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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ BELISE CRISTINA ELIAS CONFLITO DE DIRETOS FUNDAMENTAIS GERADO QUANDO RECUSADA A TRANSFUSÃO DE SANGUE Biguaçu 2010

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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ

BELISE CRISTINA ELIAS

CONFLITO DE DIRETOS FUNDAMENTAIS GERADO QUANDO

RECUSADA A TRANSFUSÃO DE SANGUE

Biguaçu 2010

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BELISE CRISTINA ELIAS

CONFLITO DE DIRETOS FUNDAMENTAIS GERADO QUANDO

RECUSADA A TRANSFUSÃO DE SANGUE

Projeto de Monografia apresentado como

requisito final da disciplina de Metodologia da

Pesquisa Jurídica do Curso de Direito, da

Universidade do Vale do Itajaí.

Orientador: Prof. Dr. Marcos Leite Garcia.

Biguaçu 2010

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BELISE CRISTINA ELIAS

CONFLITO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS QUANDO RECUSADA A TRANSFUSÃO DE SANGUE

Esta Monografia foi julgada adequada para a obtenção do título de bacharel e

aprovada pelo Curso de Direito, da Universidade do Vale do Itajaí, Centro de

Ciências Sociais e Jurídicas.

Área de Concentração: Direito Constitucional e Bioética.

Biguaçu, 17 de junho de 2010.

Prof. Dr. Marcos Leite Garcia UNIVALI – Campus de Biguaçu

Orientador

Prof. MSc. Gabriel Paschoal Pitsica UNIVALI – Campus de Biguaçu

Membro

Prof. Esp. Roberta Schneider Westphal UNIVALI – Campus de Biguaçu

Membro

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TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE

Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade

pelo aporte ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do

Vale do Itajaí, a coordenação do Curso de Direito, a Banca Examinadora e o

Orientador de toda e qualquer responsabilidade acerca do mesmo.

Biguaçu, 17 de junho de 2010.

Belise Cristina Elias

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RESUMO

Garantidos pela Constituição Federal, os direitos fundamentais, em destaque nessa

pesquisa o direito à vida e à liberdade de crença, não possuem classificação

hierárquica que os distinga valorativamente uns dos outros, tornando-os igualmente

eficazes. No entanto, não é rara a ocorrência de choques entre esses interesses

constitucionalmente assegurados. A bioética e o biodireito, mediante princípios e

normas próprios, estabelecem condutas adequadas na tentativa de solucionar ditos

conflitos, contudo cada caso concreto merece análise particular. A problemática ora

abordada gira em torno da recusa ao procedimento de transfusão sanguínea

manifestada pelos adeptos à religião Testemunhas de Jeová, que por meio de seu

direito constitucional à objeção de consciência preterem o direito à vida em relação à

liberdade religiosa. Muito se discute acerca desse comportamento, havendo

decisões pendentes para ambos os lados, inclusive, referente ao impedimento

manifestado pelos pais quanto à realização de procedimento terapêutico em seus

filhos que inclua transfusão de sangue, haja vista existirem entendimentos de que

não podem os genitores, por razão de sua fé, colocarem em risco a vida de outro ser

humano sem que este demonstre compartilhar da mesma intenção. Outra situação

bastante conflituosa é a autonomia pertencente àqueles pacientes que se encontram

temporariamente incapazes, havendo discussão sobre a possibilidade de

discernimento ou não, ante eventual vontade por eles apresentada. Dessa forma,

verifica-se que inexistindo prevalência entre direitos fundamentais, não há solução

una aos conflitos gerados pela oposição dos direitos à vida e à liberdade de crença,

cabendo ao julgador buscar soluções que equilibrem as pretensões de caráter

religioso aos padrões éticos socialmente aceitos.

Palavra-chave: direitos fundamentais, bioética, objeção de consciência.

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RESUMEN

Garantizados por la Constituición, los derechos fundamentales, en esto estúdio se

ponen de relieve el derecho a la vida y a la libertad de creencias, no tienen

clasificación jerárquica que los distingue valorativamente entre si, haciendolos igual

de efectivos. Sin embargo, muchas vezes ocurren colisiones entre estos intereses

constitucionalmente asegurados. La bioética y el bioderecho com sus princípios y

normas, establecen la conducta apropiada para tratar de resolver dichos conflictos,

pero cada caso merece um análisis particular. El problema planteado gira en torno a

la negativa al procedimiento de la transfusión de sangre, expresada por los

partidarios de la religión de los Testigos de Jehová, que a través de su derecho

constitucional a la objeción de conciencia elige el derecho a la libertad religiosa y no

a la vida. Existe un debate acerca de esto comportamiento, hayendo resoluciones a

ambos lados, incluso relativas al impedimiento de los padres a respecto de los

procedimientos terapéuticos que incluyen la transfusión de sangre en sus niños,

pues estarian, em razón de su fe, poniendo em peligro la vida de sus hijos. Otra

situación muy polémica es la autodeterminación de los pacientes que se encuentren

temporalmente incapacitados, hayendo discusión acerca da validad de sus

elecciones. Así pues, no existiendo prevalencia entre los derechos fundamentales,

no hay una única solución correcta a los conflictos generados por la oposición de los

derechos a la vida y a la libertad de creencias, dejando al órgano juzgador la

búsqueda por resoluciones que logren equilibrar las demandas religiosas y las

normas éticas aceptadas em la sociedad.

Palabra clave: derechos fundamentales, bioética, la objeción de conciencia.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ......................................................................................................................... 8

DIREITOS FUNDAMENTAIS .............................................................................................. 11

1.1 DEFINIÇÃO E CARACTERÍSTICAS .......................................................................... 11

1.1.1 Controvérsias acerca da terminologia utilizada ................................................ 11

1.1.2 Diferença conceitual entre direitos e garantias fundamentais ..................... 12

1.1.3 Finalidade e características gerais ....................................................................... 13

1.1.3.1 Objetivo das garantias e direitos fundamentais ............................................ 13

1.1.3.2 Aspectos básicos ................................................................................................... 14

1.2 DIREITOS FUNDAMENTAIS NA HISTÓRIA ............................................................ 16

1.2.1 Predecessores primitivos dos direitos fundamentais..................................... 16

1.2.2 Processo de concretização das declarações de direitos ............................... 17

1.2.2.1 Fontes antecessoras de natureza inglesa ....................................................... 17

1.2.2.2 Primeiros documentos de direitos fundamentais ......................................... 18

1.2.2.3 A declaração Universal dos Direitos Humanos ............................................. 20

1.2.3 A positivação dos direitos fundamentais na legislação brasileira .............. 20

1.3.2.1 Esferas de aplicação conforme a atual Constituição ................................... 21

1.3 CRONOLOGIA GERACIONAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ..................... 23

1.3.1 Divergências em torno da denominação utilizada ........................................... 23

1.3.2 Gerações (ou dimensões) dos direitos fundamentais .................................... 25

1.3.2.1 Primeira Geração .................................................................................................... 25

1.3.2.2 Segunda geração ................................................................................................... 25

1.3.2.3 Terceira geração ..................................................................................................... 26

1.3.2.4 A existência de eventuais quarta e quinta gerações .................................... 28

BIODIREITO E BIOÉTICA ................................................................................................... 30

2.1 O SURGIMENTO DE UM NOVO DIREITO ................................................................ 30

2.2 BIOÉTICA, A ÉTICA DA VIDA ..................................................................................... 31

2.2.1 Definição ...................................................................................................................... 31

2.2.2 Surgimento e evolução histórica .......................................................................... 32

2.2.3 Princípios bioéticos básicos .................................................................................. 34

2.2.3.1 Princípio da autonomia ......................................................................................... 34

2.2.3.2 Princípio da beneficência ..................................................................................... 36

2.2.3.3 Princípio da justiça ................................................................................................ 37

2.3 A ÉTICA DA VIDA NA HUMANIZAÇÃO DOS SERVIÇOS À SAÚDE ................. 38

2.3.1 Objeção de consciência como direito do paciente: conceituação e limites .................................................................................................................................................. 41

2.3.2 Aspectos legais e doutrinários .............................................................................. 42

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CONFLITO DE DIRETOS FUNDAMENTAIS GERADO QUANDO RECUSADA A TRANSFUSÃO DE SANGUE ............................................................................................. 48

3.1 DIREITOS FUNDAMENTAIS EM CONFLITO ........................................................... 48

3.1.1 Direito à vida ............................................................................................................... 48

3.1.2 Direito à liberdade religiosa .................................................................................... 50

3.2 A COLISÃO DO DIREITO À VIDA EM RELAÇÃO À LIBERDADE RELIGIOSA .................................................................................................................................................. 51

3.3 POSICIONAMENTO JURISPRUDENCIAL E DOUTRINÁRIO .............................. 54

3.3.1 A autonomia do paciente maior e capaz ............................................................. 56

3.3.2 Incapacidade permanente ou temporária do paciente adulto ....................... 58

3.3.3 O adequado procedimento a ser adotado quando o paciente ainda é menor ...................................................................................................................................... 59

3.3.4 Da responsabilidade médico-hospitalar ............................................................. 61

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 65

BIBLIOGRAFIA ..................................................................................................................... 68

ANEXOS ................................................................................................................................. 75

Anexo A – LEI 13.324/05 .................................................................................................... 75

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INTRODUÇÃO

Trata-se de trabalho acadêmico de conclusão de curso de Direito sobre o

conflito de direitos fundamentais gerado quando recusada a transfusão de sangue,

elaborado por meio do método dedutivo.

A importância do tema se faz presente ante a constante existência de

conflitos ocorridos entre o choque de direitos fundamentais, sobretudo, relacionados

à liberdade de crença e ao direito à vida. Baseada na possibilidade de escusa

consciente garantida constitucionalmente aos indivíduos, a pesquisa propõe

demonstrar as consequências por ventura advindas da opção manifestada pelos

adeptos da religião Testemunhas de Jeová quando, em virtude de suas convicções

religiosas, recusam o procedimento terapêutico da transfusão sanguínea.

O problema consiste no fato de que invocada a objeção de consciência pelos

seguidores do testemunho de Jeová, em situações nas quais há a necessidade de

transfusão de sangue a fim de assegurar a vida do paciente, tem-se configurado o

surgimento de um choque entre direitos fundamentais garantidos pela legislação

constitucional vigente, quais sejam a inviolabilidade do direito à vida (art. 5ª caput) e

a garantia inviolável à liberdade de crença (art. 5º, VI).

A presente pesquisa possui como objetivo geral, a partir do conceito e

significado da escusa consciente, analisar mediante o conflito constitucional inerente

ao assunto, os argumentos apresentados pelas correntes divergentes, tentando, ao

final, encontrar um equilíbrio para aplicação simultânea de direitos e garantias

fundamentais de aparente equidade valorativa, mas que se tornam opostos quando

invocados em determinadas situações.

Visando um melhor entendimento acerca da matéria utilizar-se-á o primeiro

capítulo para discorrer sobre os direitos fundamentais, sua definição e

características básicas, abordando, inclusive, a existência de controvérsias

tangentes à terminologia empregada. Outro aspecto importante a ser tratado será a

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evolução histórica sofrida por esses interesses garantidos pela atual Constituição

Federal, dispondo desde o início de sua concretização até as esferas de aplicação

verificadas no texto constitucional promulgado em 1988, não deixando de mencionar

as gerações cronológicas de surgimento e reconhecimento atinentes aos direitos

fundamentais.

Exposto isso, tentar-se-á, no capítulo seguinte, mediante os preceitos e

normas norteadores da bioética e do biodireito, esclarecer quais seriam os

adequados procedimentos a serem tomados quando constatada a colisão entre

direitos de igual caráter valorativo, em destaque os direitos à vida e à liberdade

religiosa, ocasionada em razão da negativa manifestação dos indivíduos adeptos à

religião Testemunhas de Jeová referente à transfusão sanguínea. Para tanto, se faz

necessário estabelecer eventuais garantias asseguradas aos pacientes, bem como

aos profissionais atuantes na área da saúde, buscando uma análise mais equilibrada

dos argumentos e intenções apresentadas pelos polos opostos desse conflito.

Após, amparado pelas disposições anteriores, o capítulo final demonstrará

os posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais relacionados às situações

conflitantes advindas do choque entre o direito à vida, defendido sobretudo pelos

médicos, e a garantia constitucional à liberdade de escolher seguir determinada

religião, reivindicada pelos praticantes do testemunho de Jeová. Serão apontados os

entendimentos manifestados em torno de diversas temáticas, entre elas a aceitação,

ou não, da vontade dos pais quando imprescindível a transfusão de sangue em

criança pertencente à família cujos membros são adeptos da religião acima referida,

caso no qual se discute eventual risco à vida do menor gerado em consequência das

convicções de fé de seus responsáveis.

Além dessa, outra situação de considerável relevância merece apreciação

particular, qual seja a autonomia de vontade característica a pacientes cuja

capacidade encontra-se temporária ou permanentemente prejudicada. Nesses

casos, a lide reside na possibilidade de serem consideradas as manifestações

proferidas por esses seres humanos, os quais praticantes da crença religiosa em

questão, quanto à realização do procedimento terapêutico de transfusão sanguínea.

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A presente pesquisa, também procurará evidenciar que medidas são

adotadas nas ocasiões em que, sem anuência do paciente, de seus parentes, ou

responsáveis, médicos e hospitais tomam a iniciativa de aplicar tratamento, visando

a preservação da vida, sem qualquer forma de consentimento, destacando os mais

recentes posicionamentos de juristas e demais estudiosos.

Por tratar-se de assunto com notável divergência de opiniões, não será

pretendido encontrar uma única resposta como solução para os conflitos analisados,

pelo contrário, espera-se com este estudo apenas apontar os entendimentos e

justificativas defendidos por ambos os lados, tentando demonstrar que diante de

cada caso concreto cabem inúmeras interpretações.

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CAPÍTULO 1

DIREITOS FUNDAMENTAIS

Tendo como principal objetivo da presente pesquisa a análise de eventuais

conflitos ocorrentes devido ao choque entre dois ou mais direitos fundamentais,

quando reivindicados concomitantemente em determinado caso concreto, mostra-se

imprescindível a abordagem do conteúdo disposto no título II da Constituição da

República Federativa do Brasil de 1988, fazendo-se um breve estudo desde seus

aspectos gerais à evolução histórica a eles relacionada.

1.1 DEFINIÇÃO E CARACTERÍSTICAS

1.1.1 Controvérsias acerca da terminologia utilizada

A ampliação e transformação dos direitos fundamentais do homem no

decorrer da história dificultam definir-lhes um conceito único e preciso. Além disso,

aumenta essa dificuldade a circunstância de serem empregadas, tanto na doutrina

como no direito positivo, diversas expressões, tais como direitos humanos, direitos

naturais, direitos do homem, direitos subjetivos públicos, liberdades públicas, direitos

individuais e liberdades fundamentais 1.

Dessa forma, doutrinadores vêm alertando acerca da necessidade de ser

adotada conceituação unificadora, pois referidas denominações causam

ambiguidade e dissenso quando à terminologia correta a ser empregada, haja vista

possuírem conteúdo e significado próprios 2.

1SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 31. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, jun. 2008. p.175. 2PÉREZ LUÑO. apud SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6. ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 33.

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Dentre os termos usualmente empregados, três destacam-se por terem

maior aceitação no âmbito doutrinário, quais sejam direitos humanos, direitos

fundamentais e direitos do homem 3. No entanto, apesar de suas eventuais

semelhanças, possuem características singulares que os distingue uns dos outros.

Sarlet os difere da seguinte forma:

[...] cumpre traçar uma distinção, ainda que de cunho predominantemente didático, entre as expressões ―direitos do homem‖ (no sentido de direitos naturais não, ou ainda não positivados), ―direitos humanos‖ (positivados na esfera do direito internacional) e ―direitos fundamentais‖ (direitos reconhecidos ou outorgados e protegidos pelo direito constitucional interno de cada Estado) 4.

Por outro lado, atualmente ganha destaque o termo direitos humanos

fundamentais, a qual intenciona demonstrar a unidade existente entre ambos, pois

se entende que supracitada expressão não tem o condão de afastar a relevante

distinção havida entre eles, mas sim destacar o objetivo de proteção a certos valores

e reivindicações essenciais de todos os indivíduos, o qual é comum tanto aos

direitos humanos como aos direitos fundamentais 5.

1.1.2 Diferença conceitual entre direitos e garantias fundamentais

Embora inseridos no mesmo título constitucional e muitas vezes utilizados

como conceitos recíprocos, direitos e garantias fundamentais não possuem o

mesmo significado. Isso porque, conforme entende Canotilho, apesar de também

representarem direitos, as garantias têm como prevalência seu caráter instrumental

de proteção aos direitos propriamente ditos 6. Compartilhando da mesma opinião,

Alexandre de Moraes preleciona que:

A distinção entre direitos e garantias fundamentais, no direito brasileiro, remonta a Rui Barbosa, ao separar as disposições

3GARCIA, Marcos Leite. O processo de formação do ideal dos direitos fundamentais: alguns aspectos destacados da gênese do conceito. p. 02. 4SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6. ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 36. 5SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, p. 40. 6CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1993. p. 520.

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meramente declaratórias, que são as que imprimem existência legal aos direitos reconhecidos, e as disposições assecuratórias, que são as que, em defesa dos direitos, limitam o poder. Aquelas instituem os direitos; estas, as garantias; ocorrendo não raro juntar-se, na mesma disposição constitucional, ou legal, a fixação da garantia com a declaração do direito 7.

