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Confraria dos Guerreiros

Jussara Nunes

[email protected]

Confraria dos Guerreiros ____________________________________ Universo Multiplanar © 2007 Jussara Nunes

Esta obra é uma publicação independente e tem alguns direitos reservados, segundo a licença do Creative Commons. Sendo permitida a distribuição por mídia não-impressa para fins não-lucrativos, devidamente creditado. Para reprodução em mídia impressa, deve-se ter a autorização por escrito do autor da obra.

Creative Commons http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/2.5/

Arte de capa baseada na imagem do álbum London Calling (The Clash) Arte de contracapa baseada em foto dos Beatles, utilizada no álbum americano Beatles for Sale II

Edição, revisão e arte: Jussara Nunes

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro) _________________________________________________ NUNES, Jussara, 1985 –

Confraria dos Guerreiros/ Jussara Nunes Publicação Independente – Santo André SP – 2007

Título: Confraria dos Guerreiros

1. Ficção: Literatura Juvenil

I. Título

_________________________________________________ Índice para Catálogo Sistemático

1. Ficção: Literatura Juvenil

2. Ficção: Literatura Brasileira

1ª Edição: Maio de 2007 (para distribuição na internet)

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Confraria dos Guerreiros Theimmmmm. Theimmmmm. O barulho do martelo batendo no aço mole era ritmado como uma música. Ouvindo com atenção, era possível perceber a diferenciação dos sons. A chapa de aço amolecido ainda estava cheia de

irregularidades, e em cada ponto diferente onde o martelo batia, uma nota musical se destacava. Era como uma música. Um som forte, mas agradável. E, de certo modo, lembrava o barulho de colheres batendo em copos de cristal com diferentes quantidades de água. Mas a medida que a placa ia se tornando regular, o som começava a se repetir.

O responsável pela bateção era Kario Kherouakr. Um anão ferreiro. Tinha a barba e os cabelos da cor castanho, mas que estavam quase negros de fuligem. Seus braços eram fortes e musculosos devido à tantas décadas de trabalho em ferrarias. Suas mãos eram protegidas por arremedos de luvas desgastadas, cujos buracos exibiam seus dedos queimados. Kario era um ferreiro de grande renome, muito conhecido na província de Morintha, em Ardehennas.

Ardehennas era o reino dos anões. Não se assuste. Ardehennas não é um lugar tão bizarro quanto pode parecer. É igual a qualquer outro reino humano, com a

diferença que o batente das portas medem no máximo um metro e setenta, e que não é o lugar mais apropriado para alguém que tenha claustrofobia morar. O reino é construído dentro da grande cordilheira de montanhas que ocupa todo o sudoeste do Grande Continente. São milhares e milhares de corredores de cavernas bem construídas em vários níveis, tanto nas regiões mais profundas quanto nas mais rasas. Um lugar e tanto.

Quanto ao povo... bem, são anões. Mas não anões “humanos”, que não cresceram por alguma deficiência do hormônio do crescimento. Os anões de que estou falando representam uma raça distinta dos humanos. No entanto, são quase idênticos, exceto no fato de atingirem em média 1,35m de altura. Também costumam ser mais robustos e vigorosos, além de atingirem os trezentos anos sem grandes dificuldades. Outro detalhe físico diz respeito à sua estética: anões adoram usar barba comprida. Os homens, claro! E algumas mulheres mais sortudas. Mas vamos parar de falar no povo e observar mais o reino em si.

Olhe para Ardehennas do lado de fora. Vê? Uma enorme cordilheira de montanhas que, há milênios, abriga esse povo diminuto, mas orgulhoso. Praticamente todos os anões do mundo nasceram em Ardehennas. E pouquíssimos são os que vivem longe dela. Sua pátria racial. Ainda hoje, existe uma certa xenofobia entre anões e humanos. É pouca, mas suficiente para causar alguns acontecimentos desagradáveis. Por isso esse povo prefere ficar em sua cordilheira, onde sempre estiveram. De um modo geral, anões não gostam muito de mudanças. Pelo menos é essa a fama que carregam.

Vamos voltar para a ferraria. Kario continua batendo no ferro. Ele ocupa-se integralmente com seu trabalho. Um viciado! Só parava para comer e dormir. O tempo todo ficava em sua oficina. Quando não tinha nenhuma encomenda de machado, armadura ou escudo para fazer, simplesmente ficava derretendo mais metal para inventar coisas novas. A ferraria era sua arte, seu trabalho, sua dor e seu prazer.

A placa de ferro em que ele batia já tinha tomado forma. A forma de uma meia lua. Ele parou por um instante. Deixou as ferramentas de lado. Jogou água no rosto para se refrescar. O local estava terrivelmente quente devido às fornalhas. O anão pegou uma haste robusta de ferro, cujo uma das extremidades já estava sendo aquecida na brasa a algum tempo. Pegou uma concha de ferro e a mergulhou num caldeirão contendo metal derretido. Uma gota da substância caiu no chão, soltando muita fumaça e se solidificando como um pingo de ferro. O hábil ferreiro despejou uma pequena quantidade do metal derretido na ligação da haste e da meia lua, formando uma solda. E tão logo voltou a bater.

O som voltou a ter diferenciação de notas, mas só por algum tempo. Logo começou a se tornar regular. O corpo daquele machado estava pronto. Agora só era preciso afiar a lâmina como se devia. Mas aquilo teria de esperar, pois alguém já estava batendo na porta da ferraria há alguns minutos.

– Posso entrar? – perguntou uma voz. – Ei! Parece que você se esquece do mundo quando está trabalhando! O ferreiro sorriu ao reconhecer a voz. Limpou as mãos num pano encardido e abriu o portão da ferraria. – Ah! É você! – disse Kario, sorridente. Esperando do lado de fora, estava um anão de sorridente. Este tinha a barba e os cabelos da cor castanho claro, quase

loiros. Usava roupas simples, mas impecáveis. Não era musculoso, mas compensava sendo um pouco mais alto. Fisicamente, era o total oposto do ferreiro. Seu nome era Dhor Brurroughar.

Dhor e Kario eram amigos. Conheciam-se a mais de cinqüenta anos. Para humanos, parece ser uma longa data, mas não é tanta para anões. Mesmo assim, os dois se davam como amigos de infância. Eram grandes camaradas, embora vissem um ao outro poucas vezes, já que suas profissões exigiam muito tempo de suas vidas. Kherouakr estava quase sempre enfurnado em sua ferraria. E Brurroughar estava quase sempre fora de casa, pois seguia uma profissão importante, mas que era pouco reconhecida em Ardehennas. Ele era um carregador.

Com sua carruagem, puxada por um bicho reptante chamado torperin, ele viajava para fora das grandes montanhas de Ardehennas e visitava os anões que viviam na superfície. Lá, eles cultivavam plantações de cevada e linho, que servia para fabricar a cerveja e as roupas dos anões. Itens importantes, mas quem recebia todo o crédito por eles eram o cervejeiro e o alfaiate, não os trabalhadores rurais que penavam para conseguir cultivar a matéria-prima, muito menos o carregador que tinha que passar dias e dias longe da sua família, viajando por toda a província para entregar os produtos.

– Desculpe, não ouvi você bater. – prosseguiu o ferreiro. – Você sabe que quando mergulho no trabalho, acabo esquecendo de tudo.

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– Esqueceu até da comida da patroa, não? – Dhor apertou a mão do ferreiro e lhe deu tapinhas amigáveis nas costas. – Encontrei com ela lá fora e ela perguntou se você já comeu o bolo de carne que deixou para você em cima da mesa há algumas horas.

– Ainda não. Mas não estou com fome. – ele apontou para uma das mesas onde a comida estava posta. – Pode experimentar no meu lugar, minha mulher cozinha muito bem.

– Hmmm... será que ainda está bom? – perguntou Dhor, olhando desconfiado para o prato em cima daquela mesa suja. – Claro! A comida está ótima! É só soprar as formigas! Dhor lançou um olhar piedoso para os bravos insetos que se aglomeravam sobre o bolo de carne, e decidiu não incomodá-

los. Virou-se para o amigo: – Espero que esteja tudo bem com você. – O quê? – disse o ferreiro, distraído. – Está ficando surdo, meu amigo! – sorriu o carregador. – O barulho do seu martelo está acabando com a sua audição. Dá

para ouvir os ruídos de muito longe. – Não é meramente ruído, meu amigo. É música. – Kario enxugou o suor do rosto. – Prefiro mil vezes a bateção do meu

martelo do que... do que... Ah! Do que a cantoria dos bardos desocupados das tavernas! Você sabe, essa gente que vive de garganta. De vadiagem! Gente que nunca conheceu as alegrias do trabalho braçal, e nem nunca conhecerá.

Dhor soltou um leve risinho, como quem acha graça de um pequeno comentário exagerado que só serve para incrementar a conversa. Mas percebeu que seu amigo dissera a palavra "bardo" com um certo pesar.

– Tudo bem com você? – perguntou. – As pessoas andam comentando que, nos últimos dias, você tem parecido rabugento e intratável.

– Ah! Dando ouvidos a essas fofocas? – É porque eu sei que são verdadeiras. Embora ache difícil de acreditar que você possa ficar mais rabugento e intratável

que o normal. – Como é bom ter um amigo sincero... Dhor soltou um risinho discreto. – mas afinal, meu amigo. O que está acontecendo com você? O ferreiro tinha acabado de pegar novamente suas ferramentas, mas as largou. Sentou em uma cadeira. – Estou preocupado com o meu filho, Dhor. Muito preocupado! – Kario suspirou. – Jak não se interessa pela ferraria. – Oh, só por isso? – o anão sorriu. – Bem, não dá para obrigar os filhos a seguirem eternamente a profissão da família.

Acho que são sinais dos tempos. Eu, pelo menos, estou feliz que o meu filho não queria saber de ser carregador. – Não é só isso. – o ferreiro levou a mão à testa. – Você sabe... desde que Jak saiu de Ardehennas para as suas viagens nos

reinos humanos... Ele voltou muito diferente! – Quando conversei com ele, o rapaz parecia o mesmo. – disse Dhor, lembrando da volta do filho do amigo há dois anos

atrás. – O mesmo jovem que ainda não sabia que destino seguir na vida. Achei que a viagem dele em reinos humanos o ajudasse a abrir suas perspectivas. Achei até que ele, vendo o modo desleixado como os humanos ferreiros fabricam suas próprias espadas, ele se sentiria ainda mais motivado a viver da ferraria.

– Foi o que pensei também! Senão não teria desembolsado parte das minhas economias para ele viajar. Ele ficou uma década fora. Achei que voltaria mais maduro. Pronto para prosseguir com os negócios da família, mas não! Ele continuava o mesmo cabeça-de-vento! E agora com ainda mais vento!

– Bom, eu não fico muito em casa, você sabe. Essa vida de carregador me impede de visitá-lo muitas vezes. Realmente, a última vez que vi seu filho foi quando ele tinha acabado de chegar de viagem, mas e você? Só agora começou a ficar realmente preocupado, ou tem alguma coisa acontecendo nos últimos dias?

O ferreiro levantou da cadeira. Parecia não querer falar sobre o assunto, mas precisava. As palavras pareciam entupir a sua garganta.

– Ele mal pára em casa. Já não ficava muito antes da viagem, e agora só vem para dormir! Isso eu ainda poderia suportar, ainda poderia relevar. Já estava até mesmo traçando um plano de fazê-lo morar sozinho, para ele começar a trabalhar e a lutar pelo próprio sustento. Igual aos dois irmãos dele, que estão na província de Granada. Claro que eu iria auxiliá-lo no começo. Iria dar todo o apoio, mas... mas agora... – o ferreiro balançou a cabeça, tristemente. – Agora não sei mais o que fazer!

– Kario, Kario... – Dhor se aproximou do amigo. – O que está acontecendo com Jak? – Os vizinhos... os vizinhos que ficam acordados até tarde começaram a ver o meu filho por aí. E disseram... deuses!

Disseram que ele está andando com os filhos do Brukowskir e do Grinsbergar! – Heim?! – Dhor arregalou os olhos. – Está falando daqueles dois jovens bardos? Brukowskir e Grinsbergar? Ah! Entendo

sua preocupação! Qual o nome mesmo dos garotos? Hmmm... um deles é Char Brukowskir, não? Ele não passa de um vadio. Filhinho de papai. Aquele ali nunca vai precisar trabalhar durante sua vida toda. Tudo bem que ele é bastante inteligente e tudo, mas não trabalha. E não quer saber de trabalhar, só de ficar escrevendo. E o outro? Qual o nome do outro...hã... ah! Arren Grinsbergar. Aparentemente um bom moço. Foi privado dos pais muito cedo, tive pena dele quando fiquei sabendo. Mesmo assim achei que o seu tio poderia dar uma educação melhor para ele. Pois segundo as más línguas esse rapaz... ele gosta de garotos!

– Deuses! – Kario bateu três vezes no ferro. – Onde Jak está com a cabeça? – É melhor você tirá-lo de perto deste tipo de gente antes que seja tarde. – Acha que não tentei? – o ferreiro pegou seu martelo encima da mesa. – Eu e Jak já brigamos feio várias vezes! Ele diz

que eu não tenho nada a ver com os amigos deles. Eu sempre retruco que, se estes "amigos" estão levando meu filho mais novo para o mau caminho, então eu tenho a ver com isso sim! Nós estamos brigando direto. Minha mulher ainda quer protegê-lo,

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dizendo para deixá-lo em paz. Ah! Quanto revés! Quem me dera ter um filho como o seu, meu amigo! O jovem Seward é que é um verdadeiro modelo de rapaz.

Dhor sorriu. Era como se o elogio fosse para ele. – Verdade. O meu Seward é um ótimo rapaz. E um excelente guerreiro também. Ah, que orgulho! – ele fez um pequena

pausa, lembrando da imagem do filho. – Desde criança sempre teve uma determinação quase inata para as lutas. Ele ainda vai longe!

– Por que "quase inata"? – Eu já lhe contei que conheci Dhungar Rumnahein pessoalmente? Dhungar Rumnahein. Eram poucos os anões que não o conheciam. E praticamente nenhum que não conhecia o sobrenome

Rumnahein. Era um clã famoso. O primeiro a desfraldar o seu nome em terras humanas como grandes aventureiros. Anões valorosos e respeitados. E Dhungar Rumnahein era o membro da sexta geração deste clã que fazia história. Já estava aposentado e longe de Ardehennas há algumas décadas, mesmo assim os anões ainda lembravam-se dele.

– Oh! Já me contou. – disse o ferreiro, abrindo um largo sorriso. – Alias, sempre que pode me conta esta história! Acho que foi quando o seu filho era uma criança?

– Um bebê, para ser mais exato. Tive a sorte de comprar justamente a casa que fora dos pais de Dhungar. A casa onde morou Deegar Rumnahein! O mais famoso membro da quinta geração destes aventureiros! O meu Seward devia ter uns três ou quatro anos. Nem se lembra mais deste encontro. Mas acho que a simples presença daquele guerreiro lendário fez meu filho adquirir essa paixão pela luta.

– Ouvi dizer que você também conheceu o filho do próprio Dhungar. – Sim! O nome do filho dele era Ulfgar, eu acho. O conheci quando era um bebê também, mas logo depois Dhungar e sua

esposa foram embora de Ardehennas para viver em terras humanas. – Dhor fez uma pausa, ergue a cabeça. – Grandes Deuses! Se meu filho já é o guerreiro que é só por ter sentido a presença de um Rumnahein, imagine o filho do próprio Dhungar!

E os dois anões ergueram os olhos, como se sonhassem. Ficaram pensando no quão glorioso devia ser o filho de Dhungar Rumnahein. E que honra seria para eles se o conhecessem.

Eram quatro aventureiros na caverna. Quer dizer, Ardehennas inteira é uma caverna, mas os aventureiros estavam dentro de uma menorzinha. Um túnel, para

falar a verdade. O lugar era escuro, mas o caminho era iluminado por uma esfera mágica brilhante que flutuava no ar. Havia uma peste de trogloditas que infestava a província de Darethoor há muitos séculos, e nunca cessava.

Constantemente, guerreiros eram convocados para combatê-la. E aqueles quatro aventureiros foram chamados para ajudar. Vamos conhecê-los.

Quem ia na frente era uma mulher. Mas não uma anã. Era uma mulher humana. Do alto dos seus 1,83m podia-se ver uma bela cabeleira dourada meio encaracolada, emoldurando seu belo rosto. Em suas mãos havia uma espada, e sobre seu corpo uma armadura leve.

Era Miranda Braunam , uma amazona guerreira. A mais experiente do grupo. – Já cacei trogloditas uma vez. – disse ela para os seus companheiros. – Não são tão durões quanto parecem. Podem ficar

tranqüilos. Quem estava bem tranqüilo era o homem atrás dela. Também não era um anão, mas tão pouco era humano. Tinha as

orelhas pontudas e peludas. Os cabelos longos da cor prateada. Os olhos com contornos pretos e pupilas verticais como as de um gato – embora nesse momento suas pupilas estivessem arredondadas para captar a pouca de luz do ambiente. O homem carregava um arco robusto em uma mão e segurava uma flecha na outra. Em sua cintura, havia uma bolsa contendo vários tipos de ferramentas de arrombador e nas suas costas uma aljava com flechas.

Era Aramil Al-Liadon, um elfo-das-areias, e também o ladrão do grupo. – Ah, por mim tudo bem! – disse ele, sorrindo. – Gosto de caçar em lugares assim. Lembra-me a velha confraria dos

ladrões de Phanthorys. – De qualquer modo, é bom ficar atento. – recomendou a guerreira. – Por favor, Joshua, aumente o poder da luz mágica

que nos guia. Joshua era o terceiro do grupo. Um humano. Um jovem humano. Ele não carregava arma alguma nas mãos, mas havia um

pequeno punhal preso em sua cintura por precaução. Seu rosto era redondo e jovial, seus cabelos negros chegavam até a altura dos ombros.

Joshua McLane era o mago do grupo. – Está bem. – o rapaz fez um gesto e a luz da esfera aumentou. – Assim está bom? – Sim, está. – disse Miranda, que parou por um instante. – Hmmm... ouviram algo? Acho que estamos chegando perto dos

trogloditas. Antes que o último membro do grupo diga a sua frase, vamos observá-lo. Este sim era um anão. Um jovem anão, de barba

meio comprida presa em uma trança – embora a barba dele não fosse tão grande assim para que aquela trança fosse necessária. Ele vestia uma armadura robusta, e movia-se com certa dificuldade. Estava de porte de um grande machado que trazia apoiado no ombro – que já estava dolorido por causa do peso da arma.

Seu nome era Ulfgar Rumnahein. O filho único do lendário Dhungar Rumnahein. – Que venham logo! – disse o anão, confiante. – Estou louco para estrear este novo machado que comprei!

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– Para mim esse machado foi um roubo. – disse o ladrão do grupo. – Quanto você pagou por ele? Dez moedas de ouro? Deuses! Em Phanthorys você pode comprar um ótimo machado por apenas duas!

– Ah! Mas um machado de Ardehennas não se compara! Nós somos os melhores ferreiros do mundo. – disse o anão, como se ele próprio fosse um ferreiro. – Além disso este aqui foi feito por ninguém menos que Kario Kherouakr!

– Quem é esse? – perguntou o mago. – Um ferreiro de renome. A família Kherouakr é famosa no ramo das armas há muitas gerações. Um membro deste clã

está para a ferraria tanto quanto um membro do meu clã, os Rumnahein, estão para a aventura! – Mais um motivo para o preço do machado ser um roubo... – sussurrou Aramil. – Ei! – exclamou Ulfgar. – Silêncio! – alertou Miranda. – O inimigo vem vindo! Os quatro aventureiros se posicionaram. – Fiquem espertos! – disse o ladrão, que olhou de soslaio para Ulfgar. – Principalmente você, baixinho. – Humpf! Droga! – resmungou o anão. – Desde que Aramil pegou essa mania de me chamar de baixinho que ele não pára

mais! – Não ligue, Ulfgar. – disse o mago, com um sorriso cínico. – A próxima vez que Aramil te chamar de baixinho, dê-lhe

uma cabeçada no joelho! – Parem com isso! – protestou o anão. – Nossa missão nem bem começou e vocês já zombaram de mim três vezes...! – O inimigo está aqui! – exclamou Miranda, golpeando uma silhueta negra. Um esguicho de sangue espirrou. – Cuidado! A luz mágica de Joshua revelou os monstros. Trogloditas. Criaturas atarracadas e cegas, lembrando salamandras sem

pescoço. Caminhavam eretas, possuíam garras venenosas e uma bocarra com mais de cem dentes. Miranda as atacava sem hesitar. – Vamos! – disse ela, dando golpes vigorosos com sua espada. – Ataquem as criaturas! Joshua começou a preparar suas magias. Linhas coloridas saltavam de suas mãos e atingiam os monstros, fazendo-os cair.

Aramil atirava suas flechas com rapidez, e quando alguma criatura se aproximava demais ele usava o próprio arco robusto para golpeá-las. Ulfgar também lutava, mas de forma lenta. A armadura protegia seu corpo contra as garras venenosas e as presas dos trogloditas, mas em compensação dificultava seu movimento. Além disso, ele mal tinha forças para brandir um machado tão pesado como aquele.

– Ufff! – bufava o anão. – Estas criaturas... são poderosas! – Ou você que é fraco demais! – disse Joshua, preparando suas magias. – Eu falei para você comprar uma armadura e um

machado mais leves! – Eu sei me virar! – disse o pequeno guerreiro. – Eu sou filho de Dhungar Rumnahein, e não vou cair diante destas

criaturas tão... AAARGH!!! Um dos trogloditas abocanhou o braço de Ulfgar. Se não fosse pela armadura que o protegia, ele estaria sem um bom

pedaço de músculo agora. Aramil atirou suas flechas contra o monstro e conseguiu derrubá-lo. – Para trás, Ulfgar! – disse o elfo-das-areias. – Você não vai conseguir lutar contra eles! – Vou... sim! – o anão se levantou. Mais por teimosia do que por tenacidade. – Eu não vou fugir da batalha! – Essa frase seria melhor colocada se o seu machado pelo menos encostasse nas criaturas. – Ah é? Pois você vai ver! Ulfgar ergueu sua arma com certa dificuldade, correu na direção de um dos trogloditas e o golpeou. Mas a criatura

conseguiu desviar, e o machado ficou preso na parede. – Droga! – exclamou o anão, tentando arrancar a arma cravada na pedra. O troglodita que havia se desviado do golpe

agora voltava para atacar o guerreiro, mas foi atingido nas costas por uma magia de Joshua. – Pronto. – disse o mago, em tom de resmungo. – Foi o último. O grupo de trogloditas foi eliminado. Mas a missão ainda não tinha chegado ao fim. – Foi uma bela luta, pessoal. – disse Miranda, limpando sua espada. – Mas ainda há alguns monstros para serem

eliminados. Vamos! No fim desta caverna deve estar a fêmea dos trogloditas. Quando a eliminarmos, poderemos voltar à Confraria dos Aventureiros e receber nossa recompensa.

Joshua e Aramil já estavam prontos para seguir em frente, mas Ulfgar não. Levou alguns segundos para arrancar a arma da parede e já estava exausto. Ele arfava, apoiado em seu machado. A guerreira foi ajudá-lo.

– Coragem, Ulfgar. – disse ela. – Metade do caminho já foi andado. – Sim, eu sei. – disse o anão, que recusou a ajuda. – E também sei andar sozinho. Pode deixar. E os quatro prosseguiram. Joshua e Miranda iam na frente. Aramil e Ulfgar estavam lá atrás. O mago cochichou para a

guerreira. – Você sabe que ele ajuda pouco. – disse o rapaz, de cenho franzido. – Por que insiste em trazê-lo conosco? – Pare com isso, Joshua! – repreendeu Miranda. – Só estamos aqui em Ardehennas graças ao pai de Ulfgar. Além disso,

quem não é fraco nos primeiros anos de aventura? Eu mesma já tive a mesma habilidade que ele antes de me tornar uma amazona. E ralei muito para chegar até onde estou como guerreira. E lhe digo outra coisa, fraco ou não, Ulfgar está fazendo alguma coisa pelo mundo. Tenho muitos ex-colegas que, do alto de sua imensa força, que poderiam usar em prol das pessoas, eles simplesmente se contentavam em sentar encima dos louros e receber paparicos dos mais próximos...

– Tá bem, tá bem! – interrompeu o mago, que não suportava aquela ladainha. – Eu não digo mais nada, certo? Mas fique de olho! Ulfgar não sabe se defender sozinho. Numa dessas missões ele ainda vai acabar morrendo, e aí quem vai ficar com a consciência culpada por tê-lo trazido conosco, heim?

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Miranda suspirou. Ela realmente se preocupava com aquela possibilidade. Começou a falar, mais para si mesma do que

para Joshua: – Quando ainda estávamos no reino de Graso eu prometi à Dhungar que cuidaria do filho dele (ver Confraria dos

Arqueiros!). Pelo menos até ele se tornar forte o suficiente para se virar sozinho. – Ah é? E quando este dia vai chegar? Miranda não respondeu, e limitou-se a continuar andando. Lá atrás, Aramil e Ulfgar perceberam que o mago e a guerreira estavam discutindo. – Oh, tão bela confraternização logo cedo? – disse o ladrão. – O que será que eles estão discutindo agora? – ele fez aquela

última pergunta só para ver a expressão de Ulfgar. Afinal, o elfo-das-areias tinha uma ótima audição e pôde ouvir cada palavra que os dois colegas disseram.

O anão suspirou. Poderia até parecer burro de longe, mas não era. Sabia que estavam discutindo por causa dele. – Humm... não sei. – disse ele, fazendo-se de desentendido. – Mas eles deviam parar de discutir e prestar atenção no

caminho à frente. Os trogloditas podem aparecer a qualquer momento. – Neste caso, baixinho, é bom você ficar perto de nós. – disse o ladrão. – Para não se machucar. – Não se preocupe, e não me chame de baixinho! – disse Ulfgar, com o cenho franzido. – Eu sei me virar! Meu pai criou

um filho forte e determinado! – Não sabia que você tinha um irmão... – disse Aramil, com um sorriso. O anão bufou e não respondeu. Continuou andando. Logo, o cheiro da caverna começou a ficar nauseante. Estavam se aproximando do centro do covil. O chão começou a

ficar pegajoso, e ruídos de trogloditas ficaram mais evidentes. Todos empunharam suas armas e se prepararam. – Mais luz, Joshua! – pediu Miranda. O mago lançou sua esfera luminosa à frente e a fez brilhar mais do que nunca. Houve um coro de urros. Embora cegos, os

trogloditas tinham sensibilidade à luminosidade. Entre as vozes horrendas, uma se destacou. Era a mais alta e apavorante. Uma fêmea de troglodita estava de pé, no fundo da caverna. Tinha quase o triplo do tamanho dos outros monstros machos,

e garras e dentes muito mais mortíferos. No chão, havia uma gosma incolor que rodeava pequenos ovos empalidecidos. A fêmea não estava nada feliz em ver seu covil invadido.

– À carga! – disse Miranda, correndo na direção dos monstros. – Lutem como nunca!!! – Melodramática... – suspirou o mago, conjurando suas magias. – Eu posso, vencer. Sei que posso! – disse Ulfgar para si mesmo. – Corajoso e ingênuo... – sussurrou Aramil. Logo, as criaturas começaram o ataque. Um troglodita veio na direção do anão. Este ergueu o machado bem no momento

que o monstro ia atacar e conseguiu feri-lo. Moveu o machado de novo e atingiu a criatura na cabeça, matando-a. – Consegui! Matei um! – exclamou o guerreiro. – Olha, Aramil eu consegui matar um deles! – Fascinante... – disse o elfo-das-areias, disparando suas flechas. – Agora só falta matar mais cinqüenta e oito! E os aventureiros se puseram a lutar. Joshua e Miranda lideravam o ataque, enquanto Aramil ficava na retaguarda junto

com Ulfgar. O anão tentava lutar da melhor maneira que podia, mas a armadura não lhe dava liberdade de movimentos. Nem aquele machado robusto o estava ajudando. Para piorar, o guerreiro sentia o medo e a insegurança se alastrarem pela sua mente. “Não vou fugir, não posso fugir! Deuses! Eu estou em Ardehennas, a terra natal do meu pai! A minha terra natal, embora eu nem lembre mais da época em que estive aqui! Não posso fazer um papelão desses!”

Miranda se concentrava na luta, mas vez ou outra olhava para Ulfgar. “Coitado” ela pensava. “Ele quer tanto honrar o nome da família como um guerreiro anão, mas ele é péssimo nisso!”. A guerreira enterrou sua espada na cabeça de um troglodita, e voltou a olhar para o parceiro, que se esforçava para lutar dentro daquela armadura pesada. “Ele não foi feito para brandir um machado. Mas ele insiste que tem de ser um guerreiro, igual ao seu pai. Desde que chegamos a Ardehennas, ele fez alguns progressos de forma lenta, mas não consegue acompanhar nosso ritmo. Pobre Ulfgar. Deve ser uma frustração para ele.”

Mas nem todos tinham uma opinião tão compreensiva em favor de Ulfgar. Joshua era um exemplo disso. Na luta, ele usava suas magias e, vez ou outra, sacava o seu punhal para matar as criaturas. Quando havia um momento de pausa, ele olhava para Ulfgar, e ficava bem irritado quando via aquela mesma cena se repetir mais uma vez: O anão ser praticamente um inútil em combate. “Mas que droga!” ele pensava. “Por que ele não admite de uma vez que não presta para ser um guerreiro? Anão teimoso! Desse jeito ele só nos atrapalha!”

Aramil era mais neutro em relação à Ulfgar. Para ele, aventura significava diversão. E para uma aventura ser divertida, todo grupo deveria ter seu integrante cômico. “Ah, olhe para ele!” o elfo-das-areias havia pulado para uma saliência da caverna e disparava suas flechas do alto. “Coitado, ele é esforçado. Cambaleia de um lado para outro, tentando acertar os monstros com o seu machado. Mas está mais apanhando do que batendo. Tsk. É uma pena.”

Os trogloditas já estavam todos mortos, exceto a fêmea. Miranda lutava com ela. Defendia-se dos pesados ataques dela. Mas mesmo sendo uma guerreira habilidosa, acabou ferida no ombro.

– Uff... uff... eu te ajudo, Miranda! – disse Ulfgar, correndo até ela, com o suor escorrendo pelo rosto. – Eu te ajudo! – Não, Ulfgar! Eu estou bem...! – exclamou a guerreira, um pouco tarde demais. A troglodita golpeou o anão com a cauda. O impacto foi tão forte que o peitoral da armadura se desprendeu. Ulfgar

deslizou alguns metros pelo chão pegajoso, quebrando alguns ovos. A fêmea ficou furiosa e foi na direção do anão. Em pânico, Miranda correu até ela. Aramil disparou algumas flechas na criatura para fazê-la parar, mas não conseguiu.

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– Ohhh, minha cabe...! – Ulfgar olhou para cima. A troglodita fazia sombra sobre ele, ao mesmo tempo que exibia as

garras enormes. O anão estava cansado e dolorido, incapaz de executar qualquer reação física. Só lhe restava uma reação fonética: – ...merda! A criatura golpeou o anão no peito. As garras da troglodita se enterraram na carne com grande impacto, quebrando quatro

costelas no meio do caminho. Os órgãos internos do anão só não foram expostos porque Miranda atacou a criatura bem a tempo. – NÃO!!! – a espada da guerreira cravou-se nas costas da troglodita, com a ponta aparecendo do outro lado. – ULFGAR!!! A criatura urrou, sacudiu-se e jogou Miranda para fora de suas costas. Aramil disparou mais duas flechas, que atingiram a

monstra no peito. Para finalizar, Joshua lançou uma magia que atingiu a bocarra da criatura e a fez perder várias presas. Miranda novamente pulou sobre a troglodita, arrancou a espada do corpo dela e a golpeou mais uma vez na cabeça, matando-a de uma vez. Uma enorme poça de sangue pegajoso se formou embaixo dos aventureiros.

