conduta atual leva-nos a buscar a morte de quem ofendemos da mesma forma que buscamos a de quem nos ofende.190 Cf. LII, XVII, p. 41191 Cf. LII, XXIX, p. 77192 Cf. LII, XII, p. 466193 Rotterdam, Erasmo de. Elogio da Loucura. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo, Editora Martins Fontes, 2000 (p. 66-67)

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pelo ceticismo, ou por um pirronismo católico, como aventa Popkin, capaz de

um amplo relacionamento intelectual com o tema da política e religião.

Aplicação [...] pois não dou nenhuma garantia do que digo, a não ser a de que o tinha na cabeça, embora confusamente, ao escrever194.

Apresentado como cético, perfilando o seu relacionamento com o

conhecimento e a religião, cabe aqui ainda uma breve nota de aplicação do

pensamento de Montaigne. Ele pode nos conduzir para várias direções em

suas reflexões, o que faz dele, não raro, um pensador cortejável195. O trabalho

de Friedrich nesse aspecto é angular ao explorar a inteligência de

Montaigne196. No entanto, nos interessa destacar nesse ponto, um emprego

livre da reflexão sobre si, onde introduz o que pensa por inteiro ou pelo menos

em parte de maneira capciosa.

Antecipamos a sua disposição por um andar simpático a saltos e desvios197.

Exploremos um pouco mais disso que aparece. A decisão de escrever pode ter

diversas origens, contudo, uma pergunta pode nos ajudar: por que ensaiar-se?

Se filosofar é conhecer-se, o que temos é parte da resposta. Em seguida, o

encontro com a tradição filosófica antiga e uma disposição original faz que

comece então alguma metodologia198. Façamos apenas uma rápida pausa para

uma comparação que pode aproximar Montaigne de outra fonte que não

apenas Sexto:

1. Sofro com meus concidadãos da mesma carência no que se refere a esse assunto, e me censuro a mim mesmo por não saber absolutamente nada sobre a virtude. E, quem não sabe o que uma coisa é, como poderia saber que tipo de coisa ela é?199

2. [...] Como saber se uma coisa se assemelha a outra cuja essência desconhecemos?200

194 Cf. LIII, XI, p. 331195 Villey investiga se o perigordiano influenciou Bacon. Villey, Pierre. Montaigne et Fraçois Bacon. Geneve: Slatkine, 1973 (109p)196 Cf. Friedrich, 1968 (p. 317-339)197 Cf. LII, X, p. 349 (Só o acaso guia meus passos na escolha de meus assuntos), 350198 Cf. LII, X, p. 350 Quase não leio livros novos; prefiro os antigos que me parecem mais sérios e bem feitos;199 Platão. Menon. Rio de Janeiro, Editora PUC/Rio e Loyola, 2001 (p. 21) (o grifo é nosso)200 Cf. LII, XII, p. 470 (o grifo é nosso)

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2.1 Mas como podem a alma e os sentidos assegurar-se da exatidão da semelhança?201

Platão é uma das fontes reiteradamente citadas no seu trabalho202. Na

passagem acima o grego passa pelo sofrimento da ignorância com rebatimento

sobre seus concidadãos, o que parece, o estimula a conhecer a virtude. Não

sabe o que seja e, portanto não pode proceder por analogia, ou qualificar o

objeto. Na seqüência Montaigne apresenta o mesmo sofrimento de Platão com

relação ao conhecer. Dessa forma, podemos aproximar ambos de um desejo

em comum: uma busca filosófica da propriedade ou impropriedade das coisas

com vistas a sanar a ignorância e sofrimento a começar por si, além da já óbvia

possibilidade da suspensão do juízo ou da manutenção da pesquisa203.

Decorre então que, se lembrarmos que o tema da ignorância em Montaigne é a

plataforma de sua reflexão, tal como antecipamos em Friedrich, e que há um

fenômeno concreto que mobiliza parte dos seus Ensaios, temos como corolário

que o gascão ensaia para conhecer o que ignora em si e também sob a

preocupação com o sofrimento com a sua comunidade204.

Se combinarmos então ignorância, a pesquisa de si e uma atitude pela sképsis,

o ensaio se apresentará para Montaigne como uma metodologia em

construção, que, segundo Frame, ele descreve, mas nunca define e que, ao

cabo, o seu livro é a própria definição205. O ensaio é uma aplicação ostensiva

de uma pesquisa inovadora pelo objeto e pelo meio206. Para Frame o ponto se

expressa da seguinte maneira:

201 Cf. LII, XII, p. 501 (o grifo é nosso)202 Cf. LII, X, p. 353 [As idéias de Platão] estão isentas de exagero e se acomodam à sociedade tal qual é. Também em LII, XI, p. 360 Seu raciocínio era tão perfeito, e tal seu domínio sobre si mesmo, que nunca deve ter nele o menor apetite repreensível. (os grifos são nossos)203 Cf. LII, VI, p. 326 De que fala Sócrates mais abundantemente que de si próprio? Para que encaminha suas conversações com seus discípulos, senão para as suas pessoas? E nunca uma lição dos livros mas para os movimentos da alma e do ser. (grifo nosso)204 Cf. LIII, IX, p. 271 Facilmente me consolaria dessa corrupção tendo em conta o interesse geral: [...] mas no que me diz respeito sofro demasiado; Cf. LIII, I, p. 147 Minha palavra e a confiança que possa inspirar pertencem, como tudo o que há em mim, à minha comunidade. (grifo nosso)205 Frame, Donald. Montaigne’s Essais: A Study. New Jersey, Prentice-Hall, 1969. 206 Cf. LII, VI, p. 327 Eu me mostro por inteiro [...] Não são apenas meus gestos que descrevo, sou eu mesmo, é a minha essência.

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[...] and that Montaigne seems to have had two main overlapping meanings in mind, related to this subject of self-study, of which the Essais were rather the method than the vehicle: tests or trials of his judgment, the instrument of self-study; and probings and samplings of that self207.

Montaigne se aplicará na busca do auto conhecer a partir de uma atenção ao

juízo, e de sua existência a sua capacidade ou não de se manter uniforme, de

se estabelecer ou não alguma constância para tirar dele alguma referência

segura ou mesmo a verificação de algum conhecimento, em face da

antecedência da ignorância208. Para a apresentação dessa aplicação, ou dos

seus resultados parciais, prefere não apenas os tropos do ceticismo grego,

mas também seu vocabulário capaz de mitigar a certeza.

Eu chego a odiar as coisas verossímeis se me são apresentadas como infalíveis, e prefiro as expressões que atenuam a audácia da proposição, como, por exemplo: ‘talvez, até certo ponto, dizem, penso’, e outras do mesmo gênero209.

[Referindo-se aos Pirrônicos] Suas expressões habituais são: ‘não pretendo ter estabelecido’, ‘não há mais razões para que seja assim do que de outro jeito’, ‘não percebo’, ‘as aparências são iguais em um caso como noutro’, ‘não há como falar mais a favor do que contra’, ‘nada parece verdadeiro que não possa ser falso’. Sua palavra sacramental é ‘sustento’, isto é, ‘argumento, mas não vou além e não julgo’. Eis seus estribilhos210.

As passagens sugerem pelo menos duas portas de saída por onde se vertem

as análises ou as parcelas de resultados da aplicação de Montaigne. Na

primeira, sua pesquisa é capaz de dialogar com outros resultados, desde que

sejam comunicados com radical arrefecimento das pretensões definitivas,

libertas das expressões que estabelecem. Pesquisador obstinado e senhor de

um objeto definido, demonstra que domina, claramente, quais são as

capacidades e limitações intelectuais, bem como os tipos de percursos

207 Cf. Frame, 1969 (p. 3) (grifo nosso)208 Cf. LII, X, 351quanto a fraqueza de meu juízo, reconheço-a e a confesso. Cf. LII, X, p. 349 […] a idéia que desenvolvo [...] é sempre minha. Cf. LII, XII, p. 471 […] nosso julgamento não tem fundamento sólido. Quantas vezes julgamos diversas vezes as coisas? Quantas vezes mudamos de idéias? O que hoje admito e creio, admito e creio na medida do possível. Também em LII, XII, p. 476 Conhecendo a instabilidade de meu julgamento, reagi e, excepcionalmente, cheguei a uma certa continuidade de opinião, conservando ou menos intatas as que a princípio tivera. Cf. LII, X, p. 348, Quem busca sabedoria, que a busque onde se aloja; não tenho a pretensão de possuí-la. O que aí se encontra é produto de minha fantasia. Ainda em LIII, XI, p. 327 Quem deseja curar-se de sua ignorância precisa confessá-la. [...] e há tanta ciência em conceber essa ignorância como em conceber a própria ciência. (os grifos são nossos)209 Cf. LIII, XI, p. 327 (grifo nosso)210 Cf. LII, XII, p. 423 (grifo nosso)

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cognitivos empregados na pesquisa dogmática. Da mesma maneira como sabe

que desenha sim uma metodologia na prática, se pesquisando, e expressa

também tolerância condicionada contra os dogmáticos.

Na segunda há uma apreciação não apenas teórica, mas também formalista.

Montaigne aparece sensibilizado pela capacidade peculiar de investigar

erguida pelos pirrônicos e disso a sua maneira de comunicar. Todas as

pesquisas devem ser encaminhadas, o que inclui a pesquisa dogmática,

entretanto, há um ponto de encontro, aquilo que há de comum, seu resultado,

que pode acontecer pelo menos pela linguagem, aquilo que comunica. Assim,

a capacidade da língua é de natureza interacional, ela não expressa a

essência, mas os resultados das tentativas sistemáticas. No entanto, em

Ehrlich esse tema é recebido da seguinte maneira,

En considérant le langage comme un instrument de communication, Il mettait en lumière son grand pouvoir, mais em démasquant les ‘menteurs’, en montrant que ces derniers ne présentent pas les choses comme elles sont, mais comme ils veulent les faire paraître, il avilissait la valeur du langage211.

Das duas inferências extraídas de Dos Coxos e Apologia podemos então

concluir que a aplicação de Montaigne, de sua necessidade e decisão de

escrever a pesquisa, tal como em Frame, extrai da vertente de Pirro a

ferramenta adequada e a maneira de dispor os resultados212. Sua escrita será

livre e assistemática, contudo, será circundada pelo referencial sextiano.

Finalmente, em boa hora, da perspectiva provocativa do trabalho de Ehrlich

temos que, ao mesmo tempo que ilustra o problema da língua, apresenta um

dos elementos sobre os quais o perigordiano irá se debruçar continuamente,

que é o seu diagnóstico de mascaramento posto no sujeito de modo geral e,

aqui nesse tópico, está contextualizado no sujeito que opera ou pensa operar

conhecimento. No entanto, creio que esta breve nota pode dar algumas pistas

ou referenciais programáticos para um tipo de entrada aos Ensaios.

211 Ehrlich, Hélène-Hedy. Montaigne: La Critique et le Langage. Paris, Editions Klincksieck, 1972. (p. 70) Ver também: Conche, Marcel. Montaigne et la philosophie. Paris: PUF, 1996 (sobre a comunicação p. 79-110; e pirronismo e método 27-42) 212 Cf. Frame, 1969 (p. 17, 22-31)

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Epílogo

A despeito de querer instalar o reingresso do ceticismo no centro dos grandes

debates intelectuais apenas no século XVI em França e num autor, tal como

bem observado em Popkin e o embaraço religioso, fazemos peso arbitrário na

recepção de seu aparelho na obra de Michel de Montaigne. Dessa recepção de

Montaigne, se o trabalho obteve êxito, pintamos de ceticismo as cores vivas do

filósofo perigordiano. Posta a recepção, imaginamos então que a pesquisa

levada a cabo por Michel de Montaigne se prende primordialmente para ele

próprio e só então para o ambiente.

A observação da obra do gascão é pensada então a partir da investigação do

sujeito, de modo que a interpretação de tipo contextual nos serve apenas para

fins indiretos. Assim, as narrativas factuais propostas na obra de Montaigne

são, para propósitos analíticos, observadas para demonstrar que tipo de uso da

pesquisa de si ele leva a efeito. Ao mesmo tempo, alguns dos resultados

narrados de si, se prestam a um debate oportuno sobre a natureza das coisas

e a melhor forma do ordenamento social, de onde extraímos a evidência

pirrônica de Montaigne.

Em face desse material cético introduzido de modo pulverizado tentamos

condensar a obra Montaigniana como oportuna e sistematicamente cética. O

ponto que esse trabalho observa como senhor da capacidade de associar as

duas principais posturas de Montaigne, a sua análise interna e a análise do

problema político de sua comunidade, foi marcado como assolado pela

vertente de Pirro.

O percurso de sua própria pesquisa é estabelecido a partir do recurso a

descrição contínua tomada da premissa da ignorância conforme demonstramos

rapidamente com o apoio da obra de Friedrich. A insistente narrativa de si

mesmo lhe trará ou não alguma regularidade ou pista de um mapa da ciência

ou da ignorância completa. Ao longo do trabalho percebemos peso equivalente

atribuído por Montaigne aos dois contrários, o conhecimento e a ignorância.

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Todavia, há uma forte alusão da ignorância confundida com o seu termo

antagônico.

Entre as novidades do ceticismo de Montaigne é possível anotar o objeto de

estudo, o “eu”. Essa pesquisa não nos permite concordar completamente com

uma apresentação de tipo fasista, de modo que seria, do meu ponto de vista,

um modo de rendição ao conteúdo dogmático a que Montaigne leria com

influência direta sobre os seus Ensaios. Um dos principais aspectos de

inconsistência grassa no fato de que vários aspectos de um late Montaigne

estão apresentados no Montaigne novo, e vice versa, segundo a descrição de

antagonistas da visão de fases da obra. Além disso, algumas citações do

próprio Montaigne oferecem menção contrária à perspectiva etapista.

Assolado por essa discrepância, identificamos um tipo peculiar de

relacionamento com o que seja conhecer. A priori, para os nossos propósitos,

está claro o domínio de Montaigne sobre o percurso da pesquisa dogmática, e

contra essa, sua pesquisa combina elementos distintos para uma tentativa de

definição peculiar do que seja pensar. Na equação montaigniana, a fábrica das

idéias combinará ao menos os sentidos, a razão, novamente os sentidos e um

conjunto de paixões. Como efeito, o que se reproduz disso será traduzido como

um grande número de imagens ou figuras difusas. Como conclusão do

percurso e pesquisa dogmática, fica a comparação entre a metodologia desta

com os recursos empregados pelos adivinhos.

Essa conclusão tão próxima de uma pesquisa do conhecimento estimula então

uma pergunta sobre o tipo de adesão que Montaigne leva a efeito diante da

religião católica. Montaigne é um cético fideísta, ou seja, embora, esteja

radicalmente contra a certeza ficcional dos dogmáticos, acredita que a

discussão sobre a natureza das coisas se apresenta em dois planos distintos: o

céu e a terra. As especulações humanas não se abatem sobre a revelação

divina, de onde emana a verdadeira essência de tudo que há, de modo que ele

se põe efetivamente como um católico nessa matéria, embora não concorde

com a conduta intelectual dos sequazes do método contra-reformador, seja em

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meio de elaboração teórica ou na qualidade do péssimo diagnóstico da conduta

ética desses operadores.

O que tentamos demonstrar também foi uma postura de Montaigne com

relação aos marcos que circunscrevem a reflexão. Segundo Montaigne apenas

uma experiência pública pode promover uma aceitação universal. Contudo, as

pesquisas dogmáticas produzem um conjunto de percursos meramente

privados do que seja a verdade e que, não raro, um dos principais elementos

que promovem essa visão são pressupostos idiossincráticos que tentam

explicar o que aparece para todos, pelo seu contrário, aquilo que só aparece ao

sujeito de conhecimento dogmático.

No último ponto desse trabalho pensamos um Montaigne Aplicado. Nesse caso

a ação montaigniana promove uma reflexão livre, pouco inscrita nos

parâmetros sistemáticos tal como preconiza a pesquisa convencional. Sua

prática intelectual se define como um ensaio que não tem fim, uma vez que a

descrição cumpre o papel de tentar promover algum sentido ou não ao juízo e

o seu pensamento. A pesquisa é paradigmática na medida em que o seu objeto

de estudo é ele mesmo, por outro lado o fato de que a sua pesquisa pode

encontrar-se com uma produção intelectual dogmática. Ainda que esse

encontro possa ser condicionado a sua predileção por uma comunicação que

arrefeça a certeza de algumas proposições, surge disso, por inferência, um

poderoso clima de tolerância intelectual.

Percebemos com essa escrita livre e de conteúdo capcioso, que Montaigne

detêm uma forte preocupação com o público e a política. Essa matéria é

extraída por meio de uma analogia e também através de uma conexão com a

vertente de Pirro. Percebemos o forte paralelo entre a preocupação socrática

da busca do conhecer com vistas a sua comunidade e, de modo análogo, a

preocupação montaigniana com o tormento doentio pelo qual passa a sua

comunidade. No entanto, o que precede a pesquisa de Montaigne é uma forte

inscrição na vertente pirrônica, no sujeito e só então no cenário francês.

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Capítulo 3

Configuração Política em Michel de Montaigne

Índice

Apresentação p. 70

Recepção p. 76

Natureza e Governo p. 76

Máscara p. 82

Moderação p. 87

Dragão Maldito e o Espaço da Quimera p. 92

Epílogo p. 97

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ApresentaçãoEsse terceiro capítulo procura produzir coerência entre Ceticismo, Michel de

Montaigne e a Política. Tentamos por seu intermédio o que chamamos de

Configuração Política em Michel de Montaigne. E a exemplo dos dois capítulos

anteriores, está igualmente dividido em seis partes além dessa apresentação.

A entrada desse trabalho, a qual foi chamada de Recepção, possui dois

momentos distintos: o primeiro aponta a trilha que seguiremos para conectar a

reflexão de Montaigne a Política. O segundo tenta produzir um breve ajuste

entre a vertente cética e a política em sentido estreito, ao mesmo tempo em

que tenta ligar Michel de Montaigne, em sentido agregado, com os negócios da

cidade.

A segunda parte do trabalho introduz uma reflexão sobre o significado de

Natureza para Michel de Montaigne bem como a imagem de ordem sobre as

diversas comunidades humanas. A partir da noção de diaphonia apresentamos

uma narrativa que deseja expressar um roteiro ontológico montaigniano, e

nesse interior, onde ele localiza a política.

A terceira parte fala sobre a noção ou disposição humana para o

mascaramento. Procuramos produzir dessa noção o tipo de adesão que se

verifica na política e os seus efeitos, bem como buscamos extrair disso uma

postura normativa. A quarta parte põe a moderação como um dos elementos

centrais que devem constituir a política dado o diagnóstico da falibilidade

humana. Ela deve produzir a convivência entre as diaphonias entre os sujeitos

e as comunidades, bem como ligar as várias maneiras de ordenar as

comunidades humanas.

A quinta esboça o estabelecimento do espaço adequado ao ceticismo na

interpretação montaigniana no contexto das reflexões políticas. Apresentamos

algumas produções humanas segundo a razão e o tipo de discordância entre

as cadeias causais esperadas e as verificadas. Finalmente, articulamos as

cinco partes anteriores.

Configuração Política em Michel de Montaigne

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RecepçãoA leitura do trabalho de Montaigne possui várias fendas pelas quais podemos

entrar e que, podemos dizer, são cânulas por onde se observam recortes mais

ou menos claros duma produção assistemática. Para esse trabalho de ensaiar

sobre os Ensaios, elegemos pelo menos um ponto de partida discricional

seguido de uma cadeia causal preliminar. Assim sendo, imagina-se que uma

apresentação do aparelho cético constituiu um elemento decisivo para se

chegar ao pensamento de Michel de Montaigne. E, por conseguinte, não é

ocioso dizer, pensamos que há um encadeamento de causas entre ceticismo

antigo e moderno que pelo menos conduzem algumas análises dentro da obra

do ensaísta.

Dessa premissa, sustenta-se ainda que há na aplicação cética de Montaigne

um programa de reflexões epistêmicas que emolduram pelo menos duas

imagens que tentaremos demonstrar: a) um roteiro cognitivo de filosofia

pirrônica que resulta numa ontologia possível da política; e b) um conjunto de

resultados temáticos removidos dos Ensaios que podem introduzir e configurar

o que Montaigne pensa da política.

Podemos considerar como roteiro o ostensivo material cético empregado na

pesquisa do sujeito em Montaigne que comunica o apregoamento do acidente,

da variedade e da dessemelhança humana em relação à natureza. Por outro

lado, compreendo que há um grupo de elementos que sugerem uma matriz

possível de reflexão de imagens da política. Embora o equipamento perceptual

do ensaísta esteja aparentemente mais voltado para o sujeito, há um conjunto

de aproximações empreendidas entre o sujeito e alguns objetos ou fenômenos

que ajudam no encaminhamento dessa abordagem da questão.

Podemos operar, por compressão, as duas imagens propostas numa

tautologia. A resolução de um caminho filosófico via pirronismo tem nuances

mais amistosas, pois falamos da filosofia como um pensamento livre segundo a

vertente ataráxica prefigurada por Pirro. Não obstante, a reflexão de temas na

obra de Montaigne, especificamente por imagens da política ainda carece de

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observação mais atenta. Um convite ao trabalho de Wolff pode ajudar

inicialmente.

A política não passa da realização de si, uma vez que o ‘si’ é relação com o outro. A política, cruzamento de ‘pensamento racional’ e da polis, tem finalmente um terreno tão amplo, que seus limites confundem-se com os limites do humano, e um valor tão eminente, que de certo modo engloba todos os outros valores213.

O autor dá acolhimento a uma matéria cara ao pensamento grego, no entanto,

nessa definição preliminar do seu trabalho – uma vez que ele está de

passagem para uma definição da política via Aristóteles, autor a quem

Montaigne chama de cético pela linguagem que emprega –, o indivíduo e a

comunidade estão muito próximos um do outro, da mesma maneira a reflexão

e a cidade. Podemos então, obsequiados por essa analogia, declarar que o

tratamento que damos tenta fincar uma possível filosofia política no trabalho de

Montaigne por constituir a um só tempo a reflexão filosófica de si e da polis, ou

ainda, dos negócios da cidade.

