ConJur - Entrevista_ Reinhard Zimmermann e Jan Peter Schmidt, Juristas

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  • 3/3/2015 ConJur - Entrevista: Reinhard Zimmermann e Jan Peter Schmidt, juristas

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    INCERTEZAS JURDICAS

    1 de maro de 2015, 9h02

    PorOtavio Luiz Rodrigues JunioreSrgio Rodas

    O Poder Judicirio brasileiro faz usopeculiar das clusulas gerais do CdigoCivil, como a que exige a boa-f nosnegcios jurdicos e a que garante afuno social do contrato. Com isso,decises entram em choque com as leis,pois juzes as fazem com base nas suasvises de mundo. Essa a opinio dojurista alemo Jan Peter Schmidt,pesquisador do Instituto Max-Planck deHamburgo. Para ele, o Brasil deveriarever a funo desses princpios eclusulas gerais.

    O objetivo dessas clusulas no dar poder ao juiz para prevalecer sobre olegislador. A funo delas permitir que o juiz tome decises razoveisquando houver uma lacuna na legislao, para que, por exemplo, quando nohouver normas, ele possa encontr-las nas clusulas gerais, que podem gui-lonessa direo, afirma Schmidt.

    Em dezembro de 2014, ele falou sobre o princpio da boa-f objetiva no Ciclode Estudos de Direito Privado Contemporneo, organizado pelo Departamentode Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo e pelaRede de Pesquisa de Direito Civil Contemporneo, que congrega seteuniversidades brasileiras e duas europeias. O evento foi coordenado peloprofessor titular Ignacio Poveda, secretrio-geral da USP, e pelo professordoutor Otavio Luiz Rodrigues Jr, tendo contado a presena de mais de 30professores de Direito Privado de diversas regies do Brasil, alm uma centenade estudantes de graduao e ps-graduao.

    "Princpios do Cdigo Civil no autorizam juiza atropelar a lei"

    Zimmermann (esq.) e Jan Schmidt (dir.)

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    O destaque do evento foi o professor Reinhard Zimmermann, catedrtico daUniversidade de Ratisbona, diretor do Instituto Max-Planck de Hamburgo eestudioso do Direito Romano e do Direito Privado Europeu moderno.Zimmermann considerado um dos maiores nomes do Direito PrivadoComparado no mundo e exerce importantes funes pblicas ligadas pesquisa e docncia na Alemanha, alm de ter sido homenageado na fricado Sul por seu papel na luta contra o apartheid nos anos 1980. Em So Paulo,ele foi recebido pelo reitor da Universidade de So Paulo, Marco Antonio Zago.Zimmermann falou sobre a dificuldade para que sejam criadas normaseuropeias de carter mandatrio para o direito interno dos Estados-membrosda Unio Europeia. Antes disso, preciso restabelecer uma cultura cientficacomum algo que o jurista no acredita que acontecer em breve. Houveuma poca em que muitas pessoas pensavam que ns iramos gradualmenteobter um Cdigo Contratual, ou inclusive um Cdigo Civil comum. E a, nsestaramos em direo a uma Europa com Estados federativos, talvez nomodelo dos EUA. Porm, no momento, h um grande ceticismo em diversospases. Quando tentaram aprovar uma Constituio Europeia em 2005, ainiciativa falhou. Ento, o clima na Europa menos positivo hoje do que foi nopassado, opina o professor.

    Em entrevista revista Consultor Jurdico da qual tambm participouOtavio Luiz Rodrigues Junior, professor doutor de Direito Civil da USP e ex-bolsista do Instituto Max-Planck de Hamburgo , Schmidt e Zimmermanncomentaram as semelhanas e diferenas entre os ordenamentos jurdicos doBrasil e da Alemanha, destacaram a importncia do Direito Romano naformao dos advogados e criticaram a fragmentao do Direito Privado emcdigos especficos.