– Ulfgar! – exclamou Miranda, aproximando-se do amigo. – Deuses! Você está bem? O anão estava em choque, mas ainda estava consciente. O sangue jorrava do ferimento, mas ele ainda teve energia para

falar: – Eu... matei três, Miranda... – ele tossiu, cuspindo sangue. – Não fui... tão ruim assim... não é? – e desmaiou. A guerreira suspirou. Rasgou um pedaço da roupa dela e do anão e improvisou uma bandagem. O grupo tinha uma

pequena poção de cura para emergências. Miranda despejou o líquido pela boca do anão, na esperança que isso o mantivesse vivo até eles chegarem num templo de cura. A guerreira foi na frente, carregando o companheiro caído. Aramil e Joshua foram atrás.

– Num grupo de quase uma centena... – sussurrou o elfo-das-areias. – ...creio que três correspondem à... – Cala a boca, Aramil! – disse Miranda.

A noite já havia chegado em Ardehennas. Como os anões sabiam se era noite se viviam dentro de uma caverna? Simples! No “teto” havia frestas por onde entrava

luz e vento. E mesmo nos corredores mais internos de Ardehennas, era possível saber quando era noite devido ao ar frio que circulava pelos grandes poços de ventilação.

Na província de Morintha, os anões aproveitavam o final do dia para beberem cerveja e jogar conversa fora. Fossem jovens ou velhos, todos tinham encontro marcado com os amigos nas tavernas. Mas havia uma delas, em especial, que só recebia anões jovens.

Hadra era a taverna mais freqüentada daquele corredor. Seu nome significava “caverna” no idioma anão. Uma adorável redundância que atraia um bom público. Reunindo principalmente anões jovens, entre quarenta e oitenta anos, o lugar era um dos mais animados da província.

Todas as noites, havia apresentação de bardos. Mas ao contrário dos bardos das tavernas tradicionais, que só sabiam cantar sobre as glórias passadas dos anões e sobre as riquezas de Ardehennas – seu ouro, principalmente –, os bardos de Hadra cantavam músicas mais parecidas com as que bardos humanos cantavam. Eles falavam sobre a vida, principalmente do cotidiano dos jovens anões. Um estilo musical que estava começando a se tornar moda em todo o mundo.

A taverna fervilhava. Todos bebiam e conversavam, o lugar era bem divertido. Um bêbado cantava em cima do balcão. Quatro rapazes sem dinheiro andavam pelo lugar esmolando goles de bebida. Dois anões que estavam brigando pela mesma namorada trocavam socos no meio do palco, ao som de gritos satisfeitos dos transeuntes. Mas logo o dono da taverna colocou os dois encrenqueiros para fora e fez o bêbado descer do balcão, pois o show iria começar.

– Atenção, pessoal! – disse o anão, sacudindo as mãos. – Fiquem firmes que a música já vai rolar! E todos comemoraram, sacudindo os canecos de cerveja. O homem saiu do palco, e logo subiram nele outros três anões.

Três bardos se preparando para o show. Um estava ao fundo, era loiro e cuidava da percussão. Mas além dos tradicionais tambores anões, também usava pratos de

metal que, quando atingidos por uma vareta, causavam um som estridente. Um estava bem na frente do palco. Tinha os cabelos e a barba negra. Tocava um alaúde robusto, maior que ele. O instrumento tinha apenas quatro cordas e fazia um som bem grave. E por fim, o terceiro anão. Este tinha os cabelos e a barba castanha, mas havia uma tira de cabelo ruivo que ia do queixo até o alto da cabeça. Este tocava um alaúde normal e fazia o vocal. Estava com um cachimbo pendurado na boca. Deu uma última baforada e soltou um grunido, que logo foi entendido pela platéia como o início do espetáculo. E se pôs a tocar, junto com seus dois companheiros.

Os anões vibraram. O som da música logo começou a contagiá-los. Os três bardos tocavam acordes simples e pouco variados. Mas o ritmo rápido e inebriante agradava a maioria das pessoas na taverna. E a letra também era bem diferente da maioria das cantorias tradicionais. Ei-la traduzida do idioma anão, para a comodidade do leitor:

Ei, cara! Já voltei de viagem Você não sabe o meu sufoco

Como é difícil viver de vadiagem Ninguém entende a minha opção

Eles têm inveja da minha vida sem ouro Eu quero viver sem chateação

Mas o que aconteceu. Ah! Foi mesmo duro

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Não, não tem nada a ver com garotas Foi aquele cara, sabe? Não aceita meu mundo Cara... ele disse que aquilo foi a última gota

Não quer mais que eu mexa o corpo, nem solte a voz

Não, ... não quer que eu me solte Não,... quer decidir minha sorte

Não,... eu não vou aceitar Ah! Às vezes penso em não mais voltar

E canto e danço só para provocar Ei, garota. Venha e dance comigo!

Se tem alguém que te prende, eu vou te soltar Nem o cara forte vai me separar disto

Não,... não quer que eu me solte Não,... quer decidir minha sorte

Não,... eu não vou aceitar Ah! Às vezes penso em não mais voltar

Com pequenos solos de alaúde, a música terminou. Os jovens anões aplaudiram. Aquilo era música nova. A letra não era das mais primorosas, e nem os acordes eram dos mais complicados de se tocar. Mas a música agradava.

Sentado sozinho em uma das mesas, e aplaudindo também, estava um anão com uma expressão feliz, mas ao mesmo tempo desanimada no rosto. Tinha a barba e os cabelos castanho-claro curtos, e uma cicatriz ao lado do olho esquerdo. Em cima da mesa, havia um machado de boa qualidade. Assim que terminou de aplaudir o grupo de bardos, o anão pegou sua arma e começou a se dirigir para a saída. Mas foi detido com uma exclamação.

– Ei, espere! Quem havia dito aquilo fora o anão vocalista. Ele desceu rapidamente do palco e foi dar um abraço no amigo. – Hah! Eu sabia que você ia vir! – disse, sacudindo as mãos. – E então? O que achou do lugar, Seward? O jovem anão melhorou a sua expressão. Deu uma boa olhada em volta e voltou-se para o amigo. – Gostei! – disse ele, com sinceridade. – Gostei muito, Jak! Seward Brurroughar era um anão guerreiro. Jovem ainda, tinha apenas 62 anos. No entanto, em combate era mais temível

que seus companheiros com mais de um século de vida. Filhos de Dhor Brurroughar, era o grande orgulho do seu pai. – Se você gostou tanto, por que não fica mais um pouco? – disse Jak, puxando o amigo até o palco. – Venha! Ainda não

lhe apresentei meus companheiros de banda! Os dois subiram o tablado. Jak começou as apresentações: – Este é o Char! – disse, apontando para o anão de barba negra e portando o alaúde gigante. – Você tem que ler as coisas

que ele escreve. São demais! – Hah, você escreve melhor do que eu, Jak! – disse o anão, cumprimentando o novo amigo. – Tem sempre idéias melhores

do que as minhas. Esse seu livro aí, em eu você está fazendo anotações dos seus sonhos, é simplesmente genial! – Bobagem! – respondeu Jak, humildemente. – Ah! E este aqui é o Arren. Também escreve e toca muito bem! Mas se ele

passar a mão na sua bunda, acredite! Ele tem mesmo segundas intenções! – Obrigado por estragar a minha primeira impressão, Jak. – disse o anão loiro, sorrindo e cumprimentando Seward. – Não

ligue para ele. Jak passou muito tempo em terras humanas e por isso vê maldade em tudo! – Não se preocupe. – disse o guerreiro. – Legal conhecer vocês. Também viajaram para os reinos humanos? – Sim, um pouco. – disse Char. – Meu pai financiou uma viagem de cinco anos por Elmarthyl, Erion... esses lados. Mas

quando voltei, ele deve ter pensado que não fez um bom investimento! – Eu fique menos tempo nos reinos humanos. – disse Arren. – Meu tio não tem muito dinheiro, então tive que ralar um

pouco para custear uma viagem de três anos por lá. Foi nesse meio tempo que conheci o Char. – E depois o Char me conheceu! – Jak cruzou os braços. – Nós voltamos todos juntos para Ardehennas, e decidimos

montar uma banda para... oh! Você já conhece a história, não é mesmo? Mas eu posso contar de novo com mais detalhes depois de uma rodada de cerveja.

– Obrigado, Jak. Mas é melhor eu ir embora. – Tão cedo? Fique mais um pouco! – disse Char. – Ainda vamos tocar mais quando chegar a madrugada. – Agradeço o convite, mas não posso. Tenho um encontro importante amanhã. – Hã? Hã? Alguma garota? – disse Jak, cutucando o amigo. – Por que não me disse nada? – Não, não é uma garota. – Seward suspirou. – Amanhã irei receber o título de chefe da Confraria dos Guerreiros de

Morintha. Uma cerimônia solene. Não posso me atrasar de jeito nenhum, por isso preciso ir dormir cedo. – Ah! Qual é? – os três bardos pareciam indignados. – Você não vai aproveitar a noite por causa disso? Qual o problema

de se chegar um pouco tarde nessa cerimônia?

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MIRANDA CONTRA OS TROGLODITAS

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– Eu estou esperando por isso faz anos. – disse Seward, pegando o seu machado e o segurando com firmeza. – Você sabe que este sempre foi meu maior sonho.

– Seu maior sonho, ou do seu pai? – questionou Jak. O anão guerreiro olhou para o amigo com uma expressão triste. Colocou o machado no ombro e deu meia volta. – Sinto muito. – disse Seward, indo embora. – Mas eu... eu preciso mesmo ir. – Eu é que sinto muito por você, amigo. – disse Jak. Dando uma última olhadela para trás, o anão guerreiro saiu da taverna. Os bardos simplesmente suspiraram e voltaram

para o palco. Exceto Jak, que ficou alguns instantes olhando para a porta. Por fim, balançou a cabeça e foi atrás dos seus outros companheiros.

No templo de cura de Kandraria, a Deusa da Vida dos anões, repousava um arrebentado Ulfgar. Miranda conversava com um dos sacerdotes. Joshua e Aramil esperavam sentados nos bancos do templo. A guerreira logo foi até eles.

– Ainda preciso me aplicar mais no idioma anão. – disse Miranda. – Mas pelo que eu pude entender, Ulfgar vai ficar bem. – Nós é que não vamos, se este traste continuar atrás de nós. – disse o mago, com os braços cruzados. – Pare com isso, Joshua! – disse a guerreira. – Ulfgar é o nosso companheiro! – Claro! E no que ele nos ajudou nas últimas missões, heim? Em nada! No fim, ele sempre acaba atrapalhando! – Não diga isso. – disse o ladrão, de repente. – Ulfgar é muito prestativo. Sabe fazer panquecas de viagem como ninguém. – Aramil... – começou Miranda, olhando feito para o elfo-das-areias. – Acho melhor você sair. Eu e Joshua precisamos ter

uma conversa de gente adulta. – Ei, espere aí! – o ladrão parecia ofendido. – Você está insinuando que eu não sou adulto?! – Não, eu estou querendo dizer que você não é gente! Aramil arregalou os olhos, mas sorriu no final. Se havia algo que podia derrotá-lo era uma boa piada. Obediente, saiu do

templo. Miranda e Joshua retomaram a conversa. – Não, não me venha com essa! – adiantou-se o mago, antes que a guerreira pudesse abrir a boca. – Olha, eu até entendo

este sentimento meio materno que você tem com Ulfgar, mas não adianta! Você viu o que aconteceu hoje, não é mesmo? Por pouco, ele não morre! Não acha que insistir nisso é colocar a vida dele e a nossa em risco? Vamos encarar os fatos, Ulfgar não serve para ser aventureiro!

– Joshua... eu entendo a sua posição. – disse a guerreira, tristonha. – Mas acho que você devia ser um pouco mais paciente. Ulfgar é o mais inexperiente de nós. Ele ainda pode aprender muitas coisas.

– Concordo, mas é melhor ele aprender essas coisas com outro grupo. Um grupo de novatos que faça jus à posição dele. Nós não somos lá muito experientes, mas estamos evoluindo. Ao contrário de Ulfgar, que não evolui porque não agüenta o tranco! Até quando você quer ficar pegando essas missões mais “fáceis” só para ajudá-lo? Missões fáceis não rendem o dinheiro que nós precisamos para nos sustentar aqui! Ardehennas tem um custo de vida muito alto! E aquele anão imbecil ainda tem a brilhante idéia de gastar vinte moedas de ouro com um machado e uma armadura que ele próprio mal consegue sustentar! Só para ter uma “indumentária que faça jus à um Rumnahein!” – o mago fez uma ligeira pausa. – Você já foi uma Paladina Vermelha, Miranda! Diga-me, qual foi a última vez que enfrentou um desafio à sua altura? E você nem está conseguindo lutar direito! Aquela fêmea de troglodita poderia ser morta por você sem lhe causar um só arranhão, mas por causa da sua preocupação com Ulfgar você acaba se distraindo no meio das lutas e acaba ferida. E se naquela caverna tivesse algo pior do que aqueles monstros sem que a gente soubesse? Já pensou nisso? Se você se importa tanto assim com Ulfgar, tire-o do grupo! Antes que seja tarde demais!

Miranda baixou a cabeça. No fundo, concordava com tudo que Joshua havia dito. Ulfgar era inexperiente e imaturo. Ainda se prendia demais às visões poéticas que as pessoas faziam do seu clã. Acreditava que o simples fato de pertencer ao clã Rumnahein fazia ele ser um bom guerreiro. Mas um guerreiro não se faz com poesia, muito menos com hereditariedade. Existem outras qualidades que um bom guerreiro precisa e que Ulfgar não tinha. Mesmo assim, Miranda ficava triste quando pensava na possibilidade de expulsar Ulfgar do grupo. Ele ficaria profundamente arrasado.

– Só mais uma chance, Joshua. – disse a guerreira. – A última. Assim que Ulfgar melhorar dos ferimentos, nós vamos viajar até Morintha, a província natal do pai dele. Talvez lá... talvez aconteça alguma coisa... sei lá! Vamos dar uma última chance para ele. Mesmo porque o sonho de Ulfgar é conhecer a antiga casa onde o pai e o avô moraram.

O mago suspirou. Cruzou os braços. – Ok! A última! Depois disso, vamos colocar Ulfgar no navio mais próximo e mandá-lo de volta para Graso. Lá ele pode

encontrar outros novatos como ele. Pode, quem sabe, até se aplicar mais nas artes da luta. – Joshua levantou do banco do templo. – Por enquanto, eu vou voltar para a estalagem. Não se esqueça de passar na Confraria dos Aventureiros e pegar a nossa mirrada recompensa.

E o mago foi embora. Miranda sentou em um dos bancos, pensativa. Estava muito triste com aquela situação. Muito mesmo.

Porém, a guerreira certamente não estava mais triste do que Ulfgar. O anão já tinha recobrado a consciência. Agora estava deitado numa cama, tentando dormir. Decidiu se levantar e sentar,

mas seu peito latejava de dor. A troglodita o havia ferido muito. O guerreiro voltou a deitar. Fechou os olhos, desejando nunca mais ter de abri-los. Quando achou que já estava pegando no sono, escutou alguém abrir violentamente a janela do quarto.

– E aí, Ulfgar?! – exclamou uma voz familiar. – Já está melhor? Ou ainda não conseguiram colocar o seu pulmão no lugar?

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– Aramil! – disse o anão, levando a mão à testa. – Você é maluco? Se os sacerdotes te pegam... – Hah! E o que os sacerdotes da vida vão fazer? Me bater? Eles são contra a violência, esqueceu, baixinho? – Mas eu não! – o anão tentou levantar de novo, mas sem sucesso. – Se me chamar de baixinho de novo eu juro que...! – Ok! Então eu te chamo de idiota, acho que combina mais. – Não! Não me chame de idiota! – Cretino? – Também não gostei. – Fracote. – Não. Assim ofende muito. – Incompetente é minha última oferta. – Ok, fico com ela. – disse Ulfgar, voltando a deitar. O ladrão estava sorrindo, mas aquele sorriso tinha uma leve ponta de tristeza. – Ulfgar... – recomeçou. – Eu escutei a

conversa do Joshua e da Miranda... – Sempre bisbilhoteiro, não é? – Ei! Eu sou um ladrão! E um elfo-das-areias! Não tenho culpa se minha audição é duplamente privilegiada! – disse

Aramil, balançando as orelhas peludas igual à um gato. – Bom, pelo que eu ouvi, acho que os seus dias conosco estão contados. Ulfgar sentiu o ferimento no peito doer de novo. Mas no fundo, ele já esperava por aquela notícia. Sabia que Joshua não

estava gostando de ter um peso morto no grupo. Até Miranda, que sempre o defendia, já estava cansada daquela situação. O anão levou a mão à cabeça. Toda aquela sensação ruim estava voltando. Ele sabia. Sabia muito bem das suas próprias incapacidades como guerreiro. Mas nos últimos meses tentava escondê-las, colocando-as debaixo de todo o seu repertório hereditário de clã lendário e tudo mais. Mas tudo isso só estava servindo para enganar a si mesmo. Ele era muito bom em se enganar.

– Aramil... – começou ele, quase sussurrando. – Você... também acha que é melhor eu sair do grupo? O elfo-das-areias olhou para o amigo estirado na cama. Balançou a cabeça. – Não, eu não quero. – disse, com sinceridade. – Eu gosto de você, Ulfgar. Você é um cara legal! Gosto de você como

amigo, mas o problema... – ele hesitou. – O problema é você como guerreiro. Olha... não me entenda mal, mas... Aramil parou depois de ouvir um soluço. Ulfgar estava se esforçando para não manchar ainda mais a honra do seu clã.

Deu um longo suspiro e depois disse: – Está bem, eu entendo! – o anão ergueu a cabeça. – Assim que eu melhorar, eu volto para Graso. Acho que vai ser melhor

para todo mundo. Eu volto para lá, e... e... sei lá. Tento começar um novo tipo de vida. Talvez plantando tulipas ou coisa parecida... – Calma! Não precisa voltar tão cedo! Não quer nem conhecer a província onde o seu pai morou? – Oh, é verdade! – disse o anão, um pouco mais animado. – Miranda prometeu que iríamos para Morintha depois desta

missão. Sim! – Ulfgar parecia mais animado. – Finalmente eu vou conhecer a terra que viu meu pai nascer! Vou poder conhecer o Mausoléu dos Rumnahein! Vou poder...!

– Incompetente! – disse Aramil. E desta vez Ulfgar não reclamou de nada. – Antes de ficar pensando em visitar pontos turísticos, por que não pensa na sua carreira? Ela ainda não está perdida! Talvez você possa se aprimorar nestes próximos dias e ainda conseguir ficar no nosso grupo! Por que não? Joshua e Miranda vão lhe dar uma última chance, por isso aproveite-a! Ouvi dizer que em Morintha existe uma Confraria dos Guerreiros! Talvez seja disso que você está precisando.

– Sim, sim! – Ulfgar agora estava mais animado. – Eu me lembro disso, meu pai chegou a contar em suas histórias. A Confraria dos Guerreiros foi inaugurada em homenagem a ele, quando ele ainda estava por aqui! Uau! Que demais! Tem razão, Aramil. Nada de ficar chorando! Obrigado, amigo! Acho que finalmente vou conseguir dormir tranqüilo!

– É, eu sou bom demais para este mundo! – disse o ladrão, jocoso. – Então, até amanhã, Ulfgar! Durma bem! – dizendo isso, Aramil foi embora.

O anão recostou sua cabeça no travesseiro. Estava sorrindo nos primeiros minutos, mas logo depois começou a ficar preocupado. E logo a preocupação se transformou em tristeza.

– Se em tantos anos eu não consegui nada... – sussurrava ele. – Como vou conseguir alguma coisa em poucos dias? – e parou. Realmente, ele não ia conseguir dormir bem naquela noite.

Os corredores de Morintha estavam desertos. Pequenas lamparinas iluminavam o ambiente. No meio do silêncio, os passos de um homem se destacavam.

Jak estava voltando para casa. Desta vez Char e Arren não o acompanhavam. O rapaz voltava sozinho altas horas da madrugada. Mas ele não tinha nada a temer. Em Ardehennas, não havia muitos ladrões noturnos.

Ele chega em casa. Com uma pedra-de-fogo acende a lamparina à óleo da sala e descobre, surpreso, que havia alguém sentado na poltrona.

– Pai! – exclama ele, assustado. – O que está fazendo acordado a esta hora? O velho Kario não responde. Apenas cruza as mãos em frente ao rosto. Jak suspira e, sem dizer nenhum palavra, começa a

se dirigir para o quarto. – Nós temos que conversar! – diz o ferreiro. – Conversar? – o rapaz se vira. – Mas que evolução! Antigamente o senhor preferia apenas brigar comigo. – Não banque o espertinho! – o anão levantou da poltrona, e aparentemente detestou ter de fazer aquilo. – Em primeiro

lugar, que demônios é isso na sua cabeça?

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– Está falando do meu cabelo? – Jak acariciou as madeixas coloridas com tinta vermelha. – Ah! Foi idéia do Arren. Ele

tem sempre uma novidade estética para me sugerir. – Um homem esperto! – Kario franziu o cenho. – Sabe que estas coisas fazem um anão ficar ridículo e por isso ao invés de

fazer nele mesmo, força você a fazer! – Em primeiro lugar, ele não me forçou coisa nenhuma, ao contrário do que o senhor está tentando fazer comigo à respeito

da ferraria. – o rapaz deu um sorriso cínico. – E em segundo lugar, chamá-lo de “homem” é bondade da sua parte. – Seu pequeno demônio insolente!!! – o anão bateu o pé no chão. – Você tem idéia do que está fazendo?! Tem idéia dos

comentários das pessoas?! Você anda com aquele dois desocupados e pervertidos quando devia estar cuidando do futuro da sua família! Você não se importa comigo? Com sua mãe? Com os seus irmãos? Você chegou a esse ponto?!

– Merda, é claro que eu me preocupo! – Jak cerrou os punhos. – Acha que eu fico feliz em ver você desse jeito? Mas entenda, pai, eu não posso fazer tudo o que você quer! Minha vida está em outras paragens, em outros desafios! A ferraria e o trabalho braçal não foram feitos para mim. Entenda isso de uma vez! E deixe-me seguir meu próprio caminho!

– Você chama isso de caminho?! – rosnou Kario. – Ficar o dia inteiro fora de vadiagem com aqueles dois? Char teve a sorte de nascer no seio de um clã abastado! Ele pode vagabundear a vida inteira, se quiser! E Arren... se ele gosta de... urgh!... outros homens, o problema é dele e do tio dele! Mas você, meu filho, você carrega o nome do clã dos Kherouakr! Nós temos um nome que foi erguido com a passagem dos séculos, com o sangue e o suor de todos os nossos antepassados! E você está jogando tudo isso na latrina! – o anão avançou para o filho. – Eu não vou permitir isso! Não vou permitir, entendeu? Você não vai jogar fora séculos e séculos de tradição honrosa, como se não valesse nada! A partir de agora, você vai se dedicar a ferraria, ou pode dizer adeus à sua vida mansa! Você verá o quanto vale ficar de conversa fora o dia inteiro com bardos pervertidos!

Jak e Kario trocaram olhares de reprovação por alguns instantes. Os dois estavam à um palmo de distância um do outro. Mediram-se por alguns segundos. O pai esperando a resposta do filho. E ela veio, junto com um sorriso:

– Há séculos que as mulheres do nosso clã estão parindo a mesma pessoa, não? Uma mão calejada por calos acertou o rosto de Jak. O jovem anão não deixou de levar um susto. Nunca na sua vida havia

recebido um tapa do pai. E certamente Kario nunca esperou na vida que teria de chegar a esse ponto. Houve um silêncio bastante longo, até que o rapaz voltou a falar:

– Já chega, pai. – disse ele, acariciando o rosto. – Você vai ter que escolher! Ou o seu filho, ou a honra do clã! Se preferir o clã, pode deixar que eu vou sumir do mapa, e nunca mais irei repetir o meu sobrenome para ninguém. Pode ficar tranqüilo! Não vou mais manchar o primoroso nome da nossa família, mas você nunca mais vai voltar a me ver na vida! Eu estarei deserdado de livre vontade!

O velho anão arregalou os olhos. Ponto fraco! Aquela frase havia pego no ponto fraco do ferreiro. Impertinente ou não, Jak era o seu filho. E ele jamais pensaria em fazer uma coisa daquelas. Nunca mais ver seu filho? Já tinha sido difícil, muito difícil para ele ficar dez anos longe dele, recebendo apenas cartas de mês em mês. Agora nunca mais voltaria a vê-lo? Um filho perdido, que nem o próprio sobrenome carregaria mais. Deserdado!

O ferreiro trincou os dentes. Dois pesos enormes acumulavam-se nos seus ombros. Sentia-se responsável por tudo. Responsável pelo nome do clã e ao mesmo tempo responsável por Jak. Será que ele agia daquele jeito por culpa dele? Onde teria errado?

Vendo que o pai não dava nenhuma resposta, Jak franziu o cenho e foi até o seu quarto. Mas antes de sair da sala, disse: – Eu sei muito bem o quanto vale ficar de conversa o dia inteiro! Sei que não terei o mesmo conforto que tenho hoje, mas

terei algo que jamais vou conseguir se ficar trancado numa ferraria quente o dia todo como você sempre fez. Vida! Vida de verdade! Não esta prisão pungente que você faz questão de se meter!

Por fim, o rapaz se foi. Kario ainda estava na sala, olhando para o chão. Ele levou a mão ao rosto. – Dhor, meu amigo... – refletia o anão. – Que inveja eu tenho de você!

Havia uma certa comoção nas ruas de Morintha. Vários anões se dirigiam até a Confraria dos Guerreiros da província. Um acontecimento solene estava marcado. Um

jovem guerreiro seria o mais novo chefe do lugar. – ... e com satisfação e plena confiança em suas habilidades... – discursava um velho anão. – ...eu passo a chefia da

Confraria dos Guerreiros de Morintha para as mãos de Seward Brurroughar. Os presentes aplaudiam. E havia muitos presentes. Embora a Confraria dos Aventureiros da província de Darethoor não

tivesse muitos admiradores, muito menos a solitária Confraria dos Magos da província de Granada, os anões respeitavam muito a Confraria dos Guerreiros. Primeiro, porque a arte da luta estava imbuída no sangue de praticamente todos os anões, ou pelo menos da sua grande maioria. Não havia um só anão nesse mundo que nunca tivesse pego em um machado para lutar. Parecia uma necessidade biológica.

Na primeira fila dos observadores, estava um emocionado Dhor Brurroughar. O carregador havia atrasado alguns trabalhos só para ver o filho receber tamanha honra. Ele estava muito feliz.

Seward fez um discurso curto e pouco relevante, mas todos os presentes aplaudiram muito. Para a maioria, estavam diante de um gênio do machado. Depois da cerimônia, o jovem anão encarou uma fila de admiradores que queriam cumprimentá-lo. Seu pai acabou ficando por último.

– Ah, meu filho! Meu filho! – dizia o anão, emocionado. – Como eu estou feliz! Queria que sua mãe estivesse viva para ver você agora! Mas tenho certeza que, de algum lugar, ela está lhe vendo. E deve estar tão feliz quanto eu!

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– Obrigado, pai. – disse Seward, sorrindo. – Eu estou contente com toda essa acolhida, mas... acho que vou para casa.

Quero descansar um pouco, pois mal dormi de ansiedade. – Entendo! – Dhor deu tapinhas nas costas do filho. – Mas não durma demais! Logo eu vou ter que retomar minhas

viagens. Quero estar com você durante todos estes dias! – Claro, pai. – disse o rapaz, sorrindo. – Até mais. Seward saiu da confraria e foi seguindo pela rua. Ainda encontrava um ou outro transeunte que o cumprimentava pelo

novo cargo. O rapaz agradecia com pouca emoção. No meio do caminho, acabou escutando uma voz: – Parabéns. – disse a voz, de maneira seca. O guerreiro virou a cabeça e deu de cara com um colega da Confraria dos Guerreiros. – Oh. – exclamou Seward, um

pouco surpreso. – Eu... obrigado, Prete. Prete Brest era um guerreiro. Um grande guerreiro, tanto em habilidade como em altura (tinha um metro e quarenta e sete,

bastante alto para um anão). No seu ombro, carregava um machado duplo. No rosto, algumas cicatrizes de batalha. Também era jovem, embora alguns anos mais velho que Seward. Junto com ele, eram a dupla mais poderosa da Confraria dos Guerreiros de Morintha. Ambos estavam cotados para serem o próximo chefe do lugar. Infelizmente, Prete perdeu a vaga em favor do companheiro, e... oh bem. Digamos que o senhor Brest era um mau perdedor.

– Bem, parece que o seu sonho finalmente se realizou, não é? Você está no topo da montanha! – Creio que sim. – disse Seward, olhando para aquilo que ele tinha muita vontade de chamar de amigo, mas receava não

poder. – Você... hã... eu não o vi na cerimônia. Prete acariciou a longa barba castanho-escura, presa em três tranças. Olhou para o novo chefe da Confraria dos Guerreiros

como quem não entende uma piada. – Eu nunca escondi nada de você, Seward. Por que ia esconder agora? – Sim, entendo. – o rapaz baixou a cabeça. Os dois ficaram se encarando por algum tempo. Por muito tempo, sem que nenhum dos dois ousasse dizer mais alguma

coisa. De fato, ser o chefe da Confraria dos Guerreiros era um sonho. Mas não para Seward, e sim para Prete. Um sonho que parecia ter acabado

– Ouça, Prete. – começou o rapaz, preocupado. – Eu... ando pensando muito. Ainda não sei o que fazer. Sei lá... têm uns pensamentos meio esquisitos passando pela minha cabeça. Eu não tenciono ficar neste cargo por muito tempo. Quero buscar algo maior, ou algo diferente. Se você tiver um pouco de paciência, talvez em dois ou três anos eu possa abdicar e promover voc...

– Bah! – interrompeu Prete, com severidade. – Acha que eu quero esmola sua? Não seja idiota, Seward! Não sei por que o chefe escolheu justo você! Realmente não sei! Pode até ser razoável com o machado, mas você tem uma séria desvantagem que nenhum guerreiro devia ter. É bonzinho demais! – o guerreiro amargo se afastou. – Eu não preciso da sua ajuda para chegar neste cargo. Não preciso! Eu vou provar que sou melhor que você, Seward! Pode apostar!

Sem dar chance para que o rapaz falasse, Prete se foi pelos corredores. O jovem guerreiro ergueu a cabeça, como se não estivesse acreditando que acabara de criar mais um problema. Foi quando ele sentiu uma mão pousar em seu ombro.

– Que era aquele cara? Que escroto! – Ah! Jak! – exclamou o rapaz, contente. O bardo estava ao lado do guerreiro, sorrindo e com um cachimbo na boca. E com um alaúde nas costas. – Oh, que bom que está aqui! Você viu minha cerimônia? – Você sabe que eu acordo tarde! Não deu para vir antes, mas eu não ia faltar num dia tão especial para o meu amigo. – o

anão jogou a mecha de cabelo vermelha para o lado. – Mas e você? Como está? Feliz em ser o novo chefe da confraria? – Sim, claro! – disse Seward, sorrindo. – Uau! Como você mente bem! O sorriso do guerreiro se desmanchou. Ele balançou a cabeça. – Largue esse machado, cara! – disse Jak, segurando os ombros do amigo. – Você não gosta de ser guerreiro. – Meu pai acha que eu sou bom nisso. – Seward ergueu a cabeça. – Todos acham que eu sou bom nisso. Estranho... não

gosto de lutar, mas sou bom guerreiro. Como pode ser isto? – Eu também sei mexer com ferraria, embora não goste dela. – disse o bardo. – Quando eu era criança, meu pai me

ensinava algumas coisas básicas e ficava surpreso ao ver como eu me dava bem fazendo isso. E lhe digo mais, se um dia eu precisar forjar um machado, vou fazer isso com perfeição. Não tanto quanto o meu pai faz, claro, mas saberei como me virar. Sei lá. Talvez esteja no sangue. Mas isso não significa que eu goste de ferraria.