O trabalho de Montaigne não traz uma definição ordenada dos assuntos mais

comuns em teoria política, assim sendo, o caminho mais seguro para operar

esse intento, imaginamos, é pelo ceticismo. Numa acepção dogmática,

estranha ao seu trabalho, não há definições a priori, mas sim um conjunto de

temas mais ou menos reincidentes refletidos livremente que podem introduzir

uma leitura dos Ensaios como vetor de imagens da política.

É possível recolher dos Ensaios outros fragmentos e inferir soluções

antagônicas ao percurso proposto, de modo que em vários momentos há, em

profusão, um conjunto de pequenas certezas definitivas ao longo dos três

livros. Todavia, ainda que se proceda dessa maneira, uma tal observação

dogmática do trabalho de Montaigne não inibe uma tréplica. É factível conduzir

a uma coleção de pequenas certezas contrárias à réplica dogmática com igual

disposição dogmática. E como resultado dessa disputa simulada poderemos

encontrar a obstrução suspensiva (epoché) que julgamos mais ajustada a

proposta que tenta ligar coordenadamente Ceticismo, Montaigne e Política. 213 Wolf, Francis. Aristóteles e a Política. São Paulo: Discurso, 1999. (os grifos são nossos) (p. 8) Maclean não deixa incólume o relacionamento de Montaigne e Aristóteles. Maclean, Ian. Montaigne Philosophe. Paris: Presses Universitaires de France, 1996 (p. 21)

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Decorre desse mapa analítico diverso a extração do mínimo de segurança

metodológica adicional.

Já com finalidade introdutória, uma boa tarefa que se apresenta é uma breve

exposição de um elo de conexão existente entre modo cético de filosofar e

política. Ao observarmos panoramicamente a vertente cética, poderemos

entrever que é possível detectar algo que constitui um aparelho de múltiplas

capacidades, a partir da disposição do conjunto de seus tropos, especialmente

equipados para o arrefecimento de enunciados dogmáticos214. Entretanto, isso

ainda não satisfaz o problema de uma vinculação cristalina entre os objetos

das teorias de conhecimento e o objeto teoria política num sentido estreito.

Se procedermos ao exame dos tropos exclamados por Sexto Empírico não

veremos uma demonstração coordenada para a política, mas sim ao

conhecimento dogmático de modo geral. Contudo, há nos tropos de suspensão

do julgamento, em Enesidemo, pelo menos um que vincula estritamente a

suspensão do julgamento face aos diferentes costumes e também a freqüência

com a qual percebemos os objetos. A anotação que segue é de Laursen:

From Aenesidemus [Enesidemo] only the last two tropes have clear political implications. Only the tenth specifically mentions political factors: it brings out the influence of law, habit, and tradition on value judgments. Since social and political values, institutions, and practices differ among the different nations, they cannot represent some universal true nature of things. The ninth trope stresses the effects of frequency or rarity on value judgments, with obvious bearing on political life although conventional political examples are not used215.

Na passagem Laursen revisita a narrativa de Sexto com relação à função de

leis, hábitos e da tradição, bem como o papel introduzido pela freqüência com a

qual o sujeito percebe um objeto como fatores presentes ou implicados na

teoria política. Entretanto, a despeito de ser o décimo tropo aquele cuja

214 Empiricus, Sextus. Outlines of Scepticism. Edited by Annas, Julia and Barnes, Jonathan. Cambridge: Cambridge Universitiy Presses, 2000 (250p)215 Laursen, J. Christian. The Politics of Skepticism in the Ancients, Montaigne, Hume, and Kant. Leiden: E. J. Brill, 1992. (Os grifos são nossos) (p. 22) No trabalho de Renato Lessa há uma sugestão de legado pirrônico para a observação da política a partir da seguinte trilha: 1. a definição de ataraxia; 2. o quarto e o décimo Modos de Enesidemo, sobre a epoché; 3. os Modos de Enesidemo sobre a Causalidade; 4. os Modos de Agripa, em especial o da hipótese e o da diaphonia; 5. a definição ceticismo como terapia. Lessa, Renato. Veneno Pirrônico: Ensaios sobre o Ceticismo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995 (p. 212)

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proeminência da política se manifesta de maneira aberta e pétrea, uma visão

genérica da política a partir do ceticismo também pode ser extraída. Para o

interesse geral em curso, essa primeira conexão pode servir de sala de

recepção, portanto momentaneamente satisfatório, para percorrermos um

contorno preliminar de uma tentativa de narrativa política de corte pirrônico no

edifício montaigniano.

Podemos reforçar que o mundo montaigniano não é tão esquemático e,

portanto, ao longo dos Ensaios são expressos indistintamente os argumentos

da vertente de Pirro remetidos a si e a dogmas de modo geral tanto quanto a

imagens clássicas da teoria política antiga e moderna. O afluxo mais

concentrado da matéria pirrônica está entalhado no ensaio Apologia de

Raymond Sebond216. Para Frame essa confirmação é expressa da seguinte

maneira: Skepticism in its systematic or doctrinal form is found mainly in the

‘Apology’. In a sense it is everywhere […]217.

A partir desse momento temos um pouco mais de caução para oferecer alguns

enunciados liminares. Em primeiro lugar, há uma solução cética para os

problemas articulados pelo sujeito de entendimento e, da mesma maneira com

relação aos objetos. Isso que por sua vez produz um aporte capaz de abarcar

duplamente a política, intermediado ou não por algum tropo ou tópico

específico da vertente de Pirro, mas que possibilitam uma investigação e o

delineamento de traços ou primeiros esboços de um pensamento político via

sképsis.

Em seguida, podemos afirmar que esse percurso pode ser atestado na obra de

Montaigne. Está em curso nos Ensaios uma radical aplicação dessa matéria

referida a sujeito e objetos de entendimento em sentido extenso. Mais

especificamente, a política se apresenta ostensivamente no trabalho, por

intermédio de pontos recorrentes, ou mesmo contingentes tratados

216 Montaigne, Michel de. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996 (Col. Os Pesadores) LII, XII. A partir desse ponto empregarei a marcação dos Ensaios da seguinte maneira: Livro representado pelo algarismo arábico seguido de vírgula (1,), por sua vez seguido do Capítulo e Página de maneira análoga. Ou seja, a representação do ensaio Apologia será escrita, por exemplo, da seguinte maneira: Cf. (2, 12, 370) 217 Frame, David. Montaigne’s Essais: A Study. New Jersey, Prentice-Hall, 1969 (p. 25)

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filosoficamente ou não. Fala de si, de si e do mundo exterior e do mundo

exterior; de outra forma, narra o sujeito, sujeito e objeto, e objetos. Em vários

desses momentos podemos capturar algo que concorra a nos credenciar a

erguer uma matriz de pensamento cético da política, e a rigor, o que Montaigne

pensa da política.

Em terceiro lugar, conforme antecipado, ainda que o trajeto em marcha não

seja muito visitado, estamos diante de uma tentativa de demonstrar uma

adesão montaigniana a determinados objetos. Portanto, de nenhuma maneira

esse caminho se isenta de equívocos ou promove o alojamento definitivo do

ensaísta na filosofia política.

Isto posto, agora me parece ser adequado em última análise, introduzir uma

parte do relacionamento de Montaigne com a sua comunidade, algo que pode

nos remeter aos primeiros passos de uma aderência ao tema da política, esta,

preliminarmente, tal como lembrada pelo trabalho de Wolff. Na passagem o

perigordiano fala, amorosamente, do geral ao particular e desse novamente ao

geral ao tratar um Estado.

Não me revolto jamais tanto contra a França que não olhe Paris com bons olhos. Tem ela o meu coração desde a minha infância [...]. Amoa-a por si mesma. E mais no seu próprio ser que carregada de estranhas pompas; amo-a ternamente, até nas suas verrugas e nos seus defeitos. Não sou francês senão por esta grande cidade, grande na felicidade dos seus assentos, grande em povos, mas, sobretudo, grande e incomparável em variedade e diversidade de bem estar; a glória da França é um dos mais nobres ornamentos do mundo. Que Deus afaste dela as nossas dissensões. Inteira e unida, vejo-a defendida de qualquer violência. Advirto-a que, de todos os partidos, o pior será aquele que a ponha em discórdia; e não temo por ela senão por ela própria; e temo por ela tão certamente quanto por outra parte deste Estado218.

A narrativa vai de França a Paris e retorna ao Estado. Se por um lado a

passagem denota uma análise e um relacionamento apaixonado e preocupado

com a cidade e os atores e fenômenos encarregados de sua manutenção, por

outro há pelo menos uma noção da capacidade desses agentes desarticularem

um todo. Ainda no seio da passagem, outra marca ontológica forte da pesquisa

de Montaigne que ele transfere para a cidade é a variedade e a diversidade, ali

convertida pela noção de bem estar coletivo.

218 Gide, André. O Pensamento Vivo de Montaigne. Trad. José Pérez. São Paulo: Livraria Martins, 1940 (Os grifos são nossos)

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Natureza e GovernoA articulação entre a parte e o todo em Montaigne é empurrada por duas

extremidades sob a diaphonia. Consideremos o sujeito como a menor parte, e

a comunidade como o todo. Entre um só sujeito a concordância e a constância

de opinião serão reféns da descontinuidade219. O todo, a comunidade, ainda

que dotado de mecanismos que promovam certezas compartilhadas

localmente importantes para a manutenção da condição humana, tais como

leis, crenças e hábitos, quando comparada a outras, não observarão

concordância entre si. De modo que a maneira de ordenar o todo será sempre

conduzida de acordo com mecanismos dessemelhantes entre si220.

As duas partes em questão marcham sob desacordo inerradicável, em

diaphonia, de modo que a produção de universais humanos se apresenta para

Montaigne como artifício quimérico sem vestígio de coerência. O equipamento

possível mobilizado para a preservação do agregado não é então senhor de

certeza, verdade ou valor ubíquo, apenas constitui um artifício possível,

meramente local, voltado para arrefecer a inconstância e uma miríade de

certezas momentâneas, mediante a tutela humana221.

Se há um universal que dirija o homem, algo que se abata igualmente sobre

todas as comunidades, é a natureza222. Ela é o princípio que preside as

relações sociais entre seres sem, contudo, por eles ser decifrado pela razão

dogmática que apenas opera por intervenções artificiais. Vejamos duas

passagens.

Estando tudo que sob o céu submetido às mesmas leis, como diz a Bíblia, admitem as pessoas sensatas que nas questões dessa ordem [a origem do hábito], para distinguir as leis naturais das por nós inventadas, é preciso que

219 Cf. (1, 1, 35) Em verdade o homem é de natureza muito pouco definida, estranhamente desigual e diverso. Dificilmente o julgaríamos de maneira decidida e uniforme.220 Cf. (3, 5, 221) Assim acontece, como em certos países, serem os crimes erros e os erros crimes; e em outras nações, em que as regras da boa educação são poucas e sem conseqüência, o bom-senso faz que se observem mais estritamente as leis naturais. (grifo nosso)221 Cf. (2, 12, 467) amarram-no com a religião, as leis, os costumes, a ciência, os preceitos...222 Cf. (2, 8, 31) Se alguma lei natural existe, isto é, algum instinto que se manifeste sempre em todos, bichos e gente (embora haja quem diga o contrário), é, ao meu ver, a da afeição que quem engendra dedica ao engendrado, sentimento esse que vem logo após o cuidado que cada qual tem com a sua conservação e com evitar o que lhe pode ser nocivo.

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nos reportemos às regras gerais que presidem ao trabalho da natureza neste mundo e que não sofrem alteração223.

Somos todos constituídos de peças e pedaços juntados de maneira casual e diversa, e cada peça funciona independentemente das demais. Daí ser tão grande a diferença entre nós e nós mesmos quanto entre nós e outrem: ‘Crede-me, não é coisa fácil conduzir-se como um só homem’ (Sêneca)224.

Em primeiro lugar, se há um debate acerca de leis naturais entre os homens,

sobre um todo que seja a vértebra da conduta especificamente humana, será

preciso pelo menos observar o universal original que é a natureza. Contudo,

esse esforço não passa de mero engenho mediante um grande número de

afecções que operam sobre o sujeito interrompendo uma conclusão definitiva.

É difícil para Montaigne, que na passagem é ajudado por Sêneca, ser apenas

um homem coerente, quanto mais ser um intérprete iluminado capaz de

decifrar sequer um universal em si próprio.

Ao que aparece, Montaigne se inclina para uma premissa que instala a

natureza como arché. E o acordo possível entre os seres conduzidos por esse

princípio é via ataraxia, liberto de discussões cabais sobre a essência que

regula os seres, o homem e os seus derivados, ou seja, os artifícios

humanos225. Natureza e ataraxia parecem preencher o resultado do caminho

eqüipolência e epoché deflagrando a calma e o soberano bem226. Vejamos um

par de modos montaignianos de perfilar a natureza na posição de centro.

A natureza cria sempre leis melhores do que as nossas. Atestam-no a idade de ouro de que falam os poetas e o estado natural em que vemos viverem os povos que não conhecem leis artificiais227.

Existe na organização da natureza uma maravilhosa correlação e uma similitude que não resultam do acaso nem podem provir da vontade de muitos228.

223 Cf. (1, 36, 210) (grifo nosso)224 Cf. (2, 1, 292) (grifo nosso) 225 Cf. (2, 16, 12); Ver também a discussão da tese de Conte sobre a natureza em Hume especialmente a página 14. Conte, Jaimir. A Natureza da Moral de Hume. São Paulo: USP, 2004. Acessível em <www.cfh.ufsc.br>. 226 Cf. (2, 12, 484); Também Cf. Laursen, 1992 The activities of politics are subordinated to the goal of the individual’s tranquility. (p. 104). Cf. (1, 20, 93) [...] um dos principais benefícios da virtude está no desprezo que nos inspira pela morte, o que nos permite viver em doce quietude e faz com que se desenrole agradavelmente e sem preocupações nossa existência. (os grifos são nossos)227 Cf. (3, 13, 355)228 Cf. (2, 23, 61)

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Na primeira passagem Montaigne avoca a noção de prova contra leis erguidas

pelo artifício e introduz um estado humano natural, uma alusão direta ao Novo

Mundo. Na segunda há uma premissa inegociável, as leis da natureza não

resultam do acaso ou da vontade de uma maioria precária. Nessa passagem

ainda a correlação a que se refere se dirige para o par: natureza, e natureza e

ordenamento social, o que sugere que ele procura algum estatuto que possa

refletir o agregado tal como está colocado pelas comunidades229.

A investigação acerca da natureza humana rumo a um princípio geral caminha

livremente acompanhada da fantasia e da obsessão dogmática. Entretanto, há

na pesquisa da causa primária humana pelo menos ingenuidade se

observarmos numa perspectiva otimista. Vejamos uma avaliação de uma

dessas pesquisas:

Os que se dedicam à crítica das ações humanas jamais se sentem tão embaraçados como quando procuram agrupar e harmonizar sob uma mesma luz todos os atos dos homens, pois estes se contradizem comumente e a tal ponto que não parecem provir de um mesmo indivíduo.

É aparentemente possível julgar um homem pelos fatos mais comuns de sua vida; mas, dada a instabilidade natural de nossos costumes e opiniões, pareceu-me muitas vezes que os melhores autores erravam em se obstinar a dar de alguém uma idéia bem assentada e lógica. Adotam um princípio geral e de acordo com este ordenam e interpretam as ações, tomando o partido de as dissimular quando não as deformam para que entrem dentro do molde preconcebido230.

Otimismo à parte, a visão dessa investigação é aterradora. A procura de um

princípio geral de harmonização das coisas humanas é perpassada de doses

elevadas de contradição e desacordo com as coisas ordinárias tais como são.

Em seguida, o panorama de bons autores antecipa uma intensa discussão no

trabalho de Montaigne, a dissimulação. Para preencher um princípio dos

fenômenos esse pesquisador obstinado não mede esforços, para atestar o seu

resultado é capaz de deformar a coisa pelo nome ou o objeto pelo pressuposto.

229 Há outras citações diretas ou indiretas que lembram essa comparação ou mesmo atestam a superioridade absoluta da natureza sobre os artifícios e ignorância humanas, ainda que ele abra um precedente dúbio para as leis divinas. É possível percebê-las, pelo menos, nos seguintes endereços: (3, 5, 221); (1, 20, 97); (1, 23, 117); (1, 25, 141); (1, 28, 178); (1, 30, 195); (2, 1, 191); (2, 37, 122); (3, 1, 141); (3, 9, 296); (3, 10, 310); (3, 13, 390).230 Cf. (2, 1, 291)

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Aquilo que Montaigne alude parece ter endereço fixo, o que está em pauta é

um conjunto de imagens sociais forjadas em privado e trazidas ao público sob

inarredáveis idiossincrasias encapadas em certeza e, portanto absolutamente

sujeitas à fantasia do investigador. Por outro lado, há uma cláusula, o indivíduo

é instável e disso deriva aquilo que guia a natureza de seus costumes e

opiniões. Aqui há uma robusta lembrança aos modos do sujeito que nos são

apresentados por Sexto Empírico.

Se existe um princípio que recebe os indivíduos em Montaigne, é no acaso e

no acidente onde se instala e não na iluminação forjada da pesquisa

precipitada à revelia de qualquer bom senso ou ética231. Depois deste objeto ou

ponto de partida estabelecido em ambiente precário, a política dá o tratamento

possível ao desfile das diaphonias dos indivíduos e produz os vários

ordenamentos possíveis. Ela catalisa as múltiplas ordenações verificáveis e

assume a função de tentar conduzir a ataraxia. Vejamos agora como

Montaigne funda os Estados e compara a operação humana e a operação não-

humana.

De qualquer jeito que se coloquem os homens, juntam-se e se ordenam, como esses objetos heterogêneos que pomos no bolso e que acabam por se ajeitar sozinhos, por vezes melhor do que o faríamos232.

A passagem não interdita a interferência humana, todavia a sua atividade é

desenhada com uma participação de peso atenuado, de maneira que o critério

verdadeiro de ordenar é um observador passivo de uma reunião casual de

objetos heterogêneos. Passada a apresentação dos objetos que vão estatuir o

corpo, o ordenamento se dá com ou sem a interrupção humana233.

O acaso cumpre a função de resposta possível diante da constatação do

desacordo interminável entre as combinações sujeito e todo. O que está em

231 Acidente tal como narrado em Mill séculos depois. Mill, Stuart. Sobre a Liberdade. Trad. Alberto Barros. São Paulo: Comp. Editora Nacional, 1942. E jamais o perturba que um mero acidente tenha decidido qual desses numerosos mundos seja objeto de sua confiança. (p. 45, 46)232 Cf. (3, 9, 271); Cf. (3, 9, 272) A necessidade reúne e acomoda os homens e essa ligação fortuita transforma-se em seguida em leis; (grifo nosso). Ele crê tola a discussão sobre formas de governo Cf. (3, 9, 273).233 Cf. (1, 28, 178); Para o bom trabalho de Eva, depois de uma caminhada cética, Montaigne funda a ordem pública com o costume. Eva, L. Alves. A Figura do Filósofo: Ceticismo e subjetividade em Montaigne. São Paulo: Edições Loyola, 2007 (p. 151)

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pauta é a constatação da falibilidade humana e da concomitante fundação da

política nessas mesmas bases, onde o homem não possui o domínio de

ferramentas definitivas para fiar a condução dos negócios públicos ou mesmo

dos negócios privados. Instalada essa imagem de partida, isso promulga a

atividade política num patamar de magnanimidade muito forte observando o

imperativo da ignorância humana. A passagem de Laursen é conveniente:

For most skeptics, and for Montaigne, an acceptance of man’s weaknesses did not imply misanthropy or any strong sense of pity. In fact, there is almost a sense of reveling in the challenge and heroism of living with fallibility. Over and over, Montaigne displays pride in living life conforming to this natural condition234.

A vida em concordância com a falibilidade é locupleta pela isenção das

certezas do artifício, ou de acordo com a letra cética, é resultado do tratamento

inaugurado pelo antídoto pirrônico235. A condição natural em Montaigne tocada

na passagem de Laursen parece guardar estreita interlocução com uma vida

liberada da convenção social mediada pelo artifício e do hábito investigativo

dogmático. Isso faz sugerir que o enaltecimento do Novo Mundo parece

espelhar um pouco da condição mais adequada aos ordenamentos segundo

Montaigne236.

O cruzamento de dois estratos dos Ensaios concorre a nos ajudar a configurar

a conclusão desse rápido esboço ontológico237.

[...] permitam-nos algo mais e chamemos natureza aos costumes e situação pessoal e fixemos assim os limites de nossas aspirações, levando em conta o que já possuímos. Parece-me desculpável agir desse modo, pois os costumes são uma segunda natureza, tão poderosa quanto a primeira.

Todas essas convenções não passam de pára-ventos atrás dos quais nos confiamos e regulamos nossas relações sociais; mas não nos permitem libertar-nos [...]238

Montaigne concorda em chamar de natureza apenas o costume idiossincrático

e descontínuo do indivíduo. Sobre essa imagem, as convenções sociais não

234 Cf. Laursen, 1992. (o grifo é nosso)235 Smith, Plínio J. Terapia e Vida Comum. Revista Sképsis, São Paulo, v1, n 1, p. 43-67, Ano 1, 2007. Disponível em <www.revista-skepsis.com.br>, acessado em 10/2007.236 Cf. (1, 30, 195) Onde não se verifica, entre outras coisas, “hierarquia política”, “nem ricos e pobres”, ou metade faminta e metade nutrida.237 A falha e a qualidade do artifício podem ser capturados nos seguintes endereços: (2, 17, 41); (3, 5, 221); (1, 23, 122); (1, 25, 141); (1, 30, 189); (2, 1, 291); (2, 2, 296); (2, 8, 331); (2, 37, 122); (3, 1, 141); (3, 1, 147); (3, 6, 236); (3, 9, 273); (3, 10, 310); (3, 11, 324); (3, 13, 361).238 Por ordem de entrada, respectivamente: Cf. (3, 10, 311); (2, 17, 41). (grifo nosso)

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dissipam de modo algum aquilo que move cada um dos indivíduos, elas são o

mero pára-vento coexistente com a verdadeira ação deles. Temos então um

problema adicional, uma generalizada tendência humana a apresentar-se sob

máscara e a simulação, uma vez que a convenção não consegue ter um

reflexo concreto que a reforce. É possível reescrever esse percurso sob o

seguinte plano simplificado:

Natureza

AtaraxiaSeres Animados (SA) -> SA1 + SA2 + SA3 + ... + SAN∗ = SA

AcasoSA1 = Seres Humanos (SH)

PolíticaSH(1) + SH(2) + SH(3) + ... + SH(N) = SH

Ordenamento (governos, leis, hábitos, crenças, convenções sociais e etc.)