    A entrevista publicada na ConJur uma verso condensada do contedooriginal, cuja ntegra ser publicada no volume 4 da Revista de Direito CivilContemporneo, de julho-setembro de 2015.

    Leia a entrevista:

    ConJur Quais so as semelhanas e as diferenas, em geral, entre osordenamentos jurdicos do Brasil e da Alemanha?Jan Schmidt Se olharmos para as leis, para a Constituio, para os tribunais,encontraremos muitas semelhanas, especialmente no Direito Privado. Nossatradio , basicamente, a mesma. uma tradio que comea com o DireitoRomano, e, mais tarde, evolui com o desenvolvimento do Direito Romano naIdade Mdia. Toda essa tradio veio da Europa continental para o Brasil.Ento, se um advogado alemo chegar aqui e olhar para o Cdigo Civil

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    brasileiro, ele ir encontrar muitas, muitas semelhanas com o cdigo alemo.A forma de estruturar as leis, a forma de pensar o Direito, os conceitos que sousados, tudo isso muito similar, e podemos dizer que brasileiros e alemespertencem mesma famlia jurdica nesse sentido.

    Por outro lado, h muitas diferenas na forma como o Direito funciona naprtica. Por exemplo, uma significativa diferena, e que tem grande impactona prtica diria, como os processos judiciais no Brasil demoram muitosanos at serem finalmente resolvidos. E o Judicirio brasileiro estsobrecarregado de processos. Em contraste, o Judicirio alemo quandocomparado com os de outros pases, no s com o brasileiro funciona deforma relativamente rpida, e relativamente barato. Ento podemos dizerque o acesso Justia muito mais fcil na Alemanha. No Brasil, grande parteda sociedade tem um acesso muito pequeno Justia, tambm por causa dafalta de recursos financeiros, da falta de conhecimento sobre os direitos queeles possuem. Por isso, eles no podem ir aos tribunais para reclamar seusdireitos, porque eles nem sabem que direitos tm. Ento, nesses aspectos, hmuitas diferenas. A desigualdade social muito menor na Alemanha do queno Brasil.

    ConJur Professor Zimmermann, o senhor estuda as normas da UnioEuropeia. E elas esto se tornando mais complexas, regulando mais matrias.Quais so os limites competncia de legislar da Unio Europeia? E o que reservado aos pases regularem?Reinhard Zimmermann Eu estudo o desenvolvimento do Direito Privadoeuropeu. E o aspecto interessante que ns tivemos um Direito Privadoeuropeu por muitos sculos, que veio do Direito Romano e do DireitoCannico, e que terminou por ter aplicao, ainda que subsidiria, por toda aEuropa. E seu declnio comeou com a era da codificao, quando todos osEstados nacionais codificaram suas leis o Direito francs teve seu Code Civilem 1804, depois vieram os da Itlia e Alemanha, e por a vai. Em 1957, aComunidade Econmica Europeia foi fundada. Desde ento, passo a passo,tentaram desenvolver um mercado interno e hoje ns temos uma moedacomum. Na sequncia, apareceu a questo inevitvel: Ns tambm noprecisamos de um Direito comum, de um Direito Privado comum?,especialmente um Direito Contratual, porque contratos podem ser o veculo docomrcio internacional. E h esforos nesse sentido. Atualmente, existe umprojeto no Parlamento Europeu. Trata-se de um direito opcional de compra evenda, mas no como se fosse um tratado. Ele no se aplicarautomaticamente. As partes precisaro aderir a ele. Se voc ingls e eu soualemo, e ns celebramos um contrato, poderemos querer que este se submeta

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    s normas desse Direito europeu comum de compra e venda.