– Mas ser bardo...? – Seward parecia incerto. – Que talento eu tenho para isso? Jak esboçou um enorme sorriso. Grande mesmo, daqueles que quase chegam de orelha à orelha. Deu uma risada. Pela

primeira vez seu amigo tinha, pelo menos, considerado a possibilidade. Jak sempre quis que o amigo virasse um bardo. Antes mesmo dele sair para suas viagens em terras humanas. Os dois jovens anões iam até as tavernas. Ambos se maravilhavam com os instrumentos dos bardos. Pediam para ver, para segurar... até arriscavam algumas notas. Bastou Seward conseguir tocar um acorde para que seu jovem amigo pedisse para ele ser bardo.

Mas isso foi numa outra época. Quando os dois eram mais crianças do que jovens. Há mais de quinze anos, embora para um anão não parecesse tanto tempo assim.

– Você pode ser só um menestrel. – sugeriu Jak. – Só tocar e cantar alguma coisa e pronto. Só tocar um instrumento, se quiser. Nem precisa se dedicar totalmente a isso. Mas eu queria muito, muito mesmo que você viesse para a minha banda. Estamos precisando de outro alaúde.

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– Eu não sei tocar... – disse Seward, com um sorriso torto. – Ah, sabe sim! Sabe, ou vai aprender rápido! – Bah! Você confia tanto assim naquele golpe de sorte que eu dei há quinze anos? Quando toquei por milagre aquela

música inteira? Nós estávamos bêbados! Vai ver eu nem toquei porcaria nenhuma e você acha que eu toquei. – Você tem talento, cara! Tem mesmo! – Jak segurou nos ombros do amigo. – Você não gosta do machado! Não gosta de

lutar! E tem que conviver com tipos detestáveis como aquele cara que acabou de ir... você não está feliz com isso, está? – Não, mas estou contentado. E além disso... eu não quero decepcionar o meu pai. – Está bem, está bem, não o decepcione! Mas isso não significa que você não possa tocar algum instrumento nas horas

vagas! – Eu não tenho hora vaga, Jak... – Seward se livrou das mãos do amigo. – Eu realmente não te... Ele interrompeu a frase quando viu o bardo lhe entregar seu alaúde. – Esta é uma hora vaga! Toque! – insistiu o anão. – Toque qualquer coisa! Seward ficou olhando para o instrumento. Alisou as cordas. Tocou na madeira. Realmente a tentação era muito grande,

mas por fim o entregou. – Jak, eu sei das brigas que você tem com o seu pai. E sei que o meu pai também é da mesma opinião. – ele fez uma pausa.

– Se eu tocar este alaúde agora... eu corro o risco de gostar dele! – e, rapidamente, saiu correndo pelos corredores. O bardo soltou uma exclamação de frustração. Jogou a cabeça para trás e ergueu os braços, como se praguejasse. Ainda

não estava derrotado, mas que aquilo tinha sido um belo golpe no seu ânimo, isso tinha sido.

Havia muito ânimo naquela viagem. Os aventureiros carregavam uma carruagem rústica com suas bagagens. Estavam bem em frente à uma das estalagens

mais movimentadas da província. Ulfgar ainda estava um pouco dolorido dos ferimentos, mas alegre. Aramil se encarregava de manter alto o ânimo do anão.

– ... então eu vi aquele tesouro! – dizia o elfo-das-areias, contando uma das suas histórias. – Vi aquela humana dando bola para mim e, noooossa! Fique com ela! Fiquei mesmo! – ele batia na mão, em cima do punho fechado. – Fiquei pra caramba!

– Sei, você deve ter, no máximo, dado uns beijos no rosto da menina. – disse Miranda, carregando sua bagagem. – Bah, eu era o rei das garotas em Phanthorys, querida! Você devia ter me conhecido há mais tempo! – Tsk, você conta vantagem demais. – comentou Joshua, também se arrumando para a vigem. – Igual a um certo alguém... – Isso foi para mim, não é? – disse Ulfgar, bravo. – Tem mais algum nanico que se acha um grande guerreiro por aqui? Felizmente Joshua estava falando na língua dos humanos, senão muitos anões que passavam por ali teriam ficado

ofendidos. – Em primeiro lugar, a minha altura é normal... para um anão! – disse Ulfgar, aproximando-se do mago. – E em segundo

lugar...! – ele parou, sem saber exatamente o que dizer. – Bem, em segundo lugar, eu... eu... hã... bem, você não pode ficar falando assim comigo!

– E o que você vai fazer se eu continuar? Vai tentar me acertar com o machado? Você nem consegue erguê-lo! – Ora, seu...! – Pára, pára! – interrompeu Aramil, colocando-se entre os dois. – O que é isso, gente? O dia mal começou! Economizem

energia, vocês têm muito o que brigar ainda hoje! – Você não está ajudando... – sussurrou Ulfgar. – Pff! Esse é outro! – disse o mago. – Outro que também não ajuda muito, e ainda fica de longe só disparando flechinhas... – Eu acho que quem se acha aqui é você, Joshua! – disse o ladrão, irritado. – Será que vai continuar tão prepotente com

uma flecha nos fundilhos. – Tente! – ameaçou o mago, sacando o seu punhal. – Tente e você vai ter orelhas do tamanho das de gente normal...! – Parem com isso vocês três!!! Era Miranda quem tinha acabado de gritar. A voz dela assustou os três aventureiros e alguns anões que passavam por ali,

embora não tivessem entendido uma só palavra da guerreira. Joshua, Ulfgar e Aramil podiam até peitar uns aos outros, mas se havia alguém que eles respeitavam era Miranda. As orelhas do elfo-das-areias até abaixaram, como um gato que recebe uma bronca do dono.

– Bem, vamos indo! – disse a guerreira, subindo na carruagem. – Não temos o dia todo. Obedientes, os três aventureiros subiram. Logo, os ânimos de cada um voltaram ao normal. Miranda voltou a ficar

preocupada. Joshua voltou a ficar emburrado. Aramil voltou a ficar assobiando numa alegria sem motivo e Ulfgar voltou a ficar triste.

Ele olhava para os corredores de Morintha. Vez ou outra, passava um anão portando um machado. Um guerreiro que, certamente, devia ser melhor que ele. Ulfgar lembrava do seu pai. Mesmo numa cadeira de rodas, ele ainda sabia brandir um machado, e poderia derrotar muito mais monstros do que o filho, mesmo naquelas condições. Ser guerreiro não parecia a vocação de Ulfgar.

O anão suspirou. Cutucou Joshua. O mago achou que Ulfgar quisesse retomar a discussão, mas não foi isso que aconteceu. – Pode me emprestar seu punhal?

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Pego meio de surpresa, Joshua quase soltou a frase “Só se for para você se matar.”, mas decidiu não fazer isso. Pegou sua

lâmina e deu para o anão. Este, num golpe seco, cortou um pedaço da sua barba fora. – Hã? – espantou-se o mago. – Você não ia deixar ela crescer bastante para ficar igual a um desses anões guerreiros

lendários? Por que fez isso? – Barba comprida me incomoda... Ainda mais triste, Ulfgar devolveu o punhal. Joshua guardou sua arma e virou para o lado. Esboçou um sorriso que não

deixou ninguém ver. “Hmmm... não deixa de ser uma evolução!” pensou.

Na ferraria dos Kherouakr o som era sempre o mesmo. Um martelo batendo no metal. Mas naquele dia o som estava muito mais forte e agressivo. Kario tentava se esquecer da noite anterior. Tentava de todas

as formas e até estava conseguindo. Porém, acabou inevitavelmente lembrando quando viu Jak entrar no recinto. Ele se esforçou ao máximo para não desviar a atenção do seu trabalho e continuou batendo. Jak também não fazia muita

questão em chamar a atenção. Ele olhava para os vários machados e escudos que seu pai tinha em estoque. Olhava para as suas mãos e via que elas se sujavam ao encostar em qualquer coisa naquela ferraria. Sentia o suor escorrendo pelo rosto por causa do calor do lugar. Ouvia aquele tedioso som de uma nota só do martelo batendo no metal.

“Como ele pode gostar tanto disso?” pensava o rapaz. “Deuses, como é que pode?” Ele olhava para aqueles machados. Até havia uma certa beleza neles. Alguns entalhes mais artísticos, alguns modelos mais

originais, mas mesmo assim Jak não podia se imaginar trancado a vida toda num lugar daqueles fazendo apenas isso. Um ou outro machado para ganhar uma grana extra ele não se importaria, mas ter aquilo como função primordial...

O rapaz parou um instante. Ficou observando um dos machados mais novos do seu pai. Este tinha as lâminas mais ovais, com detalhes na forma de várias retas que iam da base da lâmina e prosseguiam por todo o cabo do machado. No centro da união das lâminas, havia um buraco para deixar a arma um pouco mais leve. Os detalhes das retas atravessavam este vazio. Jak teve um estalo quando viu aquilo.

“Parece um alaúde!” pensou. E, subitamente, ficou animado. – Pai! – disse ele, colocando a mão no ombro do ferreiro. – Pode me ajudar a forjar um machado? De todas as coisas que Kario esperava que seu filho dissesse, aquela, certamente, era a última. Por um momento ele

acreditou que sua crescente surdez estivesse lhe pregando uma peça. – O quê...? O que você disse? – Pode me ajudar a forjar um machado? O ferreiro balançou a cabeça. Não sabia se seu filho estava lhe zombando ou coisa parecida. Precisou confirmar, embora

já estivesse apto para aceitar qualquer coisa. – Mas você disse... disse que odiava a ferraria... – Eu nunca disse isso! Disse apenas que não queria seguir esta vida! Mas forjar um machado ou outro não vai me matar,

certo? E então? Vai me ajudar? Kario abriu um sorriso. Depois de tantas semanas de preocupação, ele finalmente podia sentir um alívio lhe percorrer o

corpo todo. Imediatamente ele foi preparar a sua forja para que seu filho pudesse mexer nela. Ele iria ajudar. Iria fazer tudo! Qualquer coisa para que Jak começasse a mexer com a ferraria. Aquilo era um sinal! Um sinal divino! As coisas iam melhorar!

“Graças ao deuses!” pensava Kario. “Isso é um começo! Um maravilhoso começo!”

Para poupar o leitor de três dias em que nada de excitante aconteceu com nenhuma das personagens, vamos pulá-los. Vamos logo para a chegada de Miranda, Joshua, Ulfgar e Aramil na província de Morintha. A carruagem que os levava parou numa espécie de praça central, bem no meio de um dos corredores mais movimentados do lugar. Ao redor deles, havia muitos estabelecimentos comerciais. Em especial, barracas que vendiam comida.

O faro apurado do elfo-das-areias chamou-o até uma banca de carne salgada. O primeiro impulso dele foi o de se esgueirar pelos mercadores e dar um jeito de roubar uma costelinha. Porém, a visão atenta dos guardas pousava totalmente sobre ele. “Droga!” pensava. “Por que todos têm de ficar olhando para mim?” A resposta era que sujeitos de pouco mais de um metro e setenta, com orelhas grandes e peludas, costumam chamar demais a atenção num lugar onde praticamente só há anões. Sem alternativa, ele vasculhou sua algibeira de moedas. Vazia. Chegou até Miranda.

– Ei, Miranda! – disse, colocando a mão no ombro da guerreira. – Pode me emprestar umas cinco moedas de ouro? Pago quando puder!

Semi-serrando os olhos, ela respondeu: – Aramil... não vou te emprestar porque sei que você não vai me devolver. E isso acabaria estragando a nossa amizade. E eu acho que nossa amizade vale mais do que cinco moedas de ouro.

– Tem razão... – o ladrão coçou a cabeça. – Então me empresta umas dez! – Aramil, por favor! – disse a guerreira, incomodada. – Eu nem sei se vamos ter dinheiro para nos hospedarmos numa

estalagem! – ela conferia as moedas da algibeira dela, de Josua e de Ulfgar. – Ah! Agora eu sei... nós não temos mesmo dinheiro para nos hospedarmos em lugar nenhum! Alguém tem alguma idéia?

– O Joshua podia ficar soltando luzinhas com os dedos aqui no meio do corredor. – sugeriu Ulfgar. – Quem sabe ele não consegue uns trocados?

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– Humpf! Pois tenho uma idéia melhor. – disse o mago. – Por que não vendemos a armadura e o machado de Ulfgar? Ele

não usa para nada mesmo. Miranda e Aramil tiveram um pequeno sobressalto com aquela sugestão, porém por sentimentos diferentes. A guerreira

por pena. O ladrão por estar pedindo por uma nova briga entre aqueles dois. Ulfgar também teve um pequeno sobressalto, e os sentimentos dele eram dois: um de indignação com aquela sugestão e outro de aceitação. Realmente aquela era uma solução razoável. A guerreira parecia incerta em pedir isso para o amigo, mas o próprio Ulfgar quem assentiu.

– Sim, claro. – disse ele, desprendendo a armadura do corpo. – Realmente é muito ruim andar com ela. E esse machado... – ele o colocou no chão. – Eu mal consigo erguê-lo.

– Ótimo. – disse o mago, pegando a armadura nos braços. Era realmente pesada. – Uff! Agora vamos procurar uma estalagem.

– Que desperdício! – disse o elfo-das-areias, pegando o machado. – Eu ia conseguir vender por uma nota preta em Graso. E o grupo começou a andar pelo corredor. Não levou nem dez minutos até encontrarem um lugar interessante. – Olha lá! – apontou Aramil. – Aquela estalagem ali vai servir! – Hmmm... chama-se “Kortho”. – disse Miranda, que ainda não tinha total domínio na leitura das runas dos anões. – É,

parece boa, vamos lá. Vem, Ulfgar. – Ei, um momento! – advertiu o anão, preferindo não seguir o grupo. – Isso aí é um...! – mas ele deteve-se. Como explicar

para os amigos que Kortho, no idioma anão, significava “prostíbulo”? Mas eles logo descobririam! Assim que os três aventureiros entraram, algumas anãs bem vestidas (ao contrário dos prostíbulos humanos, em

Ardehennas as mulheres se vestem bem, não necessariamente com pouca roupa) franziram o cenho para Miranda. – Ei, o que é aquilo? – comentou uma delas para a amiga. – Ela está comprando ou está vendendo? – Uma humana? – estranhou a outra. – Droga! Como a gente vai competir com aquilo? A guerreira e o mago, de cara, começaram a desconfiar que o ambiente era estranho – principalmente por causa das

lamparinhas de luz vermelha espalhadas pelo ambiente, e a presença maciça de mulheres. O ladrão, no entanto, estava começando a gostar. Mas até aí, achou que apenas tinham entrado numa estalagem cheia de garotas baixinhas e bonitas. Chegou até um balcão e perguntou, com seu lesado idioma anão.

– Quanto é... hmmm... quanto é a noitada? O anão que estava do outro lado do mesa fumava um cachimbo. Estava com o rosto meio encoberto pela escuridão, mas o

olhar aguçado do elfo-das-areias pôde vê-lo sem problemas. Ao contrário do senso comum dos anões, e ao mesmo tempo à favor do senso comum dos cafetões, o homem usava só um bigode e tinha o resto da barba por fazer. Era gordo, e vestia uma camisa aberta até a metade. Seu cachimbo era de cabo fino, e ele o deixava quase esquecido no canto da boca. Levou a mão até uma grossa corrente de ouro, que atiçou o olhar do ladrão quase mais do que as garotas, e disse:

– Dez moedas para dar uma, e vinte e cinco pela noite toda. Se quiser só ficar de amorzinho, sete moedas. Mas talvez um altão como você prefira duas garotas ao mesmo tempo. Nosso preço básico é trinta moedas.

Aramil achou que realmente seu Takkar (idioma anão) era péssimo, pois teve a impressão de ter entendido sacanagem. Decidiu repetir a pergunta:

– Hã... você disse dez moedas pela noite? Vinte e cinco é... um quarto especial? – Que quarto especial, idiota? – disse o anão, soltando uma baforada bem na cara do ladrão. – Se quer as meninas

especiais, pode preparar no mínimo umas cinqüenta moedas. Fora a bebida, claro! E o custo do... – o sujeito parou um instante. Teve a impressão de ter visto algo fora do lugar em seu estabelecimento. E viu. Como praticamente todos lá dentro, seus olhos pousaram em Miranda. – Ei! Aquilo é uma humana?

– Hã? Sim, ela está comigo. O anão ia dizer “Como assim?” mas logo projetou sua própria explicação na cabeça. “Ah! Ele deve ser um fornecedor!

Hmmm, por que não? Aposto que eu seria o único com uma humana em Morintha”. – Oh, ela é muito boa! – disse o homem, se apoiando no balcão para ver melhor. A guerreira nem percebeu nada, estava

meio encucada com aquele lugar. – Nada mal, nada mal! Quarenta centímetros a mais que a maioria das garotas daqui! Hehehe! Ela deve dar uma canseira, não? Muito bom! Acho que tenho um pouco de ouro em caixa. Ofereço mil moedas de ouro por ela.

Aramil estava cansado da viagem, e por isso sua cabeça não estava assimilando muito bem as coisas. Mas quando ele estava prestes a perceber onde estava, Ulfgar entrou no recinto. Viu o elfo-das-areias no balcão e foi até ele.

– Espere, Aramil! – exclamou ele, falando na língua humana. – O que você está falando com esse cara? Isto aqui é um prostíbulo!

– Heim?!? – exclamou o ladrão, virando-se para o balconista. – Então quer dizer que isto aqui é um... um...! – ele não sabia falar “prostíbulo” no idioma anão, sem saber que o próprio nome do estabelecimento tinha esse significado. – Droga, por que não me avisou antes? E eu aqui fazendo papel de bobo conversando com... com...! Você disse mil moedas?!? – realmente a cabeça do elfo não estava funcionando muito depressa naquele dia.

– Ok! Entendi o seu jogo! – prosseguiu o cafetão, sorrindo. – Realmente, este preço é meio médio para as garotas anãs. Humanas devem ser valorizadas, certo? Vejamos... o que me diz de mil e quinhentas moedas? É minha última oferta!

– Mil e quinhe... – Aramil mal sabia pronunciar esse numeral no idioma anão, mas Ulfgar se revoltou. – Ora, seu merda! – exclamou ele, na dúvida se o verdadeiro merecedor deste título era o cafetão ou o ladrão. – Miranda

não está à venda! Vamos embora! – e começou a puxar o elfo para fora, junto com os seus outros dois companheiros, que nem tiveram tempo de perceber direito o que estava acontecendo.

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Lá fora, o ladrão e o guerreiro começaram a discutir. – Droga! – Aramil sacudia os braços. – A gente ia ganhar a maior grana, Ulfgar! – Como é?!? Você teria coragem de vender a Miranda? – Ia vender, mas não ia entregar... – disse ele, em tom de explicação. – Assim que ele abrisse o cofre, a gente metia a mão

no ouro e fugia! – Oh, deuses! – exclamou a guerreira, finalmente entendendo onde tinha acabado de entrar. – Já chega! Vamos logo

procurar um lugar para descansar! Por hoje deu! Os quatro aventureiros rodearam um pouco pelos corredores até acharem um bom lugar. Mas antes, certificaram-se se era

realmente uma taverna e não outro kortho. O estalajadeiro aceitou a armadura e o machado de Ulfgar em troca de alguns dias de estadia. Cada um foi até o seu respectivo quarto. Todos queriam tomar um banho e relaxar. Menos o anão. Junto com as suas coisas, ele trazia um papel velho e amassado. Nele havia o endereço da antiga casa que fora do seu pai e do seu avô. Ele queria conhecê-la.

“Preciso vê-la! Preciso mesmo!” pensava. “Depois eu desisto de tudo, se é isso mesmo que todos querem. Mas antes eu quero ver a antiga casa do meu pai!”

O anão ficou tão concentrado neste pensamento que nem percebeu Miranda chegando. – ... eu disse, tudo bem? – Hã? Oh, Miranda! Desculpe! Eu... eu estava... pensando! – Melhor ir tomar um banho para tirar essa poeira da estrada, ou do “corredor”, como vocês anões gostam de chamar. Ah!

E não se esqueça que precisa limpar esse ferimento na sua barriga, para ele cicatrizar de vez. – a guerreira se ajoelhou e abriu a camisa do anão. Como uma mãe preocupada, verificou se as bandagens precisavam ser trocadas, tocando de leve nas ataduras. Mas aquele ato não pareceu tão maternal para Ulfgar, que embora fosse de uma raça diferente, sempre achou Miranda bonita.

– Hmmm, se você realmente trabalhasse e um kortho, acho que eu gastaria todas as minhas moedas com você! – sorriu ele, cínico.

Miranda arregalou os olhos e fez cara de brava, mas depois afrouxou a expressão. – Ah! Não acredito! – disse ela, rindo. – Desde quando você tem essas idéias promíscuas? Que novidade é essa?

– Novidade? Desde o dia em que nós nos conhecemos que eu não escondo minha admiração por você! (ver Confraria dos Aventureiros!). Não lembra?

– Ah, lembro sim. Mas eu pensei que você só estivesse fazendo uma gracinha, como o Aramil costuma fazer. – Nunca é só uma gracinha! Nem no caso do Aramil, nem no meu. – Bobão! – a guerreira se levantou e deu um tapa de leve na cabeça de Ulfgar. – Vá tomar o seu banho. Frio de

preferência! – a guerreira fez um pausa e cruzou os braços. – Tsk, tsk! Você e o Aramil! São tão mulherengos que deviam ser bardos!

– Bardo, eu?! – espantou-se Ulfgar, considerando aquilo uma piada. – Está maluca?

Na Confraria dos Guerreiros de Morintha, encontrava-se um entediado Seward. Como chefe, ele devia ficar o dia todo por lá, recebendo os novos guerreiros e administrando as coisas. Um trabalho burocrático. Ainda pior do que sair por aí cortando pessoas – pelo menos, brandindo um machado, você não fica com a bunda dolorida das horas em que fica sentado numa cadeira.

Ele folheava os pergaminhos de registro. Olhava para as paredes e observava os vários troféus e placas da confraria, que ele já tinha visto milhares de vezes. Deteve-se especialmente na maior delas. Uma placa em ouro, escrita com o alfabeto anão, e que trazia o nome de Dhungar Rumnahein e a data 1420.

O pai de Seward nunca cansava de contar-lhe a mesma história. Alias, se havia algo que aquele jovem anão ainda não entendia era porque os mais velhos gostavam de repetir um cem número de vezes histórias que eles já cansaram de contar para todos. “Não pode ser por esquecimento. Depois de contarem a mesma história quarenta e sete vezes? E olha que eu parei de contar quando tinha 35 anos!”. Mas é óbvio que Seward não compreendia. Para entender um velho, só sendo um.

Enquanto organizava o quadro de avisos, onde estavam anotadas todas as missões para os futuros grupos de guerreiros realizarem, Seward escutou alguém entrar na confraria. E pelo barulho de botas molhadas andando no ladrilho, o rapaz já sabia quem era sem precisar virar o rosto.

– Mais uma missão cumprida! – disse a voz do recém-chegado. Era Prete. Se já não estivesse acostumado, Seward teria tomado um susto em ver como o colega havia voltado da missão.

Totalmente coberto de sangue. As botas estavam molhadas do líquido vital vermelho. Em uma das mãos, o guerreiro trazia as cabeças de três anões. O jovem chefe da confraria ficou pensando no horror que as pessoas transeuntes devem ter sentido ao ver Prete naquele estado. Andando nas ruas calmamente, carregando cabeças decepadas como quem carrega uma sacola de feira.

– Creio que a missão que você pegou dava a opção de manter os ladrões vivos para julgamento. – disse Seward, de maneira séria e tranqüila.

– Bah, para que considerar esta opção? – o guerreiro jogou as cabeças decepadas sobre uma das mesas. – Além do mais, depois de tantos crimes que estes vagabundos cometeram eles seriam condenados à morte mesmo!

– Isso quem decide é o magistrado... – Cale a boca! – Ei! Eu sou o chefe da confraria! – exclamou Seward, esforçando-se para falar grosso. – O único que manda alguém calar

a boca aqui sou eu!

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– Ah, é mesmo? – disse Prete, aproximando-se e encarando o rapaz. – Então tente calar a minha boca! Seward ficou mudo. Não por medo, mas porque realmente não sabia agir de maneira furiosa ou grosseira. Ficou apenas

parado, pensando no que ia dizer. Porém, acabou pensando demais. – Incrível! – disse Prete, afastando-se. – Como o chefe da confraria pôde cometer tamanha burrada em nomear você?! – Burrada...? – sussurrou o rapaz, pensativo. – Bem, talvez... Se existe algo que murcha totalmente o ânimo dos arranjadores de encrenca é ver alguém que não se ofende com as suas

alfinetadas. E a intenção do guerreiro esquentadinho era justamente essa. Provocar Seward até que ele o atacasse. O chefe da confraria dos guerreiros atacar um subordinado não é lá muito certo, e se esse subordinado ainda vencesse a briga seria ainda pior – e Prete tinha total certeza de que poderia vencer Seward. No final da luta, o subordinado vencedor provaria a todos que o chefe é um fracote idiota, e este seria rebaixado em favor do novo chefe da confraria: o vencedor do duelo. Um plano genial, não?

– Um chefe para esta confraria devia ter estirpe nobre. – comentou Prete, voltando às suas provocações. – Como puderam deixar o filho de um mísero carregador ser elevado à um cargo tão importante?

Em Ardehennas, ofender o pai é pior do que ofender a mãe. Mas Seward já estava calejado de provocações verbais. Quando jovem, sempre foi o mais quieto na escola. E todos sabem que caras quietinhos demais acabam sendo zoados. Por isso é que ele já tinha uma boa resistência a falácias. E sempre arrumava uma resposta para elas.

– De fato meu pai é um mísero carregador. – disse Seward. – Sua ascendência é mesmo mais nobre que a minha, Prete. O seu clã, os Brest, sempre foi famoso como ótimos curtidores e alfaiates. Por isso garanto que meu pai continuará se esforçando para trazer o linho e o couro do lado de fora de Ardehennas para lhes garantir a sobrevivência.

Embora o punho de Prete tenha parado a apenas um centímetro de distância do rosto do rapaz, Seward não se moveu. Ele sabia que o guerreiro não iria acertá-lo. E se o acertasse, melhor. Ele daria uma suspensão à Prete e ficaria pelo menos uns dias sem ter que ver cabeças decepadas.

Bufando, o guerreiro foi para a sua sala dentro da confraria, batendo a porta com violência. Enquanto isso, o jovem chefe se ocupava em colocar as cabeças ensangüentadas num lugar adequado. E embora não fosse do tipo de gente que fica feliz quando vê alguém se ferrar (como a maioria), Seward se deu ao luxo de esboçar um leve sorrisinho.

Já era o meio da tarde quando o grupo de aventureiros saiu da estalagem. Todos estavam prontos para ir até o seu destino. – Já descobriu onde fica a tal Confraria dos Guerreiros? – perguntou Aramil, penteando os cabelos com os dedos. –

Vamos pegar logo uma missão e garantir o nosso leitinho! – Quem toma leite é você. – disse Joshua. – Mas concordo. Vamos já para lá e reservar uma boa missão para nós. – Claro. – disse Miranda, ajeitando a espada na cintura. – Só vamos esperar Ulfgar. Joshua e Aramil soltaram um suspiro de reprovação. Miranda não gostou daquela atitude e ia responder, mas não foi

preciso. Logo Ulfgar chegou. – Oi, pessoal! Vocês já vão para a confraria? – perguntou o anão. – Podem ir na frente! Antes eu quero visitar a casa que

foi do meu pai. Felizmente não fica muito longe daqui. – Você não vem, Ulfgar? – perguntou Miranda, com uma ponta de tristeza. – Eu achei que... bem... íamos realizar uma

primeira missão ainda hoje. – Hã... não. Mas prometo que vou participar da próxima. – disse o rapaz, esboçando um sorriso. – Eu fico esperando vocês

na estalagem. Até mais. Quando Ulfgar se afastou, Joshua comemorou. – Ah! Que bom que ele se deu conta da verdade! Um dia chega a hora! – Ele vai voltar atrás! – disse Aramil. – Você vai ver! Miranda nada falou, e limitou-se em sair da estalagem e guiar o seu grupo até a Confraria dos Guerreiros. Enquanto isso, o anão andava pelos corredores de Morintha, procurando pela casa onde seu pai morou. “Se eu conseguir isso... se eu conseguir só isso todos esses meses de aventuras já terão valido a pena! Eu não vou precisar

de mais nada!” pensava ele, animado. E foi seguindo. Não demorou muito até que achou o possível endereço. Estava ansioso. Muito ansioso! Ficou de frente

para aquela velha, mas bem cuidada casa. Ah, sim! Aqui vale uma explicação. Não pense em casas de anões como sendo uma espécie de chalé com telhado pontudo. As casas são feitas de blocos de pedra, geralmente bem altas, como sobrados. O teto era reto, e pequenas janelas na forma de losangos serviam para deixar o ambiente interno mais ventilado. A fachada geralmente era pintada em tons terrosos. E aquela casa em questão tinha o tom de marrom-avermelhado.

Será que havia gente morando por lá? Será que deixariam ele conhecer a casa por dentro? Enquanto pensava nisso, Ulfgar foi se aproximando da porta. Quando ia pegar na aldrava para bater, foi surpreendido por

uma voz. – Oi? O anão levou um susto tão grande que quase saltou do chão. Olhou para trás, e tudo o que viu foi outro anão, mais ou

menos da idade dele, com um embrulho nas mãos e uma mecha de cabelo vermelho que ia da barba até o alto da cabeça. – Ah, foi mal. – continuou o estranho. – Assustei você? – Oh... oh...! – ele balançou a cabeça. – Não, não mesmo! Hã...? – ele viu que o estranho também tinha a intenção de

chegar até a porta. Por isso perguntou: – Você... mora nesta casa? – Heim? Não, não moro. Quem mora aqui é um amigo meu.

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Nesse momento a porta da casa se abriu. Quem apareceu foi Dhor. Ele sorriu para Jak. – Ah, olá rapaz! – disse ele, com seu costumeiro sorriso de anfitrião. – Como vai? Veio ver o Seward? – e lançou um olhar

de dúvida para Ulfgar. – E você...? Quem seria? – Eu... eu...! – balbuciou Ulfgar, tentando coordenar as palavras. Ele não conseguia entender por que estava tão nervoso.

Jak resolveu falar em seu lugar. – Vim trazer um presente atrasado para ele. O senhor sabe, para comemorar o novo cargo dele na confraria. – Ah, que gentileza! – disse o anão. – Bem, ele só vai voltar no final do dia. Quer deixar o presente aqui? – Não, pode deixar que eu volto depois. Obrigado, senhor Brurroughar. – De nada. E você, rapaz? – disse, virando-se novamente para Ulfgar. – Hã... não, nada! Acho que me enganei de casa! Só isso! – e foi andando de fininho para a rua, sem tomar nenhum rumo

específico. Dhor franziu o cenho, estranhando aquela atitude. Mas por fim deu de ombros e fechou a porta. Jak soltou uma risada e

resolveu puxar conversa. – Tudo bem com você, meu chapa? – disse, colocando a mão no ombro de Ulfgar. – Ah, tudo bem. Só fiquei meio nervoso, desculpe! – ele balançou a cabeça. – Nervoso com o quê? – Ah, não é nada. – disse o anão, sem muita vontade de conversar. – Eu... só errei de endereço. Só isso. – Hmmm, percebo que você tem um certo sotaque humano. – disse Jak, acariciando a mecha de barba vermelha. – Já

morou nos reinos lá fora? – Hã, sim. Eu nasci aqui em Ardehennas, mas cresci no reino de Graso. Eu... vim aqui para conhecer o reino dos anões.

Na verdade... – ele suspirou, tentando controlar seu nervosismo. Fez uma pausa e se sentiu mais a vontade. – Eu vim para conhecer esta casa. Meu pai morou aqui há muitos anos.

