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CLÁUDIA VALENTINA ASSUMPÇÃO GALLIAN CONHECIMENTO ESCOLAR EM CIÊNCIAS NATURAIS NO ENSINO FUNDAMENTAL MESTRADO EM EDUCAÇÃO: HISTÓRIA, POLÍTICA, SOCIEDADE PUC/SP 2005

CONHECIMENTO ESCOLAR EM CIÊNCIAS NATURAIS NO … · abordagem do conhecimento relacionado às ciências e o impacto destas escolhas sobre a ... Jean-Pierre Astolfi and Michel Develay;

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CLÁUDIA VALENTINA ASSUMPÇÃO GALLIAN

CONHECIMENTO ESCOLAR EM CIÊNCIAS NATURAIS NO ENSINO FUNDAMENTAL

MESTRADO EM EDUCAÇÃO: HISTÓRIA, POLÍTICA, SOCIEDADE

PUC/SP 2005

CLÁUDIA VALENTINA ASSUMPÇÃO GALLIAN

CONHECIMENTO ESCOLAR EM CIÊNCIAS NATURAIS NO ENSINO FUNDAMENTAL

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Educação: História, Política, Sociedade, sob orientação da Profa. Dra. Maria das Mercês Ferreira Sampaio.

PUC/SP 2005

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________ _______________________________________

_______________________________________

Já não basta ser gente pra encanecer de dor? Ainda têm as escolas que se aplicar neste esmero de esvaziar dos meninos seu desejo de bois, grama e pequenos córregos?

Adélia Prado

À minha mãe, pela inabalável confiança e total apoio. Ao meu pai, a quem devo o fascínio pelas palavras. À Júlia e Pedro, pela alegria. Ao Zé, meu companheiro, pela torcida e pelo amor.

Aos meus irmãos, em especial ao Alípio, por me lembrarem

quem eu sou.

AGRADECIMENTOS

À Mercês, referência e carinho ao longo deste trecho da minha história.

À Fátima, minha fiel colaboradora, cujo apoio me permitiu completar a tarefa.

À Stella e Fernanda, pela certeza reconfortante da amizade.

À Taciana, pela alegria e vibração a cada vitória.

Aos colegas da PUC/SP, Ana Maria, Márcia, Renata, Hildebrando, Arlindo e Alex, pela

cumplicidade.

Aos meus professores, Alda, Bruno, Mercês, Luciana, Maíta, Leon e José Geraldo, pela

disponibilidade para ensinar.

Ao Professor Doutor Manoel Oriosvaldo de Moura e ao Professor Doutor Odair Sass, membros

da Banca Examinadora a que se submeteu este trabalho, pelas valiosas contribuições, frutos de

cuidadosa leitura.

RESUMO

Esta pesquisa pretendeu caracterizar o conhecimento escolar de ciências, através de uma

investigação de base empírica, cujo principal procedimento foi a observação direta das aulas de

duas professoras, na 5a e na 7a série do Ensino Fundamental, em uma escola da rede pública

estadual de Campinas, São Paulo. As contribuições teóricas relativas à forma escolar, à cultura da

prática acumulada, ao processo de constituição do conhecimento escolar nas relações com o

conhecimento científico, sustentam as análises aqui apresentadas, tendo como principais

referências os seguintes autores: J. Gimeno Sacristán; Jean-Pierre Astolfi e Michel Develay; Guy

Vincent, Bernard Lahire e Daniel Thin; Lucíola L. C. P. Santos; Alice Ribeiro C. Lopes e Júlia

Varela. Ao longo do texto, a descrição e a análise das ações docentes explicitam os fatores que

orientam, facilitam e/ou limitam as escolhas dos professores em relação ao conteúdo e à forma de

abordagem do conhecimento relacionado às ciências e o impacto destas escolhas sobre a

qualidade da aproximação dos alunos em relação ao conhecimento científico. Constatou-se que

uma das atuações observadas reproduziu o padrão já descrito em outras pesquisas sobre o ensino

de ciências, de fragmentação e simplificação do conhecimento e centralização do processo de

ensino no professor e no livro didático, enquanto a outra revelou maior ênfase no

desenvolvimento da autonomia dos alunos e maior abertura para o conhecimento oriundo de

fontes externas à escola. Entretanto, em ambas as situações observadas, explicitam-se lacunas e

restrições no processo de conhecimento das ciências naturais, em função dos limites da própria

forma escolar. Nesses parâmetros, o conhecimento escolar evidencia suas características e

peculiaridades.

Palavras-chave: Conhecimento escolar; Ensino de ciências; Prática docente.

ABSTRACT

This research intended to characterize the school knowledge of science through

observation and research into two teachers’ classes in the 5th and 7th grades in a public school in

Campinas, São Paulo. The theoretical contributions related to the school, the accumulation of

practice, the process of constitution of school knowledge on the scientific bases, give support to

the analyses presented on this research and have the following authors as the main references: J.

Gimeno Sacristán; Jean-Pierre Astolfi and Michel Develay; Guy Vincent, Bernard Lahire and

Daniel Thin; Lucíola L. C. P. Santos; Alice Ribeiro C. Lopes and Júlia Varela. Throughout the

text, the description and analysis of the teachers’ actions can be found with the aim of showing

the facts that guide, make easier and/or limit the teachers’ choices related to the contents and to

the way of dealing with the knowledge related to the sciences and the impact of these choices on

the quality of the students’ approximation to the scientific bases. One of the actions observed

reproduced the standard already related in other researches about the teaching of science, the

fragment and the simplicity of knowledge and that the teaching process was centred on the

teacher and the textbook. The other one showed more emphasis on the development of the

students’ autonomy and the knowledge from other sources out of school. However, blanks and

restrictions on the process of natural sciences knowledge can be found in both of the situations

observed because of the limits of the school system. Thus, the school knowledge shows its

characteristics and particularity.

Key words: School knowledge; Teaching of science; Teaching practice.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO............................................................................................................................01

CAPÍTULO I

O ENSINO DE CIÊNCIAS

Notas históricas relativas ao ensino de ciências no Brasil..................................................15

Notas teóricas relativas ao ensino de ciências....................................................................23

CAPÍTULO II

A PRÁTICA DOCENTE OBSERVADA

A escola...............................................................................................................................32

As aulas de ciências: atividades desenvolvidas por professoras e

alunos..................................................................................................................................33

Professora 1.......................................................................................................................35

1. Organização da classe e controle dos alunos..................................................................38

2. Abordagem dos conteúdos..............................................................................................45

3. Tarefas e atividades dos alunos......................................................................................55

4. Uso dos recursos didáticos..............................................................................................62

5. Avaliação........................................................................................................................66

Professora 2.......................................................................................................................73

1. Organização da classe e controle dos alunos..................................................................74

2. Abordagem dos conteúdos.............................................................................................77

3. Tarefas e atividades dos alunos......................................................................................85

4. Uso dos recursos didáticos.............................................................................................91

5. Avaliação........................................................................................................................92

Professora 1 e Professora 2.............................................................................................99

1. Diferentes ações educativas, diferentes formas de aproximação do

conhecimento.....................................................................................................................99

2. Informações sobre as professoras acompanhadas........................................................103

CAPÍTULO III

REFLEXÕES SOBRE OS DADOS APRESENTADOS........................................................111

CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................................129

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.....................................................................................133

ANEXOS

ANEXO A.........................................................................................................................137

ANEXO B.........................................................................................................................139

ANEXO C.........................................................................................................................147

INTRODUÇÃO

1

A escola, no seu trabalho de educação e formação dos alunos, atua na transmissão e

divulgação de um conhecimento sistematizado, o que lhe confere o importante papel de tornar

públicos certos conhecimentos socialmente legitimados, dentre os quais, os gerados pela

comunidade científica. Evidentemente, nem tudo o que constitui uma área de conhecimento

comporá o conteúdo a ser transmitido nas escolas. Ocorrem seleções desde a produção do

conhecimento nas universidades e centros de pesquisa, nas agências reguladoras da política

educacional, na composição dos livros didáticos e, também, na sala de aula, pelo professor em

interação com seus alunos.

Além de selecionar os conteúdos, a educação escolar deve ser capaz de torná-los

transmissíveis, através de uma reestruturação dos saberes, lançando mão de dispositivos

mediadores que permitam a aproximação do erudito, que não é perfeitamente comunicável ao

aluno (Forquin, 1992, p. 32).

Santos (1995), fazendo referência às concepções de Bernstein, ressalta que esse

deslocamento, ou recontextualização de um saber, de seu lugar de origem para a escola, se dá de

acordo com os princípios de reordenação seletiva dessa instituição, produzindo o discurso

pedagógico. Assim, para essa autora, “o discurso pedagógico não poderia ser confundido com os

discursos que ele recontextualizou” (p. 32-33).

Neste processo produz-se o conhecimento escolar, que representa a adequação dos

conhecimentos selecionados das diferentes áreas às condições de ensino e aprendizagem que se

estabelecem no espaço e no tempo escolar. Um dos meios utilizados neste processo de adequação

é a organização dos conhecimentos em disciplinas escolares. Como uma dessas disciplinas, a de

Ciências Naturais destaca-se por se relacionar muito diretamente ao processo de construção do

conhecimento científico, uma vez que em diferentes circunstâncias sua proposta de ensino se

refere ao método científico.

A esse respeito sugerem-se muitas indagações, tais como: o que é esse saber escolar

produzido nessa disciplina? Quais conteúdos o professor seleciona para transmitir e como ele

aborda esses conteúdos na tentativa de garantir sua aprendizagem?

Admitindo-se, então, que o conhecimento escolar na disciplina de ciências naturais não é

a Ciência produzida nas diferentes áreas – Biologia, Física, Química, Geologia...—, que se

denominará doravante de Ciências de Referência, e que, como um saber escolar, ele tem

características que o diferenciam destas, questiona-se quais relações estão presentes entre esses

2

saberes escolares e as Ciências de Referência. É possível que essas relações se expressem de

alguma forma, mas não exclusivamente, na concepção de Ciência do professor. Essa concepção

pode se inserir, como elemento importante, no processo de decisões que tem lugar na escola, no

que se refere à seleção de conteúdos e formas de transmissão dos conhecimentos. Mas outros

fatores devem exercer influência sobre as decisões do professor a respeito dos conteúdos que

privilegiará e da forma que utilizará na sua transmissão. Que fatores, então, exercem alguma

influência nas decisões do professor a esse respeito? Quais desses fatores atuam como agentes

limitadores de sua prática?

Como exemplo de um estudo que levanta características da prática do professor, cita-se o

de Zancul (2002) que, focalizando a região de Araraquara (SP), apresenta as possibilidades e os

limites para a efetivação do ensino de ciências naturais nas quatro séries finais do Ensino

Fundamental (p. 93). Trabalhando com escolas particulares e públicas, a autora aponta algumas

tendências no que diz respeito ao conteúdo e à forma assumidos na prática do ensino de ciências

nesse segmento do Ensino Fundamental. Nesse estudo, a autora utiliza como instrumento de

pesquisa os relatórios de estágio de alunos de Licenciatura, resultado de observações de aulas de

professores de várias escolas da região, e, como outra fonte, as aulas de duas professoras de uma

escola pública da cidade de Araraquara, acompanhadas durante um período de quatro anos.

Com relação aos conteúdos, Zancul (2002) aponta para “sinais de fragmentação e

justaposição dos conteúdos trabalhados” (p. 107). A autora indica a diversidade na seleção e

ordenação dos conteúdos na mesma série, na mesma cidade, em escolas diferentes (idem, p. 108).

O livro didático aparece em seu estudo como um norteador da seleção e da ordenação dos

conteúdos, apontando para uma distribuição tradicional destes conteúdos por série1 (idem, p.106-

107).

A forma mais usual de transmissão dos conteúdos, segundo a autora, é a exposição oral

pelo professor. No geral, ela se segue à leitura do livro didático ou à cópia do resumo elaborado

pelo professor e transcrito na lousa. Quase inexistem as atividades experimentais, e quando

ocorrem, geralmente são demonstrações realizadas pelo professor (idem, p. 109-110).

A autora menciona que em relação às práticas observadas, algumas tentativas de

diversificação, ainda que nem sempre diretamente relacionadas aos temas trabalhados nas aulas,

5 A distribuição tradicional dos conteúdos, segundo Zancul (2002) é: ar, água, solo e ecologia, na quinta série; seres vivos, na sexta; corpo humano, na sétima; física e química, na oitava série (p. 104-105).

3

como a exibição de vídeos ou a realização de experimentos diferenciados são encontradas, mas,

de maneira geral, as aulas são expositivas e fundamentadas em conteúdos extraídos dos livros

didáticos (Zancul, 2002, p. 113).

Ainda sobre a produção acadêmica referente ao ensino de ciências naturais, Megid Neto

(2001), traz um levantamento das tendências da pesquisa sobre o ensino desta disciplina. De

acordo com esse autor, do total de teses e dissertações relacionadas ao ensino de ciências naturais

que analisou (572 pesquisas – produção referente ao período de 1972 a 1995), 20% (cerca de 114

trabalhos) se referem a questões exclusivas ou preferenciais do Ensino Fundamental (p. 93).

Em relação aos temas privilegiados nesses estudos, este autor afirma que há um

predomínio nas investigações sobre elementos diretamente vinculados ao processo ensino-

aprendizagem escolar e de sala de aula. O autor observa o predomínio dos seguintes focos

temáticos: Currículos e Programas (28,3%); Formação de Professores (18,4%); Conteúdo-

Método (17,5%); Recursos Didáticos (12,3%); Formação de Conceitos (10,8%); Características

do Professor (9,0%) e Características do Aluno (7,1%) (idem, p. 100).

Do levantamento realizado por Megid Neto (2001), destacam-se 137 teses e dissertações

referentes ao ensino de ciências naturais no Ensino Fundamental II. Destas, 14 se referem à

prática do professor nesse segmento (Anexo A).

O procedimento de pesquisa mais utilizado nesses 14 trabalhos foi a entrevista com

professores, seguido de observações de aula e análise documental. Os questionários aparecem

logo a seguir.

As conclusões dos pesquisadores acerca dos fatores limitantes da prática do professor

apontam para os seguintes problemas: concepções errôneas do professor em relação ao processo

de produção e legitimação do conhecimento científico; dependência em relação ao livro didático;

escassez ou inadequação de recursos didáticos; contradições entre as concepções do professor e a

sua prática; deficiências conceituais na formação do professor; metodologia excessivamente

centrada no professor e distribuição desigual do conhecimento em relação à classe social de

origem dos alunos.

Entre as referências teóricas citadas pelos pesquisadores em seus resumos, encontram-se

os seguintes autores: Weber; Descartes; Bacon; D’Alembert; Rousseau; Bernstein; Althusser,

Baudelot & Establet e Bourdieu & Passeron.

4

Em outro levantamento ainda não finalizado e gentilmente cedido pelo autor, Professor

Dr. Jorge Megid Neto, encontra-se a análise de 362 teses e dissertações sobre o ensino de

ciências naturais no Brasil, no período de 1996 a 2002. Desse levantamento, destacam-se 15

trabalhos acerca da prática do professor dessa disciplina no Ensino Fundamental II.

Nessas 15 investigações, encontra-se como procedimento de pesquisa mais utilizado a

entrevista, seguido pela observação de aula e análise documental e, por último, o questionário.

Como principais limitadores da prática do professor de ciências, os pesquisadores

apontam essencialmente para os mesmos problemas levantados por Megid Neto (2001).

Como referenciais teóricos citados nos resumos desses 15 trabalhos encontram-se os

seguintes autores: Heller, Gramsci, Kosik, Bachelard, Vygotsky, Bakhtin e Wertsch.

Pode-se perceber na descrição apontada que algumas características descritas por Zancul

(2002) como a relação de dependência do professor em relação ao livro didático, a centralidade

da metodologia no professor e a pouca ou nenhuma realização de atividades práticas, também

aparecem em outras pesquisas dessa natureza, compondo um retrato do que é mais comum

acontecer nas salas de aula, no ensino de ciências naturais de 5ª a 8ª série do Ensino

Fundamental.

Esse contorno comum, entretanto, pode ser problematizado e escolhido como ponto de

partida para novas indagações que possibilitem o aprofundamento da discussão sobre algumas

dimensões do ensino de ciências naturais em seu desenvolvimento na escola. Ou seja, os estudos

citados, especialmente o de Zancul (2002), deixam algumas perguntas, o que estimula a busca por

outras possibilidades de relação conteúdo-forma que se concretizem em aulas de ciências naturais

no Ensino Fundamental II.

Esta pesquisa buscou, então, contribuir no sentido de trazer mais informações sobre o que

efetivamente está sendo oferecido aos alunos em termos de conhecimento de ciências e de

valores inscritos na prática do professor, de forma implícita ou explícita. Admitindo-se que na

prática de sala de aula desenvolve-se o currículo real2 de uma disciplina, há que se destacar que a

prática do professor é condicionada por fatores externos à escola (como as regulações políticas e

administrativas, as influências sociais e econômicas, a produção de meios didáticos e os âmbitos

de elaboração do conhecimento), e o que se decide externamente em relação ao ensino também é

2 Gimeno Sacristán (1998) define o currículo real como sendo o resultado da interação entre o currículo manifesto — o que se diz que se ensina — e o currículo oculto — conjunto de intervenções, explícitas ou não, que visam formar os hábitos desejáveis para a socialização do indivíduo (p. 132-133).

5

reformulado no âmbito interno da escola (na estrutura organizativa da escola, no ambiente e nos

tipos de atividade que configuram o processo de ensino-aprendizagem, na disposição do espaço,

na ordenação do tempo, etc.) (Gimeno Sacristán, 1998, p. 130-131). Portanto, indicar o que de

fato resulta dessa complexa rede de fatores condicionantes pode aproximar nossa compreensão

daquilo que efetivamente ocorre, e do que poderia ser modificado em termos de ensino de

ciências naturais, de acordo com as expectativas sociais e educacionais que recaem sobre essa

disciplina. Segundo Gimeno Sacristán (1999), “esclarecer quais são as finalidades assumidas para

a escolarização, explicitar quais são os seus conteúdos, descobrir como são assumidas e

colocadas em prática pelos professores é penetrar nas razões mais profundas da ação e das

instituições” (p. 148). Nesse sentido, é pertinente, também, a indagação sobre o que devem

aprender os professores para que suas ações educativas permitam a constituição de um

conhecimento escolar de ciências que de fato favoreça a formação de cidadãos mais autônomos e

capazes de estabelecer um posicionamento crítico em relação aos produtos do desenvolvimento

da Ciência.

A este respeito, Carvalho e Gil-Pérez (2003) indicam o que as pesquisas em Didática do

Ensino de Ciências apontam como o conhecimento necessário aos professores desta disciplina.

Trata-se de um corpo de conhecimentos profissionais muito diversos e não só dos conteúdos

específicos de sua área de formação, ainda que, em relação a estes últimos, os autores ressaltem

que “todos os trabalhos existentes mostram a gravidade de uma carência de conhecimentos da

matéria, o que transforma o professor em um transmissor mecânico dos conteúdos do livro de

texto” (p. 20-21).

Assim, com base nas indicações de Carvalho e Gil-Pérez (2003, p. 23-24), pode-se derivar

o que a ação educativa deve permitir aos alunos – em outras palavras, o que o professor deve

conhecer para que possa, então, por meio de suas ações, favorecer uma melhor forma de

aproximação do conhecimento científico:

1. Conhecer a história das Ciências para poder associar os conhecimentos científicos com

os problemas que originaram a sua produção e compreender como esses conhecimentos

evoluíram e como se articularam em corpos coerentes. Sem isso, tais conhecimentos

apresentam-se como construções arbitrárias e é passada uma visão estática e dogmática

que deforma a natureza do trabalho científico;

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2. Conhecer a forma pela qual os cientistas abordam os problemas, as características mais

notáveis de sua atividade, os critérios de validação das teorias científicas;

3. Conhecer as interações entre Ciência, Tecnologia e Sociedade, ressaltando o papel social

da Ciência ao apontar que os cientistas não têm lugar à margem da sociedade em que

vivem, que são diretamente afetados por problemas e circunstâncias do momento

histórico em que vivem, do mesmo modo que sua ação tem clara influência sobre o meio

físico e social em que se insere;

4. Adquirir uma visão dinâmica e aberta da Ciência através do contato com os

desenvolvimentos científicos recentes e suas perspectivas, bem como pela abordagem

das interações entre os diferentes campos do saber e dos processos de unificação destes.

O que se pretende ao apontar estes conhecimentos como relevantes para instrumentalizar as

decisões dos professores é destacar a necessidade de se avaliar os processos de formação inicial

e permanente destes agentes. Faz-se crucial que as contribuições das pesquisas relacionadas ao

ensino e à aprendizagem de ciências de fato atinjam as discussões acerca do processo de

formação dos professores desta disciplina podendo, assim, garantir que novas idéias não sejam

anuladas na sua aplicação concreta em sala de aula.

Questões de pesquisa, hipóteses e opções metodológicas:

Elegeu-se como tema desta pesquisa o currículo e o conhecimento escolar em ciências

naturais no Ensino Fundamental. A este respeito, sugeriram-se indagações como: quais são os

conteúdos e, especialmente, os conceitos focalizados e como são desenvolvidos na prática de sala

de aula, que possibilidades de interferência o professor abre para seus alunos, se e como ele

aborda aspectos históricos da produção do conhecimento científico3, como ele avalia se a

transmissão de conhecimentos garantiu a aprendizagem.

O que se buscou descobrir foram diferentes possibilidades de relação conteúdo-forma que

se concretizassem em aulas de ciências naturais no Ensino Fundamental. Assim, diante das

possibilidades e limitações no estabelecimento de suas práticas, que escolhas faz o professor na

3 A respeito da relevância de se manter uma preocupação com a perspectiva histórica de construção do conhecimento científico no ensino de ciências, Carvalho e Gil-Pérez (2003) indicam que compreender como evoluíram tais conhecimentos evita uma visão estática e dogmática da Ciência, uma vez que, dessa forma, relaciona-se a produção científica de uma época com os problemas enfrentados pela sociedade no mesmo período (p. 23).

7

constituição do conhecimento escolar nessa disciplina, além das já apontadas na produção

acadêmica sobre o ensino de ciências naturais? Quais são os determinantes que a escola, em suas

condições de organização e funcionamento, impõe ao ensino de ciências naturais?

Em resumo, esta pesquisa partiu da indagação sobre o que é esse conhecimento escolar

que se constitui na prática. Como produção singular, que guarda relações com as Ciências de

Referência, e organizado segundo os contornos que definem a escola como instituição, esse saber

pode ser destrinçado e analisado.

Uma vez que se considere a Ciência como construto social e que se admita que o ensino

de ciências lida com uma parcela desse conhecimento científico, recontextualizada na realidade

escolar, considerou-se fundamental investigar o que compõe esse conhecimento escolar, tanto no

que se refere aos conteúdos escolhidos quanto à forma privilegiada para a sua transmissão.

Caracterizar o conhecimento escolar nessa disciplina pode revelar o tipo de representação que a

escola constrói sobre a Ciência, tanto no que se refere aos seus produtos quanto ao seu processo

de elaboração. Essa caracterização pode auxiliar na compreensão sobre a formação do aluno em

sala de aula, indicando possíveis valores que mediarão suas relações sociais, com o meio

ambiente e com o próprio conhecimento científico.

Os resultados desta investigação pretenderam, portanto, contribuir para o esclarecimento

do que ocorre com o currículo oficial de ciências naturais quando é incorporado à escola e do que

significa o trabalho dessa disciplina no currículo e no processo de escolarização e formação dos

alunos. Admitiu-se a possibilidade de que a relação entre Escola, Ciência e Sociedade que,

segundo Megid Neto (2001, p. 102), é escassamente discutida na produção acadêmica sobre o

ensino de ciências naturais no Brasil, fosse melhor compreendida a partir dos resultados de uma

investigação desta natureza. Além disso, se a combinação dos resultados do presente estudo com

os de pesquisas da mesma natureza indicarem algo a ser modificado, somente pode-se esperar

mudança real se for planejada de acordo com as informações sobre o currículo real dessa

disciplina. Na mesma direção, afirmam Giroux e Penna (apud Gimeno Sacristán, 1998, p. 133):

Só tratando de entender o currículo manifesto ou oficial dentro das condições escolares, e estas e aquele dentro do contexto político, social e econômico exterior à escola, entende-se a escolarização e os educadores podem desenvolver esquemas de pensamento mais apropriados para compreender o ensino e elaborar com mais realismo propostas de modificação da mesma.

8

A partir dos resultados obtidos por Zancul (2002) e pela análise dos resumos das teses e

dissertações destacadas dos trabalhos de Megid Neto (2001) configuraram-se hipóteses, ou

possíveis indicações do que se poderia encontrar em termos de conteúdo e forma assumidos pelo

ensino de ciências naturais no Ensino Fundamental II.

No que dizia respeito ao conteúdo, esperou-se a confirmação do papel proeminente do

livro didático como fonte para a determinação dos temas a serem abordados durante o ano, bem

como da seqüência estabelecida para essa abordagem. Em relação a esta última, considerou-se a

possibilidade de ser comum o não cumprimento dos capítulos finais dos livros e, portanto, dos

temas deixados para o final do período letivo, uma vez que as dificuldades encontradas pelo

professor durante o ano, ou mesmo a realização de alguma atividade não prevista, poderiam gerar

atraso no andamento do plano do professor. Não se esperava que as atividades não planejadas ou

muito independentes do que propõe o livro didático fossem comuns, pelo grande volume de

conteúdo proposto para ser abordado em um restrito intervalo de tempo.

Admitiu-se que a escolha pelas indicações do livro didático em termos de conteúdo e

mesmo de forma talvez gerasse uma despreocupação em relação ao encadeamento dos temas de

aulas, fruto da confiança do professor na organização e na seqüência estabelecidas entre eles em

um livro legitimado pelo uso ou pelas instâncias governamentais; um instrumento que associa os

conteúdos apontados como necessários à formação do aluno e sugestões de métodos para a sua

abordagem – como o livro didático — poderia trazer a segurança que a própria formação do

professor talvez não lhe conferisse.

Mais especificamente com relação à forma, esperou-se o predomínio da abordagem dos

conteúdos centrada no professor, através de exposições orais e da realização de exercícios e

atividades propostas no livro didático. A ocorrência de atividades que fizessem uso de outros

recursos didáticos ou mesmo de atividades de experimentação não foi considerada muito

provável, seja pela falta de recursos materiais, por problemas de adequação do conteúdo ao

tempo disponível para a sua abordagem, pelo número elevado de alunos por sala ou até pelo

receio do professor em propor essas atividades e não conseguir cumprí-las ao se deparar com os

problemas de indisciplina ou com a sua própria inexperiência nessas atividades.

Nesse quadro já confirmado por inúmeros estudos, no entanto, algumas lacunas se

apresentaram. O próprio quadro, na verdade, serviu de padrão a ser questionado na relação entre

os focos priorizados e seus vários determinantes. Foi preciso considerar as determinações

9

escolares sobre a atividade docente e os demais fatores que orientam as escolhas do professor, o

uso que faz do livro didático, o teor de suas explicações, o modelo pedagógico

predominantemente assumido em suas aulas, as suas criações pessoais para acompanhar os

alunos na aprendizagem, o que mais valoriza em sua prática, a interferência dos alunos na

equação conteúdo-forma na organização da atividade docente, e os aspectos que se referem à

formação e utilização de conceitos.

Levando em conta essas questões, a pesquisa se organizou considerando que, diante do

quadro complexo de fatores que condicionam a prática do professor, existe um restrito espaço de

autonomia relativa não desprezado por esse agente e que suas escolhas delimitam o conhecimento

de ciências oferecido aos alunos. Nessas atividades de selecionar e contextualizar o

conhecimento, de acolher os alunos em seus questionamentos, de encadear conceitos e temas,

entre outras, é que o professor exerce seu papel fundamental na definição prática do

conhecimento escolar de ciências naturais. Conseqüentemente, indicou-se como hipótese inicial

de investigação, que os detalhes da prática docente e dos modos de organização do trabalho da

escola imprimem os traços centrais do conhecimento escolar constituído nessa disciplina.

Admitiu-se que esse tipo de investigação exigiria partir do acompanhamento sistemático

de situações de sala de aula, um dos espaços onde se explicitam as escolhas do professor.

Considerou-se que é nesse espaço que devem se estabelecer os confrontos entre essas escolhas e

as possíveis limitações para a sua implementação, o que resulta, finalmente, na constituição do

conhecimento escolar.

Optou-se por acompanhar aulas de ciências naturais – disciplina que doravante será

denominada, como usualmente acontece na escola, simplesmente como ciências – em uma escola

pública, no segundo segmento do Ensino Fundamental (5a e 7a séries). A escolha em relação à

escola pública deveu-se ao fato de ser essa a escola que atende à maioria da população e onde as

condições de trabalho do professor são mais comuns, sem grandes diferenciais como os que

podem ser encontrados em escolas particulares, tais como laboratórios bem equipados, outros

recursos materiais ou classes com número reduzido de alunos. No entanto, considerou-se que

uma escola pública estável em sua organização e condições de trabalho poderia revelar surpresas,

ou seja, possibilitar o acesso a dados ainda não conhecidos no que se refere à busca de um ensino

de qualidade e a desempenhos diferenciados na atividade docente. Daí a escolha por uma escola

pública comum, mas que apresenta condições estáveis de organização e funcionamento.

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Quanto à definição das séries, a escolha inicial residiu na tendência a se concentrarem na

5a série conhecimentos de diferentes áreas científicas, conforme a distribuição tradicional dos

conteúdos citada por Zancul (2002), com enfoque preferencial das condições existentes na Terra

para a manutenção da vida. Assim, conhecimentos de diversas Ciências de Referência são

abordados pelo professor, o que poderia enriquecer as observações. Nas séries finais do Ensino

Fundamental os conteúdos tendem a ser específicos de uma ou, no máximo, duas determinadas

Ciências de Referência — Biologia, na 6ª e 7ª séries e Física e Química, na 8ª. Observar, ou não,

o trabalho em uma destas séries, seria uma decisão decorrente da suficiência dos resultados dessa

primeira escolha para a discussão pretendida.

A investigação da relação entre conteúdo e forma no ensino dessa disciplina exigiu

diversos tipos de levantamentos, incluindo informações sobre o material preparado pelo

professor, os conteúdos e as formas de abordagem presentes no livro didático adotado, os

instrumentos de avaliação de aprendizagem e também informações sobre a organização do ensino

no que se refere à seleção de conteúdos, o ritmo de desenvolvimento e os focos temáticos

privilegiados.

A partir do estabelecimento das questões de pesquisa, traçou-se o detalhamento das

informações necessárias para posterior análise, bem como de suas fontes, procedimentos de

pesquisa e dos instrumentos escolhidos para esse fim. Ainda que as questões fossem muito

relacionadas entre si, o seu desmembramento serviu ao propósito de detalhar as informações a

serem levantadas.

Para tentar responder à primeira questão — que conteúdos e conceitos o professor

seleciona para a transmissão? —, buscou-se obter informações sobre: os temas escolhidos, as

ênfases conceituais que encadeiam as aulas, os tipos de exercícios realizados pelos alunos, os

conteúdos destacados nas sínteses de aula ou em roteiros de estudo para as avaliações, os

destaques ou trechos do livro didático indicados para cópia no caderno dos alunos e os conteúdos

priorizados nas questões de avaliação. As fontes para a obtenção dessas informações foram o

desenvolvimento das aulas, o livro didático adotado e os instrumentos de avaliação. Os

procedimentos de pesquisa consistiram em observação de aulas e análise documental e o

instrumento utilizado foi o roteiro de observação de aula (Anexo B).

A segunda questão — como o professor aborda os conteúdos selecionados? — referiu-se à

forma de transmissão do conhecimento e permitiu o levantamento de informações sobre: o

11

percurso realizado na aproximação dos conceitos científicos, os exemplos utilizados nas

explicações do professor, a forma de correção de tarefas, o tipo de questionamento dirigido aos

alunos durante as explicações do conteúdo, a forma de organização das sínteses do professor e o

tipo de uso que se faz dos recursos didáticos. Essas informações foram obtidas nas aulas do

professor. Como procedimento de pesquisa realizou-se a observação direta das aulas. Para tal,

foram utilizados roteiros de observação de aula.

Da seguinte pergunta — que possibilidades de interferência o professor abre para os

alunos em suas aulas? — esperou-se obter informações sobre: as respostas do professor às

interferências dos alunos durante suas explicações, a forma de aproveitamento – se houvesse –

das informações trazidas pelos alunos em suas intervenções e o tratamento dispensado pelo

professor à produção escrita dos alunos. Essas informações puderam ser obtidas nas seguintes

fontes: aulas e instrumentos de avaliação. Através do procedimento de observação direta das

aulas as informações acima foram registradas em relatórios de observação de aulas.

A última questão — que fatores exercem influência nas decisões do professor a

respeito do conteúdo e da forma que escolhe em sua prática? — apontou para informações

sobre: a opinião do professor acerca da quantidade, relevância e acessibilidade dos conceitos

abordados em ciências, as dificuldades que o professor aponta para a realização de atividades

programadas, ou desejadas, e não realizadas e as aberturas e os limites impostos pela escola à

prática docente. A fonte para a obtenção dessas respostas foi o professor. Como procedimento de

pesquisa adotou-se a entrevista e o questionário. Para tal, os seguintes instrumentos de pesquisa

foram utilizados: roteiros de entrevistas e de questionários (Anexo C).

As indicações anteriores mostram que o principal procedimento de pesquisa utilizado foi a

observação direta de aulas. Esta escolha justifica-se pela própria natureza da questão fundamental

de pesquisa. Ao pretender caracterizar o conhecimento escolar de ciências foi preciso observar o

que acontece de fato na sala de aula, onde a mediação entre o currículo oficial, o currículo

manifesto e o currículo oculto constitui o currículo real, ou seja, aquilo que acontece de fato em

termos de produção e aquisição de conhecimento. Para essa compreensão há que se considerar

aquilo que é prescrito oficialmente como conhecimento mínimo que o aluno deve adquirir nessa

área (o currículo oficial), traduzido, por exemplo, nos livros didáticos (o currículo planejado);

aquilo que não é revelado nem nos currículos oficiais nem nos manifestos mas que direciona o

olhar, a atenção dos alunos e determina valores relativos ao conhecimento e à formação moral (o

12

currículo oculto) e o que realmente se expressa nas práticas de sala de aula (o currículo real)

(Gimeno Sacristán, 1998, p. 132-133). Somente nas situações de aula seria possível a

aproximação do que de fato acontece em termos de produção do conhecimento escolar uma vez

que nessa situação revelam-se relações entre os currículos prescritos nos planos e planejamentos

do professor e nos materiais didáticos, as formas escolhidas para a transmissão de conceitos e os

padrões de relações que se estabelecem entre os alunos, o professor e o conhecimento.

Os demais procedimentos utilizados revelaram mais acerca do que o professor deseja

constituir em termos de conhecimento de ciências, da relevância que ele atribui a essa disciplina e

conseqüentemente aos conceitos que aborda, das dificuldades que identifica em sua prática e

daquilo que efetivamente ele consegue produzir.

Utilizando recomendações de Brandão (2002, p. 29) sobre escolha de instrumentos e rigor

na pesquisa, os instrumentos escolhidos para a investigação foram cuidadosamente selecionados

no intuito de garantir a devida consonância com o problema a ser investigado e de permitir

análise e interpretação abrangentes e rigorosas.

No Anexo B encontram-se o modelo de relatório de observação de aula e o roteiro de

descrição da escola e de seu entorno.

Algumas questões conduziram ao uso de questionários e roteiros de entrevistas,

elaborados após o início do trabalho de campo, uma vez que as primeiras observações trouxeram

maior clareza em relação às categorias centrais que poderiam agregar informações a serem

buscadas por meio desses procedimentos. O roteiro do questionário e as transcrições das

entrevistas encontram-se no Anexo C.

A consideração até agora exposta acerca da complexa interação de fatores determinantes

da prática do professor apontou para a adoção de uma perspectiva relacional de análise das

informações obtidas, que não deveria desprezar nenhum desses fatores, inclusive os relativos à

natureza histórica de aspectos dessa prática.

A prática do cotidiano foi o fio norteador da reflexão, à luz dos referenciais da Sociologia

da Educação. Teorias e conceitos de Gimeno Sacristán sustentaram as análises das informações

sobre as práticas observadas na realidade escolar. Além deste autor, as reflexões se apoiaram em

alguns estudos de Bernstein e de autores que investigaram a história da escola e da forma escolar

(Vincent, Lahire & Thin), os padrões pedagógicos e modelos didáticos (Varela; Astolfi &

Develay), assim como a especificidade do conhecimento escolar (Lopes; Santos).