    ConJur Mas o senhor acredita que um dia haver leis europeias aplicveisautomaticamente a todos os pases, como um Cdigo Civil comum, um CdigoPenal comum? E que os pases somente legislaro sobre assuntos menores,como questes locais?Reinhard Zimmermann Houve uma poca em que muitas pessoaspensavam que ns iramos gradualmente obter esse Cdigo Contratual, ouinclusive um Cdigo Civil comum. Desse modo, ns estaramos em direo auma Europa com Estados federativos, talvez no modelo dos EUA ou dequalquer outro Estado federativo. Porm, no momento, h um grandeceticismo em diversos pases. Quando tentaram aprovar uma ConstituioEuropeia em 2005, a iniciativa falhou. Ento, o clima na Europa menospositivo hoje do que foi no passado. Portanto, no est claro nem seconseguiremos obter um Cdigo Contratual opcional, que apenas um passopequeno. Mas quando voc pergunta se teremos algo como um Cdigo Civileuropeu algum dia, no momento, isso no imaginvel. Atualmente, eu souctico.

    ConJur Hoje a Unio Europeia est sendo contestada, especialmente pelospases que mais sentiram os efeitos da crise econmica, como Grcia, Espanhae Portugal. At mesmo o conflito na Ucrnia foi motivado pela divergncia se opas deveria ou no ingressar na Unio Europeia. Nesse cenrio de crise, osenhor acredita que possvel tornar as leis europeias obrigatrias? E elasdeveriam ser obrigatrias?Reinhard Zimmermann Eu no acredito muito em leis europeiasobrigatrias. Muitas das normas que tivemos foram mal redigidas epoliticamente questionveis. No tivemos muitas experincias boas.Primeiramente, precisamos reconstruir uma cultura europeia comum, umconhecimento europeu comum. Isso porque, no momento, ns temos umasituao na qual advogados alemes tendem a se concentrar no Cdigo Civilalemo, e ter discusses apenas entre eles prprios, e o mesmo ocorre naFrana, na Inglaterra, e por a vai. Somente nos ltimos 20 anos queadvogados, com uma mente mais internacionalizada em termos de DireitoComparado e de Histria do Direito, se abriram e formaram gruposacadmicos para estabelecer princpios comuns e para escrever livros deprecedentes ou de doutrina.

    A situao um pouco parecida com a de 1814. Em 1814, Napoleo havia sidoexilado na ilha de Elba e na Alemanha existiam vrios estados individuais. Em1804, a Frana havia editado seu Cdigo Civil. Ento, na Alemanha de 1814,

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    uns queriam uma unificao legal, outros queriam inclusive uma unificaopoltica. Na Frana, eles tinham esse cdigo incrvel, ns no deveramos terum cdigo para todos os estados alemes, um cdigo comum? Esse era ogrande debate. Nisso, algum disse: Se ns obtivermos um cdigo comumpara a Alemanha, isso tambm impulsionar uma unificao poltica. Osestados iro se unir. Mas a opinio que prevaleceu foi a do jurista alemomais importante at hoje, Friedrich Carl von Savigny. Ele argumentou: No.Vamos esperar at que tenhamos realmente construdo um conhecimentocomum, que tenhamos conceitos comuns, que tenhamos reafirmado nossoDireito de uma maneira que o torne suficientemente firme, que o tornesuficientemente refinado, para da procedermos codificao. Ele defendiaque codificar primeiro e depois desenvolver um conhecimento jurdicocomum seria o caminho errado. Esse mais ou menos o mesmo debate dehoje. Um cdigo, se decretado por Bruxelas, seria visto como um instrumentoimposto de cima para baixo, e eu penso que as coisas dever-se-iamdesenvolver mais organicamente.

    ConJur Direito Romano, atualmente, uma matria optativa na maioria dasfaculdades de Direito do Brasil. Qual a importncia do Direito Romano paraum estudante de Direito do sculo XXI?Reinhard Zimmermann Na Faculdade de Direito da USP no. disciplinaobrigatria. O Direito Romano a base da nossa cultura jurdica. Roma foi anica civilizao antiga que desenvolveu um modelo muito sofisticado deDireito Privado. Esse Direito Privado foi herdado na Europa por meio de umprocesso que chamamos de recepo. Da Idade Mdia em diante, ele seespalhou por toda a Europa. E uma influncia civilizadora e unificadora naEuropa. Ele impulsionou o nvel de sofisticao dos sistemas jurdicoseuropeus a nveis nunca imaginados pelo Direito tribal germnico. Isso se deudevido ao fato de ele ser um Direito aprendido, um Direito sofisticado que eraestudado em universidades. Um Direito que se afirmou por si s. E virou abase para a cultura jurdica predominante na Europa.