– A casa dos Brurroughar? – o bardo virou a cabeça para olha-la e depois voltou-se para Ulfgar. – Estranho, pelo que eu sei eles moram aí há mais de meio século. E você não me parece ser tão velho. Qual o seu nome?

Ulfgar começou a se sentir mais confiante. Gostou da pergunta. Sorriu. – Meu nome é Ulfgar Rumnahein! – O meu é Jak Kherouakr. – ele estendeu a mão. – Muito prazer. Ulfgar pensou que fosse aquele estranho que ia ficar surpreso ao perceber que ele fazia parte de um clã importante. Mas

foi justamente o oposto que ocorreu. – Você disse... Kherouakr? O grande clã de ferreiros?! Uau! Jak balançou a cabeça. Esperava que alguém que viveu em terras humanas não fosse tão ligado à essa besteira de honra de

clã. Já estava começando a perder o interesse em Ulfgar. – É... esse mesmo. – disse, sem emoção. – O clã que ficou famoso ainda na Primeira Nova Era?! – prosseguiu o afoito anão. – Fabricando armamentos fabulosos

para os exércitos de anões que lutaram na Grande Guerra?! – Sei lá, acho que sim... – Jak virou o rosto, numa clara expressão de: “Preciso ir, sua conversa está me chateando”. – Ei, vocês devem ter uma grande ferraria, não é? – continuou Ulfgar, animado. – Daquelas que só dá para imaginar em

sonhos! Enorme, cheia de armas reluzentes e forjas aquecidas com chamas de brilho divino! E certamente um ferreiro que também usa uma indumentária de fino porte, e faz uso de um martelo de forja banhado em ouro!

O bardo semicerrou os olhos e deu um sorriso bem torto. Ferraria enorme, aquele cubículo quente e sujo? Chamas de brilho divino? Ferreiro com indumentária e martelo banhado em ouro? Jak se segurou para não rir, e agora sua expressão dizia: “Cara, quero fumar um desses!”.

– Puxa! O que eu não daria para conhecer uma autêntica ferraria dos Kherouakr! – Ulfgar ergueu a cabeça, num tom sonhador. – Eu imagino as grandes armas antigas e fabulosas que vocês devem ter guardadas no seu arsenal! Imagine só, machados de brilho reluzente, escudos de corpo inteiro com pedras preciosas incrustadas... ah! Eu lembro de uma história que meu pai contou! Conheceu um Kherouakr vivendo em reinos humanos! Mas este estava desgostoso por viver lá, reclamando que humanos não sabem reconhecer a verdadeira arte da forja, sempre querendo pechinchar novas peças. Aí um dia apareceu um marinheiro na ferraria do cara. Ele tinha acabado de fazer uma tatuagem na nuca e veio reclamar para o ferreiro “Puxa! A tatuagem ficou ruim! Como vou tira-la do pescoço?” aí o Kherouakr respondeu: “Que tal com uma machadada?”

– Hahaha! – Jak balançou a cabeça, rindo muito. – Até que você não é tão chato quanto parece! – o bardo agarrou o braço de um surpreso Ulfgar. – Vem!

– Heim?! – exclamou Ulfgar, um pouco assustado. – Para onde está...? – Ih, fica frio! Só quero conversar um pouco. Eu te pago uma cerveja! Preciso me entreter até o Seward voltar!

A Confraria dos Guerreiros de Morintha era uma construção simples, mas que transparecia imponência. No alto do batente, havia uma espécie de brasão com o desenho de um machado. A arma preferida dos anões há milênios.

Na porta, havia a imagem de um martelo de batalha, a segunda arma preferida dos anões. Dentro do lugar, havia muitos machados e martelos expostos, mas nenhuma espada ou arco.

– Eles gostam destas armas pesadonas, heim? – comentou Aramil. – Você até entende essa necessidade esquisita que o Ulfgar tem por machados.

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– Pelo menos os anões daqui devem ter força suficiente para erguer um. – disse Joshua. – Onde está o chefe da confraria? – Há alguém aí? – chamou Miranda, no idioma anão. – Alguém que possa... hã? A guerreira parou quando percebeu que tinha pisado em algo molhado. Sangue. O chão havia sido limpo há poucos

minutos, mas ainda havia algumas manchas de sangue no ladrilho. – Eca! Alguém foi decapitado aqui? – disse Aramil. – É, pelo visto estes caras não estão para brincadeiras! Mal terminou de dizer isso, uma voz irritada exclamou no idioma anão: – O quê?! Humanos?! Os aventureiros se viraram. Quem havia acabado de entrar no recinto era Prete Brest. O anão estava com uma toalha nos

ombros, limpando o sangue que ainda tinha no rosto. Ficou surpreso ao ver a figura de Miranda, Joshua e principalmente Aramil. – Vocês são humanos! – continuou ele, de maneira agressiva. – O que querem aqui? Acostumados com o xenofobismo leve dos anões desde que chegaram à Ardehennas, os três aventureiros não se abalaram.

Miranda tomou as rédeas da conversa. – Boa tarde. Nós somos um grupo de aventureiros vindo do reino de Graso. Estamos aqui em Ardehennas para auxiliá-los

no que for preciso. – Ah, entendo. – disse Prete, colocando a toalha de lado. – Estrangeiros em busca de missões na montanha, heim? Mas

acho que não vão conseguir muito trabalho aqui se não tiverem pelo menos um anão no grupo de vocês. É uma questão de confiança, entende?

– Nós entendemos. – disse a guerreira. – Na verdade nós temos um anão no nosso grupo... – Tínhamos! – interrompeu Joshua. – Estamos procurando um substituto. – Joshua! – exclamou Miranda. – Miranda, é verdade. – disse Aramil. – Acho que até o próprio Ulfgar não quer mais saber de ser aventureiro. Você viu a

reação dele agora há pouco. Talvez seja melhor encontrarmos um substituto melhor. – Oh, deuses! – a guerreira suspirou. – Está bem, nós precisamos de um... substituto momentâneo! O senhor é o chefe da

confraria? Pode colocar um anúncio para nós? Prete não deixou de ficar surpreso ao ver que aqueles humanos estavam considerando a possibilidade dele ser o chefe da

confraria. E gostou da idéia. – Bem... – disse ele, com um sorriso. – Os anões daqui já têm todos seus grupos formados, mas... – ele parou por um

instante. Pensou por alguns segundos. Outro plano genial estava se formando em sua mente. – Eu, como chefe da confraria, posso acompanhá-los em algumas missões. – disse, por fim. – Assim todos confiarão em vocês. O que acham da minha proposta?

– Maravilhosa! – disse Joshua, de repente. – E que trabalho nós podemos pegar? – Ah! Tem uma ótima aqui! – o anão se dirigiu até o quadro de avisos e pegou uma das missões que há muito tempo ele

estava interessado em pegar. Só não havia iniciado porque sabia que precisava de pelo menos dois companheiros para ajudá-lo. E ele jamais pediria a ajuda de Seward para isso, e nem os outros anões estavam muito animados em realizar aquele serviço. – Há pouco mais de um ano, um mausoléu foi profanado por ladrões. Isso incomodou os mortos e agora eles se transformaram em zumbis. O lugar foi lacrado, mas as criaturas continuam ativas lá dentro, e o risco de escaparem é grande. Há muito tentamos reunir um bom grupo de guerreiros para destruí-las.

– Pode contar conosco! – disse Joshua, sorrindo. – Violador de túmulos? – comentou Miranda. – Pensei que os anões tivessem um respeito muito grande por seus mortos. – Ah! Acho que são sinais dos tempos. – comentou Prete. – Infelizmente, nesta última década, têm aparecido alguns

criminosos bastante inescrupulosos. No mínimo porque viveram em terras humanas antes. – os três aventureiros não gostaram muito deste último comentário. – Eles violam mausoléus de clãs famosos em busca de tesouros. Tentam se armar com artefatos que impedem o despertar dos mortos, mas sempre acabam falhando! Este mausoléu, por exemplo, pertenceu à uma família de anões que foi muito famosa, mas que acredito estar extinta hoje. Afinal, não houve nenhum membro dela reclamar qualquer medida rápida para prender os ladrões, nem tão pouco contratar algum sacerdote poderoso para acalmar os mortos novamente.

– Clã famoso extinto? – indagou Miranda, prevendo algo desagradável. – Hã... qual o nome da família cujo mausoléu foi profanado?

– Ah, sim! – o anão colocou seu machado nos ombros. Disse com tranqüilidade. – Foi o do clã dos Rumnahein. A guerreira segurou a respiração. A previsão desagradável acabara de se concretizar.

Ulfgar e Jak conversavam numa taverna. O primeiro levou um certo tempo até entender que Jak, embora fosse de uma família de ferreiros, não curtia muito bater em ferro. Ele era um bardo. E um bardo bem diferente do comum, pelo menos em comparação com outros de Ardehennas. Ao passo que o jovem músico descobriu que Ulfgar não era tão antiquado quanto parecia. Jovens anões obcecados pelas honras do clã costumam ser assim, mas até que aquele aventureiro não era um dos casos mais graves que Jak já tinha visto. Alias, ele ficou animado quando descobriu o que Ulfgar era. Um aventureiro! Um aventureiro que cresceu em terras humanas. Soava bastante agradável. E era justamente sobre os tais reinos humanos que os dois conversavam.

– Haha! Bardos humanos! – comentava Jak, virando seu caneco de cerveja. – Você realmente foi muito sortudo em ser criado num reino assim! O que eu não daria para passar o resto da minha vida em Erion, ou Elmarthyl!

– E o que eu não daria para passar o resto da minha vida em Ardehennas! – disse Ulfgar, bebendo sua cerveja aos poucos. – Eu queria viver num lugar onde meu clã fosse respeitado. Num lugar onde as memórias da minha família fossem mais vívidas.

– Hmmm, mas não seria mais fácil você mesmo adquirir respeito? Não vai poder ficar se apoiando em glórias passadas para o resto da vida. – Jak fez uma pausa. – Bem, aqui em Ardehennas talvez até consiga.

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ULFGAR E JAK CONVERSAM NA TAVERNA

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– Você não gosta de pertencer ao clã dos Kherouakr? – Não. Na verdade não queria pertencer à clã famoso nenhum! Quero só viver a minha vida. Sabe, acho incrível como

outros garotos como você fazem questão de continuar vivendo da honra dos seus clãs... sem ofensa! – Bem, acho que não vou conseguir fazer isso mesmo. – Ulfgar deixou seu caneco de lado. Pegou uma moeda de ouro em

cima da mesa, que seria usada para pagar a conta. – Eu não sou um bom guerreiro. Não sei lutar. Não sei me defender. Não consigo acompanhar o ritmo do meu grupo. – ele suspirou, apoiou a moeda no dedo polegar e no indicador. – Eu não sirvo para nada mesmo.

Ulfgar lançou a moeda. Esta rodopiou pelo ar por alguns metros, até cair com perfeição dentro da caixinha de pagamento do balcão da taverna.

– Bela pontaria! – elogiou Jak. – Obrigado. – disse o anão, sem entusiasmo. Os dois se levantaram e começaram a voltar para a casa de Seward. Iam verificar se ele já havia voltado. – Escute, você disse que mal tem forças para erguer o machado. – comentou Jak. – Nunca pensou em utilizar uma arma

mais leve? – Claro que não! – disse Ulfgar, como se estivesse discutindo sobre a coisa mais óbvia do mundo. – Anões sempre lutam

com machados. Ou no máximo com um martelo de batalha. O bardo não deixou de rir daquela afirmação. De certo modo, sentiu uma certa semelhança entre Ulfgar e seu amigo

Seward. E como adorava plantar idéias revolucionárias na cabeça de jovens susceptíveis, resolveu aceitar aquele desafio. – Tome, pegue! – disse ele. – O quê? Jak entregou ao guerreiro uma pequena adaga de arremesso. – Esta adaga é minha. Costumo usá-la para cortar e trocar as cordas do meu alaúde. De vez em quando brinco de

arremesso com ela e, em último caso, uso para me defender. Fique com ela. – Por que está me dando? – Talvez ela seja mais útil do que um machado que você mal tem forças para levantar. – Hum. – suspirou Ulfgar, um pouco sem graça. Quando os dois já estavam chegando na casa do amigo do bardo, eis que dopam com ele. Seward havia acabado de voltar

da confraria. Seu expediente havia acabado. – Jak! – disse o guerreiro, surpreso. – Oh! Você veio me visitar? – Hah! Não apenas isso! Toca aqui! – os dois se cumprimentaram. – Vim lhe dar um presente! O bardo desembrulhou o pacote que trazia nas costas. Seward ficou surpreso ao ver o que era. – Um... alaúde? – Não só um alaúde! – disse Jak. – Observe bem. O presente era uma peça feita com uma base de aço e acabamento em madeira. Na parte de cima, parecia um alaúde

normal, com quatro cordas e tudo. Porém, bastava pegá-lo para ver que o instrumento era bem mais pesado do que deveria. Entre seus outros detalhes estranhos, havia uma espécie de tubo cortado no meio que ficava encaixado na parte de trás do braço do instrumento. E na base, havia uma espécie de alavanca.

– Mova-a! – disse o bardo. Assim que o guerreiro a moveu, uma lâmina retrátil saiu de dentro do alaúde, projetando-se do corpo do instrumento. Jak

pegou a peça e, desprendendo aquele tubo, cobriu a parte de cima do braço do alaúde. – Serve para proteger as cordas quando você estiver usando ele como um machado. – disse o bardo. – O quê?! – Seward parecia surpreso, mas a surpresa era agradável. – Mas... então isso é...? Sem esperar que o amigo continuasse a falar, o bardo prosseguiu: – E quando quiser que ele volte a ser um alaúde... Jak apertou a alavanca e a lâmina voltou para dentro do instrumento. Tirou o tubo de cima das cordas e o acoplou

novamente atrás do braço do alaúde. Aproveitou para tocar algumas notas. O som parecia um pouco diferente da maioria dos instrumentos de corda, mas soava bem.

– Para você, amigo! – disse o bardo. – Agora não tem mais desculpas! – Oh, Jak... obrigado! – disse Seward, abraçando-o. – Obrigado mesmo pelo presente! Mas eu receio que... – o rapaz

parou. Foi só naquele momento que prestou atenção no outro anão que acompanhava seu amigo. Ficou meio sem jeito por ter demorado tanto para percebê-lo. – Ah, perdão! Você quem seria?

– Hã, eu? – disse Ulfgar, pego meio de surpresa. – Ah, sim! Eu sou Ulfgar Rumnahein. O jovem guerreiro teve um estalo. Arregalou os olhos quando ouviu aquele nome. Como poderia se esquecer? Afinal seu

pai já havia contado aquela história quarenta e sete vezes. E olha que ele já tinha parado de contar aos 35 anos. Imediatamente, foi cumprimentá-lo.

– Você é um Rumnahein?! Um Rumnahein mesmo?! Oh, quanta honra! – ele apertou a mão de Ulfgar. – Meu pai vive falando do seu clã!

– É mesmo?! – o rapaz ficou contente em finalmente encontrar alguém que conhecia seu clã. – Sim! Ele conta que quando era mais jovem, conheceu o próprio Dhungar Rumnahein! – Quer dizer que o seu pai conheceu o meu pai?! – espantou-se Ulfgar. – Mas que ótimo! Isso foi quando? No começo

deste século? Então ele deve saber sobre...!

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– Aham! – interrompeu Jak, que não suportava nem um minuto daquele tipo de conversa. – Desculpem-me por

interromper esta confraternização de famílias, mas eu ainda não terminei de lhe presentear, Seward. – Ah! – o guerreiro se recompôs. – Jak, para que outro presente? Este foi o melhor que eu recebi em toda a minha vida! – Hehehe, pois você pode dizer isso do seu segundo presente! – o bardo esfregou as mãos, animado. – Não se trata de nada

material, mas também não é nada insignificante. O seu segundo presente vai ser... uma ótima noitada! Nós vamos até a Hadra fazer uma nova apresentação, e você vai vir comigo! Ah, e desta vez nada de desculpas de acordar cedo ou coisa parecida. Nós vamos virar esta noite! – Jak fez uma pausa, divertindo-se com a expressão de incredulidade de Seward, e rindo antecipadamente da expressão que Ulfgar estava prestes a fazer depois que ele terminasse a frase. – E você também, Ulfgar!

Sabe quando você está numa sala de espera? Você está sozinho e vê dois completos desconhecidos conversando no sofá ao lado. Eles estão falando de dinheiro, e comentam como irão repartir os milhões que ganharam na sena. Subitamente, um daqueles desconhecidos se vira para você e diz “Você quer receber uma parte?”. Foi exatamente este o grau de estupefação que Ulfgar sentiu naquele momento.

– Eu?!? – espantou-se o anão. Este era um meio termo entre dizer “sim” ou “não”. Afinal, os dois estranhos podem estar te enganando.

– Acredite, meu chapa! – prosseguiu Jak, ainda esfregando as mãos – Você vai adorar esta noite! Tenho certeza que irá gostar! Em quem sabe, pode até cogitar a idéia de ser bardo também!

– Um bardo?!? – Ulfgar balançou a cabeça, incrédulo. Aquela conversa lhe parecia absurda demais, mas seu sexto sentido indicava que poderia ser uma boa. Mas que droga é o sexto sentido! Sempre te indicando coisas absurdas! Como fazendo você acreditar que os dois estranhos na sala de espera vão realmente lhe dar dinheiro.

– Exatamente, um bardo! Por que não? É claro que você não é obrigado a nada, mas não creio que vai perder alguma coisa se vir comigo para uma noitada na taverna e só ver como funcionam as coisas!

(como provar que estão dizendo a verdade? Talvez pedindo para que eles mostrem o bilhete premiado da sena...) – Jak. – disse Seward, com uma expressão de dúvida. – Você tem certeza...? – Você não tem certeza, certo? – bardo continuava esfregando as mãos. – Então já que é assim, deixe que outra pessoa que

já tem uma certeza formada te guiar! Mesmo que seja por apenas algum tempo! O bardo afastou as mãos. Uma espécie de fumaça colorida e brilhante se espalhou pelo ar. Os dois outros anões ficaram

surpresos. – Uau! – espantou-se Ulfgar. – Como você fez isso? – Bem, digamos que um cantor precisa saber cantar. Um músico precisa saber tocar. Um menestrel precisa saber cantar e

tocar. E um bardo precisa saber cantar, tocar e fazer uns truquezinhos para agradar a platéia. Como eu tenho um certo conhecimento em ferraria, costumo utilizar pó de metal para fazer umas prestidigitações. E aprendi outros truques nos reinos humanos. Por isso sou um bardo hoje. – ele fez uma pausa e abriu um sorriso de cumplicidade. – E creio que é isso que vocês precisam ser agora. Vamos! Vocês não irão perder nada, e podem ganhar muito esta noite! O que me dizem?

Este é o momento crucial. Quando os dois estranhos dizem para você sair daquela sala de espera e ir com eles. Esta não é uma decisão fácil. Afinal, se você está numa sala de espera, é porque está esperando alguma coisa. E deve ser alguma coisa muito importante a ponto de justificar você perder preciosos minutos da sua vida num lugar chato daqueles.

Ulfgar permaneceu estático. Enquanto Seward pareceu incerto por alguns momentos. Olhou para aquele machado-alaúde. Ficou pensando por alguns segundos e, por fim, sorriu para o amigo.

– Bem, se eu não for agora, você vai continuar tentando, não é? – Até o dia da minha morte, amigo! Os dois riram e, por fim, foram andando apressados pelos corredores. Iram para a Hadra e veriam o que a noite teria para

eles. Ulfgar que, obviamente, não gostou da idéia de ficar sozinho ali naquele imenso corredor cavernoso. Resolveu seguir os dois. E mandar a entrevista de emprego de balconista de loja ao diabo!

Miranda, Joshua e Aramil eram guiados por Prete pelos caminhos de Morintha. Estavam se dirigindo até a área de mausoléus da província.

Dentre eles, quem parecia mais desconfortável era a guerreira. Não podia imaginar que teria de encarar uma missão como aquela, e deu graças ao fato de Ulfgar não estar com eles. No entanto, o anão certamente iria querer saber alguma coisa sobre a missão que eles executaram, e com um linguarudo como Aramil, e um sujeito com tamanha falta de tato como Joshua seria difícil esconder a verdade.

“O túmulo da família profanado...” pensava ela “Pobre Ulfgar!”. Prete parou por um segundo. Carregava nas costas além do machado, uma bolsa contendo alguns recipientes metálicos

para líquidos. Entregou um para cada aventureiro. – O que é isso? – perguntou Aramil. – Ora, é água sagrada dos deuses. – disse o guerreiro, como se estivesse explicado a soma de um mais um a um retardado.

– Vai nos ajudar a lutar contra os mortos-vivos, é óbvio! – Como funciona? – perguntou o mago, cheirando o líquido e constatando que parecia ser água comum. – Pfff... ela ajuda a destruir a energia do Miasma que faz com que os mortos-vivos se movam como animais irracionais.

Como um mago pode não saber disso?

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Joshua franziu o cenho, mas não disse nada. Miranda, que já conhecia aquela técnica de matar zumbis, pegou um dos

recipientes. – Já usei isso em lutas contras mortos-vivos antes. Os cadáveres vão literalmente derreter com esta água, certo? – Não, não é tão simples. – disse Prete, coçando a barba. – Imagino que vocês humanos devam enterrar seus mortos

diretamente na terra ou dentro de caixões, por isso os corpos ficam bastante deteriorados e, muitas vezes, são pouco mais do que esqueletos. Mas nós anões gostamos de embalsamar os cadáveres, tornando-o mais resistentes à ação do tempo e do apodrecimento. Por isso a água sagrada vai, no máximo, ajudar a paralisar os mortos-vivos por algum tempo, mas só ela não vai adiantar.

Aquela não era exatamente a informação que todos queriam ouvir. Lutar contra cadáveres já era suficientemente desagradável, como foi na última missão que eles executaram no reino de Graso. E mesmo assim, as coisas foram bem facilitadas para eles. Imaginar que teriam que enfrentar mortos-vivos piores do que aqueles realmente não era o ideal para elevar os ânimos.

– Vamos! – chamou o anão. – Vamos logo resolver isto. Mais alguns minutos de caminhada e finalmente chegaram até a área dos mausoléus. Como ainda não conheciam direito as runas do alfabeto anão, precisaram de Prete para ir lendo as placas daquelas grandes

construções. – Ali está! O guerreiro apontou para um dos mausoléus. Um dos mais esplendorosos, porém o mais abandonado de todos. O brasão

da família Rumnahein encontrava-se caído no chão, enferrujado. As portas de metal estavam em péssimo estado, mas lacradas. Certamente para impedir a saída dos mortos-vivos. Havia um aviso pendurado nela.

– O que está escrito? – perguntou Aramil, para ninguém em especial – Certamente. – começou Joshua, conjeturando. – A placa deve dizer: “Não seja estúpido. Não entre aqui, a não ser que

queira ter uma morte horrível e dolorosa”. – Bom, neste caso, por que estamos entrando? – e o ladrão virou-se para Prete, falando no idioma anão. – Não é melhor

incinerarmos o mausoléu? Certamente os mortos-vivos vão ser destruídos pelo fogo. – Você é idiota? – disse o anão, jogando a cabeça para o lado. – Olhe ao redor! Nós estamos dentro de uma caverna, não

nos campos abertos das terras humanas. Se colocarmos fogo numa construção deste tamanho, a fumaça irá se espalhar e envenenar pelo menos metade da província. E mesmo assim é provável que alguns dos mortos-vivos não sejam destruídos, pois muitos se encontram em câmaras mais protegidas. – Prete fez uma pausa. – Temos que entrar no mausoléu e ir destruindo os monstros na mão mesmo.

– Entendo. – disse Miranda, segurando no cabo de sua espada. – Bem, vamos indo então. E os aventureiros se aproximaram dos portões. Aramil cogitou a idéia de usar suas habilidades de ladrão para tentar

destrancar a fechadura, mas percebeu que não conseguiria fazer nada diante de uma porta lacrada. E antes que Miranda e Joshua pensassem em alguma coisa, o machado de Prete já havia se colidido com grande força nos portões.

Foi um barulho alto. Os três aventureiros ficaram assustados. Com um único golpe de machado, Prete arrebentou os portões de ferro do mausoléu.

– Fan... – murmurou Joshua, com os braços na frente do rosto, esboçando um sorriso. – Fantástico! Olhe os portões! Nunca o Ulfgar ia fazer uma coisa dessas!

– Oh... oh... – murmurava o elfo-das-areias, com os pêlos do braço e da nuca eriçados, como um gato assustado. – Uau! – exclamou a guerreira, que há muito tempo não via uma demonstração de força competente como aquela. – Muito

bom, senhor Brest. Sem dizer uma palavra, mas esboçando um sorriso orgulhoso, o anão colocou o machado nos ombros. Chutou um pedaço

das frágeis ligas de ferro que lacravam a porta e virou-se para seus companheiros. – Vamos. – disse ele. – O ruído vai atrair os mortos-vivos para fora. Precisamos destruí-los o mais depressa possível. – Si... sim. – disse Aramil, nervoso. Ele estava com medo de Prete, depois daquela demonstração de força. “Deuses! E eu

que tinha medo da Miranda... esse é o cara que eu não posso mesmo mexer! Um golpe destes de machado me corta ao meio! Ah! Era por isso que eu gostava de Ulfgar!”

Joshua não disse nada, mas era difícil de esconder o sorriso enorme que trazia estampado na cara. “Finalmente um companheiro que presta! Agora sim podemos ir resolver nossas missões com mais confiança!”

E os quatro aventureiros entraram. Enquanto avançavam pelo corredor escuro, Miranda, que ia ao lado de Prete, começou gradativamente a se afastar dele. Não que tivesse medo, mas se sentia extremamente incomodada.

“Ele é um grande guerreiro. Devo admitir.” Ela pensava. “Mas tem algo nele... alguma coisa sinistra, ruim! Esta é a nossa primeira aventura, mas está claro que ele não vai aceitar palpites de ninguém. Muito menos de humanos.” Suspirando fundo e apertando ainda mais o cabo da espada, a guerreira baixou a cabeça. “Ah, Ulfgar! Você devia estar conosco!”

– Pára de dançar! Quem tinha acabado de dizer aquela frase, num pesado tom de reprovação, foi uma jovem anã que estava repreendendo o

seu namorado. – Pô, amor! – reclamou o dito cujo, mexendo os braços e as pernas. – A gente tá aqui para se divertir! – Nós já estamos fora da taverna, seu idiota!

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JOSHUA CONTRA OS MORTOS-VIVOS

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– E daí? – retrucou o pretenso dançarino, que continuava a mexer os braços e as pernas enquanto andava. – Não tem

motivo para a gente não continuar se divertindo! – Deuses, será que dá para esperar até a gente chegar em casa?! Você está ridículo assim, dançando mal no meio do

corredor! – Mas eu gosto muito... – Pára de dançar! – gritou a anã, tentando segurar o namorado. – Não consigo, amor! – disse o rapaz, num tom que beirava o desespero. – Não consigo! Rindo muito daquela cena, estava um trio de anões que se dirigia para a taverna Hadra. – Puxa, nunca vi nada assim! – disse Ulfgar, feliz da vida. – Tsk, você ainda não viu nada! – disse Jak. – Nem se impressione demais, pois a noite está só começando! – Oba! – o anão bateu palmas. – Mal posso esperar para chegar nessa tal taverna! Faz tempo que não escuto músicas em

honras aos antigos heróis do passado... – Argh! – exclamou o bardo, balançando a cabeça. – Pelos deuses! Não seja tão careta! – “Careta”? – Ulfgar franziu o cenho e depois virou-se para Seward. – Isso foi uma ofensa? – Foi! – sorriu o guerreiro, bem calmamente. Então eles entraram. A Hadra já estava lotada. Abrindo caminho por entre as pessoas, Jak chegou até o palco, onde os

outros dois integrantes da sua banda já estavam posicionando os instrumentos. Char e Arren foram até ele. – Ah! Finalmente! – disse Char, descendo do palco. – Cheguei a pensa que você não viria. Mas e aí? Como está? Você

esteve sumido nestes últimos três dias. – Pois é, resolvi ficar um pouco com o meu pai. Quem sabe assim ele larga do meu pé. Ah! E o Seward está por aí! Vamos

fazer um pequeno teste para ele entrar na banda. – Acha que vai dar certo? – perguntou Arren, desconfiado. – Não adianta ele fazer o teste hoje e desistir amanhã. – Não se preocupe! Tenho certeza de que desta vez ele está dentro! Jak subiu no palco. Enquanto isso, Seward conduzia um assustado Ulfgar pelo meio da taverna. – Deuses! Nunca vi uma taverna tão cheia assim. – Não está gostando? – Pelo contrário! Estou adorando! – ele virava a cabeça de um lado para o outro. – A maioria aqui é da minha idade. Mas é

meio curioso, onde estão os mais velhos? – Ah, eles não gostam de vir aqui. Por causa do barulho, sabe? – o guerreiro tentava procurar algum lugar para sentar, em

vão. – E parece que todos preferem assim. Assim que os dois chegaram perto do palco, os três bardos cumprimentaram o futuro novo integrante da banda. Ulfgar

ficou meio de longe e esquecido por alguns segundos, até que um dos companheiros de Jak falou: – Quem é o gato?! – perguntou Arren, utilizando uma típica expressão humana para se referir a um homem bonito. – Ele

vai fazer parte da banda também? – Arren, sua rameira de taverna! Comporte-se! – riu Jak, empurrando o amigo. – Aquele é o Ulfgar. Pelo visto é a primeira

vez que ele entra numa taverna como essa. – ele fez uma pausa. – Ele não está cotado para ser membro da banda, pelo menos por enquanto. Mas creio que ele tem o potencial para ser um bardo.

– Por quê? Você já o viu tocando algum instrumento? – Não, mas consigo imaginar. A conversa foi interrompida quando Char chamou os dois para auxiliarem Seward a se posicionar. A música que iam tocar

era conhecida pelo guerreiro, e por isso ele não teria grandes dificuldade com as notas. Enquanto isso, Ulfgar procurava uma mesa para sentar próximo ao palco, mas estava impossível. A taverna estava cheia e com todos os lugares ocupados. Havia muita gente de pé, então era melhor ficar assim.

Alguns acordes iniciais começaram a ser ouvidos. Os anões urravam, comemorando o início da apresentação. Com dificuldade, Ulfgar conseguiu ficar em frente ao palco. Podia ver Jak totalmente a vontade, e Seward um pouco nervoso mais ao fundo. Arren, que cuidava da percussão, bateu as baquetas quatro vezes, e a música começou.

Há uma luz na torre É você que chama por mim!

Você é a bruxa das dores E eu sou a torpe criatura dos confins!

Largue o seu caldeirão Enquanto eu entro pela janela

Proferindo encantamentos na escuridão!

Ponha-me prostrado diante de você, bruxa! Deslize sua adaga pela minha garganta Encoste suas frias unhas do meu rosto

Faça-me enlouquecer nesta noite tenebrosa!

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Oh! Faça-me implorar aos seus pés! Faça-me enlouquecer nesta noite tenebrosa!

A essa altura, Ulfgar estava sendo exprimido pelas pessoas da taverna. E não era no sentido figurado. Nunca seus ombros se encontraram tão próximos um do outro. Ele bem que queria gritar e sacudir os braços como alguns mais sortudos, mas não era possível. Logo a música terminou e todos pararam para aplaudir, e finalmente nosso amigo conseguiu se movimentar. Esticou o braço e acertou um dos transeuntes, que estava com um caneco de cerveja na mão. Esta foi direto para o chão.

– Huan? – o dono da cerveja levou alguns segundos até entender que sua caneca havia sumido. – Quié? – retrucou ele, virando-se para Ulfgar. – Cual é a sua?

– Oh, foi mal! – exclamou o aventureiro, mas aquele realmente não era o melhor lugar para tentar falar, principalmente por causa do barulho. O bêbado interpretou aquilo como sendo uma ofensa.