13

Nesse sentido, as análises buscaram referência nas discussões teóricas que seguem

essencialmente três direções: a da prática educativa, a do conhecimento escolar e a da forma

escolar.

A apresentação da pesquisa está disposta de acordo com a seguinte seqüência: o Capítulo

I traz informações preliminares para que se possa estabelecer uma análise da forma como se

apresenta o ensino de ciências no Brasil hoje, traçando o seu histórico, indicando algumas idéias

sobre a relevância da formação de conceitos no ambiente escolar e descrevendo modelos

pedagógicos sob os quais o ensino desta disciplina pode se desenvolver. No Capítulo II, delineia-

se uma descrição da escola em que se deu a pesquisa e das práticas docentes observadas, bem

como uma apresentação de informações acerca das professoras acompanhadas. No Capítulo III,

compõem-se as reflexões sobre os dados apresentados, de acordo com o referencial teórico

adotado. A seguir traçam-se algumas considerações finais.

14

CAPÍTULO I

O ENSINO DE CIÊNCIAS

15

Notas históricas relativas ao ensino de ciências no Brasil:

É possível traçar um breve histórico do que tem sido valorizado no ensino de ciências,

focalizando alguns marcos da história da escola no Brasil, no período referente ao último século.

Convém lembrar que, segundo Cury (1996), pode-se dizer que a questão do currículo adotado nas

escolas brasileiras “tem história junto à história das políticas educacionais no Brasil, sempre

sendo reposto como instrumento de coesão nacional” (p. 6-7). Assim, a análise da presença ou

não de determinada disciplina nas prescrições legais, bem como as determinações dos métodos

que devem garantir seu aprendizado, pode sugerir a sua relevância na formação do cidadão

“ideal” em cada contexto histórico. No mesmo sentido, situar diversas orientações para o ensino

de ciências pode favorecer a compreensão de sua atual configuração no Ensino Fundamental.

A primeira lei de ensino do Brasil, publicada a 15 de outubro de 1826, prescrevia a oferta

obrigatória de língua portuguesa, aritmética, história do Brasil e religião católica. Porém, ela não

trazia programas previamente definidos. Tal orientação surgiu a partir de 1837, quando as

disciplinas do ensino secundário passaram a contar com uma referência: os currículos e mesmo

os livros didáticos adotados pelo Colégio Pedro II (Cury, 1996, p. 7).

O autor complementa:

Excetuada, porém, a presença paradigmática do Colégio Pedro II, as competências relativas ao ensino primário (e em certa medida relativas ao ensino secundário) ficaram com os estados ou municípios, os quais poderiam exercitar sua autonomia no âmbito dos currículos (p. 7).

No final do século XIX, no Estado de São Paulo, a instituição das Escolas Primárias

Graduadas foi alardeada como uma maneira de, através da educação popular, se atingir os

objetivos de progresso da nação, pela adoção de “um modelo que, guardadas as peculiaridades de

cada país, estava se difundindo por todo o mundo” (Souza, 1998, p. 31). Esse modelo indicava a

necessidade de uma reestruturação do espaço escolar, dos materiais didáticos, do tempo escolar,

dos métodos de ensino e dos processos de formação dos professores.

Em 1890, segundo Abreu (2002), instituiu-se o método intuitivo no ensino público

paulista (p. 62). As orientações para o ensino e a aplicação do método intuitivo passaram a ser

mais específicas em 1894 (idem, p. 65).

16

Para a transmissão de conhecimentos, o método intuitivo foi considerado como a melhor

forma de abordagem dos saberes, sendo considerado como símbolo da renovação e da

modernização do ensino (Souza, 1998, p.159). Inspirado nas lições de coisas — criação da

Inglaterra e dos Estados Unidos, no século XIX –, esse método consistia em exercitar a criança

no uso dos sentidos para apreender com ordem e rigor as qualidades dos objetos que a cercam.

Não havia a preocupação em apresentar às crianças o processo de produção de conhecimentos

científicos. Assim, como observa Hébrard (2000) no seu estudo sobre o ensino de ciências na

França, o método intuitivo não tinha como objetivo o “fazer ciência”, apenas acumular

observações que pudessem proporcionar um saber empírico que, mais tarde, poderia ou não se

tornar Ciência (p. 116-117).

No decreto nº 1217, de 1904, encontra-se o encaminhamento do ensino de ciências com

regras do método intuitivo. No decreto nº 2005, de 1911, a orientação para o ensino de ciências

aponta essencialmente para o desenvolvimento da observação e experiência direta e pessoal dos

alunos (Abreu, 2002, p. 66-69).

No ano de 1931, foi criado o Conselho Nacional de Educação, responsável por indicar as

diretrizes gerais do ensino primário, secundário e superior. Além disso, como determinação do

Conselho Nacional de Educação, passa a existir a possibilidade de oficialização dos

estabelecimentos de ensino secundário por meio da aceitação do regimento e currículos do

Colégio Pedro II (Cury, 1996, p. 8). No Programa do Curso Secundário do Colégio Pedro II

(1933), que servia de referência para os demais estabelecimentos de ensino secundário,

encontram-se os seguintes objetivos para o ensino da disciplina Ciências Físicas e Naturais, nas

duas primeiras séries ginasiais: “dar uma noção geral dos fenômenos da natureza e das suas

aplicações mais comuns à vida quotidiana, nas cidades e nos campos, de acordo com o

desenvolvimento da civilização da nossa época” (p. 14). Com relação aos métodos, a disciplina

de Ciências Físicas e Naturais deveria seguir os métodos “rigorosamente científicos” da Física,

da Química e da História Natural, compreendendo mais os aspectos de conjunto do que as

minúcias, que deveriam ser reservadas aos estudos técnicos e profissionais (idem, p. 15). O

ensino deveria sempre ser feito “pela apresentação direta dos fatos, pela indução e demonstração

experimental das leis e pela verificação das propriedades e dos resultados previamente descritos e

assinalados, em aula, pelo professor e, nos exercícios práticos, pelos alunos” (idem, p. 15).

17

No Programa do Colégio Pedro II (1933), inclui-se, a partir da terceira série ginasial, além

das disciplinas Física e Química, também a de História Natural. Esta última tinha como objetivo:

Proporcionar aos alunos o conhecimento das formas vivas e inertes do mundo objetivo, atuais e passadas, nas suas incessantes transformações e em suas relações mútuas e, ao mesmo tempo, iniciá-los na prática do método de observação, educando-lhes o poder de atenção reflexiva, a perspicácia do raciocínio, a faculdade das generalizações e o senso crítico e estético, indispensáveis à apreciação consciente das belezas e da harmonia da natureza (p. 29).

Quanto aos métodos, o Programa do Colégio Pedro II (1933) prescrevia:

A iniciação no estudo da História Natural, na 3ª série, atendendo às exigências pedagógicas do método indutivo, deverá ser feita por meio de ensaios descritivos das espécies naturais, em colóquio entre o professor e alunos, insistindo-se mais, de começo, nos caracteres específicos do que nos do conjunto a que pertence o espécime considerado. Os conhecimentos assim adquiridos, de modo visual e em contato com a realidade, serão reproduzidos sob a forma de esquemas, aos quais, pela exclusão das variações individuais, se procurará fixar o caráter natural em apreço, transformando-o em conceito científico, o que é a aquisição útil a ser conservada pelos alunos, dessa maneira, sem esforço algum de memória (p. 30).

Fica nítido no trecho acima o entendimento presente nesse momento sobre a formação de

conceitos. A orientação era para que, a partir de exemplos singulares, se desenvolvessem

esquemas que reproduzissem os conhecimentos adquiridos no contato direto com as espécies; em

seguida, a eliminação de variações individuais levaria à generalização e à formação do conceito.

Enfim, nas prescrições para o ensino de ciências do Colégio Pedro II, o que se observa é a

ênfase no desenvolvimento da observação, na indução e na demonstração experimental pelo

professor, com a valorização do contato direto do aluno com o material estudado para chegar à

formação de conceitos.

Em 1942, a reforma do ensino secundário, conduzida pelo ministro Gustavo Capanema,

enfatizou uma formação humanística do tipo clássico, em detrimento de uma formação mais

técnica. Nesse sentido, as ciências não foram de todo retiradas dos programas, mas agregadas sob

uma única disciplina, as ciências naturais, para se diferenciarem no segundo ciclo. Essa reforma

consagrava a divisão do ensino secundário, já definida na Reforma Francisco Campos, em 1931,

entre o ginásio, agora de quatro anos, e um segundo ciclo de três anos, com a opção de clássico e

18

científico. A concepção de inspeção e reconhecimento das escolas secundárias de acordo com a

equiparação com o Colégio Pedro II se manteve na legislação de 1942 (Schwartzman, Bomeny &

Costa, 2000, p. 207).

Krasilchik (1987), analisa a evolução do ensino de ciências no período que vai de 1950 a

19854. Segundo essa autora, no período entre 1950 e 1960, o Brasil vivia uma fase de

industrialização crescente. Nesse contexto social, econômico e político, o ensino secundário

mantinha como finalidade a formação de futuros universitários. O latim ainda prevalecia sobre as

disciplinas científicas e as aulas de Física, Química e História Natural só eram ministradas no

curso colegial (idem, p. 6). De acordo com a autora,

O grande objetivo do programa oficial e dos textos básicos era transmitir informações, apresentando conceitos, fenômenos, descrevendo espécimes e objetos, enfim, o que se chama o produto da Ciência. Não se discutia a relação da Ciência com o contexto econômico, social e político e tampouco os aspectos tecnológicos e as aplicações práticas (Krasilchik, 1987, p. 9).

Nesse período, as aulas de disciplinas científicas ficavam a cargo de profissionais como

médicos, farmacêuticos e engenheiros5 (idem, p. 9), o que não contribuía para superar o ensino

livresco, teórico e memorístico que caracterizava esse período. As orientações da época, contudo,

enfatizavam a necessidade de se atualizar os currículos de disciplinas científicas com os

conhecimentos mais modernos da Ciência e com o uso do laboratório. Este último era visto como

um fator de motivação que poderia auxiliar a compreensão dos conceitos científicos (idem, p. 7).

Entre os anos de 1960 e 1970, a preocupação não era com a formação de futuros cientistas ou

universitários. A idéia era “garantir a democratização do ensino para o homem comum que

convive com o produto da Ciência e da Tecnologia, dando-lhe conhecimento necessário para o

futuro político, profissional liberal, operário, cidadão, enfim” (idem, p. 9-10). Nesse período,

procurava-se permitir a experimentação por meio do cumprimento das etapas do método

científico, para a formação do cidadão, vinculando o processo intelectual à investigação

científica. Isso significava a valorização da participação do aluno na elaboração de hipóteses, 4 As considerações sobre esse período apresentadas no texto baseiam-se no estudo indicado acima (Krasilchik, 1987). 5 Bontempi Júnior (2001) explica que no final da década de 1930, em discursos oficiais na Faculdade de Filosofia da USP, já se apontava para a falta de um corpo de professores secundários de carreira devido ao fato de não terem existido Escolas Superiores ou Faculdade de Ciências e Letras que visassem esse fim e também devido à remuneração irrisória que inviabilizava a atualização e a aperfeiçoamento técnico desses profissionais: “os professores para esse grau de ensino vinham sendo recrutados entre os falidos das profissões liberais, e legitimados mediante simples registro” (p. 154-155).

19

análise de variáveis, planificação de experimentos e aplicação dos resultados obtidos (Krasilchik,

1987, p. 10).

A Lei nº 4024, de 1961, ampliara o escopo do currículo de ciências, aumentando a carga

horária das disciplinas científicas e incluindo a disciplina Iniciação à Ciência desde a primeira

série do curso ginasial. A partir de 1964, o regime militar enfatizava a modernização e o

desenvolvimento do país, e, nesse contexto, acabou por conferir ao ensino de ciências a função de

contribuir para a formação de mão-de-obra qualificada, o que foi sistematizado na Lei nº 5692, de

1971. A escola secundária não mais deveria se preocupar com a formação do futuro cientista ou

profissional liberal, mas com a do trabalhador (idem, p. 16-18).

Nesse processo, especialmente no 2º grau, o currículo foi acrescido de disciplinas

instrumentais ou profissionalizantes, com prejuízo do tempo de aula para outras disciplinas. Isso

resultou em maior fragmentação do ensino de ciências. Segundo a autora, estava também

presente um precário processo de formação de professores, que acabou trazendo conseqüências

negativas para o ensino desta disciplina, entre elas, a centralização do processo ensino-

aprendizagem no livro didático, com ênfase no estudo dirigido6 (Krasilchik, 1987, p. 18).

Por outro lado, as agressões causadas ao meio ambiente pelo desenvolvimento industrial

desenfreado trouxeram ao ensino de ciências mais uma preocupação no decorrer do período que

vai de 1970 a 1980: a discussão das implicações sociais e ambientais do desenvolvimento

científico. Assim, segundo o estudo consultado, “o que agora se visava era incorporar, ao

racionalismo subjacente ao processo científico, a análise de valores e o reconhecimento de que a

ciência não era neutra” (idem, p. 17). Porém, foi marcante nesse período a incoerência entre o

que a lei, na sua letra, e os profissionais da área de educação afirmavam ser importante, ou seja,

formar o indivíduo com espírito crítico e capacidade de refletir sobre o que vê, e o sistema

educacional que, na realidade da sala de aula, não conseguia desenvolver as qualidades aceitas

como válidas e desejáveis. Isso graças a uma deficiente formação de professores, entre outros

problemas que acompanharam a expansão do atendimento escolar ocorrida no período. Nesse

sentido, o recrutamento de um número muito grande de professores assentou-se em parâmetros

mais ligeiros de formação docente. Pode-se citar, por exemplo, a nova modalidade de licenciatura

regulamentada pela Resolução do Conselho Federal de Educação no 30, de 11/07/74. Tal

6 Krasilchik (1987) assim define estudo dirigido: “exercícios, em geral compostos por questões de múltipla escolha que dependiam apenas da leitura ou, mais raramente, questões dissertativas que requeriam transcrição literal do texto” (p. 18).

20

resolução, segundo a autora, “prescrevia um período comum para a formação de professores de

todas as Ciências e de Matemática e que poderia, posteriormente, ser complementado por novos

cursos para os professores que desejassem especializar-se em Física, Química, Biologia e

Matemática” (Krasilchik, 1987, p. 19).

Entre 1980 e 1985, fica patente a importância dada à Tecnologia no currículo escolar,

“tanto visando o desenvolvimento da indústria como a familiarização do indivíduo,

principalmente com o instrumental da informática”. É também marcante nesse período o

desenvolvimento de materiais como jogos e o uso de computadores nas escolas (idem, 1987, p.

23-24).

Já nas atuais diretrizes do ensino de ciências naturais, especialmente nos Parâmetros

Curriculares Nacionais de Ciências Naturais, que incorporam discussões acadêmicas mais

recentes ligadas à educação e às Ciências, encontra-se a concepção de Ciência hoje defendida

como a que deve ser transmitida no Ensino Fundamental, bem como a importância conferida a

essa disciplina na formação dos alunos:

Mostrar a Ciência como elaboração humana para uma compreensão do mundo é uma meta para o ensino da área na escola fundamental. Seus conceitos e procedimentos contribuem para o questionamento do que se vê e se ouve, para interpretar os fenômenos da natureza, para compreender como a sociedade nela intervém utilizando recursos e criando um novo meio social e tecnológico. É necessário favorecer o desenvolvimento de postura reflexiva e investigativa, de não-aceitação a priori de idéias e informações, assim como a percepção dos limites das explicações, inclusive dos modelos científicos, colaborando para a construção da autonomia de pensamento e de ação (Parâmetros Curriculares Nacionais – Ciências Naturais, p. 9).

Destaca-se nessa proposição a importância conferida à Ciência como elaboração humana,

bem como a relevância dessa disciplina para o desenvolvimento nos alunos da autonomia de

pensamento e de ação.

Nas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental, fica patente a

preocupação com a garantia da “igualdade de acesso a uma Base Nacional Comum”, que,

associada a uma Parte Diversificada, deve estabelecer a relação entre a educação fundamental e a

Vida Cidadã (DCN - IV, 1998, p. 7). A Base Nacional Comum se refere aos conteúdos mínimos

das áreas de conhecimento (a dimensão obrigatória dos currículos). A Parte Diversificada refere-

se aos conteúdos complementares escolhidos por cada sistema de ensino. Essas duas partes

21

devem se articular em torno do conceito de Vida Cidadã que, por sua vez, diz respeito a aspectos

tais como: saúde, sexualidade, vida familiar e social, meio ambiente, trabalho, ciência e

tecnologia, cultura e linguagens (DCN, p. 7-8).

Pode-se identificar, na linha de análise que vimos desenvolvendo, o destaque assumido

pela disciplina ciências naturais nesse projeto cultural e formativo indicado para a escolarização.

Diversos aspectos presentes na definição de Vida Cidadã referem-se a temas freqüentemente

abordados por essa disciplina.

Também nas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental pode-se ter

uma visão da concepção de Ciência que perpassa as atuais prescrições oficiais, inclusive

destacando o caráter social e histórico da construção do conhecimento, bem como a

transitoriedade do saber:

A produção e a constituição do conhecimento no processo de aprendizagem dão muitas vezes a ilusão de que podemos seguir sozinhos com o saber que acumulamos. A natureza coletiva do conhecimento termina sendo ocultada ou dissimulada, negando-se o fazer social. Nada mais significativo e importante para a construção da cidadania do que a compreensão de que a cultura não existiria sem a socialização das conquistas humanas. Além disso, a existência dos saberes associados aos conhecimentos científicos e tecnológicos nos ajuda a caminhar pelos percursos da história, mas sua existência não significa que o real é esgotável e transparente (DCN, 1998, p. 8-9).

Em resumo, as orientações para o ensino de ciências no Brasil mostram em sua evolução

certos aspectos recorrentes especialmente no que se refere ao método, como, por exemplo, a

ênfase na importância da observação, indução e experimentação. Outro exemplo é o destaque

conferido à repetição das etapas de investigação do método científico como forma de abordagem

dos conhecimentos científicos na escola. A importância atribuída historicamente ao espaço do

laboratório e às atividades práticas que ali se desenvolvem também parecem conferir maior

legitimidade a essa forma de investigar “cientificamente” o mundo.

Goodson (1996), ao traçar a história da evolução do ensino de biologia no currículo da

escola secundária na Grã-Bretanha, indica que essa disciplina, na luta por legitimidade, perseguiu

um status acadêmico que se efetivou com o estabelecimento universitário dos conteúdos a serem

ensinados. Atingiu-se status através da promoção do que o autor chamou de “ciência dura”,

experimental e rigorosa (p. 151-152). O autor afirma que outros estudos revelam esse mesmo

padrão de evolução do ensino de ciências em outros países (idem, p. 132-134). No Brasil, essa

22

luta por legitimação da disciplina de ciências através da promoção de uma visão de ciência neutra

e infalível também parece ter acontecido em alguns momentos, embora hoje se encontre nos

Parâmetros Curriculares Nacionais a visão de ciência como construção social, passível de erros e

transformações.

No sistema educacional brasileiro, em diferentes períodos, as prescrições para o ensino

dessa disciplina foram se caracterizando pelo enfoque enciclopédico, pela visão utilitária de seus

saberes e, mais recentemente, pela preocupação com a relação entre desenvolvimento científico e

tecnológico e a preservação dos recursos naturais do planeta como meio de garantir a manutenção

da vida.

Por outro lado, mesmo considerando as prescrições legais e diretrizes oficiais como um

referencial para situar e compreender o ensino de ciências, é preciso pontuar que o seu

desenvolvimento na prática pedagógica não significa a mera aplicação de orientações externas à

escola ou a transmissão dos conhecimentos e métodos próprios das ciências. Além disso, como

afirma Gimeno Sacristán (1998):

O que importa não é o que se diz que se faz, mas o que verdadeiramente se faz; o significado real do currículo não é o plano ordenado, seqüenciado, nem que se definam as intenções, os objetivos concretos, os tópicos, as habilidades, valores, etc., que dizemos que os alunos/as aprenderão, mas a prática real que determina a experiência de aprendizagem dos mesmos (p. 133).

Ou seja, entender o que realmente afeta os conteúdos do ensino, supõe também ir além das

práticas estritamente didáticas, esquadrinhar os fatores que condicionam aquilo que é transmitido

aos alunos como conhecimento legítimo.

No caso da concepção de Ciência, por exemplo, o que se defende nos Parâmetros

Curriculares Nacionais de Ciências Naturais é uma visão de Ciência como uma atividade humana

que permite a intervenção sobre o meio e que é limitada nos modelos explicativos que constrói.

No entanto, assim como no caso das orientações anteriores, essa visão, presente nas orientações

oficiais, adentra a escola e atravessa as práticas, introduzindo juízos de valor e desafios ao já

instituído. Ainda que essa seja a concepção declarada nas atuais orientações para o ensino de

ciências naturais, não se pode afirmar que também esteja presente, norteando ou interferindo

diretamente sobre a prática: é preciso investigar a compreensão de ciências presente nos

conteúdos e na forma de abordá-los. Muitos devem ser os fatores que interferem nas escolhas que

23

o professor faz acerca dos aspectos relativos aos conteúdos que enfatizará e às formas como serão

desenvolvidos. Essas escolhas compõem um corpo de práticas sedimentadas e também de

conhecimentos relativos a essa área, que necessitam ser melhor caracterizados para que se possa

avaliar o papel dessa disciplina na formação cultural oferecida pela escola.

Notas teóricas relativas ao ensino de ciências:

Para compreender a disciplina de ciências no Ensino Fundamental, faz-se necessário

discutir algumas questões relevantes, tais como a formação de conceitos e mesmo as

características do processo de ensino e aprendizagem de ciências. Nessa direção, mostram-se

relevantes algumas indagações, tais como: a formação de conceitos cumpre que papel no

desenvolvimento dos indivíduos? Qual é a importância da escolarização, nesse sentido? Para

iniciar uma discussão a esse respeito é pertinente o estudo de Sforni (2003), que, ao justificar a

importância da educação escolar, pensa no “acesso a conteúdos, defendendo-os como via de

formação para entender o mundo, adquirir método de conhecimento e ampliar recursos

cognitivos” (p. 23). Portanto, a escolarização seria importante para conferir domínio de símbolos

e instrumentos culturais que possibilitassem a mediação da criança com os outros e com o meio.

Isto garantiria a o acesso à produção cultural que, para a autora, é condição de interação social

plena (idem, p. 18).

Segundo a psicologia histórico-cultural7, a escolarização tem papel fundamental na

constituição do psiquismo e essa constituição depende do desenvolvimento do sistema nervoso e

da qualidade das trocas que se dão entre os indivíduos. Ou seja, o desenvolvimento da estrutura

cognitiva de uma pessoa depende de um fator interno, sua maturação biológica, e de fatores

externos, as relações que estabelece com os demais indivíduos em seu meio. Os processos

psicológicos superiores respondem tanto à maturação quanto à qualidade das relações

estabelecidas pelo indivíduo com seu meio e com os demais membros de seu grupo. Assim, o

processo geral de desenvolvimento cognitivo envolve o desenvolvimento de processos

elementares, de origem biológica e o desenvolvimento de processos superiores, de origem sócio-

7 Sforni (2003) afirma que a “psicologia histórico cultural”, representada pelos trabalhos de Vygotsky e seus colaboradores, considera o psiquismo como um fenômeno histórico cultural: “apoiando-se em pressupostos do Materialismo Dialético, Vygotsky procura elaborar uma teoria que compreende a natureza do comportamento humano como parte do desenvolvimento histórico” (p. 27).

24

cultural. De acordo com a autora, Vygotsky considerava que as raízes destas duas linhas de

desenvolvimento surgem na infância, por meio do uso dos instrumentos e da fala (Sforni, 2003, p.

30).

Do exposto, pode-se concluir sobre a importância da interação social e da relação que os

indivíduos estabelecem com os conteúdos para o seu desenvolvimento cognitivo. A aceitação

desta importância confere à escola papel fundamental uma vez que contribuiria para o domínio

dos elementos culturais que permitiriam uma interação adequada com os outros indivíduos e com

a natureza:

Se a organização social é complexa, se conta com níveis de divisão de trabalho, se as relações com a natureza são indiretas, maiores são as necessidades de situações específicas de ensino e de ambientes especiais – escolas — que coloquem à disposição dos indivíduos os signos e instrumentos produzidos socialmente (Sforni, 2003, p. 19).

A autora aponta que, para Vygotsky, as atividades coletivas desencadeiam o

desenvolvimento das funções psicológicas superiores, entre elas a atenção voluntária, a memória

lógica e a formação de conceitos. Estas atividades passam a ser orientadoras da atividade

individual, ou seja, as funções psicointelectuais que se faziam presentes no meio externo pelos

instrumentos e signos utilizados, são internalizadas pela criança como propriedades de seu

próprio pensamento. Assim, “a apropriação do conhecimento e, com ele, o desenvolvimento

cognitivo vai da dimensão social à individual” (idem, p. 33).

Trazendo essa forma de entender o processo de aprendizagem, a autora põe em relevo a

interação social que se estabelece na escola:

Na interação social não são transmitidos apenas conteúdos, mas também elementos que propiciam o desenvolvimento de capacidades de memória, atenção, abstração, generalização, dentre outras, ou seja, a forma de pensamento também é construída na atividade mediada (p. 34).

Conclui-se do exposto que a interação que se dá na escola é fundamental tanto para que se

estabeleça o contato e a apropriação dos elementos culturais quanto para possibilitar o

desenvolvimento de formas superiores de pensamento.

Quanto ao processo de ensino e aprendizagem de ciências naturais, segundo o estudo de

Lopes (1995), ele pode ser conduzido de acordo com duas concepções acerca da produção do

25

conhecimento (p. 48-49). Na primeira, o conhecimento científico é encarado como uma

reelaboração do conhecimento comum, numa visão continuísta: “passa-se de um saber a outro

por reformulações contínuas, como se passa do diamante bruto para o lapidado: a construção

ocorre apenas na aparência, pois a essência já se encontrava na pedra bruta para ser descoberta”.

Nessa perspectiva, a elaboração do conhecimento é vista como conversão da pedra bruta em

lapidada, porém, a essência da explicação para os fenômenos naturais já se encontra no

conhecimento comum. Essa visão, no ensino de ciências naturais, se converte em uma

aproximação forçada entre os dois tipos de conhecimento, muitas vezes resultando no

reducionismo do conhecimento científico e na concepção de Ciência como um processo de

construção de uma única razão explicativa, não resultante de conflitos de idéias. Para a autora,

nessa concepção, o conhecimento científico é visto como um conhecimento comum “melhorado”,

e só se admite uma razão que justifique todo e qualquer conhecimento. Essa razão única implica,

por conseguinte, o método e a conduta de conhecer (Lopes, 1995, p. 43).

A outra abordagem, admite uma ruptura entre os dois tipos de conhecimento e considera

que “as informações científicas não são acumuladas no processo lento e constante de gestação de

novos conceitos. Ao contrário, novos conhecimentos contradizem conhecimentos anteriores”

(idem, p.46).

Esta perspectiva concebe a coexistência de mais de uma explicação para um mesmo

fenômeno, com a construção de novos conceitos, o que ocorre com a desestruturação dos

anteriores e não pela tentativa de se reduzir todos a uma única razão explicativa. Entende-se que,

nesta perspectiva, a pluralidade de idéias e conflitos presentes na produção do conhecimento

científico traz conseqüências para a orientação do ensino, como observam Astolfi e Develay

(1990):

A abordagem histórica dos conceitos científicos nos revela a não linearidade de um certo progresso do pensamento científico, mas um desenvolvimento progressivo com avanços e recuos durante o qual é possível pontuar obstáculos, tanto é verdade que as teorias não se constituem por uma adição sucessiva de fatos novos, mas por rupturas (p. 19).

Essa abordagem não nega a existência de relações entre o conhecimento científico e o

comum, mas questiona a validade de se tentar reduzir uma forma à outra para a transmissão do

conhecimento no processo ensino-aprendizagem. No ensino de ciências, não se pode assegurar a

26

continuidade, mas o conhecimento comum pode ser negado para que o conhecimento científico

seja compreendido.

Ainda no que se refere à transmissão do conhecimento, pode-se ensinar ciências

considerando seu conteúdo como um conjunto de resultados ou de informações produzidas e

acabadas, sob uma concepção da Ciência como um produto, cujo passado não interessa, uma vez

que os conceitos atuais são aprimoramentos dos anteriores, ou como um processo de construção

que não define verdades absolutas e que se dá por avanços e recuos, admitindo a possibilidade do

erro8.

Daí que, se a concepção acerca da produção do conhecimento científico que norteia o

processo de ensino-aprendizagem é a continuísta, sob a justificativa de valorização dos

conhecimentos dos alunos e de maior acessibilidade às informações científicas, faz-se um

movimento no sentido de ajustar o conteúdo às explicações do senso comum, terminando sempre

com a afirmação da superioridade do científico em relação ao comum. Nesse sentido, livros

didáticos, filmes, experimentos e outras estratégias são utilizadas para confirmar essa

superioridade e declarar qual é a verdade absoluta que a Ciência proclamou em relação aos

fenômenos estudados. Se por um lado, isso pode tornar aparentemente mais fácil a transmissão

dos conhecimentos, pode também trazer a noção de que o conhecimento científico não é passível

de mudança ou de questionamento. Nesse sentido, toda e qualquer explicação que venha dos

alunos seria útil apenas para servir de ponto de partida para a confirmação da verdade científica,

enquanto que na Ciência, ao contrário, os conflitos são comuns e as verdades são sempre

questionáveis.

Na medida em que defende a ruptura entre conhecimento comum e científico no ensino de

ciências, Lopes (1995) acredita que a visão descontinuísta sobre a produção do conhecimento

científico enriquece o processo de ensino-aprendizagem desta disciplina (p.50). O ensino de

ciências baseado na perspectiva continuísta de construção dos conhecimentos científicos passa,

segundo essa mesma autora “a visão de uma ciência fácil, acessível, próxima do saber cotidiano,

cujas teorias podem ser construídas com base em breves conjecturas e reduzido trabalho

laboratorial” (idem, p. 48).

8 A esse respeito, em Leite (1995) encontra-se relevante discussão sobre conhecimento-produto e conhecimento-processo.

27

Mas, deve-se lembrar que a escola não trata apenas dos saberes “em estado puro”. Na

verdade, ela trabalha com conteúdos de ensino que resultam de cruzamentos complexos entre

uma lógica conceitual, um projeto de formação e exigências didáticas (Astolfi & Develay, 1990,

p. 51). Todos esses fatores definem um conteúdo e uma forma de transmissão, numa relação em

que esses dois componentes, a forma e o conteúdo, afetam-se mutuamente.

A forma de transmissão que o professor adota consiste num conjunto de procedimentos

pedagógicos. De acordo com Astolfi e Develay (1990), estes procedimentos se fundamentam em

três fatores: na escolha das hipóteses de aprendizagem, na escolha dos valores e das finalidades.

A maneira como esses três fatores se combinam, bem como a natureza dessas escolhas, resulta

em diferentes modelos pedagógicos. Esses modelos se materializam em métodos, técnicas e

ferramentas utilizadas pelo professor, ou seja, na forma de transmissão que ele privilegia (idem,

p. 109).

Os autores apontam e descrevem três modelos pedagógicos que podem ser observados no

ensino de ciências. No primeiro, o da aprendizagem por investigação, a ênfase do professor é na

percepção das necessidades das crianças e na livre expressão destas. As atividades não fazem

referência explícita a aprendizagens e a maior relevância é dada ao desenvolvimento de um

espírito crítico. Nesse modelo, os objetivos das atividades não são estabelecidos anteriormente e a

sua finalidade é desenvolver atitudes mais do que transmitir conhecimentos (Astolfi & Develay,

1990, p. 117).

No modelo de aprendizagem por transmissão-recepção, considerado como o mais

próximo da pedagogia tradicional, o diálogo é essencialmente comandado pelo professor que

segue a programação baseada na sucessão de aquisições de conhecimento pelos alunos. O

professor utiliza diversas técnicas (experimentação, trabalhos em grupo, audiovisuais...) para

compor exemplos prototípicos, simples e não-ambíguos, que confirmem a sua exposição e

“neutralizem” as representações espontâneas dos alunos (idem, p. 120). Esse modelo parece estar

estreitamente ligado a uma concepção continuísta da produção do conhecimento científico, uma

vez que os conteúdos são expostos num encadeamento que traz em si uma noção de Ciência

como uma série contínua de sucessos, aproximações mais e mais perfeitas da realidade.

O terceiro modelo descrito por esses autores, o da aprendizagem por investigação-

estruturação, integra e dá coerência aos dois anteriores. As suas hipóteses de aprendizagem são: a

importância das representações prévias dos alunos, a necessidade da aprendizagem significativa e

28

a valorização do estabelecimento de diálogo dos alunos com os objetos e com os colegas, assim

como da realização de atividades de simbolização (Astolfi & Develay, 1990, p. 120). Entende-se,

assim, que a escolha pelo diálogo com os alunos e os materiais a serem investigados parece

refletir uma admissão por parte do professor da existência de divergências na maneira de se

entender os fenômenos, o que talvez revele uma concepção de Ciência como um processo que

envolve rupturas e que lida com “verdades” temporárias.

Mas, há outros fatores a serem analisados para compreender a prática do professor, que,

como ressalta Gimeno Sacristán (1999), não se restringe a um “saber fazer”, nem tampouco é

definida somente pelo conhecimento a ser transmitido. Para sua compreensão, é necessário

considerar a atuação concomitante de diversos fatores que a condicionam:

A prática não é, ou não é somente, uma técnica derivada de um conhecimento sobre uma forma de fazer; não é só o exercício de destrezas individuais, nem se circunscreve, exclusivamente às salas de aula; ela vai além das ações dos professores e dos estudantes. Ela não pode ser compreendida, nem explicada, se ficarmos limitados à sua expressão atual, pois ela tem sua história, é uma cultura. Ela não é motivada ou dirigida somente, nem talvez fundamentalmente, pelo conhecimento ou pela ciência; em sua complexidade, existem pressupostos, motivos que a dirigem e formas de fazer que não são exclusivas dela, mas variados e nem sempre coerentes entre si (Gimeno Sacristán, 1999, p. 95).

No que diz respeito ao currículo, esta discussão tem enfatizado a questão dos

conhecimentos, dos saberes selecionados para compor o projeto educativo das escolas. Convém

ressaltar que esse é apenas um dos aspectos que compõem o currículo. Gimeno Sacristán, (1998),

aponta que essa ênfase nos conhecimentos não tem sido comum nem mesmo na linguagem

especializada sobre educação. O autor aponta que na compreensão do que é o ensino chegou-se a

uma divisão entre a atividade de ensinar e o conteúdo a ser ensinado (idem, p. 119-120). Em um

processo que contou com a legitimação do discurso cientificista, com a preocupação em produzir

métodos eficientes de transmissão e com uma abordagem psicológica enfatizando os processos de

autodesenvolvimento, foi-se gerando um desprezo pelo conteúdo culturalizador da educação.

Gimeno Sacristán (1998), em contrapartida, defende uma visão integrada da educação, que

possibilite a compreensão de sua “atividade, seus agentes e seu contexto” (p. 120).

De acordo com esse autor, na perspectiva mais atual do pensamento curricular, o ensino é

considerado como a prática na qual ocorre a transformação dos componentes do currículo para

29

que seu significado real se torne concreto para o aluno (Gimeno Sacristán, 1998, p. 126). Assim,

qualquer que seja a conceitualização que se adote em relação ao currículo, deve-se considerar que

ele oferece uma visão do que se dá na escola (na sua dimensão oculta e na manifesta), que é

historicamente condicionado e determinado por uma sociedade sobre a qual também imprime

reação, que é resultado de interações entre idéias e práticas e que condiciona a profissionalização

docente (idem, p. 148).

Na sua busca pela ampliação do conceito de currículo, o autor considera a dimensão

oculta do currículo, aquela parte da aprendizagem que se estabelece na experiência prática dos

alunos na situação de escolarização e que se relaciona com a sua socialização: “o currículo oculto

das práticas escolares tem uma dimensão sócio-política inegável que se relaciona com as funções

de socialização que a escola tem dentro da sociedade” (idem, p. 132).

Para esse autor, o que realmente importa é o currículo real, a combinação de ideais e

intenções (currículo manifesto) e dessa dimensão oculta (idem, p. 131-132). Essa consideração

leva a um entendimento do currículo como algo muito mais complexo que um plano do que se

quer alcançar com a educação:

O significado da escolaridade para os alunos/as, o dos conteúdos reais, não pode ser separado do contexto em que eles aprendem, porque este é um marco de socialização intelectual e pessoal em geral. Na experiência escolar, “o oculto” é muito mais amplo e sutil que o manifesto (Gimeno Sacristán, 1998, p. 133-134).