Diaphonia T (Todo)SH(1) = Comunidade A (CA), Ordenamento A (OA)SH(2) = Comunidade B (CB), Ordenamento B (OB)SH(3) = Comunidade C (CC), Ordenamento C (OC)SH(N) = Comunidade N (CN), Ordenamento N (ON)

Diaphonia P (Parte)

-> CA, OA = IndivíduosIndivíduos = Indivíduo 1 + Indivíduo 2 + Indivíduo 3 + ... + Indivíduo N

Indivíduo 1 = Natureza A, Idiossincrasia 1Indivíduo 2 = Natureza B, Idiossincrasia 2Indivíduo 3 = Natureza C, Idiossincrasia 3Indivíduo N = Natureza N, Idiossincrasia N

MáscaraA convenção pode ser entendida como um entre vários tipos de acordos tácitos

de assentimento generalizado, que é vitimada ao menos por uma postura

ambígua dos agentes sociais em qualquer domínio, pois é ávida postulante a

promoção da unidade entre os homens239. A simulação ou máscara, por sua

‘N’ tende a um número grande, nessa e nas demais representações.239 Crê que nem ele a segue ao falar de si em público por meio de um livro Cf. (2, 17, 23)

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vez, é uma imagem que articula pelo menos duas coisas entre parte e todo em

Montaigne: o sujeito e a sua comunicação com a comunidade240.

A simulação é levada a efeito ao domínio público quando o sujeito não

comunica coerência entre discurso e ato entre os seus pares241. O momento

posterior, de implicações repulsivas segundo Montaigne, acontece quando

essa narrativa se alista a política242. Esse tipo de procedimento configura a

política como refém da manifestação de um ordenamento carregado de atores

e papéis por um lado – tal como em Petrônio –, e como o fertilizante ideal para

a experiência meramente privada sobre o domínio público243.

Há pelo menos um corolário adicional dessa inclinação do indivíduo para o

emprego da máscara, a sua remoção não obsta a chance de percebermos uma

superposição. De modo que se arrancarmos a primeira, não temos segurança

se o que resta é o sujeito ou a sua representação, se removemos um discurso,

ainda concorremos a verificar outra retórica no lugar da anterior. O

desmascaramento não restitui o sujeito e o que temos é uma ontologia

extremamente pessimista aos olhos da máscara montaigniana, o que lhe

empresta originalidade. Passemos a palavra ao próprio.

Só nos mesmos sabemos se somos covardes e cruéis, ou leais e religiosos; não nos vêem os outros, tão-somente nos adivinham de acordo com conjeturas duvidosas. Não é a nossa natureza real que percebem, e sim a aparência que, mediante artifícios, conseguimos exibir244.

240 Ver: Ehrlich, Hélène-Hedy. Montaigne: La Critique et le Langage. Pairs: Editions Klincksieck, 1972. Especialmente o capítulo V, Le Masque et le Jeu. Nesse trabalho a máscara possui um conteúdo privado e ideológico muito forte e Montaigne é contra esse artifício.241 Cf. (3, 9, 298) Em todo caso essa liberdade discutível de se apresentar com duas caras, um nas palavras e outra nos fatos, será talvez permitida a quem fale de certos assuntos, não a quem trate de si mesmo como o faço.242 Cf. (1, 23, 128) Considero com efeito soberanamente iníquo querer subordinar as instituições e os costumes públicos, que são fixos, às opiniões variáveis de cada um de nós (a razão privada tem jurisdição privada) e empreender contra as leis divinas o que nenhum governo toleraria contra as leis civis. (grifo nosso).243 Ehrlich distingue máscara e sujeito. Cf. Ehrlich, 1972 (p. 59). Ver ainda: Cf. (1, 23, 127) E direi francamente que me parece sinal de excessivo amor-próprio e grande presunção valorizar alguém sua opinião a ponto de tentar, a fim de vê-la triunfar, subverter a paz pública em seu próprio país, facilitando o advento dos males inevitáveis inerentes à guerra civil, sem falar no horrível corrupção da moral e nas mutações políticas que podem ocorrer.244 Cf. (3, 2, 156)

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Por um lado resta ao interlocutor externo, que deseja conhecer, o exercício

frágil da conjectura, da especulação eternamente governada pela dúvida245. Por

outro, um mesmo exercício não menos sisífico que o anterior, um empenho em

promover artifícios capazes de gerar imagens que ao menos imitem o sujeito

ou a natureza do indivíduo246. A convergência entre ambos nos coloca diante

de um enclave retórico, uma comunicação continuamente pautada pela dúvida

e pelo artifício.

O ponto clama uma sugestão senão uma hipótese de corte causal. Em vários

Ensaios, e especialmente na Apologia, Montaigne percebe que ao menos uma

forma de conhecimento pode começar pelo aparelho sensitivo do indivíduo, é

por ele que as imagens dos objetos penetram no equipamento cognitivo, e

como resultado da elaboração, os veículos que necessariamente comunicam

esse produto são novamente os sentidos, e assim o que temos é um conteúdo

decaído. O processo de conhecimento começa e termina pelos sentidos, a

fabricação da imagem é corrompida na entrada e na saída e, no meio do

processo, não há garantias de que a razão opere com isenção uma vez que ela

age, por exemplo, necessariamente repercutindo a experimentação dos

sentidos que por sua vez só capturam em condições que lhes são favoráveis247.

Desse modo, conduzir a verdade para a comunidade será sempre uma

experiência privada e a remoção da máscara não produzirá senão mais

dúvidas248. O diagnóstico erguido nessa perspectiva traz outra face em chave

positiva. A dúvida sobre os sujeitos isentos de papéis, num relacionamento de

implicações concretas na política, traz a pesquisa da justa condução dos

negócios públicos.

245 Cf. (1, 25, 143) Pois detesto as pessoas que suportam mais dificilmente um terno mal feito do que uma alma e julgam a qualidade do homem pelas reverências, as atitudes, e as botas.246 Cf. (1, 38, 217) Sem dúvida nossas ações, em sua maioria, são máscara e artifício [...].247 Cf. Lessa, 1995. Cf. (2, 12, 491) ...os sentidos [são] a grande causa e a prova, a um só tempo, de nossa ignorância. (grifo nosso)248 É quase impossível falar desse assunto sem falar no trabalho de Starobinsk. Starobinsk, Jean. Montaigne em Movimento. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. Atrás dos discursos ilusórios, Montaigne descobre apenas outros discursos, do mesmo estofo; atrás das sensações, outras sensações, igualmente incertas e enganadoras. (p. 74)

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Isso orienta pelo menos dois tipos de análises ao trabalho de Montaigne, a

descrição da virtude em uso e a sua postulação normativa. A primeira delas

mistura a um só tempo mais de um objeto que remete ao domínio da política

em sentido amplo, além disso, aos acontecimentos comunitários que mais lhe

afligem, entre eles, acima de tudo, o esfacelamento do ordenamento local em

nome de uma falsa controvérsia em torno da religião249. O próximo extrato é

capaz de contribuir para a ilustração proposta.

Somos um amontoado de peças juntadas inarmonicamente e queremos que nos honrem quando não o merecemos. A virtude vale por si mesma; se para outro fim tomamos a sua máscara, logo ela no-la arranca da cara. Quando nossa alma se impregna dela, forma ela uma espécie de verniz fortemente adesivo que só se tira com a própria pele250.

Ao que parece a paternidade do ordenamento é reivindicada pela impostura,

uma vez que o ocupante da função pública avoca a si o predicado da virtude,

quando deveria ser atribuído ao sinistro, ao acaso, a natureza. Ela é coisa

cristalina e seu emprego via artifício arbitrário, por intermédio da dissimulação,

é incapaz de passar incólume, de modo que a sua remoção acontece à revelia

do ator. Quanto mais a alma se persuade de que toca a virtude e de que se

confunde com ela, mais prejuízo há de ser verificado contra o intérprete da

peça.

A inversa desse movimento é indissociável dessa perspectiva do perigordiano,

a crítica da impostura evidentemente traz no mínimo o desejo da verdadeira

virtude tal como destacado por Starobinsk, o que configura uma forte sugestão

normativa, pelo menos velada; ou então, de modo menos elegante, dizer o que

ela deve ser a partir daquilo que ela não vem sendo251. No plano comunitário há

a inauguração de uma nova virtude, ou seja, não está em conformidade com a

virtude de fato. O curso dos acontecimentos, observados pelo ensaísta,

249 Ver os textos reunidos por: Dubois, Claude-Gilbert. Montaigne et L’Histoire. Paris: Editions Klincksieck, 1988. Especialmente Montaigne et la rhétorique de la controverse religieuse de Wim J. A. Bots. (p. 193)250 Cf. (2, 1, 195)251 E ao que algumas citações indicam, Montaigne deseja perpetrar a virtude em Sócrates narradas em vários momentos, inclusive quando silencia no cárcere. Ver como exemplo (2, 17, 362). Sugiro, de acordo com essa imagem proposta por Montaigne, a leitura de Críton onde Sócrates exacerba a virtude em absoluta obediência as condutas instaladas na cidade. Nega veementemente a idéia de evadir ao aprisionamento usando de expedientes astuciosos. Platão. Críton. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Col. Os Pensadores) (p. 99)

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apresentam uma acachapante discrepância entre o nome e o significado. De

outro modo, que fale Montaigne.

Quanto a essa nova virtude do artifício e da dissimulação, tão apreciada nestas eras, odeio-a supremamente. Entre todos os vícios, não conheço nenhum que revele tanta covardia e tanta baixeza. É característico da covardia e do servilismo, e predispõe à perfídia, fantasiar-se e mascarar-se e não se mostrar como se é252.

Há uma manifestação inequívoca de ódio declarado a impostura nessa

dimensão da sociedade, trata-se de uma disposição do indivíduo que se

apresenta ao nível mais baixo na hierarquia montaigniana. Essa nova acepção

campeia os fenômenos locais em sentido vasto e um dos edifícios do Estado

recebe particularmente esse problema por meio de uma querela de dimensões

amplificadas, [...] a questão religiosa, a que misturam tantas imposturas [...]253.

Os dois lados em disputa prestam-se a impostura, introduzem o desacordo

eterno no plano ideológico e no plano semântico254. No primeiro domínio

acampam idéias meramente antagônicas, entretanto, os meios aplicados para

fazer valer o que dispõem é refém do ódio montaigniano. O recurso vocabular

dos querelantes não guarda relação de significado algum e carregam o

duvidoso agravante de possuírem o genuíno programa de ordenamento dos

indivíduos em seus discursos, de modo que, ao ponto montaigniano a própria

inocência não poderia, em nossa época, dispensar a dissimulação, nem

negociar sem mentir255.

No mundo montaigniano o ponto de partida da impostura no domínio público é

mobilizado por uma imagem radicalmente equivocada, um desequilíbrio da

paixão humana em campanha aberta. O amor próprio em demasia é capaz de

deflagrar essa desordem das paixões e promover o lançamento do desacordo

privado sobre os ordenamentos256.252 Cf. (2, 17, 35)253 Cf. (1, 23, 127)254 Os lados citados são a Liga Católica e os Huguenotes.255 Cf. (3, 1, 146)256 Cf. (2, 17, 22); E sobre a capacidade desestabilizadora das paixões, sugiro o seguinte endereço: (2, 12, 474) Os abalos e golpes que atingem nossa alma por causa das paixões do corpo, atuam fortemente sobre ela; e (2, 12, 475) Que diferenças de sentidos e razão apresentam nossas paixões em sua diversidade e quantas idéias dessemelhantes disso resultam?

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Essa doença individual é seguida de patologias adicionais capazes de

converter o erro privado em erro público257. A capilaridade desse diagnóstico no

equipamento dos Estados faz Montaigne estabelecer uma radical divisão entre

público e privado258. De acordo com a narrativa dos Ensaios, o próprio

experimento montaigniano pode ser igualmente compreendido como uma

pesquisa que interroga, em sentido amplo, o sujeito privado e o sujeito político

num plano estreito259.

Ao menos um sintoma adicional capaz de incutir inclusive a tirania preocupa o

ensaísta, uma segunda ordem de desacordo entre o nome e a coisa, desta vez

quando o significado assume o nome, ou de maneira aberta, quando o sujeito

se confunde com o cargo. Esse posicionamento patológico dessa maneira

diante da política coloca-a como refém das desordens locais e inter-

comunitárias. A identidade do indivíduo perde o sentido original e grassa na

sua rotina um comportamento genuinamente autista. Vejamos um último

fragmento.

Basta enfarinhar o rosto, não é preciso mascarar igualmente o peito. Há quem mude e se transforme em outro ser segundo o cargo que assume; neste mergulham até o fígado e os intestinos e mesmo na vida privada agem como se estivessem no exercício de suas funções. Gostaria de ensinar-lhes a diferençar as saudações que se dirigem a suas pessoas das que visam o mandado, o séquito ou a mula que montam260.

ModeraçãoÉ possível desenhar com alguma segurança um conjunto de trilhas nos

Ensaios, direta ou indiretamente que se desdobram nessa implacável

intoxicação amorosa, das quais as mais marcadas, mas não mais inextricáveis,

257 Cf. (3, 11, 325) O erro individual forma o erro público, o qual por sua vez, cria o erro individual.258 Cf. (2, 17, 35); (3, 10, 310); (3, 2, 157) 259 Cf. Frame, 1969 (p. 46); Cf. Laursen, 1992 (p. 116); Ver: Friedrich, Hugo. Montaigne. Paris: Gallimard, 1968. Trad. Robert Rovini. (Col. Tel). Especialmente o Capítulo V, Le Moi (p. 220). E dado o imperativo métrico, apenas citamos. Contudo, para os tópicos discutidos nessa passagem, e também ao tema do domínio público e privado em Montaigne, sugiro ainda os seguintes endereços dos Ensaios: (1, 19, 91); (1, 9, 57); (1, 23, 177); (1, 23, 126); (1, 32, 203); (2, 8, 331); (2, 10, 348); (2, 11, 358); (2, 17, 22); (3, 2, 156); (3, 2, 157); (3, 2, 158); (3, 9, 283); (3, 9, 287); (3, 9, 290); (3, 9, 298); (3, 10, 212); (3, 10, 219); (2, 12, 370), neste último em várias passagens. 260 Cf. (3, 10, 298)

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podemos sugerir três. A experiência investigativa sistemática de um aparelho

perceptual dogmático operada por um filósofo em geral, uma atitude dogmática

assistemática operada por qualquer indivíduo e, finalmente uma inarredável

inclinação humana a diaphonia assolada por um dos lados anteriores.

Em separado ou em conjunto, essa catalepsia generalizada apresenta uma

nova interface à política, dessa vez como um espaço e uma atividade que

requer moderação e, a rigor, ambos capazes de reforçar a plataforma de

lançamento do ceticismo como terapia ante a doença dogmática261. Essa

modalidade curativa do ceticismo coloca Montaigne talvez numa postura de

vanguarda moderna de defesa dos indivíduos e do relacionamento amigável

entre as diversas comunidades humanas262. Como pode ser inferida, essa

postura que postula a moderação é uma projeção que se abaterá sobre o

indivíduo, sobre a comunidade e sobre o relacionamento entre as

comunidades. Passemos ao trabalho de Cresson que dará voz ao próprio

Montaigne.

Non parce que Socrates l’a dict, mais parce qu’en verité c’est mon humeur, et à l’avanture non sans quelque excez, j’estime tous les hommes mes compatriotes, et embrasse um Polonois comme um François, postponan cette lyaison nationale à l’universelle et commune263.

Aqui o plano agregado da vertente de um sujeito chamado Pirro da cidade de

Élis parece ter recepção afável. Se tratarmos o ceticismo como uma vertente

filosófica prontamente capaz de arrefecer enunciados dogmáticos, ou

exercendo sua face terapêutica, e se ignoramos os diversos discursos de uma

comunidade e o vertemos num só enunciado em relação a outro, talvez a

moderação montaigniana, acredito, se enquadre precisamente ao conjunto dos

tropos quando, pelo menos, tratamos comunidades distintas. A partir desse

dispositivo, uma definição de Estado ou discussão sobre o melhor

ordenamento possível no plano doméstico e mundial será objeto de ataque

sistemático no mundo montaigniano conforme verificamos em algumas

261 Cf. Smith, 2007.262 Cf. (1, 28, 178) A natureza parece muito particularmente interessada em implantar em nós a necessidade das relações de amizade e Aristóteles afirma que os bons legisladores se preocupam mais com essas relações do que com a justiça. (grifo nosso)263 Cresson, André. Montaigne: as vie, son ceuvre. Paris: Presses Universitaires de France, 1952 (p. 142)

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passagens precedentes bem como outras moléstias derivadas de caminhos

semelhantes. Talvez esse posicionamento tenha celebrizado o ensaio Dos

Canibais264.

O fragoroso abraço do citoyen du monde em volta de Polônia e França ou outro

país, não porque o disse Sócrates, mas porque assim o crê adequado, faz

desse filósofo algo bem aderido a política. Ao ponto em pauta, por um lado, a

política como atividade de militância intelectual será capaz de deflagrar um

movimento pela moderação e a publicação dos Ensaios serve sim para tentar

incutir uma reflexão, tal como perseguido obstinadamente por Schaefer e

também pela ostensiva recomendação de moderação que pode ser verificada

de Montaigne para Margot265.

Da mesma maneira, o campo gravitacional da moderação, por outro lado, é

ladeado de predicados num plano prescritivo com aspectos importantes que

merecem alguma apreciação, entre eles, acredito que sem prejuízo do conjunto

dos Ensaios, destacam-se a tolerância, as leis e a diversidade. Ao menos um

pressuposto de Montaigne pode ser angular para entendê-los, o espraiamento

da intoxicação dogmática no seio da política produz um efeito irrefutável aos

seus olhos: a extinção apaixonada de vidas humanas266.

As três imagens são o produto combinado da repetida aplicação do julgamento

via Ensaios e de sua experiência com o mundo exterior. Disso emerge

inicialmente, como conseqüência desse percurso epistêmico, que diante da

impossibilidade de se conduzir a verdade e a certeza via universais a partir do

sujeito de entendimento, ao menos é possível experimentá-las a cada instante

e da maneira como se apresentam, de modo que a tolerância deve ser algo

264 Cf. (1, 31, 192) Ver: Quint, David. Montaigne and the quality of mercy. Princeton: Princeton University Press, 1998 Montaigne asserts that the existence of the Brazilian cannibals surpasses in happiness […] without the intervention of culture. (p. 75) (grifo nosso) 265 Schaefer, David Lewis. The Political Philosophy of Montaigne. Ithaca and London: Cornell University Press, 1990. Ver Apologia em: (2, 12, 370) e (2, 12, 467)266 Cerca de 300 vidas de huguenotes foram extirpadas na ocasião eternizada como a Noite de São Bartolomeu, para isso sugiro o trabalho de Lacouture. Lacouture, Jean. Montaigne a Cavalo. Trad. F. Rangel. Rio de Janeiro/ São Paulo: Record, 1996 (p. 159). Cf. (2, 11, 367) [...] por causa de nossas guerras civis abundam exemplos de crueldade. Não vejo na história antiga nada pior do que os fatos dessa natureza, que se verificam diariamente e aos quais não me acostumo.

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que diga respeito a um só tempo ao sujeito e ao agregado humano267. Dessa

tolerância generalizada não se promove toda sorte de liberdades apenas

excetuando o assassínio, a conclusão é bem diferente. Há um poderoso

composto lubrificante que opera impetuosamente com a política sobre o sujeito

e os diversos tipos de ordenamentos humanos e que responde pelo nome de

hábito268.

Ele constitui, ao mesmo tempo, o elemento que perpassa os diversos tipos de

ordenamentos, bem como é parte da imagem que integra cada comunidade269.

Ainda que seja distinto em cada local, ele serve como guia seguro na ausência

de qualquer estatuto resultado das diversas verdades privadas elaboradas

filosoficamente ou não270. Ele constitui aquilo que aparece a todos com igual

força persuasiva logo após a primeira conformação dos objetos heterogêneos

que erguem as comunidades e Estados. O próximo extrato pode contribuir para

a explicitação do ponto, que também não é dotado de muito otimismo.

Em geral a melhor partilha que podemos fazer de nossos bens ao morrer consiste em obedecer aos costumes do país, e as leis os levaram em conta melhor do que faríamos, e é preferível que elas se enganem na escolha a incorrermos nós mesmos no erro agindo inconsideradamente271.

A passagem exprime um legado de significado ambíguo na entrada com um

parâmetro de saída que permitem igualmente uma dupla interpretação, ambos

em absoluta coerência com o programa fundado na falibilidade humana. No

input Montaigne de fato fala de partilha de bens tangíveis, no entanto, a

verdadeira herança para a comunidade é a manutenção de um procedimento

de convívio que emerge do acordo tácito original definido pelo hábito. Como

processamento desses insumos há por um lado a obstrução do erro individual

por um instrumento artificial compartilhado, e por outro, estatui a lei como a

ferramenta menos prejudicial para a comunidade ou como a melhor maneira de 267 Cf. Starobinsk, 1992 (p. 74). Cf. (1, 23, 121) Aponta que o hábito é rei e senhor do mundo e aquilo que a filosofia não consegue ensinar ele o faz.268 Segundo o trabalho de Eva, o hábito em Montaigne age como um poderoso obstáculo cognitivo aos procedimentos racionais, e que em alguns momentos se confundem. Cf. Eva, 2007 (p. 151) Ver ainda: Bencivenga, Ermanno. The Discipline of Subjectivity: An Essay on Montaigne. Princeton: Princeton University Press, 1990 (p. 34-48)269 Cf. (1, 23, 122) [...] ingerimos o primeiro leite com hábitos e costumes.270 Cf. (3, 9, 294) A diversidade de costumes entre um país e outro só me impressiona pelo prazer da variedade. Cada uso tem a sua razão de ser.271 Cf. (2, 8, 341) (grifo nosso)

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simular o hábito. O que nos permite chegar mais facilmente a ontologia

montaigniana, que prescreve a absoluta rendição da razão humana ante a sua

fraqueza, pois as leis são feitas para remediar o mal inicial272.