– Ah! Quier brigar... cheu...! – começou ele, batendo os punhos. – Quier brigar? – Eeei! Espere! Eu já pedi desculpas! – disse Ulfgar. Não que qualquer pedido de desculpas fosse funcionar com um

bêbado. Na verdade, todos ali por perto já tinham percebido que uma briga iria começar. E a palavra “Dratkun!”, ou seja, “Porrada!” no idioma anão já estava sendo entoada por metade do bar.

– Oba! – disse Jak, sorrindo. – Parece que o nosso amigo já entrou no clima! – Pff, já? – disse Arren. – Vai ser uma pena ver aquele rostinho tão bonito sendo socado. – Essa não! – disse Seward, preocupado, e ainda tremendo de nervoso por ter acabado de tocar sua primeira música em

público. – Precisamos ajudá-lo. – Fica frio, cara. – disse Char, erguendo o braço e incentivando a briga. – É só um bêbado. Se o tal Ulfgar não conseguir

bater nele, então ele merece apanhar! Com rapidez, as pessoas conseguiram se espremer mais do que era fisicamente possível e abrir um pequeno semi-círculo

para que os dois brigassem. O bêbado estava adorando aquilo, mas Ulfgar ficou meio nervoso. Principalmente porque a idéia de ser um guerreiro fracassado, incapaz de matar uma mosca recém saída dum caneco de cerveja, ainda retumbava em sua cabeça.

– Babacah... – dizia o bêbado, erguendo os punhos. – Eu vô amachá vochê! – Ah! – Ulfgar tentava se manter calmo, erguendo os punhos também. – Com quem você pensa que está falando? Eu sou

um...! – mas deteve-se. Ele ia dizer “Eu sou um Rumnahein”, mas imaginou que isso de nada adiantaria. Então resolveu encarar o bêbado sem a adição da moral do clã e, no mínimo, apanhar com dignidade. – ...ah! Esqueça!

Com um golpe seco, Ulfgar acertou a boca mole do bêbado. Rapidamente recolheu os braços, esperando conseguir se defender do contragolpe. Mas não houve retaliação. Bastou um soco para o ébrio capotar. O aventureiro ficou extremamente surpreso com isso. Nunca antes conseguiu derrubar um adversário com tanta facilidade. Embora tenha sido rápido, o público gostou, e começou a comemorar.

– ÊÊÊÊÊÊÊ!!! – todos diziam. – Puxa... – Ulfgar olhava para o próprio punho, e depois olhou para o sujeito desmaiado no chão. Mais pelo efeito do alcol

do que pelo soco. – Eu... nunca pensei que... – Há,há! Muito bom! Muito bom! – exclamou Jak, gritando e batendo palmas para Ulfgar. – Presta atenção, Jak! – exclamou Arren. – Vamos continuar com a apresentação! Mostre a próxima música para nosso

mais novo integrante. E o líder da banda foi até Seward, que estava bastante nervoso. Entregou-lhe uma partitura mal feita e rabiscada. – Não conheço essa música! – disse Seward, nervoso. – Não é difícil. – disse Jak. – Vão ser só três acordes que são fáceis de acompanhar. Respirando profundamente, Seward colocou a partitura no chão e a segurou com o pé, para poder acompanhá-la. Havia a

marcação da onde os acordes deviam mudar, acompanhando a letra. E quando começou a lê-la, ficou surpreso com o seu conteúdo. “Ei, esta música...” pensou o rapaz, lendo as palavras. “Deuses! Jak realmente deve estar muito sensível...” A platéia logo se esqueceu da curta briga que havia acabado de terminar e pediu mais música. O vocalista se aproximou da

ponta do palco e começou a falar: – Esta música eu compus há poucos dias. – disse Jak. – Chama-se “Seguindo o Sol”, algo que muitos de vocês,

principalmente os que vivem nos corredores mais internos de Ardehennas, não devem ver muito, não? Jak passou a mão nas cordas e, com suas prestidigitações de bardo, fez elas brilharem. Ulfgar estava bem de frente e ficou

mais uma vez impressionado com aquele truquezinho tão simples. Então a música começou:

Acordo numa manhã sem sol Neste corredor só há escuridão

Busco o alaúde ao lado da cama Toco uma música em si bemol

Ouço as batidas na porta Entra um homem com um tropeção

Vive no passado, sujo de lama Só sabe lembrar das honras mortas

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Ergue o queixo para mim Fala com voz de condenação Diz que a vida é só um drama

E que desonro a família, assim...

Quando termina sua fala Eu me ergo

Quando aponta o dedo em riste Eu me nego

E nego em ser a vergonha do mundo... ...para ser o orgulho do clã

Prefiro ser o orgulho do mundo.. ...e continuar a ser a vergonha do clã.

A letra era bem direta, e tocou profundamente grande parte dos jovens anões que ali estavam. Se mesmo humanos costumam ser muito tradicionais em termos de honra da família, os anões são muito mais. Não era diferente para nenhum deles que estava na taverna – queriam viver suas vidas. Queriam tentar fazer algo diferente do que os seus clãs continuavam fazendo pela passagem dos séculos, dos milênios. A própria Ardehennas era o símbolo maior da baixa mobilidade que tinha esta raça. Eles surgiram aqui, e mesmo após milhões de anos, continuavam ali.

Mas a canção ainda não tinha acabado. Após uma pausa, recheada com solos de alaúde, Jak voltou a cantar:

A pedra resiste ao tempo Os sonhos não

A rocha conserva as histórias Uma vida não

Mas não deixo a alegria adormecer Carrego o fardo nas costas, e então Caminho pelos campos de grama Para tentar cantar e merecer...

...uma nova manhã com sol Me livrar dessa escuridão

Dedilhar o alaúde na cama Com uma música em si bemol

Não houve ninguém que não tivesse aplaudido aquela música. Foi um verdadeiro furor. Jak, Seward, Arren e Char faziam reverências, agradecendo aos aplausos. Todos tinham gostado, principalmente Ulfgar, embora ele devesse ser o anão mais tradicional entre a molecada. Mas ele gostou muito, e não deixou de pensar uma ou duas coisas enquanto a música era tocada.

Os bardos estavam se preparando para tocar a próxima música, e assovios e gritos de satisfação ainda podiam ser ouvidos da platéia. Quando iam começar, o olhar de Jak foi atraído para o fundo da taverna, onde estava a porta de entrada. E o sorriso que o bardo tinha no rosto se desmanchou. Afinal, havia alguém na taverna que não tinha aplaudido a música.

Kario, o seu pai. O rapaz tomou um susto tão grande que deixou seu instrumento cair no chão. Nem teve clareza de espírito suficiente para

se perguntar o que seu pai estava fazendo ali. Sua cabeça só voltou ao normal quando o ferreiro saiu da porta da taverna e foi embora.

– Jak? – chamou Char, puxando o braço do amigo. – Tudo bem, cara? Parece que viu um fantasma! O bardo suspirou por alguns momentos. Balançou a cabeça e disse: – É... de fato... – disse ele, ainda olhando para a porta da taverna. E com um balanço triste da cabeça, resolveu voltar a se

concentrar na apresentação. – De fato eu vi um fantasma...

O ruído dos mortos-vivos era pavoroso. Naquele mausoléu escuro, Miranda investia com seus golpes. Há muito tempo não tinha uma luta difícil como aquela.

Com a lâmina da sua espada banhada com a água sagrada, ela conseguia deter os movimentos dos monstros. Mas nem sempre fazia efeito. Além disso, os cadáveres dos anões estavam vestindo armaduras que, embora enferrujadas, ainda refreavam alguns trancos.

Depois de mutilar um deles, Miranda parou para observar o zumbi que havia acabado de derrotar. “Um anão guerreiro” pensava ela, enquanto respirava pesado. “Certamente este aqui foi um anão guerreiro muito bom!”

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Aramil disparava suas flechas de longe. Também banhadas com a água sagrada. Ele estava apavorado! Muito mais do que

naquela missão da Confraria dos Arqueiros, que eles concluíram há meses atrás. Aqueles mortos-vivos eram realmente duros de cair.

“Droga, droga!” pensava ele, disparando seus projéteis e se escondendo da vista das criaturas logo em seguida. “Está muito difícil! Está mesmo! Oh, deuses! Isso me faz ter saudades da loja do meu tio. Droga! Por que eu não fiquei em Graso batendo algibeiras?!”

Joshua já tinha gasto todas as suas magias. Sua cabeça doía. Ele não tinha mais como lançar qualquer feitiço. – Maldição! – ele dizia, arfando e tentando se defender com a água sagrada e seu punhal. – Eu não esperava... que essa

missão fosse tão...! Um anão morto-vivo caminhava devagar e sem firmeza. É óbvio que não era nem um terço do que fora quando vivo,

mesmo assim aquele corpo sem vida era um adversário difícil. Carregava um machado todo enferrujado, mas poderoso. Joshua não tinha como acertá-lo, então precisou ir recuando. Em um seus passos, ele sentiu ter encostado em outro anão. Levou um susto, mas o anão em quem tinha encostado estava vivo e cheio de vida.

– Afaste-se, humano! Prete golpeou o morto-vivo com aquela sua devastadora técnica de machado. O cadáver perdeu um dos braços. Houve o

som de carne podre sendo dilacerada. Logo em seguida, o anão girou nos calcanhares e executou uma manobra giratória com 360 graus com sua lâmina e cortou a criatura ao meio. Acredite, foi uma visão e tanto! Migalhas de corpo apodrecido voaram pelo chão. Joshua arregalou os olhos não apenas pelo poder destrutivo daquela técnica, mas pela rapidez e habilidade.

“Incrível!” pensava o mago. “Esse cara tem que ser do nosso grupo!”. De fato, Prete era a força destrutiva que encabeçava o time. Miranda, embora fosse tão forte quanto ele, estava travada por

saber que estava lutando dentro do mausoléu da família de um amigo. Joshua já tinha gasto todas as suas magias e estava quase inútil. E Aramil preferia continuar distante dos ataques corpo-a-corpo. E falando no elfo-das-areias...

– Aramil! – gritou Miranda, olhando para os lados. – Onde você está?! A guerreira pegou o ladrão com um olhar de soslaio, escondido atrás de uma pilastra e tentando não chamar a atenção. – Rápido, Aramil! – continuou ela. – Saia daí e venha nos ajudar a acabar com o resto destes mortos-vivos. – O quê?! – exclamou o elfo-das-areias. – Eu tenho amor à vida! – Elfo covarde! – gritou Prete, que estava por perto destruindo as criaturas. – Saia já daí, se não quiser se juntar à estes

cadáveres! – nisso, o anão pegou um machado enferrujado do chão e o lançou contra a pilastra. Esta se cravou na pedra, à poucos centímetros do rosto do ladrão, e ainda cortou as pontas duplas do seu cabelo.

– GAAAHHHHH!!! – exclamou Aramil, saindo correndo pelo mausoléu e atirando suas flechas nas criaturas. Afinal, havia coisas mais terríveis do que ser estraçalhado por mortos-vivos. Principalmente porque Prete devia ser do tipo que não deixaria sua vítima morrer tão depressa.

Com a efetiva ajuda do ladrão, finalmente todos os zumbis foram desmembrados. Durante aquela pausa, os quatro aventureiros pararam para respirar.

– Peguem isso. – disse Prete, tirando outro frasco de líquido de uma algibeira, desta vez vermelho. – Esta é uma poção alquímica que vai queimar os mortos-vivos sem precisar pôr fogo neles.

Miranda dirigiu-se categórica até Prete e pegou o frasco com uma certa rispidez. O anão percebeu. – Algum problema, humana? – Meu nome é Miranda. – disse a guerreira. – E... não é nada. Estou um pouco nervosa, só isso. Enquanto ela se encarregava de fazer o serviço, Prete simplesmente deu de ombros. Aramil e Joshua ficaram conversando. – Miranda está triste. – disse o elfo-das-areias, ainda se recuperando do susto. – Bah, pois eu estou feliz! Finalmente temos um companheiro que presta neste grupo. – Ei e eu? Não presto? – Hmmm, mais ou menos. Precisou quase que o nosso amigo cortasse a sua cabeça para você começar a trabalhar. – SEU amigo! – disse o elfo-das-areias, acariciando o seu cabelo, que precisaria de um novo corte. Um dos lados estava

desnivelado. – E não acho que Prete vai querer ficar conosco. – Tem razão, principalmente se ele perceber que o nosso grupo não é lá grandes coisas. Portanto, na próxima missão, trate

de melhorar, Aramil. Ou você vai acabar expulsando ele. – Ei, pelo menos eu ainda sei me virar! Quem aqui teve de ser salvo pelo anão? – Cale a boca! – rosnou o mago. – Essa missão foi um pouco mais difícil do que eu esperava, fui pego de surpresa pela

dificuldade dela, só isso. Mas na próxima estarei bem mais preparado! Afinal, eu sou o tipo de mago que destrói cinco mortos-vivos com uma só bola de fogo.

– Você é o tipo de mago que mente! Nem sabe lançar bolas de fogo ainda. No máximo, aqueles raiozinhos que servem para acender as tochas.

– Ora, seu...! – Acabou. – disse Miranda, aproximando-se repentinamente dos dois companheiros. Logo, os quatro aventureiros saíram do mausoléu. Prete foi na frente, feliz da vida em ver mais uma missão sendo

realizada com êxito, e pensando que, quanto mais missões executasse, mais chances ele teria de ser aceito como novo chefe da confraria. Aramil e Joshua seguiam impassíveis pelos corredores. E Miranda deteve-se mais uma vez em frente ao mausoléu profanado.

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Olhou para o chão e observou o brasão enferrujado da família Rumnahein. Cuidadosamente, pegou a peça metálica.

Suspirou e foi seguindo os outros.

Aquela manhã começara como tantas outras. Exceto para um certo ferreiro. Kario não havia tomado seu desjejum e ido direto para a ferraria, como sempre fazia. Sua mulher, que cuidava dos

afazeres domésticos, ficou preocupada. – O que houve, Kário? Você parece tão amuado. O homem não respondeu. Estava com uma expressão triste no rosto. Girava o caneco de cerveja que sempre esvaziava

pela manhã. Mas já fazia dez minutos que o líquido estava intacto. – Bom dia! – disse uma voz. Quem acabara de chegar na casa dos Kherouakr era Dhor. Ele estava animado, radiante. Trazia o típico sorriso que,

quando você vê, sorri também. Mesmo que a pessoa seja desconhecida. – Oh, bom dia, Dhor! – disse a anã. – Aceita um caneco de cerveja? – Muito obrigado, mas não. Vim aqui apenas para me despedir de vocês. Amanhã retomo às minhas viagens. – e virou-se

para o ferreiro. – Kario, meu amigo! Espero que você continue sempre forte e com... – o anão deteve-se, sentindo o clima ruim. – Kario? Você está bem?

O ferreiro virou a cabeça devagar. Olhou para Dhor e sentiu-se ainda mais triste. Fez um movimento brusco e derrubou o caneco com cerveja e tudo no chão.

– Ah! Kario! – disse a anã, repreendendo-o. – Olha o que você fez! – mas depois arrependeu-se, depois de observar a expressão ainda mais triste do marido.

– Kario... – disse Dhor, aproximando-se. – O que está havendo? Sem falar nada, o ferreiro levantou-se da cadeira e seguiu até seu ambiente de trabalho. Os dois anões ficaram

observando-o andar com dificuldade. Finalmente, a mulher falou: – Vá falar com ele, Dhor. Creio que Kario irá se abrir com você. O carregador assentiu e foi até a ferraria. Próximo dela, começou a escutar as costumeiras bateções. Porém mais lentas e

mais fortes. Como se o anão quisesse descontar a raiva contida. E de fato estava fazendo isso. Mordendo os lábios, ele batia no metal frio com força. Com os olhos quase fechados, ele descontava toda a sua frustração na barra de ferro. E como descontava! Quem ouvia de longe, pensava que estavam derrubando alguma coisa com um aríete.

– Kario? – disse Dhor, abrindo a porta da ferraria. – Por favor, diga-me o que está havendo! Houve uma última batida. Forte, muito forte. O metal ainda estava frio, mas entortou com a violência do golpe. O impacto

doeu na mão do ferreiro e o martelo caiu no chão. Levando a mão à testa, Kario sentou na cadeira, exausto pelos pouco minutos de violenta bateção. Dhor veio em seu auxílio, segurando seus ombros. E antes que ele pudesse dizer qualquer coisa, o ferreiro exclamou:

– Ah, Dhor! – disse ele, balançando a cabeça. – Deuses! Como eu me sinto culpado! Como me sinto culpado pelo meu filho... e pelo seu!

– Hã? Do que está falando? – Ontem a noite... eu vi... – Kario ergueu a cabeça e fez um ligeira pausa. – Eu vi meu filho naquela taverna de jovens

desocupados. Ele esta lá, cantando. Cantando uma daquelas músicas... se é que pode ser chamada se música... – suspirou, fez outra pausa. – Ele dizia que, definitivamente, não estava disposto a seguir a linha do seu clã. Pior que isso! Estava incentivando outros jovens anões a fazer isso! E lá naquela taverna... estava, estava...!

Aquela foi a última fala que Kario disse naquela manhã. E foi a mais difícil. – ... seu filho estava lá, Dhor! Seward também estava lá! Tocando com eles! Deuses! Ele estava tocando aquelas músicas...

com eles! O carregador arregalou os olhos. Também não disse mais nada aquela manhã.

Naquela manhã, Joshua havia acordado bem disposto. Aramil, que também havia acabado de acordar, ficou surpreso com todo aquele bom humor.

– Teve um sonho erótico, garotão? – perguntou o ladrão. – Não, elfo da mão peluda. – disse o mago, franzindo o cenho e sorrindo. – Estou feliz porque finalmente tive uma boa

noite de sono, sem preocupações. Ontem me livrei de um grande peso das costas. – Seria esse peso possuidor de uma alcunha que começa com “Ul” e termina com “fgar”? – Quanta perspicácia. – Bem, aquele tal de Prete é muito bom e tal, mas... – Aramil balançou as orelhas. – É muito serião. E forte ao extremo!

Não dá para fazer piada com alguém assim. – Não se preocupe, ainda temos um bom bufão no grupo: você! – Falando nisso, onde está Ulfgar? Eu não vi ele aqui na estalagem. – Nós chegamos tarde. O anão devia estar no quinto sono quando a gente chego...

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Joshua foi interrompido com o barulho da porta do seu quarto sendo aberta repentinamente. Era Miranda, e ela parecia

bem preocupada. – Vocês viram Ulfgar?! – disse ela, afoita. – Ele não está no quarto, e o homem da estalagem disse que ele não voltou para

casa esta noite! – Calma, “mamãe”! – disse Aramil. – O “maninho” deve estar bem! Atendendo às otimistas perspectivas do ladrão, logo na seqüência ouve-se o barulho de alguma coisa caindo no andar de

baixo e a familiar voz de um anão com sotaque humano discutindo com o estalajadeiro. Logo, os três aventureiros desceram para ver seu companheiro.

– Ulfgar! – disse Miranda. – Onde você estev...? Hã? O anão interrompeu sua discussão com o dono da estalagem e sorriu para seus companheiros. Estava fedendo à cerveja,

mas não estava muito alto. Estava naquela tênue linha entre a felicidade e a doidera de bêbado inconveniente. Se perguntassem à Ulfgar o que ele sentia, ele certamente diria que tinha a impressão de estarem estourando plástico-bolha na sua cabeça – se o plástico já tivesse sido inventado em Othrya.

– Alô, amigos! – disse ele, acenando com a mão. – Dormiram bem? – Ulfgar! – Miranda aproximou-se dele com as mãos na cintura. – Onde esteve? Estávamos todos preocupados. – Ela estava preocupada. – cortou Aramil. – E aí? Onde esteve? Bom, pelo cheiro, devia estar enxugando a cerveja do piso

das tavernas por aí. – Mais ou menos. – disse o anão, passando a mão nos cabelos molhados. – Tomei duas chuvas de cerveja, mas nada grave.

Mas é verdade que estive numa taverna. E quê taverna! O melhor lugar em que eu já estive na vida! Teve boa bebida, gente legal, música... uau, muita música! E música boa! – ele sacudiu a cabeça, animado. – Foi a melhor noite da minha vida!

– Nossa! – o ladrão bateu palmas. – Pelo visto você não fez mau negócio ficando aqui, heim? Melhor do que ter de ir numa missão em que tivemos que destruiaaaaaargh!

Os beliscões de Miranda estavam longe de serem suaves. A marca roxa ficaria por pelo menos três meses na bunda do elfo. Tanto que, avançando um pouco no tempo, podemos ver nosso amigo com seu inesgotável senso de cavalheirismo se despindo na frente de uma garota. Ao que esta exclama: “O que é isso na sua bunda?” e ao que Aramil responde: “Todos os elfos-das-areias têm manchas escuras na bunda.” e a menina retrucaria: “Credo! Pensei que o parentesco com os gatos fazia dos elfos-das-areias criaturas mais asseadas!”. Mas voltando à vaca fria...

– Ah, vocês foram mesmo participar de uma missão sem mim? – disse Ulfgar, com uma pontada imperceptível de tristeza. – Bom... foram bem, pelo menos?

– E como! – disse Joshua, sorrindo maldosamente,. – Muito melhor se tiveuuuuurgh! Outro ficaria com uma marca roxa na bunda por três meses. – Ulfgar... – começou Miranda, sem jeito. – Eu tenho... que lhe contar uma coisa... – Aê, Ulfgar! – interrompeu Aramil, dando tapinhas nas costas do anão. – Chapando a cabeça nas tavernas, é? Muito bom!

É assim que as garotas gostam! Quem sabe assim você perde a virgindade logo! O anão lançou uma expressão de surpresa para o ladrão. Deu uma risadinha e disse: – Mas eu não sou mais virgem. O elfo-das-areias arregalou os olhos, mas depois riu. – Há, há! Tá bom! Tá bom! Um tapadão que nem você, que só sabe ficar pensando em “honra do clã” e coisas do tipo...

até parece que você já teve muitas garotas! – E tive. – reiterou Ulfgar, com muita calma. – É verdade. Já tive algumas namoradas antes de sair para as aventuras.

Alias, tanto humanas quanto anãs. – Ah, pára com isso! – Aramil cruzou os braços. – Não precisa ter vergonha não, pode admitir! Todo mundo já foi virgem

aqui, não é? – e o ladrão olhou para seus dois companheiros. Miranda esboçou um sorrisinho maroto. E Joshua aparentemente não gostou que tocassem naquele assunto.

Ulfgar balançou a cabeça e esboçou um sorriso torto. Deu de ombros. – Está bem, se não quiser acreditar, não acredite. – disse ele, afastando-se. – Agora com licença, eu preciso dormir um

pouco. Alias, preciso dormir bastante! E ele se foi, subindo para o seu quarto. Aramil desmanchou o sorriso de deboche que tinha no rosto. Ficou observando seu

diminuto amigo se afastar. – É sério? – disse ele, pensando alto. – Ulfgar não é mais virgem? – arregalou os olhos felinos. – Puxa, acho que

subestimei aquele baixinho! – Ah, você é sempre tão promíscuo! – riu Miranda. – E se ele fosse mesmo virgem, qual o problema? Cada um tem a sua

hora. Certo, Joshua? – Hã... vamos pensar no que é importante! – disse o mago, querendo mudar de assunto. – Precisamos resolver de uma vez

por todas essa história com Ulfgar! – Que história? – disse Miranda, que perguntou já sabendo a resposta. E observou, alarmada, o mago subir as escadas para

o quarto. – Eeei! Espere! O anão já tinha se jogado na cama. Sua cabeça já estava se preparando para desligar sua mente consciente, quando o

barulho da porta sendo repentinamente aberta o despertou. – Acorde. – disse Joshua, de maneira séria. – Precisamos conversar. – Heim? – Ulfgar sentou na cama. Nesse momento, Miranda e Aramil chegaram no quarto. – Conversar sobre o quê?

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– Ulfgar, nós tomamos uma decisão! Você está fora! – “Tomamos”? – estranhou Aramil. O anão ainda estava meio zonzo. Um quarto por causa do sono e um quarto pela bebida. Agora estava totalmente zonzo,

com a segunda metade sendo completada com aquela declaração meio fora de lugar. – O quê? – perguntou Ulfgar, acreitando não ter entendido direito a mensagem. E realmente não tinha. – O que disse? – Eu disse que você está fouuuurrrgh! Ao contrário de Aramil, Joshua ficaria com duas manchas roxas na bunda. – É mentira, Ulfgar! – disse Miranda. – Nós não queremos que você saia do grupo! Não é, Aramil? – Heim? Ah, sim! Quero dizer... não! Não queremos que você saia não. – disse o ladrão, para evitar um novo beliscão. – Ei, espere aí! – disse Joshua, afagando a retaguarda. – Sejamos sensatos! Ulfgar, você é um cara legal... a seu modo! Um

bom amigo... do seu jeito! Nós somos gratos à sua família por estarmos participando de aventuras aqui em Ardehennas e tudo, mas... Entenda! Nós precisamos de um guerreiro melhor no nosso grupo! Não me leve à mal, mas é para sua própria segurança! Por exemplo, a última missão que nós participamos foi... tira a mão da minha bunda! – exclamou o mago para a guerreira.

– Ora, Miranda. Não vamos conseguir esconder isso por muito tempo. – disse Aramil, virando-se para seu diminuto amigo. – Seguinte, Ulfgar. Nós participamos de uma missão onde uns caras violaram o mausoléu da sua família e todos os seus parentes falecidos viraram mortos-vivos. Aí a gente teve que detonar todos eles. Todos esses caras que você vive falando aí, os tais de Zhangar Rumnahein, Soth e Bath, e outros. Destruímos todo mundo! E a missão foi realmente difícil. Do tipo que você realmente seria um completo inútil se participasse. Mas nós tivemos a ajuda de um anão muito mais forte que você e que praticamente liderou a missão. Então achamos que ele será muito mais útil do que você daqui para frente. Por isso achamos melhor você se aposentar. Mas não precisa se enterrar não, pois o mausoléu da sua família tá tudo zuado mesmo... eeei!

Desta vez não foi quase um beliscão que Aramil sofreu, mas sim quase uma patada de Miranda. Quando você já está completamente zonzo é difícil ficar mais ainda. Mas Ulfgar ficou. Toda aquela montoeira de

informação se aglomerou na sua cabeça de tal forma que ele não estava compreendendo muito, ou melhor compreendia sim, mas preferia se fazer de zonzo.

– ... quê? – murmurou Ulfgar, sem nada melhor para dizer. – Bom, o recado está dado. – disse Joshua, saindo do quarto. – Vem, Aramil. Vamos para a Confraria dos Guerreiros

cuidar da nossa próxima missão. – Foi mal, Ulfgar. – disse o ladrão, saindo do quarto também. Houve um momento de silêncio. O anão levou a mão a cabeça, e Miranda ajoelhou-se e colocou a mão em seu ombro.

Esticando o braço até a cômoda do quarto, ela pegou uma coisa embrulhada num pano que havia deixado ali quando chegara da missão. O emblema dos Rumnahein, todo amassado e enferrujado. Entregou ao amigo.

– Ulfgar, eu sinto muito. – disse a guerreira. – Se você quiser conversar... – ... não. – Hã? Não quer? – Não. – repetiu o anão, de maneira mais tristonha. – Eu... quero ficar sozinho. – Tem certeza? Eu posso... – Por favor, Miranda. Suspirando, a guerreira saiu do quarto. Fechou a porta bem devagar. Ulfgar sentou na cama, observando aquele pedaço de

metal enferrujado. Desembrulhou-o completamente, espalhando requisitos de ferrugem pelo chão. Várias vezes o anão já tinha visto o símbolo do seu clã, mas somente em desenhos ou em relevo no velho machado do seu avô. Ele observava aquele emblema ornamentado com as runas dos anões e sentiu um aperto no coração. Apertou os punhos e, sem querer, quebrou o brasão ao meio.

Os dois pedaços de metal caíram no chão. Com as mãos sujas, Ulfgar levou uma delas ao rosto. Ia começar a chorar, mas deteve-se. Ele não podia fazer isso. Não mais. Já tinha passado da idade de chorar e, de certo modo, chorar agora apenas reforçava o argumento de Joshua de que ele era um fracote. Ele tentou se consolar, pensando em cem mil coisas, mas não estava conseguindo.

Mas, por um momento, lembrou-se da música que Jak e os rapazes estavam tocando. E se fixou principalmente nesta estrofe: Mas não deixo a alegria adormecer/ Carrego o fardo nas costas, e então/ Caminho pelos campos de grama/ Para tentar cantar e merecer.../ ...uma nova manhã com sol.

“Agora que eu percebi...” pensou Ulfgar, olhando para cima, num olhar de filósofo entretido com as questões do universo. “Putz, que letrinha mais piegas!” e respirando profundamente, ele deitou na cama. Ficou assim por alguns momentos, até que levantou de repente. Foi tão brusco que a cabeça doeu um pouco, mas ele não se importou. Claro! Agora estava tudo muito claro para ele. Afinal, ele não tinha vindo até Ardehennas só para apanhar de alguns trogloditas.

– Está decidido! – disse ele, para si mesmo. – Totalmente decidido! Neste dia 39 do mês de Duraher do calendário anão, do ano de 1476 da Segunda Nova Era eu vou ser... um bardo! É isso! Eu vou ser um bardo e acabou! Iuhuuu! – num pulo, ele saiu da cama. – Hah! Prepare-se, mundo! Prepare-se, Ardehennas! Tem um novo bardo na montanha!

A Confraria dos Guerreiros estava com o movimento um pouco maior do que o normal. E o motivo era que o chefe da confraria estava atrasado – era ele quem deveria liberar as novas missões pros grupos. Quem estava tentando sanar o problema era Prete. Mas ele sempre detestou a parte mais burocrática do trabalho.

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Correndo e respirando pesado, Seward chegou na confraria. Mal colocou os pés lá dentro, sem tempo de começar a pedir

desculpas, seu colega começou a gritar: – Seu idiota!!! – exclamou, com severidade. – O que você pensa que está fazendo?! Chegando atrasado desse jeito?! Acha

que todos aqui estão à sua disposição?! Um chefe da confraria dos guerreiros normal teria arrancado, na base da machadada, metade dos dentes da arcada dentária

do insolente que gritasse com ele daquele jeito, mas Seward era realmente muito bonzinho. – Ah... des... desculpe! – o rapaz deu um longo suspiro sem graça. Aquilo pegou mal. Muito mal. Os outros anões

franziram o cenho todos ao mesmo tempo. Logo começaram a se dispersar. Quando o salão ficou quase vazio, com exceção de Prete e Seward, os dois voltaram a falar. – Desculpe, Prete. Eu... eu realmente perdi a hora hoje... – Hah, que seja! – disse o guerreiro, sorrindo. – É o seu nome que está indo para o buraco mesmo! O outro se foi, e um desolado chefe da confraria dos guerreiros ficou ali, sentado atrás da mesa. Sentindo vergonha de si

mesmo. Olhou para a grande ampulheta móvel posta numa das prateleiras da parede. Realmente estava atrasado. Já eram onze horas.

Ficou alguns momentos calado. Com os cotovelos apoiados na mesa e os dois polegares segurando a fronte. Pensou no conflito dos seus sentimentos. Na emoção boa que sentiu na festa da taverna ontem a noite, e na tristeza ruim que estava sentindo por ter cometido uma falta naquele seu trabalho tão importante. As músicas... começou a se lembrar das músicas. Como gostou delas! Como gostou de ouvir e tocá-las. Ah! Ele poderia continuar tocando o resto da vida! Mas ficar naquele lugar fechado... silencioso... com cheiro de sangue impregnado no machado dos guerreiros troncudos que entravam...