Na perspectiva do autor, o currículo adquire sentido real na prática, o que chamou de

dimensão processual do currículo. Nessa dimensão, ele é considerado como o resultado da

interação de diferentes aspectos, tais como: as prescrições oficiais, os materiais planejados e

apresentados aos professores e alunos, os planos realizados pela escola, as atividades

desenvolvidas em aula e as avaliações externas à escola (idem, p. 139).

Ao analisar cada uma dessas fases, pode-se obter uma aproximação do que é a prática

curricular, embora isoladamente nenhuma delas possa ser considerada como o próprio currículo

real (idem, p. 138). Essa abordagem processual do currículo permite avaliar que para que

aconteçam mudanças reais na prática do currículo é preciso investigar todos os fatos e

condicionantes que também devem mudar, caso contrário se estaria desprezando o valor das

30

interações entre as fases do currículo em processo na construção do currículo real (Gimeno

Sacristán, 1998, p. 140-141).

O enfoque proposto por este autor concebe a existência de alguma autonomia para os

agentes envolvidos em cada uma das fases que compõem a dimensão processual do currículo

(idem, p. 138). Segundo Gimeno Sacristán (1998), uma das idéias que dificulta a abordagem do

currículo nessa perspectiva é a dificuldade em conceber esses espaços de autonomia relativa dos

agentes na prática curricular, especialmente do professor, que é entendido muitas vezes como um

sujeito que intervém em problemas técnicos (relacionados à atividade de ensinar) mais do que na

decisão dos conteúdos do ensino (p. 142-143).

Das questões históricas e teóricas trazidas a esta discussão, entende-se que as interações

que se estabelecem na escola – com o conhecimento e com outros indivíduos – têm o potencial

para favorecer o desenvolvimento cognitivo dos alunos e que, o que se estabelece na sala de aula,

o currículo real, é marcado pelas determinações oficiais, mas pode não responder fielmente às

suas expectativas. O que se defende nesta investigação é que as escolhas do professor em termos

de conteúdo e forma – marcadas pelos aspectos ligados à forma de trabalho escolar com o

conhecimento –, interferem diretamente sobre o conhecimento escolar constituído na sala de aula.

31

CAPÍTULO II

A PRÁTICA DOCENTE OBSERVADA

32

Para situar e esclarecer os diversos aspectos das práticas docentes observadas,

apresentam-se inicialmente algumas informações acerca da escola em que se desenvolveu esta

pesquisa. Os dados registrados no roteiro de descrição da escola e de seu entorno (Anexo B),

embasaram esta apresentação.

A escola:

A escola localiza-se no município de Campinas, em um bairro em que predominam os

edifícios de alto padrão e estabelecimentos comerciais destinados à parcela mais abastada da

população. São diversas lojas de roupas finas, restaurantes, bares, lojas de decoração, centros

médicos e odontológicos, etc. Os alunos que freqüentam esta escola vêm, na sua maioria de

outros bairros, alguns da periferia do município.

O prédio foi construído em 1943 e ampliado em 1993. Encontra-se em boas condições de

uso, com as paredes pintadas, banheiros limpos e funcionando adequadamente e carteiras e lousas

em bom estado. A área construída em 1993 abriga cinco salas de aula e o laboratório de ciências.

A parte mais antiga possui sete salas de aula, banheiros e a secretaria, a diretoria, a biblioteca,

etc. Atrás dos blocos que abrigam as salas de aula, há uma quadra coberta em que se

desenvolvem as aulas de Educação Física.

As informações a seguir foram fornecidas pela coordenadora pedagógica da escola. Em

relação à última avaliação oficial da escola, no Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do

Estado de São Paulo (SARESP), ela informa que foram obtidas notas superiores quando

comparadas à média apontada para outras escolas da mesma Delegacia de Ensino, da

Coordenadoria ou mesmo do Estado de São Paulo. Apesar disto, ela enfatiza que somente duas

séries obtiveram percentual ideal de acerto nas provas, ambas do Ensino Médio, período da

manhã. A coordenadora verifica um resultado progressivamente melhor quanto menos tempo os

alunos foram submetidos ao regime de progressão continuada. É também à progressão continuada

que ela atribui a não existência de evasão escolar.

Não há atividades de recuperação paralela no período contrário ao das aulas porque, como

os alunos vêm de muito longe, não comparecem às aulas de recuperação – devido ao custo com o

transporte e com a alimentação. A coordenadora se refere a um processo que denomina de

“descaracterização da clientela” para explicar este fato. Esta escola é, segundo ela, uma “mosca

33

branca”, algo muito especial na visão de professores, alunos e pais. Assim, a clientela que antes

se limitava à população dos bairros mais próximos, agora vem de todos os outros bairros,

inclusive os mais distantes, porque esta escola é considerada uma das melhores da rede pública

estadual de ensino do município. Ela comenta que de 20 alunos convocados para estas aulas,

somente um ou dois compareciam. Entretanto, a recuperação contínua, aplicada pelo próprio

professor da disciplina, em aula, ocorre usualmente.

A escola funciona nos três períodos, manhã, tarde e noite, atendendo alunos do Ensino

Fundamental II, Ensino Médio Regular e Ensino Médio Supletivo. Possuía 43 professores em

atividade no momento da pesquisa, com quatro afastamentos por motivos ligados à saúde. A alta

rotatividade de professores é atribuída ao fato de muitos terem vínculo do tipo Ocupante de

Função Atividade (OFA), ou seja, não são efetivos, por isto, acontecem mudanças a cada ano.

As atividades de planejamento são previstas em calendário da escola, tendo ocorrido, em

2004, três destas reuniões – em fevereiro, no final de julho e em outubro. Quando acontecem, têm

a participação de todos os professores e não há uma pauta específica.

Os projetos desenvolvidos em 2004 na escola estão descritos no roteiro de descrição da

escola e de seu entorno, no Anexo B. A coordenadora registra que, também devido à

“descaracterização da clientela”, já mencionada, a participação da comunidade nas atividades

escolares é tímida.

As aulas de ciências: atividades desenvolvidas por professores e alunos:

Foram acompanhadas aulas de ciências em duas séries do Ensino Fundamental II – 5ª e 7ª.

As aulas foram ministradas por duas professoras, em uma mesma escola da rede estadual do

município de Campinas.

Em um momento inicial da investigação, foram observadas as aulas de 5ª série, com uma

professora designada doravante Professora 1. Diante de sua prática, cujas características

confirmavam o que as pesquisas citadas anteriormente já revelavam em termos do processo

pedagógico vigente no ensino de ciências, optou-se por uma reorientação dos procedimentos de

pesquisa para outra situação, ou seja, em outra turma e com outro professor.

Considerou-se a possibilidade de que, por exemplo, alunos das séries finais do segundo

segmento do Ensino Fundamental pudessem apresentar comportamentos considerados pelo

34

professor como mais adequados e disciplinados para acompanhar as aulas, o que talvez facilitasse

a realização de outras escolhas no que se refere a conteúdo e formas de ensino. Partiu-se, então,

para uma segunda fase da investigação realizando observações nas aulas de uma outra professora,

denominada Professora 2. Ainda que a escola fosse a mesma, e, portanto, as facilidades ou

limitações que impunha ao professor fossem fundamentalmente iguais, talvez a mudança de

outras condições, que dizem respeito à sala de aula, permitisse uma diferenciação na qualidade

do processo observado.

Para caracterizar as atividades desenvolvidas, optou-se por compor inicialmente um

quadro descritivo do padrão de desenvolvimento das aulas das duas professoras para, em seguida,

detalhar as escolhas de cada uma delas. Tais detalhamentos são necessários para que se possa

refletir sobre os fatores que determinam suas escolhas em relação à forma e ao conteúdo

desenvolvido em suas aulas.

No intuito de facilitar a compreensão e o acompanhamento das peculiaridades do

desenvolvimento das aulas de ambas, organizou-se no Quadro 1 um roteiro do que ocorre em três

momentos claramente delimitados nas aulas da Professora 1: o de organização inicial da aula, o

de situações de abordagem dos conteúdos e o de realização de tarefas dos alunos e controle da

classe. No caso da Professora 2, a distribuição das atividades ao longo das aulas apresentou maior

variação. Mantiveram-se as linhas verticais do Quadro 1 para explicitar esta demarcação do

tempo da aula. As linhas pontilhadas indicam que tais atividades podem ocorrer, e efetivamente

ocorrem, em qualquer momento das aulas da Professora 2 e, não, exclusivamente da forma

exposta no quadro:

35

Quadro 1: Atividades desenvolvidas nas aulas.

Minutos iniciais: organização e controle dos alunos

Minutos centrais: abordagem dos conteúdos

Minutos finais: tarefas dos alunos e controle da classe

Professora 1

Conversas da professora com a classe:

• Reclamações; • Comparações; • Desvalorização

dos alunos; • Valorização da

escola.

• Explicações; • Registros

escritos; • Leituras; • Uso dos

recursos didáticos.

• Tarefas para casa;

• Tarefas em classe (trabalhos individuais e em grupo);

• Correções; • Provas.

Professora 2

• Produção de resumos e resolução de exercícios;

• Atividades individuais;

• Atividades em grupo

• Explicações; • Uso dos

recursos didáticos;

• Correções; • Registros

(escrita da professora e dos alunos)

• Provas; • Atribuição de

pontos positivos.

O quadro acima permite reconhecer quais atividades se repetem nas aulas das duas

professoras e, ao mesmo tempo, indica um padrão mais rígido de desenvolvimento nas aulas da

Professora 1. Os detalhes de como são apresentadas, conduzidas e avaliadas as atividades serão

apresentados a seguir.

Professora 1:

Foram observadas 28 aulas no período de março/2004 a junho/2004. O horário semanal de

aulas da escola passou por várias alterações até se estabelecer no mês de maio. Assim, as aulas

duplas foram divididas pelo intervalo num primeiro momento e, em seguida, foram unidas nas

duas primeiras aulas do dia.

Trata-se de uma turma de 5ª série, composta por 38 alunos dispostos em fileiras, com

lugar definido pelo mapeamento de sala realizado pela professora acompanhada nesta pesquisa.

36

Os alunos conversam muito entre si, sendo comum o seu envolvimento, durante as aulas, em

atividades não propostas pela professora (como “bater” figurinhas — os “TAZOs”).

A prática de mapeamento consiste em escolher a posição que cada aluno ocupará na sala

de aula. Para fazer essas escolhas, a professora tem como principal critério o controle da classe,

de modo a evitar que os alunos conversem ou se envolvam em qualquer atividade que não tenha

sido por ela solicitada.

A descrição da observação dessa atividade de mapeamento revela uma preocupação com

o controle da sala, embora sua finalização sugira que se trata mais de uma estratégia que pertence

à escola, do que o reflexo de uma escolha da professora.

Ela inicia dizendo:

Quero saber se alguém aqui não enxerga sentado no fundo da sala.

Três alunos erguem os braços. A professora olha para os três, passeia o olhar pela sala,

como que identificando as possibilidades de alterações e, ao se incomodar com a conversa de um

outro grupo de alunos, abandona esse critério e comenta:

Quem vai ter que sair do fundo é todo esse pessoal aqui, ó! [Referindo-se ao grupo que a

incomodava].

A professora indica mudanças para alguns alunos. Estranhamente, quase não altera as

posições dos alunos que mais pareciam incomodá-la. Diante da conversa que se generalizou pela

classe, conclui:

É difícil fazer o mapeamento dessa sala porque tem gente conversando demais.

Sua conclusão manifesta um desencanto com a estratégia adotada para controlar os

alunos. O objetivo era controlar a conversa entre eles, mas, aparentemente, todos conversam com

todos e a professora desiste de sua intenção original. Na verdade, essa estratégia não é uma ação

isolada da professora, é um consenso na escola; sua adequação parece não ser sequer discutida.

De fato, esse procedimento de regular a distribuição dos alunos no espaço escolar remete ao

37

modelo pedagógico disciplinar, discutido por Varela (2000), como organizador das relações

escolares desde o século XVIII9.

A sala é, segundo a professora, a maior da escola; possui janelas do tipo basculante em

toda a extensão de uma das paredes, a lousa em quase toda a extensão de outra, ficando o canto

dessa parede ocupado por mais uma janela do mesmo tipo. A parede onde se localiza a porta da

sala não possui janelas e é ocupada parcialmente por um mural que abriga um único cartaz sobre

a necessidade do cuidado com a água (material produzido pelo Departamento de Água e Esgoto

do município). As janelas estão parcialmente abertas e emperradas, o que faz com que o som

proveniente da quadra (para onde a parede com janelas está virada) crie um “som de fundo” que,

somado às vozes das crianças, configura um ambiente usualmente barulhento.

No andar em que se localiza essa sala de aula, ficam mais duas salas de 5ª série. O bloco

em que elas se encontram está anexado ao corpo principal do prédio por uma passarela coberta,

sendo de construção mais recente. Por essa razão, a sala em questão está na posição mais distante

em relação à entrada principal da escola, onde se localiza a diretoria, a secretaria, a coordenação e

a biblioteca. No andar de baixo, exatamente sob esta sala, se encontra o laboratório de ciências.

De maneira geral, as aulas se desenvolvem de acordo com o seguinte padrão: nos

primeiros 15 minutos prevalecem as orientações da professora em termos do comportamento que

considera adequado ou não que os alunos adotem em sua aula, em relação ao estudo ou em

relação à escola. Esses minutos iniciais são seguidos por uma etapa que dura, em média, 25

minutos e se caracteriza como a que concentra as explicações da professora. Nos dez minutos

finais é mais comum encontrar os alunos ocupados com a resolução de questões referentes ao

assunto apresentado, enquanto a professora controla a disciplina e aguarda o final da aula. A

Tabela 1 mostra como as atividades desenvolvidas pela professora se distribuíram nos três

momentos em que foram divididas as aulas, para efeito de análise:

9 Segundo Foucault (apud Varela, 2000, p. 83), “neste conjunto de alinhamentos obrigatórios, cada aluno, segundo sua idade, seus resultados, sua conduta, ocupa um posto ou outro; desloca-se sem cessar em uma série de compartimentos, alguns ideais, que indicam hierarquias do saber ou das capacidades, e outros que traduzem materialmente, no espaço da classe ou do colégio, esta divisão dos valores ou dos méritos”.

38

Tabela 1: Número de aulas em que se repetem as atividades desenvolvidas pela professora nos

três momentos das aulas.

1. Organização da classe e controle dos alunos:

Os minutos iniciais de oito das aulas observadas foram marcados por uma grande agitação

à qual se seguiu uma série de reclamações da professora que giraram em torno de questões como

a inadequação do comportamento dos alunos e o conseqüente atraso no início das atividades.

Esse atraso por vezes chegou a representar dez minutos do tempo total de aula (50 minutos).

Cinco das aulas foram iniciadas com uma leitura do livro didático ou com a análise de

fotos, esquemas ou figuras que ele apresenta. Em seis aulas iniciou-se com um pequeno texto ou

desenho na lousa, seguido de explicações da professora e, finalmente, da leitura de trechos do

livro. Duas aulas começaram diretamente com a correção de exercícios do livro didático ou

outros passados na lousa e outras duas com a verificação das tarefas nos cadernos dos alunos.

Quatro aulas começaram com atividades de verificação de aprendizagem, individuais ou em

grupo. Uma aula começou com a realização de exercícios de revisão.

Atividades Minutos iniciais Minutos centrais Minutos finais

8 3 5

6 0 1

4 7 7

2 0 0

5 6 2

2 3 5

0 9 2

1 0 6

Conversas com a classe Textos ou desenhos na lousa Avaliação da aprendizagem (provas e trabalhos em grupo) Verificação da realização das tarefas de casa Leitura ou verificação de desenhos no livro didático Correções de tarefas (de casa ou de classe) Explicações da professora Tarefas em classe (resolução individual de exercícios do livro)

Total de aulas

28

28

28

39

Em nenhum início de aula foi verificada a preocupação em explicitar a relação com o

assunto ou com questões referentes às aulas anteriores, tampouco em expor qual seria o tema

daquela aula que começava.

1.1) As conversas da professora com os alunos:

A professora geralmente utiliza os minutos iniciais de suas aulas para estabelecer

conversas com a classe, relacionadas a formas de proceder e ao controle da indisciplina. Como a

observação se deu desde o começo do ano letivo e sendo todos os alunos oriundos de outras

escolas, essa concentração das conversas no início das aulas parece indicar a necessidade da

professora de estabelecer prontamente os parâmetros para o comportamento adequado de seus

alunos.

As três primeiras aulas observadas, por exemplo, tiveram o início marcado por conversas

em que a professora apontou limites em relação ao comportamento dos alunos na escola e, em

particular, em suas aulas:

Conhecer a escola não é o mesmo que entender seu funcionamento. Os professores entendem que

há um período de adaptação, mas aqui na escola as coisas vão ser diferentes (ao se referir ao

fato dos alunos estarem chegando à escola neste ano).

Pessoal, é isso que a gente está combinando, esta bagunça?

Após dizer que alguém na classe está anotando o nome de quem está falando, avisa:

Todas as anotações serão mostradas aos pais na reunião.

Conclui esta conversa dizendo que a escola tem que ensinar conteúdo, que educação vem de casa.

As reclamações da professora nessa situação de começo de aula sugerem uma

caracterização negativa da turma, tanto para ela quanto para os demais professores, como indicam

as declarações abaixo:

40

Eu continuo não gostando dessa classe (usa o termo “continuo” porque já havia apontado para os

alunos, em outra aula, sua insatisfação com o comportamento da turma).

Os professores estão reclamando da 5ª C, com um mês e meio de aula.

Pessoal, é tão chato dar aula nesta classe... (dito em um momento muito conturbado de

determinada aula).

Em diversas situações, a professora manifesta preferência por outra turma de 5ª série,

estabelecendo comparações como:

A 5ª B é uma tranqüilidade.

A 5ª B logo vai para o laboratório, essa aqui não vai. Eu saio daqui com a garganta ardendo.

É também recorrente na fala da professora, ao iniciar as aulas, o fato de a estrutura física

da escola como um todo e da sala em particular ser muito boa. Isso tornaria os alunos

privilegiados em relação aos demais alunos da escola e da rede pública em geral, o que, portanto,

conferiria aos alunos a responsabilidade pelo melhor aproveitamento das condições favoráveis de

aprendizagem:

Esta é a melhor sala da escola, há um rodízio para uso desta sala.

Tem escola do Estado que não tem nem um prédio pintado. Vocês estão numa escola que oferece

tudo (...) Tem professor que vai começar a usar o computador. Eu não vou levar no laboratório...

Eu não fiquei contente com esse número de notas vermelhas, nesta escola é pouco [seria um mau

resultado para quem estuda nesta escola, tão privilegiada]: ninguém trabalha, dorme até a hora

que quiser, vê televisão e aí vem para a escola para conversar, bater TAZO...

41

Em algumas falas, invoca a autoridade de mais duas instâncias além dela mesma: a

direção da escola e os pais:

Há uma pasta de ocorrências onde o professor anota todo dia o que acontece de errado. No final

do bimestre, o professor responsável pela classe passa as anotações em um caderninho que será

mostrado aos pais e a mãe terá que assinar embaixo para que vocês possam aprender direitinho.

Quando o pai não vem, a diretora liga para a casa do aluno.

A diretora aparece de repente na porta e ela tem tanta sorte que sempre pega alguém fazendo

algo que não deve ser feito. Nestas situações, os alunos são levados para a diretoria e aí...

Em muitas ocasiões a professora manifesta o seu entendimento sobre qual deve ser a

postura dos alunos para que aprendam melhor:

É impossível responder um texto neste barulho.

Tem uma coisa que não dá certo: copiar e conversar. Quem conversa enquanto copia, aprende

menos.

Em relação a estas duas falas, é curioso que a professora, apesar destas declarações que

sugerem sua preocupação com a manutenção de um ambiente tranqüilo, que favoreça a

concentração, por muitas vezes, inclusive em situações de avaliação de aprendizagem ou durante

suas explicações, manifesta uma grande permissividade em relação à conversa e ao barulho que

se instala em suas aulas.

A professora ressalta sempre que os alunos devem estudar em casa. E sugere como deve

ser este estudo:

Tem que estudar, fazer tarefa de casa.

Decorado, esquece. Se estudar, não esquece.

42

Outra coisa [que atrapalha a aprendizagem]: aluno lê a questão, acha palavra-chave no texto.

Pega um pedaço de texto e copia na resposta.

Em relação a esta última fala, é interessante destacar que a maioria das questões

solicitadas pela professora, tanto nas tarefas de casa quanto nos exercícios a serem realizados

durante a aula, exigem exatamente este tipo de habilidade dos alunos (a de identificar o trecho do

texto que responde a questão e transcrevê-lo para o caderno). No entanto, ao falar sobre qual é o

comportamento que considera adequado para lidar com os textos e as questões, contradiz sua

prática usual.

As falas abaixo merecem especial atenção. Nelas, a professora indica que é possível não

participar da sua aula, ou fazê-lo de forma inadequada, e mesmo assim, ter um bom resultado nas

provas. Aliás, este resultado parece ser considerado pela professora como o indicador por

excelência de que houve realmente aprendizagem. Por exemplo, ao reclamar da bagunça em certa

aula, ela declara:

Se todo mundo tirar 10,0 na prova, eu não reclamo mais.

Além disso, as seguintes declarações revelam sua crença na possibilidade de que

capacidades inatas sirvam como privilégios de algumas pessoas enquanto outras, por não as

possuírem, ficam para trás. Esta concepção é preocupante porque sugere que não existe reflexão

sobre outros fatores que influenciam os diferentes resultados da aprendizagem dos alunos,

inclusive os que se referem à sua própria prática. É como se as possibilidades oferecidas pela

educação fossem igualmente adequadas para todos e que somente as questões individuais

explicassem os insucessos escolares:

Senti que quem não é da turma da bagunça, foi bem [refere-se ao resultado de uma “provinha”].

Tirou até 8,5. Da turma da bagunça, alguns foram bem. Na aula, brinca, não presta atenção.

Atrapalha todo mundo que está perto. Ele é esperto, consegue pegar a matéria. Nem todos têm a

mesma facilidade, os amigos vão mal.

43

O problema não é não saber [refere-se a um aluno que se recusa a responder uma pergunta,

ficando em silêncio por vários minutos]. O que ele não tem? Vontade.

Quando se refere às notas dos alunos, a professora revela que este é de fato o indicador

que utiliza para saber se seus alunos estão ou não aprendendo a matéria. Nos momentos de

entrega das provas corrigidas, seus comentários indicam sua insatisfação com os resultados da

turma. É importante ressaltar que, ao entregar este material, a professora o organiza seguindo

uma ordem decrescente das notas (a professora inclusive avisa a classe quando acabaram as notas

“azuis” e começam as “vermelhas” – Ó, agora começa o vermelhão!). Assim, todos ficam

sabendo quem tirou notas “vermelhas” e inclusive é comum a brincadeira generalizada em

relação a estes resultados, mesmo por parte de alguns alunos mal sucedidos em termos de nota.

Mais uma vez, fica evidente que os maus resultados são imputados apenas aos alunos e que o

processo de transmissão dos conteúdos não é questionado pela professora:

Comecei a corrigir as provas. O que tem de nota baixa e é sempre aquele pessoal que não faz

nada.

Quem estudou tirou nota. As outras pessoas não prestam atenção, brincam, não fazem tarefa...

Se continuar deste jeito, vai reprovar ou vai passar daquele jeito.

É o cúmulo tirar 5,0. São pessoas privilegiadas, vem para a escola fazer bagunça. É falta de

vergonha tirar nota baixa numa prova fácil assim.

Olha cada beleza de nota que saiu agora [ironicamente]. Olha a turma da bagunça agora.

Assim, o que se percebe nas conversas da professora com a classe é um forte apelo à

conscientização dos alunos sobre o privilégio de estarem naquela escola e de não precisarem

trabalhar, somente estudar, ainda que estes sejam direitos de toda e qualquer criança. Além disso,

é recorrente a culpabilização dos alunos pelos maus resultados obtidos nas situações de

verificação de aprendizagem. Não se percebe, nem nas falas da professora para a classe nem nas

declarações espontâneas que fez à pesquisadora durante as aulas observadas, qualquer indício de

44

necessidade de adequação de sua prática para melhorar a qualidade da aprendizagem, exceto no

que diz respeito às idéias que busca para conseguir ocupar os alunos durante as aulas, reduzindo

assim o barulho. Como exemplo desta preocupação, em declaração à pesquisadora, afirmou que

decidiu, com esta turma, trazer sempre atividades extras para a classe se ocupar, referindo-se à

bagunça que eles normalmente fazem nas aulas.

Muitos dos fatores que a professora parece identificar como importantes para a

aprendizagem como o ambiente mais silencioso, o tratamento mais reflexivo ao lidar com os

textos, a importância do entendimento das questões discutidas e não da sua simples memorização

não são favorecidos por ela no desenvolvimento de suas aulas. Entretanto, as declarações abaixo

indicam como ela julga serem suas aulas:

Por que na aula da professora X esta classe é um silêncio? Por que ela é brava? Então, vou ser

brava também. Eu estou tentando fazer uma aula diferente, que eu possa conversar com vocês.

Vou passar um monte de matéria na lousa para vocês copiarem.

Eu explico primeiro o assunto porque às vezes é difícil entender o livro.

Quando o professor é um pouco mais legal [refere-se a si mesma], vocês abusam.

Em declaração espontânea à pesquisadora, indica que:

Nesta classe não dá para fazer muitos questionamentos [como gostaria], porque vira bagunça.

Na 5ª B, dá.

A professora parece entender que sua prática diferencia-se da dos demais professores (ao

menos de uma professora citada por ela durante as aulas como aquela que dá uma “aula chata”

por exigir que seus alunos copiem e decorem informações em demasia). Sua inserção na escola

parece estar tão impregnada daquilo que caracteriza a forma escolar10, que não consegue perceber

10 VINCENT, LAHIRE & THIN (2001), se referem a forma escolar como sendo a unidade de uma configuração histórica particular,surgida em determinadas formações sociais, em certa época. O que faz a unidade da forma escolar, segundo os autores é o seu princípio de inteligibilidade, que se relaciona com a submissão do professor e dos alunos a regras impessoais, além de uma peculiar organização de tempos, espaços e saberes (p. 9-10).

45

as incoerências que existem entre suas intenções declaradas e sua prática propriamente dita.

Entretanto, é curioso que durante a entrevista aplicada pela pesquisadora, a professora tenha se

referido de forma negativa em relação a suas aulas, ainda que esse julgamento estivesse atrelado

a uma responsabilização de aspectos relativos à organização da escola ou às determinações

oficiais que gerariam o mau resultado de seu trabalho em sala de aula:

Fico angustiada porque sei que meu trabalho tem falhas, que eu poderia ser melhor como

professora, mas esta forma da escola de esconder suas deficiências contribui para que eu seja

menos do que poderia ser.

Dou aulas há 13 anos. Antes, no começo, ia mais ao laboratório, conseguia prender a atenção

dos alunos, eles valorizavam a escola. Depois dessa história de progressão continuada, a escola

virou uma área de lazer para os alunos (...) isso gera indisciplina que dificulta o trabalho.

2. Abordagem dos conteúdos:

Nos 25 minutos centrais das aulas prevaleceram as explicações da professora sobre os

conteúdos abordados nas aulas. Elas aconteceram nessa fase da aula, em nove ocasiões.

Considerando que elas ocorrem também mescladas às leituras e/ou verificações de desenhos no

livro texto, que aconteceram em seis aulas, percebe-se que as explicações ocuparam o tempo

central das aulas por 15 vezes. Outras atividades bastante utilizadas nessa fase são as atividades

de verificação de aprendizagem, em grupo ou individuais (as provas). Somando-se todas,

ocorreram em sete das aulas observadas. As correções de tarefas ocuparam estes minutos centrais

das aulas por três vezes. Este é também o número de vezes em que a professora utilizou esse

período para “conversar” com a turma.

Enfim, os minutos centrais das aulas concentram as situações de abordagem dos

conteúdos da disciplina, com a maior parte delas centrada na professora e no livro didático. Vale

ressaltar a freqüente aplicação das atividades de verificação citadas acima, constituídas por

exercícios não constantes do livro didático, realizados em duplas ou em grupos maiores.

2.1) Explicações:

46

As explicações, no geral, ocorreram nos 25 minutos centrais das aulas e, em nove delas,

foram feitas após a cópia na lousa de trechos do livro didático, a verificação de seus desenhos,

fotos ou esquemas ou a leitura do mesmo trecho copiado.

O que a prática dessa professora sugere é a idéia de que, ao copiar um pequeno trecho do

texto do livro, antes de fazer a sua explicação, os alunos já serão introduzidos ao tema da aula

(seja pelo conteúdo do que copiam, seja pelo efeito tranqüilizador da própria cópia), que, assim,

não é nunca inicialmente apresentado (tampouco os seus vínculos com os temas das aulas

anteriores ou vindouras). Suas explicações repetem o trecho copiado, de forma que o

conhecimento parece encontrar seu começo e seu fim no próprio livro didático. Professora e livro

assumem uma relação de legitimação recíproca, restando aos alunos receber e memorizar

informações que deverão ser prontamente devolvidas em situações de avaliação.

A descrição que segue tem o objetivo de ilustrar como são construídas as explicações da

professora:

Em determinada situação, a professora pediu que, com uma força de mesma intensidade,

os alunos pressionassem o lápis sobre a palma da mão, uma vez com a ponta, outra, com a parte

de trás. Em seguida, perguntou:

Por que a ponta afunda mais?

A força é a mesma?

A pressão é maior na ponta ou atrás [do lápis]?

Uma aluna responde:

Atrás.

A professora, então, diz para a classe:

Como a gente vai convencer ela? Vamos abrir o livro.

47

Segue com a leitura do livro; depois, confirma o que já havia dito. Um aluno conclui:

Força num espaço menor, mais pressão.

A professora vibra:

Tá certo!

Alguns alunos comentam:

Lógico, ele leu no livro.

A professora ignora esse comentário e repete a explicação, desenhando na lousa (desenho

idêntico ao do livro).

Alguns alunos não parecem convencidos. Ela diz:

Vamos ler o que está escrito aqui, pessoal?

Após a leitura, solicita que os alunos, juntos, leiam a definição. Volta ao desenho da lousa e

resume, oralmente:

Quanto maior a área, menor a pressão. Quanto menor a área, maior a pressão.

Rapidamente passa para um exercício do livro que pede que os alunos repitam as mesmas

definições.

Em outra situação, a professora copia na lousa um desenho que consta do livro didático.

Ela vai contando o que está desenhando como se realmente tivesse feito o que aparece no

desenho (uma lata cheia de água, com quatros furos alinhados verticalmente, vedados com fita

adesiva).

48

Ela diz que fez uma experiência para saber em qual dos furos a água, quando retirada a

fita adesiva, alcançaria uma marca X, distante da lata e sobre a mesma superfície em que ela se

apóia.

Analisando o desenho, os alunos respondem de formas diversas. A professora questiona:

Quem acha que é o primeiro furo? (O que está mais próximo da extremidade superior da lata)

E o segundo? E o terceiro? E o quarto?

Os alunos vão respondendo. A cada resposta, ela desenha na lousa o que estaria acontecendo se o

aluno estivesse correto. Diante das divergências, ela parece se divertir. Então, apaga os últimos

desenhos e mostra o que aconteceria de fato (apenas a água que sai do quarto furo alcançaria a

marca).

Então, diz:

Meio minuto para pensar. É para pensar!

Passados alguns minutos de bastante discussão entre os alunos, ela pergunta novamente:

Levanta a mão quem acha que é o primeiro. Depois segue, o segundo, terceiro e quarto?

E conclui:

Pelo o que eu percebi, o último [o quarto furo] ganhou.

Apesar de alguns alunos ainda não estarem “convencidos”, parte para outro exemplo:

Na piscina, onde é mais gostoso nadar?

Os alunos respondem:

No fundo.

49

Se for piscina muito funda, é gostoso nadar? [Faz uma expressão de dor enquanto pergunta]

Os alunos respondem:

Não!

Um aluno fala que dá dor de ouvido. Algum aluno fala sobre a pressão. A professora pergunta:

Vocês falaram em pressão. O que é essa pressão?

Depois de mais um exemplo, também presente no livro didático, como os demais, confere seus

desenhos da lousa e lê novamente a definição:

Resultado de uma força [mostra a representação dessa força em seu desenho] sobre uma

superfície.

Então, volta ao exemplo da lata:

Qual é o furo, então?

Quase toda a classe responde:

O último.

As situações acima mostram que não parece importar se os alunos compreendem ou não

os conceitos, dos quais de fato sequer se aproximam. O que importa é ressaltar a legitimidade dos

discursos da professora e do livro didático. Não são comentadas as opiniões divergentes e nem

tampouco o conceito que confere sentido à explicação dada. Assim, a pergunta que a própria

professora propõe (O que é essa pressão?) é respondida com desenhos e definições que indicam a

ação de uma força sobre uma superfície. Mas, em nenhum momento se discutiu o que é força

50

(não se pôde sequer verificar a preocupação em conhecer o que os alunos entendem por força).

Esse não parece ser o foco, basta que os alunos memorizem a relação dada: maior força, em

menor superfície, maior pressão.

Em certo momento de sua explicação, a professora ressalta que é necessário pensar.

Entretanto, o que a explicação da professora sugere é que esse pensar significa se convencer do

que já está estabelecido, aceitar uma verdade que já estava dada desde o início da explicação.

Os conteúdos tratados nas aulas foram de alguma forma derivados dos temas centrais das

Unidade 2 e 3 do livro didático, a Água e o Ar.

Em três das aulas, o ciclo da água foi o assunto principal. Ligado a este assunto, em

quatro das aulas, a discussão girou em torno das mudanças de estado físico da água. Em seis

aulas foram descritas propriedades da água, tais como: a pressão exercida, a capacidade de

dissolver e transportar substâncias e o empuxo.

As alterações provocadas pelo homem nos ambientes aquáticos ocuparam duas das aulas e

ressaltaram aspectos como a poluição e a contaminação de corpos d’água. Ao tratar dos

ambientes aquáticos, os conceitos relativos às cadeias alimentares foram abordados em uma das

aulas. Também o tratamento da água para consumo humano foi apresentado em uma das aulas

observadas.

Em uma aula tratou-se de fenômenos atmosféricos e em outras duas, da pressão exercida

pelo ar e da formação dos ventos.

A seqüência dos conteúdos se refere fielmente àquela estabelecida no livro didático.

Apenas se alterou quando a professora trouxe atividades extras (exercícios em grupo e leitura de

paradidático), em quatro aulas. Nesses momentos, a questões recorrentes foram o ciclo da água e

as mudanças de estado físico nele envolvidas (presente em uma das atividades de avaliação, uma

atividade experimental solicitada para ser realizada em casa, no livro paradidático lido, em uma

atividade em duplas). Essa recorrência sugere que estas podem ser questões consideradas

essencialmente importantes pela professora.

A relação entre os conceitos abordados e o tema central (água) parece ficar a cargo da

seqüência estabelecida pelo livro didático. Não houve, em nenhum momento, referência da

professora a esse nexo existente entre os temas das aulas.

Mesmo em relação às questões mais insistentemente abordadas — ciclo da água e

mudanças de estado físico —, as explicações não exploram conceitos que estão na base dos

51

processos descritos. Assim, ao falar em mudanças de estado físico não foi tratada a questão da

energia que provoca agitação das moléculas. Por diversas vezes foi confirmada com a classe a

influência da temperatura na mudança de estado físico (quando passa de gasoso para líquido...

perde calor), mas não se discutem os conceitos de moléculas, calor e temperatura. Assim, impõe-

se a pergunta: afinal, o que se está ensinando? Para que se está ensinando? Fica nítido que essa

forma de lidar com o conteúdo privilegia a apresentação da manifestação imediata dos fenômenos

(como, por exemplo, que o gelo “vira” água líquida), já conhecida pelos alunos, e não procura

identificar o que os alunos sabem ou não sobre os termos utilizados no movimento de

aproximação dos conceitos científicos. Tampouco se busca estruturar uma base sólida em que se

possam apoiar as futuras aprendizagens dos alunos nessa área do conhecimento. Portanto, o

ensino não visa a gradual compreensão dos fenômenos, mas, sim, a obtenção de bons resultados

nas situações de avaliação.