Também sobre o tema, ensina Jorge Miranda:

Os direitos representam só por si certos bens, as garantias destinam-se a assegurar a fruição desses bens; os direitos são principais, as garantias são acessórias e, muitas delas, adjectivas (ainda que possam ser objecto de um regime constitucional substantivo); os direitos permitem a realização das pessoas e inserem-se directa e imediatamente, por isso, nas respectivas esferas jurídicas, as garantias só nelas se projectam pelo nexo que possuem com os direitos; na acepção jusracionalista inicial, os direitos declaram-se, as garantias estabelecem-se 8.

Dessa forma, embora não raras vezes serem tratados como sinônimos, tal

fato não garante a equivalência entre direitos e garantias fundamentais, já que

mesmo com características semelhantes ambos possuem distintos conceitos

próprios. Um declara a existência de benefícios favoráveis a todos aqueles descritos

no caput do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, ressalvadas algumas

exceções legais, o outro, assegura o cumprimento e a aplicação de referidos

interesses, nos termos e formas constitucionalmente dispostos.

1.1.3 Finalidade e características gerais

1.1.3.1 Objetivo das garantias e direitos fundamentais

Uma norma de direito fundamental impõe ao estado um dever jurídico

relativo à proteção de um bem, de onde resulta, de maneira direta ou não, uma

garantia efetiva ou potencial de acesso ao objeto protegido por mencionada norma 9.

7MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 25. ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 33. 8MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 2. ed. rev. e atual. Coimbra: Coimbra Editora, 1993. 4 t. pp. 88-89. 9NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela constituição. Coimbra: Coimbra Editora, jun. 2003. p. 125.

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Assim, o conteúdo positivado no título II da Constituição da República

Federativa do Brasil promulgada em 1988, busca um equilíbrio entre a atuação do

Estado e os interesses do povo, conferindo ao poder governamental de decidir e

direcionar o destino da nação um caráter não absoluto. A respeito, ressalta-se o

ensinamento doutrinário de Canotilho:

[...] a função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma dulpa perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objectivo, normas de competência negativas para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual; (2) implicam, num plano jurídico-subjectivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa)[...] 10.

Portanto, a fim de assegurar o controle da atuação estatal, bem como

salvaguardar as pretensões almejas pela nação, sem, no entanto, tirar do Estado

sua posição dominante nem o prevalecendo ante seus cidadãos, regulamentou-se

os direitos e garantias fundamentais no ordenamento jurídico, constituindo aqueles

―normas declaratórias positivas‖, haja vista disporem acerca dos direitos

pertencentes aos indivíduos em geral, e essas (as garantias) ―normas assecuratórias

negativas‖, pois tratam além de deveres, sobre proibições e vedações

constitucionais exigidas ao poder público, com a finalidade de assegurar a aplicação

dos direitos acima referidos 11.

1.1.3.2 Aspectos básicos

Não obstante haver particularidades entre determinados direitos

fundamentais, essas envolvendo principalmente os diversos grupos por eles

abrangidos, importante se faz mencionar e especificar, mesmo que de maneira

sintética, as características comuns a todos os capítulos integrantes do segundo

título constitucional, quais sejam: historicidade, inalienabilidade, imprescritibilidade,

irrenunciabilidade, universabilidade e limitabilidade.

10CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. p. 541. 11MOTTA, Sylvio; DOUGLAS, William. Direito constitucional: teoria e 900 questões. 7. ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Impetus, 2000. p. 51.

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Os direitos fundamentais são históricos em virtude de seu caráter de

permanência no decorrer dos anos, recriando-se de acordo com as

imprescindibilidades emergentes e, embora se modifiquem, ante as necessidades

apresentadas em cada período determinado, não desaparecem por completo, pois

como disse Bobbio:

[...] ainda que fossem necessários os direitos não nascem todos de uma vez. Nascem quando devem ou podem nascer. Nascem quando o aumento do poder do homem – que acompanha inevitavelmente o progresso técnico, isto é o progresso da capacidade do homem de dominar a natureza e os outros homens – cria novas ameaças à liberdade do indivíduo ou permite novos remédios para as suas indigências: ameaças que são enfrentadas através de demandas de limitações de poder 12.

Por outro lado, seu aspecto inalienável caracteriza-se devido à

impossibilidade de negociação ou transferência de quem os detém, nesse sentido

destaca-se ensinamento doutrinário: ―São intransferíveis, inegociáveis, porque não

são de conteúdo econômico-patrimonial. Se a ordem constitucional os confere a

todos, deles não se pode desfazer, porque são indisponíveis;‖ 13.

Já a irrenunciabilidade manifesta-se a partir da inadmissão de renúncia aos

direitos fundamentais garantidos no texto constitucional, eles podem até não serem

exercidos, mas jamais renunciados. Jorge Reis Novais assim afirma:

[...] na grande maioria das situações práticas da vida real, a questão que se coloca é normalmente a de um compromisso individual e voluntário de um cidadão não invocar, temporariamente, perante a entidade pública uma determinada posição jurídica tutelada por uma norma de direito fundamental. [...] nunca se verifica a renúncia a um direito fundamental como um todo, no sentido de nunca mais ser possível ao seu titular, após a renúncia, reivindicar o exercício de tal direito, ou então que, a verificar-se, ela seria ilegítima 14.

São também imprescritíveis, isso em função de não possuírem prazo

findável para exigência de sua aplicação, podendo ser exigidos a qualquer tempo

sem impedimentos de cunho prescricional. Outro aspecto importante é a

12BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradutor: Carlos Nelson Coutinho. 10. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 06. 13SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. p. 181. 14NOVAIS, Jorge Reis. Direitos fundamentais: um trunfo contra a maioria. Coimbra: Coimbra Editora, set. 2006. p. 219.

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universalidade inerente aos direitos fundamentais, essa justificável, sobre tudo,

quando conceituada no entendimento de Bonavides:

A vinculação essencial dos direitos fundamentais à liberdade e à dignidade humana, enquanto valores históricos e filosóficos, nos conduzirá sem óbices ao significado de universalidade inerente a esse direitos como ideal da pessoa humana 15.

Analisando o acima exposto, ante a explanação resumida das características

pertencentes ao conteúdo constitucional ora estudado, forma-se a ideia de que os

direitos e garantias fundamentais têm a qualidade de absolutismo. Entretanto, dita

concepção afasta-se da realidade, já que haverá certa limitabilidade em sua

aplicação sempre que existir eventual hipótese de colisão de dois ou mais direitos

fundamentais 16. Além disso, reconhecendo terem caráter histórico, não há razão

para denominá-los absolutos e imutáveis, pois com a evolução na história do mundo,

foram criados, modificados, reduzidos ou ampliados de acordo com as necessidades

manifestadas em cada período e com as relações mantidas entre os indivíduos que

nele viviam.

1.2 DIREITOS FUNDAMENTAIS NA HISTÓRIA

1.2.1 Predecessores primitivos dos direitos fundamentais

O reconhecimento dos direitos fundamentais formalizados explicitamente

nas declarações e constituições pátrias refere-se à história recente. Entretanto,

ainda que consagrada a concepção de que não surgiram primeiramente na

antiguidade, há autores que defendem a influencia deixada por essa época no

âmbito dos direitos fundamentais:

[...] o mundo antigo, por meio da religião e da filosofia, nos legou algumas das ideias-chave que, posteriormente influenciaram o pensamento jusnaturalista e a sua concepção de que o ser humano, pelo simples fato de existir, é titular de alguns direitos naturais e

15BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 10. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Malheiros, mar. 2000. p. 516. 16HICKEL, Fernando Seara; FONTES, Márcio Schiefler. Magistratura catarinense: manual do candidato. Florianópolis: Conceito Editorial, 2008. p. 28.

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inalienáveis, de tal sorte que esta fase costuma também ser denominada, consoante já ressaltado, de ―pré-história‖ dos direitos fundamentais 17.

Por outro lado, o professor espanhol Gregório Peces-Barba defende que o

conceito de direitos fundamentais figurou-se no mundo moderno, surgindo

progressivamente a partir do ―trânsito à modernidade‖, período este marcado

justamente pela época de transição da Idade Média para a Idade Moderna, ocorrido

entre os séculos XIV e XVIII. Para o estudioso é nessa fase de mudanças que

paulatinamente aparecem os direitos fundamentais, surgindo mediante

reivindicações a favor das liberdades religiosa, política, intelectual e econômica,

dando lugar à uma sociedade individualista e antropocêntrica antes caracterizada

pelo teocentrismo e pelo domínio estatal 18.

Além disso, outra importante contribuição ao processo de formação do ideal

dos direitos fundamentais, precedente indispensável à evolução desses, foi deixada

pelo autor alemão Christian Thomasius (séculos XVII e XVIII), que embora não muito

conhecido, proporcionou mediante sua luta pela humanização dos direitos penal e

processual penal, bem como pela separação da ética pública (direito propriamente

dito) daquela de caráter privado (moral), um significativo avanço no reconhecimento

das liberdades modernas, as quais atualmente evoluídas aos direitos fundamentais,

foram positivadas mediante declarações e constituições pátrias 19.

1.2.2 Processo de concretização das declarações de direitos

1.2.2.1 Fontes antecessoras de natureza inglesa

Não foram poucas as manifestações escritas originárias na Inglaterra que

visavam assegurar os direitos fundamentais aos seres humanos. Considerável

17SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. p. 45. 18PECES-BARBA, Gregório. apud GARCIA, Marcos Leite. O processo de formação do ideal dos direitos fundamentais: alguns aspectos destacados da gênese do conceito. pp. 05 -06. 19GARCIA, Marcos Leite. A contribuição de Christian Thomasius ao processo de formação do ideal dos direitos fundamentais. 2005. p. 436.

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ressalta cabe à Magna Carta (ano 1215) que, embora ainda não abordando referidos

direitos, demonstrava a conquista pelo povo de algumas garantias básicas de

liberdade e segurança pessoal 20.

Seguidamente, em 1628, foi elaborada a Petição de Direitos (Petition of

Rights), cujo objetivo encontra-se descrito na doutrina de José Afonso da Silva:

[...] a petição pede a observância de direitos e liberdades já reconhecidos na própria Magna Carta, [...]. O fato denota que tais mandamentos, entre outros, não eram respeitados pelo poder monárquico, que só aos poucos, com o crescimento e afirmação das instituições parlamentares e judiciais, foi cedendo às imposições democráticas 21.

Após, no ano de 1679, a lei do Habeas Corpus (Habeas Corpus Act)

teve, na visão de Noblet, o seguinte propósito:

O Habeas Corpus Act reforçou as reivindicações de liberdade, traduzindo-se, desde logo e, com as alterações posteriores, na mais sólida garantia de liberdade individual, e tirando aos déspotas uma das suas armas mais preciosa, suprimindo as prisões arbitrárias 22.

Entretanto, o documento de maior importância foi a Declaração de Direitos

(Bill of Rights) confeccionada em 1689 e decorrente da Revolução ocorrida no ano

anterior, significando uma evolução das liberdades e privilégios estamentais

medievais e corporativos para liberdades genéricas no plano do direito público,

implicando expressiva ampliação quanto ao conteúdo e à extensão, abrangindo à

totalidade dos cidadãos ingleses 23.

1.2.2.2 Primeiros documentos de direitos fundamentais

Criada, em 1776, a Declaração de Direitos do Bom Povo de Virgínia tinha

em seu conteúdo a preocupação com a criação de um sistema limitado de poderes,

20MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 4 t. p. 17. 21SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. pp. 152-153. 22NOBLET, Albert. apud SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 31. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, jun. 2008. p. 153. 23PÉREZ LUÑO. apud SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. p.51.

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porém foi a declaração de independência americana de autoria de Thomas Jefferson

que causou maior impacto.

Posteriormente, no ano de 1787, foi aprovada a Constituição dos Estados

Unidos, cujo conteúdo inicial não versava acerca dos direitos fundamentais

propriamente ditos. Assim, necessitada que estava a lei americana de uma melhor

especificação a respeito do tema, introduziu-se em sua temática a Carta de Direitos

que, mediante emendas constitucionais, assegurou a regulamentação dos

interesses fundamentais reivindicados pelo povo 24.

Já a Declaração dos direitos do homem e cidadão, adotada pelos franceses

no século XVIII (1789) e influenciada na concepção de alguns estudiosos pelos

preceitos da Declaração de Virgínia, reconhecia ao ser humano direitos naturais,

inalienáveis, invioláveis e imprescritíveis, direitos de todos os homens, e não apenas

de uma parcela da sociedade 25.

Por fim, e não menos relevante, o precedente à concretização dos direitos

fundamentais marcado pela Declaração do povo trabalhador e explorado, formulada

no século XX pelos soviéticos tinha, segundo a doutrina, a finalidade seguinte:

Fundada nas teses socialistas de Marx-Engels-Lênin e consequente da Revolução Soviética de outubro de 1917, não se limitava a reconhecer direitos econômicos e sociais, dentro do regime capitalista, mas a realizar uma nova concepção da sociedade e do Estado e, também, uma nova ideia de direito, que buscasse libertar o homem, de uma vez, por todas, de qualquer forma de opressão 26.

Ante o acima exposto, nota-se que todas essas manifestações históricas

tiveram considerável importância à medida que foram surgindo, não só para sua

específica população pátria, mas também para toda a humanidade, pois mesmo

que, em alguns casos, de modo pouco significativo, influenciaram a atual concepção

e consequente formalização dos direitos fundamentais, encontrando-se nestes os

24SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 2008. p. 155. 25PÉREZ LUÑO. apud SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. p.52. 26SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 2008. p. 161.

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denominados direitos humanos, os quais foram declarados universais pela

Organização das Nações Unidas em meados do século XX.

1.2.2.3 A declaração Universal dos Direitos Humanos

Aprovada em 10 de dezembro de 1948 pela Assembléia Geral das Nações

Unidas, a Declaração Universal dos Direitos Humanos deu ao humanismo político da

liberdade alcance máximo no século XX, pois se trata, sob a ótica de Bonavides, de

um documento de convergência e ao mesmo tempo de síntese:

Convergênicia de anseios e esperanças, porquanto tem sido, desde sua promulgação, uma espécie de carta de alforria para os povos que a subscreveram, após a guerra de extermínio dos anos 30 e 40, sem dúvida o mais grave duelo da liberdade com a servidão em todos os tempos. Síntese, também, porque no bronze daquele monumento se estamparam de forma lapidar direitos e garantias que nenhuma Constituição insuladamente lograra ainda congregar, ao redor de um consenso universal 27.

Dessa forma, como ainda dispõe o autor acima mencionado, dita declaração

criou uma nova universalidade dos direitos humanos, a qual procura subjetivar de

modo concreto e positivo os direitos na titularidade de um indivíduo que antes de ser

o homem pertencente a determinado País, ou sociedade, é pela sua condição de

pessoa um ente qualificado por sua pertinência ao gênero humano 28.

1.2.3 A positivação dos direitos fundamentais na legislação brasileira

Estabelecidos atualmente no título II da Constituição Federal vigente,

promulgada em 1988, os direitos fundamentais há muito fazem parte do

ordenamento jurídico pátrio. Isso porque desde 1824 a denominada Constituição do

Império concretizava em seus dispositivos os diretos do homem.

27BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. p. 527. 28BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. p. 528.

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Com o passar dos anos e o surgimento de novas legislações, ante as

necessidades eminentes, tais direitos ampliaram-se ganhando notável força jurídica,

como sintetiza José Afonso da Silva:

A Constituição de 1891 abria a seção II do Título IV com uma Declaração de Direitos, onde assegurava a brasileiros e estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança e à propriedade [...]. Essa metodologia modificou-se a partir da Constituição de 1934, que, como as sucessivas, fora a Carta Ditatorial de 1937, abriu um título especial para a Declaração de Direitos, nele inscrevendo não só os direitos e garantias individuais, mas também os de nacionalidade e os políticos. [...] reconhecendo os direitos econômicos e sociais do homem, ainda que de maneira pouco eficaz. [...] A ela sucedeu a Carta de 1937, ditatorial na forma, conteúdo e na aplicação, com integral desrespeito aos direitos do homem, especialmente os concernentes às relações políticas. A Constituição de 1946 trouxe o Título IV sobre a Declaração dos Direitos, com dois capítulos: um sobre a Nacionalidade e a Cidadania e outro sobre os Direitos e Garantias Individuais. [...] Assim fixou o enunciado que se repetiria na Constituição de 1967, assegurando os direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança individual e à propriedade [...] Apareceram nela, como nas de 1967 e 1969, os direitos econômicos e sociais, mais bem estruturados do que na de 1934, em dois títulos: um sobre a ordem econômica e outro sobre a família, a educação e a cultura. [...] A Constituição de 1988 adota técnica mais moderna. Abre-se com um título sobre os princípios fundamentais, e logo introduz o Título II sobre os princípios fundamentais, e logo introduz o Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais, nele incluindo-se os Direitos e Deveres Individuais e Coletivos (Cap. I), os Direitos Sociais (Cap. II), os Direitos da Nacionalidade (Cap. III), os Direitos Políticos (Cap. IV) e os Partidos Políticos (Cap. V) 29.

Verifica-se, portanto, que a história dos direitos fundamentais é marcada,

sobretudo, pela busca à liberdade, à distribuição e limitação de poderes, criando

mecanismos que auxiliam o homem a concretizar valores cuja identidade afirmou-se

primeiro na sociedade e não nas esferas do poder estatal 30.

1.3.2.1 Esferas de aplicação conforme a atual Constituição

A constituição brasileira reserva seu título II para tratar a respeito dos

direitos e garantias fundamentais. Porém, tendo em vista os diferentes ramos em

29SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. pp. 170-171. 30BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. p. 528.