Ficou pensando nisso por tanto tempo que nem percebeu que a ampulheta móvel já tinha mudado a marca para meio-dia. – O quê? – disse ele, observando as horas. – Ora, essa ampulheta deve estar com a areia fina demais... Ele deteve-se quando ouviu a porta sendo aberta. Já esperava ter de afrontar Prete ou outro guerreiro mal encarado, mas

ficou surpreso quando viu quem tinha acabado de chegar. Seu pai, Dhor Brurroughar. – Pai...?! – começou Seward, bastante preocupado. Sem dizer nada, o anão entrou na confraria. Olhou ao redor e percebeu que estavam sozinhos. Deu um sorriso, mas não

aquele sorriso grande que sempre dava para o filho, principalmente nos últimos dias. Mas um sorriso mais contido. – Chegou atrasado? – começou Dhor, calmamente. Seward não sabia onde enfiar a cara. De fato, havia chegado atrasado. Alias, chegara em casa tarde da noite. Só percebeu

que tinha dormido além da conta quando viu seu pai chegando da casa do amigo ferreiro. Num pulo, ele foi tomar um banho para tirar o cheiro de cerveja e tabaco impregnado na pele e foi para a confraria. Que vergonha! E seu pai tinha visto. Que vergonha!

– Soube que você esteve numa taverna ontem. – prosseguiu Dhor, num tom mais sério. – Hã... pai... – o guerreiro estava realmente preocupado. – Pensei em vir aqui logo de manhã, mas passei no seu quarto e vi que você tinha acabado de acordar. Então é verdade que

passou a noite toda numa taverna? – Eu... eu... – ele tenteou parar de tremer. – Eu sinto muito! Dormi além da conta. Desculpa! Mas eu... eu prometo que...!

– o guerreiro deteve-se. “Não! Eu não posso prometer que isso não vai acontecer de novo. Não posso! Maldito seja eu!” Houve um novo silêncio, quebrado apenas pelos passos de Dhor andando pelo salão da confraria. Correndo os olhos pelos

troféus orgulhosamente expostos, ele parou diante da placa feita em homenagem à Dhungar Rumnahein. Sorriu. – Ah, eu me lembro bem. Foi um grande evento. – disse Dhor, ainda olhando para a placa. – Um acontecimento

memorável para mim e toda a província de Morintha. – ele fez uma pausa e olhou de soslaio para o filho, que estava encolhido atrás da mesa. – Esse Dhungar Rumnahein... um grande homem! Um grande guerreiro.

A ignorância, para alguns, é uma bênção. E era esse o tipo de bênção que Seward desejava naquela hora. Mas infelizmente ele estava entendendo muito bem o que o seu pai queria dizer. E sentia que a hora da decisão havia finalmente chegado. Ele teria que tomar uma decisão. Esquecer ou a música ou a luta. E ele não teria coragem de esquecer a luta, pelo menos não na frente do seu pai.

– Ouça... pai... eu... – ele parou. As palavras custavam a sair da sua boca. – Eu... eu não...! – Foi bacana? – O quê? – Foi bacana a tal festa lá na taverna? Taí uma pergunta que pegou Seward de surpresa. Ele ficou sem saber se mentia ou dizia a verdade. Mas como era incapaz

de mentir para o pai, acabou falando: – Sim... foi. – Mais bacana que ficar na confraria? Recebendo guerreiros honrados e virtuosos, cumprindo missões para auxiliar o dia-

a-dia dos anões da província? Ter o trabalho mais invejado de todos os guerreiros de Ardehennas? Ser reconhecido por toda a montanha como um prodígio do machado?

– ... foi...! Seward arrependeu-se do que havia acabado de dizer logo na seqüência, mas era um pouco tarde. A essa altura não era só

a tremedeira que percorria o seu rosto, o jovem guerreiro estava suando. E suando de pingar gotas no chão. Seu pai aproximou-se da mesa onde ele estava sentado (ou melhor, escondido). Apoiou as mãos na madeira e, numa incrível reviravolta dos acontecimentos desta história, disse:

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– Então o que você ainda está fazendo aqui? – Dhor abriu um sorriso. E desta vez um daqueles sorrisos bem largos. – O quê? – ele fez uma pausa, com uma expressão incrédula. – Como... como assim? – Como assim o quê? – o velho anão estava começando a gostar daquilo. Afinal ele quase nunca se divertia. – Se você

gosta de ser bardo, então seja um bardo! – Mas... mas pai...! – Seward, deixe-me dizer algo. – Dhor sentou em cima da mesa, colocou uma mão no ombro do filho. – Eu não gosto

muito da idéia de ver você andando com esses rapazes estranhos, como o tal Char e o Arren. Eles não passam de vadios pervertidos! Mas sabe que... – o anão fez uma pausa, deu uma risadinha e coçou a cabeça. – ... mas sabe que sinto uma ponta de inveja de você? Hah! Que jovem não tem o seu punhado de amigos estranhos? Ou pelo menos que parecem ser estranhos aos olhos dos pais zelosos deste jovem?

– Eu... não estou entendendo... – Claro que está! Você não é burro, Seward. Talvez esteja meio confuso porque acredita que só vai me deixar feliz se for

um grande guerreiro ou coisa parecida, não? Bom, isto realmente seria uma forma de me deixar imensamente feliz e orgulhoso, como você me deixou quando assumiu a chefia da confraria. Mas... – Dhor desceu da mesa, caminhou por alguns segundos pelo salão. – Eu tenho sentido a sua tristeza. Não pense que não. Achei que fosse apenas o seu nervosismo em encarar um desafio como este. Acredite, Seward, durante um bom tempo eu acreditei que ser o chefe da confraria era tudo o que você mais queria na vida. Mas então, por que a tristeza tão descabida? Tudo ficou claro para mim quando Kario me contou, quase aos prantos, que viu você e o Jak tocando numa dessas tavernas para jovens.

Seward nem sabia mais o que dizer e que expressão estampar na cara. Resolveu deixar o seu pai prosseguir em seu monólogo.

– Não deixou de ser um pequeno choque para mim. Afinal nós anões nunca tivemos uma tradição muito grande em apoiar nossos bardos. Estamos mais acostumados em vangloriar nossos guerreiros, ferreiros... faz parte da nossa tradição de guerra. Mas acredite, Seward. Sou muito mais tolerante do que Kario e isso tem a sua explicação. Eu sempre viajo para a superfície de Ardehennas.

– A superfície. – disse Seward, finalmente sorrindo. – Exato! E lá em cima já vi coisas que muitos anões de trezentos anos jamais viram. Lá em cima há muitos conterrâneos

nossos que “traem” os ideais da montanha, vivendo como humanos. E muitos até falam o idioma humano normalmente. Hmmm... engraçado. – Dhor levou a mão ao queixo. – Eu acho que já contei milhares de vezes para você a história de como eu conheci Dhungar Rumnahein, certo?

– Hã... quarenta e sete vezes. Pelo menos até quando eu parei de contar, aos 35 anos. – Haha! É verdade! Contei muitas vezes essa história para você, mas acho que nunca lhe contei nenhuma história sobre as

coisas que vi em minhas viagens para a superfície, certo? Pois bem, acho que é uma boa hora para contar uma. Dhor fechou os olhos e suspirou. Deu início à narrativa como quem começa a contar um conto de fadas para crianças. – Já faz muito, muito tempo. Conheci um rapaz, infelizmente não lembro o nome, que nasceu e cresceu entre os anões da

superfície. Parece que lá em cima existe a tradição das pessoas se desmerecerem. Não darem o devido valor para si mesmas. Acharem que são muito inferiores aos que estão embaixo delas. E por isso, um dia, esse rapaz decidiu largar a sua vida de ar puro e frescor para viver na escuridão da caverna. Fazer parte das glórias enterradas dos anões. Ser digno de admiração das pessoas.

Ele fez uma pausa, esperando alguma reação do filho. – E... e ele não gostou nem um pouco? – Não, não gostou. – Dhor esboçou um sorriso triste. – Não gostou nada de vir para o centro da montanha, mas

infelizmente ele não podia mais sair. Quando a lama chega até a cintura, é difícil sair do poço completamente. Por isso, esse rapaz não teve outra saída a não ser procurar conforto naquelas trevas. E para não se afogar completamente, costumava viajar de vez em quando para a luz, apenas para se lembrar de como é sentir o ar frio da manhã no rosto. Afinal, era o seu trabalho. E com o tempo, ele conseguiu montar uma família nas trevas. E sempre desejou que o filho, seu filho único, conseguisse aquilo que ele nunca conseguiu: ser um orgulho para alguém. Seja para as trevas ou para a luz.

Ah! Seward não era burro! Sabia exatamente do que Dhor estava falando. – Pai! – disse ele, sacudindo as mãos. – Pai, você nunca me contou que...! – Você também nunca me contou que era infeliz sendo um guerreiro. Está vendo? Somo ambos dois idiotas! E dizendo isto, Dhor pegou um embrulho que tinha deixado na porta da confraria. Seward estava tão desorientado que

nem havia percebido que seu pai havia trazido aquele embrulho. E dentro dele, estava o seu machado-alaúde. – Gostei muito desta coisa que achei no seu quarto, gostei mesmo! – disse o velho anão, colocando a peça em cima da

mesa. – Você pode tocar qualquer coisa para mim? O jovem guerreiro abriu os braços. – Qualquer coisa! – e por fim, abraçou o pai. Um abraço perfeito e bem encaixado,

como poucos que ele já havia experimentado. Ah! Que bela cena! Só faltava uma baladinha sentimental de fundo para combinar bem com aqueles filmes familiares – se os filmes já tivessem sido inventados em Othrya.

Jak estava em casa, afinando o seu alaúde. Não encarou o seu pai. Sabia que os dois iam acabar discutindo. É claro que ambos não iam conseguir ficar quietos um no

canto do outro por muito tempo. E o ferreiro parecia realmente atordoado. Tanto que nem se ouvia o som do martelo batendo no metal vindo da ferraria. Ele devia estar ocioso lá dentro. Algo muito, muito raro.

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O rapaz pensou em sair de casa e dar uma volta, mas ficou na sala. Embora não quisesse discutir pela milésima vez, sabia

que adiar o embate não ia adiantar. Eles realmente precisavam ter uma conversa definitiva sobre aquilo. Foi quando ouviu-se o som de alguém batendo na porta. Batidas bem afoitas, por sinal. O bardo levantou da poltrona e foi

e direção à porta. Neste mesmo instante, Kario entrou na sala. – Jak... – começou ele. – Um momento, pai. – disse o rapaz, abrindo a porta. E antes que pudesse terminar a sua frase, dizendo que “Temos

visitas, seja educado.”, um par de mãos agarrou-lhe o colarinho. – Eu quero ser bardo!!! – disse a visita. Quem havia acabado de chegar era Ulfgar. Os dois donos da casa tomaram um susto, e por um momento ambos ficaram

sem ação. Até que Jak, abrindo aquele sorriso costumeiro, disse: – E aí, louco? – Hah! – fez Ulfgar, soltando o colarinho do rapaz e coçando a cabeça. – Eu não sou louco! – E aí, bêbado? – retificou o bardo. – Uau, pelo visto você nem tomou um banho, não é mesmo? Ainda está fedendo

cerve... – Jak! – cortou Kario. – Quem é esse seu amigo? Outro que trilha o mal caminho?! – Se liga, pai! Que falta de educação falar nesse tom na frente de uma visita! Nem esse cara que é dos Rumnahein você

respeita?! – Não me importo! Pois vocês bardos são todos...! – o cérebro de Kario ordenou que a boca parasse de falar. A mensagem

não fora compreendida por completo. Se houvesse sobre a cabeça do anão uma dessas barras de porcentagem quando se grava um novo arquivo num computador, ela teria parado em 40% e acusado “Mensagem de erro: Repetir ou Abortar?”. No caso de Kario, ele escolheu repetir.

– Um momento... – murmurou o anão. – O que... você...? Naquele instante, Jak percebeu que um enorme trunfo havia caído na sua mão. Havia dito a palavra “Rumnahein”

esperando, no máximo, que seu pai respeitasse a presença de um membro de umas dessas nobres estirpes que ele tanto gosta e deixasse a discussão para depois. Mas não. O efeito fora mais instigante do que ele havia imaginado.

– Pai. – começou o bardo, com ares de mensageiro da corte. – Este é Ulfgar Rumnahein! O dito cujo estava mudo, também muito curioso em saber qual seria a reação daquele senhor diante da sua identidade.

“Como...?!” pensou o ferreiro, um pouco atordoado. “Esse... esse rapaz é um...?”. Mas logo baixou a cabeça e caiu na gargalhada. – Hahahaha!!! Não seja ridículo, Jak! – disse Kario, sacudindo as mãos. – Acha que alguém de um clã tão nobre como o

dos Rumnahein seria como esse mancebo fedido? Esse bêbado que deve ser outro desses seus amigos que vivem de... – Ei! – exclamou Ulfgar. Os antigos brios que ele estava começando a esquecer foram desenterrados. – Eu sou um

Rumnahein sim! Sou Ulfgar Rumnahein! Filho de Dhungar Rumnahein, que foi o grande aventureiro da sexta geração de minha família! E sou neto de Deeegar Rumnahein, o maior aventureiro da quinta geração! Descendente direto de Zhangar Rumnahein, o primeiro da minha linhagem a se aventurar em terras humanas e ficar famoso por isso!

– ... o quê...? – Kario parecia confuso. – Não, não posso crer! Impossível! É verdade que o filho de Dhungar se chamava Ulfgar, mas... não! – ele voltou a sacudir as mãos. – Eu duvido que você seja um Rumnahein! Prove!

Jak ia repreender o pai por dizer aquilo, mas Ulfgar ergueu a mão em sinal de silêncio. Ele sorria, como se estivesse diante de um inimigo insignificante. Ele tirou um pano do bolso e, junto com ele, os pedaços do brasão dos Rumanhein. A peça estava irreparavelmente danificada, mas um homem com olho clínico para identificar nuanças em pedaços de metal como Kario logo identificou o símbolo.

– Não... é possível... – disse o ferreiro, ainda atônito. Este se aproximou de Ulfgar e, quase sem perceber, pegou os pedaços enferrujados nas próprias mãos. – O brasão dos Rumnahein! Mas... mas como pode ser...?

Aproveitando que o velho estava entretido em outra coisa, Ulfgar voltou-se para Jak. – Ensine-me a ser bardo! – insistiu. – Eu sei que não sei lá muita coisa sobre música, mas posso aprender! Por favor! Eu

quero ser bardo! Já que não consigo ser um guerreiro que preste, então vou tentar ser um bardo que preste. Vamos! Diga que vai me ensinar! Por favor!

O ferreiro olhou para os dois jovens anões, incapaz de compreender aquela cena. Jak olhou para o pai com a expressão mais cínica e provocativa que seu rosto podia esboçar. Ao passo que o velho anão disse:

– Espere, jovem Rumnahein! Você... você sabe o que está fazendo?! O que sabe sobre o meu filho?! Ulfgar hesitou. Olhou para Kario. Olhou para Jak e depois voltou a olhar para Kario. – Ele tem uma mancha vermelha no cabelo e vai me ensinar a ser bardo. – Não, isso não pode ser! – o ferreiro estava irredutivelmente inconformado. – O clã dos Rumnahein é uma nobre

linhagem de aventureiros! Você não pode ser bardo!!! – Ei, pai! – exclamou Jak. – Bardos também são aventureiros, sabia? E esse aqui... – o anão agarrou o ombro de Ulfgar

com força. – ...e este aqui vai ser o meu pupilo! Não era isso que você queria? Que eu tivesse um nome? Que eu fizesse parte deste panteão de anões de renome? Pois bem! Vou ficar conhecido como o sujeito que ensinou música para um membro do clã dos Rumnahein! Satisfeito agora?

Sorrindo, os dois jovens anões saíram da casa e foram se afastando. Kario, no entanto, continuava perplexo. Tão perplexo que ele não sairia do lugar pelos próximos quarenta minutos.

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Prete caminhava com passos pesados pelos corredores de Morintha. Embora tentasse disfarçar, ele estava feliz. Feliz

porque pressentia que sua ascensão à chefia da confraria dos guerreiros seria mais rápida do que ele esperava. O guerreiro só estava pensando numa maneira de estrear em grande estilo.

Atrás dele, vinham Miranda, Aramil e Joshua. Os três conversavam baixinho na língua humana. – Ele não vai querer vir conosco. – disse o ladrão. – É óbvio que não. – Precisamos convencê-lo. – disse Joshua. – Um aliado poderoso vai ser muito bom. – Eu não vou convencer esse sujeito de nada! – disse Miranda. – Principalmente porque não gosto dele. – E nós não podemos ter alguém de quem não gostamos convivendo conosco no mesmo grupo, certo? – disse o ladrão,

jogando a cabeça para o lado. – Joshua, você está fora! – Cale a boca, Aramil! Ou é você quem vai estar fora! Miranda já estava ficando irritada com aquelas briguinhas. Exclamou bem alto: – Calem-se os dois ou ambos vão estar fora! Ou melhor... eu vou estar fora!!! E a guerreira saiu à passos largos na frente dos dois aventureiros. Estes ficaram mudos. Mas Aramil não ficou nesta

condição por muito tempo. Sussurrando no ouvido do mago, disse: – Deve ser difícil para uma mãe ficar longe de um dos “filhos”. – Por que disse essa palavra no plural? Eu não sou filho dela! Não sou mais filho de ninguém! – Ah! Você é o nosso maninho mais novo! – o ladrão colocou as mãos no ombro do mago. – Apesar de estar fora do

grupo, Ulfgar já está bem encaminhado para a vida adulta. Até sai com garotas! Mas agora é com você que teremos um longo e difícil trabalho! Hehehe!

– Cale a boca! – exclamou o mago, tirando as mãos do elfo-das-areias dos seus ombros. Mas apesar daquela pose confiante, Joshua realmente iria atrás de Aramil à procura de garotas. Podemos vê-los três meses no futuro, no momento em que o ladrão acaba de perder uma garota, que sai do quarto quase vomitando depois de confundir a mancha roxa da bunda dele com sujeira escatológica.

No quarto ao lado, o mago estava no começo das preliminares, bebendo litros e litros de cerveja para tentar impressionar uma garota. No entanto, antes de começarem a trocar uns beijos, o mago já fica bêbado e irrita-se com alguma coisa, ficando violento. A moça sai do quarto e bate na porta de Aramil, assustada. Joshua vai atrás dela, dando passos tortos pelo corredor. Ao ver aquela cena, o ladrão nem pensa duas vezes antes de dizer: “Está com medo deste ébrio retardado? Você poderia derrubá-lo suspendendo a saia!”. Segundos depois, os dois já estavam se engalfinhando aos tabefes. Aproveitando a distração, a garota foge do lugar e jura à si mesma que nunca mais vai se meter com aventureiros malucos.

De volta à nossa história, podemos ver os quatro aventureiros chegando na confraria dos guerreiros. Prete ordenou que eles esperassem do lado de fora, pois iria discutir com Seward. E como tinha medo de perder num conflito de argumentos, como da última vez, se encarregou de que pelo menos não houvesse platéia.

Assim que entrou, imaginou que encontraria o chefe da confraria amuado, como ele sempre estava. Mas não. Assim que abriu a porta, escutou uma música alegre sendo tocada. Sentados em cima da mesa, estavam Seward e seu pai, cantando.

Prete levou um susto. Logo, Seward se virou. – Oh, olá! Ei, pai! – disse ele, descendo da mesa. – Este é Prete Brest, o vice-líder da confraria dos guerreiros. – Muito prazer, rapaz! – disse Dhor, aproximando-se para cumprimentar o jovem guerreiro. Mas quando percebeu que ele

não estenderia a mão ficou um pouco sem graça. – Hã... eu já vou indo. Seward. – disse o velho anão. – Preciso me preparar para voltar às minhas viagens. Até de noite. – Até, pai. – disse o rapaz, e depois virou-se para seu companheiro. – Bem... vai pegar uma missão? – Heh... vice-líder... – começou Prete, de maneira grave. Dava para sentir as faíscas do seu orgulho crepitando. A sala

ficou até mais quente com a presença dele. – Sim, é isso o que eu sou! Vice-líder! Preterido do meu cargo de direito! Trocado por um sujeito que... que... fica tocando alaúde?!

O guerreiro empunhou seu machado e foi golpear Seward, na intenção de destruir o seu instrumento. O jovem guerreiro ergueu o alaúde e a lâmina foi detida pela parte traseira da peça, que era feita de aço. Prete não deixou de ficar surpreso. Pensou que com um golpe poderia estraçalhar o instrumento.

– Mas o quê...?! – exclamou Prete. – “Mas o quê” digo eu! – exclamou Seward, bravo. Alias, bastante bravo, como pouquíssimas vezes já esteve. Com um

chute, ele empurrou o adversário e o derrubou no chão. – Que idéia foi essa, Prete?!? – Seu verme! Como ousa botar o pé em mim?! – rosnou o guerreiro, levantando-se mais que depressa. – Então o verso

desta porcaria é feito de aço? Hah! Realmente eu não esperava, mas não é nada que eu não possa destruir! – e empunhou seu machado de novo. – Eu tenho a força para estraçalhar as armaduras mais resistentes! Você não pode me deter!!!

Com um ataque de carga, o guerreiro avançou. Seward deu um passo para o lado e desviou do ataque. O machado de Prete ficou cravado no ladrilho. Com um golpe com o cabo do seu machado-alaúde, o jovem chefe da confraria acertou o inimigo na têmpora e o derrubou de novo. Um esguicho de sangue escorreu pelo rosto do anão. Este acabou soltando as mãos da sua arma, que continuou enterrada no chão.

– Não se vanglorie tanto! – exclamou Seward. – É verdade que você é famoso pela sua força e pela sua capacidade de destruição. Mas você só tem esse poder de estraçalhar as armaduras mais resistentes graças ao machado que você porta! – e o rapaz o arrancou do ladrilho. Numa inscrição no cabo da arma, havia a assinatura da família Kherouakr. Seward o jogou de volta para Prete. – Mas o meu machado-alaúde também foi feito por um Kherouakr! – o rapaz colocou a proteção de metal sobre as cordas e puxou a alavanca, exibindo a lâmina retrátil. – Não é tão resistente ou robusto como esse seu machado, mas é bom o suficiente!

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– O suficiente para quê?! Para me derrotar?! – Prete passou a mão no ferimento da têmpora e limpou o sangue. Agarrou

no cabo do seu machado com força. Estava mais furioso do que nunca. – Hah! Nem se você tivesse cem anos!!! E os dois se atracaram. O guerreiro invejoso estava no auge da sua raiva, e lutava da maneira que sabia fazer melhor. Com

golpes fortes e vigorosos. Porém, um tanto lentos para maximizar melhor a força bruta. Seward tinha ciência que não podia vencer Prete pela força, principalmente porque seu machado-alaúde era indiscutivelmente mais frágil que o machado de batalha do inimigo. Mas não tinha problema, pois este nunca fora o estilo de luta de Seward. Ele sempre foi um guerreiro que lutava com inteligência, estudando o inimigo e contra-atacando nos seus pontos fracos. Foi por isso que o chefe da confraria o escolheu.

O grande ponto fraco de Prete era o mais escancarado de todos. Seu excesso de força bruta. Isso diminuía consideravelmente a sua mira, que só contribuía para causar danos ao chão e às paredes da confraria. Além de abrir várias brechas para golpes rápidos. Mas Seward não tinha a intenção de ferir seu colega. Só queria por um fim naquela luta, e já sabia como.

Com um golpe dado com o cabo do machado-alaúde, o guerreiro atingiu a parte de trás dos joelhos de Prete e o fez cair no chão pela terceira vez. E com um movimento rápido, encostou a lâmina afiada no pescoço do adversário. Tão repentinamente como havia começado, a luta tinha acabado.

– Você quer ser o chefe da confraria? – disse Seward, encarando o olhar furioso e frustrado do seu inimigo. – Pois então seja, Prete! Eu te declaro o novo chefe da confraria! Pronto! Faça bom proveito!

Ouvindo a confusão, Miranda, Joshua e Aramil entraram na confraria. Nenhum deles disse nada, exceto por uma interjeição conjunta de susto.

Seward ficou um pouco surpreso em ver humanos por ali, mas não deu a importância merecida ao fato. – Boa tarde. – disse ele. – São aventureiros, certo? Se desejarem pegar uma missão, por favor, falem com o mais novo

chefe da confraria. Eu estou abrindo mão do meu cargo. – e passou pela porta, um tanto tristonho e um tanto aliviado. E logo sumiu pelos corredores.

– Novo chefe? – estranhou Miranda. – Mas você já não era o chefe desta confraria? Humilhado e sem dizer uma só palavra, Prete levantou do chão. Pegou seu machado e, com uma grande demonstração de

força, golpeou a parede. O impacto foi tão forte que um dos blocos quase se vaporizou, e causou alguns danos no machado. Nem mesmo uma peça feita por um Kherouakr podia resistir à uma patada daquelas. Ainda sem dizer uma palavra, o guerreiro foi para a sua sala, batendo a porta, como sempre.

– O que foi isso?! – perguntou Joshua, para o nada. – E quem era aquele cara? – disse Aramil, virando o pescoço em direção aos corredores. – Ele derrotou o nosso anão

invencível! Quase cortou o pescoço dele! – Hah! Esse lugar está me fazendo mal. – disse Miranda, dirigindo-se para a saída. – Vamos embora. – Espere! Precisamos pegar uma missão! Esqueceu-se que precisamos de dinheiro? – Joshua correu os olhos pelo quadro

de avisos, que estava desnivelado por causa da briga, e pegou a missão com a remuneração mais alta. – Esta parece boa. Vamos ver... hmmm... golens? Golens descontrolados numa construção não muito longe daqui. Ora! A recompensa é mesmo alta! Vamos pegar essa missão!

– Só nós? – perguntou Aramil. – Vamos resolver uma missão em trio? E não devíamos falar com o chefe... o novo chefe da confraria antes?

– Bah, ele deve estar muito deprimido agora. – disse o mago, olhando em direção à sala onde Prete se refugiou. – Acho que realmente o superestimei. Além disso, pelo jeito nosso grupo vai ser um trio mesmo daqui para frente.

Dito isso, Joshua e Aramil saíram da confraria. Miranda foi atrás. Que remédio?

Ainda era um pouco cedo para a Hadra começar a lotar. Sentados no palco, olhando para uma platéia quase vazia, Jak ensinava Ulfgar a tocar alaúde. Cada um estava com um instrumento na mão.

– Certo, agora tente fazer este acorde. – dizia o bardo, enquanto demonstrava a posição dos dedos. Ulfgar tentou imitar e depois dedilhou as cordas. O som não saiu igual ao que Jak produziu.

– Droga! – reclamou Ulfgar. – Não está dando certo. – Calma aí, cara! – disse o bardo, com um sorriso. – Esta é só sua primeira aula. E até que você está indo bem. – o bardo

mudou a posição dos dedos. – Ainda falta muito para você virar um bardo. – Sei. Mas quanto tempo vai levar até eu ser capaz de tocar aquelas músicas mágicas? Você sabe, aquelas que inspiram

coragem em aventureiros e coisas assim. – Tsk! Você está realmente com pressa, heim? Tentando recuperar o tempo perdido? – Isso! Eu perdi tempo demais fazendo algo que eu não sabia fazer. – Ulfgar segurou o alaúde com mais força. – Agora eu

quero ser um bardo! E daqueles bardos bem “bardos” mesmo, sabe? Que derrotam os inimigos com uma só música e ainda conquistam todas as garotas!

– Conquistar garotas, eh? Então o teu próximo desafio vai ser brigar com o espelho. – disse Jak, rindo. – Quem demônios aparou a sua barba?

– Ah tá... – Ulfgar afagou o queixo. – Fui eu mesmo. Eu queria deixar ela crescer, mas... – Pois eu acho que você fica lindo de qualquer jeito! Ulfgar estranhou o tom de voz andrógino que ecoou em seus ouvido. Virou a cabeça e deu de cara com Arren. Pode-se

dizer que não foi uma das sensações mais agradáveis que o filho de Dhungar Rumnahein já sentiu na vida.

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SEWARD E PRETE LUTAM

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– Não espante a clientela, Arren! – disse Jak, rindo ainda mais. – Ah! Acho que ainda não apresentei vocês. Ulfgar, este é

Arren Grinsbergar. Um dos caras da minha banda, e mixê nas horas vagas. – Você está me constrangendo, amigo! – Arren levou a mão à boca, fingindo estar com vergonha. – Ah, e desculpe o

excesso de intimidade. – Hãããã... – Ulfgar queria dizer “tudo bem”, mas o problema é que NÃO estava tudo bem! – Ok! Hummm, podemos

voltar à aula, Jak? Logo foi a vez de Char chegar. Ele estava radiante, como sempre. – E aí, Jak? Arren, tudo bem? Oh, mas é o nosso novo amigo Ulfgar! – Heim? Você me conhece? – Haha! Jak falou muito de você ontem à noite, embora não tivéssemos tido tempo para conversar. Alias, meu nome é

Char. – ele estendeu a mão e cumprimentou o aventureiro. – Também faço parte da banda! Como está, cara? Aprendendo a tocar também?

– Sim! Jak está me ensinando! – disse o anão, com o entusiasmo de uma criança. – Veja! Já aprendi a tocar uma música! – e logo ele subiu ao palco e começou a tocar.

Dedilhou as primeiras notas, mas acabou errando. Tentou consertar, mas o ritmo já tinha sido quebrado. – Um dica importante. – avisou Jak. – Se você errar uma nota, não tente consertar. Deixe. Entre com a nota certa depois

no ritmo certo. – Ah, está bem. – disse Ulfgar, recomeçando a música. Era uma composição simples, com acordes simples e sem letra.

Feita justamente para os novatos começarem a dedilhar seus alaúdes. Porém, o anão estava com vontade de cantar, e por isso começou a entoar uma letra genérica:

– Lá, lá, lá! – empolgado, começou a andar pelo palco. Mas calculou mal a extensão do tablado e acabou pisando em falso, rolando para fora da plataforma. Tomou um chão e tanto.

– HAHAHAHAHAHA!!!! – gargalharam todos, ao que Jak emendou. – O palco era pouco para tanto talento! Hahaha! – Ooooooh! Droga! – exclamou o anão, em tom choroso. – Será que nem como bardo eu vou conseguir fazer as coisas

direito?! Ah! E falando nisso... parem de rir!!! Mas era um pouco difícil parar, ainda mais quando o alvo das risadas exige respeito. Murmurando risos um pouco mais

contidas na entrada da taverna, estava um rapaz que havia acabado de chegar. Os membros da banda olharam para trás e exclamaram.

– Seward! – Olá, rapazes! – disse o guerreiro, que agora estava bem mais radiante do que no momento em que saíra da confraria. –

Ah, olá para você, Ulfgar. – ele estendeu a mão e o ajudou a se levantar. – Obrigado pelo espetáculo! – Hm? Oh, de nada! – disse o anão, que agora tinha recuperado o ânimo. – Eu sou bardo, e bardos dão espetáculos! – Você parece bem mais animado! – disse Jak, colocando o braço no ombro do amigo. – Aconteceu algo? – Sim, aconteceu. Meu pai esteve lá na confraria e conversou comigo. – Seward fez uma pausa e respirou fundo para dizer

a próxima frase. – E ele aceitou, Jak! Aceitou que eu largasse a confraria e me tornasse um bardo! – Que demais! – disse Arren. – Meu tio mal aceita as minha opções amorosas, e menos ainda eu ser bardo. – Meus pais também! – disse Char. – Eles não entendem que a vadiagem é uma forma de arte. – Que inveja eu tenho de você, Seward! – disse Jak, dando tampinhas nas costas do amigo. – Mas fico feliz por você.

Venha! Vamos ensaiar para a apresentação desta noite. Venha também, Ulfgar! – Oba! – animou-se o aventureiro. – Já vou poder participar da banda? – Ainda não, mas quem sabe? – comentou Jak. – Por enquanto, pode se limitar a nos alegrar com o seu belo rosto! – disse Arren. – Alegrar você! – disse Char, rindo. – Ele é meio barbudo demais para o meu gosto! Os quatro bardos riram. Ulfgar ficou meio encabulado, mas resolveu ir com eles. Apesar das chacotas, estava gostando

daquilo. Alias, era a primeira vez que alguém fazia chacota dele e ele gostava. Realmente, parecia ter entrado no rumo certo.

Em Ardehennas, magos costumam ser raros. Entre os anões, é mais comum encontrar alquimistas ou artífices, mas magos que usam magia para lutar é bem difícil.