    Agora, qual a importncia dele hoje? Por um lado, ele d a viso geral de umsistema jurdico que pode ser estudado com um interessante distanciamentohistrico, e permite ver como um sistema jurdico funciona em certasociedade. Por si s, isso muito interessante. Um sistema jurdico altamentesofisticado no passado, e que no mais parte de nosso presente, onde se podever o que os advogados fizeram, como os textos evoluram, quais eram asnormas jurdicas, a doutrina, quais eram as caractersticas da sociedade etc. Omais importante, porm, que muitas das normas jurdicas e dos conceitosjurdicos ainda esto conosco nos dias atuais. E eles moldaram nossa

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    mentalidade jurdica moderna. Eu acredito que essencial que um estudanteno aprenda apenas as leis de seu pas. Tal se deve porque se voc for olharpara as leis e isso se aplica tanto ao Brasil quanto Alemanha e a todos osoutros pases , se voc aprender Direito alemo, se voc aprender seu prpriosistema, voc se acomodar, pensar que assim que as coisas devem ser. Narealidade, voc s comea a compreender o seu sistema jurdico se o enxergarem comparao a outro. Mas a perspectiva comparativa no suficiente,porque, se voc olhar para o Direito alemo, o Direito italiano, o Direitobrasileiro, o Direito francs etc., ver certos pontos em comum e certasdiferenas. Para entender os pontos em comum e as diferenas, preciso sabercomo eles evoluram. E ento, voc precisa de uma abordagem histrica ecomparativa. No por uma questo de Direito Comparado ou de Histria doDireito, mas por uma questo de se tornar um advogado sofisticado e refinadopara seu prprio sistema jurdico, que entende as leis, que entende se elas soboas leis ou ms leis. Assim, para saber disso, preciso saber por que elasevoluram, como elas evoluram, como isso aconteceu em outros pases, e necessrio, de uma certa forma, tentar adotar uma perspectiva exterior. Essaperspectiva de vital importncia para o aprendizado jurdico, e eu gostariaque houvesse muito mais nfase no currculo nessa matria, e que muitasdisciplinas especializadas fossem suprimidas. Atualmente, as universidadesesto obcecadas em treinar seus estudantes para a prtica, ensinando-lhesmatrias prticas como fuses e aquisies, Direito Societrio 1, DireitoSocietrio 2, Direito Societrio 3, e por a vai. Isso algo que as pessoas voaprender com muito mais facilidade na prtica. Mas elas podem aprendermuito melhor na prtica se tiverem um slido conhecimento geral, umacultura geral do desenvolvimento das normas jurdicas. Eu tive diversosestudantes que escreveram teses de doutorado sobre a histria do DireitoRomano que agora esto comandando divises jurdicas em grandesmultinacionais. Para uma pessoa que tem bons conhecimentos em matriasfundamentais, no problema, mexendo aqui ou ali, para entender os temasda prtica jurdica. Mas, se j na faculdade voc se especializar nesse sentido, apartir dessa especializao, no possvel ir para outra rea. preciso ter abase geral e essa viso histrico-comparativa.