Essa abordagem, portanto, define uma ausência de desenvolvimento dos conceitos, o que

talvez explique o fato de este aspecto, ligado à temperatura, por exemplo, não ser abordado em

nenhuma questão das atividades individuais de verificação de aprendizagem (as provas). É

possível que o próprio professor evite tocar, nestas situações de avaliação, em conceitos cujo

desenvolvimento não foi realizado. No entanto, as atividades extras trazidas pela professora para

serem feitas em grupo estavam invariavelmente ligadas a esses conceitos, como forma de garantir

a sua memorização, ainda que desvinculada do seu entendimento. Questões como as que seguem,

destacadas de uma atividade em grupo, indicam essa forma de abordagem:

O que as moléculas de um corpo perdem quando passam de vapor a líquido e de líquido a

sólido?

Comparativamente, em que estado físico do corpo suas moléculas possuem mais energia?

O livro também parece, em alguns capítulos, deixar essas lacunas de informação na base

dos conceitos abordados. Por exemplo, o conceito de molécula só aparece quatro capítulos à

frente do que trata das mudanças de estado físico. A questão que parece não ser enfrentada é: por

que a matéria muda de estado físico? Passa-se todo o capítulo falando que ela muda, que o calor

se relaciona com isso, qual é o nome de cada mudança, mas não se fala sobre o por quê desse

52

fenômeno (as moléculas, ao perder ou ganhar energia – calor –, aproximam-se ou afastam-se,

mudando o estado físico da matéria). Mas, por diversas vezes, o aluno será convidado a descrever

e nomear esses processos sobre os quais não se exploram as causas. Por exemplo, em uma das

atividades extras, encontram-se questões como as que seguem:

Como se denomina a passagem do estado de vapor para o líquido?

Quando a água ferve e muda de estado, que fenômeno acontece?

Como se denomina a passagem do estado sólido para o líquido?

Quando a água passa lentamente ao estado de vapor, que fenômeno acontece?

Quando o conceito de moléculas é discutido no livro, não é feita qualquer relação com

esses primeiros fenômenos estudados (as mudanças de estado físico e a influência do calor).

Em nenhum momento foram abordados os aspectos ligados a história da ciência para se

chegar aos conceitos trabalhados hoje na escola. Apesar da transitoriedade característica dessa

atividade humana, os conceitos são apresentados como se sempre tivessem sido inquestionáveis,

o que sugere que, para a sua aprendizagem, são mais eficientes a aceitação e a memorização do

que a reflexão crítica. A repetição das definições e a exigência de sua memorização, evidente

tanto nas atividades de verificação de aprendizagem e nos exercícios de fixação quanto no hábito

da professora de esperar que os alunos completem suas frases durante a explicação, afastam

qualquer possibilidade de problematização dos conceitos abordados. Ao menor sinal de

questionamento por parte dos alunos em relação às formas de explicação dos conceitos

abordados, primeiro aparece a autoridade da professora e, como maior sinal da legitimidade das

informações, a verificação das definições escritas no livro didático. Em determinada aula, por

exemplo, a professora perguntou se alguém não concordava com a sua explicação.

Imediatamente, um aluno virou-se para a classe e disse:

Quem é o burro que não concorda? É um burro!

53

Ou seja, o que se ensina é que discordar da professora é burrice, porque ela é uma autoridade. Se,

além da declaração da professora, o livro trouxer a mesma informação, é sinal de que só pode

haver esta explicação para a questão discutida.

2.2) Registros escritos:

2.2.1) Escrita da professora:

A professora utiliza a lousa para fazer registros. Esses textos, na maior parte das vezes,

não são de sua autoria, são transcrições do livro didático. Suas explicações não geram sínteses

escritas na lousa. Portanto, sua produção escrita não aparece, exceto nas provas que elabora;

praticamente só a sua fala é utilizada na comunicação com os alunos.

Em relação à cópia, as falas da professora parecem contraditórias. Por vezes, parecem

afirmar que a simples cópia já garante o aprendizado. Em outras ocasiões, refere-se à cópia como

sendo uma prática que acontece em aulas “chatas”, com professores “chatos”, fazendo referência

a algo antiquado em matéria de educação:

No tempo da minha avó, o professor escrevia na lousa e os alunos copiavam. Hoje, o professor

tenta fazer pensar. Só que chega uma hora que cansa.

Aula de cópia seria a solução? Não, isto não acrescenta nada.

Um monte [de alunos] não fez, não porque não consegue, mas nem tentou. Então, o que

acontece? Copia. Quem copia, não aprende. Depois na prova não consegue fazer.

No entanto, a própria professora freqüentemente faz cópias de trechos do texto do livro

didático na lousa, assim como solicita que os alunos copiem estes trechos, embora eles constem

do livro. A escolha pelas questões que buscam a identificação direta das respostas no livro, que

também são preferidas pela professora ao solicitar as tarefas de casa, também parece se basear na

valorização da cópia como forma de garantir a aprendizagem.

54

O hábito da professora de primeiro escrever na lousa, esperar que os alunos copiem e,

então, explicar, também sugere uma crença no poder da cópia para o entendimento do que se está

abordando, assim como para criar um clima favorável para o momento em que fará suas

explicações, ou seja, que os alunos se mantenham em silêncio e prestando atenção em sua fala. É

como se o simples fato de copiar, ainda que em um ambiente tumultuado, não favorável à

concentração, já garantisse, ou ao menos facilitasse o entendimento.

2.2.2) Escrita dos alunos:

Em relação aos alunos, a escrita parece ser valorizada apenas para copiar textos transcritos

na lousa ou para responder questões que não serão lidas para a professora.

Para responder aos questionamentos da professora durante as aulas, os alunos usam

apenas o registro oral, sendo as atividades de verificação de aprendizagem os únicos instrumentos

que exigem que a professora lide com a sua produção escrita. Assim, é ao ler o que os alunos

escrevem nas provas que a professora vai estabelecer de fato uma relação com a escrita desses

alunos. Mas, nesse momento, sua preocupação é verificar a aprendizagem do conteúdo de

ciências. Portanto, também aí a escrita não é o principal foco de análise da professora. Não

deveria ser surpreendente, então, a constatação usual, tanto no ambiente escolar como fora dele,

de que os alunos não sabem escrever. É como se os alunos estivessem sozinhos nesta tarefa de

aprender a escrever. A este respeito, Sampaio (1998), ao analisar os instrumentos de verificação

de aprendizagem utilizados em diferentes disciplinas, afirma:

A elaboração escrita, que assume importância central no momento da avaliação, contraditoriamente, não parece ter sido objeto de trabalho em sala de aula, deixando supor que esse é mais um dos aspectos incluídos no conjunto de aprendizagens esperadas do desenvolvimento dos alunos e que deveriam surgir espontaneamente (p. 115).

Assim, a escrita faz parte do ensino — é da tradição escolar. Faz parte por esse “poder” da

cópia e como instrumento de controle, que ocupa e acalma. Serve também como um regulador da

indisciplina, sendo por vezes utilizada como castigo:

55

O que está acontecendo? Eu vou ter que fazer que nem ontem, encher a lousa? Vocês vão

fazer cópia.

Também em declarações à pesquisadora, a professora por vezes manifestou a importância

de manter esta turma ocupada, “trabalhando”, para que as aulas transcorressem com mais

tranqüilidade. Este “trabalhar”, na maior parte das vezes se refere a responder questões que

envolvem transcrição de trechos do livro.

3. Tarefas e atividades dos alunos:

A forma mais utilizada para a finalização das aulas foi a realização de trabalhos em grupo

ou provas que, geralmente, se iniciam no meio da aula e se estendem até o seu final. Foi o que

ocorreu em sete aulas observadas. Também marcaram esses momentos os pedidos de tarefas a

serem realizadas naquela aula, por seis vezes, e a correção destes exercícios, que também ocorreu

em cinco aulas. A leitura ou verificação de desenhos no livro didático ocorreu no final de duas

aulas. Apenas em duas aulas aconteceu da finalização se dar com uma explicação pela professora,

e, em outra, com a transcrição de um texto na lousa.

É possível perceber que os finais das aulas usualmente são os momentos em que mais a

professora se preocupa em manter os alunos em atividades que não demandem sua participação

direta (em 13 aulas, os alunos ficaram envolvidos na resolução de exercícios, sem que a

professora fosse constantemente solicitada a ajudar: nas aulas em que fizeram trabalhos em

grupo, provas ou exercícios de fixação). Esse é o momento em que a professora parece “relaxar”

após ter cumprido seu papel de transmissão de conteúdos em suas explicações, que geralmente

ocupam os minutos centrais das aulas. No geral, sua tolerância em relação às conversas alheias ao

assunto abordado também é maior nestes momentos assim como sua preocupação em ouvir o

sinal que indica o fim da aula. O tempo-aula, de trabalho efetivo com ensino e aprendizagem fica,

portanto, em torno de trinta minutos.

3.1) Tarefas para casa:

56

Nas aulas em que foram solicitadas tarefas para casa, a professora anotou, no canto direito

da lousa, a “Agenda”. Aí foram marcados os exercícios que deveriam ser feitos em casa.

No livro existem dois tipos de exercícios que podem ser solicitados para casa: os que

fazem parte da seção Faça seu próprio resumo (em quadros de cor roxa), que traz questões de

relação mais direta com o texto e o Pensando e Pesquisando (laranja), que faz relações menos

diretas com o texto e que, por vezes, exige pesquisa. Por exemplo:

Faça seu próprio resumo, p. 59, solicitado no dia 13/04/2004:

1) Quais são os componentes de uma solução?

Resposta: Numa solução, sempre há dois componentes: o solvente (...), e o soluto (p. 54).

2) Por que se costuma dizer que a água é um bom solvente?

Resposta: Ela [a água] dissolve substâncias sólidas, líquidas e gasosas. Por esse motivo é

chamada solvente universal (p. 54).

Pensando e Pesquisando, p. 59:

1) A água do mar é uma solução? Justifique sua resposta. Pesquise sua composição em

enciclopédias.

8) Refrigerantes, como o guaraná, contém gás carbônico dissolvido. Um refrigerante não

gelado, quando aberto, forma muito mais espuma do que quando bem gelado. A espuma

nada mais é do que bolhas de gás carbônico sendo liberadas. Levando em consideração essa

explicação, você diria que o gás carbônico se dissolve mais facilmente em água fria ou em

água quente? Pense a respeito e, se necessário, peça orientação a seu professor.

Em sete das aulas observadas (1/4 do total) foi solicitada tarefa de casa. Em seis delas, as

tarefas solicitadas foram da seção Faça seu próprio resumo, o que sugere, pelo tipo de questão

mais utilizado nessa seção, uma ênfase no desenvolvimento da habilidade de identificar no texto

do livro os trechos que respondem diretamente ao que se está perguntando. Não há a exigência de

identificação de informações que possam ser relacionadas para compor uma resposta de autoria

do aluno e nem a preocupação em associar o tema das aulas a questões externas à escola. O

assunto começa e termina no próprio livro didático.

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A correção das tarefas de casa foi acompanhada em quatro aulas. O tipo de correção mais

usual é a oral: a professora ouve algumas respostas, questiona o que o aluno diz, não indica se se

trata de um acerto ou de um erro e, no final, aponta quem mais se aproximou da resposta correta,

que, então, é declarada. Em uma única aula, foi solicitado a um aluno que transcrevesse sua

resposta na lousa e, em seguida, a professora acrescentou algo a essa resposta, finalizando com a

seguinte declaração para este aluno:

Corrige aí, como está no livro.

Em uma outra aula, a professora entregou seu livro para uma aluna e pediu que ela transcrevesse

a resposta para a lousa.

É interessante verificar que a professora não estabelece durante a correção uma única

resposta como sendo a verdadeira, ao contrário, ela parece classificar as respostas em mais ou

menos plausíveis, não descartando totalmente nenhuma delas. Ao ouvir as respostas dos alunos

com essa atitude, ela parece estabelecer em relação à Ciência uma postura que admite a

existência de diferentes explicações para um fenômeno. Porém, considerando algumas

particularidades do processo de correção, a elaboração da resposta parece acontecer durante a fala

do aluno. Observa-se que poucos são os alunos que lêem suas respostas e que a professora não os

escolhe; a tendência é de serem sempre aqueles mais desinibidos que o fazem. Mesmo os que

falam nessas ocasiões de correção não parecem ler integralmente o que escreveram e é possível

que muitos alunos não façam, ou façam incompletamente, a correção de suas tarefas.

Em um experimento, solicitado para ser feito em casa, o aluno deveria acompanhar a

germinação de sementes de feijão em diferentes condições de hidratação. As observações

deveriam ser feitas durante sete dias e registradas em uma tabela. A tabela e as respostas das

questões propostas no livro deveriam, então, ser entregues à professora. As questões, como se

pode perceber abaixo, encaminham a conclusão a que deve chegar o aluno em relação à

necessidade da quantidade adequada de água para que ocorra a germinação:

Tente responder às perguntas seguintes:

1. Que conclusões podemos tirar a partir dos resultados do pires nº 4?

58

2. No seu experimento, qual foi a quantidade ideal de água para a germinação? E para o

crescimento?

3. Se você fizesse o mesmo tipo de experimento com outro tipo de semente (alpiste, por

exemplo), a quantidade ideal de água seria a mesma? Qual é seu palpite? Tente justificá-

lo.

Essa atividade trazia a exigência da montagem de um experimento e do registro de

informações coletadas a partir dessa montagem, apontando para o desenvolvimento de alguma

autonomia e da capacidade de seguir orientações escritas para a confecção da montagem e para os

relatos das observações.

Embora pudessem trazer à tona as idéias dos alunos acerca dos fenômenos observados, os

resultados do experimento não foram discutidos em nenhuma das aulas. Os alunos receberam

seus relatórios, com notas sobre as quais não se discutiu o critério de avaliação. Além do não-

aproveitamento da experiência vivida pelos alunos, a própria professora indica na entrevista que

poucos alunos entregaram seus trabalhos, fato que ela atribui, em parte, à desvalorização da

escola pelos pais dos alunos:

Alguns pais não permitem ou não estimulam seus filhos a fazerem os seus trabalhos de casa. Por

isso, recebi poucos retornos dos trabalhos solicitados.

Mas, quando o aluno não tem interesse em fazer o trabalho, às vezes a falta de interesse não é só

do aluno. Alguns não fazem porque a família não permite, porque faz sujeira.

Solicitar uma tarefa para casa que envolve experimentação e não discutir o processo de

montagem do experimento, as variáveis que podem ter influenciado em possíveis resultados

discrepantes do obtido pela maioria da turma, o tipo de observação que se espera, as dúvidas ou

as contradições em relação aos resultados obtidos, transmite aos alunos uma determinada visão

acerca da atividade científica. Nessa perspectiva, só se admite um resultado possível ao

experimento, toda e qualquer discrepância em relação ao esperado é ignorada em nome da

verdade que já se conhecia – ou melhor, já conhecida pela professora e pelo autor do livro

didático –, não se discute quaisquer outros pontos de vista. Assim, a atividade científica

59

confirmaria a verdade que prescinde de qualquer reflexão, ou, no máximo, que admite que essa

reflexão seja realizada por determinadas pessoas, supostamente dotadas de uma “inteligência

superior”, como os cientistas, e não por cidadãos comuns.

3.2) Tarefas em classe:

3.2.1) Trabalhos individuais:

Quando foram pedidos exercícios para serem feitos individualmente em classe (em cinco

das aulas observadas), o número raramente excedeu o de três questões do livro didático. O tempo

de espera para que fossem feitos girou em torno de dez minutos a 15 minutos. Foi muito comum

que a classe nesses intervalos de tempo se dispersasse e começasse uma grande confusão, com

muitos alunos conversando em tom de voz elevado e alguns se deslocando pela sala envolvidos

em brincadeiras. Nestas ocasiões, foram freqüentes as reclamações ou ameaças da professora em

relação a alguns alunos em particular ou em relação à classe como um todo:

Eu vou pedir para a diretora mudar esta turma para uma sala “pequenininha”, se não diminuir

o barulho.

Quem fizer quietinho eu não dou lição de casa. Quem conversar, dez questões para casa.

3.2.2) Trabalhos em grupo:

Foram realizadas atividades em grupo em quatro das aulas observadas. Consistiram,

respectivamente, em:

1. Caça-palavras: Realizada em duplas. Os alunos deveriam encontrar quadro palavras em

um quadro e com elas montar uma frase. As palavras eram temperatura, mudança, estado

e água.

2. Interpretação do livro paradidático: Realizada por grupos de quatro alunos que deveriam

responder a três questões retiradas do suplemento que acompanha o livro paradidático.

60

3. Víspora: Realizada em duplas. Os alunos deveriam relacionar as dez questões com as

respostas corretas e registrar os pares (pergunta/resposta) em um quadro.

4. Questão e cruzadinha: Realizada em duplas. Deveriam responder a uma questão sobre o

impacto da poluição marinha nas cadeias alimentares aquáticas e resolver uma

cruzadinha.

Estes trabalhos exigiam basicamente que os alunos tivessem memorizado informações

dissociadas ou que as localizassem em um texto.

No caça-palavras, o tipo de atividade permite supor que a professora considera importante

que os alunos registrem, ou memorizem, que a temperatura influi na mudança de estado físico da

água. Entretanto, a forma de abordagem desta questão pela professora não permite que os alunos

tenham uma clara compreensão de porque a temperatura exerce esta influência (a esse respeito,

ver comentário na p. 51).

O seguinte comentário da professora, feito enquanto os alunos trabalhavam na resolução

das questões sobre o livro paradidático lido, indica sua compreensão sobre o trabalho em grupo:

Trabalho em grupo é assim: lê a pergunta e discute a resposta, antes de escrever.

As questões de interpretação retiradas do suplemento de leitura que acompanha o livro

paradidático diferem bastante das formuladas pela professora nas avaliações e demais atividades

de ciências. Não são do tipo pergunta-resposta, exigem uma interpretação do texto lido e o

estabelecimento de algumas relações, como a de trechos da história com os fenômenos da

evaporação e da condensação.

O enunciado da primeira delas pede que os alunos observem “os elementos mais

importantes da narrativa” e completem um quadro em que devem indicar: o título da história, os

personagens principais e os locais onde se desenvolvem os acontecimentos. A segunda questão

apresenta um desenho que retrata o ciclo da água e pede que os alunos descrevam “com suas

palavras” o caminho percorrido por uma das gotinhas da história. A última questão pede que os

alunos citem duas passagens da história que se relacionem com os seguintes termos: evaporação e

condensação.

Em outra aula, os grupos realizaram uma atividade de víspora. A uma lista de

perguntas, segue uma de respostas que os alunos deverão relacionar, registrando os pares

61

pergunta-resposta em um quadro. O assunto tratado, mais uma vez, foi a ocorrência de mudanças

de estado físico da água.

A última atividade observada tratou da questão da poluição de duas formas. Uma, trazia

um texto que descrevia um derramamento de petróleo no mar e questionava o efeito deste

acidente sobre as cadeias alimentares aquáticas. No livro didático, este efeito é descrito em um

texto e em um desenho.

Essa questão traz um fragmento de texto cuja fonte não foi identificada. Trata do

derramamento de óleo que ocorreu em função da Guerra do Golfo Pérsico, em 1991. Como se

pode perceber abaixo, a questão que segue ao texto mantém com este um vínculo frágil:

Leia com atenção o texto a seguir e depois responda à questão:

“No ano de 1991, durante a Guerra do Golfo Pérsico, as forças do Iraque bombardearam navios

petroleiros, provocando o derramamento de enormes quantidades de petróleo no mar. Em toda a

imprensa mundial, a imagem mais marcante foi a que mostrava uma ave coberta de óleo, com

dificuldades para se mover, morrendo na praia. Mas essa era só uma parte do desastre”.

De que forma o petróleo afetou a cadeia alimentar naquele ambiente aquático?

A questão já identifica qual era a outra parte do desastre (o petróleo afetou a cadeia

alimentar) e pede que os alunos expliquem-na. De fato, bastava trazer a informação de que houve

o tal derramamento de óleo e, então, propor a questão. A reflexão sobre o que mais seria

conseqüência desse desastre ecológico, além da ave coberta de óleo, poderia gerar discussões

instigantes nos grupos, inclusive informando à professora quais os conceitos básicos necessários

aos alunos para alcançar a compreensão da amplitude do desastre em questão.

A outra questão desta atividade era uma cruzadinha. Para respondê-la, os alunos deveriam

ter memorizado diversas definições, tais como:

(1) Fator que causa a poluição.

(2) Quanto maior é a ______________, menor é a penetração de luz na água.

(3) Chuva que arrasta substâncias químicas presentes na atmosfera, prejudicando o

desenvolvimento dos vegetais e animais aquáticos.

62

O que se percebe nas atividades de ciências preparadas pela professora é uma

preocupação em garantir a memorização de definições que, posteriormente serão solicitadas nas

provas de ciências.

Convém também destacar que por mais de uma vez a professora declarou, em conversas

com a pesquisadora, que pretendia trazer sempre atividades para a classe se ocupar, como uma

forma de controlar a indisciplina da turma. Talvez esta intenção declarada possa ter se associado

à necessidade de realizar atividades que promovessem a fixação das definições consideradas

relevantes para a aprendizagem de ciências. O fato de serem realizadas em grupo talvez

represente um facilitador do trabalho da professora, pois as dúvidas que surgem individualmente

podem ser discutidas no grupo antes da sua ajuda ser solicitada.

Depois de corrigidos, os trabalhos em grupo foram entregues a um dos componentes, que

foi orientado a mostrar para os demais. Não foi feita a correção com os alunos, eles foram

orientados a apenas verificar o resultado (a nota) de seu trabalho.

4. Uso dos recursos didáticos:

4.1) Lousa:

Esse recurso didático foi utilizado em 12 das 28 aulas observadas (3/7 do total). Seu uso

pode ser classificado de acordo com as seguintes funções: para registro de definições/explicações,

para confecção de desenhos ou esquemas explicativos, para agendamento de tarefas ou atividades

de avaliação (“Agenda”), para correção de tarefas ou para passar exercícios a serem realizados

em classe. No geral, o conteúdo da lousa ao final das aulas não excedeu os dois terços de sua

extensão, não ocorrendo de, em uma mesma aula, a lousa ser apagada e novamente preenchida.

O uso menos freqüente da lousa foi observado para correção de tarefas ou para passar

exercícios a serem realizados em classe (apenas em duas das aulas). O uso mais freqüente foi

para registro de textos/definições e para marcar a “Agenda” (em sete aulas).

No caso do registro dos textos, sempre foram anteriores às explicações da professora. No

geral, antes da explicação do conteúdo da lousa, a professora fez a leitura de trechos do livro

didático que se referiam ao mesmo tema (usualmente dos mesmos textos copiados na lousa).

63

Os desenhos ou esquemas marcaram o uso da lousa em duas aulas. Foram explicados

enquanto os alunos os conferiam no livro didático e eram essencialmente idênticos aos que ali

constam.

Chama a atenção a pouca utilização da lousa para registro de correções de tarefas ou de

atividades de avaliação. Estas correções foram feitas essencialmente na forma oral, sem que a

professora manifestasse preocupação em falar vagarosamente e em encaminhar para a correção

(preocupação também aparentemente ausente nos alunos que não pedem para que ela, por

exemplo, repita qualquer informação). Essa atividade de correção parece ficar a cargo dos alunos

que, na sua maioria, sequer lêem suas respostas para que a professora possa verificar se

cometeram erros e indicar a necessidade de correção. Portanto, a própria identificação dos erros

compete aos alunos.

4.2) Livro didático11:

O livro didático é um recurso utilizado regularmente nas aulas. Apenas quando a

professora trouxe outro tipo de atividade (como trabalhos em grupo ou atividades de avaliação),

em cinco das aulas, o livro deixou de ser utilizado. Foram identificados quatro tipos de uso do

livro didático pela professora: como fonte para destacar textos que são transcritos na lousa, para

indicar exercícios a serem desenvolvidos durante as aulas, para leitura e para exploração de

figuras, desenhos ou esquemas.

Os trechos de texto transcritos para a lousa são curtos e têm um caráter de definição. Os

termos utilizados são basicamente os mesmos que aparecem no livro, bem como a grande maioria

dos exemplos e dos desenhos explicativos.

Em alguns capítulos do livro encontram-se, além dos dois tipos de exercícios (roxo e

laranja), descritos na abordagem das tarefas para casa (p. 56), desafios chamados “A cientista

detetive”. São aventuras de uma cientista, Dra. Silvana, que é chamada para investigar situações

misteriosas que requerem o uso dos conceitos abordados no capítulo. Esse tipo de exercício foi

11 É interessante destacar que quando se realizou a comparação entre duas edições deste livro – a recebida pelos alunos da rede pública de ensino e a que chegou às livrarias no mesmo ano, de 2001 –, pôde-se verificar uma diferença na forma de abordagem dos temas ao longo dos capítulos, explicitando-se uma maior preocupação, no livro que chegou à escola pública, com a apresentação de definições, enquanto que o outro, que serviu à rede particular de ensino, trouxe mais oportunidades de abordagem de conhecimentos prévios dos alunos e de reflexão sobre as questões abordadas. Desta constatação, resta uma incômoda sensação de que o próprio livro didático que chega à escola pública já porta uma redução e/ou simplificação no tratamento do conhecimento científico.

64

solicitado em três das aulas observadas. Nesses momentos, a professora pediu que os alunos

lessem o exercício, esperou um tempo para que pensassem, fez uma leitura com os alunos e,

então, ouviu alguns palpites. Não manifestou se acertaram ou se erraram, fez novos

questionamentos e, com alterações na expressão facial, foi indicando se as idéias eram coerentes

ou não. Por fim, indicou qual ou quais alunos mais se aproximaram da resposta correta que,

então, foi apresentada oralmente.

Também são encontrados textos complementares nos capítulos do livro didático.

Apresentados em quadros coloridos, destacados do corpo do texto, recebem o nome de Saiba

Mais. Esse tipo de informação foi trabalhada em duas aulas. São textos com caráter de

curiosidades sobre o tema do capítulo.

Outro tipo de seção de leitura extra existente nos capítulos foi trabalhado em três das

aulas. Nesse caso, a leitura é acompanhada de questões de interpretação do texto (Trabalhando a

leitura).

Em 17 dos capítulos do livro didático (de um total de 30 capítulos) existe uma seção

chamada Experimentação: faça você mesmo. São experimentos que não requerem

equipamentos sofisticados e que podem ser realizados em casa ou na escola. Em apenas uma das

aulas observadas, a professora solicitou um desses experimentos para que fosse feito em casa, ao

longo de algumas semanas, e resultasse em um relatório que representaria uma das notas do

período letivo.

Ao longo do período de observação dessas aulas, foi possível acompanhar a abordagem de

sete capítulos de uma mesma unidade do livro didático (Unidade 2 – Água e Vida).

4.3) Textos extras:

O único texto extra (cuja fonte não foi o livro didático adotado) utilizado nas aulas

observadas foi o livro paradidático lido pela professora para os alunos. Estes, reunidos em grupos

de quatro, deveriam acompanhar a leitura em reproduções xerocopiadas (uma para cada grupo).

A história apresentava algumas gotinhas de água que iam descrevendo suas aventuras

enquanto circulavam pelo ambiente, no ciclo da água. O assunto girava em torno das mudanças

de estado físico.

65

A professora mostrou-se bastante decepcionada com esta atividade em algumas

declarações espontâneas, afirmando que, em outra turma, há cerca de cinco ou seis anos, foi

muito bom trabalhar com este livro, mas que, para esta, ele pareceu meio “bobinho”. Ela não

expôs suas impressões sobre o motivo desta diferença de resultados. Embora não se possa

afirmar, é possível que algumas dificuldades como a existência de um único exemplar do livro

para ser visualizado por quatro alunos ou o fato de a qualidade das cópias tornar impossível a

apreciação das fotos e desenhos do livro, embora a professora tenha insistido para que os alunos

as observassem, tenham prejudicado o desenvolvimento da atividade.

Ao terminar a leitura, a professora perguntou para os alunos:

Gostaram da história?

Um aluno respondeu negativamente, com movimentos da cabeça. A esta reação do aluno,

respondeu, sem parecer zangada:

Não, né?

Após este diálogo, voltou-se para a pesquisadora e comentou:

Ai, nunca mais. Primeira e última vez.

Justificou este comentário dizendo que na outra turma de 5ª série desta escola a atividade

“funcionou”, que só o grupo dos alunos com deficiência auditiva fazia barulho durante a leitura

do texto porque uma das alunas deste grupo ia tentando explicar para os outros e fazia sons altos.

A professora avaliou que o resultado desta atividade não foi adequado porque os alunos não se

comportaram como deveriam. As condições para a realização da atividade (o número e a

qualidade das cópias disponíveis, por exemplo) não foram consideradas pela professora ao fazer

esta avaliação. Ainda assim, destaca-se que o fato de, inicialmente, a professora ter considerado a

atividade meio “bobinha” para esta turma sugere uma reflexão sobre a validade de se repetir uma

atividade que deu certo em outro momento e com outro grupo sem considerar as especificidades

de cada turma.

66

Convém ressaltar, que este único trabalho com um texto que não constava do livro

didático se limitou a repetir as mesmas informações que já haviam sido discutidas anteriormente.

Não se pode considerar que tenha sido uma leitura que indicasse um intuito de abrir a discussão

para outras questões que permitissem o acesso a novas informações de cunho científico ou

cotidiano.

5. Avaliação:

No período em que aconteceram as observações, foram aplicadas três provas de ciências

(nos dias 16/04/2004, 11/05/2004 e 22/06/2004).

Quanto aos conteúdos abordados nesses instrumentos, não parece haver uma seleção entre

os que foram estudados no período anterior às avaliações. A primeira prova baseou-se nos

capítulos 1, 2, 3 e 4 da Unidade 2 (Água e Vida). A segunda, dos capítulos 5, 7 e 8 da mesma

Unidade. A terceira, dos capítulos 1, 2 e 3 da Unidade 3 (Ar e Vida). De fato, tudo o que é

abordado tende a aparecer nas questões de prova. A única exceção está na segunda, que ignora

um dos capítulos da Unidade 2. Este capítulo se refere à composição química da água e traz

termos até então não utilizados pela professora ou pelo livro, como átomos e moléculas.

Conforme já comentado, embora estes termos pudessem ter sido utilizados quando do

estudo das mudanças de estado físico, só são introduzidos neste capítulo, sem que se estabeleça

qualquer relação entre estes dois assuntos (mudanças de estado e moléculas). Aliás, este é o

menor capítulo do livro didático, com apenas três páginas. Nele, a explicação sobre a composição

da água causa estranhamento: diz-se que a molécula da água é representada pela fórmula

química H2O, que são dois tipos de átomos que compõem esta molécula, que a molécula de

água é a menor partícula que ainda conserva as propriedades desta substância, que os átomos

de hidrogênio (H) e de oxigênio (O) que compõem uma molécula de água podem ser separados e

que, ocorrendo isto, apresentarão propriedades diferentes da substância água. Todas as palavras

destacadas são termos desconhecidos ou, ao menos, de difícil compreensão para os alunos, uma

vez que ainda não foram explicados. Como apontado para a questão da força (p. 48-49), aqui

também não é feito o levantamento do que os alunos entendem por esses termos; a aproximação

dos conceitos científicos se dá de uma forma que privilegia a memorização de relações

incompreensíveis para os alunos. A professora fez a leitura deste capítulo em uma aula, sem

67

acrescentar maiores informações além das trazidas pelo livro, a não ser quando disse que, assim

como a molécula de água é a menor parte desta substância que mantém suas características, o

pozinho do giz é a menor parte do giz que ainda é giz.

É compreensível que a professora evite tratar destas questões nas suas avaliações, uma

vez que não são de fato enfrentadas pelo livro (e nem por ela, em suas explicações).

Fica a questão: por que optar por não tratar de um assunto e, no entanto, simular que

houve este tratamento? O simples uso de determinados termos associados à atividade científica

(átomos, moléculas, fórmulas químicas, propriedades químicas, etc.) parece conferir um certo

status a esta disciplina, ainda que não haja compreensão de seus significados. O tratamento

dispensado a estes temas gera uma idéia de que “um dia”, se o seu desenvolvimento se der de

forma adequada, os alunos poderão estar “preparados” para lidar com este “conhecimento

superior”. Parece que se está lidando com um processo natural de amadurecimento, que começa

com o uso descompromissado de palavras destituídas de sentido.

Nas três avaliações prevalecem questões do tipo pergunta-resposta, que mobilizam

informações memorizadas pelos alunos. Duas avaliações apresentam sete questões e uma, nove.

Pode-se classificar as questões das avaliações em quatro tipos: pergunta-resposta,

associação de colunas, preenchimento de lacunas e identificação de afirmações verdadeiras ou

falsas. A tabela abaixo indica quantas vezes cada tipo de questão foi solicitado em cada prova:

Tabela 2: Ocorrência de diferentes tipos de questões nas três provas realizadas

Provas Pergunta-resposta Associação Lacunas Verdadeiro ou falso

5 1 1

5 1 2* 1

Prova 1

Prova 2

Prova 3 4 2 1

* Uma das questões trazia as palavras que deveriam ser dispostas corretamente nas lacunas.

Na primeira prova de ciências, do dia 16/04, são solicitadas informações sobre os

seguintes assuntos: mudanças de estado físico, quantidade de água na Terra, pressão exercida

pela água e flotabilidade dos materiais na água. Em duas questões, os alunos deveriam dizer em

que andar de um prédio seria mais apropriado colocar uma caixa d’água. Portanto, deveriam

saber que a pressão da água aumenta de acordo com a altura em que está colocada a caixa d’água.

68

Entretanto, como não foi trabalhado o porquê disto, ou seja, nada foi dito em termos da energia

potencial armazenada na água, os alunos só contavam com as informações memorizadas a partir

da leitura do livro didático e das explicações da professora, que não se referiam a isto.

É o mesmo caso da questão que se refere à flotabilidade de materiais na água. O livro traz

uma tabela com o valor da densidade de diferentes materiais e aos alunos cabia memorizar que

quando o material é mais denso que a água, afunda; quando é menos denso, bóia. Para fazer a

aproximação do conceito de densidade seria necessário tratar da questão da quantidade de matéria

de um corpo (a sua massa) e da sua distribuição no espaço (o seu volume). Assim, o conceito de

densidade, necessário para o entendimento desta questão, não foi de fato explorado, restando aos

alunos a memorização das informações da tabela citada.

Outra questão pedia que os alunos associassem duas colunas, uma com o nome de

algumas mudanças de estado e outra com a descrição de alguns fenômenos (por exemplo, ferver

água, derretimento de uma vela, roupa secando no varal). Em outra, deveriam assinalar

Verdadeiro ou Falso para algumas afirmações relativas à quantidade relativa da água nos

diferentes estados físicos no ambiente. Outra questão pedia o nome de uma força exercida pela

água (empuxo).

Na segunda prova, do dia 11/05/2004, aparecem os seguintes assuntos: funções da água

no interior dos seres vivos, poluição, propriedades da água e equilíbrio ambiental (fotossíntese,

respiração, cadeia alimentar). Entre as nove questões, encontram-se duas em que os alunos

deveriam preencher lacunas no texto, sendo que uma delas traz as palavras que completam estas

lacunas para que eles as coloquem nos devidos espaços. A questão que não traz as palavras que

ocupam as lacunas se refere a definições acerca da propriedade da água de dissolver substâncias:

A água e a o açúcar misturados formam uma ___________________.

As substâncias como o sal e o açúcar, quando associadas a um ____________ dissolvem-se e

formam uma ________________.

A outra questão de preenchimento de lacunas (com as palavras a serem posicionadas)

aborda o equilíbrio do ambiente:

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Gás Carbônico – Fotossíntese – Tamanho – Equilíbrio – Luz – População – Oxigênio

Para que um ambiente aquático se mantenha numa situação de ______________, algumas

condições devem ser preenchidas. A _________ do Sol deve penetrar na intensidade adequada,

favorecendo o processo de _____________. Além disso, fatores diretamente ligados à

fotossíntese, como a quantidade de ____________ dissolvido na água e de __________

produzido devem ser suficientes para manter as comunidades ali estabelecidas. O ___________

de cada _____________ também deverá se manter constante, de modo que haja recursos

disponíveis para todos indivíduos que vivem no local.

As questões de preenchimento de lacunas, além de reforçarem a idéia de que a

memorização é a forma legitima de se aproximar do conhecimento, parecem se valer da

capacidade de reconhecimento visual de palavras presentes nos textos do livro didático. Ao trazer

as palavras ausentes, como na questão imediatamente acima, a relação exigida do aluno com o

conhecimento parece ser ainda mais empobrecida.

Outra questão pede que os alunos identifiquem cada item como solução ou suspensão

(como a primeira das questões de preenchimento de lacunas).