Pois, como já foi explicado anteriormente, anões gostam de lutar com machados, e preferem confiar na força bruta na hora dos embates. A maioria deles nunca confiou muito na magia.

Porém, uma profissão de mago que tem se tornado muito popular entre os anões é a de Escultor Arcano. Um mago especialista em magias da Terra que fabrica golens, gremelins, gárgulas e colossos. Principalmente golens. Pois tais criaturas são excelentes na hora de realizarem serviços extremamente pesados nas minas, ou mesmo para adentrarem nas áreas mais perigosas, com constante risco de desabamento.

Mas a criação de golens é sempre algo perigoso. O mago precisa ter total controle sobre a criatura, ou ela se volta contra você com imensa facilidade. Também não é aconselhável um mago criar mais do que três ou quatro golens de uma vez, pois vai ficando cada vez mais difícil de controlá-los. Foi exatamente este erro que um infeliz anão mago cometeu há alguns meses.

Querendo criar um exército de golens, acabou perdendo o controle na sua décima criação. Todos os golens, de uma vez só, foram para cima do mago, que nem teve chance de se defender. As criaturas só não saíram por aí, arrasando tudo, porque os muros

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da residência do mago os impediram. Mas a cada dia era possível ver mais rachaduras nas grossas muralhas, e mais guerreiros eram chamados para resolver o problema.

Sabe-se que, até agora, três grupos de anões tentaram concluir a missão. Mas tudo o que conseguiram foi diminuir o número de golens para seis – antes de serem mortos ou fugirem desesperados. O próprio Seward estava interessado em pegar esta missão, mas sabia que o único companheiro na confraria que poderia efetivamente ajuda-lo seria Prete. E ele nunca se sentiu bem realizando missões com ele. Por isso, o tempo foi passando. E cada vez que alguém olhava para os muros e percebia as rachaduras aumentando ainda mais, a recompensa também aumentava na mesma proporção.

E agora o quarto grupo, que não era de anões, iria tentar resolver aquele assunto. Miranda, Joshua e Aramil estavam diante dos grandes muros rachados da construção. Sem que ninguém precisasse

mandar, o ladrão pegou uma corda com gancho e a lançou. Puxou-a para ver se estava bem firme e começou a subir. – Vamos! – disse ele. – As rachaduras vão facilitar o apoio para os pés. Um por um, eles foram subindo. Chegando no alto do muro, puderam ver. Os golens. Grandes estaturas de pedra na forma

de anões de quase dois metros. Seus olhos brilhavam com a energia do Mana que estava conservada em seu cerne, dando-lhes a mobilidade.

Existem dois tipos de golens. Os que ficam a maior parte do tempo parados, com os olhos apagados, esperando uma ordem do criador ou estímulo externo. São aquelas famosas estátuas que parecem inofensivas para a maioria dos aventureiros, mas, quando eles adentram num recinto proibido, começam a atacá-los.

O outro tipo é o golem que se move constantemente e, por isso, fica sempre com os olhos acesos. Porém, precisa repousar durante uma hora de tempos em tempos para recuperar a energia gasta. Os golens que nosso três aventureiros iam enfrentar pareciam ser deste tipo. E também pareciam estar na hora do repouso.

– Não estão se movendo. – disse Miranda, observando as grandes estátuas imóveis. – Talvez estejam recuperando a energia gasta. É a nossa chance!

– Um momento. – disse Aramil. – Como nós vamos destruir esse monte de pedras? Só se nós três portássemos machados também! Pois não creio que minhas flechas vão ajudar.

– Droga! – resmungou Joshua. – Agora é que íamos precisar daquele anão! – Não fiquem tão preocupados. – disse Miranda. – Temos que nos concentrar no ponto fraco dos golens, que é justamente

onde se concentra a sua energia. – ela apontou para as criaturas. – Vamos mirar nas cabeças. Joshua, use as suas magias para tentar ao menos causar rachaduras nas cabeças dos golens. Aramil, não desperdice as suas flechas, use este seu arco robusto para acertar a cabeça dos golens quando estas já estiverem rachadas. Com o núcleo de energia exposto, é só eu destruí-los com a minha espada. Vamos ir destruindo eles assim, um por vez.

– Oh, você parece saber de tudo sobre combates contra golens, não? – Eu tenho que saber, afinal já fui uma Paladina Vermelha. – sorriu Miranda. Enquanto o grupo descia lentamente pelo muro, puderam perceber que os golens realmente deviam estar fazendo uma

pausa. Nenhum deles movia-se um centímetro. Apenas a luz dos seus olhos aumentava e diminuía sutilmente de vez em quando. Joshua foi fazer sua parte. Preparou uma magia e a lançou na cabeça de um dos golens. Houve uma rachadura. A luz dos

olhos do golem que foi atingido aumentaram repentinamente. E a dos outros cinco também. Aramil e o mago levaram um pequeno susto, mas Miranda os tranqüilizou.

– Não se preocupem! – disse ela. – Eles não recuperaram toda a energia e por isso estão lentos e fracos. Apenas continuem com o plano. Aramil!

Foi a vez do elfo-das-areias se mexer. Um pouco receoso, ele se aproximou do golem da cabeça rachada e o golpeou com o arco robusto. Pequenas partículas de pedra caíram, aumentando um pouco mais a rachadura. Com sua agilidade, conseguiu escapar fácil do golpe do golem lento. Segundos depois, foi a vez de Miranda usar sua espada. E com um golpe ela rachou a cabeça do golem.

– Ali! – disse ela, vendo um pequeno cristal brilhante incrustado no interior do pescoço do golem. – Este aqui já era... Mas antes de terminar a frase, os outros cinco golens a atacaram. Rapidamente, ela se esquivou dos pesados golpes de

quatro deles, mas um conseguiu atingi-la no abdômen. Foi como tomar uma pedrada violenta no estômago. Ela perdeu o equilíbrio e caiu.

– Miranda? – o ladrão se virou instintivamente para ajudá-la, mas percebeu que tinha seus próprios problemas. Três golens foram para cima dele. Enquanto os outros dois, mais o golem da cabeça quebrada, foram para cima de Joshua.

– Destrua o cristal, Joshua! – exclamou Miranda, afagando a barriga. – Não perca tempo tentando destruir os golens que ainda estão inteiros. Destrua o cristal!

Com sua magia, o mago acertou o cristal do golem. Isso afetou a criatura de alguma forma, pois pedaços do seu corpo começaram a se quebrar, mas o monstro ainda estava ativo. Embora lentos, era difícil escapar do golpe de três criaturas ao mesmo tempo, e Joshua recebeu um murro nas costas, e foi deslizando pelo chão até bater a cabeça na ossada de algum anão desafortunado que também tentou lutar contra as criaturas. Nisso, o golem danificado foi para cima de Joshua, com passos lentos, mas suficientes para alcançar um mago zonzo. Quando ia desferir mais um golpe, uma espada se cravou no cristal e o destruiu por completo. A criatura se desfez numa pilha de pedregulhos.

– Cuidado! – Miranda puxou Joshua pelo braço e o fez escapar do golpe dos outros dois golens. Enquanto isso, Aramil usava a sua habilidade felina para escapar dos ataques dos outros três monstros. No desespero,

tentou usar suas flechas, mas elas não estavam funcionando. O único jeito de causar algum dano nas criaturas era usar a força do

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seu arco robusto para acertar-lhes a cabeça. Mas para fazer isso, era preciso que ele se aproximasse dos golens, justamente o que o ladrão considerava como uma péssima idéia.

“Talvez se eu...” pensou Aramil, reunindo toda a coragem que conseguia. “Sim!”. Então ele saltou sobre uma das criaturas. Ficou bem acima de sua cabeça. E usando o arco, golpeou-a. Quando o golem lento começou a erguer os braços para pegá-lo, Aramil já havia pulado para os ombros de outra criatura, e a golpeado na cabeça. Uma boa estratégia, assim poderia golpear as cabeças dos monstros de uma forma mais segura. – É isso! – exclamou ele. – Vou acabar com vocês três de uma vez!

Neste momento, Miranda e Joshua lutavam contra os outros dois golens. No entanto, ambos concentravam seus ataques em apenas um. Era melhor seguir o esquema de ir destruindo um de cada vez. Depois de ganharem mais alguns hematomas, conseguiram fazer o segundo golem virar pedregulho, enquanto escapavam dos ataques do terceiro. Correndo para longe do inimigo, à fim de recuperar o fôlego, Joshua olhou de soslaio para o que Aramil estava fazendo e chamou Miranda.

– Ei! – disse ele. – Elfos-das-areias sabem voar? – O quê? – exclamou a guerreira, meio confusa. – É claro que não! – Mesmo assim, acho que Aramil vai tentar. No pula-pula entre os ombros dos golens, um deles finalmente conseguiu agarrar o ladrão pela perna. E agora o estava

girando no ar como um coelho de pelúcia. – AAAAHHHHH!!! – gritava Aramil, embora soubesse que aquilo não iria ajudá-lo muito. Finalmente, o golem o soltou. O elfo-das-areias foi voando até o muro e bateu contra ele. Houve um barulho tão forte que

Miranda pensou que o ladrão tivesse quebrado todos os ossos. – Aramil!!! – gritou ela, e foi em socorro do seu companheiro. – Urrrgh! – a pancada fora feia, mas o ladrão ainda estava consciente. – Mir... Miranda... – murmurou ele. – Eu consegui...

rachar a cabeça... de dois deles... – Muito bom, Aramil! – disse ela, pegando um frasco de poção de cura e fazendo-o beber. – Agora descanse um pouco.

Eu e Joshua vamos acabar com estes... Houve outro barulho forte, semelhante ao que foi produzido quando Aramil foi lançado contra o muro. Mas na verdade,

aquele barulho não foi do impacto do ladrão contra a pedra, mas sim do impacto de um objeto de aço contra a parede. Quem estava fazendo aquilo?

Um terceiro golpe, e desta vez o muro começou a tremer. A atenção dos golens foi desviada dos aventureiros para o ponto da onde o barulho estava surgindo. Alguém do lado de fora estava tentando destruir o muro?

– O que é isto?! – Joshua foi até o local onde o muro estava tremendo. – Quem está aí? Um quarto golpe e um bom pedaço do muro veio abaixo. E por detrás da poeira, surgiu um anão muito indignado. – Malditos humanos!!! Era Prete. E ele não estava no seu melhor dia. – Já não basta os outros... – continuou ele. – O maldito Seward...!!! vocês também vão me desacatar?!? Pegaram uma

missão da confraria sem a minha permissão! Vão pagar por isso!!! Joshua estava bem na frente dele, e por isso se tornou o primeiro alvo. Antes que o mago pudesse fazer qualquer coisa, a

lâmina pesada tirou sangue dele. – NÃO! – gritou Miranda. Joshua deu um pertinente passo para trás e evitou que o machado atingisse em cheio a sua cabeça. Porém, esteve longe de

escapar ileso. A lâmina fez um corte largo e profundo em seu rosto, na diagonal e bem em cima do nariz. Um esguicho de sangue vermelho saiu do ferimento. Parecia que seu crânio tinha sido rachado.

– GAAAAAAHHHH!!! – o mago exclamou, levanto instintivamente a mão ao rosto. Ele ainda estava gritando, quando Prete falou:

– Hah! Assim vocês vão aprender a me respeitar, humanos!!! Todos vão me respeitar daqui para a frente!!! O anão ergueu seu machado novamente, disposto a aproveitar o embalo e só fazer mais um cortezinho no mago, mesmo

pequeno. Mas hesitou um segundo. Joshua ergueu o rosto cheio de sangue vermelho vivo. E seus olhos... seus olhos também pareciam da cor vermelho vivo!

– GROAAAAARRR!!! – rosnou, literalmente. O grito não era humano, parecia o de uma fera selvagem. Foi exatamente isso que Prete pensou quando o mago pulou sobre ele.

– Mas o quê...?!? AAAHHHH!!! – exclamou o guerreiro. Joshua foi para cima dele, e o socava como uma criança irritada, mas com muito mais força.

O anão tentava se defender, mas um dos socos lhe acertou em cheio o nariz. Foi a vez de Prete perder um pouco de sangue.

– Descontrolou! – exclamou Aramil, que já havia tomado a poção de cura e recuperado o fôlego. – Joshua está descontrolado!

O anão percebeu isso, mas não sabia muito o que fazer. Tentava preparar um contra-golpe, mas no meio de sua fúria, o mago estava muito mais ágil. E mais forte. Joshua deu uma cabeçada no ombro de Prete, que o fez soltar o machado. O guerreiro respondeu com um soco na boca do estômago do mago, que o fez curvar. Aproveitando a cabeça abaixada do adversário, o anão socou o canto esquerdo do rosto do adversário e o fez cair.

– Uf., uf! Khazahd!!! – exclamou o anão, entoando o nome da divindade da guerra dos anões. Julgando que a luta tinha terminado, ele afrouxou a postura. – O que foi isso...?!?

Mas Joshua se levantou. E com cara de nenhum amigo, avançou novamente.

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ARAMIL CONTRA OS GOLENS DE PEDRA

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– Deuses! – exclamou Miranda, embora com menos emoção do que se podia esperar. – O nosso pequeno mago Berserkr

perdeu a cabeça outra vez. – Vamos esperar que não perca a cabeça literalmente! – disse Aramil. – Ah, e por falar nisso, não vai separá-los? – Já, já eu separo. – disse a guerreira, cruzando os braços e esboçando um sorriso. – Já, já eu separo. O mago continuou atacando o anão. Mas desta vez o guerreiro conseguiu agarrar os braços do mago antes que ele voltasse

a desferir socos. E começou a torcê-los. – Já chega, humano! Se voltar a colocar estas mãos imundas em mim eu...! Bem no momento em que disse a palavra “eu”, Prete sentiu quatro dentes incisivos, dois caninos e quatro molares

prensarem a sua orelha esquerda. – ARRRRRGHHH!!! – gritou, atônito. Prete dava murros na cabeça do mago na tentativa de fazê-lo largar sua orelha, igual ao que se faz quando um cachorro

morde alguém e não quer soltar. Mas naquela posição estava difícil dos socos saírem com muita força. Finalmente, o mago se afastou do anão, mas com um pedaço da orelha em sua boca.

– AAARGH! Seu... seu!!! – exclamava o guerreiro, tentando estancar o sangue que saía pulsante, como se Joshua tivesse rasgado uma veia arterial. O anão parou um instante e olhou para o mago, com o rosto e a boca cheia de sangue, a espera dele cuspir sua orelha. Mas Joshua não cuspiu, ele a engoliu!

– GRAAAAAHHH!!! – e mais uma vez o mago foi para cima do anão. Desta vez, Prete sentiu medo. Medo! Fazia muito tempo que ele não sentia aquele tipo de coisa. Aquele humano... aquele

humano louco provocava medo nele?! Mais por orgulho do que por coragem, o anão conseguiu recuperar a consciência a tempo de aplicar um gancho de direita no queixo do mago, e depois pular sobre seu estômago com os pés. Joshua tentou gritar, mas o ar lhe faltou. Mesmo assim, ele ainda teve energia para agarrar o pé do anão e torcê-lo. Porém, quando ia pular sobre o guerreiro de novo, este lhe desferiu mais um soco, que abriu ainda mais o ferimento na sua testa.

– Alguém segure esse animal raivoso!!! – exclamou Prete, no idioma anão. Enquanto segurava a orelha (ou melhor, o que restou dela) que não parava de sangrar. Joshua não entendeu o que ele disse, mas Miranda sim.

– Chega, Joshua! Já chega! – exclamava a guerreira, que agarrou o mago por trás. Foi um choque para o mago, que começou a tentar se desvencilhar. Mas mesmo naquele estado de fúria, ele ainda não

tinha forças para se soltar de um agarrão de Miranda. – Calma, calminha! – dizia Aramil, gesticulando para que Joshua se acalmasse. – Você não pode morder as pessoas assim!

Isso é muito... – o ladrão fez uma pausa, enquanto o mago gritava um pouco. – Joshua! – disse ele, desta vez de maneira mais autoritária e com o dedo em riste. – Ai, ai, ai! Pare com isso! Seja bonzinho, ou eu...!

– Alguém joga um osso para este mago!!! – exclamou Prete, levantando-se. – Tem um demônio incorporado nele! – Não, não é isso. – disse Miranda, já sentindo que o frenesi do mago estava passando. Ela o soltou, e Joshua caiu de

joelhos no chão, exausto pelo esforço. – Ele é um Berserkr. Desculpe, esquecemos de lhe avisar. Ele é um Berserkr e fica tomado por uma fúria incontrolável quando se irrita pra valer.

– Mas um bom guerreiro saberia como colocar um bicho desses para dormir! – provocou o ladrão. – Não é, senhor “destruo-muros-com-um-espirro”?

Fungando de raiva, Prete soltou um resmungo alto. Sua vontade era a de pegar o machado e rachar a cabeça daqueles dois, e principalmente do mago que arrancou um pedaço da sua orelha. Mas ele se limitou a rasgar um pedaço da roupa e enfaixar a cabeça.

– Ainda não terminou, humanos malditos! Roubar uma missão da confraria sem autorização é uma falta grave! Vocês não perdem por esperar! – e dito isso, foi-se embora.

Houve um breve silêncio, enquanto os personagens tentavam colocar a cabeça no lugar. Miranda finalmente estava feliz. Aquele anão teve o que mereceu. Aramil estava impassível, acariciando algumas partes do seu corpo, que ainda doíam depois do encontrão com o muro. Foi depois de alguns segundos que os dois se lembraram.

– Os golens! – exclamou o ladrão, olhando em volta. – Onde estão os golens? – Essa não! – Miranda olhou para o buraco que Prete tinha feito no muro e as pesadas pegadas da criatura indo em direção

aos corredores. – Eles escaparam!

Perto da Hadra, era possível ouvir a cantoria dos bardos. Desta vez era Char quem estava cantando. E apenas Seward e Arren estavam tocando. Jak resolveu descansar um pouco

os dedos, enquanto fumava um cachimbo. Ulfgar estava ao lado dele, curtindo o som. Os dois estavam atrás do palco, observando os amigos.

Jak estava feliz. Feliz em ver Seward tão enturmado com a banda. Feliz em ver que o amigo finalmente admitiu que ser bardo era melhor do que ficar cortando cabeças por aí. Nada iria estragar aquela noite. Nada!

Neste momento, ouvindo a música ao longe, estava Kario. Ele caminhava pelos corredores, pensando na conversa final que teria com seu filho. E desta vez seria a conversa final

mesmo! “Ele quer mesmo ser bardo, não é?” pensava o ferreiro. “Quer mesmo levar outros jovens para este mal caminho, como o

filho do Rumnahein e do meu amigo Dhor! Muito bem, que seja assim. Mas ele fará isso sem usar o nome do nosso clã. Já chega

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de humilhações! Eu e os irmãos deles temos um nome a zelar. Um nome que todos os nossos antepassados zelaram! Hah! Bardos! Vadios inúteis!” Como podem ver, mudar a opinião de um anão de 170 anos era tão difícil quanto desentortar uma barra de ferro na base do murro.

E por falar em coisas difíceis de entortar, Kario parou no meio do corredor, pois estava ouvindo um barulho estranho. Alias, não apenas ouvindo, mas ele estava sentindo alguma coisa estranha. Era como se o chão abaixo de seus pés estivesse tremendo. Assim que o ferreiro virou a cabeça para descobrir o que era, não teve uma visão muito animadora.

Uma coisa que todos os aventureiros acabam aprendendo, mesmo que estejam a pouco mais de um ano no ramo, é isto: tavernas são ímãs para problemas. Um local que reúna um monte de gente bêbada portando espadas, machados ou adagas já não é o lugar mais seguro do mundo, mas parece que se estiver acontecendo alguma comoção por perto, esta comoção vai acabar chegando até uma taverna.

A apresentação dos bardos já estava quase terminando. Jak subiu ao palco novamente, e o trio voltou a se tornar quarteto. Ele começou a falar para a platéia:

– Valeu, pessoal, por mais uma ótima noite! Nossa banda, que ainda não tem um nome, acaba de ganhar um! – os outros bardos olharam para Jak com um certo ar de curiosidade. De fato, nunca nenhum deles pensou num nome para a banda. Era apenas “a banda do Jak, Arren e Char”, e agora incluía o Seward. Todos ficaram na expectativa para ouvir o nome.

– Se ninguém tiver nada contra, o nome da nossa banda será Thrasteryhwarf! Para os leitores que não compreendem o idioma anão, “Thrasteryhwarf” é derivada da palavra “Thrastwarf”, que significa,

no idioma anão, “mineiro”, uma das profissões mais tradicionais entre esse povo. Na verdade, essa palavra que o Jak usou para nomear a banda não existe. Ele simplesmente pegou a palavra minerador e jogou o sulfixo “teryh” no meio dela, que é uma palavra que significa “destruidor”. Mas também é usada de forma coloquial pelos anões mais velhos para se referir à jovens rebeldes e encrenqueiros, ou mesmo tipos como o Jak, que adoram criar agitação social. Ou seja, essa palavra inventada deveria significar, literalmente, “Destruidores rebeldes de pedra, tanto física como socialmente falando”. Puxa! Desde quando eu virei professora de gramática anã?

Seja como for, o povo vibrou ao descobrir que aquela banda finalmente tinha um nome. E logo os integrantes da Thrasteryhwarf começaram a se preparar para tocar a última música.

– Atenção, galera! – exclamou Jak, dedilhando o alaúde. – Essa daqui vai ser mesmo de arrasar! Pronto! Um sugestivo gancho narrativo dito por um dos personagens e a mais alta das probabilidades se realiza. Bagunça

na taverna. O barulho alto das portas do estabelecimento indo à baixo, junto com um bom pedaço da parede, deu um susto em todos. E logo, a Hadra recebeu como fregueses daquela noite dois golens descontrolados.

Pânico. As pessoas ficam assustadas (e fazem bem), e se apressam em procurar os lugares que elas consideram mais seguros, como se esconder embaixo da mesa. Embora um golem de pedra pudesse facilmente esmagar uma mesa e o desafortunado escondido embaixo dela com um golpe. Os mais espertos saem correndo. E os três bardos, o guerreiro/bardo e o quase-guerreiro e quase-bardo da nossa história são os últimos a se mexer.

– O quê?!? – Jak toma um susto e ficou sem ação por alguns segundos. O que o faz voltar a si é a voz de um de seus companheiros.

– AAAAHHHHHH!!! – Puta merda! – o bardo afaga a orelha. – Não berra feito uma bicha louca, Arren! – Quem você chamou de louca?!? – reclamou o baterista, que resolveu fazer parte do grupo dos espertos e sair correndo

dali. – Ah, merda! – Char resolveu seguir seu companheiro de banda. – Pára de ficar pensando, Jak! Vamos dar o fora daqui! A essa altura, os dois golens já estavam destruindo a Hadra. Algumas pessoas ainda estavam dentro da taverna, e

descobriram que se esconder embaixo das mesas realmente não foi uma boa idéia. – Essa não! – exclamou Seward, com seu senso de proteção ao mais fraco atiçado. E logo ele armou o seu machado-

alaúde. – Preciso ajudar! – Espera! – exclamou Jak, segurando o amigo pelo ombro. – O que você pensa que vai conseguir fazer?! Esse machado-

alaúde que eu fiz não é tão resistente assim para você sair com ele batendo em pedra! E mesmo se fosse... porra! São golens! Vamos dar o fora daqui!

– Mas alguém precisa fazer alguma coisa! – protestou o guerreiro. A essa altura, o nosso quase-guerreiro e quase-bardo estava agachado, escondido num dos cantos do palco. Não fez e nem

disse nada desde que os golens entraram na taverna. Até a hora em que Seward e Jak lhe lançaram olhares suspeitos. – Quem, eu?!? – exclamou Ulfgar, que estava bem à par da situação. – Ei, amigos! Olá-á! Eu sou o guerreiro-fraco-inútil-

incompetente, lembram? Por isso que eu resolvi ser bardo! Para ficar só tocando músicas sem se meter com briga! – Como é?!? – exclamou Jak, sentindo-se ofendido. Ao fundo, os dois golens destruindo a caverna sob o grito dos

transeuntes. – Então é isso? Você só se juntou à nós porque acha que bardos são uns manés que só sabem ficar tocando música e não sabem lutar?!

– Ué... em todas as tavernas que eu vi a confusão se criar, os bardos eram os primeiros a fugir! – Pois nós bardos sabemos lutar sim! – Então vai lá, amigão! – provocou Ulfgar. – Detona os golens! – Ei! Nós sabemos lutar, mas não somos imbecis! Certo, Seward? Hã? Seward?

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Enquanto os dois discutiam, Seward agia. Ele nunca foi muito de filosofar se era ou não capaz de sobrepor uma ameaça.

Ele simplesmente agia. Com um golpe de machado, ele acertou a cabeça, já rachada, de um dos golens. Este voltou-se para o anão e tentou atingi-lo, mas acabou errando o golpe.

Subindo em cima de uma das mesas, Seward arma um ataque de carga e golpeia o golem novamente, estilhaçando seu crânio feito de partes de calcário e diorito.

– Uau! – exclamou Jak. – E o machado agüentou! Não pensei que tinha ficado tão resistente! – Confie em si mesmo, amigo! – disse Seward, sorrindo para o bardo. – Afinal, você é um Kheroua... Antes que terminasse a frase, o guerreiro foi golpeado pelo segundo golem. Uma patada que o lançou sobre um barril de

cerveja e o arrebentou. Foi um banho que muito bêbado gostaria de tomar. – Seward! – exclamou Jak, indo ajudar o amigo. Mas logo ele se tocou. “Espera! O que eu posso fazer contra um

golem?!”. – AAAAHHHHH!!! Uma bicha louca gritou do lado de fora da taverna. Seward ouviu, mas precisava cuidar daquele golem que estava bem em

cima dele. Jak e Ulfgar saíram da Hadra e foram ver o que estava acontecendo. Mais dois golens. E ao contrário dos que tinham entrado na taverna com a cabeça rachada, aqueles outros dois estavam

interaços. Mas não foi só isso que os dois anões viram. No meio da baderna, eles puderam ver um anão de meia-idade sendo golpeado pelas criaturas.

– PAI!!! – exclamou Jak. E era mesmo seu pai. O ferreiro Kario estava levando pesados golpes das criaturas, e o seu sangue espirrava. A guarda de

Morintha já havia sido chamada para tentar deter as criaturas. Mas tudo o que podiam fazer era apanhar junto com o ferreiro. Os anões tentavam golpear os golens, mas seus machados simplesmente ricocheteavam na pedra. Eles não haviam recebido o treinamento necessário para combater os monstros.

Esquecendo-se, por um momento, que não tinha muitas armas contra um golem, o bardo foi correndo até a confusão na esperança de poder ajudar. – Pai!!!

– Jak, espera! – disse Ulfgar, agarrando o braço do bardo. – Não vá lá! Deixe os guardas cuidarem disso! – É o meu pai, seu idiota!!! – Tá, mas o que você vai fazer? Ainda mais desarmado? – Eu...! – o bardo parou um instante. Enquanto a filosofia dos dois continuava, os guardas iam sendo nocauteados um a um. Kario estava no chão, com o rosto

coberto de sangue, mas ainda consciente. Ele ergueu a cabeça e, com seu único olho aberto, pôde ver seu filho mais novo relutante em se aproximar.

– Ja... Jak... – murmurou ele, com dificuldade. – Não... não ve... venha... corra! O bardo olhou para seu pai, e depois olhou em volta. Os golens estavam derrubando todos à sua frente. Depois lançou um

olhar de vislumbre para a taverna. Naquele exato momento, Seward estava saindo de lá. Aos frangalhos. Lutar sozinho contra dois golens, mesmo já danificados, não foi uma tarefa nem um pouco fácil. Nem mesmo para o chefe da confraria dos guerreiros. Alias, este acabava de cair de joelhos, exausto. Se até seu amigo havia se esgotado lutando contra as criaturas, o que ele poderia fazer?

– Acertem as cabeças!!! – disse uma voz, com sotaque humano. Nesse momento, Aramil, Miranda e Joshua apareceram. Este último sendo carregado pelo elfo-das-areias. – Guardas! – exclamou Miranda. – Não percam tempo tentando acertar o corpo dos golens! Acertem suas cabeças! Tarde demais. Todos já tinham ido para o chão. E com Aramil carregando o mago desacordado nas costas, a única pessoa

que ainda estava de pé para enfrentar as criaturas era a guerreira. – Maldição! – exclamou ela, partindo para o ataque. Mas a guerreira também já estava ferida. E lutar contra aqueles dois golens sozinha não seria muito fácil. – Miranda! – exclamou Ulfgar, quando viu sua companheira em perigo. Naquele instante, dentro dele despertou um senso

de heroísmo. Mas não o senso de ir ajudar o mais fraco, pois ninguém era mais fraco do que ele. De qualquer modo, era algo parecido. Mas desta vez, foi a vez de Jak segurar o seu braço.

– Espera aí! – disse o bardo. – O que você pretende fazer?!? Estamos ambos desarmados! Não foi você quem disse que não temos como enfrentar essas criaturas?

– É... é, foi o que eu disse! Mas quer saber?! – exclamou Ulfgar, soltando o seu braço. – Foda-se!!! Jak arregalou os olhos, abismado com o que o guerreiro incompetente havia dito. Recuperando a calma por alguns

instantes, teve presença de espírito suficiente para murmurar. – Uau! Ele já está agindo como um bardo! Nisso, Miranda já tinha caído de joelhos. Exausta. Um dos golens aproximou-se dela. A guerreira tentou encontrar forçar

para erguer a espada, mas não conseguiu. A criatura ergueu os dois punhos e preparou-se para golpeá-la. – MIRANDA!!! – exclamou Ulfgar. Num salto, ele agarrou a guerreira e a tirou debaixo do golpe fatal do golem. Os dois

derraparam pelo chão. – Ulfgar...! – disse ela, quase sem forças, mas muito feliz. – Da onde... da onde você saiu? – Heh! Meu pai nunca teve coragem de contar! Ele vivia disfarçando com a história da cegonha... Mas a piadinha teria que ficar para depois. Os dois golens estavam voltando-se para os aventureiros. E nenhum deles tinha

senso de humor. Ambos ergueram os punhos, prontos para matar os dois aventureiros. Mas antes que seus pesados braços de pedras abaixassem com tudo, todos ouviram um som estridente.

PLÉÉÉÉÉÉÉIMMMMM!!!

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Nesse instante, as criaturas sofreram uma espécie de solavanco. Pequenas rachaduras se formaram na sua estrutura. Foi

um susto! Os golens pareciam ter sofrido algum tipo de golpe. Quando todos foram procurar com os olhos o que tinha causado aquilo, tiveram uma grande surpresa.

– Lembrei! Lembrei! – exclamou Jak, triunfante. – Obrigado, Ulfgar! Você me fez recuperar a calma para me lembrar disto! – e, querendo demonstrar o que era “isto”, o bardo dedilhou seu alaúde e depois repetiu aquele som estridente.

PLÉÉÉÉÉÉÉIMMMMM!!! A estrutura de pedra dos golens foi abalada novamente. Todos ficaram abismados. Ninguém imaginou que um alaúde

pudesse fazer aquilo que machados não poderiam. Rachar as criaturas. Entre os expectadores mais admirados, estava Kario, que observava tudo com um olho só.