    ConJur O Cdigo Civil brasileiro tem diversas clusulas gerais, como as queestabelecem funo social do contrato e da boa-f. Na opinio do senhor, comoos tribunais brasileiros aplicam essas clusulas?Reinhard Zimmermann - Essa uma questo sobre o Direito brasileiro e melhor que o Jan trate do assunto. Mas, eu gostaria de fazer algumas brevesconsideraes. Na Alemanha, ns tambm temos clusulas gerais. Isso no algo especfico do Direito brasileiro. Ns temos essas clusulas gerais e, claro,

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    elas conseguiram se incutir porque permitem ao juiz ter uma considervelmargem de apreciao dos valores constitucionais. Ns tambm possumosuma constituio com um catlogo de direitos fundamentais e assim pordiante. Nosso Cdigo bastante antigo e quando a Constituio foi promulgadans adotamos a doutrina da Drittwirkung, que significa que a Constituio temeficcia em relao ao Direito Privado, mas por intermdio das clusulasgerais. A maneira como as clusulas gerais so interpretadas no Brasil, peloque ouvi dizer, liga-se ao desenvolvimento da constitucionalizao do DireitoPrivado, a qual me parece foi longe demais. Eu penso que sobre esse tpico oJan pode dizer mais.

    Jan Peter Schmidt As clusulas gerais permitem a constante adaptao doCdigo Civil s mudanas sociais. Por exemplo, se h uma clusula que diz quevoc tem responsabilidade especfica por objetos perigosos, ento possvelaplicar essas regras a situaes envolvendo um novo objeto que no existia napoca em que o cdigo foi promulgado. A norma to aberta que pode serfacilmente aplicvel a uma nova situao. Se, em vez disso, houver umalegislao muito casustica, e, digamos, houver regras especficas para carros,para trens, para avies, no momento em que surgir um novo meio detransporte, ele no se encaixar nessa legislao. Ento, clusulas gerais domuito mais flexibilidade, e, em geral, so ferramentas jurdicas muito teis.Outro exemplo: se houver uma norma proibindo os contratos que violem aordem pblica, os bons costumes, o juiz pode adaptar ou interpretar a situaode acordo com os pontos de vista da sociedade na poca. Na Alemanha, houvecasos na primeira metade do sculo XX em que um testamento por meio doqual uma pessoa no deixava seus bens para sua famlia, mas para seu ou suaamante, era considerado pelos juzes como contrrio aos bons costumes e, porisso, declarado nulo. Em nossa poca, essas opinies, esses pontos de vistamudaram, ns somos muito mais liberais, ento a viso da maioria no maisto ctica. Atualmente, o juiz declarar vlido o testamento. Veja, a norma nomudou nada, ainda a norma que diz que, no Direito Contratual, umatransao jurdica, um negcio jurdico, que viole os bons costumes nulo, eela poder ser interpretada diferentemente em pocas diferentes. Isso maisuma vantagem da flexibilidade.

    Mas, claro, as clusulas gerais tm uma grande desvantagem, na medida emque elas criam incerteza jurdica e talvez deem muito poder ao juiz. Dito deoutro modo: talvez as clusulas no deem tanto poder ao juiz, mas o juiz podeacreditar que agora ele tem muito poder. Ento, ele pode ir longe demais nosseus poderes discricionrios. E isso algo que pode ser observado hoje em diaem alguns tribunais brasileiros, quando determinados juzes revelam uma