Uma questão traz duas colunas que devem ser devidamente associadas. Tratam-se de tipos

de poluentes e conseqüências para o meio ambiente:

(a) pesticidas agrícolas ( ) montanhas de espuma nos rios

(b) fuligem e fumaça de chaminés ( ) contaminação do lençol freático

(c) detergentes domésticos ( ) chuva ácida

Encontra-se ainda nesta prova uma questão do tipo pergunta-resposta a respeito da fonte

de oxigênio que serve aos organismos aquáticos, uma que pede que se monte uma cadeia

alimentar com quatro componentes e uma que apresenta um desenho que indica a circulação de

seiva em uma planta e pede que os alunos nomeiem os processos de entrada e saída de água e os

tipos de seiva que circulam pela planta.

Na terceira prova de ciências, do dia 22/06/2004, foram abordados os seguintes assuntos:

pressão atmosférica, formação de ventos e camadas da atmosfera. Três das sete questões se

70

referem à pressão atmosférica, três ao processo de formação de ventos e uma às camadas da

atmosfera.

Duas questões relativas à pressão atmosférica solicitam que os alunos reconheçam a

influência da altitude sobre a pressão atmosférica. Uma, pede que indiquem se as afirmações são

Verdadeiras ou Falsas:

a) à medida que a altitude aumenta a pressão atmosférica diminui: V ( ) ou F ( )

b) à medida que a altitude aumenta a pressão atmosférica aumenta: V ( ) ou F ( )

A outra, traz um desenho indicando três pessoas posicionadas em altitudes diferentes (nível do

mar, 500 metros e mil metros) pede que se identifique onde a pressão é maior ou menor ou como

ela varia de acordo com o deslocamento das pessoas. Ou seja, as duas questões tratam das

mesmas definições.

A variação da pressão atmosférica em função da altitude foi apresentada como tendo a

mesma causa da pressão exercida pela água sobre os corpos. Como o ar é mais leve que a água,

também exerce menor pressão. Em um pequeno desenho do livro aparece a comparação da

quantidade de ar que pesa sobre a cabeça de uma pessoa que está em Santos e sobre outra que

está em Campos do Jordão. Mas, assim como quando se tratou da pressão exercida pela água, o

motivo da existência de uma força que pressiona os corpos em todas as direções não é

apresentado. Ou seja, não se tratou da questão da força da gravidade que atua sobre os gases da

atmosfera ou sobre as características da matéria quando se encontra no estado gasoso (quando as

moléculas estão distantes umas das outras e com energia para se movimentar bastante). Mais uma

vez, o livro e a professora evitaram enfrentar questões como a movimentação das moléculas, a

energia, a ação da gravidade e o próprio conceito de força. Assim, só restou aos alunos

memorizar a forma correta de responder a questionamentos deste tipo.

A outra questão, refere-se a um exemplo, presente no livro, da ação da pressão

atmosférica sobre a superfície de um líquido que sobe por um canudinho. Os alunos deveriam

explicar como se dá esta subida.

A questão referente às camadas da atmosfera trazia duas colunas que deveriam ser

associadas. Em uma encontram-se os nomes das camadas e na outra, suas características.

71

As três questões referentes à formação dos ventos assim se distribuem: uma pede os

nomes de ventos de diferentes intensidades; outra, a seqüência de formação dos ventos e a última,

a identificação em um desenho da direção em que sopra o vento no litoral, durante o dia e durante

a noite. Também na abordagem deste tema não se tratou de importantes questões que

possibilitariam a compreensão das causas dos fenômenos observados (como, por exemplo, da

diferente densidade do ar quente e do ar frio que provoca as correntes de convecção do ar).

Fica evidente que o recurso cognitivo mais solicitado nestas provas foi a capacidade de

memorização. O destaque dado a esta capacidade sugere um método para conhecer (o uso de

técnicas para decorar) e uma finalidade para o estudo, o acúmulo de informações desarticuladas e

não necessariamente compreensíveis.

Enfim, o conhecimento escolar produzido nas aulas desta professora se caracteriza pela

ênfase na memorização como recurso para ensinar e aprender e pelo aspecto de convencimento

conferido ao ensino, ou seja, o conhecimento relevante é de domínio do professor e do livro

didático e aos alunos basta se deixar convencer por estas instâncias de poder. Neste processo, o

conhecimento cotidiano dos alunos só é invocado no sentido de confirmar a autoridade do

professor e do livro texto, não há espaço para opiniões contrárias. Daí pode-se entender o caráter

a-histórico da abordagem de conhecimentos científicos: se não se pretende garantir espaço para a

discussão dos conceitos apresentados em aula é coerente que também não se explicite as

contradições e rupturas inerentes à produção do conhecimento científico, que ganha, assim,

contornos irreais.

Ao não se estabelecer os nexos entre os temas abordados em aula, difunde-se uma idéia de

conhecimento fragmentado, que não pode compor um corpo de conceitos integrados. A

solicitação da repetição das informações, seja em exercícios de fixação, seja no hábito de esperar

que os alunos completem os finais de frases da professora, é enfatizada neste processo

pedagógico como forma de facilitar a memorização.

A comunicação entre a professora e os alunos no que se refere ao conhecimento se

caracteriza por frases curtas que geram breves diálogos; já quando esta interação se refere ao

controle da classe, as frases tornam-se mais longas. Em ambos os casos, a interação mantém-se

centrada na professora. Em suas aulas, ensina-se que mais importante do que se aproximar do

conhecimento é aprender a comportar-se adequadamente, visto que se despende mais tempo com

questões relativas ao controle do que com a criação e a manutenção das condições favoráveis à

72

aprendizagem dos conteúdos de ciências. Passa-se a idéia de que aprender significa manter-se

ocupado, aproveitar o tempo de permanência na escola. A manutenção da disciplina não visa a

preparação dos alunos para o trabalho intelectual. Com o cumprimento das regras busca-se

garantir a aprendizagem, ou, ao menos, permitir que a professora possa cumprir seu papel de

transmissão, o que levaria inevitavelmente à aprendizagem, a despeito do caminho escolhido para

se abordar o conhecimento. Produz-se em suas aulas um conhecimento fragmentado, a-histórico,

distante do conhecimento cotidiano e da natureza do processo de produção característico da

Ciência e acessível pelo desenvolvimento da capacidade de memorização.

Resta questionar se os limites impostos pela organização escolar ou por outros fatores

ligados à formação dos professores ou à sua biografia de fato impedem que se favoreça um outro

tipo de contato dos alunos com o conhecimento. Será que as questões relativas ao

esquadrinhamento de tempos e espaços e às relações de poder na escola não permitem que se

confira um caráter histórico ao conhecimento, como forma de garantir a compreensão de que o

conhecimento é construção coletiva e que representa a busca de soluções para os problemas

enfrentados pela humanidade ao longo do tempo? Não haverá, dentro dos limites impostos pela

forma escolar, espaço para o conhecimento cotidiano dos alunos e para as descobertas científicas

mais recentes? Não é possível se deter um pouco mais no desenvolvimento das habilidades de

leitura e escrita, dedicando-se maior atenção às discussões em torno das respostas elaboradas

pelos alunos em suas tarefas e provas?

As características da ação educativa desenvolvida pela Professora 1 confirmam o que as

pesquisas relacionadas ao ensino de ciências já apontam. O que se acresce ao já apontado é que a

organização do trabalho escolar circunscreve o processo de ensinar e aprender dentro de limites

estreitos, os quais também restringem, norteiam e orientam – para alunos e professores –, os

modos de conhecer e compreender o processo humano de conhecimento. Aprende-se e pratica-se

uma forma disciplinada de agir, mais no sentido de acumular informações e usar conhecimentos

em provas do que para refletir e compreender o mundo. Mesmo assim, circulam conhecimentos

importantes, que poderiam gerar aprendizagens mais complexas. Por isso mesmo, as questões

acima tornam-se ainda mais relevantes e exigem mais investigações. Trata-se de buscar

estratégias diferentes, outros percursos de professores submetidos às mesmas condições de

desenvolvimento de suas ações para que se explicitem algumas possíveis brechas existentes na

73

escola, para a promoção de um ensino de ciências que permita uma melhora qualitativa no

movimento de aproximação dos alunos ao conhecimento científico.

Professora 2:

Foram observadas dezoito aulas, no período de 10/08/04 a 17/09/04, em uma turma de 7ª

série do Ensino Fundamental, composta por 33 alunos.

A sala de aula ocupada por esta turma tem cerca de 7,0 m X 12,0 m. Resultou da união de

duas salas e já foi utilizada como sala de vídeo da escola. Está localizada no bloco principal da

construção, ou seja, na parte mais antiga do prédio, sobre o andar em que se encontram a

diretoria, a secretaria, a biblioteca e a sala dos professores.

Em uma das paredes mais extensas localizam-se quatro janelas do tipo basculante, com

dois vidros fixos embaixo e um em cima. Todas as janelas possuem cortinas cinzas,

provavelmente devido ao uso a que anteriormente se destinava a sala (projeção de filmes). Os

vidros das janelas são opacos e estão voltados para a rua em que se localiza a entrada principal da

escola.

Na parede oposta às janelas está a porta. A lousa localiza-se na parede da frente e, no

fundo da sala, embora não exista um mural, estiveram expostos por alguns dias, em uma espécie

de varal, 14 trabalhos dos alunos, realizados nas aulas de português.

A sala tem piso cerâmico com aspecto de novo e as paredes parecem ter sido pintadas

recentemente. No teto encontram-se alinhados aos pares seis ventiladores; lâmpadas fluorescentes

garantem a iluminação.

Os alunos permanecem em silêncio a maior parte do tempo das aulas, envolvidos nos

trabalhos solicitados pela professora, e, quando conversam, mantém um tom de voz baixo.

Alguns alunos, por vezes, se comunicam através de mensagens escritas em folhas de papel que

lançam uns para os outros, quando a professora não está olhando. Embora seja pouco freqüente,

se os alunos iniciam uma conversa em voz alta a professora reage prontamente, geralmente

gritando.

As posições dos alunos na sala de aula, assim como na turma de 5ª série observada, foram

definidas através do mapeamento de sala. Em duas das aulas observadas, a professora repreendeu

74

um ou dois alunos por estarem fora de suas posições, orientando-os a voltarem para seus lugares,

o que indica que ela legitima através de sua vigilância essa estratégia de controle dos alunos.

Durante as aulas, enquanto os alunos realizam os trabalhos solicitados, a professora

permanece sentada em sua cadeira, envolvida em atividades que implicam em registros

constantes em seu diário de classe. Em nenhuma aula a professora andou pela classe, exceto na

faixa imediatamente à frente da lousa e entre sua mesa e a porta; caso algum aluno tivesse alguma

dúvida ou mesmo se a professora desejasse falar com algum aluno, ele deveria ir até a sua mesa.

Com sua maneira de agir, marcada pela seriedade e firmeza, e com as freqüentes

referências que faz ao encadeamento e aos objetivos de cada atividade, a professora imprime um

tom de seriedade e de urgência às suas aulas – o tempo é sempre curto e todos têm muito o que

fazer. É comum que durante as aulas a professora saia da sala por alguns minutos, retornando

com alguma informação sobre atividades que está planejando para a classe – por exemplo,

detalhes sobre uma saída, orientações sobre algum trabalho, etc.

Ao solicitar alguma atividade, a professora procura ressaltar repetidamente o que deve ser

feito, em quanto tempo, qual será seu critério de avaliação dos resultados da atividade e quanto

valerá cada atividade no momento de compor a nota bimestral dos alunos.

Não é possível descrever um padrão de desenvolvimento que ilustre o que acontece nos

minutos iniciais, centrais ou finais de cada aula, tal como se fez para a Professora 1. Elas

apresentam formatos bastante diferenciados e a professora utiliza estratégias diversas para

abordar os conteúdos. Entretanto, o trabalho docente observado foi dividido nas mesmas

categorias utilizadas para a Professora 1, para fins de organização da descrição. A seguir,

procura-se detalhar cada uma dessas etapas do trabalho da Professora 2:

1. Organização da classe e controle dos alunos:

A interação oral que se estabelece nas aulas, sob a iniciativa da professora, em relação a

questões referentes a procedimento e controle, caracteriza-se por poucas e breves intervenções

relacionadas à busca por: manutenção do silêncio na aula, estabelecimento da ordem e da

urgência na execução das atividades propostas, antecipação de indicações sobre as próximas

atividades, orientação sobre o que e como estudar e manifestação das expectativas da professora e

dos seus critérios de avaliação dos trabalhos dos alunos.

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A Tabela 3 pode demonstrar como essas intervenções se distribuíram pelas aulas

observadas nesta investigação:

Tabela 3: Freqüência e teor das intervenções da professora nas aulas

Teor das intervenções da professora Número de aulas em que se repetem

Ameaça/urgência 8

Antecipações 7

Manifestação de expectativas 6

5 Orientações de estudo

Manutenção do silêncio 3

As intervenções marcadas por um tom de ameaça estão sempre vinculadas à preocupação

da professora com a qualidade da participação dos alunos nas atividades propostas. Apenas duas

dessas intervenções se referiram a outra instância de poder na escola, a diretora. Em uma dessas,

a professora recolheu um bilhete que estava sendo passado de uma aluna para a outra. Nesse

momento reagiu com indignação e alertou:

Vou começar a ler alto [os bilhetes]. Na próxima vez, vou levar para a direção e vocês podem

levar até suspensão.

Uma ameaça freqüente é a que aponta o pouco tempo que os alunos têm para fazer o que

foi proposto, vinculando essa urgência à preocupação com a nota ou com o ganho do ponto

positivo:

Se não der tempo de fazer, o aluno vai dançar.

Se não der, o problema não vai ser meu. Vou avaliar o que der tempo de fazer.

Em sete aulas a professora antecipou as orientações sobre como proceder nas atividades

que fariam nas próximas aulas. Nessas ocasiões, ela descreveu o que seria feito (saída, montagem

76

do esqueleto, vídeos, seminários), indicando como os alunos deveriam proceder – como deveriam

se organizar na classe e que material deveriam portar.

Em seis aulas, manifestou quais eram as suas expectativas acerca do resultado final dos

trabalhos dos alunos:

Quero seminários lindos, maravilhosos.

Não quero um seminário. Quero o seminário.

Nesses momentos, a professora também expôs quais seriam seus critérios para avaliar a

produção dos alunos:

Conteúdo, postura, fala alta, criatividade, tempo de apresentação [em um seminário cuja

apresentação foi agendada para novembro/2004].

A limpeza, a maneira como recortou e colou e a montagem [sobre a montagem do esqueleto].

A explicitação freqüente de seus critérios de avaliação e das etapas de realização das

atividades esclarece auxilia na compreensão de como deve ser a participação dos alunos nas

aulas. Orienta a aproximação destes em relação ao conhecimento e aponta para formas de registro

das etapas já realizadas e das que ainda virão, conferindo uma noção de entrosamento entre os

temas das aulas.

Suas expectativas, por vezes, também se referiram ao comportamento dos alunos em suas

aulas:

Quem falta, o mínimo que deve fazer é se informar sobre o que o professor deu na aula e

completar o caderno [comentário feito quando estava avaliando os cadernos].

É um absurdo tanta gente [oito alunos] esquecer o material. Eu avisei.

77

As orientações sobre como, o que e quanto devem estudar os alunos são pontuais e

freqüentemente se relacionam com a preocupação da professora com as notas dos alunos:

Estudem. Estudem as provas [para os alunos que fariam a prova de recuperação].

Tem bastante nota baixa. É bom recuperar na prova de amanhã.

A professora manteve-se sempre muito atenta ao volume da voz dos alunos. Quando

considerou que este atingiu um nível alto, reagiu gritando e dirigindo-se diretamente aos alunos

envolvidos na conversa. Além dessas reações mais intempestivas, em três aulas, fez breves

comentários para garantir a manutenção do silêncio, sendo sempre prontamente atendida:

Ai, gente, eu não queria ouvir a voz de certas pessoas [olhando para um aluno que conversava].

Sem falar, cada um fazendo o seu, senão não vale a pena, pessoal.

Silêncio absoluto. Sem comentários, agora.

Enfim, a professora não compromete mais do que alguns minutos de suas aulas em

considerações relativas ao controle da classe. Quando se refere aos procederes em seus trabalhos,

suas orientações são breves e carregam sempre uma preocupação em antecipar os próximos

passos da aprendizagem e os critérios pelos quais os alunos serão avaliados.

2. Abordagem dos conteúdos:

2.1) Por iniciativa dos alunos:

Em uma aula, um aluno trouxe o resultado de um exame de sangue a que se submetera e

que revelou uma disfunção da tireóide e hipertensão arterial. Após ler rapidamente o resultado de

tal exame, a professora pediu que o aluno fizesse sua leitura para a turma, que foi convidada a se

colocar no lugar do médico desse aluno:

78

O Renato é o paciente, vocês são os médicos.

Em seguida, indicou que o exame apontava para a necessidade de uma mudança de estilo

de vida e ressaltou que um jovem pode ser também afetado por doenças que se costuma associar

a pessoas mais velhas. Então, perguntou para a classe:

Quais poderiam ser as mudanças [de estilo de vida]?

Alguns alunos indicam que se deve cuidar da alimentação, fazer esportes, etc. A

professora retoma essas indicações e reforça a necessidade de se ter uma alimentação equilibrada

e de não se levar uma vida sedentária:

É bom McDonald’s, mas tem que ter limite.

Ao longo dessa discussão iniciada pela intervenção de um aluno, a professora apontou

vários assuntos que, segundo ela, já haviam sido discutidos, como, a questão da pressão arterial,

por exemplo, indicando que o fato de já terem estudado sobre o assunto permitia uma melhor

compreensão do significado do diagnóstico recebido pelo aluno.

Esse último comentário da professora valoriza o conhecimento adquirido na escola como

instrumento para compreensão de situações cotidianas. A professora aproveita uma intervenção

de um aluno para listar temas já estudados, conferir de forma geral o que foi apreendido pelos

alunos sobre esses temas, através de questionamentos que lançou para a classe (o que é

hipertensão, por que se deve cuidar da alimentação, etc.) e para legitimar suas escolhas em

relação ao conteúdo estudado e o próprio conhecimento transmitido pela escola.

Ao final dessa discussão, um aluno perguntou:

O que é tireóide?

Em sua resposta, a professora indicou que isso seria estudado mais adiante:

79

Nós vamos ver logo depois do sistema nervoso. É uma glândula, depois vocês vão ver com

cuidado.

Mesmo destacando que essa resposta não poderia ser dada de imediato, que existe uma

seqüência para a aprendizagem, a professora trouxe um termo novo para os alunos – glândula.

Essa é uma atitude coerente com sua opção, apontada mais à frente, de permitir o contato dos

alunos com as informações antes de suas explicações, como forma de garantir alguma

aprendizagem preliminar.

2.2) Por iniciativa da professora:

As explicações da professora, de fato, fecham todo um processo que conta com diversas

estratégias para introduzir os alunos no assunto explicado. Busca dirigida de informações no livro

didático, vídeos, atividades individuais (montagem do esqueleto), resolução de questões, são

exemplos dessas estratégias escolhidas pela professora para esse fim. De um total de 18 aulas

acompanhadas, somente em uma se pôde observar uma de suas explicações.

Durante o período de observação foram abordados, através de diversas estratégias,

conteúdos referentes à estrutura e ao funcionamento dos sistemas excretor e locomotor humanos.

Na penúltima aula observada, a professora iniciou o 4º bimestre indicando um trabalho que

inaugurou a abordagem sobre o sistema nervoso.

Uma análise mais detalhada da forma escolhida para apresentar o conteúdo pode trazer

indicações dos supostos da professora em relação ao processo de ensino-aprendizagem de

ciências. No caso do sistema locomotor humano, foram utilizadas as estratégias abaixo, assim

distribuídas em oito das aulas observadas, como se pode observar na Tabela 4:

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Tabela 4: Distribuição das atividades de abordagem do conteúdo ao longo das aulas

Data Número de aulas Atividades

Resumo no caderno

Resumo + questões

31/08/04 1

01/09/04 2

03/09/04 1 Questões

08/09/04 2 Montagem do esqueleto humano

10/09/04 1 Vídeos + relatório em grupo

17/09/04 1 Explicação da professora

O tratamento do assunto começou com o contato dos alunos com as informações trazidas

pelo livro didático, tendo a orientação da professora para buscar as que ela considerou mais

relevantes e registrá-las em seus cadernos. Nessas ocasiões, os alunos não fizeram perguntas para

a professora e, entre eles, em voz baixa, trocaram indicações de onde cada informação poderia ser

encontrada.

As questões respondidas nessas aulas foram selecionadas no livro didático e eram do tipo

pergunta-resposta, reforçando basicamente a habilidade de buscar no texto as informações

consideradas pela professora como importantes para a compreensão do assunto.

O trabalho individual de montagem do esqueleto humano também utilizou o livro didático

como fonte de informações e cumpriu, da mesma forma que o resumo, a função de colocar os

alunos em contato com termos que seriam mencionados nas explicações posteriores da

professora, como forma de garantir alguma aprendizagem a partir desse contato com as figuras e

os textos indicados.

Os vídeos representaram mais uma fonte, além do livro, para o levantamento de

informações adicionais relacionadas ao assunto abordado, permitindo o acesso a uma linguagem

diferente e fazendo uso dos atrativos da imagem e do movimento. Os relatórios dos vídeos

representaram mais um exercício de identificação e registro de informações relevantes para a

aprendizagem.

A última etapa na transmissão do conteúdo pela professora se desenvolveu no laboratório.

Ali, dispostos nos grupos, os alunos puderam ouvir a explicação da professora. Durante esta aula,

ela utilizou um modelo de esqueleto humano em tamanho natural.

81

A professora iniciou com a solicitação de que os alunos abrissem seus cadernos no

resumo sobre o sistema locomotor indicando que faria perguntas que eles deveriam responder. O

diálogo da professora com os alunos durante essa aula se caracterizou por perguntas e respostas

rápidas, tais como:

Professora: Quais as principais funções dos ossos?

Alunos (consultando o resumo): Sustentar.

P: E o que vai sustentar?

A: O corpo.

P: Alguém falou também em proteção. O que protege?

A: Os órgãos.

P: O que mais?

A: Produção de células.

P: Mais alguma?

A: Ajuda no processo de locomoção.

Durante o diálogo, apenas alguns alunos responderam às perguntas da professora Os

demais, permaneceram em silêncio. A professora em dado momento reclamou por só ouvir um

ou dois alunos respondendo. Após ouvir cada resposta, a professora tecia comentários. Por

exemplo, quando os alunos se referiram ao papel das articulações na locomoção, apontou que,

sem elas, andaríamos que nem robô.

Foram freqüentes as suas referências a outros sistemas do corpo humano já estudados,

pedindo algumas definições que, na maior parte das vezes, foram apresentadas, embora por

poucos alunos.

O modelo de esqueleto foi utilizado para a identificação de alguns ossos que foram

nomeados e localizados também nas figuras do livro didático e nos esqueletos montados pelos

alunos. Sobre os nomes dos ossos, comentou:

Tem milhares de ossos. É claro que ninguém aqui vai ser biólogo ou médico agora, por isso, não

precisa decorar.

82

Solicitou, então, que os alunos observassem os erros que cometeram ao montar seus

esqueletos. Perguntou se a cabeça, pelo menos, todo mundo havia colocado no lugar certo:

Todo mundo está vendo seus erros absurdos? Está certo que alguns esqueletos estão ótimos, mas

têm outros...

Os comentários da professora e a detecção dos erros de cada um desencadearam muitos

risos dos alunos e da professora.

Ao longo de sua explicação, a professora seguiu a ordem de apresentação do conteúdo

presente no livro didático e nos resumos dos alunos, porém, trouxe informações adicionais. Falou

sobre o risco de acidentes que lesam a coluna vertebral, sobre o peso suportado pelos pés e pelos

joelhos durante a locomoção e sobre contusões de atletas famosos, como o jogador de futebol

Ronaldinho e a ginasta Daiane dos Santos.

Assim, embora o livro didático seja o eixo norteador do que é explicado e da seqüência de

abordagem, a professora mostra certa independência em relação a este, tecendo comentários e

buscando exemplos não constantes do livro. Da mesma forma, ela não lê definições extraídas do

livro didático para legitimar suas explicações, embora o registro dessas definições tenha sido

garantido nos resumos e nas questões respondidas em classe.

A professora manifestou preocupação em destacar com freqüência os tópicos já estudados

do conteúdo e a sua relação com o assunto explicado naquela aula. Também fez referências aos

temas que ainda seriam estudados, como o sistema nervoso. Indicou estar planejando uma visita a

uma Faculdade de Medicina, mas afirmou que não sabia se conseguiria agendá-la porque,

segundo ela, é difícil fazer saída nesta escola.

Apontou também que havia combinado uma complementação desse estudo com a

professora de educação física, que discutiria a questão da postura corporal.

Finalizou sua explicação perguntando se alguém tinha alguma dúvida e, como ninguém se

manifestou positivamente, ressaltou:

Vocês podem começar a estudar porque vão ter uma prova de ossos e músculos e sistema

nervoso.

83

Percebe-se na prática da professora, como outro indício de sua relativa independência em

relação ao livro didático, a busca por atividades que tragam informações adicionais ou que lidem

com outras linguagens para abordar os conteúdos, como, as saídas, os vídeos, trabalhos

individuais e em grupo. Além disso, é notável também sua procura por estabelecer vínculos com

outras disciplinas – especificamente no período dessa observação, a educação física – no que

pode representar uma tentativa de romper com a fragmentação estabelecida pela forma da escola

de lidar com o conhecimento. Apesar disso, nas questões que propõe para finalizar as atividades

ou nas situações de avaliação de aprendizagem, a professora se limita a garantir a repetição de

informações dissociadas e não estabelece espaço para discussão de pontos de vista antagônicos.

2.3) Atividades de registro:

2.3.1) Escrita dos alunos:

A escrita dos alunos chega até a professora através do acompanhamento que ela faz dos

registros do caderno, dos relatórios individuais e em grupo que ela solicita como conclusão de

trabalhos e das respostas elaboradas por eles às questões das provinhas.

Os registros do caderno consistem dos resumos realizados a partir dos roteiros

estabelecidos pela professora e da resolução de questões por ela selecionadas. De fato, a

professora confere rapidamente o conteúdo dos resumos a cada aula em que solicita esta tarefa,

inclusive atribuindo pontos positivos para os alunos que cumprem integralmente o que foi

solicitado, porém, pode-se questionar se o resultado deste trabalho realmente indica um cuidado

com a escrita dos alunos, uma vez que, por se tratar de um trabalho de transcrição de trechos do

livro didático, não parece exigir destes uma elaboração mais autônoma. Além disso, a dinâmica

instituída pela professora para conferir os cadernos e atribuir os pontos positivos acaba por não

permitir uma leitura mais cuidadosa do conteúdo de cada caderno, sendo o tempo priorizado para

conferir a quantidade e não a qualidade dos registros. Tal priorização indica que o critério

adotado para acompanhar a aprendizagem dos alunos é o cumprimento das tarefas, a despeito do

que efetivamente eles apreenderam do conhecimento do qual se aproximaram através da

mediação da professora. Verifica-se, assim, que a professora opta por uma forma de

administração do tempo, enfatizando preferencialmente algumas de suas atribuições em

84

detrimento de outras, para poder desenvolver sua prática nos moldes determinados pela forma

escolar.

A professora também tem a possibilidade de avaliar a escrita de seus alunos através da

leitura dos relatórios que eles produzem a partir das diversas estratégias de abordagem do

conteúdo das aulas. Porém, estes trabalhos são corrigidos por ela e devolvidos com uma nota,

sem que se teça qualquer comentário em relação à expressão escrita dos alunos. Mais uma vez o

que parece prioritário é a execução do que foi solicitado e a identificação do uso incorreto das

definições tratadas em aula e não um tratamento mais detalhado das dificuldades relacionadas à

expressão escrita.

2.3.2) Escrita da professora:

Os alunos interagem com o registro escrito da professora quando ela compõe seus roteiros

na lousa e através das questões que elabora nas provinhas. Nos roteiros, desenvolve-se uma

comunicação bastante econômica, com palavras-chave seguidas por um detalhamento breve sobre

o que deve ser procurado para compor o resumo, sem que se formem frases completas:

Suor

- componentes (quais são eles)

- produção (produzido por quem)

Nas provas, as questões, no geral, são curtas, algumas vezes solicitando o preenchimento

de lacunas em frases ou a associação de colunas:

• Todas as artérias carregam sangue arterial?

• Qual é o papel dos leucócitos em nosso sangue? Como eles agem?

• Complete as frases:

a) As artérias são vasos que _______________ sangue do coração aos demais órgãos do

corpo.

85

b) Veias são vasos que _______________ sangue dos órgãos para o coração.

Mesmo em questões que trazem textos mais longos, estes não demandam a habilidade de

relacionar informações, apenas trazem “dicas” que facilitem a identificação das definições

esperadas pela professora:

• Além de conter células, plasmas e todas as substâncias que já vimos, o sangue também

contém um tipo especial de substância que está relacionada à proteção contra algumas

doenças que contraímos na infância.

a) Como se chamam essas substâncias?

b) Onde são produzidas?

Assim, a escrita da professora revela aos alunos uma forma de lidar com o conhecimento

que o reduz a definições simples, curtas e não geradoras de qualquer tipo de contradição. Ao

apresentar sua escrita de forma esquemática e breve, a professora, além de definir um tipo de

relação com o conhecimento, também produz um modelo de texto a ser seguido pelos alunos: um

texto pouco articulado e sem a preocupação em apresentar seus argumentos explicativos. Um

texto mais comprometido com o convencimento e não com o estímulo à reflexão, o que não

desmerece outros aspectos do trabalho realizado pela professora, tais como, a preocupação em

permitir que os alunos se aproximem do conhecimento de forma mais independente, através da

promoção do contato com diversas fontes de informações antes da realização de suas explicações

e a busca pela integração com outras áreas do conhecimento no desenvolvimento de suas

atividades com os alunos.

3. Tarefas e atividades dos alunos:

3.1) Produção de resumos no caderno:

Nos minutos iniciais de quatro das aulas observadas, a professora solicitou que os alunos

compusessem resumos do conteúdo do livro didático em seus cadernos. Em três dessas aulas,

além do resumo, os alunos tiveram também que responder, no caderno, a questões selecionadas

86

no livro didático, referentes ao conteúdo resumido. Não houve, antes da composição dos

resumos, nenhuma explicação da professora acerca do conteúdo das aulas.

Para compor esses resumos, os alunos contam com roteiros que a professora passa na

lousa. Esses roteiros orientam a busca de informações no livro didático, estabelecendo a mesma

ordem para a abordagem do conteúdo que a ali encontrada.

O exemplo a seguir ilustra o tipo de solicitação da professora em seus roteiros:

Sistema Excretor

- Excreção (o que é)

Principais produtos da excreção

- (cite quais são eles)

Sistema Urinário

- Rins

(qual é a função)

(estrutura)

- Urina (como é constituída)

Estrutura interna de um rim

- (desenhar o rim da p. 119)

O roteiro da professora destaca a forma de divisão do conteúdo que está presente no livro

didático. Assim, o aluno deve seguir, em sua procura pelas informações, a ordem apresentada no

livro e destacar o que a professora põe entre parênteses (o que é, como é constituído, qual a

função, etc.).

Em determinada aula, indica como devem ser feitos os resumos:

Não é para copiar tudo do livro senão ta errado, né? Eu separo para vocês.

É para colocar tudo certinho, como eu coloco, item por item.

Essa busca de informações, ainda que bastante direcionada pela professora, permite que o

aluno tenha um primeiro contato com o conhecimento a partir de uma leitura solitária que, talvez,

87

pudesse revelar outras informações que ele considerasse relevantes em relação ao assunto

abordado, inclusive com dúvidas que poderiam gerar instigantes discussões. Entretanto, o

formato do roteiro parece limitar o espaço para a dúvida, estabelecendo os limites do que é ou

não relevante. Este limite fica ainda mais delimitado pelo fato de, nas situações de avaliação da

aprendizagem dos alunos, a professora pedir a repetição exata das definições que indicou como o

conhecimento relevante em seus roteiros.

3.2) Resolução de questões/tarefas em classe:

Em três aulas os alunos tiveram que responder questões do livro didático, selecionadas

pela professora. Tratavam-se de questões diretamente relacionadas com os resumos que foram

feitos nas mesmas aulas e exigiam a identificação direta de definições no texto.

A professora não discutiu as respostas elaboradas pelos alunos para as questões que

solicitou. Em uma aula, a professora pediu o caderno de um aluno para verificar suas respostas.

Após a verificação, apontou o que deveria ser corrigido e, na aula seguinte, pediu que uma aluna

transcrevesse esta correção para a lousa, orientando os alunos a corrigirem suas respostas. Assim,

os alunos deveriam identificar se o que responderam era condizente com o que foi elaborado pela

professora. É possível que os alunos sequer tenham estabelecido tal comparação entre as

respostas ou que, diante do que definiu a professora, tenham descartado imediatamente o que

elaboraram sozinhos, uma vez que não houve qualquer manifestação de dúvida por parte deles

em relação à correção da professora.

Em uma aula, os alunos receberam uma figura xerocopiada que trazia os ossos do

esqueleto humano dispostos aleatoriamente. Foram orientados a recortar os ossos e a montar o

esqueleto em outra folha. Foi um trabalho individual e, para realizá-lo, os alunos puderam

consultar as figuras do livro didático e não deveriam fazer perguntas à professora. Ela explicou

para a classe que, com esta atividade, eles iriam conhecer alguns ossos e suas posições no

esqueleto humano. Assim, quando, em outra aula, assistissem ao vídeo que traria, iriam

reconhecer algumas informações:

Isso é ótimo para vocês estarem identificando os ossos e onde se localizam. É claro que ninguém

terá que decorar isto!

88

Indicou também que em outra aula os alunos iriam comparar os esqueletos que montaram

com um modelo que fica no laboratório:

Presta atenção nos nomes. Na hora que vocês compararem os esqueletos de vocês com o do

laboratório, vão falar: Nossa!

Com esta atividade, a professora indica mais uma vez sua opção por colocar os alunos em

contato com o assunto antes de estabelecer qualquer explicação. Dessa forma, eles vão lidando

com termos que os preparam para um melhor aproveitamento das futuras discussões. Uma

declaração espontânea da professora revela que ela de fato procura fazer várias atividades

relacionadas a um assunto antes de explicá-lo:

Assim, eles já vão assimilando alguma coisa.

Merece destaque essa iniciativa da professora no sentido de não centralizar a abordagem

dos conteúdos de suas aulas nas suas explicações, permitindo que os alunos entrem em contato

com o conteúdo de forma mais autônoma e com maior probabilidade de mobilização de seus

conhecimentos prévios acerca do assunto abordado.

3.3) Trabalhos em grupo:

Os grupos de ciências foram estabelecidos pela professora no começo do ano e são

representados por um dos seus membros, por ela designados, aos quais ela solicita ou transmite as

informações necessárias para o desenvolvimento dos trabalhos.

Em uma aula dupla, após fazerem uma prova na primeira das aulas, os representantes dos

grupos tiveram que copiar um texto da lousa, acerca do problema da obesidade na adolescência,

em uma folha que trazia cinco questões de interpretação desse texto. O assunto deveria ser

discutido pelos grupos que, então, elaborariam as respostas.

Antes de realizar o trabalho, os grupos ouviram um comentário da professora sobre o

tema. Ela afirmou que eles já haviam discutido bastante sobre obesidade e alimentação e que o

89

texto tratava da relação obesidade/problemas do coração. Apontou que a única dúvida que

considerava possível de existir em relação ao texto era sobre o termo osteoporose:

Alguém sabe o que é?

Um aluno responde:

Desgaste do osso.

A professora concorda:

Isso!

Destaca-se o fato da professora ter tecido esses comentários acerca do texto antes da

leitura do mesmo pelos alunos. Dessa forma, ela parece indicar de antemão o que pode ou não

suscitar questionamentos dos alunos. De fato, não é feita nenhuma intervenção por parte dos

alunos durante a execução desse trabalho. O resultado final – as respostas dos grupos às questões

propostas – foi entregue à professora e não foi discutido em nenhuma outra aula.