Está nesse diagnóstico o fundamento das leis segundo Michel de Montaigne,

elas são um conjunto de cópias decaídas que auxiliam na manutenção do

ordenamento promovendo as relações sociais em coordenação com a imagem

do acordo produzida pelo costume local273. Por extensão, o mesmo acordo

tácito é verificado em cada comunidade habitada das terras ocidentais e

orientais conhecidas com exceção dos povos do Novo Mundo que se regulam

de maneira mais adequada aos preceitos da boa convivência segundo o

ensaísta que lamenta que nem Licurgo e Platão tenham visto.

A imagem das leis é outro instrumento empregado pela moderação para conter

o horror radical das convicções humanas, ela reduz a termo os extremos

opiniáticos da maneira que os costumes locais lhe oportunizam as imagens do

agregado. É possível tomar a lei e introduzir o terceiro predicado proposto274.

Podemos relê-la da seguinte maneira: uma das manifestações possíveis dos

vários ordenamentos possíveis275. Assim, ela compõe um dos ardis edificados

nos Estados, de maneira que não possui autoridade racional positiva, mas sim

a visualização do pessimismo ontológico de Montaigne, uma rendição

epistêmica. Ao mesmo tempo em que regula as relações sociais, por conferir

corpo a um tipo de convenção, se presta a tentar garantir à variedade humana

mediante tentativas de harmonização da diaphonia276.

Pouca relação existe entre nossos atos, sempre em perpétua transformação, e as leis que são fixas e estáticas. O mais desejável a esse respeito é que estas sejam as mais simples possíveis e concebidas em termos gerais [...]277.

272 Cf. (1, 23, 126). Ver também: Cf. Eva, 2007 (154-155)273 Cf. (1, 232, 122) As leis da natureza nascem dos costumes, pois todos veneram interiormente as opiniões e os usos aprovados e aceitos pela sua sociedade.274 Para mais desdobramentos e compreensões das leis, sugiro os seguintes endereços: (1, 23, 125); (1, 23, 128); (1, 39, 223); (3, 9, 278); (2, 12, 488)275 Cf. (2, 17, 42) As nossas leis, como as nossas roupas, não têm forma definitiva. É fácil acusar um governo de imperfeição [...]. (grifo nosso). Cf. (2, 12, 485). É possível uma leitura pelos tropos de circunstâncias do objeto, Cf. Lessa, 1995276 Cf. (3, 1, 146) Nossa vontade e nossos desejos só a eles mesmos obedecem, mas nossos atos devem atentar para as leis que regulam e resguardam a ordem pública. (grifo nosso)277 Cf. (3, 13, 359); (3, 9, 298)

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Há então uma interface prescritiva que deve apelar para um termo genérico,

uma vez que há uma perpétua transformação dos indivíduos que se

apresentam numa variedade muito superior a capacidade do simulador. Essa

dimensão, o fabrico de leis, também não elimina a baixa capacidade concreta

de produzir esses objetos, o homem confecciona bizarrias278. Por outro lado,

numa perspectiva interacional, a outra fonte de variedade é o conjunto de

imagens desordenadas que cada indivíduo é capaz de lançar sobre a

comunidade279. Numa palavra já citada, o homem é de natureza muito pouco

definida, estranhamente desigual e diverso280.

A face terapêutica da política montaigniana não parece predispor um regime

ideal ou uma camada de indivíduos que podem reter algum tipo de privilégio ou

isenção de maneira que podemos descartar a avaliação dos Ensaios como

uma pesquisa idiótica e de resultados meramente locais. A moderação é um

recurso de contenção de colisões intoxicadas pelas filiações apaixonadas, e

dentro de seu estatuto ou do seu campo gravitacional, não há brecha ou

concessão a qualquer comunidade ou indivíduo281. Em outras palavras, ela é

um meio que resulta de um processo racional e da experiência do sujeito

Montaigne que, a partir de um mapa cognitivo, prescreve universalmente

artifícios que conservem o agregado humano.

Dragão Maldito e o Espaço da QuimeraA contínua variedade humana permite uma re-elaboração do acaso que reúne

os homens, ela nos habilita a percebê-lo como igualmente contínuo, infinitos

acidentes diários que determinam ao menos uma parcela instantânea da

qualidade da natureza que o sujeito humano receberá via primeiro leite282. O

que há então nas comunidades são as formações constantes de pequenos 278 Cf. (3, 9, 297); Cf. (3, 13, 361) Nada há tão grave, ampla e comumente defeituoso quanto as leis. (grifo nosso)279 Cf. (2, 12, 499)280 Cf. (2, 12, 504)281 Ainda que assuma a demonstração corriqueira de que cada povo venere a sua comunidade e a sua forma de se conduzir, Montaigne não isenta a monarquia da submissão a leis, desdenha das cerimônias reais, da bajulação da corte e vários outros pontos. Sua submissão ao governo de França é absolutamente submetida à ausência de paixão. Cf. (1, 30, 40) Os príncipes com efeito devem submeter-se às leis, pois não pairam acima delas. (grifo nosso). Cf. (1, 37, 213)282 Cf. (3, 9, 271) Pelo nosso exemplo verifico que a sociedade humana se perpetua de qualquer forma, aconteça o que acontecer. (grifo nosso)

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mundos se processando diariamente, o que lembra a definição de mundo em

Mill. A política se apresenta para cada um dos mundos olhando para dentro e

para fora de cada local, disso, Montaigne funda, de fato, um mundo, que

aparentemente guarda algum nível de correlação com a natureza.

A formação desse planeta Montaigne é cautelosa e dá manutenção ao único

princípio que se abate igualmente sobre homens e animais, a natureza, que por

enxerto de significado, foi chamada arché. A passagem abaixo serve para

sugerir ou ilustrar que nas cânulas que elegemos, grita uma pesquisa de sujeito

e objetos de acordo com a canônica cética para os tipos de comunidades que

podem acomodar os indivíduos sob um justo ordenamento. Trata-se de uma

lembrança silogística, uma das experiências e testes de pequenas assertivas

do julgamento do ensaísta283.

(i) Nada, desprovido de alma e razão, fora capaz de criar um ser provido de razão e suscetível de dar a vida;(ii) o mundo produz-nos;(iii) logo tem alma e razão.

(a) cada fração de nós mesmos é menor do que nós mesmos(b) somos uma fração do mundo(c) logo o mundo é dotado de sabedoria e razão e em grau superior ao nosso.

A conclusão é a um só tempo local e inter comunitária: E uma bela coisa ter

um bom governo; o mundo deste ponto de vista comprova pois a excelência do

princípio que preside a nossos destinos284. Descartes chama de Dragão Maldito

um tipo de pesquisa que permite a reinterpretação constante de possíveis

universais e uma incansável observação sobre as capacidades cognitivas do

indivíduo e as suas diversas implicações com as relações sociais.

O fragmento abaixo explora um pouco mais do desenvolvimento da matéria

montaigniana, difusa e sujeita a várias interpretações.

Como quer que encaremos este nosso mundo, vemo-lo cheio de imperfeições; nada é inútil entretanto na natureza, nem mesmo as inutilidades. Nada existe

283 Há intérpretes otimistas, como Schaefer, que encontra uma rota clara em Da Amizade. Cf. Schaefer, 1990 (p. 40)284 Cf. (2, 12, 445)

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que não tenha sua aplicação. Nosso ser é um aglomerado de qualidades que são ao mesmo tempo defeitos285.

O desarranjo do binômio qualidade-defeito contra o ordenamento é a

demonstração amplificada e cabal da falha humana. A reunião imoderada das

imperfeições humanas lança sobre os agregados um conjunto de imagens

absurdas, toda sorte de monstros e horrores. Exploremos rapidamente alguns

produtos humanos.

A elaboração das leis promove coisa diversa do que a mera cópia decaída do

que um dia foi o hábito, além de ser a rendição da razão, ela ainda manifesta a

imoderação do fabulador, que recorrentemente ignora a equidade. Por outro

lado, sua peça legal faz que o todo prometa antecipadamente algo tão rígido

que jamais será capaz de realizar. Os seus vários termos específicos

produzem toda sorte de arbítrios capazes de render a moderação humana hoje

e no futuro286.

Em matéria de fé os procedimentos estabelecidos também habilitam o absurdo

humano, e na letra montaigniana, marcha sobre a fé, impávida, toda sorte de

trejeitos humanos e nenhum resquício de plano divino287. A Reforma introduz

por um lado os genuínos artigos da lei religiosa deflagrando todo tipo de

assassínios, por outro, a persuasão de novas almas promove toda sorte de

procedimentos pela crença no Novo Mundo. Depois de 460 indivíduos lançados

à fogueira pelo exército de Deus, Montaigne define o sentido dessa prática

religiosa. Pois se esses bárbaros tinham a intenção de propagar a nossa fé,

deviam pensar que não é de territórios que ela precisa e sim de almas288.

285 Cf. (3, 11, 141)286 Cf. (3, 9, 298) O homem obriga-se a si mesmo continuamente a errar e passa a vida a criar deveres feitos para outros seres que não ele. Por que determinar o que não se espera que alguém cumpra? Teremos culpa de não fazer o impossível? As leis que nos condenam ao que não podemos, condenam-nos pelo que não podemos.287 Cf. (1, 23, 126); Cf. (1, 30, 199) [...] e é pior esquartejar um homem entre suplícios e tormentos e o queimar aos poucos, ou entregá-lo a cães e porcos, a pretexto de devoção e fé, como não somente o lemos mas vimos ocorrer entre vizinhos nossos conterrâneos; e isso em verdade é bem mais grave do que assar e comer um homem previamente executado. (grifos nossos)288 Cf. (3, 6, 239)

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A fabricação e a implementação de leis respondem pelo nome de justiça

segundo Montaigne, ainda que sejam resultados de infinitas fábulas

idiossincráticas individuais. Mais uma vez ele detecta pleno desacordo entre o

nome e a coisa. A justiça responde então pela cerimônia processual pública da

bestialidade humana, é por ela que toda sorte de imoderações, como a tortura,

tomam o conhecimento geral289. Essa imagem merece justo polimento e a

apresentação do próprio Montaigne.

Considerai as formas de justiça que nos rege: são um autêntico testemunho da imbecilidade humana, tal o número de contradições e erros que computam. [...] Quantos inocentes sabemos terem sido punidos, sem culpa sequer dos juízes? Quantas condenações mais criminosas do que o crime não tive a oportunidade de ver!290

A passagem dispõe apenas uma seleção arbitrária para demonstrar a visão

precária sob a qual se ordenam artificialmente os povos segundo Montaigne.

Seria pelo menos enfadonho proceder a um inventário completo das imagens

da intolerância e rendição da ordem, segundo a razão, que pode bem ser

compreendida como filosófica ou não, uma vez que ambas se credenciam a

política. Mas podemos tomar a passagem que aparentemente é uma crônica

da estupidez segundo um fenômeno experimentado pelo perigordiano e

procedermos a um brevíssimo diálogo hipotético entre ceticismo e dogmatismo.

O dogmático veria na autoridade da instituição, fundada na razão, um

procedimento regular e, se fosse um filósofo, diria que a sentença é justa e

procede como causa de um crime. O primeiro interrogaria ambos se a justiça

pode promover injustiças, e ao filósofo em particular, pelo menos, lembraria da

ausência de nexo causal. Um inocente punido por um árbitro que sabe do

equívoco de um termo geral que sacrifica um indivíduo.

Temos agora massa suficiente de recurso para invertermos uma posição, o

dragão assume a posição da quimera e esta a daquele. Os vários mundos e

produtos demarcados por Montaigne sob os auspícios da razão não cansam de

ostentar aberrações monstruosas. A quimera montaigniana assume a vez de

289 Cf. (2, 5, 318) ...considero a tortura um processo inumano... 290 Cf. (3, 13, 359)

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uma pesquisa livre de precipitação otimista de alguma maneira de entender e

preservar um agregado tão heterogêneo e de contornos individuais tão difusos.

As almas viciosas são por vezes instadas à prática do bem; da mesma forma, as virtuosas são ocasionalmente solicitadas pelo mal291.

Há uma grande quantidade de passagens que trazem mensagem análoga,

poderíamos multiplicá-las nesse trabalho, entretanto cabe comunicar que elas

repercutem a variedade, a diversidade e a dessemelhança dos indivíduos e dos

povos humanos. De maneira que há mais diferenças entre um indivíduo e outro

do que entre um animal e outro, segundo Montaigne.

E retomando a passagem, a natureza humana não apresenta estabilidade

comportamental ou confirmação dos caminhos dogmáticos padronizados como

nexos causais, monocausalidades, certezas etiológicas e movimentos afins

para ordenar o mundo. Com o pirronismo de Montaigne tanto o vício pode

deflagrar fenômenos virtuosos como a virtude pode promover um conjunto de

fenômenos viciosos como a crueldade292. De maneira que em assuntos

humanos os resultados dogmaticamente otimizados podem redundar

generalizados equívocos com perdas humanas.

Podemos arriscar que uma possível resposta montaigniana para essa profusão

de dragões realistas é via suspensão do juízo sobre o estatuto de verdade e

acerto contido nas proposições. Logo isso significa dizer que a matéria pode e

deve continuar a ser observada, a suspensão não pressupõe imobilidade, é

uma postura de cautela articulada por resultados auto-evidentes para

Montaigne.

É possível afirmar ainda que o tipo de ordenamento que o perigordiano procura

não se parece muito com a fabulação que se pratica. Podemos dizer que sua

adesão a monarquia, por exemplo, é derivada de um percurso racional e,

portanto, marcada de baixo entusiasmo ou paixão, ela se configura como uma

adesão meramente acidental, em conformidade com sua filiação filosófica.

291 Cf. (3, 2, 158)292 Cf. Quint, 1998 (p. 41-74)

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Desse modo, ao que parece, o tipo de harmonização do indivíduo humano que

ele procura parece combinar estratégias cognitivas céticas e dogmáticas, se

considerarmos que o pirronismo constitui uma vertente de mobilização da

reflexão para a prática.

Assim decorre que as imagens céticas que emergem em Montaigne parecem

combinar o tipo de convívio interacional observado no Novo Mundo, onde as

relações sociais são livres de artifícios demasiados, já que ele, por exemplo,

elogia a grandeza de Cuzco e México, com alguns elementos em curso na sua

própria comunidade. Entretanto, o seu pessimismo ontológico também sugere

um artifício de animosidade contra as inovações embaladas em certeza, assim

sendo, essa abordagem merece ser mais desenvolvida.

De qualquer forma, no que diz respeito a nossa matéria, ele preconiza uma

criança monstruosa293. Se juntarmos essa imagem com o conjunto do

equipamento cético, podemos dizer que uma regulação da política que acolha

a plena manifestação do indivíduo demarcada por parâmetros de limitação

amplamente compartilhados e harmonizados, perpassado por uma ostensiva

tolerância e moderação inter comunitária, poderíamos considerar que temos

um contorno político.

Se essa composição se parece com o liberalismo em política, é possível

concordar com o resultado de Schaefer e Montaigne lança as bases do

pensamento liberal294. Acaso seja esse mais um anacronismo, Montaigne

apresenta ao menos uma criança monstruosa intoxicada de tolerância a

pluralidade de manifestações humanas.

Epílogo

Uma definição dos Ensaios de Michel de Montaigne como um complexo de

matéria pirrônica não-sistemática foi uma opção que elegemos para penetrar

no pensamento do ensaísta. Para chegar até os Ensaios pensamos ser

293 Cf. (2, 30, 83)294 Cf. Schaefer, 1990

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indispensável uma apresentação do que dispõe a vertente cética antiga, de

maneira que a maior parte dos tropos e argumentos que foram sumariamente

apresentados a partir do trabalho de Sexto Empírico fosse refletida durante a

exposição do ceticismo moderno em Montaigne. Segue-se disso, que a

aplicação de Montaigne pode gerar um conjunto de imagens que montam um

pensamento da política.

Se o trabalho conseguiu atingir o objetivo, aproximamos o ensaísta do

ceticismo referido a si, aos objetos e aos meios epistêmicos entre sujeito e

objeto. De modo que em vários desses momentos podemos perceber algum

nível de preocupação com os negócios públicos de sua comunidade, da menor

parte a maior parte. Assim sendo, demonstramos que é possível relacionar os

tropos céticos e a política, por intermédio do nono e décimo tropos de

suspensão da obra de Sexto ou de maneira genérica, uma vez que o ceticismo

em Montaigne se apresenta pulverizado ao longo dos Ensaios o que pode nos

ajudar a inferir o todo, o que fizemos com a ajuda de Laursen e Frame.

Em segundo lugar introduzimos uma discussão para checar que tipo de

reflexão o ensaísta estabelece para comunicar um dos enunciados mais

marcados na teoria política tal como a confecção do Estado e Governos. Como

ponto de partida, identificamos que a diaphonia pode ser empregada para se

chegar ao modo como Montaigne pensa os ordenamentos humanos a partir da

reflexão da menor parte, o indivíduo, até o conjunto de imagens que se pode

rebater no ordenamento dos Estados. Chegamos à conclusão de que o

indivíduo e o ordenamento apresentam vários níveis e combinações de

dessemelhanças.

A partir disso pudemos constatar que a confecção de universais a partir do

aparelho cognitivo humano passa longe do modo montaigniano de pensar o

agregado humano. Buscamos lançar algum tipo de luz sobre como ele recebe

a possibilidade de estabelecer princípios. Inicialmente ele nega toda e qualquer

chance de derivar o ordenamento de um princípio universal que não seja a

natureza, ainda assim condicionada a algo indemonstrável, algo fora da

capacidade de entendimento humano, a natureza como código fechado aos

meios de entendimento disponíveis para perceber o que lhe preenche.

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Montaigne parece gostar da idéia de só admitir a natureza como objeto que se

abate sobre todos os seres animados com igual força persuasiva. Ela parece, a

partir disso, ser o elemento que ordena as vidas, pois não resulta, em hipótese

alguma, do acaso ou da seleção da maioria. Por outro lado, fica claro que ele

não concorda com nenhum método dogmático de se atingir o objetivo de se

conhecer a essência do que quer que seja, de maneira que opera ostensiva

veemência sobre o método e faz pesadas críticas sobre a ética presente nesse

tipo de investigação.

Se há um princípio ao alcance humano para remontar ao que origina os

Estados e os vários ordenamentos sociais possíveis ele reside da natureza

para o acaso. A partir disso, definimos a política como a dimensão que

comunica os vários modos de ordenar as comunidades e também de articulá-

las entre si sob algum nível de harmonia. O ensaísta é simpático a considerar a

natureza humana algo em processo, afetada de humores diversos e uma

grande quantidade de hábitos descontínuos. Dessa forma, o homem está

encapsulado num tipo de apresentação social sempre pautada pelo esforço de

se mostrar como se parece ser, nunca em termos definitivos.

Esse esforço de se apresentar provoca um desacordo entre sujeito e

comunidade do qual retiramos um denso pessimismo dos Ensaios de

Montaigne. Segundo essa perspectiva, o homem se apresenta facilmente pelo

que não é segundo as convenções. Assim, o homem é capaz de se apresentar

ao público sempre segundo o apelo da convenção em curso quando lhe é

conveniente e não raro constantemente de maneira instável. Chegamos então

à conclusão de que os universais são tentativas frágeis de se observar o

comportamento dos indivíduos.

Quando o sujeito se comporta segundo aquilo que lhe é mais conveniente

alojado a política, ele a configura como um grande teatro assolado de peças e

atores e também como a plataforma capaz de fertilizar o erro privado sobre

toda a comunidade. A natureza do indivíduo não permite a remoção da

máscara seguida da exibição da verdadeira face, ao contrário, é humanamente

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impossível perceber a verdade de dentro para fora ou vice versa. Esse embate

de enunciados pode ser perfeitamente explicado pela vertente cética, o que

produz como conseqüência a suspensão do juízo, mas sem, contudo, diminuir

a dimensão do problema sobre a política.

Disso concluímos que Montaigne deflagra uma pesquisa então da justa

condução dos negócios públicos e passa por temas consagrados na teoria

política tais como justiça, leis, hábitos e, especialmente, a virtude. Percebemos

que a virtude em curso pode sinalizar que tipo de fato ele procura por

eliminação. Montaigne vê a impostura em negócios públicos como algo

temerário capaz de assolar todo o edifício do Estado a partir de uma atitude

irrefreada de amor subjetivo295.

A partir de um diagnóstico pessimista do indivíduo humano no plano cognitivo e

no domínio da conduta ordinária, simultaneamente em contato com a política

intermediado por uma intoxicação amorosa que afeta indivíduos e os conduz a

comportamentos extremados, configuramos a política em Michel de Montaigne

com objeto e como atividade que devem ser e conduzir a moderação.

Ao mesmo tempo, abrimos dessa perspectiva a tomada do ceticismo como a

melhor maneira de arrefecer enunciados e a conduta de atores que

apresentam esse comportamento em domínio público. Dessa maneira

percebemos o ceticismo como terapia a patologia dogmática num domínio

sensível a manutenção dos ordenamentos humanos. Colocamos Montaigne

operando em dois campos concomitantes, um cético terapeuta interferindo a

partir da interferência direta, sobre os agentes, e na ocasião tomamos o

exemplo de uma representante do Estado francês, e ao mesmo tempo como

intelectual capaz de rebater dogmatismos em curso no campo da filosofia, ou

para sermos mais precisos, sobre a discussão teológica.

Apresentamos o gascão definindo mecanismos de promoção da moderação,

inicialmente abraçando todos os povos possíveis e usamos a expressão

idiomática que o marcou como cidadão do mundo. Usamos a imagem da 295 Ver o estudo da politica como subjetividade em: Reiss, Timothy J. Montaigne and the subject of polity. Edited by Parker, Patricia and Quint, David. Baltimore and London: The Johns Hopkins University Press, Cap. 7 (p. 116-149)

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tolerância, das leis, do hábito e da diversidade para oferecer concretude

conceitual à imagem agregada da moderação. Em conjunto elas podem

oferecer a prescrição de acordos tácitos humanos como um fio precário capaz

de orientar algum nível de esfriamento da manifestação de intolerância e

imoderação a que se inclina o espírito humano. De algum modo o tipo de

regulação levada a efeito no Novo Mundo produz em Montaigne um referencial

auto evidente de que o tipo de ordenamento que ele vive, é a expressão da

incompetência humana.