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que se faz necessária sua aplicação e as várias formas nas quais se apresentam os

interesses daqueles a quem essa proteção é destinada, subdividiu-se o tema em

cinco capítulos, abordando cada um separadamente assuntos como: direitos e

deveres individuais e coletivos, direitos sociais, nacionalidade, direitos políticos e,

finalmente, direitos relativos à organização, criação e participação dos partidos

políticos.

Tangente à supracitada divisão, destacar-se-á em apertada síntese,

características particulares de cada modalidade. Inicialmente, localizados no capítulo

I, do título II da atual Constituição Federal, compreendendo o artigo 5º e seus

incisos, tem-se os direitos e deveres individuais e coletivos, os quais na visão de

José Afonso da Silva merecem abordagem isolada 31.

Acerca dos interesses individuais o autor dispõe que: ―são aqueles que

reconhecem autonomia aos particulares, garantindo iniciativa e independência aos

indivíduos diante dos demais membros da sociedade política e do próprio Estado‖.

Entendendo por direitos coletivos como os relacionados ao ―homem-membro de uma

coletividade‖ 32, ou seja, direitos transindividuais de natureza indisponível, cujo titular

é grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária

por uma relação jurídica-base 33.

Seguidamente, traz por meio dos artigos que variam entre o 6º e 11,

inclusive, os direitos sociais, estes compreendendo aspectos relacionados ao ser

humano e suas interações com os meios social e cultural, referido, na doutrina de

Ceneviva, como ―o conjunto específico de direitos próprios de todo o povo, enquanto

tal, isto é, da sociedade e de cada um de seus integrantes.‖ 34.

Já os artigos 12 e 13 reservam espaço ao tema da nacionalidade, apontando

sua forma de obtenção, exercício e eventual perda. Posteriormente, os artigos

31SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. p. 183. 32SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. pp. 183-184. 33HICKEL, Fernando Seara; FONTES, Márcio Schiefler. Magistratura catarinense: manual do candidato. p. 27. 34CENEVIVA, Walter. Direito constitucional brasileiro. 3. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 93.

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compreendidos do 14 ao 17 dispõem sobre direitos políticos e liberdades partidárias,

estas segundo José Afonso da Silva constituindo apenas uma parte dos direitos

fundamentais do homem-cidadão 35.

Ainda, referido autor defende a existência de uma sexta categoria:

[...] uma nova classe que se forma é a dos direitos fundamentais ditos de terceira geração, direitos fundamentais do homem-solidário, ou direitos fundamentais do gênero humano (direito à paz, ao desenvolvimento, comunicação, meio ambiente, patrimônio comum

da humanidade) 36.

Percebe-se então, que em razão de suas especificidades, as garantias e

direitos fundamentais foram separados em diferentes grupos, cada qual com

características próprias, isso porque o processo de seu surgimento se deu pouco a

pouco, de acordo com as particularidades presentes em cada época e as

imprescindibilidades apontadas pelos indivíduos dela integrantes, o que originou, por

conseguinte, uma divisão dimensional desses direitos fundamentais.

1.3 CRONOLOGIA GERACIONAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

1.3.1 Divergências em torno da denominação utilizada

A evolução histórica ocorrida com o passar dos anos modificou e

modernizou as mais diversas áreas, proporcionou avanços à ciência, modificações

no ramo tecnológico e sobretudo influenciou o modo de agir e pensar das pessoas

em cada época dessa significativa mudança. No âmbito do direito não foi diferente,

surgiram novas leis, desapareceram antigas regras, tudo em razão das

necessidades apresentadas em seu determinado momento, com isso os direitos

fundamentais sofreram consideráveis transformações, as quais são denominadas

pela maioria dos doutrinadores mediante o uso do vocábulo gerações.

35SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. p.184. 36SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. p. 84.

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Entretanto, apesar de consolidada na doutrina, há autores que criticam sua

utilização, pois entendem possuir conotação de algo sucessório, em que o

aparecimento de uma nova geração extinguiria por si só sua antecessora, fato que

em realidade não ocorre. Nessa linha, defende Scaff:

A palavra ‗geração‘ traduz a impressão de algo que foi gestado em certo momento, cresceu, se desenvolveu, e posteriormente feneceu, sendo substituído por uma nova leva, que deverá ultrapassar aquele grupamento ou entendimento anterior. Desta forma a expressão ‗geração‘ é absolutamente inapropriada para expressar a ideia aqui exposta, a despeito de estar consagrada pela doutrina e pela jurisprudência pátria... A expressão que melhor indica o que se pretende expor é ‗dimensão‘, dimensão de direitos, pois traduz – deve traduzir – a ideia de uma sequência de descobertas de direitos37.

Compartilhando de igual opinião, Cançado Trindade afirma que o que ocorre

é um fenômeno, não de sucessão, como a infeliz expressão sugere, mas de

expansão, cumulação e fortalecimento dos Direitos Humanos 38. Em contrapartida,

Bonavides apesar de concordar que em verdade somam-se e não se subtraem tais

direitos emprega o termo gerações para designar essas eventuais alterações

ocorridas, assim vejamos:

Os direitos fundamentais passaram na ordem institucional a manifestarem-se em três gerações sucessivas, que traduzem sem dúvida um processo cumulativo e qualitativo, o qual, segundo tudo faz prever, tem por bússola uma nova universalidade [...] 39.

Dessa forma, ante a diversidade de pensamentos, alguns autores

denominam as variações ocorridas como sendo dimensões dos diretos

fundamentais, outros as chamam de gerações, porém o fazem pos entenderem ser

a sua nomenclatura a mais adequada ao significado buscado, o qual comum às

duas correntes, versa a respeito das ampliações necessárias em virtude das

mudanças históricas acontecidas desde seu surgimento, ante o contínuo

aparecimento de distintos campos reivindicantes de aplicação.

37SCAFF, Fernando Facury. apud REIS, Jorge Renato dos; GORCZEVSKI, Clovis (Org). A concretização dos direitos fundamentais: constitucionalismo contemporâneo. Porto Alegre: Norton Editor, 2007. pp. 18-19. 38CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. apud REIS, Jorge Renato dos; GORCZEVSKI, Clovis (Org). A concretização dos direitos fundamentais: constitucionalismo contemporâneo. Porto Alegre: Norton Editor, 2007. p. 19. 39BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. p. 517.

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1.3.2 Gerações (ou dimensões) dos direitos fundamentais

1.3.2.1 Primeira Geração

Conforme a ordem cronológica estabelecida, os direitos de primeira geração

foram aqueles inicialmente reconhecidos pelas constituições pátrias. Apareceram,

segundo entendimento doutrinário, durante os séculos XVIII e XIX como expressão

do racionalismo iluminista, do liberalismo e do individualismo 40(WOLKMER, 2003, p.

07), compreendendo fundamentos civis e políticos, os quais realçam o princípio

constitucional da liberdade ante um não fazer do Estado. Paulo Bonavides assim

expõe:

Os direitos de primeira geração ou direitos da liberdade têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico; enfim, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado 41.

Portanto, esses são direitos básicos inerentes a todo ser humano no âmbito

das liberdades clássicas (representadas no Brasil pelo artigo 5º da Constituição

Federal de 1988), que por meio de sua qualidade imprescritível têm como fim

principal a proteção ininterrupta do indivíduo em relação à intervenção estatal.

1.3.2.2 Segunda geração

Já os direitos fundamentais da segunda fase geracional visam um agir do

Estado, tanto no campo econômico, como no social e cultural, tendo como princípio

predominante a igualdade, bem como se caracterizando pela presença das

liberdades positivas, uma vez que no entendimento de Sarlet não se trata de

40WOLKMER, Antonio Carlos; LEITE, José Rubens Morato. Os novos direitos no Brasil: natureza e perspectivas. São Paulo: Saraiva. 2003. p. 07. 41BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. p. 517.

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liberdades do e perante o estado, mas sim de liberdades por intermédio deste 42.

Ademais, relativamente à geração de interesses fundamentais marcada pelo século

XX, destaca-se a análise de Themistocles Brandão Cavalcanti:

[...] o começo do nosso século viu a inclusão de uma nova categoria de direitos nas declarações e, ainda mais recentemente, nos princípios garantidores da liberdade das nações e das normas da convivência internacional. Enter os direitos chamados sociais, incluem-se aqueles relacionados com o trabalho, o seguro social, a subsistência, o amparo à doença, à velhice etc. 43.

Destarte, por buscarem melhorar as condições de vida e trabalho, referidos

direitos não deixam de ser titularidade do homem em sua individualidade, pois

apesar de ganharem consagração política e jurídica com a passagem do Estado

liberal de direito para o Estado social de direitos, ainda objetivam o bem-estar do ser

humano em sua particularidade, assim defende Pérez Luño que, além disso, afirma:

[...] en la primera los derechos humanos vienen considerados como derechos de defensa (Abwehrrechte) de las libertades del individuo, que exigen la autolimitación y la no injerencia de los poderes públicos en la esfera privada [...] en la segunda, correspondiente a los derechos económicos, sociales y culturales, se traducen en derechos de participación (Teilhaberechte) que requieren uma política activa de los poderes públicos encaminada a garantizar su ejercicio [...] 44.

Assim, nota-se que a diferença básica entre as duas primeiras gerações não

está inserida na forma de tratamento dada ao público alvo, variando essa entre

individualidade ou âmbito coletivo, e sim na participação ou omissão do Estado ante

os direitos fundamentais pertinentes a cada dimensão.

1.3.2.3 Terceira geração

O caminhar da história proporcionou a inevitável regulamentação dos

direitos fundamentais da terceira etapa dimensional, cuja temática aborda os direitos

de caráter difuso e coletivo, estes compreendendo interesses inerentes a

42SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. p. 57. 43CAVALCANTI, Themistocles Brandão. apud MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 25. ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 31. 44PÉREZ LUÑO, Antonio-Enrique. La tercera generación de derechos humanos. Navarra: Editarial Aranzadi, 2006. p. 28.

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determinado grupo categoria ou classe de pessoas e aqueles os interesses

relacionados à indeterminação de seus titulares, os quais ligados por circunstâncias

de fato comum 45.

Em geral, esses direitos solidários englobam o direito a um meio ambiente

equilibrado, uma qualidade de vida saudável, defendendo-se a paz, o

desenvolvimento e a autodeterminação dos povos, enquanto fundamentalmente

considerados, conforme declara Celso de Mello em decisão proferida pelo Supremo

Tribunal Federal:

[...] os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade (STF, Tribunal Pleno, Mandado de Segurança 22164, rel. Min. Celso de Mello, j. 30-10-1995)46.

Por outro lado, a doutrina espanhola apresenta como direitos dessa

dimensão, além daqueles acima citados, todos os interesses versantes sobre a

manipulação genética, a área biotecnológica, as relações consumeristas e,

sobretudo os direitos no campo da informática, defendendo este ponto de vista

segundo a afirmação de Pérez Luño:

La revolución tecnológica ha redimensionado las relaciones del hombre con los demás hombres, las relaciones entre el hombre y la naturaleza, así como las relaciones del ser humano com su contexto o marco cultural de convivência. Estas mutaciones no han dejado de incidir em la esfera de los derechos humanos 47.

Então, conclui-se que ante as transformações sociais presenciadas no

decorrer dos anos, permitindo à sociedade novas áreas de participação e

modificando o pensar e as pretensões de seus integrantes, tem-se configurada uma

terceira dimensão no ramo dos direitos fundamentais, cuja gama de temas varia de

45HICKEL, Fernando Seara; FONTES, Márcio Schiefler. Magistratura catarinense: manual do candidato. p. 27. 46SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Mandado de Segurança n. 22164. Tribunal Pleno. Relator: Min. Celso de Mello. Julgado em 30-10-1995. 47PÉREZ LUÑO, Antonio-Enrique. La tercera generación de derechos humanos. p. 29.

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acordo com as concepções de cada doutrinador, mas ainda assim, defendem uma

ação solidária por parte daqueles cujos interesses encontram-se envolvidos.

1.3.2.4 A existência de eventuais quarta e quinta gerações

O fenômeno da globalização na visão de alguns autores da esfera do direito

constitucional propicia a manifestação de novas categorias no âmbito dos interesses

fundamentais, ampliando de maneira aparentemente inesgotável a área de alcance

e aplicação de supracitados direitos.

Jorge Renato dos Reis e Clovis Gorczevski defendem a existência da quarta

e quinta gerações de direitos fundamentais. Por acreditarem fazer parte da terceira

dimensão apenas os campos referentes ao meio ambiente, à autodeterminação dos

povos, ao direito à paz e à comunicação, entendem compreender o quarto conjunto

os interesses tangentes ao progresso das ciências biomédicas e à evolução

tecnológica na área da saúde humana, projetando um relacionamento interdisciplinar

de juristas, médicos, biólogos e demais profissionais por ventura envolvidos 48.

Não bastasse, dão espaço com a quinta geração aos denominados novos

direitos, estes advindos das tecnologias de informação, do ciberespaço, e da

realidade virtual:

Diante da contínua e progressiva evolução da tecnologia de informação, torna-se fundamental definir uma legislação que venha regulamentar, controlar e proteger os provedores e os usuários dos meios de comunicação eletrônica de massa 49.

No entanto, Pérez Luño critica referidas divisões, acreditando serem

desnecessárias outras gerações de direitos fundamentais além da terceira, uma vez

que englobando esta assuntos como paz, qualidade de vida, bem como interesses

relacionados à informática e à biotecnologia está muito longe de constituir um grupo

48REIS, Jorge Renato dos; GORCZEVSKI, Clovis (Org). A concretização dos direitos fundamentais: constitucionalismo contemporâneo. Porto Alegre: Norton Editor, 2007. pp. 23-24. 49REIS, Jorge Renato dos; GORCZEVSKI, Clovis (Org). A concretização dos direitos fundamentais: constitucionalismo contemporâneo. p. 29.

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fechado, preciso e de contornos bem definidos, referindo-se às mais atuais

demandas que afetam os direitos e liberdades do ser humano 50.

Além disso, o autor entende que o aparecimento de outras dimensões só

acentua a indeterminação e a imprecisão acerca da matéria, descaracterizando a

autenticidade originária dos direitos humanos ante o surgimento desenfreado de

diferentes grupos geracionais, criando incertezas quanto à classificação e disposição

de seus respectivos conteúdos:

Estas ambigüedades han suscitado dudas sobre la oportunidad de estos nuevos derechos y hasta han contribuido a que se impugne su condición de auténticos derechos humanos. Nos hallamos, en suma, y ello no es nuevo en devenir histórico de las libertades, ante una disyuntiva cuyas polaridades son igualmente peligrosas. Porque la admisión apresurada y acrítica como derechos humanos de cuantas demandas se reivindican bajo el todavía impreciso rótulo de ―derechos de la tercera generación‖, equivaldría a condenar la teoria de los derechos humanos a zonas de tal penumbra y equivocidad que comprometeria su status jurídico y científico 51.

Destarte, embora classificados por alguns em três gerações e no

entendimento de outros em quatro ou até cinco dimensões, os direitos fundamentais,

em caráter comum, por força de sua constante modificação quanto à época de

surgimento, tornam-se representantes de determinados estágios na evolução da

humanidade, e sendo o ser humano influenciado pelo progresso histórico, novos

direitos ainda surgirão e junto deles a imprescindibilidade de sua regulamentação. O

avanço da biomedicina, seu reflexo e influência na sociedade e na vida de seus

integrantes, ante as descobertas tecnológicas na área da saúde humana, além de

constituir um direito defendido pela terceira geração (quarta no entendimento de

alguns doutrinadores), torna imprescindível a imposição de limites à sua aplicação,

pois seu uso desenfreado pode gerar consequências nem sempre satisfatórias.

Assim, visando garantir eficácia aos direitos fundamentais no atual estágio de

evolução cada vez mais se busca no biodireito e na bioética resposta para os

conflitos surgidos a partir de então.

50PÉREZ LUÑO, Antonio-Enrique. La tercera generación de derechos humanos. p. 33. 51PÉREZ LUÑO, Antonio-Enrique. La tercera generación de derechos humanos. p. 34.

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CAPÍTULO 2

BIODIREITO E BIOÉTICA

A evolução da humanidade trouxe inúmeras inovações à área da saúde, no

entanto, estas não devem ser utilizadas apenas em razão da ciência, é necessário

considerar as pretensões daqueles que por ventura tenham seus direitos

fundamentais atingidos por esses novos conhecimentos. O biodireito e a bioética

intencionam equilibrar as relações havidas entre esses dois pólos, buscando

encontrar soluções adequadas aos conflitos ocasionados pelo choque de interesses

divergentes, razão pela qual se faz imprescindível a abordagem ora pretendida.

2.1 O SURGIMENTO DE UM NOVO DIREITO

As inúmeras transformações ocorridas nos últimos tempos, sobretudo no

campo da biologia e da medicina, possibilitando significativos avanços do

conhecimento na área da biotecnologia, impõem seja feita uma reflexão ética a

respeito das eventuais consequências advindas dessa crescente evolução, como

defende em sua obra José Renato Nalini:

Nem tudo aquilo que científica e tecnicamente é possível fazer se pode afirmar eticamente irrepreensível. A biomedicina tem avançado de maneira indizível e produzido realidades só possíveis na ficção científica. A quem incumbe dizer se tal desenvolvimento se valida à luz da moral contemporânea? Principalmente nos domínios da transmissão da vida, as questões continuam passando pelas crenças humanas 52.