Outro trabalho realizado pelos grupos foi desenvolvido em uma aula e dizia respeito à

visita que os alunos fizeram a uma mostra denominada “Diálogo pela vida”. A visita foi realizada

durante o período de aula e a professora conduziu os alunos, a pé, até o local de sua exposição

(distante cerca de quatro quarteirões da escola). Essa mostra procurava ressaltar a situação da

espécie humana em suas relações com o universo, o planeta Terra, os demais seres vivos e os

outros seres de sua espécie, na vida social. Na abordagem dos aspectos relacionados ao universo,

ao planeta e às etapas de desenvolvimento do corpo humano, foi apresentada grande quantidade

de informação de cunho científico, com muitas fotos e textos informativos. Porém, o tom que

marcava o encadeamento das partes da mostra, especialmente no seu final, ao tratar da vida

social, remetia a uma mensagem de cunho moral, com um sentido de alerta para a

responsabilidade humana sobre o ambiente em que vive e sobre as demais formas de vida. Foi

possível identificar uma clara divisão entre dois componentes organizacionais desta mostra: um

que trata dos conteúdos científicos e outro, relativo à formação moral dos visitantes, sendo que

90

este último prevalecia sobre o primeiro. Tal divisão remete ao que Bernstein (1988) classifica

como discurso pedagógico: o resultado da combinação do discurso instrucional, ligado aos

conteúdos específicos das áreas do conhecimento, e o discurso regulativo, que transmite saberes

específicos com os quais moraliza e controla os comportamentos. O autor ressalta que o discurso

regulativo será sempre dominante sobre o instrucional (p. 104). O que se observou então, na

organização desta mostra visitada pelos alunos foi a adequação do discurso oriundo dos campos

de produção do conhecimento aos princípios de seleção e organização do trabalho escolar,

resultando este processo em uma ênfase nos aspectos ligados ao discurso regulativo.

Os grupos deveriam permanecer juntos durante a visita. Após a atividade, em outra aula,

os grupos foram orientados a compor um relatório da saída, especificando de que tratava cada

parte da mostra. As partes foram indicadas anteriormente pela professora, quando ela apontou a

seqüência que os alunos deveriam seguir durante a visita, bem como o que deveriam registrar:

Mostra – Diálogo pela Vida – 18/08/2004

- O grande Universo (o que é) [dados sobre astronomia]

- O pequeno Universo (o que é) [dados sobre o corpo humano]

- Aprender vivendo (como) [a importância da formação moral do ser humano]

- O diálogo (o que é) [as relações sociais]

- Amigos do mundo [a responsabilidade humana sobre o planeta]

- Quem somos [apresentação dos organizadores da mostra]

Além do relatório, os grupos deveriam indicar qual era a proposta dos organizadores da

mostra e elaborar uma “mensagem pela vida”. Durante a execução dos trabalhos, os alunos leram

as anotações que fizeram durante a saída. A professora indicou que o que propunha não eram

questões para serem respondidas, e, sim, comentários dos grupos acerca da mostra visitada.

Convém destacar a semelhança entre os roteiros que a professora estabelece para orientar

o trabalho dos alunos na busca de informações, seja no livro didático, seja na visita à mostra.

Em uma aula a turma foi ao laboratório de ciências para assistir a dois vídeos relativos aos

sistemas esquelético e muscular humanos. Ali, dispuseram-se nos grupos de ciências e foram

orientados a fazer anotações que depois seriam utilizadas para compor um relatório.

91

Os conteúdos abordados nos vídeos não foram explicados anteriormente pela professora.

Porém, sobre esse assunto, os alunos já haviam feito o resumo a partir do livro didático, segundo

o roteiro proposto pela professora, e já haviam montado o esqueleto humano em papel sulfite,

conforme indicado no item anterior (Resolução de questões/tarefas em classe).

Mais uma vez, os resultados dos trabalhos não foram discutidos pela professora com a

turma. Os trabalhos foram entregues para a avaliação e seu retorno chegou para os alunos na

forma de uma indicação do que estava certo ou errado, sem espaço para qualquer tipo de

confronto de opiniões ou mesmo de esclarecimento de dúvidas.

4. Uso dos recursos didáticos:

4.1) Lousa:

A lousa foi utilizada em oito aulas: em quatro, para indicar as informações que deveriam

compor os resumos nos cadernos; em uma, para passar um texto a partir do qual os alunos

responderam questões de interpretação; em uma, para passar a correção de uma prova (“prova

relâmpago”); em outra, para apresentar a correção de questões e, em uma última, para passar as

questões da prova de recuperação.

Nestas aulas, a lousa foi preenchida por completo, apagada e novamente preenchida, desta

vez de forma incompleta.

4.2) Vídeo:

Em uma aula os alunos foram ao laboratório de ciências, onde fica instalado o aparelho de

vídeo da escola, para assistir a duas fitas sobre os sistemas esquelético e muscular humanos. A

forma de abordagem dessa atividade já foi exposta (p. 90-91).

4.3) Livro didático:

O livro didático foi utilizado em três tipos de situação durante as aulas observadas: na

coleta de informações para compor os resumos do conteúdo no caderno, na observação de figuras

92

para montagem do esqueleto humano e na seleção de algumas questões para serem respondidas

em classe. A utilização do livro em cada caso citado está especificada em itens anteriores (p.85 e

p. 87).

4.4) Textos extras:

A professora utilizou, em uma aula, um texto não constante do livro didático, com o

seguinte título: Obesidade faz mal ao coração. Não foi apresentada nesta ocasião a fonte de onde

foi retirado este texto e a forma de abordagem desta atividade já foi descrita anteriormente (p.

88).

5. Avaliação:

5.1) Provas:

No período em que foi realizada a observação, foram realizadas três provas, em três aulas

diferentes. Uma delas dizia respeito ao sistema circulatório (estudado antes do período de

observação), outra, ao sistema excretor, denominada pela professora como “prova relâmpago”, e

uma prova de recuperação para alunos que a professora julgou em risco de apresentar notas

vermelhas ao final do bimestre.

Cada prova trazia dez questões e avaliava basicamente a aquisição de informações.

Alguns exemplos de questões destas provas podem confirmar esta característica:

1ª Prova – Sistema Circulatório – 12/08/2004

• Como se chamam os glóbulos vermelhos em nosso organismo?

• O que é linfa?

2ª Prova – Sistema Excretor – 01/09/2004

• Qual a função do rim?

• Qual é o órgão que leva a urina até a bexiga urinária?

• Água, sais minerais e uréia é a constituição de quê?

93

Quanto aos tipos de questões, encontram-se três: pergunta-resposta, associação de colunas

e preenchimento de lacunas. A tabela 5 indica a distribuição destes tipos de questões em cada

prova:

Tabela 5: Ocorrência dos diferentes tipos de questões nas provas

Provas Pergunta-resposta Associação Lacunas

7 1 2

10

Prova 1

Prova 2 (“prova relâmpago”)

Prova 3 (prova de recuperação) 10

A prova de recuperação, realizada no dia 14/09/2004, trouxe cinco questões retiradas da

primeira prova (Sistema Circulatório) e as outras cinco, da segunda (Sistema Excretor). Portanto,

os 15 alunos convocados para essa prova já tinham respondido as mesmas questões

anteriormente. Convém destacar, como se pode perceber na Tabela 5, que somente foram

selecionadas as questões do tipo pergunta-resposta para compor essa avaliação de recuperação.

A repetição das questões na prova de recuperação confirma a relevância atribuída a essas

informações solicitadas anteriormente e funciona como um facilitador na recuperação das notas

dos alunos. Isso pode ser confirmado na seguinte declaração da professora, feita no dia da prova

de recuperação:

O pessoal da recuperação percebeu que eu fiz uma coisa [a prova] bem fácil.

Essa mesma preocupação com a nota dos alunos foi explicitada pela professora em outra

situação de avaliação de aprendizagem, durante a aplicação da primeira prova:

Prova bem fácil para vocês tirarem nota.

Na “prova relâmpago”, do dia 01/09/2004, os alunos ouviram a pergunta, lida por duas

vezes pela professora. Foram orientados a não copiá-la, apenas respondê-la em uma folha de

papel. A professora não repetiu as questões após as duas leituras. Aguardou alguns minutos após

94

cada questão para que os alunos respondessem. Depois de finalizadas, as provas foram trocadas

entre os alunos e as respostas corretas foram escritas pela professora na lousa. Dessa forma, os

alunos corrigiram as provas uns dos outros. Nesse momento, a professora indicou o que podia ou

não ser considerado correto e que, se houvesse alguma dúvida, os alunos deveriam perguntar.

Mas, avisou que só toleraria:

Perguntas inteligentes, né?

Seus comentários sobre as respostas aceitáveis como corretas indicam que apenas uma das

dez questões aceitaria duas respostas, mesmo assim, a diferença entre tais respostas, nesse caso,

apenas se refira aos termos empregados e não a uma outra forma de abordagem da questão. A

correção da prova foi assim apresentada aos alunos:

Respostas

1) Filtrar o sangue (comentou que quem respondeu só filtrar, deveria receber meio

certo).

2) Ureter.

3) Excretas ou excreção.

4) Urina.

5) Hipotálamo.

6) Cistite.

7) Uremia.

8) Hemodiálise.

9) Néfrons (indicou que quem respondeu rins errou porque lá acontecem várias

coisas mas que a pergunta era: aonde vai formar a urina?).

10) Uretra.

Em relação às questões 1, 2, 4, 5, 6, 7, 8, 9 e 10, a professora ressaltou que apenas as

respostas escritas na lousa poderiam ser consideradas corretas.

95

Após essas explicações, os alunos foram orientados a fazer a correção das questões,

escrevendo as respostas corretas ao lado ou embaixo das respostas erradas. A contagem dos

pontos não deveria ser feita por eles e, sim, pela professora.

A forma como foi aplicada a “prova relâmpago” revela que a professora busca estratégias

para avaliar a memorização de informações curtas pelos alunos, bem como para facilitar sua

tarefa de correção, uma vez que a ela cabe apenas a conferência do trabalho realizado pelos

alunos e atribuição de uma nota final. Além das questões formuladas pela professora priorizarem

a identificação rápida de informações memorizadas, a impossibilidade de repetir a leitura reforça

para o aluno o caráter não reflexivo das questões.

5.2) Pasta científica:

Ao final de cada bimestre, a professora avalia um trabalho realizado individualmente

pelos alunos, denominado Pasta Científica.

Nesta pasta, os alunos devem apresentar um certo número de artigos de jornais,

relacionados a questões científicas, que devem ter sido lidos e resumidos. Os artigos são

recortados e colados em folhas de sulfite onde deve constar a data da publicação e a fonte de

onde foi retirado cada um deles.

Para os meses de agosto e setembro (3º bimestre) a professora determinou um número

total de 16 artigos (oito para cada mês).

Além da apresentação da pasta, os alunos deveriam entregar os resumos dos artigos para a

avaliação da professora.

No dia 14/09/2004, enquanto parte dos alunos fazia a prova de recuperação, a professora

verificou as pastas e recolheu os resumos para correção. A duração total da conferência das

pastas, com atribuição das respectivas notas, foi de 15 minutos.

Durante essa conferência, a professora comentou sobre a diferença de qualidade entre as

pastas de diferentes alunos. Ao conferir o trabalho de um aluno, após ter criticado a pasta do

anterior, um aluno que costuma conversar mais do que a professora parece considerar aceitável

em suas aulas, comenta, olhando para esse último:

Tem pasta que dá gosto de olhar. O aluno entende o que a gente fala.

96

Diante desse comentário, o aluno cuja pasta foi criticada, pergunta duas vezes, com ar de ironia:

Professora, a minha pasta dá gosto de olhar?

A professora não responde sua pergunta.

Nessa mesma aula, além da prova de recuperação e da verificação das pastas científicas, a

professora também solicitou os cadernos dos alunos para avaliação. No dia 15/09/2004, a

professora já havia atribuído as notas para a pasta e corrigido os resumos dos artigos recolhidos

no dia anterior. Nesse mesmo dia, marcou a próxima data de entrega da Pasta Científica, para o 4º

bimestre, com o número de artigos a serem lidos a cada mês:

Dia 23/11 3ª feira

Entrega da Pasta Científica

10 artigos do mês de outubro

10 artigos do mês de novembro

Quando marcou a nova apresentação da pasta, comentou que alguns alunos não a

apresentaram em nenhum bimestre. Avisou, então, que está cogitando a possibilidade de dar

advertências ou suspensões a esses alunos. Nesse momento, chamou dois alunos e pediu que

anotassem o que estava na lousa, para que fizessem pelo menos uma vez esse trabalho para

aprender a ler jornal. Esta observação da professora indica a relevância que ela atribui ao

desenvolvimento da habilidade de leitura, bem como ao contato dos alunos com outras fontes de

informações científicas além do livro didático.

Destaca-se que os temas dos artigos solicitados não precisam se relacionar com os

estudados nas aulas de cada bimestre. Assim, esse trabalho representa um tipo de abordagem do

conhecimento científico aberta, disposta a considerar as outras dimensões em que esse

conhecimento é comunicado, além da escolar.

Apesar de representar um potencial inclusive para incrementar a abordagem das relações

entre Ciência, Tecnologia e Sociedade, essa possibilidade se esgota diante da urgência com que é

tratado o resultado final do trabalho. Os limites escolares relacionados à administração do tempo

97

e do espaço reduzem as oportunidades de reflexão sobre estas relações. O retorno que os alunos

recebem, na forma de uma nota, se refere a questões relativas à qualidade estética e ao

cumprimento das diretrizes relativas ao número de artigos e resumos. Não é feita qualquer

discussão acerca dos artigos selecionados pelos alunos. É na situação de exploração do potencial

reflexivo da atividade que os limites impostos pela forma escolar, especialmente os que se

referem à administração do tempo, geram um empobrecimento da relação que se estabelece entre

os alunos e o conhecimento. Com isso, desperdiça-se a possibilidade de:

a) Conhecer mais sobre o que desperta curiosidade ou dúvidas nos alunos em relação à

produção do conhecimento científico – pela análise dos temas dos artigos selecionados

por eles;

b) Detectar problemas relacionados à habilidade de leitura – a partir do que revelam os

resumos sobre a compreensão dos alunos a partir dos textos lidos;

c) Promover discussões acerca dos interesses que impulsionam os avanços científicos; etc.

5.3) Participação dos alunos nas aulas:

A participação dos alunos nas aulas é mensurada através da quantidade de pontos

positivos que cada um acumulou ao longo do bimestre. Esses pontos positivos são conferidos

pela professora no final das aulas em que solicita alguma tarefa. Foram atribuídos em cinco das

aulas observadas.

Nessas situações, a professora estabeleceu, logo no início da aula, até onde a tarefa

deveria ser feita para que o aluno “ganhasse” o ponto positivo:

Até aqui, ganha positivo.

Tem mais uma partezinha só, para ganhar positivo.

Esta aula vai estar valendo positivo.

Os desenhos não precisam ser pintados para ganhar positivo, mas, quando eu for ver os

cadernos, sim.

98

Também deixa claro em algumas situações, que, uma vez “ganho”, o positivo pode ser

“perdido”, dependendo do comportamento do aluno ao longo da aula:

Quem terminou, silêncio, viu, senão vou tirar o positivo. E você [para um aluno que estava

conversando] tem dois, viu, se abrir a boca vai perder os dois.

O que se pode perceber em relação à estratégia de atribuir pontos positivos aos alunos é

que se trata de um mecanismo de controle da classe, uma forma de garantir que o que foi

solicitado será cumprido e de manter um nível de silêncio considerado adequado pela professora.

Essa percepção foi confirmada em conversa com a pesquisadora, em que a professora indicou

acreditar que o fato de avaliar os alunos todas as aulas (com a atribuição de positivos) permite a

manutenção do silêncio e garante o cumprimento de tudo o que solicitou.

Em relação ao conhecimento escolar de ciências produzido nas aulas da Professora 2

pode-se caracterizá-lo por demandar maior participação dos alunos no movimento de

aproximação aos conhecimentos científicos: os alunos fazem contato com o conteúdo, sob

orientação da professora, em diferentes fontes, antes que ela faça suas explicações. Ainda que a

professora e o livro didático continuem sendo centrais no processo de ensino, não se passa uma

imagem de que tudo que se tem como conhecimento relevante se limita a estas duas fontes, nem

de que é possível aprender sem que se estabeleçam as condições favoráveis de organização e

empenho dos alunos. A manutenção da disciplina, neste caso, serve para produzir tais condições

favoráveis. Transmite-se a idéia de que aprender é mais do que simplesmente manter-se ocupado,

independentemente da atividade desenvolvida, implica uma participação ativa dos alunos. Este

conhecimento escolar mostra-se aberto para as contribuições do conhecimento cotidiano e para a

produção científica atual: mesmo que se possa vislumbrar na ação educativa desta professora

possibilidades de melhor exploração das atividades desenvolvidas, não se pode negar que elas

representam trilhas que podem gerar reflexões sobre a possibilidade de se garantir melhor

qualidade ao ensino de ciências mesmo dentro dos limites da forma escolar. Por outro lado, fica

patente que tais limites reduzem significativamente o potencial inovador de suas ações

educativas.

99

Como características que se mantêm em relação à ação educativa da Professora 1 – que

representa, pelo que trazem os estudos sobre o ensino de ciências, o modelo predominante de

ensino dessa disciplina –, pode-se apontar para a não abordagem dos aspectos históricos da

produção do conhecimento científico, para os diálogos breves entre professora e alunos – embora

no caso da Professora 2, o controle da indisciplina se dê mais pela antecipação dos procedimentos

e dos critérios de avaliação do que por conversas com a classe –, pelo tratamento superficial da

produção escrita dos alunos e pela ênfase na memorização como recurso mais solicitado em suas

provas.

Professora 1 e Professora 2:

1. Diferentes ações educativas, diferentes formas de aproximação do conhecimento:

A descrição das atividades desenvolvidas pelas professoras aponta para duas maneiras de

se estabelecer a aproximação dos alunos em relação aos conhecimentos da área de ciências. Nos

dois tipos de ações educativas observadas, pôde-se encontrar aspectos semelhantes e aspectos

díspares, sendo estes últimos os responsáveis pela diferença citada anteriormente.

O trabalho das professoras se assemelha em alguns aspectos, como na preocupação com a

manutenção do controle da disciplina e na forma de verificação da aprendizagem dos alunos nas

provas. Ainda assim, pode-se destacar peculiaridades nos modos adotados para atingir os

objetivos relacionados a esses dois aspectos.

Com relação aos procedimentos relativos ao controle, a Professora 1 procura lidar com a

geração de um sentimento de culpa nos alunos: pelo não aproveitamento das possibilidades

oferecidas pela escola, por não apresentarem boas notas, por desagradarem aos professores. Suas

conversas com a classe preenchem boa parte do tempo total de aula e, quando surtem algum

efeito no controle da indisciplina, a situação que as gerou se restabelece após alguns minutos.

Mesmo suas explicações são freqüentemente interrompidas pelo barulho da classe, sendo que,

nessas ocasiões, a professora pára de falar, espera inutilmente pelo silêncio e, na maioria das

vezes, prossegue com sua explicação ainda que o ambiente continue desfavorável à concentração

dos alunos.

100

No caso da Professora 2, o controle desejado é alcançado através do estabelecimento

prévio de todas as etapas de desenvolvimento das atividades seguidas de descrições do que ela

espera em termos de resultados, dos critérios que utilizará para sua avaliação e do valor de cada

uma delas na composição da nota dos alunos. Suas conversas com a classe em relação ao

estabelecimento do controle da disciplina são breves, ocupando bem menos tempo da aula do que

as orientações para a realização das atividades que propõe. Sua tolerância com situações não

planejadas, como brincadeiras ou conversas não relacionadas aos assuntos das aulas, é bem

menor do que a da Professora 1. Nessas ocasiões ela rapidamente restabelece o silêncio, na maior

parte das vezes, gritando. A professora não dá andamento a uma explicação se qualquer aluno

estiver conversando, ainda que em tom de voz baixo, o que indica que, para ela, a manutenção de

um ambiente favorável é imprescindível para estabelecer contato com o conhecimento.

Outro aspecto coincidente nas aulas das professoras é o tipo de prova que preparam para

verificar a aprendizagem de seus alunos. Nos dois casos a ênfase recai sobre questões do tipo

pergunta-resposta, mobilizadoras da capacidade de memorização de informações. Também as

questões selecionadas nos livros didáticos para serem respondidas pelos alunos reforçam essa

habilidade.

Ao optarem por esse tipo de questão em suas provas, as professoras indicam aos alunos a

forma privilegiada de se aproximar do conhecimento na escola. Nesta perspectiva, estudar é uma

atividade que está definitivamente associada à capacidade de registrar na memória as

informações indicadas como relevantes pela professora, assim como, ter sucesso na escola

relaciona-se à capacidade de “devolver” estas informações, da maneira mais fiel possível, nas

situações de avaliação.

Entretanto, vale destacar que no trabalho da Professora 2 encontram-se movimentos no

sentido de abrir a relação do conteúdo escolar para a interação com informações oriundas de

outras fontes. Ao promover a leitura de artigos relacionados às ciências, a integração com outras

disciplinas escolares, a participação dos alunos (como no caso do exame de sangue) e ao buscar

utilizar variados recursos didáticos para abordar os conteúdos, a professora aponta para uma

relação com o conhecimento que não se fecha nos limites estreitos da relação livro didático-

professor. Ainda que nas situações de avaliação da aprendizagem a Professora 2 pareça valorizar

apenas a capacidade de memorização, na abordagem dos conteúdos ela segue um percurso que

101

suscita outras habilidades que apontam para a valorização do desenvolvimento de maior

autonomia dos alunos no processo de apropriação do conhecimento.

Um aspecto bastante diferenciado é a centralidade conferida aos momentos de explicação

das professoras ao abordarem os conteúdos de suas aulas. Para a Professora 1, essa centralidade

se manifesta até mesmo na divisão temporal de suas aulas. Os minutos iniciais concentram as

estratégias que preparam a etapa intermediária da aula, onde ocorrem as explicações da

professora. No geral, os minutos finais destinam-se à realização de tarefas de fixação do que foi

explicado.

Durante suas explicações, a Professora 1 se vale totalmente do que está registrado no livro

didático para convencer seus alunos da legitimidade das informações que traz. Todos os

exemplos que utiliza constam do livro, bem como todos os textos e desenhos transcritos para a

lousa e copiados pelos alunos. Suas explicações ou são iniciadas com a leitura do livro didático

ou finalizadas com ela (ou, até mesmo, iniciadas e finalizadas dessa forma). Todos os

questionamentos aos alunos giram em torno dos exemplos trazidos pelo livro e qualquer

interferência destes será bem vinda se for para confirmar o que nele está registrado ou o que diz a

professora. Opiniões contrárias ao que estabelece a professora ou são rebatidas pela autoridade

conferida ao que está escrito no livro didático ou são ignoradas.

Essa forma de estruturar suas explicações limita a relação com o conhecimento ao que

estabelece o livro didático. Esse recurso é central nas aulas dessa professora, representando a

razão e a forma de conhecer. Nesta perspectiva, conhecer serve ao propósito de cumprir o

conteúdo do livro e a forma de se aproximar desse conhecimento é através da memorização do

que está estabelecido em suas páginas. Usado para convencer os alunos da superioridade do saber

que porta em relação ao que eles adquirem por outras vias, o livro didático, no uso que faz a

Professora 1, serve para transmitir uma noção de Ciência como resultado de uma sucessão de

êxitos atingidos por mentes brilhantes (não identificadas), às quais não cabe qualquer

questionamento.

Durante a observação das 18 aulas da Professora 2, apenas em uma se acompanhou uma

explicação. Este dado isolado já revela que a abordagem de conteúdos não está centrada em suas

explicações, embora se possa afirmar que o tratamento do conteúdo representa a atividade central

de suas aulas. A importância conferida às explicações parece ser a de fechar a aproximação dos

conhecimentos que se iniciou em aulas anteriores. Portanto, elas são essenciais, porém, antes de

102

se chegar a elas é realizada uma série de atividades que permitem que o aluno se aproxime do

conhecimento de forma mais autônoma. Vídeos, leituras, tarefas individuais e em grupos,

elaboração de resumos vão paulatinamente propiciando oportunidades de desenvolvimento pelos

alunos da capacidade de observação, de leitura, de escrita, bem como mobilizando informações já

apreendidas a respeito do assunto estudado. Assim, quando é feita a explicação, a professora pode

se valer do entendimento que já possuem os alunos acerca do conteúdo abordado.

Convém destacar que, embora essas atividades prévias às explicações representem uma

possibilidade de desenvolvimento de maior autonomia dos alunos ao se relacionarem com o

conhecimento, isso não significa que eles são totalmente abandonados na relação inicial com o

conhecimento que será abordado posteriormente nas explicações da professora. A professora

estabelece com muito detalhamento o que espera que os alunos realizem em cada atividade. Seus

roteiros para a produção de resumos do livro didático no caderno são um bom exemplo disso: os

alunos são orientados sobre quais as informações relevantes do capítulo lido e sobre como elas

devem ser registradas.

O tipo de uso do livro didático, portanto, difere bastante do que faz a Professora 1. Para a

Professora 2, ele é mais uma fonte de informações sobre o que será explicado. Porém, como para

a Professora 1, ele parece central quando se trata de escolher as questões que comporão as

provas, o que confere um caráter de legitimidade ao conhecimento que porta.

O que essa breve conclusão sobre as atividades desenvolvidas pelas professoras pretende

ressaltar é a forte influência dos aspectos relativos à forma escolar sobre o conhecimento

delineado nas aulas observadas. Alguns aspectos do trabalho da Professora 2 revelam brechas

para um tratamento mais aberto com o conhecimento. Entretanto, percebe-se que, especialmente

nas situações de avaliação da aprendizagem dos alunos, questões como a manutenção do

controle, a compartimentalização dos conhecimentos nas disciplinas escolares, o estabelecimento

de uma relação instrumental com o conhecimento, os índices de sucesso e fracasso escolar (lidos

nas notas dos alunos e na sua passagem para outras séries) e a limitação do tempo destinado ao

trabalho com os conteúdos representam limites bem definidos para as escolhas possíveis aos

professores. As escolhas da Professora 2 permitem constatar que na escola pública brasileira

existem professores que buscam diferentes estratégias para lidar com esses limites, modos de

abordagem do conhecimento que indicam novas possibilidades além das que revelam as

pesquisas sobre o ensino de ciências. A partir dessa constatação, faz-se necessário refletir sobre a

103

forma escolar que determina tais limites e sobre o que faz com que os professores desenvolvam

reações de adequação acrítica ou de busca de vias alternativas de tratamento do conhecimento em

suas aulas. A respeito desta última questão, com o objetivo de explicitar algumas das

características pessoais das professoras acompanhadas, traz-se agora alguns dados retirados das

entrevistas e questionários utilizados nesta pesquisa. Pôde-se identificar, a partir da aplicação

destes instrumentos de pesquisa, as opiniões das professoras em relação à relevância da disciplina

que lecionam na formação de seus alunos e os fatores que identificam como facilitadores ou

restritivos para o desenvolvimento de suas ações educativas.

2. Informações sobre as professoras acompanhadas:

Professora 1:

Concluiu a licenciatura plena em Ciências Biológicas, na Pontifícia Universidade Católica

de Campinas, em 1985. Em 2001, concluiu o curso de Pedagogia – formação para diretor de

escola – na mesma universidade.

Há 13 anos leciona na rede pública e há quatro, passou a atuar também na rede particular.

Afirma que no início de sua carreira só trabalhava com quintas séries. Porém, lecionou para as

últimas turmas desta série há cinco anos.

Sua carga horária neste ano inclui oito horas/aula nas quintas séries (na escola onde se deu

esta pesquisa), 16 horas/aula no Ensino Médio, em uma escola técnica estadual, e 20 horas/aula

no Ensino Técnico (Enfermagem e Meio Ambiente), em escola particular.

Na escola em que se realizou esta pesquisa, leciona há cinco anos, com vínculo do tipo

Admitido em Caráter Temporário (ACT). Em 2003, lecionou apenas no Ensino Médio, no

período noturno. Em 2004, reassumiu duas turmas de quinta série no período vespertino.

Acredita que a disciplina ciências é importante por interagir com todas as outras, sem

estabelecer, de forma muito definida, uma separação entre conteúdos, trazendo em suas

abordagens aspectos da História, da Geografia, etc.

Considera que os conteúdos abordados na quinta série são básicos, girando em torno dos

temas ar, água e solo. Afirma que o tema água, por exemplo, é um tema universal nos dias de

hoje; ouve-se falar muito dele no cotidiano. Os conteúdos desenvolvidos na disciplina são

104

importantes por permitir que os alunos entendam o que está acontecendo, por que este recurso

está acabando, o porquê do racionamento, o significado da água e sua importância.

Ao tratar de sua realidade de sala de aula, a professora se ressente da dificuldade de usar

os recursos que a escola tem, especialmente o laboratório. Indica que seu trabalho seria mais rico

se pudesse utilizá-lo com mais freqüência. Porém, as turmas muito numerosas e a ausência de um

monitor no laboratório, o que permitiria dividir a turma e trabalhar apenas com a metade de cada

vez, são apontadas como limitantes desta prática.

Atribui grande importância à experimentação (ao que define como “trabalho com o

concreto”), tanto no laboratório quanto em casa, com as atividades que sugere como tarefa.

Afirma que os alunos que fizeram, por exemplo, uma experiência de germinação de sementes,

tiveram um retorno positivo: observaram, passaram para o papel o que vivenciaram. Alguns até

foram além, fazendo outras experiências. Em relação a este tipo de atividade, vincula o interesse

do aluno em fazê-las em casa à importância que os pais atribuem a elas, inclusive se envolvendo

diretamente na sua realização.

Quando não há possibilidade de “trabalhar com o concreto”, afirma que opta pelo diálogo

com os alunos. Porém, indica que, no geral, encontra dificuldade em manter a ordem neste tipo

de aula (“vira bagunça”).

Considera que a sala de aula é pouco para os alunos, que giz e lousa é pouco. Acredita que

eles recebem muita informação (via internet, principalmente), e que, portanto, seria necessário

encontrar uma forma de chamar sua atenção. Afirma que quando começou a lecionar, a escola era

uma fonte de novidades. Quando levava os alunos ao laboratório, conseguia prender a sua

atenção, porque eles valorizavam a escola.

Com a progressão continuada, segundo a professora, a escola virou uma área de lazer para

os alunos, um lugar para encontrar os outros, brincar e conversar. Isto gerou indisciplina, o que

dificulta seu trabalho. Considera que, mesmo para os pais, em linhas gerais, a escola teria perdido

seu valor. Aponta que os pais devem valorizar a escola e cobrar uma postura adequada de seus

filhos em relação a ela.

Acredita que a dificuldade inicial em seu trabalho é a de lidar com salas muito numerosas.

Tais salas tornam-se difíceis de controlar e praticamente anula-se a possibilidade de uso do

laboratório ou dos computadores. Além disso, o fato de alguns alunos não trazerem o que chama

de pré-requisitos, como as habilidades de leitura e escrita, dificulta o ensino e a aprendizagem.

105

Com relação às notas de seus alunos, aponta que se trata de um grupo bem heterogêneo.

Alguns apresentam muita facilidade; a grande maioria fica na média, assimilando o que é

trabalhado na sala de aula; a outra parte tem o que chama de dificuldade de entendimento – não

possuem os pré-requisitos básicos de leitura e escrita. Em média, por bimestre, de dez a doze

alunos ficam com notas vermelhas (de um total de 38 alunos).

Ao se referir às dificuldades impostas pela escola à realização de seu trabalho, a

professora manifestou bastante ansiedade. Desde o início da entrevista não quis que suas

respostas fossem gravadas e, ao mencionar as questões que seguem, solicitou que não fossem

registradas pela pesquisadora. Quando foi avisada que tais informações, ao aparecerem na

pesquisa, não seriam vinculadas ao seu nome, nem tampouco ao nome da escola, mostrou-se

menos tensa e permitiu o registro.

Segundo a professora, a escola em que se desenvolveu esta pesquisa é muito bem

conceituada, o que confere um certo status a quem leciona ou a quem estuda nela. Os pais

consideram um privilégio conseguir uma vaga nesta escola. Porém, a professora aponta que a

escola não enfrenta seus problemas, cria uma espécie de “casca frágil” que os oculta e faz cair o

nível do ensino oferecido a seus alunos.

Comenta que no ano de 2003 a escola tinha muitos alunos em recuperação, em todas as

disciplinas. Para ela, isto ou se devia a um trabalho inadequado dos professores e da escola ou a

problemas apresentados pelos alunos. Porém, indica que houve grande pressão da escola para que

não se repetissem estes resultados em 2004. O que relata, então, é que houve uma inversão desta

situação, com elevados números de notas azuis em todas as disciplinas.

Ela não verifica esta inversão em relação às notas de seus alunos. Apesar de considerar

que suas provas são muito fáceis, indica que os resultados são ruins. Questiona como alunos que

têm alguma dificuldade com ela, não a apresentam nas outras disciplinas.

Manifesta angústia por saber que seu trabalho tem falhas, que poderia ser melhor como

professora, mas crê que esta forma da escola de não enfrentar suas deficiências contribui para que

sua prática seja menos adequada do que poderia ser de fato.

Exemplifica a falta de apoio da escola com a descrição do processo de desenvolvimento

de um projeto que foi combinado no início do ano (tema: Água). Foi combinado que todos os

professores iriam abordar o mesmo tema. Nesta ocasião, ela procurou a diretora e disse que

106

trataria deste tema desde o começo do ano. No entanto, não identificou nenhum esforço da escola

para que as áreas trabalhassem de forma integrada.

Quando se refere às famílias de seus alunos, volta a manifestar desapontamento em

relação àquelas que não permitem ou não estimulam os alunos a fazerem os trabalhos de casa.

Indica que, devido a esta conduta, recebeu poucos retornos dos trabalhos solicitados. Afirma que,

de um modo geral, percebe pouco empenho e participação das famílias.

As declarações da professora indicam uma consciência das limitações de sua prática. No

geral, ela relaciona estes limites a um processo de desvalorização da escola, por parte dos alunos

e dos pais, relacionado a questões como a circulação rápida de informações no mundo atual e a

carência de recursos didáticos mais atraentes para lidar com o conhecimento. Apesar de indicar

que a escola já não é fonte de novidades, a professora não parece questionar os conteúdos que

compõem o currículo de ciências.

A tendência da escola de não admitir suas deficiências e buscar formas de mascará-las é

considerada pela professora como um fator que limita sua prática.

É possível reconhecer que a Professora 1 desenvolve sua prática de forma bastante

isolada. Sem reconhecer apoio e valorização de seu trabalho por parte da escola, da família e dos

alunos, procura cumprir sua tarefa de transmissão de conhecimentos de uma forma que garanta o

que ela acredita ser a expectativa da escola sobre seu desempenho profissional: a manutenção da

disciplina e as boas notas dos alunos.

Professora 2:

Graduou-se em Ciências Físicas e Biológicas pela Pontifícia Universidade Católica de

Campinas, tendo completado a licenciatura e o bacharelado em Zoologia, no ano de 1994.

Leciona há dez anos, somente na rede pública de ensino. Nesta escola, leciona há seis anos. Sua

única experiência na rede particular durou cerca de três meses, na condição de professora

substituta.

Indica que já lecionou para 7a série do Ensino Fundamental por cinco ou seis anos. Neste

ano, cumpre uma carga horária de 32 horas/aula semanais, distribuídas pelos períodos da manhã,

tarde e noite, somente na escola em que se desenvolveu esta pesquisa, sendo seu vínculo

empregatício do tipo Ocupante de Função Atividade (OFA), cargo também não efetivo, como o

107

da Professora 1. Ministra aulas de ciências para 6a, 7a e 8a séries do Ensino Fundamental e de

Biologia para o 2o e 3o anos do Ensino Médio regular e 2o ano do Ensino Médio supletivo.

Considera que a disciplina ciências é importante na formação de seus alunos porque

aborda questões do cotidiano, permitindo que eles entendam fenômenos que acontecem ao seu

redor. Ao se referir aos conceitos cuja abordagem julga fundamental, insiste na importância de se

formar uma base conceitual sólida, no Ensino Fundamental, para que os temas científicos sejam

aprofundados no Ensino Médio. Assim, os alunos devem ter contato com conhecimentos básicos

relacionados à Física, à Química e à Biologia para prosseguir seus estudos no Ensino Médio.

Indica que o tratamento da questão da leitura com entendimento é fundamental para todas

as disciplinas escolares. Para isto, afirma que proporciona aos seus alunos a oportunidade de

estabelecer contato muitos textos, para que desenvolvam a habilidade de leitura e escrita sobre o

que entendem dos textos lidos.

Entre as condições que dificultam o desenvolvimento de sua ação educativa, identifica o

que chama de “falta de bagagem” (durante a entrevista, indica, em tom de ironia, que não se pode

falar mais em pré-requisitos). Aponta que os alunos chegam à 5a série mal sabendo ler e escrever.