À medida que Montaigne observa o homem como um processo, ainda que

numa perspectiva negativa, reelaboramos o tipo de visão que ele remete ao

agregado. Inferimos um dos testes de fabulação de mundos a partir de uma

estrutura de forte lembrança silogística. Essa formação obedece coerência e

cuidado com a rendição humana em relação a natureza, único universal

possível. Dessa peça removida de dentro da Apologia percebemos que o

perigordiano de algum modo procura a formação de agregados que possam

promover a ataraxia ou a vida fora de perturbações e estorvos dogmáticos.

Apresentamos em seguida a pesquisa montaigniana com a flexibilidade e vigor

necessários para a configuração desse ordenamento. A natureza humana

encerra um conjunto de predicados de orientações dinâmicas e díspares

capazes de expressar absurdos e contradições descontínuas ou não, é a

própria manifestação da diversidade, de modo que é preciso muito cuidado

com otimismos ontológicos e epistêmicos tal como notados nas pesquisas que

se pressupõe dotadas de razão universal.

Em seguida, demonstramos algumas imagens e artifícios produzidos pela

razão passeando os resultados mais devastadores possíveis para uma matriz

de pensamento ungida de etiologias. A pintura de um quadro de manifestações

racionais produzindo várias imagens absurdas e desconexas de corte

dogmático. O devaneio otimista deflagrando a partição lógica do agregado

possível em curso na comunidade de Montaigne e fora dela. Simulamos um

diálogo que pode atestar que a posição cética pode não ter em si matéria que

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expresse indiferença ou absurdo lógico, na passagem pintamos de ficcionais as

produções dogmáticas.

Finalmente, a ausência de filiação apaixonada ao próprio ordenamento, a

pesquisa em curso e a sugestão de uma criança monstruosa, alusão que fiz ao

ensaio A Propósito de Uma Criança Monstruosa, contida no Livro 2 (Capítulo

30, página 82) podem indicar uma postura crítica local e sugerir a política como

capaz de reproduzir outra imagem, diferente da que Montaigne viu em curso

em sua comunidade. Por outro lado, os reiterados apelos a variedade,

diversidade e moderação podem nos sugerir ainda, em tese, uma vez que o

veneno do anacronismo é latente, que a elaboração montaigniana pode se

coadunar com a fundação de algumas vertentes da teoria política posterior;

pois afinal, como diz o próprio, ele é gascão.

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ConclusãoUma busca de caracteres genuínos que coordenem o bojo ou uma parcela do

ceticismo grego e moderno para a reflexão política e de suas imagens

desagregadas podem presumir coexistência compatibilizada. As indicações

explícitas em alguns tropos, que proferem obstruções diretamente sobre

algumas imagens, não interrompem ligações de enunciados dogmáticos

originadas da reflexão ou teoria política agregada. A trilha de ambas as

orientações pode conduzir a essa harmonização sem concorrência despótica

de qualquer dos lados.

Na reflexão do moderno Michel de Montaigne o purgante cético é oferecido

para dogmas das teorias de conhecimento, para a política e também para os

seus objetos aparentemente mais conexos como leis, hábitos e crenças que

conferem identidades a comunidades e Estados. Se concordarmos que há uma

teoria do conhecimento da política, temos que Montaigne é um representante

da categoria que estamos sugerindo nessa conclusão.

Os Ensaios perfilam um ataque a busca de universais ao mesmo tempo em

que parecem lhes restituir, de modo que a natureza e o acaso assumem as

funções que cooperam os ordenamentos dos seres e que conferem à política a

capacidade de mobilizar as diaphonias dos indivíduos e comunidades humanas

entre si. Assim como o sujeito é processo em Montaigne, tal como no trabalho

de Starobinsk, todas as representações que daí surge vão operar definições

mutáveis e concorrentes entre si, e assim a política poderá ser vista nos três

volumes da fala do eu como teoria, função ou atividade, que, por exemplo,

recebe a mudança e pluralidade humana.

O fio que alinhava esse pensamento da política, entendemos, é um ceticismo

reelaborado. A variedade dos sujeitos humanos será o ponto de partida para a

compreensão dos diversos tipos de relacionamentos estabelecidos entre

indivíduos e povos, esse mesmo diagnóstico porá o trabalho de Montaigne

como um tipo de guia de promoção da tolerância e uma prescrição original de

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plena capacidade de cada povo conduzir os seus negócios, de acordo

compartilhado com aquilo que apenas lhe parece correto.

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Anexo ao Capítulo 3

Guia de Fragmentos

Configuração Política em Michel de Montaigne

Recepção p. 107

Natureza e Governo p. 111

Máscara p. 119

Lei p. 125

Moderação (tolerância) p. 129

Ficção (idéias e realismo) p. 134

Epílogo p. 144

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Apresentação e Método

Essa guia auxilia parte dos esforços de pesquisa do trabalho de dissertação

para o capítulo terceiro de título Configuração Política em Michel de Montaigne.

Ela foi elaborada sob a percepção de que a quantidade de citações feitas ao

longo do capítulo torna pouco aprazível, para a pesquisa e para a banca

avaliadora, uma reiterada comparação entre a citação no corpo do texto e o

seu rebatimento nas referidas páginas dos Ensaios de Michel de Montaigne

que é utilizada como referência principal.

Ela reflete a proposta de índice que a precede com exceção de duas

passagens não abordadas Ficção e Realismo em Montaigne e Lei. Assim, para

cada tópico enumerado, procedemos a uma hierarquia do livro um ao livro três

em termos temáticos, de maneira que os temas capturam fragmentos. Assim,

para a Recepção, retiramos um conjunto de fragmentos que se coadunam com

a sua proposta de conteúdo, do Livro um ao Três. E assim sucessivamente.

Livro 1: 57 Ensaios; Livro 2: 37 Ensaios; Livro 3: 13 Ensaios

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RecepçãoTrata dos fragmentos abordados direta e indiretamente nesse item.

Livro 1: 57 Ensaios;

1, 23, 125 (dos costumes...) “O sábio precisa concentrar-se e deixar a seu

espírito toda liberdade e faculdade de julgar as coisas com serenidade, mas

quanto ao aspecto exterior delas cabe-lhes conformar-se sem discrepância

com as maneiras geralmente aceitas. A opinião publica nada tem a ver com o

nosso pensamento, mas o resto, nossa ações, nosso trabalho, nossas fortunas,

cumpre-nos colocá-lo a serviço da coletividade e submetê-lo a sua aprovação.”

1, 23, 128 (dos costumes...) “Considero com efeito soberanamente iníquo

querer subordinar as instituições e os costumes públicos, que são fixos, às

opiniões variáveis de cada um de nós (a razão privada tem jurisdição privada) e

empreender contra as leis divinas o que nenhum governo toleraria contra as

leis civis.”

1, 25, 140 (do pedantismo) “Sabem dizer ‘como observa Cícero’, ‘eis o que

dizia Platão’, ‘são palavras de Aristóteles’, mas que dizemos nós próprios? Que

pensamos? Que fazemos? Um papagaio poderia substituir-nos.”

1, 25, 140 (do pedantismo) “Cuidamos das opiniões e do saber alheios e

pronto; é preciso torná-los nossos. [...] Que adianta ter a barriga cheia de

comida se não a digerimos? Se não a assimilamos, se não nos fortalece e faz

crescer!”

1, 25, 142 (do pedantismo) “Tais mestres, como os sofistas seus parentes

próximos a que alude Platão, são de todos os homens os que parecem mais

úteis à humanidade. No entanto são os únicos que não somente não

melhoraram a matéria-prima que se lhes confiou, como fazem o carpinteiro e o

pedreiro, mas a estragam e ainda cobram por tê-la estragado.”

1, 26, 140 (da educação das crianças) “Exponho aqui meus sentimentos e

opiniões, dou-os como os concebo e não como os concebem os outros; meu

único objetivo é analisar a mim mesmo e o resultado dessa análise pode,

amanhã, ser bem diferente do de hoje, se novas experiências me mudarem.

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Não tenho autoridade para impor minha maneira de ver, nem o desejo,

sabendo-me demasiado mal instruído para instruir os outros.”

1, 40, 266 (sobre Demócrito e Heráclito) “Ao acaso escolho um assunto, pois

todos me são igualmente bons e não pretendo esgotar nenhum, porquanto de

nenhum chego a ver o fundo. E os que nos prometem mostrá-lo não cumprem

suas promessas”. “Entre cem aspectos da mesma coisa, tomo um. E ora o

debico apenas, ora o mordisco, ora vou até o osso.”

Recepção (Cont. 1)Livro 2: 37 Ensaios;

2, 16, 12 (da glória) “Há em tudo o nome e a coisa. O nome é a palavra que

marca e significa a coisa: não faz parte dela, a ela não se incorpora; é um

acessório que se acresce, por fora”. Ele emprega Deus e o nome de Deus

como exemplo.

2, 16, 12 (da glória) “A glória a que aspiro é a de ter vivido tranqüilo, não como

o entendem Metrodoro, Arcesilau ou Aristipo e sim a meu modo. Em sendo a

filosofia incapaz de mostrar o caminho que conduz ao repouso da alma e a

todos convém, que cada qual por seu lado o procure”.

2, 16, 18 -19 (da glória) os estranhos o concebem pela aparência, mas ele é

outra coisa.

2, 17, 41 (da presunção) “A razão humana é uma espada de dois gumes,

perigosa de se manejar. Na própria mão de Sócrates apresenta mil e uma

soluções para o mesmo caso! Por isso sigo os outros e deixo-me arrastar pela

massa; não tenho bastante confiança em minhas forças para comandar e

dirigir; e apraz-me encontrar aberto o atalho pelo qual caminho. Se devo correr

o risco de uma escolha incerta, prefiro seguir alguém mais seguro de sua

opinião, à qual me filio mais do que à minha, a meu ver sempre assentada em

base escorregadia.

Entretanto, não sou homem a que iludam facilmente, tanto mais quanto distingo

muito bem o lado fraco das opiniões contrárias: ‘dar constantemente seu

assentimento pode acarretar mitos erros e perigos’ (Cícero). Isso é

principalmente verdadeiro nos negócios políticos, que apresentam um campo

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aberto às discussões e incertezas: ‘a balança cujos pratos se acham

carregados de pesos iguais, não se abaixa nem levante de nenhum lado

(Tibulo).

Os princípios de Maquiavel são, por exemplo, bastante sérios a esse respeito,

e no entanto têm sido facilmente refutados, e os que os refutam apresentam

razões igualmente refutáveis. Qualquer argumento encontra sempre duas, três

ou quatro réplicas, sem contar que dão azo a inextricáveis debates,

prolongados ainda pela chicana a fim de que não se encerre a discussão:

‘vence-nos o inimigo, vencemo-lo por nosso turno’ (Horácio). As razões de

ambas as partes assentam unicamente na experiência, e os acontecimentos

humanos produzem-se sob tantas formas que, em cada caso, infinitos são os

exemplos.

Assim penso das discussões políticas: qualquer que seja a tese, teremos a

mesma probabilidade de acertar que os nossos adversários, conquanto não

nos choquemos de encontro a princípios elementares e evidentes. Entretanto,

nos negócios públicos, não há direção, por má que seja, que, se continuamente

seguida durante algum tempo, não se deva preferir a mudanças perturbadoras.

Nossos costumes são por demais corruptos e tendem a piorar; entre nossas

leis e nossos usos, muitos há bárbaros e monstruosos; entretanto, em razão da

dificuldade em melhorar o que existe e do perigo da destruição atribuível a

qualquer mudança, se pudesse cravar uma cunha que sustasse o movimento

de nossa roda do ponto em que se acha eu o faria de bom grado: ‘não há ação,

por vergonhosa e infame que seja que não encontre pior’.

Recepção (Cont. 2)Livro 3: 13 Ensaios

3, 5, 221 (a propósito de Virgílio) “Devo ao público um retrato realista de mim.

Estes ensaios são edificantes porque a verdade, a realidade e a liberdade

neles reinam. Recuso-me a trocar um dever real por essas regras mesquinhas,

hipócritas, fictícias e de uso restrito. Atenho-me às leis gerais e constantes que

a natureza nos dita e de que são filhas, mas filhas bastardas, a civilidade e as

convenções sociais. Que importam os vícios que parecemos ter, ao lado dos

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que realmente temos? Quando houvermos acabado com estes, atacaremos os

outros se acharmos necessário. Pois corremos perigo em imaginar novos

deveres a fim de desculpar-nos por não termos cumprido os verdadeiros,

estabelecendo a confusão. Assim acontece, como em certos países, serem os

crimes erros e os erros crimes; e em outras nações, em que as regras da boa

educação são poucas e sem conseqüência, o bom-senso faz que se observem

mais estritamente as leis naturais. A multidão inumerável dos deveres exige tal

atenção, que chegamos a negligenciá-los e ouvida-los. Um excesso de

aplicação às cosias de nonada desvia-nos das importantes. Fácil é o caminho

homens que vêem as coisas superficialmente! Todas essas convenções não

passam de pára-ventos atrás dos quais nos confiamos e regulamos nossa

relações sociais; mas não nos permitem libertar-nos, antes aumentam nossos

deveres para com o grande juiz que, afastando trapos e ouropéis, nos examina

em nossa nudez total, pois não lhe escapam nem mesmo as nossas vergonhas

e os nossos vícios mais secretos”.

3, 9, 268 (da vaidade) “Acho que servir ao público e ser útil ao maior número é

o que há de mais honroso, ‘nunca apreciamos melhor os frutos do gênio e da

virtude como quando os repartimos com o próximo’ (Cícero)”. Lembra que

Platão se negou a cargos públicos, ele também o faz.

3, 9, 271 (da vaidade) “De qualquer jeito que se coloquem os homens, juntam-

se e se ordenam, como esses objetos heterogêneos que pomos no bolso e que

acabam por se ajeitar sozinhos, por vezes melhor do que o faríamos”.

3, 9, 291 (da vaidade) “Cabe aos bons escritores, aos que escrevem coisas

úteis, fixá-la [a língua] até certo ponto; quanto à duração da mudança,

dependerá de nosso estado político. Não hesito entretanto em introduzir aqui

alguns temas que são mais da alçada de certas pessoas de nossa época, que

se especializaram em determinadas ciências; compreendê-los-ão por isso

melhor do que a generalidade de meus leitores”.

3, 9, 300 (da vaidade) “O leitor distraído é que perde de vista meu tema; eu

não. Sempre, em algum lugar, umas poucas palavras hão de mostrar que o

tenho em mente. Passo de um assunto a outro sem regra nem transição; meu

estilo e meu espírito vagabundeiam juntos”.

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Natureza e GovernoTrata dos fragmentos abordados direta e indiretamente nesse item.

Livro 1: 57 Ensaios;

1, 3, 40 homem de natureza pouco definida e julga diversamente as coisas.

1, 3, 39 pouco disposto a paixões violentas.

1, 6, 50 a guerra admite como lícitas práticas condenáveis.

1, 9, 55 os negócios públicos exigem boa memória. (-) memória = (+) verdade.

1, 10, 59 conhece por experiência os que dispensam os estudos e falam com

alegria de improviso.

1, 20, 97 (de como filosofar...) “Em verdade, sem certa anuência da natureza é

difícil que a arte e a indústria progridam nas obras que produzem. Eu não sou

melancólico, sou sonhador”

1, 20, 102 (de como filosofar...) “A natureza nos ensina: saís deste mundo

como nele entrastes”.

1, 23, 117 (dos costumes e da...) “Os milagres decorrem de nossa ignorância

da natureza”...

1, 23, 122 (dos costumes e da...) “imaginamos” que as idéias aceitas em torno

de nós, trazidas pelos nosso pais, “são absolutas e ditadas pela natureza”

1, 23, 122 (dos costumes...) “Os povos, afeitos à liberdade e a se governarem

por si mesmo, encaram qualquer outra forma de governo como monstruosa e

contrárias à natureza”.

1, 25, 141 (do pedantismo) “A natureza, para mostrar que não há nada

selvagem em sua obra, permite que surjam nos países onde as artes se acham

menos desenvolvidas produções do espírito que ombreiam com as demais

admiráveis.”

1, 28, 178 (da amizade) “A natureza parece muito particularmente interessada

em implantar em nós a necessidade das relações de amizade e Aristóteles

afirma que os bons legisladores se preocupam mais com essas relações do

que com a justiça.”

1, 30 189 (da moderação) “Calicles tem razão: levada ao exagero, a filosofia

escraviza nossa franqueza natural e, mediante sutilezas importunas, nos

desvia do belo caminho que a natureza nos traça.”

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1, 30, 195 (dos canibais) “àqueles que alteramos por processos de cultura e

cujo desenvolvimento natural modificamos, é que deveríamos aplicar o epíteto

[de selvagem]”.

1, 30, 195 (dos canibais) “As qualidades e propriedades dos primeiros são

vivas, vigorosas, autênticas, úteis e naturais; não fazemos senão abastardá-las

nos outros a fim de melhor as adaptar a nosso gosto corrompido”.

1, 30, 195 (dos canibais) “Não há razão para que a arte sobrepuje em suas

obras a natureza, nossa grande e poderosa mão. Sobrecarregamos de tal

modo a beleza e riqueza de seus produtos com as nossas invenções, que a

abafamos completamente”.

1, 30, 196 (dos canibais) “As leis da natureza, não ainda pervertidas pela

imisção dos nossos, regem-nos até agora e mantiveram-se tão puras que

lamento por vezes não as tenha o nosso mundo conhecido antes, quando

havia homens capazes de apreciá-las”.

1, 30, 195 (dos canibais) “Lamento que Licurgo e Platão não tenham ouvido

falar delas, pois sou de opinião que o que vemos praticarem esses povos, não

somente ultrapassa as magníficas descrições que nos deu a poesia da idade

de ouro, e tudo o que imaginou como suscetível de realizar a felicidade perfeita

sobre a terra, mas também as concepções e aspirações da filosofia”.

1, 30, 195 (dos canibais) “Ninguém concebeu jamais uma simplicidade natural

elevada a tal grau, nem ninguém jamais acreditou pudesse a sociedade

subsistir com tão poucos artifícios. É um país, diria eu a Platão, onde não há

comércio de qualquer natureza, nem literatura nem matemáticas; onde não se

conhece sequer de nome um magistrado; onde não existe hierarquia política,

nem domesticidade, nem ricos e pobres”. ... “as próprias palavras que

exprimem a mentira, a traição, a dissimulação, a avareza, a inveja, a calúnia e

o perdão só excepcionalmente se ouvem”. “Como essas, foram as primeiras

leis da natureza (Virgílio)”.

1, 30, 203 (dos canibais) “Três dentre eles (e como lastimo que se tenham

deixado tentar pela novidade e trocado seu clima suave pelo nosso!),

ignorando quanto lhes custará de tranqüilidade e felicidade o conhecimento de

nossos costumes corrompidos, e quão rápida será a sua perda, que suponho já

iniciada, estiveram em Ruão quando ali se encontrava Carlos IX”. Estranharam

barbudos obedecendo criança e a metade faminta não se insurja contra os

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alimentados. Tudo isso é interessante, “mas, que diabo, essa gente não usa

calças!”

1, 36, 210 (do hábito de se vestir) “...e pergunto a mim mesmo se o fazem

[andam nus] por causa da temperatura elevada (como o dizem, no que respeita

aos índios e aos mouros) ou porque originalmente assim andaram os homens.

Estando tudo o que sob os céus submetido (1) às mesmas leis, como diz a (A)

Bíblia, admitem as pessoas sensatas que nas questões dessa ordem, para

distinguir as (1.1) leis naturais das (1.2) por nós inventadas, é preciso que nos

reportemos às regras gerais que presidem ao trabalho da (B) natureza neste

mundo e que não sofrem alteração”.

1, 36, 211 (do hábito de se vestir) “É fácil de se compreender que é o costume

que nos faz parecer natural o que não o é, pois, entre os povos que não usam

roupa, alguns habitam em climas semelhantes ao nosso e outros bem mais

rudes.

1, 41, 269 (vãs são as palavras) “As repúblicas bem organizadas e

administradas não deram muita importância aos oradores. Assim foi em Creta e

na Lacedemônia. [...] Sócrates e Platão a definem como a arte de enganar e

adular”.

Natureza e Governo (Cont. 1)Livro 2: 37 Ensaios;

2, 1, 291 (da incoerência de nossas ações) “Os que se dedicam à crítica das

ações humanas jamais se sentem tão embaraçados como quando procuram

agrupar e harmonizar sob uma mesma luz todos os atos dos homens, pois

estes se contradizem comumente e a tal ponto que não parecem provir de um

mesmo indivíduo.”

2, 1, 291 (da incoerência de nossas ações) “É aparentemente possível julgar

um homem pelos fatos mais comuns de sua vida; mas, dada a instabilidade

natural de nosso costumes e opiniões, pareceu-me muitas vezes que os

melhores autores erravam em se obstinar a dar de alguém uma idéia bem

assentada e lógica. Adotam um princípio geral e de acordo com este ordenam

e interpretam as ações, tomando o partido de as dissimular quando não as

deformam para que entrem dentro do molde preconcebido”.

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2, 1, 292 (da incoerência de nossa ações) “Hesitamos em tomar partido; nada

decidimos livremente, de maneira absoluta, coerente. Se alguém traçasse e

estabelecesse determinadas leis de conduta e regime político de vida,

veríamos brilhar em seus atos e atitudes uma harmonia cabal e em seus

costumes uma ordem e uma correlação evidentes”.

2, 1, 292 (da incoerência de nossas ações) “Somos todos constituídos de

peças e pedaços juntados de maneira casual e diversa, e cada peça funciona

independentemente das demais. Daí ser tão grande a diferença entre nós e

nós mesmos quanto entre nós e outrem: ‘Crede-me, não é coisa fácil conduzir-

se como um só homem’”. É muito difícil julgar alguém pelos seus atos

exteriores, é preciso penetrar na pessoa, e como isso é difícil, recomenda que

poucas pessoas o façam.

2, 2, 296 (da embriaguez) “O mundo não é senão variedade e dessemelhança.