– Jak...?! – murmurou ele, incrédulo. – É isso! – exclamou Ulfgar, animado. – Era isso o que eu tinha dito sobre “coisas de bardo”! Essas músicas mágicas que

servem para detonar os inimigos! É isso o que eu quero ser! E Jak, você vai me ensinar! – Hã... se eu sobreviver, sim! – murmurou o bardo. O truque do som estridente não ia durar para sempre. E realmente não durou. Trincar um pouco o corpo dos golens era

tudo o que Jak podia fazer. Mesmo assim, isso reavivou o ânimo de Miranda. – Urrgh, pode deixar, senhor bardo! – disse a guerreira, levantando-se com dificuldade. – Agora posso cuidar sozinha

desses... desses... – Espere, Miranda! – disse Ulfgar, tomando a espada das mãos dela. – Hã? O que você vai...? – Oh, natural! – disse o anão, sorrindo. – Bardos costumam usar espadas! Dito isso, o anão avançou para as criaturas. E tentou golpear uma delas, sem muito sucesso. Ao contrário do que tinha dito

com sua bravata, espadas de mão-e-meia como a que Miranda usava não eram exatamente a arma preferida dos bardos. Mesmo assim, Ulfgar tinha um certo conhecimento em seu manejo. Embora no começo de sua carreira tenha sido irredutível no uso de machados, aprendeu que um bom guerreiro (ou seja, os que sobrevivem por mais tempo) sabem usar outros tipos de armas também.

Ele acertou um dos golens com seu segundo ataque. Um golpe que foi fundo. Conseguiu esquivar-se do ataque do outro, demonstrando boa agilidade. Tentou acertar um golpe, mas errou. Aquela espada realmente não era tão fácil assim de manejar.

“Droga” pensou, recuando um pouco. “Nesse ritmo eu não vou...!” Mas quando pensou no assunto, viu a lâmina de um machado atingir um dos golens. – Ah, Jak! – exclamou Ulfgar, feliz em ver a ajuda chegar. – Você está usando o machado do Seward? – Sim! – disse o bardo, sorrindo. – Agora vamos ver se bardos sabem ou não lutar! Enquanto isso, o dono do machado-alaúde tentava ficar de pé com a ajuda de Char e Arren. Ele estava feliz, Tinha certeza

que seus dois amigos iam debelar a ameaça. – Vamos lá, Jak! Ulfgar! – exclamou Seward, um pouco sem fôlego. – Acabem com eles! Animados, os dois anões partiram para cima dos golens. A essa altura, eles já tinham uma platéia. Todos torcendo para

eles. Era como estar num palco, com centenas de pessoas vibrando com a música. Jak acertou um novo golpe num dos golens, destruindo o cristal de energia que o mantinha de pé. Enquanto este se esfarelava, Ulfgar também lutava contra o outro inimigo. Acertou a criatura na cabeça, abalando bastante ela. Jak foi em seu auxílio e acertou um novo golpe. A criatura já estava cambaleante, quando Ulfgar disse para o companheiro.

– Deixa eu finalizar! Deixa eu finalizar! E com um salto, ele enterrou a espada de Miranda no corpo do golem. Este exibiu um brilho agonizante e depois se

transformou numa pilha de pedregulhos. E a galera foi ao delírio. Todos aplaudindo de pé (pelo menos os que podiam ficar de pé) e pedindo biz. Mas parece que

não tinha sobrado mais nenhuma criatura para se valer de um biz, uma pena. Agradecendo, como todo bardo faz, Jak fez uma reverência a todos e depois foi até o seu pai, que ainda estava caído no chão.

– Pai! – exclamou, indo ajudá-lo. Com delicadeza, colocou o braço dele sobre o seu ombro e o ajudou a se levantar. – Olhe para você! O que veio fazer aqui?

– Ah... Jak... – começou ele, um tanto feliz e um tanto envergonhado. – Nunca pensei... nunca pensei que um bardo pudesse derrotar um golem...

– Esqueça isso. Você precisa ir para um templo de cura ago... A frase foi interrompida por alguém que havia acabado de chegar ao local. E não estava nem, mas nem um pouco feliz. – O quê?!? – exclamou uma voz retumbante e amargurada. – O que aconteceu aqui?!? Era Prete. Ele já estava parcialmente curado dos seus ferimentos. Tinha voltado até a confraria dos guerreiros em busca de

um elixir de cura, quando se lembrou de que os golens ainda estavam soltos. Foi correndo procurar por eles, mas parecia que tinha chegado meio tarde. Mas não tarde demais para o biz que a platéia tanto pedia para ver.

– Maldição! – exclamou ele, apontando para Miranda, Aramil e para um desacordado Joshua. – Vocês fizeram isso de novo!? Se meteram numa missão que não pertencia a vocês?!?

– O quê?!? – exclamou Miranda, desta vez bem irritada. – E o que você esperava que a gente fizesse? Que deixasse os golens matarem todos só porque não era nossa missão? E além disso, não fomos nós que derrotamos as criaturas. Foram eles!

A guerreira apontou para Jak, Ulfgar e Seward. Os três estavam juntos. Prete ficou um pouco desconfortável com aquilo. Não sabia exatamente o que fazer. Resolveu usar a velha tática “Tô bravo e tenho razão!”

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– Você! – disse ele, apontando para Ulfgar, que ao seu ver parecia ser o mais fraco dos três. Pelo menos mais fraco que o

Seward ele devia ser. – Quem é você para roubar uma missão da Confraria dos Guerreiros?!? – Quem sou eu? Eu sou...! – o anão estufou o peito, mas logo o desinflou. Ia dizer aquela sua famosa frase de

apresentação, mas desistiu. Achou que não funcionava mais. Era melhor usar a opção mais simples. – Ulfgar. – disse ele, com calma e segurança. – Só Ulfgar!

Soou tão simplório que Prete sentiu-se bem maior do que era. Começou a duvidar do que a guerreira tinha dito. Aquele sujeito? Derrotando golens?

– Idiota! – exclamou o chefe da confraria, erguendo o seu machado. – E o que um Zé ninguém como você pensa que é? Você, derrotando golens? Hah! E esse outro, que tem uma mancha vermelha no cabelo. – ele se reveria à Jak, claro. E o bardo não gostou de ser citado na conversa. – Vocês dois derrotando golens? Duvido muito! No mínimo, Seward deve ter feito tudo, a julgar pelo seu estado lastimável. Mas também não deveria ter se metido em algo que não devia! Ele não é mais o chefe da confraria dos guerreiros, eu sou!!! – e disse esta última frase bem alto, para todos ouvirem. – Eu sou o novo chefe da confraria! Vocês deviam ter chamado à mim!!!

– Cale essa boca!!! E esta última frase foi dita por Jak, e também bem alta para todos ouvirem. – E onde o senhor “sou-foda-demais-para-este-mundo” estava quando os golens começaram a atacar? – questionou o

bardo. – Ele estava com a gente! – disse Miranda, feliz em se meter na conversa. – Nós estávamos cuidando dos golens, que

estavam presos numa propriedade murada, quando ele veio nos atrapalhar. Destruiu o muro e atacou um dos nossos. O nosso pobre mago! – e ela apontou para Joshua que, dormindo, parecia um pobre garotinho indefeso. – Depois deixou os golens escaparem! A culpa disso tudo é dele!

Todos os presentes franziram o cenho ao mesmo tempo para Prete. Começaram a sacudir os braços e lhe dirigir alguns xingamentos no idioma anão. Prete tentou aliviar sua situação, tentando explicar que, pelo menos, na parte do Joshua, a história não foi bem daquele jeito, mas já era tarde demais. Quando a audiência se vira contra você, é melhor abandonar o palco antes que venham os tomates.

– Não! Não é isso! Eu...! – ele parou, tremendo de raiva. – Ah! Maldito Seward...! – disse o guerreiro, tremendo e olhando para o antigo colega. – Isso tudo é culpa sua! Sua!!! Se você não tivesse me feito perder a calma...! Não tivesse me feito perde a cabeça eu não... eu não teria cometido todas essas faltas! – ele ergueu o machado, num ato claramente agressivo. – A culpa é toda sua!!!

Ele foi para cima de Seward. E este estava desarmado. Jak teve o impulso de correr para ajudar o amigo, mas não podia largar o seu pai. A única coisa que podia fazer era gritar.

– NÃO!!! E a única coisa que Seward, ferido e desarmado, podia fazer era fechar os olhos e esperar pelo golpe. Mas antes da lâmina do machado encostar na pele do ex-chefe da confraria dos guerreiros, Prete sentiu alguma coisa lhe

espetar a perna. E no instante seguinte, esborrachou-se no chão. Se machado foi parar longe. – Urrrgh! – exclamou ele, olhando para a perna ferida. – Mas o quê...?! Hã? Todos olharam. Fincada na perna do anão, estava uma adaga. – A minha adaga?! – exclamou Jak, não entendendo o que tinha acontecido. – Ei! Pensei que você tinha dado ela para mim! – cortou Ulfgar. E, de fato, foi Ulfgar o autor daquela última manobra. E ele parecia muito feliz em ter sido bem sucedido. – Hahaha! É mesmo! Tinha esquecido! – riu o bardo. – Você tem mesmo uma ótima pontaria, Ulfgar! Hahaha Está vendo,

pai? Um bardo derrotou o chefe da confraria dos guerreiros! Hahaha! E toda a platéia riu com eles, como num seriado cômico em que colocam aquelas risadas de fundo. Mas o único que não

estava rindo nem um pouco era Prete. Seja como for, não havia tempo para ele, e nem para mais ninguém fazer algo. O show já tinha acabado.

Os sacerdotes da Deusa da Vida dos anões teriam muito trabalho pela frente. Várias pessoas ficaram feridas durante a passagem dos golens. Felizmente ninguém morreu. Mas naquela noite, e até quase o meio da tarde do dia seguinte, eles tiveram que dar duro para cuidar de todos.

Em um dos quartos lotados, estava Kario. Depois de desmaiar, um pouco antes de chegar ao templo, o ferreiro foi cuidado pelos sacerdotes. Ainda não estava restabelecido, mas recusava-se a ficar por lá. Para desespero dos curandeiros.

– Soltem-me! Eu tenho coisas a fazer! – Mas senhor! – dizia uma sacerdotisa, tentando mantê-lo na cama. – Ainda não está totalmente recuperado. – Ao contrário, senhora. – disse Kario, levantando-se resoluto. – Estou totalmente recuperado! Enquanto isso, ocorria uma pequena reunião na casa do ferreiro. A mãe de Jak servia um chá de whortley para todos.

Seward, Char e Arren conversavam bastante. Estavam muito felizes em ter um guerreiro/bardo com eles. – É bom se sentir seguro ao lado de um cara forte como você! – disse Arren, sorrindo e soltando algumas piscadelas. – Hã... claro! – disse Seward, meio desconfortável. – Agora somos uma banda. Um grupo unido.

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– Nós também somos! – disse Miranda, reunida junto com Aramil, Ulfgar e Joshua. O mago foi outro que não teve

paciência para ficar na cama do templo, e a julgar pela mancha em cima do seu nariz, ficaria para sempre com uma cicatriz no rosto. – E agora mais que nunca, sabemos que o nosso Ulfgar é um bom guerreiro! E que terá muito utilidade em nossas missões.

– Correção, eu sou um bardo agora! – disse o anão, sorrindo. – Jak prometeu que ia me ensinar! – Haha, tem razão! – disse Jak, ao lado de sua mãe. Que agora era uma mulher muito orgulhosa. – Vamos ter mais umas

aulinhas, mas acho que você vai aprender rápido. Vai se tornar um ótimo bardo! – Ô se vai! – Aramil agarrou o amigo. – E finalmente você aprendeu a bater nos inimigos de verdade, heim? Muito bom! – É, uma hora ele tinha que aprender. – disse Joshua, com um discreto sorriso. – Mas vai precisar de muita coisa ainda. – disse Char, de repente. – Para começo de conversa, vai precisar de um alaúde. E

já que vai ser um desses aventureiros que saem por aí acertando monstros, vai precisar de uma arma também. – Quando estive em terras humanas, eu costumava andar por aí com um florete. – comentou Arren. – Você sabe, para me

defender de ladrões de estrada. Alias, os bardos humanos gostam muito dessas espadas mais finas e ágeis. Mas receio que você não encontrará nenhum ferreiro por aqui que forje esse tipo de arma.

– Verdade, e um machado não é exatamente a arma que Ulfgar mais domina. – disse Joshua. – Tudo bem! Tudo bem! – disse Ulfgar. – Mas eu posso ir quebrando o galho com alguma outra arma, como uma espada

comum, ou talvez um machado-alaúde que o Seward tem... – Em primeiro lugar... – começou Jak, de maneira didática. – Não tem nenhum anão ferreiro em Ardehennas que se

“rebaixe” a ponto de forjar espadas. Em segundo lugar, o machado-alaúde foi uma criação exclusiva minha, e nem a pau eu vou fazer outro tão cedo. Arrrg! Ferraria é horrível! – disse ele, olhando para os dedos das mãos, que ainda estavam meio esfolados, e algumas discretas queimaduras nos braços que ganhou durante o trabalho. – E em terceiro lugar, você precisa utilizar uma arma que faça uso das suas melhores habilidades combativas. E na minha opinião, essa habilidade é a sua ótima pontaria.

– Está sugerindo que eu devia usar um arco, ou uma balestra? – perguntou Ulfgar. Mais que depressa, Aramil escondeu o seu arco, de maneira ciumenta.

– Hmmm, talvez. Mas acho que você vai se dar melhor com um tipo de arma que não tenha nenhuma geringonça intermediária entre você e o projétil. Talvez uma lâmina de arremesso...

– E onde ele vai encontrar isso aqui em Ardehennas? – questionou Seward. – Nenhum ferreiro daqui gosta de forjar armas que sejam muito diferentes de machados, martelos ou alabardas.

– Ele pode consegui-las aqui. Todos levaram um pequeno susto. Olharam em direção à porta e viram um cambaleante Kario entrando na casa. Sua

mulher foi ajudá-lo. – Deuses! O que está fazendo aqui? – ela foi lhe servir de apoio. – Você devia estar no templo! Ainda não se recuperou

totalmente. – Ah, minha querida. Como eu disse para todos os sacerdotes de Kandraria, eu já estou totalmente recuperado! – ele

aproximou-se do filho caçula. – Jak, sei que depois de tudo o que nós passamos pode parecer meio idiota da minha parte pedir desculpas agora. Mas isso é o que eu mais quero neste momento. Meu filho, perdoe-me! Eu quase precisei morrer para ver que você tinha valor... à seu modo! – comentou o ferreiro, só para não perder o costume. – E acho que... acho que finalmente compreendo que não importa o caminho que você tome, você estará sempre fazendo a coisa certa! E eu ficaria imensamente honrado se você continuasse seguindo as suas paragens, mas ainda com o nosso sobrenome. O nome dos Kherouakr! Talvez um bardo na família não seja tão ruim assim. Afinal, já temos ferreiros demais. – ele abriu os braços e aproximou-se do rapaz. – Jak, meu filho... eu amo você!

– Velho maldito! – riu o bardo, sorrindo e apertando o lábio. – Era tudo o que você queria, não é? Me fazer chorar na frente de todo mundo!

E os dois se abraçaram. A mãe de Jak os abraçou também. Todos que estavam assistindo àquela cena ficaram bastante comovidos. Mas um dos expectadores ficou especialmente mais.

– Oh, será que alguém aqui está sentindo falta do papai e da mamãe? – disse Aramil, cutucando Ulfgar. – Não enche! – respondeu o anão, esfregando os olhos. E logo a atenção do ferreiro foi dirigida para ele. – Meu jovem Rumnahein! – começou Kario, aproximando-se dele. – Eu também lhe devo desculpas. Não conversamos

muito e nem lhe dei a atenção devida quando veio até minha casa da primeira vez. Portanto gostaria que você me perdoasse da seguinte forma: eu irei forjar novas armas para você. As armas que quiser! Tenho algum conhecimento em armamentos feitos por humanos, e prometo dar o melhor de mim. Prometo fazer tudo que um bom bardo precisa para se aventurar. E para seus jovens companheiros também. – disse, virando-se para Miranda, Aramil e Joshua.

– Ficamos honrados! – disse a guerreira. – Mas pode oferecer este presente apenas para Ulfgar. No nosso caso, nós podemos pagar pelos seus serviços.

– Sim! – disse Aramil, triunfante. – Recebemos uma bela recompensa pela destruição dos golens! – Neste caso, que tal pagarem uma rodada de cerveja para todos? – sugeriu Jak. – A Hadra está em reforma, mas podemos

ir numa outra taverna por aí! Vamos! Iremos festejar bastante! Todos exclamaram em afirmação. Se havia um ponto em que todos concordavam era na hora da breja. Todos se

levantaram e foram até a taverna mais próxima. Poderia haver solução mais simples para os males sociais do mundo?

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Alguns dias se passaram. Mas a confusão com os golens ainda não era assunto esquecido. Principalmente devido ao

papelão que um certo chefe da confraria tinha feito diante de um monte de gente. Prete foi obrigado a renunciar do seu cargo recém-conquistado, e ainda recebeu uma pesada advertência. Só não foi expulso porque Seward fez questão de aliviar a situação dele – para desgosto do próprio Prete.

Logo um outro anão foi nomeado chefe, mas isso não é muito importante agora. O que importa é saber o que aconteceu depois, com os outros personagens.

Kario cumpriu sua promessa. Forjou ótimas lâminas de arremesso para Ulfgar. Além disso, também adaptou um alaúde recém adquirido pelo jovem anão para servir de bainha para um florete, que o próprio Kario forjou. Também recebeu uma cota de malha da mais alta qualidade, como só um Kherouakr poderia fazer.

Os outros três aventureiros também receberam ótimos presentes (embora tenham feito questão de pagar). E até mesmo os bardos da banda Thrasteryhwarf ganharam alguns. Alias, a banda estava prestes a excursionar por terras humanas. O Grande Continente logo iria conhecer um novo fenômeno musical! No dia da partida, Arren e Char já tinham se encarregado de conseguir uma carruagem que os levaria para o reino de Elmarthyl, em primeiro lugar. Os outros dois integrantes da banda também já estavam prontos, mas se despediam de algumas pessoas na casa dos Kherouarkr.

– É uma pena que meu pai ainda não tenha voltado das suas viagens. – comentou Seward, preparando a bagagem. – Senhor Kherouakr, você pode dizer a ele que... bem... não sei quando volto, mas prometo escrever!

– Claro! – disse o ferreiro, coçando a barba. – Humpf! Parece que seu pai aceitou a sua opção por ser bardo com muito mais facilidade que eu, não é mesmo? Gostaria de saber onde o Dhor conseguiu essa mente tão “aberta”!

O jovem bardo/guerreiro sorriu. – Acho que meu pai contou histórias demais sobre os Rumnahein e esqueceu das próprias histórias! Pergunte à ele quando voltar, acho que ele vai ficar feliz em responder.

– Tchau, mãe! Tchau, velho! – disse Jak, acenando para os pais. – Vocês vão ouvir muito falar de mim! – Tenho certeza que sim, meu filho! – disse a mulher, orgulhosa. – hah, espero que falem bem! – comentou Kario. – Boa sorte, e juízo, meu filho! – Juízo?! Nem pensar! – exclamou o bardo, já na carruagem em movimento. – Adeus! O ferreiro sentiu-se bem contrariado diante daquela resposta, mas por fim suspirou. E o casal foi cuidar dos seus afazeres.

Enquanto isso, numa estalagem próxima dali, outro quarteto se preparava para uma viagem. Joshua estava fazendo hora no banheiro, observando seu rosto no espelho baixo que ficava em frente à pia. – Droga. – murmurava ele, olhando para o seu próprio rosto. – A cicatriz vai ficar mesmo... – Para alguém que ia ter o crânio rachado, até que não é tão ruim. – disse Miranda, que entrou repentinamente no

banheiro. – É até bom para lembrá-lo que, além de Ulfgar, você também é pouco mais que um novato. – Miranda! – exclamou o mago, um tanto contrariado. – Ah, está bem! Está bem! Mas quem foi que, mesmo em estado de

frenesi, colocou aquele anão invencível no chão, heim? – Ulfgar também fez isto. – sorriu a garota. – Olá-a! – chamou uma voz. Era Aramil. – Os dois vão demorar muito aí? Vamos! A carruagem já está esperando! Estou

doido para voltar a ver gente que mede mais do que um metro e meio de altura! – Falando nisso, onde está Ulfgar? – perguntou a guerreira. – Ele já está pronto? O dito-cujo já estava pronto sim. Ao lado da carruagem, esperando os outros, ele dedilhava o seu alaúde. Ele era um

bardo, agora. Esforçou-se bastante nos últimos dias para pegar todas as manhas iniciais que precisava para começar a trilhar esse caminho de sucesso. Ou pelo menos ele apostava que seria um caminho de grande sucesso.

– Hahaha! – ria ele, feliz em conseguir acertar uma meia dúzia de acordes fáceis. – Oh, finalmente vou poder ser um aventureiro de verdade! Hehehe! Acho que serei o único bardo entre os Rumnaheim! Puxa, como eu nunca pensei em ser bardo antes? Eu sempre gostei tanto de música...

– Verdade, filho? Aquela frase fora dita ao pé do ouvido do anão, que tomou um tremendo susto. Ulfgar rapidamente virou o rosto e encarou

um desconhecido. Um anão grisalho, de pele bronzeada. Cabelos e barba longa. Tinha uma grande cicatriz no rosto, que atravessava seu olho

direito. E este, por sinal, estava coberto por um tapa-olho. Ele sorria, com seus dentes amarelados. – Urgh! – Ulfgar sentiu um arrepio. – Quem é você?! O desconhecido arregalou os olhos, ainda sorrindo. Fez a mesma expressão de satisfação que o próprio Ulfgar fazia

quando lhe dirigiam aquela pergunta, que resultava num monólogo sobre a árvore genealógica do seu clã. Mas o anão resolveu não responde-la.

– Isso lá é pergunta que se faça? – disse ele, coçando a cabeça. – Tipos como você nunca se preocupam demais com a identidade dos desconhecidos. São bardos que chegam de repente nos lugares, falam uma frase de efeito para chamar a atenção e depois causam susto nas pessoas. Ao que elas perguntam; “Quem é você?”. E a resposta geralmente é seguida de alguns acordes e uns truques de prestidigitação. Tsk! Tsk! Já perdeu um ponto, filho.

Ulfgar não sabia exatamente do que aquele homem estava falando. Mas certamente não gostou nada de “perder um ponto”.

– Oh, está bem! Não estou nem aí para você ou sua identidade. Agora com licença, quer continuar tocando meu... – HAHAHA!!! Até o carroceiro, que estava quieto no canto dele, esperando os clientes subirem no veículo, tomou um susto com aquela

risada histérica. O anão desconhecido continuou.

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– Ah! Eu realmente te ofendi com tão pouco, pirralho? – “Pirralho”?!? – Ulfgar jogou o alaúde de lado e sacou de dentro dele o seu florete recém-fabricado. – Ok, seu velho!

Você conseguiu o que queria! Conseguiu me deixar bravo! – Bravo? – o homem continuava rindo. – Desde quando bardos ficam bravos? Eles deixam é os outros bravos! Perdeu

mais um ponto, filho! – Droga... – murmurou Ulfgar, com o ânimo murcho. – O que você quer, afinal? – disse em seguida, num tom do tipo “o

livro já está acabando, não tem tempo para acontecer mais nada de extraordinário!” – Você está com um grupo de aventureiros, certo? Uma mulher e dois homens, sendo que um é um elfo-das-areias. Para

onde estão indo? – perguntou o desconhecido, por fim. – Hmmm, nós... – o anão tentou se lembrar, sem sequer se tocar que deveria ter feito a pergunta: “como você sabe quem

está comigo?”. – Estamos indo para Erion agora. – Ah, sei. Um belo lugar. – o anão coçou a barba. – E depois de irem para lá, vão continuar seguindo para outros reinos

humanos, certo? – Hã... acho que sim. – “Acho que sim”?! – pausa para uma nova risada. – Desde quando bardos “acham” alguma coisa? Ainda mais uma

questão como esta? Bardos têm sempre certeza que vão continuar seguindo por aí, livremente! Três pontos à menos, filho! – Olha, já chega! – Ulfgar empunhou o florete. – Ou você pára de me encher, ou eu furo esse seu outro olho! – Bela bravata! – o anão ajeitou o tapa-olho do rosto. – Mas ela seria mais temível se você tivesse ciência de que não pode

me furar! Bardos geralmente sabem que não são muito bons em lutas, mas sabem bravatear como ninguém. Costumam ser muito mais convincentes do que isto! Menos quatro pontos, pirralhinho.

– Grrrr! – aquela conversa já estava irritando demais nosso jovem bardo iniciante. Segurando-se para não cumprir sua promessa, ele perguntou: – E por que você acha que eu não tenho capacidade para furar esse seu olho?!

Pela primeira vez, o anão grisalho esboçou uma expressão séria no rosto. Com tranqüilidade, ele ergueu seu tapa-olho e exibiu o olho vazado. Não havia nada naquela órbita ocular, nem mesmo um olho branco. Era só um buraco vazio. Ulfgar chegou a ter um arrepio ao ver aquilo.

– Porque... – começou o anão, em tom de explicação. – Você não é nem um quinto do homem que me furou o olho direito... ainda!

– “Ainda”? – o bardo recém-formado esboçou uma expressão de dúvida no rosto. Ao vê-la, o desconhecido voltou a sorrir com seus dentes amarelos.

– Hah! Deixe estar... – Ei, “deixe estar” coisa nenhuma! – Ulfgar voltou a ficar irritado. – Olha, mesmo que eu perca mais pontos como bardo,

eu quero uma explicação! Afinal, quem é você e por que veio atrás de mim? – Haha! Está bem, eu explico. – o anão acariciou a barba novamente. – Sabe, embora eu seja um anão, eu não gosto muito

de Ardehennas. Muito chato, entende? Venho só de vez em quando, para ver se há algo de novo. Mas quase nunca há. Esta foi uma dessas vezes. Porém, faz alguns dias que ouvi falar de uma confusão que aconteceu em frente à uma taverna. Um bardo e um jovem Rumnahein derrotaram dois golens de pedra. A notícia se espalhou rápido por aí. Todo mundo ficou surpreso.

– Heh! – Ulfgar fez uma pose. – Bem, eu não sou de me gabar, mas... – “Gabar”? – o anão se segurou para não gargalhar até o final da frase. – Você se gaba por ter destruído um golenzinho de

nada?!? Hahahaha! Mudei de idéia! Você ainda não é nem um décimo do homem que me furou o olho direito! Hahahaha! – Ora, seu...! – Ulfgar apertou o cabo do florete. – Afinal, o que você quer de mim?! – Huhu! – o homem conteve-se. – Não quero nada de você. Pelo contrário! Quero lhe dar algo. O anão levou a mão à algibeira. Retirou de dentro dela um bracelete curto, feito de prata e com três rubis bem grandes

incrustados. Havia uma inscrição nele, mas parecia estar escrito em um alfabeto estranho, que não parecia nem humano e nem anão.

– Tome, fique com ele. – disse o anão, colocando o bracelete no pulso do bardo. – Tente não perdê-lo. Ele pode vir a ser útil um dia. E espero que realmente seja! – dito isso, ele se virou – Adeus, jovem Rumnahein! Espero que possamos nos encontrar em breve!

Ulfgar ficou sem ação por um momento. Olhava aquele bracelete sem entender muita coisa. Foi quando ergueu a cabeça, de repente.

– Ei! Espere! Por que você...?! Mas era tarde, o anão já tinha sumido. O jovem bardo continuou olhando para aquele misterioso bracelete, quando sentiu

uma mão pousar em seu ombro. – ... subir logo? – Heim?! Era Aramil. Ele, Miranda e Joshua já tinham saído da estalagem e estavam prontos para seguir viagem. – E aí, Ulfgar? Não vai subir na carruagem? – insistiu o ladrão. – Estamos com pressa! – Ah, sim! – ele recolocou seu florete dentro do alaúde. – Já estou indo! Quando o anão fez o gesto de pegar seu instrumento, os olhos clínico de Aramil para coisas valiosas pousaram sobre o

bracelete que ele tinha no pulso. – Ei, o que é isto? – perguntou o elfo-das-areias. – Onde o encontrou? – Ah, um estranho me deu... – disse o anão, e depois arrependeu-se de ter dito aquilo.

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– Um estranho? – Miranda parecia preocupada. – Ulfgar! Você não pode aceitar coisas de estranhos assim! – Fica fria, “mamãe”. – disse Joshua, de repente. – Não é de comer. – Não tem perigo, Miranda. – respondeu o anão. – Acho que não é amaldiçoado nem nada. É só um bracelete comum... ei!

– exclamou ele, quando viu as pupilas finas de Aramil brilhando diante da peça. – Você não está pensado em roubá-lo, está?!? – Ah, não é isso... – disse o ladrão. – É que... tenho a impressão de já ter visto isto em algum lugar... – Ei! Vamos deixar as indagações para depois? – disse o mago, impaciente. – Subam logo! Vamos embora daqui! Logo os dois aventureiros subiram. E o grupo já seguia caminho pelos corredores. Entre uma conversa paralela e outra,

logo se esqueceram do assunto do bracelete, mas Ulfgar não. Afina, a peça ainda estava presa ao seu pulso. Ele ficava observando aquele objeto, intrigado.

– E no fim ele nem me disse quem era... – murmurou.

Apesar das confusões que se sucederam em Morintha com a passagem daquele peculiar grupo de aventureiros, três dias depois tudo parecia ter voltado ao normal. Na ferraria dos Kherouakr, o som do martelo se mantinha no mesmo tom e ritmo em que sempre estivera. Tudo parecia seguir conforme o inexorável cotidiano da montanha. E Kario preferia assim.

Até a chegada de uma visita casual. – Não me escutou bater de novo, não é Kario? – Dhor! – exclamou o ferreiro, largando suas ferramentas e indo cumprimentar o amigo. – Já voltou do seu trabalho? Que

bom! Eu tenho algo para contar. – Sobre os meninos? Eu sei! Eu me encontrei com eles na minha viagem de volta. Eles foram para os reinos humanos,

certo? Mal pude acreditar quando vi! – É... sei o quanto é difícil se despedir de um filho. Já tive que fazer isso muitas... – Não estou falando sobre o Seward, e sim sobre o Jak! – O Jak?! – indagou Kario. – Sim, foi isso que eu mal pude acreditar! Então você deixou Jak viver sua própria vida como um bardo! – Ah, isso? Bem, nem eu acredito, meu amigo. – disse o anão, voltando a pegar nas suas ferramentas. – Mas eu tive boas

surpresas nestes últimos dias. Ah! E uma delas... – ele fez uma pausa proposital, como quem vai dizer algo muito importante. – Eu não tenho mais inveja de você, Dhor! Pois eu também conheci um Rumnahein em pessoa!

– Está falando do garoto Ulfgar, certo? Hah! Ele passou na minha casa também, pena que eu não sabia quem ele era, senão eu teria lhe contado a história de como eu conheci o pai dele...

– Oh, por favor, Dhor! – Haha! Está bem! Está bem! Acho que todos realmente estão cheios de eu contar essa história! – o anão coçou a cabeça,

brincalhão. – Mas eu sempre achei que você gostava de ouvi-la. Afinal, você é bastante orgulhoso da glória de todos os clãs de anões. Ou pelo menos era.

– Ora, eu ainda sou! – disse Kario, com uma expressão séria. – Posso ter deixado Jak viver sua vida, mas ainda tenho muito orgulho da honra dos Kherouakr. Ainda tenho dois filhos que se dedicam ao ofício da ferraria e continuarão a sustentar nosso nome dentro da arte da forja. Humpf! – o ferreiro esboçou uma certa expressão de desgosto. – Mas a verdade é que a idéia do Jak ser bardo ainda não me deixa totalmente feliz. Mas pelo menos ele está lá fora, no reino dos humanos. Não vai poder manchar nosso bom nome aqui em Ardehennas.

Dhor ficou mudo, numa expressão de alguém que acaba de ter a expectativa frustrada. Mas no instante seguinte, abriu um largo sorriso de alívio. Também como quem tem uma expectativa frustrada.

– Que bom saber que você continua o mesmo rabugento de sempre! – sorriu Dhor. – Hah... – fez Kario, balançando a cabeça. – E que bom que você continua sendo sempre este amigo sincero! E os dois anões riram, felizes em viver mais um dia comum, mas feliz, em suas vidas.

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Universo Multiplanar

Contos, E-Livros, Imagens e muito mais!

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Desta mesma série, já publicados:

Confraria dos Aventureiros

Confraria dos Arqueiros

Próximo título:

Confraria dos Magos

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