Esta lacuna impede que os alunos entendam o que fala o professor, o que ele solicita. Assim, sem

possibilidade de entender o que se passa na sala de aula, os alunos se desinteressam do contato

com o conhecimento, o que acaba por gerar a indisciplina. Indica que os resultados de seus

alunos em termos de aprendizagem não respondem às suas expectativas pois, mesmo tendo

alunos ótimos em classe, tem também alunos muito fracos, e, em função destes, é forçada a

“baixar” o nível, “senão eles não entendem nada”. A este respeito, indica que sua expectativa é de

que, nos próximos anos, a situação piore ainda mais pois acredita que o poder público não se

importa de fato com a educação. Sua preocupação está centrada na economia de recursos a serem

gastos com os alunos e não com a qualidade de sua formação. O que resulta deste processo, na

sua opinião, é que os alunos concluem o Ensino Médio sem dominar as habilidades básicas de

leitura e escrita. Ao manifestar esta posição, a professora explicita seu ressentimento em relação à

prática corrente de culpar unicamente o professor pelo fracasso do processo de escolarização.

Em relação ao impacto da organização da escola sobre sua ação, a professora indica que

reconhece o esforço da direção em ajudar no que é necessário, embora, às vezes, não haja

condições para que esta ajuda se estabeleça de fato. Acredita que quando a escola pressiona os

professores no sentido de garantir a aprovação dos alunos, esta pressão reflete orientações “que

108

vêm lá de cima”, ou seja, são determinações oficiais que a escola tem que cumprir. Indica que a

direção da escola se preocupa em integrar o trabalho das diferentes disciplinas mas identifica na

própria ação de alguns professores o esforço para “dar um jeito”, mesmo com as dificuldades

impostas pelo Estado, como as mudanças anuais de professores não efetivos, que geram rupturas

nos grupos que vêm desenvolvendo trabalhos integrados, e a necessidade dos professores

assumirem uma carga horária massacrante para garantir sua sobrevivência, comprometendo o

andamento de projetos de integração entre as disciplinas.

Em relação à influência das famílias sobre sua ação, indica a dificuldade imposta por

algumas à realização de trabalhos fora da sala de aula ou mesmo à aquisição de materiais para as

atividades educativas. Aponta que também existem pais que se oferecem para ajudar, mas

considera que, de maneira geral, as famílias estão se distanciando progressivamente da escola e

atribuindo a esta instituição responsabilidades que antes cabiam às próprias famílias. Acredita

que isto dificulta o trabalho do professor porque sobrecarrega este agente com funções ligadas à

formação geral dos alunos, a sua educação num sentido mais global, quando na verdade ele

deveria lidar com a transmissão de conhecimentos, “ensinar o que é importante para a vida”.

A Professora 2 reconhece em sua própria ação e na de alguns colegas o esforço para

garantir a qualidade da aproximação dos alunos em relação ao conhecimento, como indica na

seguinte declaração:

Têm estes problemas aí que são meio complicados, mas, quando a gente tenta, a gente tenta

fazer o máximo para ver as coisas andarem direito, mas não é fácil, é bem difícil, às vezes.

Sua prática não se desenvolve de forma isolada, ela busca vincular seu trabalho ao de

outros professores, bem como solicita apoio da escola, o que, aliás, considera receber. Identifica

fatores que limitam sua ação, como os ligados a interesses políticos, mas aponta para a

importância do cumprimento da função escolar de proporcionar aos alunos as condições para que

entendam os fenômenos que acontecem ao seu redor e para que prossigam seus estudos,

aprofundando progressivamente a sua bagagem conceitual.

Assim, o que se pode verificar a partir das informações trazidas a respeito das professoras,

é que as diferenças entre suas características pessoais e suas trajetórias profissionais não são tão

109

marcantes, mas suas reações diferem frente ao impacto das determinações escolares sobre suas

práticas. A caracterização de tais práticas e os dados retirados das entrevistas e questionários

permitem refletir sobre a questão central desta investigação: o que é o conhecimento escolar

presente no ensino de ciências? Para caracterizá-lo, tomando como referência os dados

apresentados e as contribuições teóricas de estudiosos ligados à educação, no capítulo seguinte

procurar-se-á discutir as relações que este conhecimento escolar guarda com os saberes de

referência, as aberturas permitidas ao conhecimento cotidiano, o impacto das determinações

referentes à organização escolar sobre ele, os recursos cognitivos mais explorados na intenção de

garantir a aprendizagem e o percurso realizado em sala de aula para aproximar os alunos dos

conceitos científicos.

110

CAPÍTULO III

REFLEXÕES SOBRE OS DADOS APRESENTADOS

111

Na descrição apresentada no capítulo anterior, delineou-se o perfil da ação educativa

realizada pelas duas professoras. A partir do que foi exposto nesta descrição, procurar-se-á trazer

elementos teóricos que permitam uma reflexão acerca das semelhanças e das peculiaridades que

marcam tais ações.

Para discutir inicialmente a natureza e a semelhança das ações docentes na prática

educativa, far-se-á a distinção entre ações e prática educativa, buscando esclarecer a

especificidade da prática pedagógica, ou seja, a peculiar organização do processo de ensinar e

aprender na escola. É pertinente a contribuição de Gimeno Sacristán (1999), para quem a ação se

refere ao sujeito, enquanto a prática representa a “cultura acumulada sobre as ações das quais ela

se nutre” (p. 73). Assim, a prática é uma construção coletiva da experiência histórica das ações:

“a ação pertence aos agentes, a prática pertence ao âmbito do social, é cultura objetivada que,

após ter sido acumulada, aparece como algo dado aos sujeitos, como um legado imposto aos

mesmos” (idem, p. 74).

A prática escolar comporta uma combinação de informações educativas – codificadas pela

linguagem ou estabelecidas em rotinas e hábitos – que configura uma maneira de pensar, agir e

dar tradução aos objetivos atribuídos à educação. Trata-se de uma configuração particular de toda

a informação virtualmente disponível, em que alguns traços são selecionados e outros, excluídos.

Isso significa que a ação dos agentes encontra-se circunscrita por uma condição prévia, a cultura

da prática acumulada, embora também possa gerar transformações nesta prática estabelecida.

Gimeno Sacristán (1999) indica que “a prática é fonte de ação, e os caminhos gerados por esta,

dentro daquela, podem enriquecê-la e redirecioná-la, condicionando o seu desenvolvimento

histórico” (p. 74). Portanto, as ações educativas representam possibilidades de transformação da

prática estabelecida, ainda que esta imponha limites claros àquelas. Daí a importância de se

descrever as ações docentes que se delineiam no interior da prática educativa, no sentido de

reconhecer o que se deseja conservar ou modificar no processo educativo para garantir uma

educação de qualidade, que cumpra sua função cultural e contribua para o estabelecimento de

condições sociais mais justas.

A prática educativa pode ser observada no funcionamento real da escola ou, também,

pode ser disponibilizada como conhecimento elaborado, ou seja, cultura objetivada sobre a

educação. Tal conhecimento pode revelar aspectos do funcionamento das instituições e

112

apresentar o que compõe a tradição educativa, ou seja, “o conteúdo e o método da educação”

(Gimeno Sacristán, 1999, p. 76).

A experiência ou cultura subjetiva dos professores se forma a partir de sua biografia

pessoal e da cultura compartilhada sobre educação, revelando que há espaço para a criação

individual, embora os limites do que é possível, ou não, já estejam definidos de antemão: “as

ações dos professores pertencem a eles mesmos, embora, por nutrirem-se da experiência coletiva

depurada e por reagirem a situações cristalizadas no percurso histórico, devam situar-se nessa

experiência coletiva, que podem não aceitar” (idem, p. 73). Assim, a descrição trazida no capítulo

anterior se refere à ação educativa desenvolvida por duas professoras que se deslocam na área

limitada pela prática educativa.

O caráter compartilhado das ações dos sujeitos, que gera a realidade social, torna mais

estável a ação de cada um (idem, p. 72). Ou seja, o fato de todos fazerem determinadas coisas da

mesma forma, acaba gerando segurança para os agentes que desenvolvem suas ações. A

mediação entre o sujeito, que age dentro dos limites impostos pela prática educativa, e a realidade

social que se estabiliza é proporcionada pelo habitus – esquemas sociais compartilhados que

orientam as ações dos indivíduos no grupo. Tais esquemas orientadores, segundo Gimeno

Sacristán (1999), “reforçam e amparam a solidez dos esquemas da ação dos professores, dando

estabilidade a práticas coerentes e constantes no tempo, dotando de congruência as ações

individuais entre si, inclusive diferenciando estilos de ações e práticas” (p. 83).

Nessa perspectiva, conclui-se que as professoras, embora partam de um mesmo marco da

cultura da prática acumulada, configuram o que poderia ser interpretado como um estilo

individual que, segundo Bourdieu, representa “o desvio que é possível dentro do exercício do

habitus” (apud Gimeno Sacristán, 1999, p. 84). Assim, quando se aponta para a semelhança entre

os tipos de exigência cognitiva das provas preparadas pelas professoras ou para a excessiva

preocupação de ambas com a realização das tarefas, mais do que com a qualidade das mesmas,

pode-se estar explicitando o que se apresenta para as professoras como limites intransponíveis

impostos por esquemas de ação compartilhados e sedimentados, ou seja, pela cultura da prática

acumulada que se configura nos limites do tempo de aula, dos procedimentos docentes e dos

materiais didáticos utilizados. Estes esquemas funcionariam como marcos a garantir estabilidade

às suas ações. São marcos inscritos nos limites da forma escolar, como definem Vincent, Lahire e

Thin (2001), que utilizam essa expressão para explicar uma “unidade que não é da intenção

113

consciente” (p. 9). Esta unidade corresponde a um princípio de inteligibilidade que permite que

se reconheça uma escola como tal. Segundo os autores, o que garante essa unidade é o caráter

impessoal das regras que pautam as relações no interior da escola (Vincent, Lahire & Thin, 2001,

p. 10).

A unidade que reconhecemos como a forma escolar é o resultado de um processo

histórico que se inicia nos séculos XVI e XVII e sua emergência deve ser considerada em relação

à outras transformações da sociedade (idem, p. 12).

Os autores descrevem o processo histórico de emergência da forma escolar, que

caracterizam pelos seguintes traços: a criação de um universo separado para a infância, a

importância das regras, a organização racional do tempo e do espaço, a necessidade do domínio

da língua escrita e a ênfase na multiplicação e repetição de exercícios. Estas características são

facilmente identificadas na prática educativa em que se inserem as ações docentes observadas.

Ambas as professoras organizam o tempo e o espaço de suas aulas de forma a poder cumprir os

conteúdos determinados pelo livro didático, valorizam a expressão escrita de seus alunos nas

provas – uma vez que este é o instrumento por excelência para estimar o quanto eles aprenderam;

embora a responsabilidade pelo desenvolvimento desta habilidade, especialmente no caso da

Professora 1, recaia praticamente apenas sobre os alunos, preocupam-se em manter a ordem, de

acordo com as regras escolares e enfatizam a repetição de exercícios que favoreçam a

memorização de informações. A forma escolar em que se inserem as ações docentes, portanto,

explica boa parte das semelhanças entre elas.

Na intenção de trazer mais elementos à discussão acerca da cultura da prática, ou das

práticas como trilhas e condição prévia à ação dos professores, destaca-se ainda a contribuição de

Varela (2000), que revela aspectos históricos que podem contribuir para a reflexão sobre os

traços identificados nas ações acompanhadas nesta investigação. A autora aborda o que denomina

“categorias do pensamento” – “representações coletivas relacionadas de alguma forma à

organização social e, mais concretamente, com as formas que o funcionamento do poder e do

saber adotam em cada sociedade”. Estas categorias representam, portanto, o resultado da

acumulação de contribuições de numerosas gerações que permitem que os homens se

reconheçam e se comuniquem, produzindo, também, um certo conformismo necessário à

adequação à vida em sociedade (p. 74).

114

Varela (2000) afirma que se trata de “noções que permitem coordenar e organizar dados

empíricos e tornam possíveis os sistemas de representação que os homens de uma determinada

sociedade e em um momento histórico concreto elaboram sobre o mundo e sobre si mesmos”.

Destaca-se aí o papel exercido pelas instituições escolares que põem em jogo determinadas

concepções e percepções do espaço e do tempo no processo de socialização dos alunos ( p. 73). A

discussão sobre essas categorias de pensamento veiculadas e interiorizadas pelos indivíduos

submetidos à escolarização pode lançar luz sobre algumas características que se repetem nas

ações das professoras acompanhadas.

Partindo da afirmação: “categorias espaço-temporais, poder, pedagogias, saberes e

sujeitos constituem dimensões que se cruzam, se imbricam e se ramificam no interior das

instituições educativas”, Varela (2000) descreve três modelos pedagógicos, frutos de três

períodos históricos distintos: as pedagogias disciplinares (que ganham força a partir do século

XVIII), as pedagogias corretivas (no princípio do século XX) e as pedagogias psicológicas (no

período atual): “três modelos pedagógicos que implicam diferentes concepções do espaço e do

tempo, diferentes formas de exercício do poder, diferentes formas de conferir um estatuto ao

‘saber’ e diferentes formas de produção da subjetividade” (p. 77-78). Pela história do

estabelecimento destes modelos pedagógicos, pode-se identificar o processo pelo qual alguns

fatores presentes na organização e no funcionamento da escola atual – aspectos que definem

limites claros ao desenvolvimento das ações docentes –, chegaram até esta instituição,

constituindo o terreno em que se produz o conhecimento escolar.

Durante o século XV, no período do Renascimento, “conhecer as coisas consistia em

descobrir o sistema de semelhanças que as fazia próximas e solidárias ou distantes e

incompatíveis”. Havia uma unidade fundamental entre os fenômenos “naturais”, “cósmicos” e

“sobrenaturais” e as idades da vida expressavam uma unidade cíclica e inevitável. Ao longo do

século XVI, com o início da Modernidade, os códigos de saber se modificaram e o homem

paulatinamente afastou-se da imagem de um pequeno microcosmo, sujeito às mesmas leis que

regem o Universo. Iniciou-se, então, o exílio do homem, destinado a separá-lo cada vez mais da

“animalidade” (Varela, 2000, p. 79-80).

A autora localiza no século XVIII o surgimento do poder disciplinar, ligado às

transformações ocorridas neste contexto histórico: econômicas (acréscimo e conservação de

riquezas), sociais (preocupação em controlar possíveis “motins” ou situações de inconformismo

115

com as desigualdades) e políticas (viabilização da nova sociedade). Nesse sentido, o poder

disciplinar partiu do seguinte pressuposto: “domesticar, normalizar e fazer produtivos aos sujeitos

é mais rentável do que segregá-los ou eliminá-los” (Varela, 2000, p. 81). Para tal, segundo esta

autora, transforma-se a concepção e a organização do tempo e do espaço. Em relação ao espaço, a

autora aponta:

O importante agora é a redistribuição dos indivíduos no espaço, sua reorganização, a maximização de suas energias e de suas forças, sua acumulação produtiva (...) A cada indivíduo há de se determinar um lugar, uma localização precisa no interior de cada conjunto. Os indivíduos hão de estar vigiados e localizados permanentemente para evitar encontros perigosos e comunicações inúteis, se de fato se quer favorecer exclusivamente as relações úteis e produtivas (Varela, 2000, p. 82).

A concepção e organização do tempo também se modificaram:

A idade se converte no critério fundamental de distribuição dos colegiais. A nova concepção de tempo exige organizar as atividades de acordo com um esquema de séries múltiplas, progressivas e de complexidade crescente. Organiza distintos níveis separados por provas graduais que correspondem a etapas de aprendizagem e que compreendem exercícios de dificuldade cada vez maior (idem, p. 84).

Sob o crivo das pedagogias disciplinares, as instituições educativas se tornaram

instituições examinadoras, tendo o exame dupla função: garantir uma “vigilância hierárquica” e

uma “sanção normalizadora”. Assim, os exames avaliavam as aprendizagens e a formação,

enquanto conferiam uma natureza específica a cada indivíduo, por meio de notas, fichas, registros

e históricos, o que “introduz a individualidade no terreno da escritura, convertendo cada sujeito

em um caso”. Quanto às sanções, frutos de novas relações de poder – menos visíveis quanto mais

fisicamente e materialmente presentes – passaram a consistir em repetições das atividades, em

fazer várias vezes a mesma coisa (Varela, 2000, p. 85-86). Esta autora acrescenta, ainda que:

Essa nova forma de perceber e organizar o espaço e o tempo permite um controle detalhado do processo de aprendizagem, permite o controle de todos e de cada um dos alunos, faz com que o espaço escolar funcione como uma máquina de aprender e ao mesmo tempo possibilita a intervenção do mestre em qualquer momento para premiar ou castigar e, sobretudo, para corrigir e normalizar (idem, p. 84).

116

Os saberes que, segundo Varela (2000), até o final do século XVIII se mantinham

dispersos e com caráter heterogêneo, passaram, com a consolidação do Estado, o

desenvolvimento de novas relações de poder e o impulso da Revolução Industrial a ser

submetidos a “processos de anexação e confisco de saberes locais e artesanais por saberes mais

gerais ou industriais”. Estas operações permitiram a seleção e o controle dos saberes e

implicaram no surgimento de práticas, iniciativas e instituições – da Enciclopédia até as

instituições acadêmicas e a um novo tipo de Universidade controlada pelo Estado (idem, p. 86-

87). O que passa a se delinear, então, é o monopólio das instituições contribuindo para o processo

de objetivação dos saberes. Este processo já se iniciara anteriormente, nos séculos XV e XVI,

com o ajuste do conhecimento a ser transmitido aos moldes da retórica, de acordo com sua

preocupação com a eloqüência, onde o conteúdo do ensino deveria ser moldado de acordo com o

método e a ordem, o que posteriormente serviu para configurar a escolarização como um dos

pilares do Estado Moderno (Hamilton, 2001, p. 57).

Varela (2000) conclui que o poder disciplinar “joga complementarmente em dois terrenos,

o da produção dos sujeitos e o da produção dos saberes” (p. 87). Os sujeitos passaram a ser

identificados pelos resultados obtidos nos exames e seus saberes foram deslegitimados em função

de um conhecimento superior centralizado nas instituições acima referidas. O poder disciplinar se

associa fortemente à história da organização da escola mantendo-se, como traço inerente da

forma escolar.

O estudo citado aponta, no início do século XX, uma certa ampliação da oferta da escola

para as classes trabalhadoras e a resistência de algumas crianças à escola disciplinar, o que gerou

“um novo campo institucional de intervenção e de extração de saberes destinado à ressocialização

da ‘infância anormal e delinqüente’”. Numerosos estudos realizados no início do século XX

trataram de classificar o que se definiu como infância anormal12. As instituições criadas para a

reabilitação dessas crianças inadaptadas acabaram servindo como laboratório para situações

experimentais que implicavam em uma redefinição do espaço e do tempo, uma visão diferente da

infância, a produção de uma nova subjetividade e um novo estatuto do saber (Varela, 2000, p. 89-

12 Varela (2000) cita as definições encontradas em um texto da época para os alunos considerados “refratários à disciplina escolar”: abúlicos, teimosos, mimosos, parabúlicos, cretinos, sem sentimentos, desconfiados, frios, desmemoriados, memoriosos, visionários, terroristas, surdos-mudos, cegos, de gostos grosseiros, inexpressivos, imbecis, histéricos, hiperestésicos, passionais e masturbadores (p. 89).

117

90). A tendência nos estudos de alguns pedagogos desse período, que se apoiaram nas teorias

psicológicas para criar situações experimentais com crianças consideradas anormais, foi de

rejeição às pedagogias disciplinares, motivada pela idéia de que o controle do processo de

aprendizagem e de socialização não deveria ser exterior e coativo e, sim, menos visível, menos

opressivo e mais operativo. Para alcançar esse objetivo, a criança passou a representar o centro de

seu próprio processo educativo, fazendo coincidir “um meio educativo ‘artificial’,

minuciosamente organizado e preparado, com algumas supostas ‘necessidades naturais’ da

criança” (Varela, 2000, p. 93). Delineia-se, assim, um modelo de pedagogia corretiva, de

transição para pedagogias psicológicas, que se desenvolveram mais ao final do século XX.

Destaca-se na descrição dos vários modelos pedagógicos estudados por Varela, o papel

fundamental da escola na transmissão e interiorização de categorias de pensamento que

contribuem para a manutenção da ordem escolar e da ordem social. Compreender o processo

pedagógico, de ensino e aprendizagem, no interior da escola exige, portanto, passar pelo

enfrentamento das questões relacionadas aos parâmetros de organização de espaço, tempo,

estatuto do saber, formas de autoridade e relações de poder – na relação com as condições sociais

e culturais mais amplas. Significa dizer que tais parâmetros, sedimentados como prática

educativa compartilhada, atuam como fronteiras que definem o contorno e delineiam as

possibilidades da ação dos sujeitos e, portanto, do processo pedagógico. O que se observa a partir

dos dados atuais referentes às ações docentes acompanhadas, é a força do poder disciplinar

incidindo sobre os indivíduos no interior da escola, em suas relações entre si e com o

conhecimento: na definição das posições a serem ocupadas pelos alunos na classe, na ênfase

conferida à obtenção de boas notas, na repetição de atividades como forma de adquirir

conhecimento e na cautela em relação à entrada do conhecimento cotidiano na sala de aula.

Contudo, mesmo diante das semelhanças das ações docentes, por estarem circunscritas

pela forma escolar, pôde-se constatar que as estratégias para lidar com estes limites foram

diferentes. Por exemplo, as professoras acompanhadas nesta investigação manifestam

preocupação com o controle da distribuição espacial de seus alunos, entretanto, esta preocupação,

para a Professora 1, se desloca para o contexto externo à sala de aula enquanto para a Professora

2, o foco é a própria sala. Nas aulas da Professora 1, não aconteceram situações que indicassem

um empenho da professora para controlar as posições dos alunos de acordo com o mapeamento

da sala de aula. Conforme a descrição da p. 36, seu comportamento em relação a essa atividade

118

foi um tanto displicente; de fato, ela revelou, em sua atitude e em alguns comentários feitos em

aula, uma certa descrença na possibilidade de arranjar os alunos no espaço de forma a evitar

conversas ou desatenção. Sua descrença talvez se deva ao fato de que criar um ambiente

favorável à aprendizagem demandaria mais do que simplesmente mantê-los em suas posições,

exigiria uma mudança na forma de compreender seu próprio trabalho, um cuidado maior com a

atividade de ensino e com a aprendizagem dos alunos, esforço que não demonstrou julgar

necessário para que os alunos de fato apreendessem o conteúdo de suas aulas.

A despeito do desprezo para com o ambiente em que se dá o ensino e a aprendizagem, a

Professora 1 mostrou-se sempre bastante disposta a evitar que os alunos atrapalhassem o

funcionamento dos demais espaços da escola, ou seja, que a indisciplina de seus alunos

ultrapassasse o limite espacial da sala. Tal disposição talvez possa ser compreendida quando se

atenta para a seguinte declaração, em que revela o que considera que a escola espera de seu

trabalho:

Sinto como se não importasse o que faço nas aulas, desde que os alunos fiquem na sala e que as

notas sejam azuis.

Tal declaração foi feita durante a entrevista, quando a Professora 1 manifestou que sabia que seu

trabalho poderia ser melhor, mas que essa expectativa reduzida da escola limitava a qualidade de

suas aulas. Diante disso, pode-se entender porque a professora exerce maior controle sobre a

indisciplina quando esta ameaça ultrapassar o território da sala de aula. A manutenção das

condições de organização e funcionamento da escola como um todo foi assumida por ela como

indicadora da qualidade de seu trabalho, ao menos diante dos demais agentes da escola, sendo

mais importante até do que a aprendizagem dos alunos, uma vez que o objetivo de manter um

clima favorável de funcionamento da escola se sobrepõe ao de manter um ambiente propício à

aprendizagem no interior da sala de aula.

A Professora 2 revela forte intenção de manter o espaço de sala de aula claramente

organizado, com as posições dos alunos no mapa de classe sendo confirmadas esporadicamente.

Sua preocupação com esta organização pôde ser identificada em uma aula em que desenhou na

lousa as posições que cada grupo de alunos deveria ocupar na aula seguinte, quando realizariam

um trabalho. Nesta aula, suas orientações foram para que quando ela chegasse à sala, os grupos já

119

estivessem posicionados na forma indicada. Em outra situação, ao combinar uma próxima aula,

no laboratório de ciências, indicou que os alunos deveriam se dirigir para lá após o sinal de

entrada na escola e se posicionar nos locais já definidos por ela anteriormente. Assim, ela

antecipa as orientações para as aulas futuras com o intuito de garantir a ordem e o ambiente

favorável para o desenvolvimento de sua ação, bem como de economizar o tempo da aula que

poderia ser gasto nesta atividade.

A manutenção de um ambiente propício às atividades de ensino e aprendizagem aponta

para uma determinada forma de se aproximar do conhecimento. Indica que é necessário um

esforço de concentração para que se mobilizem as informações ou os conceitos prévios que se

tem para que seja possível a apropriação do conhecimento. Aponta, portanto, para um processo

ativo por parte dos alunos e não para a recepção passiva de um conjunto de informações

desarticuladas que deverão ser simplesmente memorizadas. Por outro lado, descuidar das

condições em que se dá o ensino e a aprendizagem, fazer suas explicações a despeito de estar

sendo ou não ouvida, como faz a Professora 1, indica a consideração de que tal processo é

unilateral, ou seja, demanda apenas que o professor detenha o conhecimento e cumpra seu papel

de transmissão, sem a participação ativa dos alunos na sua apropriação. E, apesar de reforçar esta

idéia na forma de desenvolver sua aula, é principalmente a indisciplina, o comportamento

inadequado dos alunos e a não-valorização da escola, que a Professora 1 aponta como os grandes

responsáveis pela perda de qualidade de seu trabalho, como se pode verificar na seguinte

declaração:

O número muito grande de alunos por sala é o ponto de partida. A classe se torna difícil de

controlar (...) A não-valorização da escola pelos alunos e por alguns pais é um fator que

dificulta a aprendizagem.

A Professora 2 ocupa um espaço bem definido na sala de aula: só se desloca na faixa que

fica entre a lousa e as primeiras carteiras das fileiras. Quando os alunos precisam falar com ela

ou, quando são por ela convocados, dirigem-se à sua mesa. Fica, portanto, bem delimitado o

espaço ocupado por professora e alunos em suas aulas.

A organização da escola como um todo também define claramente que diversos espaços

são proibidos aos alunos, tais como, o corredor da secretaria, a sala dos professores e a porta

120

principal de entrada e saída da escola. Quando algum aluno se aproxima destes espaços, é comum

que algum funcionário – o auxiliar de serviços gerais, a secretária, professores, a diretora, etc. –

reaja prontamente, interpelando-o, por vezes com gritos.

Cada banheiro da escola também serve a grupos específicos de pessoas, não podendo ser

utilizado por qualquer um. No corredor da secretaria localiza-se o banheiro que serve à diretora e

vice-diretora, à coordenadora e ao pessoal da secretaria. No 1o andar do bloco mais antigo, sobre

o corredor da secretaria, localizam-se os banheiros dos professores (masculino e feminino). Os

alunos utilizam os que ficam no pátio, na área externa aos prédios que abrigam as salas de aula.

Aí também se localiza o banheiro que serve aos demais funcionários. Todos os banheiros

permanecem trancados – exceto os dos alunos – e somente os usuários determinados para cada

um deles podem retirar as chaves que permitem o seu uso, nos locais e com as pessoas definidas

para guardá-las.

A demarcação dos espaços que podem ou não ser ocupados pelos indivíduos no interior

da instituição escolar está ligada à preocupação com o controle e com uma definição hierárquica

de seus agentes. É um dos instrumentos de exercício do poder disciplinar. Na ação educativa da

Professora 1 verifica-se que este instrumento limita-se a servir a este propósito enquanto na da

Professora 2 ele extrapola estas funções no sentido de garantir que se estabeleçam as condições

necessárias para a aprendizagem.

A forma pela qual se administra o tempo das aulas pode definir e comunicar aos alunos

quais são as prioridades para o professor. Este tempo pode ser utilizado para diversos fins, tais

como, a organização do grupo – definir procedimentos, restabelecer o silêncio, ameaçar, recordar

tarefas que deverão ser entregues, agendar provas, etc. – e o ensino, entendido como a interação

entre professor e alunos em torno do conteúdo curricular. Rockwell e Mercado (1986) indicam

que nas escolas mexicanas, por exemplo, esta última atividade ocupa cerca da metade do tempo

efetivo de trabalho na sala de aula (p. 15).

A Professora 1 mantém um padrão bem definido de utilização do tempo em sua aula: no

geral, os 15 minutos iniciais concentram as conversas que estabelece com a classe acerca do

comportamento que os alunos devem ou não apresentar; suas explicações do conteúdo curricular,

que ocupam a parte central da aula, duram, em média, 25 minutos; os dez minutos finais se

destinam, geralmente, à realização de tarefas que não demandam a participação efetiva da

professora. Portanto, a interação da Professora 1 com os alunos em torno do conhecimento

121

escolar de ciências ocupa de 25 minutos a 30 minutos de sua aula. Deve-se destacar que, dos 15

minutos iniciais de aula uma parte significativa – que atinge, por vezes, dez minutos – não é

sequer utilizada para as conversas com a turma; representa, na realidade, o tempo de espera da

professora para que os alunos se sentem e diminuam o volume da voz e ela possa, então, iniciar

suas atividades. Assim, o que esse padrão de uso do tempo comunica aos alunos é que a

transmissão do conhecimento é central na escola, define a função da professora em classe e se

estabelece ainda que os alunos não estejam atentos a ela. É a professora que define o ritmo de

desenvolvimento da explicação, invariavelmente de acordo com a seqüência de abordagem

presente no livro didático. Porém, o controle do ritmo de desenvolvimento das demais atividades

– resolução de exercícios, provas, leitura, etc. – é estabelecido pelos próprios alunos, uma vez

que o tempo disponibilizado para elas é maior do que o que efetivamente utilizam, restando

sempre alguns minutos em que a turma se distrai com conversas não relacionadas com o assunto

abordado e com brincadeiras.

Nas aulas da Professora 2, pode-se perceber uma grande preocupação com a economia de

tempo, no sentido de maximizar as oportunidades de contato dos alunos com o conhecimento e

de minimizar as perdas que se devam à desorganização ou à indisciplina. Ainda que esse contato

com o conhecimento não seja preferencialmente centrado na figura da professora, é ela quem

define todas as etapas de desenvolvimento das tarefas, bem como o ritmo em que deverão ser

cumpridas. Logo no início das aulas, ou mesmo em aulas anteriores, a professora define o que

será feito, em quanto tempo e o que ainda resta fazer. Assim, os alunos são constantemente

lembrados da necessidade de se ganhar tempo, fazer o máximo no menor período. Essa urgência

comunica aos alunos que o trabalho de aproximação ao conhecimento é árduo, demanda

organização pessoal e do grupo e concentração no que se está fazendo. Não prescinde, de maneira

nenhuma, da participação efetiva do aluno, ao contrário, só se dá através dela. O que é central nas

suas aulas é a manutenção do ambiente favorável a esse movimento de aproximação ao

conhecimento – através da definição clara e prévia das etapas de trabalho, dos critérios de

avaliação e da diversificação de estratégias para tal – e não de extensas conversas acerca da

forma como devem se comportar os alunos.

Percebe-se, assim, como a prática sedimentada atua como terreno de limites e

possibilidades à atuação das professoras e define os contornos do processo pedagógico. O

conhecimento escolar, objeto e resultante desse processo, formata-se no interior das práticas, das

122

quais conserva marcas indeléveis. Por outro lado, trata-se de um conhecimento que é prescrito

externamente e apresentado à escola, sofrendo inúmeras transformações no percurso.

O conhecimento escolar representa o “resultado de um processo de trabalho social, por

meio do qual o conhecimento passa por uma série de transformações até resultar neste produto

que circula na escola” (Santos, 1995, p. 31). Baseando-se nas idéias de Bernstein, Santos (1995)

afirma que:

O discurso de um campo intelectual ou área de conhecimento é deslocado de seu campo original e realocado na escola por meio de recontextualizações sucessivas. Isso significa que o conhecimento produzido em um campo da ciência é recontextualizado de acordo com princípios políticos dos organismos e instâncias da sociedade civil ligadas à educação (administração pública do sistema de ensino, universidade e agências de pesquisa, rede editorial etc.) e, finalmente, recontextualizado de acordo com a gramática do aparelho escolar (p. 33).

A “gramática do aparelho escolar” cria as condições, portanto, para a constituição do

conhecimento escolar e, tal como as demais instâncias em que se estabelecem as

recontextualizações dos saberes, porta as marcas dos interesses, valores e relações de poder que

pautam a organização da sociedade.

O conhecimento escolar, portanto, não se reduz a um conjunto organizado de tópicos do

conhecimento científico transmitido pela escola. Segundo Santos (1995), as teorias e métodos de

ensino têm que ser considerados como elementos constitutivos do próprio conhecimento escolar

(p. 37). Assim, ao se acompanhar as ações educativas das duas professoras, pôde-se identificar

que as recontextualizações sofridas pelos saberes desde seus campos de produção resultaram em

materiais e em determinações oficiais que recaem sobre professores e alunos, delineando

contornos para o conhecimento escolar produzido. Mantém-se, portanto, por esta via, a relação do

conhecimento escolar com o conhecimento científico de referência. Entretanto, as escolhas de

cada professora em relação ao conteúdo e à forma de abordagem do conhecimento representam

estratégias diferenciadas de lidar com a “gramática do aparelho escolar” que permitem diferentes

aproximações em direção ao conhecimento científico. Como foi indicado, a relação do

conhecimento escolar com os saberes de referência pode ser ampliada ou reduzida, conforme o

favorecimento da discussão sobre a produção científica atual, a abordagem dos aspectos

123

históricos da produção do conhecimento científico e a preocupação em se explicitar o caráter

descontínuo de sua evolução.

O objetivo desta análise consiste em destacar os modos de aproximação ao conhecimento

possibilitados pelas práticas de ensino, com foco nas ações desenvolvidas pelas duas professoras

acompanhadas. Busca-se conhecer, como indica Santos (1992), “o regime de verdades que

orienta a produção do conhecimento pedagógico” e que marca suas ações, formatando o ensino e

o conhecimento escolar de ciências.

Em relação ao conteúdo selecionado para a transmissão nas aulas, percebe-se que as duas

professoras procuram seguir a seqüência trazida pelo livro didático. Entretanto, para a Professora

2, este recurso didático representa uma fonte de informações que baliza suas aulas mas não

restringe o conhecimento aos limites de seu texto. Através de atividades que se valem de outros

recursos – tais como, vídeos, leituras de jornal, visitas à exposições –, o processo de produção do

conhecimento escolar de ciências se abre para outras fontes de conhecimento, num movimento

que poderia permitir o estabelecimento de discussões acerca da responsabilidade social da

Ciência, como fator da maior relevância no que se refere à instrumentalização para a tomada de

decisões que possam interferir nas condições de vida do homem. O livro didático porta um corpo

de conhecimentos importante, mas não se pode esquecer que ele representa uma adequação dos

saberes de referência às determinações curriculares oficiais e às condições de organização da

escola, o que, por definição, significa um ajuste às condições de tempo e espaço escolares, bem

como às relações de poder que se definem nesta instituição. Assim, por questões relacionadas à

economia de tempo ou à manutenção da ordem social muitas questões que poderiam gerar ricas

discussões podem ser desconsideradas na produção dos livros didáticos. O trabalho com outras

fontes pode trazer este tipo de questão para o cerne do processo de produção do conhecimento

escolar.

A história dos conceitos científicos não foi abordada nas ações das professoras

acompanhadas. Essa lacuna implica uma noção de Ciência muito distante do que de fato

caracteriza tal atividade. É inerente ao trabalho dos cientistas, na produção do conhecimento, o

movimento de construção e desconstrução – bem como de filiação e contestação – de explicações

para as questões que se impõem em contextos específicos, como frutos destes e incidindo

diretamente sobre eles. Ao se ignorar estas características no processo de ensino, gera-se uma

relação com o conhecimento científico marcada por uma visão estática e dogmática e por um

124

sentimento de distanciamento em relação às questões científicas que inexoravelmente imprimem

suas marcas no cotidiano dos cidadãos.

O movimento de aproximação ao conhecimento científico por esta via, desligado da

história de sua produção, acaba por conferir ao ensino de ciências um caráter de convencimento.

Não há espaço para se discutir o que afirmam as autoridades que representam a Ciência – o

professor e os livros didáticos, por um lado, e os cientistas, estigmatizados como sujeitos

especiais, por outro. Da mesma forma, não há espaço para o conhecimento cotidiano dos alunos,

exceto quando ele serve para atestar a veracidade do o que o professor acaba de dizer. Ao se

aceitar que a Ciência não é produzida através de conflitos de idéias, o processo de produção do

conhecimento escolar sofre uma redução ou simplificação, pelo impedimento à explicitação de

qualquer contradição em sala de aula.