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    certa tendncia a desprezar as normas especficas que foram promulgadaspelo legislador, e, em vez disso, preferem se basear diretamente no princpioda boa-f, por exemplo, e recorrer a ele para solucionar o caso, mesmo se asoluo for contrria ao que a norma especfica diz. Ento, na realidade, elesinvertem as decises que o legislador tomou. E o objetivo das clusulas no dar poder ao juiz para prevalecer sobre o legislador. A funo delas permitirque o juiz tome decises razoveis quando existir uma lacuna na legislao,para que, por exemplo, quando no houver normas, ele possa encontr-las nasclusulas gerais, que podem gui-lo nessa direo. Ainda h algum trabalho aser feito quanto a isso. tambm muito importante que a doutrina jurdicaajude os tribunais nesse aspecto, elabore a fundamentao terica para o usocorreto das clusulas gerais, de forma que haja equilbrio entre a equidade,entre decises justas, e decises que fazem a justia no caso concreto, mastambm que garantam um nvel suficiente de segurana jurdica. Nestemomento, eu observo uma forte preferncia dos juzes brasileiros pelaequidade, pela deciso supostamente equitativa, muitas vezes em detrimentoda segurana jurdica. preciso restaurar o equilbrio, at porque a justasoluo em um caso concreto, muitas vezes, depende da opinio do juiz, e oque ele considera uma soluo justa pode ser difcil de justificar sob um pontode vista objetivo. Frequentemente, voc pode encontrar decises que so, narealidade, muito injustas, porque elas concedem um privilgio a uma pessoaespecfica em detrimento de diversas outras. Alguns juzes brasileiros, svezes, podem revelar uma viso muito estreita de algumas questes. Elesapenas olham para o caso concreto e buscam oferecer justia a essa pessoaespecfica, mas esquecem que as consequncias para a sociedade como umtodo podem ser negativas.

    ConJur Professor Jan Peter Schmidt, o senhor escreveu uma tese sobre oprocesso de codificao civil no Brasil. H no Congresso Nacional um projetode um novo Cdigo Comercial, que unificaria diversas leis sobre o assuntoexistentes no pas. Qual a opinio do senhor sobre isso?Jan Schmidt Mesmo sem ter estudado esse projeto em detalhe, sou crticodessa iniciativa por uma srie de razes. A ideia de ter um cdigo civil ecomercial unificado , na realidade, muito moderna. Muitas jurisdies, tantona Europa quanto na Amrica Latina, adotaram essa ideia. O ltimo exemplo o Cdigo Civil e Comercial da Argentina, que foi promulgado em setembro de2014. H vrios argumentos em favor dessa soluo, que j foramapresentadas por Augusto Teixeira de Freitas no sculo XIX. mais coerente, mais simples Na realidade, muito difcil justificar a soluo separada, acodificao separada do Direito Comercial. A codificao separada do DireitoComercial, que ainda encontramos em muitos pases, como Alemanha e

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    Frana, por exemplo, existe mais por razes histricas. Tal se deve porque, naIdade Mdia, o Direito Comercial se desenvolveu autonomamente como umamatria a princpio no regulada pelos Estados, e sim como um Direito que oscomerciantes criaram para eles.

    No caso brasileiro, h outro detalhe interessante: desde o tempo de Teixeira deFreitas, ento durante quase 150 anos, o Brasil havia almejado ter um cdigounificado. Com o Cdigo de 2002, o sonho finalmente virou realidade. O fato deque pouco mais de dez anos depois alguns j querem dar volta atrs, algoque expressa, de maneira bastante eloquente, uma certa obsesso brasileiracom a reforma de cdigos inteiros, apesar de a experincia mostrarclaramente as dificuldades e os riscos que isso implica. Tanto o Cdigo Civil de1916 quanto o Cdigo de 2002 foram adotados somente depois de processoslegislativos muito longos e complicados, e em ambos casos a qualidade sofreupor isso. A lio a ser aprendida disso, que tambm confirmada pelaexperincia de outros pases, que, no tema da reforma legislativa, melhorproceder com pequenos passos e no querer fazer tudo ao mesmo tempo.Compreendo que os comercialistas no estejam satisfeitos com algumas regrasdo Cdigo Civil. Mas, no vejo porque esses problemas no poderiam sersolucionados por intermdio de reformas pontuais. De onde vem anecessidade de um novo Cdigo e quem garante que as regras dele seriam deuma melhor qualidade?

    Alis, h uma discusso semelhante na rea do Direito de Famlia, onde soubeque existe um projeto para a criao de um Cdigo das Famlias. Contra essaideia podem ser invocados basicamente os mesmos argumentos que osutilizados contra um novo Cdigo Comercial. No preciso ser um profetapara predizer que o projetado Cdigo das Famlias, por causa da amplitude ecomplexidade do tema, conteria muitas falhas tcnicas e criaria muitocontradies em face de regras do Cdigo Civil. Se se acha que o Direito dafamlia precisa de reformas, faam-se ento essas reformas dentro do CdigoCivil. O Cdigo Civil sempre respeitou a autonomia principiolgica do Direitode Famlia. No necessrio ter um Cdigo autnomo para isso.