Compartilhando da mesma opinião, Maria Helena Diniz destaca que a

necessidade de se adequar a ética aos fatos surgidos a partir do desenvolvimento

na área da saúde humana trouxe aos juristas o desafio de enfrentar situações antes

não vivenciadas na esfera das relações sociais:

52NALINI, José Renato. Ética geral e profissional. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos tribunais, 2006. p. 177.

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Uma nova disciplina, o biodireito, estudo jurídico que, tomando por fontes imediatas a bioética e a biogenética, teria a vida por objeto principal, salientando que a verdade científica não poderá sobrepor-se à ética e ao direito, assim como o progresso científico não poderá acobertar crimes contra a dignidade humana, nem traçar, sem limites jurídicos, os destinos da humanidade 53.

No mesmo sentido, ensina Reinaldo Pereira e Silva:

Inspirado pela nova concepção de positivismo, ou seja, pelo constitucionalismo dos direitos humanos, pode-se dizer que o biodireito é a compreensão do fenômeno jurídico enquanto conhecimento prático visceralmente empenhado na promoção da vida humana 54.

Dessa forma, o mundo jurídico viu-se solicitado, tanto pelos pesquisadores

como pelos profissionais, os quais o invocavam na tentativa de garantir mais

segurança e maior legalidade à audácia das novas práticas. Assim, médicos,

juristas, filósofos e assistentes sociais foram compelidos a sentar juntos para

discutirem uma possível tomada de decisão, buscando, entre outros fins, equilibrar

as relações havidas entre as partes envolvidas nos conflitos gerados a partir de

choques entre a evolução biotecnológica e suas dimensões morais 55.

2.2 BIOÉTICA, A ÉTICA DA VIDA

2.2.1 Definição

Surgida a partir de dois termos gregos, bios-éthos (vida ética), a bioética tem

seu objeto de estudo relacionado, em regra, à reflexão a respeito de diversas

questões emergidas ante o progresso biomédico e à influência gerada em distintos

âmbitos, tais como moral, ética e deontologia 56.

53DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 09. 54SILVA, Reinaldo Pereira e. Biodireito: a nova fronteira dos direitos humanos. São Paulo: LTr, nov. 2003. p. 31. 55SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. Biodireito: ciência da vida, os novos desafios. São Paulo: Revista dos tribunais, 2001. pp. 102,104. 56DURANT, Guy. A bioética: natureza, princípios, objetivos. Tradutor: Porphírio Figueira de Aguiar Netto. São Paulo: Paulus, 1995. (Nova coleção ética). p. 09.

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Por outro lado, em sua obra, Sarlet a conceitua da seguinte forma: ―A

preocupação com a vida humana e com a conduta daqueles que lidam, direta ou

indiretamente, com referido valor faz surgir um novo ramo do saber conhecido por

Bioética‖ 57.

Além disso, Pessini e Barchifontaine prelecionam que a bioética, embora

discorra sobre a ética médica, não se limita a ela, pois ao contrário desta cujo objeto

gira em torna da relação entre médico e paciente, aquela constitui um conceito mais

amplo:

Compreendendo os problemas relacionados com valores que surgem em todas as profissões de saúde, inclusive nas profissões ―afins‖ e nas vinculadas à saúde mental. Aplica-se às investigações biomédicas e às do comportamento independentemente de influírem ou não de forma direta na terapêutica. Aborda uma ampla gama de questões sociais, as quais se relacionam com a saúde ocupacional e internacional e com a ética do controle de natalidade, entre outras. Vai além da vida e da saúde humanas, pois compreende questões relativas á vida dos animais e das plantas, por exemplo no que concerne às experimentações com animais e a demandas ambientais conflitivas 58.

Destarte, verifica-se que seu significado vincula-se à ética, suas regras

identificam-se com a ideia de consciência, formando valores fundamentais que

devem nortear as ciências biológicas, objetivando conciliar o desenvolvimento da

ciência tecnológica com as exigências morais da sociedade 59.

2.2.2 Surgimento e evolução histórica

Desde meados do século XX, o mundo deparou-se com um significativo

avanço nos ramos científico e tecnológico, principalmente no campo das ciências

biológicas e da saúde, o que gerou o aparecimento de dilemas nas áreas ética,

57SARLET, Ingo Wolfgang; LEITE, George Salomão (Org). Direitos fundamentais e biotecnologia. São Paulo: Método, 2008. p. 46. 58PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de bioética. 5. ed. rev. e ampl. São Paulo: Edições Loyola, 2000. p. 32. 59BARBOZA, Heloísa Helena; BARRETTO, Vicente de Paulo (Org). Temas de biodireito e bioética. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 88.

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moral, religiosa, cultural, econômica e, inclusive, jurídica 60. Ainda, nesse sentido, diz

Sérgio Ferraz:

Tão intensa foi, no particular, a acelerada disparada da ciência que já nos habituamos a encarar como fenômeno do cotidiano revoluções que, há 30 (trinta) anos, não saíam dos livros de ficção: a inseminação artificial; o bebê de proveta ou fecundação ―in vitro‖; as técnicas de reprodução assistida; a doação e utilização de embriões, fetos, células, tecidos, órgãos, etc. Tudo isso, se de um lado deslumbra, por outro deixa entrever ominosos pesadelos. Mais do que nunca, estamos no limiar de um desafio indeclinável: compatibilizar o controle da atuação científica (para evitar inaceitáveis abusos), com a necessidade da investigação biológica (da genética, em particular, com vistas ao término da esterilidade e de certas doenças, por exemplo) 61.

De outro vértice, Edmund Pellegrino expõe que embora nascida antes, a

bioética só foi reconhecida oficialmente em 1972, isso devido à complexa

transformação por ela sofrida no âmbito conceitual. Hoje, segundo o autor, a maior

dificuldade encontrada é localizar a ética dentro de inúmeras disciplinas, pois muitas

tocam, porém não são sinônimas do discurso ético. Ademais, conclui:

Do ideal educacional original, passando por profundas metamorfoses conceituais até chegar a uma visão ampliada, a bioética tornou-se um movimento social, com o objetivo de engajar-se nos problemas éticos e biológicos do presente e do futuro da humanidade 62.

Assim, desde seu aparecimento, e consequente reconhecimento, a bioética

não se limitou a buscar soluções para problemas isolados uns dos outros, sem

ligação ou influência. Dessa forma, ela é por lado uma análise rígida e coerente,

desenvolvendo-se ao longo de sua breve, porém relevante evolução histórica, sob

um plano ordenado, abrangendo diversas etapas entre si relacionadas. Já, é por

outro ângulo, uma busca lógica na solução de conflitos e dilemas morais, essa

tomada com referência a critérios e princípios básicos 63.

60LEITE, George Salomão in Ensaio sobre bioética constitucional. SARLET, Ingo Wolfgang; LEITE, George Salomão (Org). Direitos fundamentais e biotecnologia. p. 45. 61FERRAZ, Sérgio. Apud SARLET, Ingo Wolfgang; LEITE, George Salomão (Org). Direitos fundamentais e biotecnologia. pp. 45-46. 62PELLEGRINO, Edmund. apud PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de bioética. pp. 40-42. 63DURANT, Guy. A bioética: natureza, princípios, objetivos. p. 21

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2.2.3 Princípios bioéticos básicos

Os princípios norteadores da Bioética, que fornecem a orientação necessária

às situações concretas são: beneficência, autonomia e justiça 64. Segundo Manuel

Atienza, a identificação desses princípios se deu mediante a criação, por parte do

Congresso Americano, de uma Comissão Nacional encarregada de especificar os

princípios éticos básicos, tendo as seguintes orientações e características:

Deberían guiar la investigación com seres humanos en las ciências del comportamiento y en biomedicina. Esa comisión comenzó a funcionar em 1974 (unos quatro años despues de que se acuñara el término ―bioética‖ para designar los problemas éticos planteados por los avances em las ciências biológicas y médicas), y cuatro años despues, en 1978, los comisionados publicaron el lhamado Informe Belmont, que contenia tres princípios: el de autonomia o de respeto por las personas, por sus opiniones y elecciones; el de beneficiencia, que se traduciría em la obligación de no hacer dano y de extremar los benefícios y minimizar los riesgos; y el de justicia o imparcialidad en la distribuición de los riesgos y de los benefícios 65.

O Relatório de Belmont, após sua promulgação em 1978, causou

considerável impacto, tornando-se a declaração principialista clássica, não só para a

ética ligada à pesquisa na área médica, mas também para a reflexão bioética em

aspecto geral, pois apontava os princípios norteadores da biomedicina em relação

ao comportamento humano, respeitando-se as crenças e convicções de cada

indivíduo 66.

2.2.3.1 Princípio da autonomia

O princípio do autodeterminismo é primordial, constituindo um atributo

essencial do indivíduo na sociedade em que vive: autonomia baseada em liberdade,

64BARBOZA, Heloísa Helena; BARRETTO, Vicente de Paulo (Org). Temas de biodireito e bioética. p. 89. 65ATIENZA, Manuel. apud SARLET, Ingo Wolfgang; LEITE, George Salomão (Org). Direitos fundamentais e biotecnologia. p. 115. 66PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de bioética. p. 45.

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impedindo que uma pessoa explore a outra ou imponha com autoritarismo a sua

própria vontade 67.

Por pessoa autônoma, segundo Léo Pessini e Christian Barchifontaine, o

Relatório de Belmont entendia como sendo aquele ser humano capaz de deliberar

acerca de seus objetivos pessoais e agir sob a orientação dessa deliberação 68.

Além disso, referidos doutrinadores dispõem que:

A autonomia é entendida num sentido muito concreto, como a capacidade de atuar com conhecimento de causa e sem coação externa [...]. Desse princípio derivam procedimentos práticos: um é a exigência do consentimento informado e o outro é o de como tomar decisões de substituição. Quando uma pessoa é incompetente ou incapaz, isso é quando não tem autonomia suficiente para realizar a ação de que se trate 69.

Ainda, nesse sentido, preleciona Durant:

O princípio do consentimento livre e esclarecido aplica-se bem para os adultos conscientes. Mas como respeitar a autonomia e a autodeterminação com pessoas menores, deficientes mentais, doentes em como, em suma, com pessoas juridicamente incapazes? Alguns princípios éticos podem orientar a conduta: procurar o consentimento mais adequado possível; procurar determinar a vontade provável do doente; solicitar um tutor ou um amigo, agir no melhor interesse do doente etc. 70.

Enfim, referido princípio consiste no autogoverno, no poder do indivíduo de

tomar decisões que interfiram em sua vida, saúde, integridade físico-psíquica, bem

como em suas relações sociais. Ele refere-se à capacidade atinente a todo ser

humano de optar pelo que é bom, o que lhe traz a sensação de bem-estar, conforme

seus valores, crenças, necessidades, prioridades e expectativas próprias 71.

67DURANT, Guy. A bioética: natureza, princípios, objetivos. pp. 33, 37. 68PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de bioética. p. 45. 69PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de bioética. p. 46. 70DURANT, Guy. A bioética: natureza, princípios, objetivos. p. 36. 71FORTES, Paulo Antônio de Carvalho. Ética e saúde: questões éticas, deontológicas e legais, tomada de decisões, autonomia e direitos do paciente, estudos de casos. São Paulo: Editora pedagógica e universitária, 1998. p. 37.

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2.2.3.2 Princípio da beneficência

De acordo com o Dicionário de Bioética, a beneficência é o princípio que as

instâncias éticas típicas da atividade do profissional de saúde, cujos fins são

substancialmente hipocráticos e cuja intencionalidade constitui a estrutura da

deontologia profissional 72.

Já Guy Durant entende ser esse princípio um dos mais velhos da ética

médica, cujo objetivo consiste em não agredir o paciente nem provocar-lhe

sofrimento, indicando assim uma espécie de exigência mínima. Ademais, ao autor

preleciona que:

Positivamente, se fala em dever fazer o bem ao doente. Mas isto já é um passo a mais, e esse passo nem sempre é possível. Quando ele é possível, entretanto, esse dever de boa vontade (beneficentia) se impõe. Ele é expresso frequentemente sob a seguinte forma: agir sempre em função do maior benefício possível para o paciente 73.

Em contrapartida, Sarlet ressalta a importância de distinção entre esse e

aquele denominado princípio da não-maleficência, o qual foi acrescentado por

Beuchamps e Childress ao Relatório de Belmont:

O princípio da não-maleficência determina a obrigação de não infligir dano intencionalmente. Na ética médica, ele esteve intimamente associado com a máxima Primun non nocere: ―Acima de tudo (ou antes de tudo), não causar dano‖. [...] enquanto o princípio da beneficência tem um comando positivo, o princípio da não-maleficência traz em si um sentido negativo, ou seja, um comando omissivo, um não-fazer 74.

Ademais, segundo Léo Pessini o Relatório de Belmont afasta claramente a

ideia clássica do princípio da beneficência como caridade, considerando-o uma

obrigação 75.

72LEONE; PRIVITERA; CUNHA, apud, SARLET, Ingo Wolfgang; LEITE, George Salomão (Org). Direitos fundamentais e biotecnologia. p. 117. 73DURANT, Guy. A bioética: natureza, princípios, objetivos. p. 49. 74SARLET, Ingo Wolfgang; LEITE, George Salomão (Org). Direitos fundamentais e biotecnologia. p. 118. 75PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de bioética. p. 46.

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2.2.3.3 Princípio da justiça

Da mesma forma que o princípio da autonomia é atribuído, de modo geral,

ao paciente, e o da beneficência ao médico, o da justiça pode ser postulado por

terceiros, indo além daqueles diretamente associados às práticas médicas, tais

como grupos para defesa da criança, de apoio à prevenção de determinadas

doenças, tendo suas atividades e reclamações como influências notáveis na opinião

pública 76.

Por outro lado, há doutrinadores que o definem como sendo ―a justa

distribuição dos benefícios dos serviços da saúde, resumindo-se na obrigação de

igualdade de tratamento, respeitadas as diferenças de situações clínicas,

evidentemente, bem como a proporcionalidade das intervenções.‖ 77.

Ademais, sobre o tema, conhecido também como princípio da imparcialidade

na distribuição dos riscos e benefícios, colaciona-se do Dicionário da bioética o

seguinte trecho:

É o princípio que exprime e sintetiza as instâncias éticas defendidas, no acto médico, por uma terceira componente sempre presente, juntamente com o paciente e com o médico: a sociedade, em que o médico e o paciente estão inseridos. A sociedade que, na sua conotação ético-jurídica, está constituída pela comunidade de sujeitos que merecem todos igual respeito e consideração, em ordem à reivindicação ao direito á vida e à saúde e em relação aos quais os recursos sanitários devem ser distribuídos equitativamente 78.

Portanto, outra forma de entender esse princípio é dizer que os iguais devem

ser tratados igualmente. O problema, conforme Léo Pessini e Christian

Barchifontaine, está em saber quem são os iguais, existem inúmeras diferenças

entre os seres humanos, as quais precisam ser respeitadas em virtude do princípio

76CLOTET, apud. SARLET, Ingo Wolfgang; LEITE, George Salomão (Org). Direitos fundamentais e biotecnologia. p. 118. 77BARBOZA, Heloísa Helena; BARRETTO, Vicente de Paulo (Org). Temas de biodireito e bioética. p. 89. 78SARLET, Ingo Wolfgang; LEITE, George Salomão (Org). Direitos fundamentais e biotecnologia. p. 118.

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da justiça. Contudo, ainda dizem os autores, há um outro nível onde todos devem

ser considerados iguais, no qual as diferenças configuram-se injustiças 79.

2.3 A ÉTICA DA VIDA NA HUMANIZAÇÃO DOS SERVIÇOS À SAÚDE

Ante as transformações no campo jurídico, com o surgimento de novos

direitos, estes amparados pelos preceitos bioéticos, imprescindível se faz, entre

outros aspectos, a reformulação da prática cotidiana dos serviços relacionados à

saúde, bem como da ação dos profissionais ligados a essa área, adotando-se os

princípios éticos como variáveis a serem consideradas na preservação dos direitos

do paciente. Paulo Fortes, nessa linha, dispõe que:

A ética contemporânea não se coloca contrária ao desenvolvimento técnico-científico, mas considera que os limites a serem estabelecidos devem ser dados pela garantia do respeito à dignidade humana, transformada em valor essencial para a coesão social. […] É, portanto, necessário que, tanto no sistema público quanto nas instituições privadas, as ações e serviços de saúde sejam orientados no sentido de humanizar suas práticas 80.

Ademais, para referido doutrinador, a humanização dos serviços

relacionados à saúde assemelha-se com a luta por direitos morais dos pacientes, a

qual teve sua amplitude nas últimas décadas 81.

Para o autor, foi a partir da conquista dos direitos civis e sua consequente

evolução que os pacientes tiveram seus interesses resguardados em diversos textos

e declarações internacionais, tais como a Carta dos Direitos dos Pacientes publicada

pela Associação Americana de Hospitais, em 1973 e a Carta do Doente Usuário de

Hospital, promulgada em 1979 pelo Comitê Hospitalar da então Comunidade

Européia (1998, p. 19), possibilitando, assim, a expansão do objeto defendido

mediante esses documentos, qual seja o direito dos pacientes à autonomia:

79PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de bioética. p. 46. 80FORTES, Paulo Antônio de Carvalho. Ética e saúde: questões éticas, deontológicas e legais, tomada de decisões, autonomia e direitos do paciente, estudos de casos. p. 18. 81FORTES, Paulo Antônio de Carvalho. Ética e saúde: questões éticas, deontológicas e legais, tomada de decisões, autonomia e direitos do paciente, estudos de casos. p. 18.