A Professora 1, mantendo-se estritamente ligada ao conteúdo do livro didático, não se

expõe a qualquer possibilidade de discussão sobre os conceitos abordados ou sobre a natureza da

atividade científica. Todos os exemplos que utiliza em suas explicações são encontrados nos

mesmos termos no livro didático. Ela opta, assim, por manter uma atitude de legitimação

recíproca entre suas afirmações e as que porta este recurso didático.

Identifica-se na ação educativa da Professora 2 uma abertura maior à entrada do

conhecimento na sala de aula por outras vias, além do livro didático. Ao indicar atividades que

demandam a leitura de artigos relacionados à Ciência, não necessariamente relacionados aos

assuntos abordados nas aulas, por exemplo, ela se expõe mais à possibilidade do estabelecimento

de discussões acerca da natureza e da responsabilidade social associada ao trabalho científico.

Ainda que a forma escolhida pela Professora 2 para explorar as atividades não tenha gerado tais

discussões nas aulas observadas, a sua ação indica que há alternativas para se realizar a

aproximação do conhecimento científico de forma mais aberta e crítica.

A forma de se aproximar do conhecimento científico também define um modo de

conceber o conhecimento comum. Lopes (1995), traz importantes contribuições à questão da

construção do conhecimento escolar, indicando crer que o conhecimento científico não é

construído a partir de elaborações sucessivas do conhecimento comum, numa idéia de

continuidade, e, sim, por ruptura com este conhecimento (p. 42). Concordando com a autora,

indica-se que a própria natureza da atividade científica confirma esta ruptura. Na Ciência

contemporânea, a natureza não é mais alvo de contemplação passiva pelo cientista, que neste

125

caso se limitaria a descrever fenômenos, da forma mais objetiva possível. A técnica, hoje, media

a relação entre cientista e natureza; apenas a teoria pode permitir que se estabeleçam as relações

entre o fenômeno observado e o que revelam os instrumentos, a técnica. Limitar-se a descrever

aspectos superficiais dos fenômenos fornece apenas um conjunto de fatos desconexos, destituídos

de caráter científico por não estarem inseridos em um sistema teórico (Lopes, 1995, p. 45). O

ensino de ciências parece não ter se apropriado desta mudança no caráter da atividade científica

instituída pelo desenvolvimento da técnica; insiste-se em reforçar as impressões superficiais dos

fenômenos observados no dia-a-dia, aquilo que o aluno já conhecia, ajustado apenas à linguagem

escolar. Um exemplo disto fica explícito na forma de abordar a mudança de estado físico da água,

nas aulas de 5a série: repete-se infinitas vezes que um cubo de gelo – água no estado sólido –

quando recebe calor, torna-se água no estado líquido. O processo de ensino traz algumas

definições; a explicação não ultrapassa o que os alunos já haviam observado sobre o fenômeno.

Toda a descrição feita não passa de informações desconexas, porque não se insere em um sistema

conceitual. Rockwell e Mercado (1986) indicam, a este respeito, que:

Ao se desenvolver uma unidade em ciências, se transmite ou destaca a definição formal de termos novos, e não o processo investigativo para chegar aos conceitos. Os processos que constituem os objetos de conhecimento das ciências sociais e naturais, na escola se segmentam e se transformam, necessariamente em “objetos de ensino” (p. 19).

Não se está afirmando que o conhecimento comum, ou cotidiano, não deve entrar na

escola. Pelo contrário, é dele que devem partir as reflexões que implicarão na desconstrução de

algumas noções e na substituição destas por novos conhecimentos. Mas, o que se observou,

especialmente nas aulas da Professora 1, foi que os conhecimentos prévios dos alunos só eram

considerados se servissem para reforçar o que dizia a professora durante suas explicações.

Rockwell e Mercado (1986) indicam como se dá esta entrada do conhecimento comum na escola:

Não parece importante validar o conhecimento que os alunos têm de seu meio, confrontá-lo com novas observações, elaborá-lo, buscar suas implicações. O docente pede exemplos ou ilustrações dos alunos a respeito de algum princípio ou conceito mais geral. Do que propõem os alunos faz-se uma seleção, uma reinterpretação e uma integração em função do tema específico que o professor deve tratar (...) Desta maneira, as referências ao meio servem para fazer mais familiar o esquema ordenador que transmite a escola (p. 20).

126

Esta desconsideração pelo conhecimento do aluno, que para ele compõe de fato um

sistema explicativo acerca dos fenômenos, ensina que existe um conhecimento e uma forma de

conhecer válidos – de domínio da escola –, que, ainda que negue a sua experiência pessoal e não

constitua um sistema explicativo de fato para o aluno, deve substituí-lo. Novamente Rockwell e

Mercado (1986) contribuem para a compreensão deste processo, concluindo:

Dada a invalidação da experiência própria, o aluno pode perder a confiança na sua própria capacidade de análise e construção de conhecimentos. Este fato, mais do que a falta de relevância temática do conteúdo escolar, explica por que o conhecimento escolar pode ser tão alheio ao aluno (p. 21).

A constatação das autoras talvez explique o desinteresse dos alunos, mencionado pela

Professora 1, em sua entrevista. Ela afirma que os alunos não se interessam, porque a escola não

traz novidades. Porém, nada pode ser objeto de interesse intelectual quando se perde a confiança

na própria capacidade de se aproximar do conhecimento.

A ação educativa da Professora 2 também não indica uma preocupação em estabelecer

interações orais freqüentes com os alunos acerca do que eles já conhecem a respeito do conteúdo

de ciências. Entretanto, por apresentar este conteúdo através de estratégias diversas, antes de

definir, fechar com sua explicação, o que se apresenta como conhecimento válido, legitimado

pela escola, ela proporciona aos alunos a possibilidade de mobilizarem, a partir das atividades

desenvolvidas, seus conhecimentos acerca dos assuntos abordados. Esta mobilização pode criar

situações de confronto entre as explicações iniciais dos alunos e aquelas com as quais eles

entraram em contato ao longo do processo de ensino estabelecido pela professora. Novamente, a

Professora 2 se expõe, cria possibilidades de discussão, de confronto de idéias, no processo de

construção do conhecimento escolar de ciências, assim como quando abre suas aulas à entrada de

questões científicas atuais.

Enfim, a análise das ações docentes acompanhadas nesta pesquisa revela que o

conhecimento escolar de ciências é fruto de uma conjunção de fatores que incidem sobre a

atividade de sala de aula. Questões ligadas à cultura da prática educativa acumulada, à forma

escolar, à cultura subjetiva dos professores incidem sobre as ações educacionais delimitando um

campo de possibilidades para o desenvolvimento destas ações. O modelo descrito nas pesquisas

acerca do ensino de ciências foi amplamente confirmado no caso da Professora 1 e parcialmente,

no caso da Professora 2. As aberturas apontadas na ação docente desta, indicam que, embora os

127

contornos definidos pelos fatores descritos acima possam de fato incidir negativamente sobre o

processo de produção do conhecimento escolar de ciências, gerando fragmentação e

simplificação do conhecimento científico – e do processo de elaboração deste –, há algum espaço

na escola pública para aproximações mais cuidadosas e mais ricas deste corpo de conhecimentos

fundamental para a formação dos alunos.

128

CONSIDERAÇÕES FINAIS

129

Em uma primeira etapa desta pesquisa, buscou-se delinear as escolhas de uma professora

em termos de forma e conteúdo estabelecidos para o desenvolvimento de suas aulas.

O que se pôde observar nas condições expostas inicialmente foi uma prática que não se

diferenciou substancialmente das descritas nas pesquisas sobre ensino de ciências anteriormente

citadas.

Confirmou-se a fragmentação dos conteúdos e a relação de dependência do professor em

relação ao livro didático. Revelou-se ainda uma aproximação do conhecimento que se baseia no

convencimento dos alunos de que a escola porta um conhecimento válido, que, ora desconsidera

o conhecimento cotidiano, ora, nas explicações da professora, não avança mais do que este já

explicava em relação aos fenômenos, apenas ajusta o que já se sabia a uma forma escolar de

conhecer.

A metodologia adotada confirmou-se centrada no professor e destacou-se a pouca

relevância dada ao desenvolvimento da expressão escrita dos alunos.

Considerando a classificação anteriormente apresentada, proposta por Astolfi e Develay

(1990), para os modelos pedagógicos assumidos no ensino de ciências, o que se observou

aproximou-se do modelo de aprendizagem por transmissão-recepção. Ou seja, o diálogo é

comandado pelo professor e os recursos que ele utiliza servem ao propósito de confirmar suas

exposições e neutralizar as representações espontâneas dos alunos. Não são abordados os

aspectos relativos à história do desenvolvimento do conhecimento científico e a Ciência parece

constituir-se de uma série de sucessos que vão se somando de forma contínua. O principal

recurso cognitivo acionado pelo processo de ensino é a memorização, confirmada nos tipos de

questões das prova e de tarefas de classe e de casa.

Na segunda etapa da investigação, ao se acompanhar a ação educativa de outra professora,

identificou-se aspectos semelhantes à primeira ação docente observada, tais como os tipos de

questões de prova e de classe, a pouca exploração dos registros escritos dos alunos nas correções,

a ausência de aspectos ligados à história do desenvolvimento do conhecimento científico, além da

escassa interação oral entre professora e alunos acerca dos conhecimentos prévios destes. Apesar

destas semelhanças, pode-se afirmar que a ação educativa desta professora se aproxima do que

Astolfi e Develay (1990) definem como modelo pedagógico por investigação-estruturação, uma

vez que as atividades didáticas visam auxiliar os alunos a se apropriarem do saber, e não apenas

recebê-los, como se pode verificar no hábito da professora de proporcionar o contato dos alunos

130

com várias fontes de informação, sob a sua orientação, sem centralização deste processo nas suas

explicações:

O professor anima, instiga, aconselha e apresenta certas exigências. Em outros momentos, observa, deixando os alunos autônomos. Orienta a atividade tateante, sobretudo de maneira indireta, por sugestões ou contribuições que modificam a atividade, facilitando as trocas entre grupos, reformula o que é dito e feito. Provoca momentos de explicação, de verificação, de confrontação, de comunicação (momentos estruturantes) (Astolfi & Develay, 1990, p. 119).

Explicitaram-se iniciativas na ação educativa desta professora que criam possibilidades de

aproximação do conhecimento a partir de um papel mais ativo e autônomo dos alunos e que

representam uma maior abertura do processo de construção do conhecimento escolar de ciências,

na interlocução com o conhecimento cotidiano e com as conquistas mais recentes da Ciência, o

que pode gerar, por um lado, maior confiança dos alunos nos seus recursos para conhecer e, por

outro, mais chances para que se reflita na sala de aula sobre as implicações sociais do

desenvolvimento da Ciência.

Enfim, pôde-se constatar que o conhecimento escolar de ciências no Ensino Fundamental

mantém-se ligado às Ciências de Referência especialmente através dos conteúdos presentes nos

materiais didáticos que chegam às mãos de professores e alunos – em especial, o livro didático.

Marcado pelas determinações escolares – especialmente as que se referem ao tempo, ao espaço e

ao tipo de uso dos recursos didáticos sedimentado pela prática –, o tratamento destes conteúdos

acaba por favorecer a constituição de um caráter a-histórico e dogmático ao conhecimento

científico. A escola, assim, veicula uma determinada visão da Ciência: uma atividade

caracterizada pela evolução contínua do conhecimento – para a qual os conflitos não trazem

qualquer contribuição –, cujo desenvolvimento compete à algumas pessoas portadoras de

características cognitivas especiais, apresentadas genericamente como cientistas, que trabalham

de forma isolada das condições sócio-históricas em que vivem. As relações entre escola, Ciência

e Sociedade encontram-se bastante empobrecidas por esta visão que favorece um distanciamento

dos indivíduos em relação às questões referentes ao processo de produção do conhecimento

científico e ao uso que se faz dos produtos da Ciência.

Destaca-se a relevância da hipótese inicial desta investigação (apresentada na p. 9) na

argumentação e análise dos dados para chegar à compreensão do conhecimento escolar de

ciências que se viu delinear nas aulas observadas. O que se verificou foi que os traços centrais do

131

conhecimento escolar de ciências no Ensino Fundamental são determinados pela formatação

escolar mais do que pela natureza do processo de produção e legitimação do conhecimento

científico. Evidenciou-se que esse predomínio das questões relativas à forma escolar pode gerar

uma limitação do potencial reflexivo dos conteúdos abordados no ensino desta disciplina.

Entretanto, o que esta investigação indica, e que confere esperança a quem se importe

com a qualidade do ensino público brasileiro, é que é possível ao professor, nas condições

escolares, repletas de limitações devidas a questões atuais e à própria história da instituição

escolar, encontrar algumas brechas para uma aproximação mais crítica do conhecimento

científico. Na análise dos dados evidenciou-se a necessidade de compreender o conhecimento

escolar nos parâmetros institucionais de sua constituição, assim como nos contornos de seu

campo científico de referência, sugerindo questões relevantes para a pauta de formação dos

professores. Não se está dizendo com isto, que é de total responsabilidade do professor a

qualidade do conhecimento escolar produzido, porém, pesquisas desta natureza ajudam a

identificar os pontos mais restritivos da cultura da prática acumulada às ações docentes

inovadoras e, também, o que já é possível fazer, dentro dos limites impostos, para melhorar a

qualidade do ensino de ciências.

132

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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organização do ensino. São Paulo: J. M. Editora.

137

ANEXO A

138

Levantamento dos procedimentos de pesquisa e das principais características apontadas em

pesquisas sobre a prática docente no ensino de ciências:

Total de teses e dissertações analisadas pelo autor: 572

Período: 1972-1995

Pesquisas que se referem exclusivamente ao Ensino Fundamental II: 114

Pesquisas referentes à prática docente neste segmento do Ensino Fundamental : 14

Procedimentos de pesquisa e caracterização da prática docente descritos nos resumos desses 14

trabalhos:

PROCEDIMENTOS DE PESQUISA NÚMERO DE PESQUISAS

Entrevistas 9

Observação de aulas 5

Análise documental 5

Questionários 4

CARACTERÍSTICAS DA PRÁTICA DOCENTE NÚMERO DE PESQUISAS

Concepção inadequada do professor em relação ao

processo de produção e legitimação do conheci- 4

mento científico

Dependência do professor em relação ao livro didático 3

Recursos didáticos insuficientes ou inadequados 2

Contradições entre as concepções do professor e sua 2

prática

Deficiências conceituais na formação do professor 2

Metodologia centrada no professor 2

Distribuição desigual do conhecimento de acordo com 2

a origem social dos alunos

139

ANEXO B

140

1) ROTEIRO DE DESCRIÇÃO DA ESCOLA E DE SEU ENTORNO

I) CARACTERIZAÇÃO DO ENTORNO:

A) Estrutura do Bairro:

sim não frequência

Asfalto X

Luz X

Abastecimento de água e coleta de esgoto X

Áreas de lazer X + +

Arborização X + + +

Posto de saúde X

Pontos de ônibus X + +

B) Localização da escola e caracterização das atividades econômicas no entorno:

Localização: Município de Campinas, São Paulo.

Tipos de estabelecimentos comerciais no entorno da escola: Restaurantes, bares, lojas de

decoração, boutiques, consultórios médicos e odontológicos, escola de música, papelaria,

quitanda, farmácia de manipulação.

141

II) CARACTERIZAÇÃO DA ESCOLA E DE SEUS AGENTES:

A) Espaço físico:

Descrição da construção: Dois prédios interligados com 12 salas de aula, laboratório de

Ciências, biblioteca, sala de informática, cozinha, sanitários, quadra de esportes coberta,

zeladoria e almoxarifado.

Data da construção: 1943. Reformado e ampliado em 1993.

Distribuição das salas: Bloco principal (construção mais antiga): no térreo, secretaria, dire

toria, biblioteca, sala de informática, vice-diretoria, sala de coordenação, sala dos profes-

sores, um banheiro, sala de recursos; no 1o andar, sete salas de aula e dois banheiros.

Segundo bloco (construção mais recente): no 1o andar, duas salas de aula e laboratório de

Ciências; no 2o andar, três salas de aula.

B) População usuária:

Bairros de origem: Cerca da metade dos alunos reside no bairro e nas cercanias; o restante,

vem de bairros mais distantes e de regiões periféricas do município.

Defasagem idade/série: Segundo a coordenadora, praticamente não existe.

Índices de aproveitamento, avaliação da escola e evasão dos alunos: Segundo a coordena-

dora, a escola apresenta média de aproveitamento dos alunos no SARESP superior quando

se compara aos resultados de outras escolas da Delegacia de Ensino, da Coordenadoria e

do Estado de São Paulo. Apesar disso, ela ressalta que apenas duas séries apresentam per-

centual ideal de acerto nas avaliações. Não há evasão de alunos (a coordenadora atribui

142

este fato ao regime de progressão continuada).

Participação em atividades de recuperação ou de acompanhamento de estudos: Até o 1o se-

mestre de 2004, a recuperação paralela ocorria no contra-período de aula. Isto não mais

ocorre devido a um processo que a coordenadora denominou de “descaracterização da

clientela” – muitos alunos vêm de bairros distantes, o que não acontecia há alguns anos a-

trás –, dificultando a convocação para a recuperação. Segundo a coordenadora, de um tur-

ma de vinte alunos, compareciam, em média, dois. A recuperação contínua é realizada pe-

lo professor de cada disciplina, em sala de aula.

C) Direção:

Formação: História e Pedagogia.

Exerce atividade em sala de aula? Não.

Disponibilidade para atendimento ao público escolar e/ou geral: Todos os dias. Reveza o

atendimento com a vice-diretora (professora de matemática e pedagoga).

D) Coordenação:

Formação: Matemática.

Exerce atividade em sala de aula? Não.

Disponibilidade: Oito horas por dia, de segunda à sexta-feira.

E) Organização e funcionamento:

Ciclos atendidos: Ensino Fundamental II, Ensino Médio regular e Supletivo.

143

Turnos: Manhã, tarde e noite.

Nº de alunos: 1064.

Nº de classes por série: Ensino Fundamental: 5a série: 3 classes; 6a série: 2; 7a série: 4 e 8a:

5 classes. Ensino Médio regular (manhã): 1o ano: 4 classes; 2o ano: 3 e 3o ano: 3. Ensino

Médio regular (noite): 2o ano: 1 classe e 3o ano: 1 classe. Ensino Médio Supletivo: 1o ano:

1 classe e 2o ano: 1 classe.

F) Quadro docente:

Número de professores: 43

Equipe completa? Não.

Rotatividade: Grande, segundo a coordenadora. De um ano para o outro, efetivos permane-

cem e OFAS tem grande rotatividade.

Faltas e afastamentos: As faltas de professores são freqüentes. Em novembro de 2004 havia

4 professores afastados.

G) Orientação pedagógica:

Agente: Coordenadora.

Tipo: Predominantemente sua ação se relaciona com o controle de problemas disciplinares.

Nestas ocasiões procura envolver os pais, o aluno e a direção da escola.

H) Atividades de planejamento:

144

Tipos: Reuniões com todos os professores, sem pauta específica.

Freqüência: Em 2004, ocorreram três reuniões (em fevereiro, no retorno das férias de julho

e em outubro).

I) Projetos:

Número: Em 2004, quatro projetos foram desenvolvidos. Seus resultados foram apresenta-

dos em uma mostra da Delegacia de Ensino (produto final do Projeto CUIDAR).

Descrição: Projeto CUIDAR: da Delegacia de Ensino. Já vem sendo desenvolvido há cerca

de 4 anos. Relaciona-se com qualquer tipo de cuidado que se deva ter com a saúde, a cida-

dania, os aspectos emocionais dos alunos, as escolhas profissionais, etc. Engloba os demais

projetos descritos a seguir:

Projeto Agenda 21: Desenvolvido no ano de 2004, coordenado por uma professora de geo-

grafia, envolveu outras disciplinas. Relaciona-se com conceitos de ecologia.

Projeto Reciclagem: Desenvolvido no ano de 2004, por uma professora de ciências.

Projeto Vida – início e fim: Relacionado a questões sociais junto à Terceira Idade e à infân-

cia carente. Envolve doações e visitas a asilos e creches.

Projeto Educação Fiscal: Cada disciplina desenvolveu este projeto em uma série diferente.

Relaciona-se à questões relativas à cidadania. Também desenvolvido neste ano de 2004.

J) Participação da comunidade nas atividades escolares:

Descrição: De acordo com a coordenadora, é tímida. Ela atribui este fato à já mencionada

“descaracterização da clientela”. Não houve em 2004 nenhum projeto que envolvesse a

atuação da comunidade na escola.

145

2) ROTEIRO DE OBSERVAÇÃO DE AULA

SIM NÃO FREQUÊNCIA DESCRIÇÃO

Exposição do

tema ou do

objetivo da aula

Encadeamento

com a aula

anterior

Verificação de

tarefas

Correção de

tarefas

Uso do livro

didático

Uso de outros

recursos

didáticos

Referências ao

histórico dos

conceitos

abordados

Produção de

sínteses das

explicações

Questionamentos

aos alunos

Reação às

intervenções dos

alunos

146

Conceitos abordados em aula:

Tarefas corrigidas e não-corrigidas:

Exemplos utilizados para a abordagem dos conceitos:

147

ANEXO C

148

ROTEIRO PARA QUESTIONÁRIO

1) Qual é a sua formação?

2) Onde e quando concluiu este curso?

3) Fez outros cursos? Quais?

4) Há quanto tempo exerce o magistério (na rede pública e na particular)?

5) Qual é a sua experiência com turmas de 5ª série?

6) Atualmente, quantas aulas ministra por semana? Em quantas e quais escolas e em que

níveis?

7) Qual é o tipo de vínculo empregatício que possui com esta escola?

8) Há quanto tempo leciona nesta escola?

149

ENTREVISTA – Professora 1

1) Qual é importância da disciplina ciências para a formação de seus alunos?

Ciências é uma disciplina que interage com todas as outras, que não consegue ter

separação entre conteúdos pois traz aspectos da História, da Geografia, etc.

Por exemplo, uma vez fui chamada para uma entrevista em uma escola particular. Lá,

ciências era considerada o carro-chefe da escola. A professora que assumisse as aulas

teria que coordenar todas as outras disciplinas também. Acho que ciências é mesmo o

carro-chefe da escola.

A realidade é complicada, se fosse possível usar o laboratório, trabalhar no concreto,

seria mais rico. Mas a turma muito numerosa e a ausência de um monitor, ou de uma

forma de trabalhar com a metade da classe, dificultam.

2) O que você considera fundamental que seus alunos aprendam em ciências?

Na 5ª série são trabalhados conceitos básicos de ar, água e solo. A água, por exemplo, é

um tema universal agora. Ouve-se falar muito da água no cotidiano. Para entender o que

está acontecendo, por que está acabando, o porquê do racionamento, os alunos precisam

aprender sobre o significado da água e sobre a sua importância.

3) Ao tratar desta parcela do conhecimento, várias outras aprendizagens estarão envolvidas.

Como você percebe esse processo e quais seriam estas aprendizagens?

No tema água, quando os alunos fizeram a experiência da germinação, por exemplo, os

que fizeram tiveram um retorno: observaram, passaram para o papel o que vivenciaram.

Alguns até foram além, fazendo outras experiências.

O trabalho com o concreto é importante para tratar com essas outras aprendizagens.

Mas, quando o aluno não tem interesse em fazer o trabalho, às vezes a falta de interesse

não é só do aluno. Alguns não fazem porque a família não permite, porque faz sujeira.

150

4) E quando não há possibilidade de “trabalhar com o concreto”?

Gosto de trabalhar dialogando com os alunos. Na aula sobre doenças, por exemplo,

quando falei daquela doença de praia.

Mas a coisa se perde neste tipo de aula, vira bagunça.

A sala de aula é pouco para o aluno; giz e lousa é pouco. Eles recebem muita informação

(internet, principalmente), seria necessário uma forma de chamar e prender a atenção

deles.

5) E antigamente, giz e lousa eram o suficiente?

Acho que sim, porque a escola era a fonte de novidades.

Dou aulas há treze anos. Antes, no começo, ia mais ao laboratório, conseguia prender a

atenção dos alunos, eles valorizavam a escola.

Depois dessa história da progressão continuada, a escola virou uma área de lazer para

os alunos, um lugar para encontrar os outros, brincar e conversar. Isso gera indisciplina

o que dificulta o trabalho.

Mesmo para os pais, em linhas gerais, a escola perdeu o valor. Acho que isso vem de

casa. Na minha casa, com os meus filhos, eu cobro uma postura de valorização, afinal,

eles passam a maior parte do dia na escola. Tem que ter cobrança.

6) Você identifica condições que dificultam o aprendizado de seus alunos? Quais e por quê?

O número muito grande de alunos por sala é o ponto de partida. A classe se torna difícil

de controlar, é inviável ir ao laboratório ou mesmo utilizar os computadores.

Seria necessário um material que despertasse maior interesse por parte dos alunos. A

não-valorização da escola pelos alunos e por alguns pais é um fator que dificulta a

aprendizagem, assim como a falta de acompanhamento dos pais sobre a vida escolar de

seus filhos. Por exemplo, tinha um aluno que no começo do ano ficava sozinho em casa

com o irmão. Ele apresentava resultados ruins, nem copiava o que era passado na lousa.

151

A partir de um certo momento, ele começou a comentar que a mãe estava ajudando a

estudar e a fazer os trabalhos. Seus resultados foram melhores, o que mostra como é

importante o envolvimento da família.

Alguns alunos não trazem pré-requisitos, como habilidades de leitura e de escrita, o que

dificulta o aprendizado.

7) Como têm sido os resultados de seus alunos nesta disciplina?

Com relação às notas, é um grupo bem heterogêneo. Alguns alunos apresentam muita

facilidade; a grande maioria situa-se na média, assimilando o que é trabalhado na sala

de aula e outro grupo tem dificuldade de entendimento (faltam os pré-requisitos básicos

de leitura e escrita).

A média na classe é de dez a doze notas vermelhas por bimestre.

Em relação às discussões em classe, sinto que houve uma evolução desde o começo do

ano.

8) Você recebe algum tipo de apoio da escola para organizar seu trabalho de sala de aula?

Qual? Por outro lado, existe alguma ação da escola que dificulta seu trabalho? Qual e por

quê?

No ano passado, a escola tinha muitos alunos em recuperação, em todas as disciplinas.

Acho que isso ou indica um trabalho inadequado dos professores e da escola ou

problemas dos alunos. Porém, houve grande pressão para que não houvesse esse índice

alto. Isso gerou uma “chuva” de notas azuis neste ano, em todas as disciplinas.

Não é o que acontece comigo. As minhas provas são fáceis e, mesmo assim, os resultados

são ruins. Eu me pergunto: como os outros conseguem estes resultados?

Esta escola é muito bem conceituada, há até um certo status para quem dá aula aqui. Os

pais também consideram um privilégio conseguir vagas para seus filhos. Mas, a escola

não enfrenta seus problemas, criou uma espécie de casca frágil que oculta estes

problemas e faz cair o nível do ensino.

152

Fico angustiada porque sei que meu trabalho tem falhas, que eu poderia ser melhor como

professora, mas esta forma da escola de esconder suas deficiências contribui para que eu

seja menos do que poderia ser.

Por exemplo, o projeto que foi combinado no começo do ano. Todos os professores iam

trabalhar o mesmo tema – água. Fui até a direção e disse que este seria o assunto que eu

abordaria desde o começo do ano. No entanto, não houve nenhuma integração entre as

disciplinas.

Sinto como se não importasse o que faço nas aulas, desde que os alunos fiquem na sala e

que as notas sejam azuis.

9) Estes alunos vieram de outras escolas. Na sua opinião, como tem sido a sua adaptação a

este novo ambiente?

Boa. Não senti dificuldade. Sempre há uma preocupação com o prédio, com as escadas,

etc., mas esta turma adaptou-se bem. Muitos já estudavam juntos nas outras escolas, por

isso, não tiveram dificuldade em se entrosar.

10) E em relação às famílias destes alunos, você identifica algo que dificulte ou facilite seu

trabalho em sala de aula?

Alguns pais não permitem ou não estimulam seus filhos a fazerem os seus trabalhos de

casa. Por isso, recebi poucos retornos dos trabalhos solicitados.

De modo geral, percebo pouco empenho e participação das famílias.

153

ENTREVISTA – Professora 2

1) Qual é importância da disciplina ciências para a formação de seus alunos?

É importante porque vivencia muito o seu dia-a-dia. Na área do corpo humano, traz

muitas coisas novas que acontecem. Tanto a parte da 5a série, a parte de água, ar e solo,

também, a gente traz muita coisa, então, é importante para ele entender isto, que a

disciplina ciências trabalha o seu dia-a dia, o que está acontecendo ao seu redor, a

importância de algumas coisas, de alguns fenômenos. Então, esta que é a importância, de

eles estarem conhecendo.

2) O que você considera fundamental que seus alunos aprendam em ciências?

Entender como funciona o corpo, pelo menos as coisas básicas, para ele estar

aprofundando mais no ensino médio. Algumas coisas, também, muito “basicazinhas” que

estão relacionadas com a parte de física, que são as coisas básicas para ele também

poder ter uma bagagem para o ensino médio. A parte de química, também, porque tem

um pouquinho na 5asérie, bem pouquinho de física e química. E mesmo a parte de

zoologia e botânica, também, porque como a matéria é muito grande, não dá tempo para

estar dando tudo na 6asérie, mas pra eles terem uma idéia para o ensino médio, para a

área de biologia, física e química, para eles entenderem no ensino médio.

3) Ao tratar desta parcela do conhecimento, várias outras aprendizagens estarão envolvidas.

Como você percebe esse processo e quais seriam estas aprendizagens?

Por exemplo, leitura. O que eu acho muito importante, que a gente está trabalhando até

em reuniões, que é a parte da interpretação. Esta é uma das coisas mais fundamentais,

que é o aluno ler, interpretar e entender o que está lendo e, não, ler só por ler. Então, o

que a gente faz é trazer muito texto para eles estarem lendo. O que eu faço é trabalhar

com jornais com eles. É eles estarem indo atrás de informações do cotidiano, do que está

154

acontecendo na área científica e poder ler e escrever o que eles entenderam. Então, a

interpretação é uma das coisas mais fundamentais, não só na área de ciências como em

todas as áreas. É o que todo mundo está brigando aí, que é a interpretação. A gente está

fazendo até um curso que é do ensino médio, em rede, porque é isto aí que está

“pegando”: leitura e escrita. São coisas fundamentais que eles não estão tendo.

4) Você identifica condições que dificultam o aprendizado de seus alunos? Quais e por quê?

É a falta de bagagem. A falta de condições, que são os pré-requisitos, que eles vêm da 4a

série mal sabendo ler e interpretar, que é uma das coisas mais graves que a gente pega

aí. Em uma prova, não conseguem entender o que a gente está pedindo. O problema é

que eles chegam assim e começam a ficar desinteressados, o que gera a indisciplina.

Então, a classe começa a ficar tumultuada, por estarem sendo “empurrados”, não terem

uma base boa de 4a série, chega na 5a e fica totalmente perdido. Eu acho que este

desinteresse é que gera isto. Ele está na sala de aula, não entende o que o professor pede

e começa a tumultuar, gerar aquela indisciplina, e o professor começa a cansar. Então,

esta é uma das condições que eu considero um problema grave.

5) Como têm sido os resultados de seus alunos nesta disciplina?

Não é o resultado que eu gostaria. Eu espero mais porque, às vezes, eu mesma tenho que

baixar o meu nível para poder fazer com que eles consigam antender algumas coisas,

porque a gente tem, assim, na classe, ótimos alunos, alunos que têm dificuldades, mas

que tentam e alunos que não fazem absolutamente nada. Então, quando eu vou avaliar, o

que eu sinto dificuldade é isto, porque tem alunos ótimos e eu não posso dar muito para

estes alunos e tem alunos fracos, que eu tenho que descer um pouco o nível, senão eles

não entendem nada, entendeu? Não é um resultado que eu espero...esperava, né? Eu

acho que daqui prá frente o negócio vai dificultar cada vez mais por causa do nível que o

Estado está, das condições que o Estado está...a educação, em geral, né? Cada vez mais,

no meu ponto de vista, eles não estão preocupados com a educação, estão preocupados

com outra coisa, né? Política, no meu ponto de vista. Então, se o aluno fica, se é retido, é

155

dinheiro que o governo vai gastar. É aquele monte de coisa que todo mundo já sabe. A

gente está formando esses alunos, saindo do 3o ano do ensino médio mal sabendo ler e

escrever. Aí, o que acontece, a culpa é de quem? É do professor. O que vai acontecer? No

fim, vão falar que o professor não ensinou, que o professor não foi atrás desse aluno, que

o professor não deu oportunidade. Eu vou atrás. Eu falo, eu converso, então, a gente

coloca este lado aí, né?

6) Você recebe algum tipo de apoio da escola para organizar seu trabalho de sala de aula?

Qual? Por outro lado, existe alguma ação da escola que dificulta seu trabalho? Qual e por

quê?

A escola apóia muito alguns trabalhos nossos, ela ajuda no que pode. Quando ela não

tem meios, chega e fala pra gente. Mas, aqui na escola a gente tem muito apoio da

direção. Pelo menos, comigo. O que eu sinto dificuldade, às vezes, é principalmente no

laboratório porque eu chego, às vezes, o laboratório está sujo, está bagunçado, aí, eu

falo, aí é difícil a direção estar correndo atrás. Aí, a gente cansa, porque eu arrumo o

laboratório, faço as coisas, consigo acontecer. Às vezes, ele é usado por outros

professores, também, tem, por exemplo, química, estas coisas, usa o laboratório e, às

vezes, eu sinto dificuldades nesta parte aí. E a sujeira, que a gente pede, né, e quando vai

ver, está tudo sujo, os alunos sentados em mesas sujas, isto aí me irrita um pouco, porque

a gente quer sentar num lugar agradável.

Eu acho que não tem uma coisa, assim, que a direção dificulta, o que acontece é que a

direção, às vezes, vem falar pra gente que, por exemplo: “O aluno, chega no final do

ano, vocês têm que tentar fazer de tudo para o aluno passar”. Mas, não é, às vezes, a

própria direção, são coisas que vêm lá de cima pra cair em cima deles e daí els falam

isto prá gente e nós, professores, acabamos ficando meio irritados, chateados, porque

você faz um trabalho o ano todo e o seu trabalho é jogado no lixo. Eu falo para os meus

alunos: “Vocês não estão passando comigo, se vocês passaram sem saber nada, o

governo é que está passando”. Porque os alunos vêm, perguntam mesmo prá gente: “Por

que o Fulano passou se ele não fez nada o ano inteiro?”. Eles mesmos ficam pensando,

né? Eu, na minha matéria, dou todas as oportunidades possíveis, né?

156

Então, assim, a gente tem um certo apoio da direção. Tem a preocupação com a

interdisciplinariedade. A direção está preocupada, mas os próprios professores observam

tudo, não todos, mas alguns vão tentando dar um jeito. Porque é complicado no Estado

por causa das mudanças de professores, às vezes, os professores não conseguem se

reunir porque têm que dar muita aula, então, tem estes problemas aí que são meio

complicados, mas, quando a gente tenta, a gente tenta fazer o máximo para ver as coisas

andarem direito, mas, não é fácil, é bem difícil, às vezes.

7) E em relação às famílias destes alunos, você identifica algo que dificulte ou facilite seu

trabalho em sala de aula?

Ah, têm alguns que dificultam. Principalmente quando você vai pedir para fazer algum

trabalho fora da classe. Aí vêm os pais reclamar. Ou, se você tem que pedir algum

material, por exemplo, mesmo o jornal, que é um trabalho super importante, já veio pai

falar que não consegue arrumar jornal. Eu falei assim: “Mas, você tem que ensinar seu

filho a ler um jornal, pelo menos. Não tem, pega no vizinho, quanto jornal é jogado fora,

é usado para outras coisas?”. E outros, não, outros pais vêm aqui na escola para ajudar:

“Você quer uma ajuda?”. Então, a gente tem os dois lados, mas eu acho que a família

está cada vez mais distante, a família está entregando o aluno na nossa mão e falando

assim, ó: “Vocês eduquem, façam o que vocês quiserem”. Eu sinto isto, que o que os pais

estão fazendo dificulta o nosso trabalho porque o certo era eu, professora, dar conteúdo,

ensinar o que é importante para a vida, e não ficar educando, que é o que eles deveriam

fazer. Às vezes, eles vêm para cá e deixam na mão da gente para educar.