    Reinhard Zimmermann Se voc olhar para o Direito Privado, h relaesnegociais consumeristas, e se voc tir-las e coloc-las em um cdigoespecfico, voc ter um cdigo do consumidor especializado. E se voc tirar osnegcios jurdicos de natureza comercial, voc ter um cdigo comercialespecializado. E ento, o que sobra? O que sobra do Direito Privado, do ncleodo Direito Privado? No muita coisa, apenas certas relaes negociais decarter no comercial entre indivduos. E isso significa a completa

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    desintegrao do Direito Privado. Trata-se de algo para se arrepender, alm deser contra a corrente geral do desenvolvimento em termos comparados nosdias de hoje.

    ConJur Professor Reinhard Zimmermann, o senhor morou na frica do Sulnos tempos do apartheid. Gostaria que contasse um pouco sobre sua vivncianaquele pas e de sua experincia como professor l em tempos to difceis.Reinhard Zimmermann Eram tempos difceis na frica do Sul. Existia oapartheid universitrio. Ou seja, havia universidades para brancos,universidades para negros, universidades para indianos. Eu estava em umauniversidade para brancos. E as universidades para brancos eramsubdivididas entre as para os descendentes dos imigrantes holandeses, osberes, e as universidades inglesas. Estas e a University of Cape Town[Universidade da Cidade do Cabo], onde eu estava, eram as mais influentes.Elas possuam um esprito liberal ingls. A universidade se opunha ao regimedo apartheid. Embora a universidade fosse destinada aos brancos, havia umacota, o que significava que o governo tinha o poder de estabelecer cotas paraestudantes que no eram brancos em universidades para brancos. Masnenhuma cota jamais foi estabelecida. Ento, na realidade, ns ramos livrespara aceitar estudantes negros. E, durante o meu perodo na University ofCape Town, o nmero de estudantes negros aumentou consideravelmente. Era,porm, muito difcil, porque a maior parte das escolas para negros era dequalidade inferior asa das escolas para brancos. Ento, os estudantes negroschegavam despreparados minha universidade e ns tnhamos de baixarnossos padres. Ora, se quisssemos um nmero significativo de estudantesnegros, teramos duas opes: baixar os padres de qualidade acadmica ousuprir aquilo em que as escolas secundrias haviam sido falhas em suasatribuies. Fizemos a escolha, ao meu ver, certa: ns introduzimos cursosespecficos, o que fazia com que a maioria dos estudantes negros quedesejvamos ver aceitos na universidade tivesse de estudar dois anos a maispara chegar ao nvel que queramos que eles tivessem. Isso era visto comodiscriminao: Por que os negros tm que estudar mais tempo do que osbrancos?, e por a vai. Ento, havia todos esses tipos de problemas, quando,na verdade, nosso desejo era permitir que mais negros tivessem acesso universidade mas sem comprometer os nveis de qualidade acadmica.

    ConJur Os estudantes negros tinham de pagar pela faculdade?Reinhard Zimmermann Os estudantes tinham de pagar para estudar nauniversidade. Note que a University of Cape Town uma universidadeprivada, embora receba muito dinheiro do Estado. Ela tinha mensalidades,mas tambm bolsas de estudo. Havia bolsas de estudo particularmente para

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    estudantes negros. Ento, ns tnhamos um nmero crescente de estudantesnegros, mas a prxima questo era onde eles podero morar?. Ns ramosuma universidade com estrutura para residncia estudantil. As pessoasmoravam no campus, em residncias estudantis que foram reservadas parabrancos por efeito da lei que estabeleceu o territrio de cada grupo tnico.Ento, negros tinham de viver fora da universidade. A University of CapeTown estava em uma rea de brancos. Mas, na realidade, ns permitimos quetodos os nossos estudantes morassem no campus e o governo fechou os olhospara isso.