Os vícios têm em comum o fato de serem vícios”. [...] “Há tanta diversidade no

vício quanto em qualquer outra coisa”.

2, 8, 331 (da afeição dos pais pelos filhos) “Se alguma lei natural existe, isto é,

algum instinto que se manifeste sempre em todos, bichos e gente (embora haja

quem diga o contrário), é, ao meu ver, a da afeição que quem engendra dedica

ao engendrado, sentimento esse que vem logo após o cuidado que cada qual

tem com a sua conservação e com evitar o que lhe pode ser nocivo. A própria

natureza o parece ter desejado, a fim de que as diferentes peças da maquina

por ela criada se desenvolvam e prodigam”.

2, 23, 61 (dos meios e dos fins) “Existe na organização da natureza uma

maravilhosa correlação e uma similitude que não resultam do acaso nem

podem provir da vontade de muitos. As doenças, as condições diversas de

nosso corpo, vêem-se também nos Estados e governos. Como os indivíduos,

os reinos e repúblicas nascem, crescem e definham ao ser atingidos pela

idade”.

2, 30, 83 (a propósito de uma criança monstruosa) “Esse duplo corpo e esses

múltiplos membros ligados a uma só cabeça, poderiam muito bem constituir um

bom prognóstico para o nosso rei, pressagiando a coexistência de vários

partidos sob as suas leis. Mas é melhor deixá-lo de lado, pois os

acontecimentos podem desmenti-lo. É mais seguro prognosticar os fatos

consumados ‘mediante interpretações que os enquadrem nas conjeturas’,

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como diz Cícero e também Epimênides, de quem afirmavam que adivinhava

‘para trás’.”

2, 30, 83 (a propósito de uma criança monstruosa) Só Deus pode saber o que é

monstruoso, o que se apresenta para os homens não o são para os olhos

divinos. Acredito que ele quer descaradamente influenciar, tal como Schaefer o

fala. “Tudo o que emana de Sua infinita sabedoria é belo e decorre de leis

gerais; mas, as relações dessas coisas entre si e sua ordenação escapam-

nos”.

2, 37, 122 (da semelhança dos filhos com os pais) “Não sou hostil ao

aproveitamento dos produtos naturais e não duvido da eficiência dos recursos

da natureza, nem da possibilidade de os utilizarmos. Bem vejo como os

pássaros e os peixes têm razão de confiarem nela, desconfio das intervenções

de nosso espírito, de nossa ciência, de nossa arte que não sabemos conter

dentro de prudentes limites e pelas quais nós abandonamos a natureza e suas

leis”.

Natureza e Governo (Cont. 2)Livro 3: 13 Ensaios

3, 1, 141 (do útil e do honesto) “Como quer que encaremos este nosso mundo,

vemo-lo cheio de imperfeições; nada é inútil entretanto na natureza, nem

mesmo as inutilidades. Nada existe que não tenha sua aplicação. Nosso ser é

um aglomerado de qualidades que são ao mesmo tempo defeitos”.

3, 1, 147 (do útil e do honesto) “A justiça em si, em seu estado natural, é

universal e tem regras diferentes e mais elevadas do que essa justiça especial,

nacional e condicionada às necessidades dos governos: ‘Não temos modelo

sólido e positivo do verdadeiro direito e da justiça perfeita; temos apenas uma

imagem dela, uma sombra’ (Cícero).

3, 6, 236 (dos coches) “Nosso mundo acaba de descobrir outro não menor,

nem menos povoado e organizado do que o nosso (e quem nos diz que será o

último?) e, no entanto, tão jovem, que ignora o a-bê-cê [...] Receio, porém, que

venhamos a apressar a decadência desse novo mundo com nosso contato e

que ele deva pagar caro nossas artes e idéias”.

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3, 9, 273 (da vaidade) “Pois todas as medidas imaginadas artificialmente [para

organizarem os homens por meio das leis] revelam-se ridículas e ineptas na

prática. Essas grandes e prolixas discussões acerca da melhor forma de

governo somente são úteis como exercícios espirituais, semelhantes nisso a

certas questões artísticas que só interessam como temas de controvérsia,

porquanto fora desse clima não existem. Alguns desses projetos de governo

poderiam talvez aplicar-se a um muno novo, mas estamos em um mundo já

velho em que reinam certo costumes; não o criamos, nós outros, como fizeram

Pirro ou Cadmo. Quaisquer que sejam as possibilidades que tenhamos de

corrigi-lo e reorganizá-lo, não podemos, sem o quebrar, dobrá-lo até perder o

vinco antigo. [...] A melhor forma de governo de um país é aquela que vem

sendo adotada tradicionalmente e não a ideal, pois sua eficiência depende

somente dos costumes. Nós nos queixamos das condições presentes; mas

creio errado querer, em uma democracia, que o poder se concentre em poucas

mão, ou, numa monarquia, que outro governo substitua o existente [...] Nada

me parece mais grave par um país do que uma mudança radical. Esta é que

permite o aparecimento da tirania e da injustiça. Quando uma peça qualquer se

estraga, cabe consertá-la, pois assim podemos evitar que a alteração e a

corrupção inerentes a todas as coisas não nos afastem demasiado de nossos

princípios e instituições; mas querer refundir tão grande massa e trocar os

alicerces de tamanho edifício é fazer como os que, para melhorar, apagam

tudo, para corrigir um defeito tudo desmantelam, para curar matam o doente:

‘Não é bem mudar que pretendem; é destruir’(Cícero)”. [Aqui as analogias

remetem a comparação do Estado a um corpo refém de procedimentos da

medicina] [...] todas as grandes mudanças abalam o Estado e provocam a

desordem. “Quem consultasse os interessados antes de tentar a cura ficaria

logo hesitante”.

3, 9, 274 (da vaidade) “A conservação dos Estados é coisa que provavelmente

ultrapassa nossa inteligência. Um governo é, como diz Platão, uma força difícil

de se dissolver; resiste muitas vezes a doenças mortais que o roem

interiormente; mantém-se, apesar das leis injustas, a despeito da tirania, da

prevaricação, da ignorância dos magistrados, da licença e da sedição dos

povos”.

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3, 9, 275 (da vaidade) “Se o mal é universal, podemos encontrar nessa

generalização razões de sobra para nos consolarmos e até a esperança de

durarmos, pois nada cai quando tudo cai. Uma doença que a todos atinge

torna-se um estado normal de saúde para os indivíduos. Onde tudo é igual não

pode haver dissolução”.

3, 9, 280 (da vaidade) “Já me dão muito os príncipes, quando nada me tiram, e

fazem-me um bem suficiente quando não me prejudicam. E tudo o que lhes

peco. Como agradeço a Deus por somente dever a Sua bondade, tudo o eu

possuo!”

3, 9, 283 (da vaidade) “A febre atual atacou nosso corpo, sem entretanto

agravar o estado em que se encontrava; a brasa dormia e agora surge a

chama, eis tudo”.

3, 9, 296 (da vaidade) “’Devemos agir de maneira a não ir de encontro à

natureza universal, sem entretanto deixar de seguir nossos próprias

tendências’”(Cícero).

3, 10, 310 (do domínio da própria vontade) “As leis da natureza nos ensinam.

Os sábios dizem que a natureza não faz indigentes e quem o é, só o é em

conseqüência da desordem de sua imaginação. E distinguem com sutileza os

desejos naturais dos que nós mesmos criamos. Os que são realizáveis vêm

dela; os que não podemos satisfazer nascem de nossa fantasia. A pobreza de

bens é facilmente remediável; a da alma não tem cura. ‘Se o homem se

contentasse com o suficiente, eu seria rico; mas como o homem não contenta,

não há riqueza bastante para mim’ (Lucílio).

3, 10, 311 (do domínio da própria vontade) “A natureza exige muito pouco para

nossa conservação, tão pouco que foge aos golpes possíveis da má sorte.

Entretanto, permitam-nos algo mais e chamemos natureza aos costumes e

situação pessoal e fixemos assim os limites de nossas aspirações, levando em

conta o que já possuímos. Parece-me desculpável agir desse modo, pois os

costumes são uma segunda natureza, tão poderosa quanto a primeira”.

3, 11, 324 (dos coxos) “Nosso raciocínio é capaz de reconstruir um mundo

como o nosso e descobrir-lhe os princípios e a organização; não precisa para

tanto nem de base nem de materiais; basta-lhe deixar-se levar, ‘hábil que é em

dar um corpo a fumaça’ (Pérsio). Constrói tão bem sobre o vazio como sobre o

cheio, com nada como com alguma coisa”.

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3, 11, 325 (dos coxos) “Disso resulta conhecermos as causas e os efeitos de

mil coisas que nunca existiram, e discutirem os indivíduos acerca de assuntos

em que o pró e o contra são igualmente falsos...”.

3, 11, 325 (dos coxos) “O erro individual forma o erro público, o qual, por sua

vez, cria o erro individual. Assim, vai-se a coisas enraizando, de mão em mão,

a ponto de cada nova testemunha se achar mais bem-informada do que a

precedente, e a última mais convencida do que a primeira. É uma progressão

natural; quem quer que acredite em algumas coisas, considera obra convencer

a outrem”.

3, 12, 332 (da fisionomia) “Nosso mundo é feito de ostentação; os homens

incham-se de vento e andam aos saltos como os balões”.

3, 12, 332 (da fisionomia) “Nessas doenças dos povos, podem-se, no início

distinguir os enfermos dos sãos. Mas quando a doença se prolonga, como em

nosso caso, todo o corpo se ressente, da cabeça aos pés, nenhuma parte

permanece isenta de corrupção, pois não há ar que mais gulosamente se

respire e penetre um organismo do que o ar da licença”.

3, 13, 355 (da fisionomia) “A natureza cria sempre leis melhores do que as

nossas. Atestam-no a idade de ouro de que falam os poetas e o estado natural

em que vemos viverem os povos que não conhecem leis artificiais”.

3, 13, 361 (da experiência) “Nesse grande todo abandono-me despreocupado e

ignorante à grande lei geral que rege o mundo; conhecê-la-ei suficientemente

quando lhe sentir os efeitos. Meu saber não pode afastá-la de seu caminho;

não se modificará por mim, seria loucura esperá-lo; e maior loucura ainda

aborrecer-me, pois necessariamente é ela igual, para todos e a todos se aplica.

A bondade, o poder de quem governa o mundo exime-nos de qualquer

ingerência em suas leis. As pesquisas e as contemplações dos filósofos

servem apenas de alimento para nossa curiosidade. Têm razão quando

apontam a natureza; mas de que vale tão sublime conhecimento?”

3, 13, 389 (da experiência) “Mas eu, homem de gosto pouco requintado, não

posso ventilar tão singelo tema sem deixar de inclinar-me fortemente para os

prazeres presentes da lei humana e geral, intelectualmente sensíveis e

sensivelmente intelectuais”.

3, 13, 390 (da experiência) “A boa mãe natureza fez que os atos que somos

instigados a praticar, para satisfazer às nossas necessidades, nos dessem

-117-

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igualmente prazer. Incita-nos não somente pela razão mas ainda pelo desejo, e

é erro ir de encontro a suas regras”.

3, 13, 390 (da experiência) “Não soubesses então dirigir a vossa vida? Tereis

nesse caso cumprido a mais bela das tarefas. Para se manifestar e frutificar, a

natureza não precisa da fortuna; sua ação se exerce em todas as condições

sociais: às ocultas como a descoberto”.

MáscaraTrata dos fragmentos abordados direta e indiretamente nesse item.

Livro 1: 57 Ensaios;

1, 19, 91 (somente depois da morte...) “na última cena, a que se apresenta

entre nós e a morte, não há como fingir”

1, 9, 57 o campo de ação da mentira não comporta limites; não tem força de

vontade para não fazer uso da mentira em situação perigosa.

1, 23, 117 (dos costumes e da...) ... “a questão religiosa, a que misturam tantas

imposturas”...

1, 23, 126 (dos costumes...) “empregam eufemismos para qualificar as piores

paixões políticas, para apresentá-la de um ângulo favorável, desculpar-lhes os

atos, alterar e atenuar as idéias que teriam despertado se usassem seus

verdadeiros nomes.”

1, 23, 127 (dos costumes...) “E direi francamente que me parece sinal de

excessivo amor-próprio e grande presunção valorizar alguém sua opinião a

ponto de tentar, a fim de vê-la triunfar, subverter a paz pública em seu próprio

país, facilitando o advento dos males inevitáveis inerentes à guerra civil, sem

falar no horrível corrupção da moral e nas mutações políticas que podem

ocorrer.”

1, 38, 217 (como uma mesma coisa nos faz rir e chorar) “Sem dúvida nossas

ações, em sua maioria, são máscara e artifício, e é verdade por vezes que ‘as

lágrimas do herdeiro se fazem risos sob a máscara’ (Públio Siro). Segue-se

disso a explicação das diversas paixões que agitam a alma. Humores,

sentimentos, idiotia; a alma muda o ponto de vista, vê com outros olhos, por

outros ângulos, diferentes lados e aspectos diversos.

-118-

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1, 25, 143 (do pedantismo) “Pois detesto as pessoas que suportam mais

dificilmente um terno mal feito do que uma alma e julgam a qualidade do

homem pelas reverências, as atitudes, e as botas.”

1, 32, 203 (de como é preciso prudência...) “No desconhecido situa-se o

verdadeiro campo de ação da impostura; já porque a própria extravagância a

favorece e lhe dá crédito, já porque, escapando à razão comum, não temos

meios para a combater.” Fabula, alquimia, quiromancia, alguns teólogos.

Máscara (Cont. 1)Livro 2: 37 Ensaios;

2, 1, 295 (da incoerência de nossas ações) “Somos um amontoado de peças

juntadas inarmonicamente e queremos que nos honrem quando não o

merecemos. A virtude vale por si mesma; se para outro fim tomamos a sua

máscara, logo ela no-la arranca da cara. Quando nossa alma se impregna dela,

forma ela uma espécie de verniz fortemente adesivo que só se tira com a

própria pele”. Assim, para conhecer alguém é preciso seguir os seus passos e

achar a constância, se mostrar diferente, abandonemo-lo.

2, 8, 331 (da afeição dos pais pelos filhos) “...devemos atentar para os

desígnios da natureza, sem contudo nos escravizarmos a ela, pois somente a

razão deve regular as nossa inclinações”.

2, 10, 348 (dos livros) “O que escrevo resulta de minhas faculdades naturais e

não do que se adquire pelo estudo”.

2, 11, 358 (da crueldade) “Parece-me que a virtude é coisa diferente, e mais

nobre, do que as inclinações para a bondade, que nascem em nós. As almas

nascidas e naturalmente bem equilibradas seguem caminhos idênticos e

apresentam em suas ações fisionomia igual à das virtuosas. Mas a virtude

revela não sei que de maior, mais ativo, do que deixar-se, sob a influência de

uma feliz compleição, serenamente conduzir pela razão.”

2, 11, 358 (da crueldade) Virtude não é apenas fazer o bem. “... que a virtude

recusa a companhia da felicidade; e que esse caminho cômodo, de declive

suave, pelo qual nos deixamos levar naturalmente, não é o da verdadeira

virtude. O caminho desta é árduo e espinhoso”.

-119-

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2, 11, 362 (da crueldade) Ele está procurando uma definição de virtude e chega

em Platão. “Quem tem em seu cérebro algumas noções, embora sucintas, de

filosofia, poderá representar-se Sócrates em sua prisão, acorrentado e

condenado, livre unicamente de seus temores?” Quer induzir que havia em

nele a virtude.

2, 17, 22 (da presunção) “Há outro tipo de glória que consiste em termos

opinião demasiado boa de nós mesmos. Essa afeição imprudente faz que nos

representemos aos nossos próprios olhos diferentes do que somos. E atua

como a paixão amorosa, que empresta ao objeto de seu amor a beleza e a

graça, turvando e alterando a razão de quem ama e fazendo da pessoa amada

um ser muito mais perfeito do que é.”

2, 17, 23 (da presunção) ele acredita que não segue as convenções ao falar de

si mesmo e seus atos.

2, 17, 35 (da presunção) Em relação ao século: “Quanto a essa nova virtude do

artifício e da dissimulação, tão apreciada nestas eras, odeio-a supremamente.

Entre todos os vícios, não conheço nenhum que revele tanta covardia e tanta

covardia e tanta baixeza. É característico da covardia e do servilismo, e

predispõe à perfídia, fantasiar-se e mascarar-se e não se mostrar como se é”.

2, 17, 35 (da presunção) “Não sei que vantagem podem esperar dissimulando

e agindo continuamente ao contrário do que pensam, senão a de que os outros

acreditam como quando falam a verdade”. Mas dizer abertamente que quem

não dissimula o pensamento em público não governa, é dizer que só se

governará com mentiras”.

2, 27, 68 (a covardia é mãe da crueldade) “Vi gente cruel ter a lágrima fácil a

propósito de coisas insignificantes”.

Máscara (Cont. 2)Livro 3: 13 Ensaios

3, 1, 145 (do útil e do honesto) “As pessoas de duas caras são úteis pelo que

trazem, mas é preciso atalaia para que levem o menos possível”.

3, 1, 146 (do útil e do honesto) “...a própria inocência não poderia, em nossa

época, dispensar a dissimulação, nem negociar sem mentir. Daí não serem os

cargos públicos do meu agrado;”

-120-

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3, 2, 156 (do arrependimento) “Só nos mesmos sabemos se somos covardes e

cruéis, ou leais e religiosos; não nos vêem os outros, tão-somente nos

adivinham de acordo com conjeturas duvidosas. Não é a nossa natureza real

que percebem, e sim a aparência que, mediante artifícios, conseguimos exibir”.

3, 2, 156 (do arrependimento) “Deliciosa é a vida de quem obedece à regra,

mesmo na intimidade. Todos podem fazer-se comediantes e representar o

papel de um personagem honesto. Mas dentro de nós, onde somos senhores,

onde tudo permanece secreto, é difícil não nos afastarmos da regra. E ser

ponderado em assunto que não suporta a interferência alheia, é aproximar-se

da perfeição”.

3, 2, 157 (do arrependimento) “Há quem passe aos olhos do mundo por ter

realizado milagres, sem que a mulher ou o criado o tenham percebido. Poucos

homens suscitaram a admiração de seus lacaios; ninguém é profeta em sua

casa, nem mesmo em seu país, dizem as lições da História”.

3, 2, 157 (do arrependimento) “E mesmo que os atos humildes da vida privada

se ordenassem admiravelmente, fora preciso um juízo penetrante e

particularmente lúcido para constatá-lo, pois a ordem é uma virtude sem brilho

e que não atrai atenção”. Ele fala das discrepâncias entre o que aparece para o

público e o que acontece no privado, na vida doméstica. Ele procura a

perfeição quando ambas se equilibrarem.

3, 2, 158 (do útil e do honesto) “O mérito da alma não consiste em se elevar

mais algo e sim em se conduzir ordenadamente. Sua grandeza não se

manifesta na grandeza, mas na mediocridade”.

3, 2, 158 (do útil e do honesto) “Os que nos julgam pelas aparências brilhantes

que percebem de fora deduzem que por dentro somos iguais; não podem

estabelecer uma ligação entre as faculdades comuns, semelhantes às deles e

que também existem em nós, e as que os espantam e se acham tão longe do

que procuram ver”.

3, 2, 159 (do arrependimento) “... antes me encontro sempre bem firme em

meu equilíbrio, como os corpos pesados e maciços. Se não estou na inteira

posse de mim mesmo, acho-me no ponto de me dominar”.

3, 2, 159 (do arrependimento) “O que verdadeiramente nos condena, e afeta a

maneira de se ser de todos, é que o próprio arrependimento se acha

corrompido pelas más intenções. Temos apenas confusamente o desejo de

-121-

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nos corrigir, iludimos a penitência e nos conduzimos então pior ainda do que no

pecado”.

3, 9, 283 (da vaidade) “Não quero esquecer-me de que, por mais irritado que

ande contra a França, não deixo de olhar Paris com bons olhos. Esta cidade

conquistou-me o coração desde criança e quanto mais belas cidades conheço

tanto mais ela cresce na minha afeição. Amo-a pelo que é e como é, e mais em

sua vida habitual do que nas épocas de festas; amo-a com ternura e até em

suas imperfeições e seus vícios; e só me sinto francês por causa dessa grande

cidade, grande pelo seu povo e pela sua localização, e grande ainda, e

principalmente, pela variedade e diversidade dos prazeres e vantagens que

nos oferece. É a glória de França e um dos mais nobres ornamentos do

mundo. Que Deus afaste dela as nossas dissensões!”

3, 9, 287 (da vaidade) “Na verdadeira amizade, e bem a conheço, damos ao

amigo mais do que tiramos. Não somente prefiro fazer-lhe bem a receber dele

favores mas ainda prefiro que o faça a si mesmo a fazê-lo a mim”.

3, 9, 289 (da vaidade) “Tiro deste estudo de meus costumes um inesperado

proveito: serve-me até certo ponto de regra de conduta. Obriga-me por vezes a

não desmentir o que sempre fui. Esta declaração pública força-me a manter-me

obediente à direção tomada e a não desacreditar a descrição de minhas

condições, por certo menos desfiguradas e contraditórias do que seriam

através de falsos juízos”.

3, 9, 290 (da vaidade) “Gostaria de viver em um país onde tais questões

[cargos e honrarias] fossem reguladas ou desprezadas”.

3, 9, 297 (da vaidade) “Vi outrora um senhor de boa sociedade dar ao público

por um lado um punhado de versos notáveis pela beleza e o despudor e por

outro propagar uma defesa violenta da Reforma. Assim são os homens; deixam

que os príncipes e as leis sigam um caminho e eles próprios seguem outro, e

não somente por desregramento de costumes, mas também porque não raro

pensam e julgam diferentemente”.

3, 9, 297 (da vaidade) “Sólon, por exemplo, ora se apresenta como indivíduo,

ora como legislador, falando ora para si mesmo, ora para as massas. No

primeiro caso atém-se às regras naturais e diz com liberdade o que pensa, ‘ao

passo que o doente grave precisa ser tratado pelos mais hábeis

médicos’(Juvenal).

-122-

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3, 9, 298 (da vaidade) “Em todo caso essa liberdade discutível de se

apresentar com duas caras, uma nas palavras e outra nos fatos, será talvez

permitida a quem fale de certos assuntos, não a quem trate de si mesmo como

o faço”.