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Todo ser humano, quando na posição de paciente, deve ser tratado em virtude de suas necessidades de saúde e não como um meio para a satisfação de interesses de terceiros, da ciência, dos profissionais de saúde ou de interesses industriais e comerciais. [...] sendo agentes livres e autônomos para decidirem sobre os atos praticados em sua integridade física e psíquica, não poderiam ser tratados como seres passivos em suas relações com os profissionais e estabelecimentos de saúde 82.

Tentando adequar-se a essa iminente transformação, que envolve campos

das áreas jurídica e médica, bem como aspectos bioéticos, além de eventuais outras

disciplinas, no Brasil, no ano de 1995, foi criada pelo Fórum de Patologistas do

Estado de São Paulo, com o apoio da Secretaria de Estado de Saúde, a cartilha dos

direitos do paciente 83.

O Estado de Santa Catarina, mais recentemente, em 20 de janeiro de 2005,

sancionou a Lei 13.324, cuja finalidade é a afixação nas recepções dos hospitais

privados e da rede pública estadual da Cartilha dos Direitos do Paciente, consoante

se verifica em notícia publicada pela Assembléia Legislativa do Estado de Santa

Catarina:

Hospitais públicos recebem "Cartilha dos Direitos do Paciente" A "Cartilha dos Direitos do Paciente", amparada na Lei 13.324/05, de autoria da deputada Odete de Jesus (PRB), ganhou, agora, espaço nos hospitais públicos de Santa Catarina. Por conta da criação da "Cartilha dos Direitos do Paciente", os usuários dos serviços hospitalares têm à disposição vários dispositivos legais que o protegem, por exemplo, da negligência de qualquer profissional de saúde. A lei abre, principalmente, a perspectiva de que os pacientes estejam bem informados sobre seus direitos como usuários dos serviços de saúde no estado. "É uma ferramenta muito útil para quem precisa de um serviço de qualidade", justifica a deputada Odete 84.

82FORTES, Paulo Antônio de Carvalho. Ética e saúde: questões éticas, deontológicas e legais, tomada de decisões, autonomia e direitos do paciente, estudos de casos. p. 18. 83PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de bioética. p. 413. 84Notícia publicada em 04 de outubro de 2007, pela Assembléia legislativa do Estado de Santa Catarina. Disponível em: <http://www.alesc.sc.gov.br/portal/imprensa/leitor_noticia. php?codigo=15432 >. Acesso em: 27 de abril de 2010.

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Dentre os interesses assegurados por referida legislação, a qual fora

proposta pela deputada Odete de Jesus, durante o mandato do governador Luiz

Henrique da Silveira, destacam-se os seguintes artigos:

Art. 1º Todo paciente tem direito a atendimento humano, atencioso e respeitoso, por parte de todos profissionais de saúde. Parágrafo único. Tem também direito a um local digno e adequado para seu atendimento. Art. 11. O paciente tem direito a consentir ou recusar procedimentos, diagnósticos ou terapêuticos a serem nele realizados e deve consentir de forma livre, voluntária e esclarecida com adequadas informações. Parágrafo único. Quando ocorrem alterações significativas no estado de saúde inicial ou da causa pela qual o consentimento foi dado, este deverá ser renovado. Art. 12. O paciente tem direito de renovar o consentimento anterior, a qualquer instante, por decisão livre, consciente e esclarecida, sem que lhe sejam imputadas sanções morais ou legais. Art. 21. O paciente tem direito a sua segurança e integridade física nos estabelecimentos de saúde, públicos ou privados. Art. 31. O paciente tem direito de receber ou recusar assistência moral, psicológica, social e religiosa 85.

Supracitado documento compreende, dentre seus objetivos, o de alertar e

conscientizar a população por ele abrangida, em especial os pacientes, acerca de

seus direitos constitucionais e dos instrumentos adequados a exercê-los 86, de forma

a respeitar os princípios bioéticos atinentes à questão, ou seja, autonomia,

beneficência e justiça.

Portanto, apesar de não criar vinculação jurídica, a Cartilha dos direitos do

paciente, bem como outros textos e declarações afins, servem como diretrizes para

organização e funcionamento dos sistemas e serviços de saúde, tanto para o fim de

85Artigos extraídos da lei estadual 13.324/05, cujo inteiro teor encontra-se no anexo-A da presente pesquisa. 86Conteúdo baseado no teor da apresentação da Cartilha dos direito do paciente, conforme José da Silva Guedes, então Secretário de Estado de São Paulo in PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de bioética. 5. ed. rev. e ampl. São Paulo: Edições Loyola, 2000, pp. 413-414.

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humanizar os atos realizados por profissionais ligados à essa área, como para

elaboração de eventual legislação a respeito do tema 87.

2.3.1 Objeção de consciência como direito do paciente: conceituação e limites

De acordo com o disposto no artigo 11 da Lei estadual 13.324/05 é garantido

ao paciente o direito de recusar procedimento terapêutico a ser por ventura nele

realizado, como exemplo a negativa à realização de transfusão sanguínea 88.

Referida garantia, também conhecida pelo termo ―objeção de consciência‖ tem na

visão de Celso Bastos o seguinte conceito:

É a chamada liberdade de opinião sob a modalidade do valor exigência. Isto significa que ao indivíduo é dado, em certas hipóteses, exigir do Estado que leve em consideração a sua consciência ou o seu pensamento, para efeito de eximi-lo de alguma obrigação 89.

Dessa forma, a escusa reivindicada pelo objetor pode servir para mostrar o

grau de consciência social em um Estado e a intensidade da intervenção deste na

esfera particular dos cidadãos. António Damasceno Correia, embora não aponte

significado direito para essa prática, define em sua obra os requisitos necessários

para sua caracterização, quais sejam:

A desobediência de norma jurídica ou autoridade pública, ou comportamento oposto ao imposto pela ordem social; Ser essa desobediência resultante de convicção de foro íntimo do objetor (razão religiosa, social, política e moral); [...] a não utilização de violência para se constituir a objeção de consciência 90.

Além disso, referido autor ressalta a importância de delimitar o campo dentro

do qual é aceitável a alegação de escusa consciente para a não-realização de

determinado ato por parte de seu objetor, buscando assim, diminuir a possibilidade

87FORTES, Paulo Antônio de Carvalho. Ética e saúde: questões éticas, deontológicas e legais, tomada de decisões, autonomia e direitos do paciente, estudos de casos. p. 18. 88SANTA CATARINA, LEI Nº 13.324, de 20 de janeiro de 2005. 89BASTOS, Celso Ribeiro. Dicionário de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 1994. p.104. 90CORREIA, António Damasceno. in Objeção de Consciência. p. 3. Disponível em: <http://costanza.vilabol.uol.com.br/3.html>. Acesso em: 11 de março de 2010.

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de má-fé eventualmente utilizada por alguns indivíduos. Para tanto, destaca

situações onde se pode verificar esses limites de aplicação:

a) Conflito entre um direito do objetor e um importante valor social - Quando ocorre um fato como esse deve-se observar se o objetor, desenvolvendo atividade seguindo sua consciência, está ameaçando os interesses da comunidade, caso esteja deve ser reprimido pelo poder público mas se a conduta, oposta à determinada, e fundada em profundos motivos próprios, não vier a ferir os interesses da comunidade, o poder público não deve intervir, está-se diante de caso de objeção de consciência. b) Conflito entre direito do objetor e direito de terceiro - O raciocínio usado para esse tipo de situação é o mesmo usado nos casos anteriores, quando a atitude do objetor põe em risco bens de terceiros deve ser considerada ilegítima. Entretanto, existem casos em que o objetor age ferindo bens de terceiros mas tem-se a certeza de que em situação igual ele agiria contra esse seu bem também. É o caso do pai que não permite transfusão de sangue do filho, colocando em risco a vida deste, a solução para este caso foi tirar o poder paterno do pai para se salvar o filho, sendo incabível punir-se o pai, pois agiria contra a própria vida se estivesse em situação igual a que estava seu filho. c) Exercício de obrigação profissional - Como já demonstrado anteriormente, bens de outrem são limites intransponíveis à atuação do objetor, sendo assim, somente são consideradas legítimas situações as quais, por motivos de foro íntimo, o objetor vem a deixar de realizar certo trabalho mas pode ser, sem prejuízo algum a bens de outrem, substituído 91.

Portanto, torna-se essencial além dos requisitos caracterizadores, a

imposição de limites à prática dessa garantia, para que não seja erroneamente

confundida com o direito de resistência e a desobediência civil, pois apesar de

possuírem traços semelhantes distinguem-se em seu objetivo final, qual seja a

proteção ao direito de liberdade de crença religiosa, convicção política ou filosófica,

pretendida pelos objetores de consciência.

2.3.2 Aspectos legais e doutrinários

Em seu artigo 5º, caput, versando a respeito dos direitos e garantias

fundamentais, dispõe a Constituição brasileira:

91CORREIA, António Damasceno. in Objeção de Consciência. p. 3.

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Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade 92.

Tangente ao direito de liberdade assegurado constitucionalmente, cabe

ressaltar que nele inseri-se a liberdade religiosa, possibilitando ao indivíduo livre

exercício dos cultos relacionados à sua fé, bem como garantindo a ele a

inviolabilidade de seus demais direitos, ante eventual reivindicação de impedimento

de natureza política, religiosa ou filosófica, nos seguintes termos:

Art. 5º [...]VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos [...] VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir alternativa, fixada em lei 93;

Ademais, referida articulação compreende cláusula imutável na legislação

em vigor, já que conforme o artigo 60, § 4º, IV, da Constituição Federal, cujo teor

versa em torno das alterações constitucionais, os direitos e garantias individuais não

podem ser objeto de emendas cujo propósito seja sua abolição.

Ainda tratando sobre o direito constitucional à objeção de consciência,

embora não o faça de forma expressa, o capítulo IV, do título II, tendo como objeto

os direitos políticos, garante a não-cassação desses em razão de convicções e

crenças pessoais reclamadas, de acordo com as normas legais vigentes:

Art. 15. É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de: [...] IV - recusa de cumprir obrigação a todos imposta ou prestação alternativa, nos termos do art. 5º, VIII 94;

Nesse sentido, colhe-se da doutrina:

A recusa ao cumprimento de obrigações da espécie, bem assim de obrigações alternativas legalmente fixadas, gera a perda dos direitos

92BRASIL. Constituição (1988). 39. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2006. 93BRASIL. Constituição (1988). 94BRASIL. Constituição (1988).

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políticos. Com efeito, o indivíduo possui o direito à escusa de consciência, mas deve, neste caso, cumprir a obrigação alternativa, sob pena de perda dos direitos políticos 95.

Importante destacar que embora haja lacunas no ordenamento jurídico

pátrio, há na legislação vigente breve explanação a respeito da questão ora

abordada. Além do artigo e incisos supracitados, a Constituição da República

Federativa do Brasil prevê em sua articulação a escusa de consciência quando

requisitada a prestação de serviço militar obrigatório:

Art. 143. O serviço militar é obrigatório nos termos da lei. § 1º – às Forças Armadas compete, na forma da lei, atribuir serviço alternativo aos que, em tempo de paz, após alistados, alegarem imperativo de consciência, entendendo-se como tal o decorrente de crença religiosa e de convicção filosófica ou política, para se eximirem de atividades de caráter essencialmente militar 96.

O exercício de atividade substitutiva, ou seja, de caráter administrativo,

assistencial filantrópico ou mesmo produtivo, apesar de não caracterizar a

essencialidade militar, também dará direito a emissão de certificado, o qual terá

validade jurídica equiparada ao de reservista:

O serviço alternativo será prestado em organizações militares da atividade e em órgãos de formação de reservas das Forças Armadas ou em órgãos subordinados aos ministérios civis, mediante convênios entre estes e o Ministério da Defesa, desde que haja interesse recíproco e, também, que sejam atendidas as aptidões do convocado. Ao final do período de atividades previsto, será conferido certificado de prestação alternativa ao serviço militar obrigatório, como os mesmos efeitos jurídicos do certificado de reservista 97.

Todavia, conforme ensina Alexandre de Moraes, não é apenas em relação

ao serviço militar que o direito à objeção de consciência está caracterizado, há

vários âmbitos onde se pode verificar sua abrangência, quais sejam obrigações

coletivas que vão de encontro às crenças religiosas, convicções políticas e

filosóficas do indivíduo 98.

95ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1998. 96BRASIL. Constituição (1988). 97MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. p. 47. 98MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 74.

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O Código Penal brasileiro em seu capítulo VI, destinado aos crimes contra a

liberdade individual, seção I, a qual se refere aos crimes contra a liberdade pessoal,

também faz menção a referido tema, já que exclui a punitividade daquele que em

situação de risco iminente de vida deixa de atender a convicção de consciência

recorrida pelo objetor.

Art. 146 - Constranger alguém mediante, violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou fazer o que ela não manda: […] § 3º – Não se compreendem na disposição deste artigo: I – a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida 99;

Nessa senda, ensina Miguel Kfouri Neto:

Entendemos que em nenhuma hipótese poder-se-ia buscar reparação de eventual dano - de natureza moral - junto ao médico: se este realizasse, p. ex., a transfusão de sangue contra a vontade do paciente ou de seu responsável - provado o grave e iminente risco de vida; se não a realizasse, diante do dissenso consciente do paciente capaz, seria impossível atribuir-lhe culpa 100.

A responsabilidade penal, na visão de Luiz Vicente Cernicchiaro, é,

igualmente afastada:

Em decorrência não configura constrangimento ilegal (compelir, mediante violência, ou grave ameaça, a fazer ou deixar de fazer alguma coisa a que não está obrigada por lei) compelir médico a salvar a vida do paciente de perigo iminente e promover a transfusão de sangue, se cientificamente recomendada para esse fim. Aliás, cumpre fazê-lo, presente a necessidade 101.

Além do ordenamento jurídico pátrio acima elencado, documentos de esfera

internacional mencionam expressamente a faculdade da objeção de consciência em

seu conteúdo, há, inclusive, duas convenções ratificadas pelo Brasil que prevêem o

exercício desse direito.

99BRASIL. Código penal. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. 100KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade Civil do Médico. 3. ed. São Paulo: RT, 1998. p. 173. 101CERNICCHIARO, Luiz Vicente. Transfusão de sangue. in: Revista jurídica, n° 262, ago.1999. p. 51.

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Promulgado por meio do Decreto n. 592 102, de 6 de julho de 1992, o Pacto

Internacional de Direitos Civis e Políticos dispõe acerca da isenção do serviço militar

obrigatório reivindicada por meio de impedimentos de razão política, religiosa ou

filosófica:

Art. 8º [...] c) Para os efeitos do presente parágrafo, não serão considerados "trabalhos forçados ou obrigatórios": [...] ii) qualquer serviço de caráter militar e, nos países em que se admite a isenção por motivo de consciência, qualquer serviço nacional que a lei venha a exigir daqueles que se oponham ao serviço militar por motivo de consciência 103;

Já em 6 de novembro de 1992, mediante o Decreto n. 678 104, foi

promulgada no Brasil a Convenção Americana de Direitos Humanos, também

denominada como Pacto de San José da Costa Rica, que defende a alegação de

escusa consciente como forma utilizada pelo ser humano para eximir-se de

determinada obrigação estatal:

Art. 6º Proibição da Escravidão e da Servidão [...] 3. Não constituem trabalhos forçados ou obrigatórios para os efeitos deste artigo: b) o serviço militar e, nos países onde se admite a isenção por motivos de consciência, o serviço nacional que a lei estabelecer em lugar daquele 105;

Por fim, mas não menos importante, a Declaração Universal dos Direitos

Humanos, assinada pela Organização das Nações Unidas em 1948, enumerando os

direitos atinentes a todos os seres humanos, assegura, entre outros, a liberdade em

seus mais diversos aspectos:

Artigo XVIII. Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião

102BRASIL. Decreto n. 592, de 6 de julho de 1992. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0592.htm>. Acesso em: 15 de abril de 2010. 103Pacto Internacional de Diretos Civis e Políticos. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0592.htm>. Acesso em: 15 de abril de 2010. 104BRASIL. Decreto n. 678, de 6 de novembro de 1992. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0678.htm>. Acesso em: 15 de abril de 2010. 105Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/conv_americana_dir_ humanos.htm>. Acesso em: 15 de abril de 2010.

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ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, em público ou em particular 106.

Destarte, supracitada explanação torna patente o respeito, o recato, a

prudência, que o sistema jurídico impõe sejam observados pelo Estado e pelos

particulares em face da liberdade de crença, bem como em relação ao livre arbítrio

direcionado pelas convicções individuais de cada ser humano.

Entretanto, embora a atuação estatal na defesa dos interesses de seus

cidadãos, mediante a aplicação de normas e princípios ditados pelo biodireito e pela

bioética, no intuito de garantir aos pacientes a aplicação de seus direitos, entre eles

a recusa à realização de determinado procedimento médico, ainda é grande o

número de conflitos provenientes de choques entre os direitos fundamentais à vida e

à liberdade religiosa, uma vez que tendo estes equidade valorativa no texto

constitucional não pode o Estado, em caráter ditatorial, preferir um ao outro,

cabendo o julgamento desses valores à análise de cada caso concreto.

106ONU, Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.onu-brasil.org.br/documentos_direitoshumanos.php>. Acesso em: 03 de maio de 2010.