3, 9, 298 (da vaidade) “A virtude que as coisas deste mundo exigem é uma

virtude flexível, capaz de se adaptar à fraqueza humana; não é pura nem

simples; não é reta, constante, imaculada”.

3, 10, 312 (do domínio da própria vontade) “A maior parte das funções públicas

tem algo de cômico, ‘todos representam’, dizia Petrônio. Cumpre desempenhar

devidamente seu papel, mas sem transformar a máscara e a aparência em

realidade nem deixar que o estranho se encarne em nós. Não sabemos

distinguir a pele da camisa. Basta enfarinhar o rosto, não é preciso mascarar

igualmente o peito. Há quem mude e se transforme em outro ser segundo o

cargo que assume; neste mergulham até o fígado e os intestinos e mesmo na

vida privada agem como se estivessem no exercício de suas funções. Gostaria

de ensinar-lhes a diferençar as saudações que se dirigem a suas pessoas das

que visam o mandado, o séquito ou a mula que montam”.

3, 10, 310 (do domínio da própria vontade) “Montaigne prefeito e Montaigne

simples particular sempre foram homens distintos”.

3, 10, 319 (do domínio da própria vontade) “Em sua maioria os acordos com

que hoje pomos fim a nossas dissensões são vergonhosos e hipócritas;

procuramos apenas salvar as aparências e por isso traímos e negamos nossas

verdadeiras intenções. Sabemos em que circunstâncias falamos, o sentido que

deve ser dado às nossas palavras; sabem-no também os assistentes, como

sabem igualmente os amigos perante os quais quisemos engrandecer-nos. De

forma que é a expensas da nossa fraqueza, de nossa honra e de nossa

coragem que negamos nosso pensamento; e buscamos as escapatórias da

falsidade para alcançar o acordo”.

-123-

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LeiTrata dos fragmentos abordados direta e indiretamente nesse item.

Livro 1: 57 Ensaios;

1, 3, 40 príncipe submetido a leis, devemos-lhe disciplina e obediência sincera;

justiça privada e prejuízo público.

1, 23, 115-129 (dos costumes e da inconveniência de mudar sem maiores

cuidados as leis em vigor) lei decorre do hábito

1, 23, 122 (dos costumes...) “As leis da natureza nascem dos costumes”, pois

todos aclamam os que existem em sua sociedade

1, 23, 123 (dos costumes...) o pudor se impõe pelo costume, não pela

natureza.

1, 23, 125 (dos costumes...) “Observar as leis do país em que nos encontramos

e a primeira das regras, e uma lei que prima sobre as demais: ‘e belo obedecer

às leis de seu país’.”

1, 23, 125 (dos costumes...) “Encaremos a questão por outro ponto de vista. É

duvidoso que a vantagem que pode haver em modificar uma lei por todos

acatada, seja incontestavelmente maior do que o mal resultante da mudança;

tanto mais quanto os usos e costumes de um povo são como um edifício

constituído de peças diversas de tal maneira juntadas que é impossível abalar

uma sem que o abalo se comunique ao conjunto.”

1, 23, 126 (dos costumes...) “As nossas próprias leis, feitas para remediar o

mal inicial, fornecem meios e desculpas a todos os maus empreendimentos.”

1, 23, 128 (dos costumes...) “No que diz respeito à grande querela que nos

divide atualmente, em que há cem artigos a suprimir ou a introduzir e todos de

primeira importância, só Deus sabe quantas pessoas podem vangloriar-se de

terem estudado as razões essenciais, a favor ou contra, de cada partido.”

1, 39, 223 (da solidão) Por que, desobedecendo às suas leis, nos colocaríamos

no que respeita à nossa comodidade, sob a dependência de outrem?

Lei (Cont. 1)Livro 2: 37 Ensaios;

-124-

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2, 8, 341 (da afeição dos pais pelos filhos) “Em geral a melhor partilha que

podemos fazer de nossos bens ao morrer consiste em obedecer aos costumes

do país, e as leis os levaram em conta melhor do que faríamos, e é preferível

que elas se enganem na escolha a incorrermos nós mesmos no erro agindo

inconsideradamente”.

2, 17, 42 (da presunção) “As nossas leis, como as nossas roupas, não têm

forma definitiva. É fácil acusar um governo de imperfeição, coisas comum a

tudo o que é mortal; é fácil impelir o povo ao desprezo pelo que apreciava

antes; quem quer que o tenha tentado alcançou-o. Mas substituir por algo

melhor o que se destruiu, muitos o experimentaram sem resultado. Em minha

conduta, dou pouca importância à minha própria opinião; sigo aquilo que

assegura a ordem pública. Feliz o povo que faz o que lhe ordenam melhor do

que quem ordena, e entrega serenamente à Providência. Quem discute e

critica nunca obedece sem segunda intenção, e totalmente.”

2, 27, 74 (a covardia é a mãe da crueldade) “Tudo o que ultrapassa a morte

pura e simples se me afigura cruel. Nossa justiça não pode esperar que se

amedronte ante a morte pelo fogo ou tortura, e deixe de cometer crimes, quem

os comete apesar da ameaça da forca e da decapitação. Ademais, suspeito

que estejamos instigando ao desespero aqueles a quem infligimos tais

suplícios, pois em que estado da alma pode achar-se um home que permanece

vinte e quatro horas sobre uma roda, membros partidos, ou pregado a uma

cruz como outrora?”

2, 37, 122 (da semelhança dos filhos com os pais) “Assim como enfeitamos

como o nome de justiça um amontoado de leis, não raro aplicadas de maneira

inepta e iníqua (e quem as critica não pensa em condenar a nobre virtude mas

tão-somente o abuso de colarem um respeitável rótulo em tão lamentável

sistema)”... ele está fazendo uma analogia com a medicina.

Lei (Cont. 2)Livro 3: 13 Ensaios

3, 1, 145-146 (do útil e do honesto) “Pouparam-me as leis graves dificuldades:

indicaram-me o partido que me cumpria tomar, apontaram-me o meu chefe;”

[...] Nossa vontade e nossos desejos só a eles mesmos obedecem, mas

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nossos atos devem atentar para as leis que regulam e resguardam a ordem

pública”.

3, 9, 272 (da vaidade) “A necessidade reúne e acomoda os homens e essa

ligação fortuita transforma-se em seguida em leis; entre as quais se deparam

as mais selvagens imagináveis, deram resultados mais felizes e duradouros do

que as que Platão e Aristóteles teriam sido capazes de fazer”.

3, 9, 278 (da vaidade) “Lamento não estar protegido por leis e ser obrigado a

buscar outra salvaguarda. Vivo assim em boa parte graças à benevolência

alheia, o que me pesa extraordinariamente”.

3, 9, 297 (da vaidade) “Como nossa licença nos solicita quase sempre mais do

que o razoável, não raro apertaram-se mais do que fora indicado às leis e os

preceitos de nossa vida. ‘Nunca se pensa delinqüir além do limite permitido’

(Juvenal). Seria desejável que entre a ordem e a obediência houvesse mais

justa proporção; parece estúpido propor-nos um objetivo que não temos a

possibilidade de atingir. Não há homem de bem, dedicado aos estudos das leis,

que não se encontre de vezes na vida no caso de ser condenado à forca. E

entre eles alguns seriam punidos mui injustamente”.

3, 9, 298 (da vaidade) “Estamos longe de ser gente de bem segundo a doutrina

divina. Nem o poderíamos ser com as regras que nós mesmos criamos. A

sabedoria humana não cumpriu jamais os deveres que ela própria se propôs;

se o houvesse conseguido, estabeleceria desde logo outros mais rigorosos

ainda, pois nossa natureza é hostil a tudo o que é realizável. O homem obriga-

se a si mesmo continuamente a errar e passa a vida a criar deveres feitos para

outros seres que não ele. Por que determinar o que não se espera que alguém

cumpra? Teremos culpa de não fazer o impossível? As leis que nos condenam

ao que não podemos, condenam-nos pelo que não podemos”.

3, 9, 300 (da vaidade) “Enquanto souber da existência de algum representante

das leis que a monarquia nos deu, não o abandonarei; mas se porventura uma

cisão se verificasse sob a ação dos partidos contrários que as entravam, e a

escolha entre os dois fosse difícil e duvidosa, creio que me decidiria por fugir à

tempestade, no que, possivelmente, fora ajudado pela natureza ou os azares

da guerra”.

3, 13, 355 (da experiência) Não concorda que a quantidade de leis diminua o

poder do juiz. Os legisladores inventaram cem mil leis e não deram fim a infinita

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quantidade de exemplos na experiência humana. “Pouca relação existe entre

nossos atos, sempre em perpétua transformação, e as leis que são fixas e

estáticas. O mais desejável a esse respeito é que estas sejam as mais simples

possíveis e concebidas em termos gerais;”

3, 13, 359 (da experiência) “Considerai as formas de justiça que nos rege: são

um autêntico testemunho da imbecilidade humana, tal o número de

contradições e erros que computam”. “[...] Quantos inocentes sabemos terem

sido punidos, sem culpa sequer dos juízes?”

3, 13, 359 (da experiência) “Quantas condenações criminosas do que o crime

não tive a oportunidade de ver!” Conclui que a justiça só se monta com prejuízo

do particular ao geral.

3, 13, 361 (da experiência) “A autoridade das leis não está no fato de serem

justas e sim no de serem leis. Nisso reside o mistério de seu poder; não têm

outra base, essa lhes basta. Foram não raro feitas por tolos; mais vezes ainda

por indivíduos que, no seu ódio à igualdade, incorriam em falta de equidade;

mas sempre por homens e portanto por autores irresolutos e frívolos. Nada há

tão grave, ampla e comumente defeituoso quanto as leis; quem as obedece

porque são justas, labora em erro, pois é a única coisa que em verdade não

são”.

-127-

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Moderação (tolerância)Trata dos fragmentos abordados direta e indiretamente nesse item.

Livro 1: 57 Ensaios;

1, 20, 93 (de como filosofar...) “um dos principais benefícios da virtude está no

desprezo que nos inspira pela morte, o que nos permite viver em doce quietude

e faz com que se desenrole agradavelmente e sem preocupações nossa

existência.”

1, 13, 66 (cerimonial das entrevistas reais) país, cidade e profissão, cada um

tem os seus usos em questões de civilidade.

1, 14, 67 (o bem e o mal...) “Se aquilo a que chamamos mal não é nem mal

nem tormento, e se somente nossa fantasia lhe atribui tal qualidade, podemos

modificá-lo.” “Pois o destino apenas suscita o incidente; a nós é que cabe

determinar a qualidade de seus efeitos.” “Se as coisas que tememos tivessem

um caráter próprio, a todos se imporiam de igual maneira, produzindo idênticas

conseqüências.” “diversidade de opiniões”

1, 23, 115-129 (dos costumes e da inconveniência de mudar sem maiores

cuidados as leis em vigor)

1, 23, 118 “Não são os bárbaros motivo de maior estranheza pra nós do que

nós para eles” há diversos exemplos.

1, 23, 121 o que a filosofia não ensina aos ignorantes o hábito faz; ele é rei e

imperador do mundo

1, 23, 122 (dos costumes...) “...ingerimos o primeiro leite com hábitos e

costumes”

1, 23, 122 (dos costumes...) “Os povos, afeitos à liberdade e a se governarem

por si mesmo, encaram qualquer outra forma de governo como monstruosa e

contrárias à natureza”.

1, 23, 128 (dos costumes...) inovação imposta pela violência.

1, 26, 153 (da educação das crianças) “Por isso o comércio dos homens é de

evidente utilidade, assim como a visita a países estrangeiros; não para nos

informar, como fazem nossos fidalgos franceses, acerca das dimensões da

Santa Rotonda, ou da riqueza das calças da Signora Lívia, dizer-nos se a

cabeça de Nero em uma velha ruína qualquer é mais comprida ou mais larga

-128-

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do que em certas medalhas, mas para observar os costumes e o espírito

dessas nações e para limpar e polir nosso cérebro ao contato dos outros.

1, 30, 188 (da moderação) “A virtude pode tornar-se vício se ao seu exercício

nos dedicamos com demasiada avidez e violência.”

1, 30, 188 (da moderação) “Aprecio os caracteres moderados e prudentes:

ultrapassar a medida, ainda que no sentido do bem, é coisa que me espanta,

se não me incomoda, e a que não sei como chamar.”

1, 31, 193 (dos canibais) “Isso [chamar alguém de bárbaro] a que ponto

devemos desconfiar da opinião pública. Nossa razão, e não o que dizem, deve

influir em nosso julgamento.

1, 31, 194-195 (dos canibais) “O homem que tinha a meu serviço, e que voltava

do Novo Mundo, era simples e grosseiro de espírito, o que dá mais valor a seu

testemunho.” As pessoas finas deformam o relato e a verdade do que viram.

1, 31, 195 “...não vejo nada de bárbaro ou selvagem no que dizem daqueles

povos; e, na verdade, cada qual considera bárbaro o que não se pratica em

sua terra. E é natural, porque só podemos julgar da verdade e da razão de ser

das coisas pelo exemplo e pela idéia dos usos e costumes do país em que

vivemos. Neste a religião é sempre melhor, a administração excelente, e tudo o

mais perfeito.”

1, 37, 213 (Catão, o jovem) “Não cometo esse erro tão comum de julgar os

outro por mim. Acredito de bom grado que o que está nos outros possa divergir

essencialmente daquilo que está em mim. Não obrigo ninguém a agir como ajo

e concebo mil e uma maneiras diferentes de viver; e, contrariamente ao que

ocorre em geral, espantam-me bem menos as diferenças entre nós do que as

semelhanças. Não imponho a outro nem meu modo de vida nem meus

princípios; encaro-o tal qual é, sem estabelecer comparações.”

Moderação (Cont. 1)Livro 2: 37 Ensaios;

2, 5, 318 (da consciência) “A tortura é uma invenção perigosa que parece antes

pôr à prova a resistência a dor do que a sinceridade”. [...] “Daí ocorre que

aquele a quem o juiz inflige a tortura para não se expor a condenar um

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inocente, na realidade morre inocente e torturado”. [...] “... considero a tortura

um processo inumano e bem pouco útil”.

2, 11, 365 (da crueldade) “Entre os vícios, um há que detesto particularmente:

a crueldade. Por instinto e por reflexão, considero-o o pior de todos;”

2, 11, 366 (da crueldade) “Os selvagens, que assam e comem o corpo dos

mortos, provocam em mim uma impressão menos penosa do que os que os

atormentam e torturam quando ainda em vida; não posso sequer assistir

calmamente às execuções capitais impostas pela justiça, por mais razoáveis

que sejam”.

2, 11, 367 (da crueldade) por causa da guerra civil abundam exemplos de

crueldade.

Moderação (Cont. 2)Livro 3: 13 Ensaios

3, 1, 143 (do útil e do honesto) Se dedica ao rei como cidadão, quanto à causa

ele adere com moderação, racionalmente, evitando as paixões da maioria e por

isso pode andar de cabeça erguida em qualquer canto.

3, 1, 145 (do útil e do honesto) “Nada impede que inimigos leais se conduzam

de maneira sensata. Tratemos todos com igual moderação, senão com idêntica

afeição – pois esta pode realmente variar – e não nos dediquemos a ninguém a

ponto de lhe dar o direito de tudo exigir de nós”. Cuidemos da paixão, que ela

não prevaleça.

3, 6, 236 (dos coches) “Não o conquistamos pela justiça e a bondade; nem o

vencemos pela nossa magnanimidade. Na maioria das negociações que

conosco estabeleceram, provaram os indígenas do Novo Mundo que não nos

eram inferiores em clarividência e perspicácia. Nem tampouco quanto à

capacidade, como o comprova a grandiosidade de Cuzco e México onde, entre

outras coisas surpreendentes, se encontrou uma reprodução exata, de

tamanho natural e em ouro, de todas as árvores e frutos de um pomar”.

3, 6, 239 (dos coches) “...os espanhóis mandaram queimar vivos em uma só

fogueira quatrocentos e sessenta prisioneiros de guerra, dos quais sessenta

eram fidalgos dentre os principais da região. Todos esses pormenores por eles

próprios nos foram comunicados, pois não somente confessam tais

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barbaridades como delas se vangloriam. Como testemunho de sua justiça ou

para prova de seu espírito religioso? Como quer que seja, nossa santa causa

os reprova, exigente que é de meios bem diversos. Se esses bárbaros tinham a

intenção de propagar a nossa fé, deviam pensar que não é de territórios que

ela precisa apossar-se e sim de almas”.

3, 6, 241 (dos coches) “A pompa e a magnificência que reinavam nesses

países e que me induziram a ventilar o assunto, eram de tal ordem que nem

em Roma, nem na Grécia, nem no Egito se viram iguais”.

3, 8, 246 (da arte de conversar) “O mais proveitoso e natural exercício de

nosso espírito é, a meu ver, a conversação. É-me a sua prática mais agradável

do que qualquer outra. Eis por que, se me coubesse escolher, antes

consentiria, penso, em perder a vista do que o ouvido ou a fala”.

3, 9, 271 (da vaidade) “Vejo em nossos dias não fatos isolados, mas costumes

aceitos, tão ferozes, desumanos e desleais – o que na minha opinião é o pior –

que não os posso conceber sem horror”.

3, 9, 284 (da vaidade) “Não porque o disse Sócrates, mas porque em verdade

o penso, todos os homens são meus compatriotas; e sou mesmo levado a

exagerar este sentimento. Abraço um polonês como abraçaria um francês,

fazendo passar os laços que unem os indivíduos de uma nação após os que

vinculam uns aos outros os habitantes do mundo. A doçura do clima natal não

me enreda; as relações novas parecem-me valer as de minha vizinhança; e os

bons amigos que adquirimos espontaneamente são em geral melhores do que

os que devemos ao parentesco ou ao clima. Pôs-nos a natureza neste mundo,

livres de quaisquer compromissos e nós nos prendemos dentro de estreitos

limites [...]”.

3, 9, 284 (da vaidade) “... viajar afigura-se-me um exercício proveitoso, pois o

espírito vive então continuamente solicitado a observar coisas novas e

desconhecidas; e, como digo amiúde, não sei de melhor escola do que essa

que lhe mostra a grande diversidade de existência, idéias e usos entre os

homens, bem como a contínua variedade de formas da natureza”.

3, 9, 294 (da vaidade) “Adapto-me a tudo, e meus gostos são os de um homem

igual aos outros. A diversidade de costumes entre um país e outro só me

impressiona pelo prazer da variedade. Cada uso tem a sua razão de ser. [...]

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Vou ainda mais longe: não creio ter observado, em minhas peregrinações,

costumes que não valham os nossos”.

3, 13, 360 (da experiência) “... o mundo é maior e mais variado do que os

antigos – e nós mesmos – imaginamos”.

3, 13, 361 (da experiência) “Sou tão ávido de liberdade que, se me proibissem

o acesso a algum recanto das Índias, passaria a viver por assim dizer

incomodamente; e enquanto houver um lugar em que a terra e o mar sejam

livres, não residirei onde precise esconder-me”.

3, 13, 368 (da experiência) “Quantos povos, a dois passos daqui, não

consideram ridículo o nosso medo do sereno?”. “[...] Na realidade, todo povo

tem costumes e usos que não somente são desconhecidos dos outros como

ainda lhes parecem estranhos e bárbaros”.

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Ficção (idéias e realismo)Trata dos fragmentos abordados direta e indiretamente nesse item.

Livro 1: 57 Ensaios;

1, 14, 69 (o bem e o mal...) qualquer idéia pode se abater sobre nós que a

sustentemos até a morte.

1, 20, 105 (a força da imaginação) “Sou desses sobre os quais a imaginação

tem grande domínio”. “Não acho estranho que a imaginação dê febre e mesmo

provoque a morte nos que não a controlam”.

1, 21, 113-114 (a força da imaginação) estimularam que escrevesse sobre o

presente, já que conhecia de perto líderes de ambos os partidos, ao que se

negou por achar que não conseguiria um método e assiduidade que a tarefa

exigiria. “Não sei estabelecer um plano de composição, nem o desenvolver”

“pus-me a escrever o que sei dizer, adaptando o meu assunto às minhas

forças”.

1, 23, 118 (dos costumes e da...) Não se depara com nenhuma fantasia

humana, embora desprovida de sentido, sem que não se encontre exemplos

em algum costume”...

1, 23, 126 (dos costumes...) A novidade o “aborrece profundamente e creio ter

razão, pois vi os seus efeitos altamente desastrosos.” Ela foi a causa primeira

de muitas desgraças. “A Reforma abalou e desmantelou as velhas instituições

de nossa monarquia. Com ela, esse grande edifício perdeu o equilíbrio e vem

rachando na velhice e dando acesso, através das fendas, a todas as

calamidades.” “Se o mal é principalmente aos seus inventores (os huguenotes)

do movimento, mais criminosos ainda são seus imitadores (a Liga) que se

entregam aos mesmos excessos cujo horror presenciaram e de cuja repressão

participaram.” Se o mal se gradua, os huguenotes são piores pela primazia da

invenção. “Os fautores de perturbações desejosos de introduzir a desordem no

Estado podem facilmente escolher seus modelos nuns como noutros;

oferecem-lhos, ambos, de toda espécie.”

1, 27, 177 (da loucura de opinar acerca do verdadeiro e do falso unicamente de

acordo com a razão) o que causa confusão é o abandono parcial que os

católicos fazem de sua fé; “Imaginam que são moderados e sensatos cedendo

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aos adversários no que diz respeito a certos pontos em litígio”; acha que

cedem espaço para avanços dos huguenotes.

1, 30, 199 (dos canibais) “...e é pior esquartejar um homem entre suplícios e

tormentos e o queimar aos poucos, ou entregá-lo a cães e porcos, a pretexto

de devoção e fé, como não somente o lemos mas vimos ocorrer entre vizinhos

nossos conterrâneos; e isso em verdade é bem mais grave do que assar e

comer um homem previamente executado.”

1, 32, 203 (de como é preciso prudência...) “No desconhecido situa-se o

verdadeiro campo de ação da impostura; já porque a própria extravagância a

favorece e lhe dá crédito, já porque, escapando à razão comum, não temos

meios para a combater.” Fábula, alquimia, quiromancia, alguns teólogos.