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CAPÍTULO 3

CONFLITO DE DIRETOS FUNDAMENTAIS GERADO QUANDO

RECUSADA A TRANSFUSÃO DE SANGUE

Sendo o cerne da questão tratada nesta pesquisa, o conflito existente entre

direitos fundamentais será o tema abordado no presente capítulo, ante a colisão do

direito à vida com o direito à liberdade religiosa, configurada em virtude de

manifestação praticada por seguidores da religião Testemunhas de Jeová contra o

procedimento terapêutico de transfusão sanguínea, a qual se dará com base no

direito de objeção de consciência garantido constitucionalmente.

3.1 DIREITOS FUNDAMENTAIS EM CONFLITO

3.1.1 Direito à vida

Garante a Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em

1988, o direito à vida, este em caráter inviolável e assegurado de maneira não

discriminatória, conforme disposição literal de seu artigo 5º:

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade 107.

Para Alexandre de Moraes, referida garantia constitucional é o mais

fundamental de todos os direitos, uma vez que constitui pré-requisito para a

existência de todos os demais direitos 108. José Renato Nalini, compartilhando da

mesma opinião faz o seguinte apontamento:

107BRASIL. Constituição (1988). 108MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. p. 35.

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Na verdade, a vida é um pressuposto à fruição de todos os direitos. Tanto que os direitos fundamentais podem ser também traduzidos por bens da vida. Ou seja: diante da cessação da existência, não há se falar em liberdade, igualdade, propriedade e segurança para quem já não é titular da vida 109.

O respeito pela vida, no entendimento de Durant, configura-se princípio ao

qual se faz constante referência, pelo menos na cultura ocidental, como justificativa

para criação e aplicação de normas morais, regras do direito, práticas sociais e

direitos humanos:

Este princípio tem sua origem em tempos muito antigos: ele se encontra nas religiões orientais (principalmente o hinduísmo) e na tradição judaico-cristã. Encontra-se também, e de maneira prestigiada, no juramento de Hipócrates. E não perdeu a sua importância quando a moral e o direito se separaram da religião. O princípio do respeito à vida repousa principalmente sobre a proibição de matar. Exprime ainda, no mínimo, q eu a vida humana é um valor importante. Ela deve ser protegida com muito cuidado 110.

Quanto à inviolabilidade desse direito constitucional à vida, considerando os

bens integrantes da personalidade, sejam físicos, psíquicos e/ou morais transcende,

na visão de Emerson Ike Coan, todo um ramo do direito, por ocupar posição de

primazia, de direito mais relevante: ―é bem maior ou supremo na esfera natural e

jurídica, uma vez que em sua volta, e como consequência de sua existência, todos

os demais direitos da pessoa humana gravitam‖ 111. Sarlet, se manifesta da seguinte

forma:

Onde não houver respeito pela vida e pela integridade física do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde a intimidade e a identidade do indivíduo forem objeto de ingerências indevidas, onde sua igualdade relativamente aos demais não for garantida, bem como onde não houver limitação do poder, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana, e esta não passará de mero objeto de arbítrio e injustiças 112.

109NALINI, José Renato. Ética geral e profissional. p. 179. 110DURANT, Guy. A bioética: natureza, princípios, objetivos. p. 38. 111COAN, Emerson Ike. Biomedicina e biodireito: desafios bioéticos, traços semióticos para uma hermenêutica constitucional fundamentada nos princípios da dignidade da pessoa humana e da inviolabilidade do direito à vida. in SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. Biodireito: ciência da vida, os novos desafios. p. 259. 112SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. p. 122.

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Dessa forma, Alexandre de Moraes entende que sendo garantia de máxima

grandeza, o direito à vida apenas é declarado pelo ordenamento jurídico, sendo o

Estado ente responsável por assegurar a efetivação de sua inviolabilidade: ―A

Constituição proclama, portanto, o direito à vida, cabendo ao Estado assegurá-lo em

sua dupla acepção, sendo a primeira relacionada ao direito de continuar vivo e a

segunda de se ter vida digna quanto à subsistência‖ 113.

3.1.2 Direito à liberdade religiosa

Conforme já mencionado no presente trabalho, é garantia constitucional

prevista no caput do artigo 5º da atual constituição brasileira o direito inviolável à

liberdade, o qual no entendimento de Carlos Alberto Bittar consiste em: ―poder a

pessoa direcionar suas energias, no mundo fático, em consonância com a própria

vontade, no alcance dos objetivos visados, seja no plano pessoal, seja no plano

negocial, seja no plano espiritual‖ 114.

Verifica-se então, que esse direito pode ser exercido de diversas formas e

em distintos momentos, como por exemplo o livre arbítrio relacionado à consciência

particular de cada indivíduo quanto às escolhas tomadas em virtude de crença

religiosa, convicção política ou de caráter filosófico, assim dispondo o texto

constitucional:

VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei 115;

José Celso Mello Filho, a respeito das garantias declaradas no inciso acima,

diz que:

113MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. p. 36. 114BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. Rio de Janeiro: Forense

Universitária, 2003. 115BRASIL. Constituição (1988). 39. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2006

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A liberdade de consciência constitui núcleo básico de onde derivam as demais liberdades de pensamento. É nela que reside o fundamento de toda a atividade poítico-partidária, cujo exercício regular não pode gerar restrição aos direitos de seu titular 116.

Ademais, sobre o tema, expõe Ceneviva:

A liberdade de consciência envolve o direito da pessoa comportar-se e pensar, sem restrição, conforme lhe pareça o certo e o errado. Quanto ao fazer e ao comportar-se, desde que não vedado por lei, o limite do permitido está no respeito ao direito alheio 117.

Ainda, a respeito do livre arbítrio atinente a todo e qualquer indivíduo, cabe

ressalta-se que embora explicitada no art. 19 da Constituição Federal de 1988 a

vedação à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios de

estabelecerem cultos religiosos ou igrejas, bem como embaraçar-lhes o

funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de

dependência, ressalvada, na forma da lei a colaboração de interesse público,

permite o Estado o livre exercício da liberdade de consciência por parte de seus

cidadãos na escolha de suas convicções religiosas, garantindo a eles nos termos do

inciso VI, do artigo 5º, da constituição nacional, a inviolabilidade da liberdade de

crença, a prática dos cultos religiosos e a proteção aos locais de liturgia.

3.2 A COLISÃO DO DIREITO À VIDA EM RELAÇÃO À LIBERDADE RELIGIOSA

O choque entre direitos fundamentais ocorre quando, no momento em que

se busca sua aplicação simultânea, há o confronto entre esses direitos ou, entre eles

e outros bens jurídicos protegidos constitucionalmente.

A recusa ao tratamento terapêutico de transfusão sanguínea apresentada

por pacientes adeptos da religião Testemunhas de Jeová gera conflito de garantias

constitucionais, uma vez que entram em choque a inviolabilidade dos direitos à vida

116MELLO FILHO, José Celso. Constituição Federal anotada. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1986. p. 440. 117CENEVIVA, Walter. Direito constitucional brasileiro. p. 60.

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e à liberdade religiosa, haja vista os seguidores dessa crença religiosa entenderem

que:

Segundo esse grupo religioso, a transfusão de sangue e a doação de órgãos são proibidos pela Bíblia. Decorrente dessa convicção surgem situações de impasse, em que o doente recusa o sangue e pessoas proíbem a transfusão de sangue em seus filhos ou familiares, mesmo que como consequência disso sobrevenha a morte 118.

No entanto, a sociedade médica diante dessa situação, até pouco tempo

desconhecia as convicções religiosas e impunha a transfusão sanguínea em defesa

da saúde de seus pacientes, haja vista constituir regra fundamental disposta no

código de conduta médica a preservação da vida humana. Contudo, esse

fundamento no código de ética profissional ganhou nova interpretação, preservando,

sobretudo, o princípio bioético da autonomia garantido aos pacientes:

A partir de 13 de abril de 2010, entra em vigor o sexto Código de Ética Médica reconhecido no Brasil. Revisado após mais 20 anos de vigência do Código anterior, ele traz novidades como a previsão de cuidados paliativos, o reforço à autonomia do paciente e regras para reprodução assistida e a manipulação genética. [...] O objetivo comum foi construir um atento aos avanços tecnológicos e científicos, à autonomia e ao esclarecimento do paciente, além de reconhecer claramente o processo de terminalidade da vida humana. [...] No seu processo de formulação, além de serem consideradas as mudanças sociais, jurídicas e científicas, os responsáveis pelo trabalho também analisaram os códigos de ética médica de outros países e consideraram elementos de jurisprudência, posicionamentos que já integram pareceres, decisões e resoluções da Justiça, das Comissões de Ética locais as resoluções éticas do CFM e CRMs editadas desde 1988. [...] A autonomia tem sido um dos itens de maior destaque. Já no preâmbulo o documento diz que o médico deverá aceitar as escolhas de seus pacientes, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas. O inciso XXI determina que, no processo de tomada de decisões profissionais, ―o médico aceitará as escolhas de seus pacientes relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos‖. 119

Entretanto, alguns preceitos contidos nos código anteriores permaneceram

inalterados entre eles destacam-se os seguintes artigos:

118PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de bioética. p. 328. 119Notícia extraída do sítio eletrônico ―portal do médico‖. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/novocodigo/index.asp>. Acesso em: 24 de maio de 2010.

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Art. 6° - O médico deve guardar absoluto respeito pela vida humana, atuando sempre em benefício do paciente. É direito do médico: Art. 20 - Exercer a Medicina sem ser discriminado por questões de religião, raça, sexo, nacionalidade, cor opção sexual, idade, condição social, opinião política, ou de qualquer outra natureza. Art. 28 - Recusar a realização de atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência. É vedado ao médico: Art. 46 - Efetuar qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e consentimento prévio do paciente ou de seu responsável legal, salvo iminente perigo de vida. Art. 56 - Desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente perigo de vida 120.

Verifica-se então, que embora atualizadas as normas de conduta seguidas

pelos médicos em prol dos pacientes, o código de ética também garante aos

profissionais direitos de recusa à autonomia do doente em virtude de iminente perigo

de vida, bem como em razão de confronto por ventura existente entres as

convicções do paciente e do próprio médico.

Dessa forma, situações envolvendo esses dois direitos fundamentais, devem

ser analisadas sob a ótica da hermenêutica constitucional, apesar de não haver no

texto legal, nem no campo doutrinário menção hierárquica em relação à aplicação

dos direitos à vida e à liberdade de crença, tornando-os possuidores de eficácia e

poder equivalentes. Nesse aspecto, a doutrina entende que:

Com efeito: a norma constitucional está sujeita à prudência objetiva do poder constituinte, apoiada no conjunto circunstancial-comunicativo fático e axiológico observando-se a sua eficácia social – sentido – e sua eficácia jurídica – construção – funcionalidade – que pertencem a comunidade, ao externar suas aspirações sócio-culturais 121.

Além disso, Emerson Ike Coan destaca:

120Código de Ética Médica. Disponível em: <http://www.abctran. com.br/Conteudo/codigo_etica_medica.pdf>. Acesso em: 24 de maio de 2010. 121COAN, Emerson Ike. Biomedicina e biodireito: desafios bioéticos, traços semióticos para uma hermenêutica constitucional fundamentada nos princípios da dignidade da pessoa humana e da inviolabilidade do direito à vida. in SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. Biodireito: ciência da vida, os novos desafios. São Paulo: Revista dos tribunais, 2001. p. 257.

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A esta feição semiótica soma-se o fato de que ela deve ser dirigida no âmbito dos desafios bioéticos, enquanto hermenêutica (estrutural ou globalizante) de princípios, numa visão prospectiva, ao servir de critério para o legislador ordinário, o Judiciário, Executivo e toda a sociedade, como meio de concretizar os valores fundamentais contidos na Constituição, ao exercerem uma função diretiva e integrativa 122.

Concluindo, Regina Sauwen e Severo Hryniewicz afirmam que para buscar

soluções a esses conflitos o jurista deve recorrer a valores e princípios que estão

acima de qualquer revolução social ou científica, entre eles o valor da vida humana,

o qual respeitado por quase todas as crenças religiosas e sistemas ideológicos,

incide na liberdade de submissão ou não, na proteção jurídica ao corpo humano, na

garantia da integridade física e no acesso a exames e tratamentos médicos 123.

3.3 POSICIONAMENTO JURISPRUDENCIAL E DOUTRINÁRIO

Embora doutrina e jurisprudência divergirem em relação a qual seria o

correto julgamento dado a esses casos de conflitos entre os direitos fundamentais à

vida e à liberdade religiosa, entendem que não havendo direito absoluto a solução

mais adequada somente poderá ser formulada à vista dos elementos do caso

concreto, o que dá espaço a distintos posicionamentos. Assim vejamos:

CAUTELAR. TRANSFUSÃO DE SANGUE. TESTEMUNHAS DE JEOVÁ. NÃO CABE AO PODER JUDICIÁRIO, NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO, AUTORIZAR OU ORDENAR TRATAMENTO MÉDICO-CIRÚRGICOS E/OU HOSPITALARES, SALVO CASOS EXCEPCIONALÍSSIMOS E SALVO QUANDO ENVOLVIDOS OS INTERESSES DE MENORES. SE IMINENTE O PERIGO DE VIDA, É DIREITO E DEVER DO MÉDICO EMPREGAR TODOS OS TRATAMENTOS, INCLUSIVE CIRÚRGICOS, PARA SALVAR O PACIENTE, MESMO CONTRA A VONTADE DESTE, E DE SEUS FAMILIARES E DE QUEM QUER QUE SEJA, AINDA

122COAN, Emerson Ike. Biomedicina e biodireito: desafios bioéticos, traços semióticos para uma hermenêutica constitucional fundamentada nos princípios da dignidade da pessoa humana e da inviolabilidade do direito à vida. in SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. Biodireito: ciência da vida, os novos desafios. p. 258. 123SAUWEN, Regina Fiúza; HRYNIEXICZ, Severo. O direito “in vitro”: da bioética ao biodireito. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1997. p. 29.

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QUE A OPOSIÇÃO SEJA DITADA POR MOTIVOS RELIGIOSOS. IMPORTA AO MÉDICO E AO HOSPITAL E DEMONSTRAR QUE UTILIZARAM A CIÊNCIA E A TÉCNICA APOIADAS EM SÉRIA LITERATURA MÉDICA, MESMO QUE HAJA DIVERGÊNCIAS QUANTO AO MELHOR TRATAMENTO. O JUDICIÁRIO NÃO SERVE PARA DIMINUIR OS RISCOS DA PROFISSÃO MÉDICA OU DA ATIVIDADE HOSPITALAR. SE TRANSFUSÃO DE SANGUE FOR TIDA COMO IMPRESCINDÍVEL, CONFORME SÓLIDA LITERATURA MÉDICO-CIENTÍFICA (NÃO IMPORTANDO NATURAIS DIVERGÊNCIAS), DEVE SER CONCRETIZADA, SE PARA SALVAR A VIDA DO PACIENTE, MESMO CONTRA A VONTADE DAS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ, MAS DESDE QUE HAJA URGÊNCIA E PERIGO IMINENTE DE VIDA (ART. 146, § 3º, INC. I, DO CÓDIGO PENAL). CASO CONCRETO EM QUE NÃO SE VERIFICAVA TAL URGÊNCIA. O DIREITO À VIDA ANTECEDE O DIREITO À LIBERDADE, AQUI INCLUÍDA A LIBERDADE DE RELIGIÃO; É FALÁCIA ARGUMENTAR COM OS QUE MORREM PELA LIBERDADE POIS, AÍ SE TRATA DE CONTEXTO FÁTICO TOTALMENTE DIVERSO. NÃO CONSTA QUE MORTO POSSA SER LIVRE OU LUTAR POR SUA LIBERDADE. HÁ PRINCÍPIOS GERAIS DE ÉTICA E DE DIREITO, QUE ALIÁS NORTEIAM A CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS, QUE PRECISAM SE SOBREPOR AS ESPECIFICIDADES CULTURAIS E RELIGIOSAS; SOB PENA DE SE HOMOLOGAREM AS MAIORES BRUTALIDADES; ENTRE ELES ESTÃO OS PRINCÍPIOS QUE RESGUARDAM OS DIREITOS FUNDAMENTAIS RELACIONADOS COM A VIDA E A DIGNIDADE HUMANAS. RELIGIÕES DEVEM PRESERVAR A VIDA E NÃO EXTERMINÁ-LA. (TJRS, AC 595000373, Porto Alegre, rel. Sérgio Gischkow Pereira, j. 28-03-1995) 124.

Da leitura de supracitado acórdão extrai-se o posicionamento do Tribunal de

Justiça do Rio Grande do Sul, o qual defende a prevalência do direito à vida em

relação ao poder de livre escolha religiosa, alegando que nenhuma crença pode se

sobrepor aos princípios gerais de ética e de direito, os quais norteadores da Carta

das Nações Unidas, resguardam, sobretudo, a dignidade da pessoa humana, não

podendo ser colocada em igual patamar que o direito à religião ocupa.

Por outro lado, defendendo a liberdade de crença e aplicando o direito à

objeção de consciência colaciona-se julgado proferido pelo Tribunal de Justiça do

Mato Grosso:

TESTEMUNHA DE JEOVÁ - PROCEDIMENTO CIRÚRGICO COM POSSIBILIDADE DE TRANSFUSÃO DE SANGUE - EXISTÊNCIA DE TÉCNICA ALTERNATIVA - TRATAMENTO FORA DO DOMICÍLIO - RECUSA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA - DIREITO

124Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Sexta Câmara Cível, Apelação Cível 595000373, Porto Alegre, relator Sérgio Gischkow Pereira, julgado em 28-03-1995. Disponível em: <http://www1.tjrs.jus.br/busca/?tb=juris>. Acesso em: 26 de maio de 2010.

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À SAÚDE - DEVER DO ESTADO - RESPEITO À LIBERDADE RELIGIOSA - PRINCÍPIO DA ISONOMIA - OBRIGAÇÃO DE FAZER - LIMINAR CONCEDIDA - RECURSO PROVIDO. Havendo alternativa ao procedimento cirúrgico tradicional, não pode o Estado recusar o Tratamento Fora do Domicílio (TFD) quando ele se apresenta como única via que vai ao encontro da crença religiosa do paciente. A liberdade de crença, consagrada no texto constitucional não se resume à liberdade de culto, à manifestação exterior da fé do homem, mas também de orientar-se e seguir os preceitos dela. Não cabe à administração pública avaliar e julgar valores religiosos, mas respeitá-los. A inclinação de religiosidade é direito de cada um, que deve ser precatado de todas as formas de discriminação. Se por motivos religiosos a transfusão de sangue apresenta-se como obstáculo intransponível à submissão do recorrente à cirurgia tradicional, deve o Estado disponibilizar recursos para que o procedimento se dê por meio de técnica que dispense-na, quando na unidade territorial não haja profissional credenciado a fazê-la. O princípio da isonomia não se opõe a uma diversa proteção das desigualdades naturais de cada um. (TJMT, Agravo de Instrumento n. 22395/2006, rel. Des. Leônidas Duarte Monteiro, j. 31-05-2006)125.

Nesta decisão, proferida dez anos depois do julgamento realizado pelo

tribunal gaúcho, nota-se ampliação quanto às interpretações dadas à escusa

consciente, uma vez que indo de encontro às crenças religiosas do paciente o

procedimento terapêutico da transfusão sanguínea deve ser obstado, desde que

haja tratamento alternativo de eficácia equivalente que não atinja de maneira

prejudicial suas convicções particulares.

Além das diferenças apontadas acima, há entendimentos distintos quanto ao

grau de consciência atinente a cada paciente durante eventual procedimento

terapêutico, as quais serão demonstradas separadamente nos tópicos que seguem.

3.3.1 A autonomia do paciente maior e capaz

O respeito pela autonomia da pessoa conjuga-se como princípio da

dignidade da natureza humana, defendido pela Bioética, de acordo com disposição

125Tribunal de Justiça do Mato Grosso, Agravo de Instrumento n. 22395/2006, relator Des. Leônidas Duarte Monteiro, julgado em: 31-05-2006. Disponível em: <http://www. tjmt.jus.br/jurisprudenciapdf/GEACOR_22395-2006_06-07-06_71559.pdf>. Acesso em: 26 de maio de 2010.

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realizada no capítulo anterior. Respeitar o indivíduo autônomo é reconhecer que

cada pessoa tem pontos de vista e expectativas próprias quanto a seu destino,

podendo decidir, inclusive sobre eventual transfusão sanguínea necessária à

manutenção de sua saúde. Nesse sentido, colaciona-se acórdão proferido pelo

Tribunal de Justiça de Minas Gerais:

PROCESSO CIVIL. CONSTITUCIONAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TUTELA ANTECIPADA. CASO DAS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ. PACIENTE EM TRATAMENTO QUIMIOTERÁPICO. TRANSFUSÃO DE SANGUE. DIREITO À VIDA. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA E DE CRENÇA. - No contexto do confronto entre o postulado da dignidade humana, o direito à vida, à liberdade de consciência e de crença, é possível que aquele que professa a religião denominada Testemunhas de Jeová não seja judicialmente compelido pelo Estado a realizar transfusão de sangue em tratamento quimioterápico, especialmente quando existem outras técnicas alternativas a serem exauridas para a preservação do sistema imunológico. - Hipótese na qual o paciente é pessoa lúcida, capaz e tem condições de autodeterminar-se, estando em alta hospitalar. (TJMG, Agravo n. 1.0701.07.191519-6/001, rel. Des. Alberto Vilas Boas, j. 14-08-2007)126.

Sendo o paciente maior e capaz, fácil se faz perceber a vontade por ele

manifestada, devendo esta ser respeitada ante a autodeterminação demonstrada

quanto se encontra inatingida sua capacidade natural de discernimento. Contudo

alguns pontos devem ser considerados no momento de obter do doente seu

consentimento, ou não, à prática de determinado ato médico:

Para ser autêntico, este consentimento deve ter duas qualidades: ser livre e esclarecido. Do contrário, ele será um simulacro. Para dar um consentimento esclarecido, o paciente deve possuir as informações necessárias, esclarecendo a natureza do tratamento, suas consequências e riscos. […] Mas, se o consentimento deve ser autêntico, ele não pode conter apenas esclarecimento, mas deve ser livre, quer dizer, sem coerção ou fraude 127.

Assim, cumpridas as exigências acima, de acordo com o documento da

Sociedade Brasileira de Hematologia e Hemoterapia, sendo o interessado adulto

126Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Agravo n. 1.0701.07.191519-6/001, relator Des. Alberto Vilas Boas, julgado em: 14-08-2007. Disponível em: <http://www.tjmg.jus.br/juridico/jt_/inteiro_teor.jsp?tipoTribunal=1&comrCodigo=701&ano=7&txt_processo=191519&complemento=1&sequencial=0&palavrasConsulta=jeová&todas=&expressao=&qualquer=&sem=&radical=.> Acesso em: 25 de maio de 2010. 127DURANT, Guy. A bioética: natureza, princípios, objetivos. pp. 34-35.

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consciente: ―sugere-se respeitar suas convicções, mas exige-se que ele assine uma

declaração isentando de responsabilidade a instituição, o médico e quem dele

cuidar‖ 128.

3.3.2 Incapacidade permanente ou temporária do paciente adulto

O ser humano não nasce autônomo, torna-se autônomo, competente para

decidir, interferindo em suas decisões variáveis biológicas, psíquicas e sócio-

culturais. No entanto, existem pessoas que, de forma transitória ou permanente

reduzem sua capacidade de autonomia, seja por desordens emocionais ou mentais,

seja por alterações físicas, mas nem por isso deixam de ser incompetentes para

todos os atos de sua vida 129.

Guy Durant entende que, embora incapazes, os pacientes com problemas

mentais ou em estado de coma podem manifestar sua opinião para permitir, ou não,

a realização de eventuais procedimentos terapêuticos, pois Apesar de reduzida, a

autonomia ainda encontra-se garantida:

Com uma pessoa em estado de coma pode-se perguntar se ela exprimiu, anteriormente, sua vontade de maneira explícita. Em caso afirmativo, se usa o tratamento. Caso contrário pode-se tentar encontrar a vontade presumida do doente com seus parentes. […] A mesma atitude é exigida normalmente para os deficientes mentais. À medida que eles possam compreender algumas coisas, deve-se tentar explicar o tratamento ou a experiência a que vão ser submetidos para ao menos obter um certo consentimento 130.

Já os participantes da sociedade brasileira de hematologistas e

hemoterapêutas têm atitude mais radical, pois no caso de adultos inconscientes

admitem que o sangue possa ser aplicado, desde que nem o cliente nem seus

familiares venham a saber, o problema, todavia, é evitar o trauma psicológico e

128PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de bioética. p. 329. 129FORTES, Paulo Antônio de Carvalho. Ética e saúde: questões éticas, deontológicas e legais, tomada de decisões, autonomia e direitos do paciente, estudos de casos. p. 42. 130DURANT, Guy. A bioética: natureza, princípios, objetivos. p. 36.

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espiritual, enquanto a vida é salva, haja vista o desrespeito praticado às convicções

e vontade do paciente 131.

3.3.3 O adequado procedimento a ser adotado quando o paciente ainda é

menor

Nos casos de eventual transfusão de sangue a ser realizada em pacientes

ainda menores, principalmente crianças, a decisão é, na maioria das vezes,

atribuída aos pais ou responsáveis, conforme se constata em decisão prolatada pelo

Tribunal Regional Federal da 4ª Região:

DIREITO À VIDA. TRANSFUSÃO DE SANGUE. TESTEMUNHAS DE JEOVÁ. [...] LIBERDADE DE CRENÇA RELIGIOSA E DIREITO À VIDA. IMPOSSIBILIDADE DE RECUSA DE TRATAMENTO MÉDICO QUANDO HÁ RISCO DE VIDA DE MENOR. VONTADE DOS PAIS SUBSTITUÍDA PELA MANIFESTAÇÃO JUDICIAL. […]Conflito no caso concreto dois princípios fundamentais consagrados em nosso ordenamento jurídico−constitucional: de um lado o direito à vida e de outro, a liberdade de crença religiosa. A liberdade de crença abrange não apenas a liberdade de cultos, mas também a possibilidade de o indivíduo orientar-se segundo posições religiosas estabelecidas. No caso concreto, a menor autora não detém capacidade civil para expressar sua vontade. A menor não possui consciência suficiente das implicações e da gravidade da situação pata decidir conforme sua vontade. Esta é substituída pela de seus pais que recusam o tratamento consistente em transfusões de sangue. Os pais podem ter sua vontade substituída em prol de interesses maiores, principalmente em se tratando do próprio direito à vida [...] (TRF 4ª, Apelação Cível 2003.71.02.000155-6/RS, rel. Juíza Vânia Hack de Almeida, j. 01-11-2006)132.

Entretanto, em que pese ser delegada aos pais a tomada de decisões em

relação a seus filhos, os quais em decorrência da pouca idade não possuem

condições de expressar sua vontade adequando-a às circunstâncias em que se

encontram, supracitado acórdão juntamente com a doutrina alerta sobre possíveis

131PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de bioética. p. 329. 132Tribunal Regional Federal da 4ª Região, Apelação Cível 2003.71.02.000155-6/RS, relatora Juíza Vânia Hack de Almeida, julgado em: 01-11-2006. Disponível em: <http://direitoempauta.blogspot.com/2006/11/trf4-poder-pblico-no-obrigadofornecer.html>. Acesso em: 25 de maio de 2010.

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conflitos existentes entre os interesses do menor e de seu tutor, ocasiões em que

deverão os profissionais da área médica adotar medidas contrárias às posições

paternas, caso haja grave e iminente perigo à vida da criança:

As crianças ainda estão desenvolvendo as condições necessárias para agirem autonomamente, têm sua autonomia ainda reduzida. Ética e legalmente, durante esse período de vida, requerem proteção de terceiros, pais ou responsáveis, que assumem a responsabilidade por decisões que as afetem ou venham a afetar. Porém, o poder pátrio poderá ser confrontado ética e legalmente quando exista conflito de valores ou de princípios paternos com a sociedade 133.

Ademais, visando solucionar essa e outras problemáticas, foi elaborado pela

Sociedade Brasileira de Hematologia e Hemoterapia um documento que os

Conselhos Regionais de Medicina aceitam e sugerem que seja adotado, o qual a

respeito da autonomia relativa aos pacientes que ainda não atingiram a maioridade

prevê que:

Tratando-se de criança, menor de idade, incapaz, o problema não está na criança, no menor ou no incapaz, mas nos pais e tutores. Estes impõem sua convicção aos filhos ou tutelados sob a guarda do pátrio poder. A orientação do documento é de que se respeite a decisão de não permitir que o sangue seja aplicado, mas dever-se-á exigir deles a assinatura do termo de responsabilidade 134.

Por outro lado, tratando-se de paciente com idade entre 12 e 18 anos, ou

seja, considerado adolescente conforme a Lei Federal 8.069/90 (Estatuto da Criança

e do Adolescente), entende o doutrinador Guy Durant:

No sentido ético pode-se pensar que é preciso, tanto quanto for possível, obter o consentimento do jovem, principalmente se ele for adolescente. E, se o consentimento plenamente esclarecido for impossível, obter ao menos seu acordo ou seu assentimento 135.

Ainda, sobre o tema, ensina Paulo Fortes:

Cabe lembrar que as normas de direito civil brasileiras consideram os adolescentes, até 16 anos, como absolutamente incapazes, e de 16

133FORTES, Paulo Antônio de Carvalho. Ética e saúde: questões éticas, deontológicas e legais, tomada de decisões, autonomia e direitos do paciente, estudos de casos. p. 44. 134PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de bioética. p. 329. 135DURANT, Guy. A bioética: natureza, princípios, objetivos. p. 36.

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a 18 anos, como relativamente incapazes para a prática de determinados atos jurídicos da esfera civil. Exceção a essa regra são os menores emancipados, caso em que o poder pátrio é extinto e os adolescentes passam a ter status jurídico semelhante ao dos adultos136.

Porém, ressalta o autor, apesar de haver unidades federadas que autorizam

os adolescentes a consentir todo tipo de assistência à sua saúde, é grande a

distância existente entre a abordagem ética e a jurídica quanto à noção de

competência decisória dos adolescentes, sendo polêmica a discussão sobre a

competência ética do adolescente em decidir sobre questões relativas à sua

saúde137.

3.3.4 Da responsabilidade médico-hospitalar

A intenção do médico nada mais é do que salvar e preservar a vida de seu

paciente, no entanto, quando o doente é adepto à religião Testemunhas de Jeová,

sua ação deve ser tomada levando em consideração as convicções religiosas do

paciente, conforme determina o Código de Ética Médica, não cabendo ao poder

judiciário decisão acerca da matéria, conforme prolatou o Tribunal de Justiça do Rio

Grande do Sul:

APELAÇÃO CÍVEL. TRANSFUSÃO DE SANGUE. TESTEMUNHA DE JEOVÁ. RECUSA DE TRATAMENTO. INTERESSE EM AGIR. Carece de interesse processual o hospital ao ajuizar demanda no intuito de obter provimento jurisdicional que determine à paciente que se submeta à transfusão de sangue. Não há necessidade de intervenção judicial, pois o profissional de saúde tem o dever de, havendo iminente perigo de vida, empreender todas as diligências necessárias ao tratamento da paciente, independentemente do consentimento dela ou de seus familiares. Recurso desprovido.

136FORTES, Paulo Antônio de Carvalho. Ética e saúde: questões éticas, deontológicas e legais, tomada de decisões, autonomia e direitos do paciente, estudos de casos. p. 46. 137FORTES, Paulo Antônio de Carvalho. Ética e saúde: questões éticas, deontológicas e legais, tomada de decisões, autonomia e direitos do paciente, estudos de casos. pp. 46-48.

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(TJRS, Apelação Cível 70020868162, rel. Des. Umberto Guaspari Sudbrack, j. 22-08-2007).138

Assim, manifestada a vontade pelo paciente, o qual consciente das condições

na qual se encontra recusa a transfusão sanguínea, deve o hospital atender suas

pretensões sendo impedido de buscar judicialmente aprovação para realização de

procedimento rechaçado pelo doente, e somente em casos de grave perigo à vida

deste, deve o grupo hospitalar, independente de anuência demonstrada, aplicar

tratamento diverso àquele pretendido.

Importante se faz ressaltar as situações de emergência eventualmente

ocorridas, configurando-se exceções ao impedimento de ação médica sem o

consentimento do paciente, seus responsáveis ou parentes:

A ação dos profissionais de saúde nas situações de emergência, em que os indivíduos não conseguem exprimir suas preferências ou dar seu consentimento, fundamentam-se no princípio bioético da beneficência, assumindo o papel de protetor natural do paciente por meio de ações positivas em fazer da vida e da saúde. Nas situações de emergência aceita-se a noção da existência de consentimento presumido ou implícito, pelo qual supõe-se que a pessoa, se estivesse de posse de sua real autonomia e capacidade, se manifestaria favorável às tentativas de resolver causa e/ou consequências de suas condições de saúde 139.

Outro caso que merece destaque é a responsabilidade dos atos praticados

pelo médico praticante do testemunho de Jeová. De acordo com o artigo 28 do

Código de Ética Médica é direito do médico recusar a realização de atos que,

embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência.

Entretanto, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, decidiu pela manutenção

da pronúncia do profissional que, em virtude de crença religiosa deixou de realizar

transfusão de sangue em paciente, a qual veio a falecer após dois dias de sua

internação:

138Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Quinta Câmara Cível, Apelação Cível 70020868162, relator Des. Umberto Guaspari Sudbrack, j. 22-08-2007. Disponível em: <http://www1.tjrs.jus.br/busca/?tb=juris>. Acesso em: 25 de maio de 2010. 139FORTES, Paulo Antônio de Carvalho. Ética e saúde: questões éticas, deontológicas e legais, tomada de decisões, autonomia e direitos do paciente, estudos de casos. p. 54.

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Homicídio. Sentença de pronúncia. Pais que, segundo consta, impedem ou retardam transfusão de sangue na filha, por motivos religiosos, provocando-lhe a morte. Médico da mesma religião que. também segundo consta, os incentiva a tanto e ameaça de processo os médicos que assistiam a paciente, caso realizem a intervenção sem o consentimento dos pais. Ciência da inevitável conseqüência do não tratamento. Circunstâncias, que, em tese, caracterizam o dolo eventual, e não podem deixar de ser levadas à apreciação do júri. Recursos não providos. (TJSP, Nona Câmara Criminal, Recurso em sentido estrito n. 993.99.085354-0, rel. Des. Galvão Bruno, j. 28-01-2010)140.

Nesse caso, sendo a vítima ainda menor, coube aos pais decidirem qual o

adequado procedimento a ser realizado em seu tratamento. Como integrantes da

religião Testemunhas de Jeová, optaram juntamente com o médico responsável pela

paciente, o qual adepto da mesma crença religiosa, a não realização de transfusão

de sangue, o que gerou a morte da adolescente. Julgado o recurso recentemente,

em janeiro deste ano, ainda não foi tomada decisão a respeito de eventual

condenação aplicada ao profissional, contudo, sabe-se que o cerne da questão será

o choque entre os direitos constitucionais à vida e à liberdade religiosa.