1, 32, 203 (de como é preciso prudência...) “O que eu reprovo é que se apele

para os nossos sucessos felizes como meio de exaltar e consolidar nossa

religião. Nossa fé se assenta em outros alicerces, e não lhe é necessária a

ajuda dos acontecimentos.” Se há uma reviravolta, a fé pode ser abalada.

1, 32, 203 (de como é preciso prudência...) “Deus quer mostrar assim que os

bons têm outra coisa a esperar e os maus outra a temer, que não as graças e

desgraças deste mundo.”

1, 37, 213 (Catão, o jovem) “Nosso século, pelo menos no meio em que

vivemos, é tão viciado que não somente não pratica a virtude como ainda não a

concebe sequer. Dir-se-ia que já não passa ela de jargão acadêmico”.

1, 37, 214 (Catão, o jovem) “Não se verificam mais atos de virtude. Os que

assumem esse aspecto não lhe têm a essência. São o lucro, a glória, o hábito

e o medo que nos levam a praticá-los”. “Dêem-me a ação mais bela, mais pura,

e conseguirei sem dificuldade atribuir-lhe as piores intenções por móvel”. “Não

hesitaria em ampliara ainda, quanto pudesse, a sua glória [dos homens da

antiguidade] por meio de interpretações e de circunstâncias favoráveis a meu

ponto de vista, que conseguiria inventar. E creio que o resultado da imaginação

se situaria bem abaixo de seus méritos. É dever do homem de bem representar

a virtude sob as mais belas formas e não teria nada a criticar se a paixão nos

induzisse a exagerar os elogios a essa manifestações dignas de nosso

respeito.

1, 41, 233 (o homem não cede a outrem a glória que conquistou) “De todas as

quimeras do mundo, a mais admitida e universalmente espalhada é a do

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cuidado com nossa reputação e nossa glória, que apreciamos a ponto de, em

troca de tão vã imagem, de uma simples voz sem corpo, renunciarmos às

riquezas, ao repouso, à saúde, à vida, bens efetivos e substanciais”.

1, 42, 235 (da desigualdade entre os homens) “No que concerne à apreciação

das coisas, é espantoso que tudo julgando pelas suas qualidades específicas

não nos encaremos da mesma maneira.”

1, 42, 239 (da desigualdade entre os homens) “Platão está certo quando em

seu ‘Górgias’ define como tirano aquele que na cidade tem licença de fazer o

que bem entende e acrescenta que o espetáculo e a publicidade dos abusos

chocam mais, por vezes, do que os próprios abusos.”

1, 42, 240 (da desigualdade entre os homens) “Tampouco compreendo que se

acomode melhor um rei com os serviços de alguém que possui dez mil libras

de rendimento, que tomou Casal ou defendeu Siena, do que com os de um

bom e experiente criado de quarto. As vantagens do príncipe são em sua

maioria puramente imaginárias e cada camada social tem seus príncipes.”

1, 42, 240 (da desigualdade entre os homens) “Em verdade, nossas leis dão-

nos grande liberdade. O peso da autoridade real não se faz sentir mais do que

duas vezes na vida de um fidalgo francês. A sujeição completa e efetiva só se

impõe àqueles que a consideram vantajosa porque a trocam por proventos e

honrarias. Quem permanece sossegado em suas terras e sabe dirigir seus

negócios sem querelas nem processos é tão livre quanto o doge de Veneza [...]

1, 42, 241 (da desigualdade entre os homens) “Todas as verdadeiras

vantagens de que gozam os príncipes são comuns aos homens de fortuna

média (somente os deuses cavalgam animais alados e se alimentam de

ambrosia); não diferem de nós quanto ao sono e ao apetite;”

1, 42, 239 (da desigualdade entre os homens) “Mas lamento encontrar em

meus compatriotas essa inconseqüência que faz que se deixem tão cegamente

influenciar e iludir pela moda do momento, que são capazes de mudar de

opinião tantas vezes quantas ela própria muda, isto é, de mês em mês, e

forjando cada vez novas razões para justificar a seus próprios olhos seus juízos

mais díspares.”

1, 41, 269 (vãs são as palavras) “[a retórica] trata-se de um instrumento muito

adequado a excitar ou acalmar o populacho alvoroçado e que, como a

medicina, só se aplica aos Estados enfermos”.

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1, 41, 271 (vãs são as palavras) “Quando ouvis falar de metonímia, metáfora,

alegoria e outras expressões da gramática não vos parece que sejam locuções

de uma língua rara e peregrina? [...] É erro semelhante aplicar aos cargos de

nosso Estado político os pomposos títulos que usavam os romanos, pois não

há nenhuma relação nem quanto às funções nem no que concerne à

autoridade e ao poder”.

1, 45, 277 (das orações) “À semelhança do que fazem nas escolas os que

põem em discussão questões controvertidas, enuncio idéias fantasistas e mal

definidas: não a fim de provar a verdade pois não tenho tal pretensão mas para

a procurar.” E ele só as submete a Igreja, na qual e nasceu e morrerá.

Ficção (Cont. 1)Livro 2: 37 Ensaios;

2, 3, 304 (a propósito de um costume da ilha de ceos) “Dizem que filosofar é

duvidar. Com maior razão ainda fantasiar e divagar. Cabe porém aos

aprendizes inquirir e indagar; e só aos mestres resolver. O meu mestre é a

autoridade da vontade divina, a qual sem contestação possível nos rege,

pairando acima das vãs indagações humanas”.

2, 5, 316 (da consciência) com a guerra as cartas tanto se misturaram que não

é possível saber nitidamente quem é o inimigo, pois seu irmão estava no

partido contrário.

2, 16, 21 (da glória) “Se, entretanto, a idéia falsa contribui para manter os

homens no caminho do dever, e os predispõe a virtude; [...] deixemo-la

desenvolver-se”.

2, 16, 21 (da glória) “Se os homens são incapazes de apreciar a moeda

verdadeira, usa-se a falsa. Todos os legisladores assim o fizeram; não há

legislação em que não se depare com alguma mistura de cerimônias fúteis ou

de lendas fantasistas que servem para manter o povo no caminho do dever. É

por isso que em sua maioria têm elas origem na fábula e se enriquecem de

mistérios sobrenaturais, o que deu crédito a essas religiões nascidas do erro e

fez que pessoas sensatas as aceitasse.”

2, 18, 49 (do desmentido) “Quantas vezes, aborrecido, aborrecido por não ter

podido criticar abertamente tal ou qual ação, por civilidade ou prudência, eu o

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fiz nestes ensaios com a esperança de contribuir assim para a edificação de

alguém! Aliás esses golpes poéticos, ‘pan no olho, pan no focinho, pan nas

costas do sagüi’ (Marot), produzem mais efeito ainda no papel do que na

própria carne”.

2, 27, 69 (a covardia é a mãe da crueldade) “Ninguém ignora que há mais

bravura em vencer o inimigo do que em o exterminar; mais em forçar a ceder

do que em o matar. Ademais, nossa vingança é assim bem mais completa, pois

seu objetivo é sobretudo provocar o ressentimento do inimigo;”

Ficção (Cont. 2)Livro 3: 13 Ensaios

3, 1, 142 (do útil e do honesto) “Quem extirpasse o germe dos maus

sentimentos do coração do homem destruiria nele as condições essenciais à

vida. Da mesma forma, em todas as administrações existem cargos

necessários que são abjetos, detestáveis. Os vícios aí têm sua função, e

servem para soldar os diversos elementos da sociedade, como o veneno seu

utiliza na conservação de nossa saúde”. Se assim o exige o interesse público,

que o pratiquem. ...”o interesse público exige que se traia e mate”.

3, 1, 142-143 (do útil e do honesto) ele se diz num enclave diante de sua

praticas como diplomata, onde a carreira diga que se dissimule e ele não

concorda, quer mostrar-se. “Meu falar franco poupou-me a suspeita de

dissimulação”.

3, 1, 142-143 (do útil e do honesto) Acha que no momento de divisão da

política, o melhor é assumir uma posição.

3, 1, 142-143 (do útil e do honesto) “Mas não devemos denominar ‘dever’,

como fazemos diariamente, esse encarniçamento e essa rudez que engendram

as paixões e os interesses, nem devemos considerar corajosa uma conduta

prenhe de traições e crueldades”.

3, 1, 146-147 (do útil e do honesto) “Mas seria desconhecer a realidade não dar

à malandragem o mérito que lhe cabe; sei que não raro presta serviços e é

necessária em mais de uma ocasião. Há defeitos lícitos como há boas ações

ilícitas”.

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3, 1, 147 (do útil e do honesto) “Quanto a mim, emprego a linguagem comum,

distinguindo as coisas úteis das honestas, e qualificando como desonestos e

indecentes certos atos naturais, não apenas úteis mas necessários”.

3, 1, 149 (do útil e do honesto) “Em algumas choupanas tomadas de assalto

em nossas guerras civis, tive a oportunidade de ver indivíduos que, para salvar

a pele, concordavam em enforcar os companheiros; seu destino pareceu-me

bem mais lamentável”.

3, 1, 150 (do útil e do honesto) “O príncipe que por uma circunstância qualquer

ou acidente inopinado se vê forçado a faltar à sua palavra ou a desprezar o seu

dever, deve encarar tal necessidade como uma prova imposta por Deus. Não

se trata então de um defeito; sua razão vê-se constrangida a ceder diante de

outra mais poderosa; mas trata-se de uma desgraça”. [...] “Mas tal exemplo é

por certo perigoso porque faz exceção às regras naturais. É normal, pois, que

ceda quando preciso, mas que se modere então. Nenhum interesse particular

mas tão somente o interesse público deve levar-nos a violentar assim nossa

consciência; assim mesmo quando perfeitamente definido”.

3, 1, 150 (do útil e do honesto) “As guerras civis produzem com freqüência

exemplos como esses. Castigamos os cidadãos por terem acreditado em nós

quando éramos diferentes do que agora somos; o magistrado obrigado a

mudar de orientação aplica a pena a quem nada tem com isso; o professor

açoita o aluno por ter sido dócil demais, e o guia maltrata o cego. Linda

imagem da justiça!

3, 1, 152 (do útil e do honesto) “Aprendamos, pois, com tão nobre modelo, a

pensar que, mesmo contra o inimigo, nem tudo é permitido e que o interesse

geral não deve tudo reivindicar em detrimento do interesse particular: ‘O direito

privado não deve ser olvidado em meio às dissensões públicas’(Tito Lívio).

‘Não há força que nos possa levar a infringir os direitos da amizade’ (Ovídio).

Há coisas que um homem de bem não faz nem em defesa do rei, nem em

defesa da ordem e da lei, ‘pois a pátria não destrói todos os deveres, e a ela

própria convém ter cidadãos que honrem seus pais’ (Cícero). Parece-me

oportuno apregoá-lo em nosso tempo”.

3, 1, 152 (do útil e do honesto) “não é necessário que encouracemos nossas

almas como fazemos com nosso corpo; e que nossas pensas molhem na tinta

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e não no sangue”. Ele fala que não devemos desprezar família e amigos

nessas ocasiões, por eles descumpre-se a lei e o príncipe.

3, 2, 155 (do arrependimento) Montaigne fala em tom de desabafo, da coisa

que ele pode dizer tranquilamente apesar dos tormentos. “nem tampouco de

haver atentado publicamente contra as leis, ou contribuído para fazer que

prevalecessem novidades, ou participado das perturbações da ordem, ou

faltado à palavra dada. E, embora a licença da época o haja permitido e

ensinado, não pus a mão nem nos bens nem na bolsa de nenhum francês.”

3, 2, 156 (do arrependimento) “Nós, que não vivemos uma existência pública,

temos necessidade de um juiz interior que julgue nossos atos e nos anime ou

castigue.”

3, 2, 158 (do útil e do honesto) “As almas viciosas são por vezes instadas à

prática do bem; da mesma forma, as virtuosas são ocasionalmente solicitadas

pelo mal. Não as devemos julgar, portanto, senão em seu estado normal, ou

pelo menos quando mais perto se encontrem desse estado”.

3, 2, 158 (do útil e do honesto) “Imaginamos mais facilmente um operário na

privada ou com sua mulher, do que um venerável magistrado. Parece-nos que

uma pessoa tão altamente situada não desce de seu trono para viver”.

3, 2, 159 (do arrependimento) “Os que tentam corrigir os costumes de nossa

época, com idéias em voga, só corrigem a aparência viciada das coisas, mas

não o fundo delas, o qual talvez se agrave ainda. E acho a agravação possível,

porque é fácil aceitar alguém as reformas exteriores e arbitrárias, menos

custosas e de vantagens mais tangíveis que as interiores, satisfazendo assim

os vícios essenciais sem maiores riscos”.

3, 2, 160 (do arrependimento) “A devoção é a qualidade que mais facilmente se

simula, quando se acordam a ela os costumes e a vida; pois se sua essência é

abstrusa e oculta, sua aparência é pomposa e enganadora”.

3, 5, 184 (a propósito de Virgílio) “Minha filosofia atem-se aos atos e ao

presente; não se subordina à fantasia”.

3, 5, 191 (a propósito de Virgílio) “Pediram a um de nossos reis que escolhesse

entre dois candidatos a certo cargo, um dos quais era fidalgo. Ordenou ele que

se nomeasse o mais capaz, sem se levar em conta a nobreza. Assim mostrava

com precisão o lugar que esta deve ocupar”.

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3, 6, 232 (dos coches) “Os povos gostam que seus reis façam o que queremos

que façam nossos criados: tudo nos dêem com abundância e em nada toquem.

[...] A liberalidade não se justifica nos reis. Os particulares têm mais direito a

ela, pois, a rigor, um rei nada possui de verdadeiramente seu e deve-se por

inteiro aos outros. A administração não foi criada par o bem do administrador e

sim para o do administrado. Não se cria um superior em vista de sua própria

vantagem, mas em benefício do inferior;” “Não é pois a liberalidade uma grande

virtude para um rei; é, aliás, a única, como dizia o tirano Dionísio, que se alia

muito bem a tirania. A esses, príncipes, eu ensinaria de preferência este

provérbio de um lavrador da antiguidade: ‘Semei-se com a mão e não com o

saco de semente aberto’(Plutarco). Cabe distribuir a semente com cuidado e

não espalhá-la ao acaso. Cumpre-lhes pagar os serviços de tanta gente, que é

preciso que o façam com lealdade e prudência. E preferiria um príncipe

avarento a sabê-lo de uma liberalidade insensata e indiscreta”.

3, 6, 233 (dos coches) “A virtude predominante em um rei deve ser antes a

justiça, e de todas as partes desta a que melhor lhe assenta é saber distribuir

suas dádivas. As demais justiças exercem-nas os reis através de

intermediários. Uma largueza imoderada é um meio ineficiente de angariar

simpatias, porquanto aliena maior número de pessoas do que as que atrai”.

3, 7, 243 (dois inconvenientes das grandezas) “O ofício mais difícil deste

mundo é sem dúvida o de rei. Desculpo-lhes os erros de bom grado, pois

considero extremamente pesado o fardo que lhes cumpre carregar. É difícil

conservar a medida no exercício de tão grande poder, embora constitua

excepcional incentivo à virtude o fato de saber que todas as ações, boas ou

más, ficam registradas na história e atingem tanta gente. Por outro lado, tudo o

que façam visa o povo, juiz que se ilude sem maiores percalços e se contenta

com pouco”.

3, 9, 271 (da vaidade) O desacordo de costumes na França o impele a viajar.

“Facilmente me consolaria dessa corrupção tendo em conta o interesse geral:

‘Suportaria estes tempos piores do que a idade do ferro, em que faltam nomes

para os crimes e que a natureza não pode designar por nenhum novo

metal’(Juvenal); mas no que me diz respeito sofro demasiado, pois, em

conseqüência dos desregramentos inerentes a nossas guerras civis, toda a

vida decorre em um ambiente perturbado: ‘em que o justo e o injusto se

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confundem’(Virgílio). ‘Lavram a terra armados, diariamente cometem atos de

banditismo e vivem de saques’(Virgílio). Pelo nosso exemplo verifico que a

sociedade humana se perpetua de qualquer forma, aconteça o que acontecer”.

3, 9, 281 (da vaidade) “Se o destino me tivesse feito nascer em condições de

ocupar altos cargos, desejaria tornar-me estimado mais do que temido e

admirado. Teria antes me esforçado por agradar do que por tirar proveito”.

3, 9, 283 (da vaidade) “As mais diferentes vestimentas encobrem consciências

idênticas; a crueldade, a deslealdade, o roubo são piores ainda quando

protegidos pelas leis; detesto menos a injustiça declarada nas desordens da

guerra do que a que se verifica na paz e reveste formas legais”.

3, 9, 298 (da vaidade) “Tentei outrora aplicar à gestão dos negócios públicos as

regras e os princípios a que obedeço na vida particular, regras e princípios

rudes, pouco requintados, mas impolutos, que nasceram comigo ou adquiri

com minha educação e que sigo com segurança, senão com prazer. E

verifiquei que essa virtude inexperiente e escolástica é insuficiente e perigosa

nas coisas públicas”.

3, 9, 299 (da vaidade) “Julgar que alguém está apto a gerir os negócios

públicos pelas qualidades reveladas em sua vida particular, é julgar

erroneamente”.

3, 9, 299 (da vaidade) “Quem, em tempos tão ruins, se jacta de pôr a serviço

público uma virtude cândida e sincera, ou não a conhece (pois, com as

opiniões, corrompem-se os costumes) ou, se a conhece, vangloria-se

totalmente e faz, o que quer que diga, mil coisas de que sua consciência o

acusa”.

3, 9, 300 (da vaidade) “Mesmo o partido mais certo não é senão parte de um

organismo corroído; mas o membro menos doente desse organismo não deixa

de passar por são, porque somente por comparação é podemos julgar. A

inocência na vida pública mede-se segundo os lugares e as estações”.

3, 10, 307 (do domínio da própria vontade) “Se por vezes me convenceram de

me encarregar de negócios alheios, nunca prometi apaixonar-me. Prometi

encarregar-me deles, não incorporá-los a mim”.

3, 10, 307 (do domínio da própria vontade) “Os homens alugam-se; suas

faculdades não lhes são úteis senão a quem eles se escravizam. São os

locatários que vivem neles e não eles próprios. Essa disposição de espírito

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habitual não me seduz. Cumpre zelar pela liberdade de nossa alma e não a

comprometer senão em circunstâncias excepcionais, as quais são poucas”.

3, 10, 308 (do domínio da própria vontade) “Meu pai ouvira dizer que é

necessário sacrificar-se pelos outros; que o interesse particular não deve ser

levado em conta que não está em jogo o interesse geral. Em sua maioria, as

regras e os preceitos deste mundo abundam nesse sentido, tendendo a

expulsar-nos de nós mesmos em benefício da sociedade. Assim nos desviam

do que nos interessa diretamente, com receio de que nos apeguemos

exageradamente a isso, e nada se poupou nesse sentido, pois é comum aos

sábios legislar segundo a utilidade das leis e não de acordo com a realidade

das coisas”.

3, 10, 309 (do domínio da própria vontade) “Desempenhei cargos públicos sem

me afastar de mim mesmo e entreguei-me a outrem sem me perder de vista”.

3, 10, 310 (do domínio da própria vontade) “Quem só aplica nos negócios

públicos a inteligência e a habilidade, age com melhores resultados, porque

pode dissimular, ceder, diferir à vontade, segundo as circunstâncias”.

3, 10, 310 (do domínio da própria vontade) “Quem menos se irrita ou se

apaixona é quem melhor dirige o jogo, e com maiores probabilidades”.

3, 10, 310 (do domínio da própria vontade) “não pensa então em como exercer

o cargo, mas em quanto tempo se poderá exercê-lo; já ao assumi-lo temos que

atentar para o momento de deixá-lo”.

3, 10, 313 (do domínio da própria vontade) “Não sei dar-me por inteiro, e

quando minha vontade me induz a optar por um partido não crio obrigações

que contagiem meu entendimento”.

3, 10, 313 (do domínio da própria vontade) “Os que estendem seu ódio além da

causa que o motiva, como costumam fazer os homens, mostram que defendem

outra coisa e por razões de ordem pessoal”.

3, 10, 318 (do domínio da própria vontade) “Nem sempre se governa como fora

desejável; não raro mesmo atuam com violência com violência e aspereza.

Como quer que seja, a tática é boa e dá-nos algum alívio e alguma vantagem,

salvo aos que não desejam vantagem que não acarrete com ela a estima

alheia”.

3, 10, 320 (do domínio da própria vontade) “Criticam minha inatividade em um

momento em que se censuram os outros por fazerem demais”.

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3, 10, 322 (do domínio da própria vontade) “Como prefeito, cabia-me apenas

conservar e continuar, o que é possível sem ruído e sem que percebam. As

inovações ressaltam naturalmente, mas não são recomendáveis em épocas

como a nossa em que temos sobretudo que nos defender contra as novidades.

Abster-se de fazer é por vezes tão meritório como fazer; mas isso dá menor

relevo e o pouco que valho está nesse caso”.

3, 12, 326 (da fisionomia) “Monstruosa guerra! As outras são dirigidas para

fora; esta volta-se contra nós mesmo; destrói-se a si própria e morre de seu

próprio veneno. É de natureza tão maligna e desastrosa que se arruína com a

ruína que provoca; na sua cólera, esquarteja-se a si mesma”.

3, 13, 366 (da experiência) “Acontece não raro que, dada a natureza das

coisas, dizer a verdade ao ouvido do príncipe pode ser contraproducente e

mesmo injusto. Uma crítica merecida pode aplicar-se erroneamente, porque o

interesse do conteúdo deve por vezes dar prioridade às exigências imediatas

da conveniência”.

3, 13, 371 (da experiência) “Reis e filósofos precisam diariamente esvaziar os

intestinos; e também as mais belas damas. Aqueles cuja vida decorre sob as

vistas do público precisam manter um certo decoro; a minha é obscura e gozo

a vantagem de algumas liberdades naturais; demais sou soldado e gascão, um

e outro algo indiscretos; posso pois dizer o que penso desse ato”.

EpílogoTodos os temas reelaborados.

Universidade Federal Fluminense

Curso de Mestrado em Ciência Política

Dalton Franco ([email protected])

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