Por outro lado, em apelação proferida pelo mesmo tribunal, foi indeferido

pedido de indenização formulado por paciente adepta da religião Testemunhas de

Jeová que, sem seu consentimento, fora submetida a tratamento terapêutico de

transfusão sanguínea, haja vista não restar comprovada a manifestação pública de

sua recusa:

Indenizatória - Reparação de danos - Testemunha de Jeová - Recebimento de transfusão de sangue quando de sua internação – Convicções religiosas que não podem, prevalecer perante o bem maior tutelado peta Constituição federal que é a vida - Conduta dos médicos, por outro lado, que pautou-se dentro da lei e ética profissional, posto que somente efetuaram as transfusões sangüíneas após esgotados todos os tratamentos alternativos - Inexistência, ademais, de recusa expressa a receber transfusão de sangue quando da internação da autora — Ressarcimento, por outro lado, de despesas efetuados com exames médicos, entre outras, que não merece acolhido, posto não terem sido os valores despendidos pela apelante - Recurso improvido. (TJSP, Terceira Câmara de

140Tribunal de Justiça de São Paulo, Nona Câmara Criminal, Recurso em sentido estrito n. 993.99.085354-0, relator Des. Galvão Bruno, julgado em: 28-01-2010. Disponível em: <http://esaj.tj.sp.gov.br/cjsg/resultadoCompleta.do;jsessionid=A709740C9E5547D1CA14F9920ACC0459>. Acesso em: 26 de maio de 2010.

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Direito Privado, Apelação Cível 123.430-4/4-00, rel. Flávio Pinheiro, j. 18-06-2002)141.

Assim, percebe-se que embora existam decisões fundamentando a

importância de preservação de ambos direitos constitucionais, é preciso pesar os

dois lados dessa conflitante relação. De um vértice encontram-se os médicos e

profissionais de saúde, os quais trazem desde sua formação a ideia de preservação

da vida como fator primordial, entendendo não poder este direito ser suprido pela

liberdade religiosa. Porém, em oposição estão os seguidores do testemunho de

Jeová, que não veem razão para a não-aceitação de sua fé sobre o direito de dispor

acerca de suas próprias vidas.

Portanto, inexiste resolução correta que seja única, devendo ser analisadas

em cada caso concreto a coerência das pretensões manifestadas pelos dois polos

desse conflito, buscando ao final adequar a decisão aos preceitos constitucionais, às

normas éticas e à vontade dos envolvidos, mediante soluções que englobem

concomitante e equilibradamente todos esses aspectos.

141

Tribunal de Justiça de São Paulo, Terceira Câmara de Direito Privado, Apelação Cível

123.430-4/4-00, relator Flávio Pinheiro, julgado em: 18-06-2002 Disponível em: <http://esaj.tj.sp.gov.br/cjsg/resultadoCompleta.do>. Acesso em: 24 de maio de 2010.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A evolução da humanidade em muito tem contribuído para a área do Direito,

aprimorando as técnicas de interpretação, e em consequência, de aplicação das

intenções pretendidas pelos legisladores através de seus documentos jurídicos.

Entretanto, apesar dessas novas formas de pensamento e expressão, ainda há

divergências manifestadas diante de determinadas situações.

Os direitos fundamentais, razões de estudo do capítulo inicial do presente

trabalho, são garantidos pela atual Constituição Federal, sem distinção hierárquica

que os prevaleça uns aos outros, porém, essa igualdade de valores é responsável

pela frequente ocorrência de conflitos havidos entre os direitos constitucionalmente

assegurados. Verifica-se que desde o início de sua positivação os direitos

fundamentais tinham a finalidade de defender interesses primordiais à sociedade e

seus integrantes, passando com o decorrer dos anos a abrangir uma ampla gama de

objetos, o que é bastante discutido pelos doutrinadores, ante a iminente perde de

seu caráter fundamental.

Incluídas na primeira geração de direitos fundamentais, a vida e a liberdade

religiosa dividem opiniões tangentes ao papel de importância que desempenham

entre si, causando, não raras vezes, choques decorrentes da concomitância de sua

aplicação. Quando reivindicada a objeção de consciência por indivíduo adepto à

religião Testemunhas de Jeová, na intenção de obstar tratamento médico proibido

por suas convicções de fé, opta o paciente pela liberdade de crença em detrimento

de seu direito à vida. Contudo, referida escolha é geradora de uma vasta discussão.

A Bioética e o Biodireito, tratados no segundo capítulo, dispõem, mediante

preceitos e normas próprias, os procedimentos adequados a serem tomados quando

ocorrida a recusa à transfusão sanguínea, garantindo a pacientes e profissionais da

saúde direitos e deveres a serem seguidos na busca de uma solução equilibrada

para a colisão entre o direito à vida, defendido pelos médicos, sobretudo por meio de

seu Código de Ética, e o direito à livre escolha de crença religiosa, reivindicado

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pelos pacientes quando utilizam a escusa consciente, amparada no princípio

bioético da autonomia para impedir a realização de determinado procedimento

terapêutico.

No entanto, a autonomia dos pacientes é questão controvertida na doutrina e

na jurisprudência, conforme explanação elaborada no capítulo final, havendo

posicionamentos que defendem ambos os lados dessa celeuma. Um caso de

bastante relevância é a negativa manifestação dos pais, ou responsáveis, à

realização do procedimento de transfusão sanguínea em seus filhos, uma vez que

entendem os estudiosos caber àqueles o poder de decisão quanto à vida dos

menores. Contudo, há decisões que frisam o impedimento dos pais de

ultrapassarem os limites de sua própria autonomia, não podendo colocar em risco a

vida de crianças por motivos de fé e crenças religiosas, o que parece bastante

prudente, haja vista não existirem garantias acerca da identidade de crenças entre

pais e filhos, inclusive quando estes, atingindo a maioridade, puderem escolher

livremente a direção de sua fé.

Outra situação conflitante reside na eventual autodeterminação existente em

pacientes cuja capacidade encontra-se temporária ou permanentemente

prejudicada. Na visão de alguns autores, nesses casos deve-se buscar nos parentes

qual seria a provável vontade de seus familiares, ou ainda, se o doente teria

anteriormente à sua incapacidade, manifestado opinião acerca da aceitação de

transfusão sanguínea. A jurisprudência, no entanto, defendendo a ação imediata dos

médicos, diz que em casos de comprovado risco de vida ou em caráter de

emergência, nas quais não se pode esperar pela chegada da família ao hospital, o

profissional deve realizar referido procedimento terapêutico, o que demonstra

relevada prudência, pois dito ato objetiva primordialmente garantir o bem-estar do

paciente, não o deixando à mercê de situações que coloquem em risco sua própria

existência.

Por outro lado, existem julgados que condenam a decisão do médico, este

adepto à religião Testemunhas de Jeová, que não procede à transfusão sanguínea

em seu paciente ante os impedimentos ditados por suas próprias convicções

religiosas, porém existindo tratamento alternativo a condenação é suprida pela

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realização de método, que embora não seja comum, preservará a vida do doente.

Ressaltam ainda, que buscando eventual indenização pela realização de tratamento

não autorizado, os interessados deverão comprovar a ciência do médico quanto à

sua vontade, não podendo o profissional ou o hospital arcar com indenizações

advindas do desconhecimento relativo à fé de seus pacientes.

Destarte, verifica-se com a presente pesquisa, que há quem defenda a

prevalência do direito à vida em relação à liberdade de crença, esses entendedores

prelecionam que apesar de serem ambos positivados constitucionalmente, não pode

um impedimento de natureza religiosa obstar o regular exercício da garantia

inviolável à vida inerente a todo ser humano.

Em contrapartida, é nesse ponto que divergem os posicionamentos a

respeito, uma vez garantido o direito à vida, entendem os adeptos da corrente

contrária que pode o indivíduo usufruí-la da maneira que julgar mais adequada a

satisfazer suas convicções, podendo inclusive, sem dela abrir mão, haja vista sua

inviolabilidade, escolher um caminho que em virtude de sua fé ou convicção, não se

enquadra na forma rotineiramente mais aceita pela sociedade.

Dessa forma, é notável que embora haja decisões argumentando a

importância de preservação de ambos direitos fundamentos, não existe apenas uma

única solução para serem resolvidos os conflitos gerados a partir da colisão dos

direitos à vida e à liberdade religiosa, cabendo ao julgador, em cada caso concreto,

buscar um equilíbrio entre as pretensões de seus pacientes, na defesa primordial à

dignidade do ser humano.

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BIBLIOGRAFIA

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ANEXOS

Anexo A – LEI 13.324/05

LEI Nº 13.324, de 20 de janeiro de 2005

Dispõe sobre afixação nas recepções dos hospitais privados e da rede

pública do Estado, da Cartilha dos Direitos do Paciente.

O GOVERNADOR DO ESTADO DE SANTA CATARINA, Faço saber a todos os habitantes deste Estado que a Assembléia

Legislativa decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1º Todo paciente tem direito a atendimento humano, atencioso e respeitoso, por parte de todos profissionais de saúde.

Parágrafo único. Tem também direito a um local digno e adequado para seu atendimento.

Art. 2º O paciente tem direito a ser identificado pelo nome e sobrenome, não

devendo ser tratado pelo nome da doença ou do agravo à saúde, ou ainda de forma genérica ou quaisquer outras formas impróprias, desrespeitosas ou preconceituosas.

Art. 3º O paciente tem direito ao auxílio imediato e oportuno para a melhoria

de seu conforto e bem estar, por parte do funcionário que está fazendo o atendimento.

Art. 4º O paciente tem direito a identificar o profissional por crachá, com o

nome completo, função e cargo.

Art. 5º O paciente tem direito a consultas marcadas, antecipadamente, de forma que o tempo de espera não ultrapasse trinta minutos.

Art. 6º O paciente tem direito de exigir que todo o material utilizado seja

rigorosamente esterilizado ou descartável e manipulado segundo normas de higiene e prevenção.

Art. 7º O paciente tem direito de receber explicações claras sobre o exame

a que vai ser submetido e para qual finalidade irá ser coletado o material para exame de laboratório.

Art. 8º O paciente tem direito a informações claras, simples e

compreensíveis, adaptadas à sua condição cultural, sobre as ações diagnosticadas e terapêuticas, e o que pode decorrer delas, a duração do tratamento, a localização de sua patologia, se existe a necessidade de anestesia, qual o instrumental a ser utilizado e quais regiões do corpo serão afetadas pelos procedimentos.

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Art. 9º O paciente tem direito a ser esclarecido se o tratamento ou diagnóstico é experimental ou faz parte de pesquisa, e se os benefícios a serem obtidos são proporcionais aos riscos e se existe probabilidade de alteração das condições de dor, sofrimento e desenvolvimento da sua patologia.

Art. 10. O paciente tem direito de consentir ou recusar a ser submetido à

experimentação ou pesquisas. Parágrafo único. No caso de impossibilidade de expressar sua vontade, o

consentimento deve ser dado por escrito por seus familiares ou responsáveis.

Art. 11. O paciente tem direito a consentir ou recusar procedimentos, diagnósticos ou terapêuticos a serem nele realizados e deve consentir de forma livre, voluntária e esclarecida com adequadas informações.

Parágrafo único. Quando ocorrem alterações significativas no estado de saúde inicial ou da causa pela qual o consentimento foi dado, este deverá ser renovado.

Art. 12. O paciente tem direito de renovar o consentimento anterior, a

qualquer instante, por decisão livre, consciente e esclarecida, sem que lhe sejam imputadas sanções morais ou legais.

Art. 13. O paciente tem o direito de ter seu prontuário médico elaborado de

forma legível e de consultá-lo a qualquer momento. Parágrafo único. Este prontuário deve conter o conjunto de documentos

padronizados de histórico do paciente, princípio e evolução da doença, raciocínio clínico, exames, conduta terapêutica e demais relatórios e anotações clínicas.

LEI 13.677/06 (Art. 1º) – (DO. 17.800 de 10/01/06) ―O art. 13 da Lei nº 13.324, de 20 de janeiro de 2005, fica acrescido do

seguinte § 2º, transformando o parágrafo único em § 1º:

Art.13.........§1º.......... § 2º O direito de que trata o caput estende-se aos familiares, quando o

paciente, alternativa ou cumulativamente: I - estiver inconsciente; II - for incapaz de entender sua condição; ou III - for menor de idade.‖

Art. 14. O paciente tem direito a ter seu diagnóstico e tratamento por escrito,

identificado com o nome do profissional de saúde e seu registro no respectivo Conselho Profissional, de forma clara e legível.

Art. 15. O paciente tem direito de receber medicamentos básicos, e também

medicamentos e equipamentos de alto custo, que mantenham a vida e saúde.

Art. 16. O paciente tem o direito de receber os medicamentos acompanhados de bula impressa de forma compreensível e clara com data de fabricação e prazo de validade.

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Art. 17. O paciente tem direito de receber as receitas com o nome genérico do medicamento (Lei do Genérico e não em código), datilografadas ou em letras de forma ou com caligrafia perfeitamente legível e com assinatura e carimbo contendo o número do registro do respectivo Conselho Profissional.

Art. 18. O paciente tem direito de conhecer a procedência e verificar antes

de receber sangue ou hemoderivados para a transfusão, se o mesmo contém carimbo nas bolsas de sangue atestando as sorologias efetuadas e sua validade.

Art. 19. O paciente tem direito, no caso de estar inconsciente, de ter

anotado em seu prontuário, medicação, sangue ou hemoderivados, com dados sobre a origem, tipo e prazo de validade.

Art. 20. O paciente tem direito de saber com segurança e antecipadamente,

através de testes ou exames, que não é diabético, portador de algum tipo de anemia, ou alérgico a determinados medicamentos (anestésicos, penicilina, sulfas, soro antitetânico, etc.) antes de lhe serem administrados.

Art. 21. O paciente tem direito a sua segurança e integridade física nos

estabelecimentos de saúde, públicos ou privados.

Art. 22. O paciente tem direito de ter acesso às contas detalhadas referentes às despesas de seu tratamento, exames, medicação, internação e outros procedimentos médicos. (Portaria do Ministério da Saúde nº 1286 de 26de outubro de 1993 - art. 8º e nº 74 de 04 de maio de 1994).

Art. 23. O paciente tem direito de não sofrer discriminação nos serviços nos

serviços de saúde por ser portador de qualquer tipo de patologia, principalmente no caso de ser portador de HIV/AIDS ou doenças infectocontagiosas.

Art. 24. O paciente tem direito de ser resguardado de seus segredos,

através da manutenção do sigilo profissional, desde que não acarrete riscos a terceiros ou à saúde pública.

Parágrafo único. Os segredos do paciente correspondem a tudo aquilo que, mesmo desconhecido pelo próprio cliente, possa o profissional de saúde ter acesso e compreender através das informações obtidas no histórico do paciente, exame físico, exames laboratoriais e radiológicos.

Art. 25. O paciente tem direito a manter sua privacidade para satisfazer suas

necessidades fisiológicas, inclusive alimentação adequada e higiênicas, quer quando atendido no leito, ou no ambiente onde está internado ou aguardando atendimento.

Art. 26. O paciente tem direito a acompanhante, se desejar, tanto nas

consultas, como nas internações. Parágrafo único. As visitas de amigos e parentes devem ser disciplinadas

em horários compatíveis, desde que não comprometam as atividades médico/sanitárias. Em caso de parto a parturiente poderá solicitar a presença do pai.

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Art. 27. O paciente tem direito de exigir que a maternidade, além dos profissionais comumente necessários, mantenha a presença de um neonatologista, por ocasião do parto.

Art. 28. O paciente tem direito de exigir que a maternidade realize o "teste

do pezinho" para detectar fenilcetonúria nos recém-nascidos.

Art. 29. O paciente tem direito à indenização pecuniária no caso de qualquer complicação em suas condições de saúde motivadas por imprudência, negligência ou imperícia dos profissionais de saúde.

Art. 30. O paciente tem direito à assistência adequada, mesmo em períodos

festivos, feriados ou durante greves profissionais.

Art. 31. O paciente tem direito de receber ou recusar assistência moral, psicológica, social e religiosa.

Art. 32. O paciente tem direito a uma morte digna e serena podendo optar

ele próprio (desde que lúcido), a família ou responsável, por local ou acompanhamento e ainda se quer ou não o uso de tratamentos dolorosos e extraordinários para prolongar a vida.

Art. 33. O paciente tem direito a dignidade e respeito, mesmo após a morte.

Os familiares ou responsáveis devem ser avisados imediatamente após o óbito.

Art. 34. O paciente tem o direito de não ter nenhum órgão retirado de seu corpo sem sua prévia aprovação.

Art. 35. VETADO.

Art. 36. É obrigatória a afixação desta Lei com a Cartilha dos Direitos do

Paciente, na recepção dos hospitais.

LEI 13.677/06 (Art. 2º) – (DO. 17.800 de 10/01/06) ―Fica acrescido o art. 36-A à Lei nº 13.324, de 2005, com a seguinte

redação:

Art. 36-A. O não-cumprimento do disposto na presente Lei sujeitará a instituição infratora às penalidades administrativas de acordo com a legislação vigente.‖

Art. 37. VETADO.

Art. 38. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Florianópolis, 20 de janeiro de 2005

LUIZ HENRIQUE DA SILVEIRA Governador do Estado