    Em 1986, as coisas ficaram realmente ruins quando foi decretado estado deemergncia e o Estado de Direito foi abolido. Quando eu residia na Cidade doCabo, eu sempre pensava: O que fazer quando se est vivendo em umasociedade injusta? e tambm me indagava: Ns podemos funcionarnormalmente em uma situao anormal?

    Eu sempre pensei, no entanto, que seria positivo se existissem fachos de luz,onde ns providenciaramos a educao de acordo com os valores liberais,com base na neutralidade poltica, nos direitos humanos e no Estado deDireito. Eu acreditava que era muito importante que ns instilssemos essesvalores, pois algo iria crescer a partir da. Mas se tornou mais difcil manteressa ideia quando o Estado de Direito foi abolido. Nessa poca, eu era o decanoda minha faculdade e presidente da South African Law Teachers Association[Associao Sul-Africana de Professores de Direito]. Na ocasio, era meu desejoque a South African Law Teachers Association protestasse contra o fato de queo Estado de Direito havia sido suprimido. Ns elaboramos uma resoluodizendo apenas que: Se pregarmos na universidade algo que no sejacondizente com o mundo real, com o que acontece l fora, tal situaoprejudicar nossa posio como professores de Direito. Isso no foi levadoadiante, e eu deixei o cargo. Minha deciso baseou-se na seguinte reflexo: nostempos de Hitler, na Alemanha, quando os advogados no disseram nadaquando havia violncia e os judeus estavam sendo assassinados, o sistemajurdico se corrompia, os advogados e a maioria das organizaes oficiais deadvogados ficaram quietos. Mas mesmo dentro da nossa universidade, nstnhamos diversas discusses nessa poca sobre o que fazer diante desseproblema. Havia dois slogans. Um deles era Libertao antes de educao.Ns no podemos ensinar em uma sociedade anormal e nesse estado deemergncia. Primeiro preciso haver libertao, e, a, ns poderemos educarapropriadamente. Eu estava sempre no lado ligeiramente mais conservador daminha universidade, dizendo No! muito importante que continuemos aeducar da melhor forma que pudermos. E a, por meio da educao, podemos

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    chegar a situao na qual os novos valores triunfem sem uma revoluoviolenta. Houve semanas em que a polcia foi ao campus, os estudantesprotestaram e foram presos. Aqueles foram dias selvagens.

    ConJur Em 2006, o senhor recebeu um doutorado honoris causa daUniversity of Cape Town em reconhecimento a sua contribuio restauraodo estado de direito durante o apartheid. O que esse ttulo significa para osenhor?Reinhard Zimmerman Bem, como um acadmico, normalmente algomuito especial receber uma distino universitria como essa. Como poltico,voc tambm pode receber um diploma honorrio como reconhecimento deseus feitos polticos. Nesse caso, quando eu fui para a frica do Sul, eu era umestrangeiro, um alemo, e sempre um pouco estranho interferir na polticado Estado que lhe acolheu, por razes bvias. Em primeiro lugar, eu apenascumpri meu dever como acadmico: ensinei e pesquisei. Mas, em seguida,quando eu fui eleito para cargos de responsabilidade de direo universitriae como presidente da Associao de Professores de Direito da frica do Sul,para a qual fui eleito porque eu poderia servir de ponte entre as comunidadesde lngua inglesa e africner, eu tive de assumir posies pblicas. Isso algoque sempre tentei sustentar como professor: em nossa condio temos deprofessar alguma coisa, temos que professar valores, professar uma certaintegridade moral e jurdica, ns temos de fazer nosso melhor para preservara integridade do sistema jurdico. Bem, e foi isso que eu tentei fazer. Emmuitas ocasies, enfrentei resistncias de setores mais radicais. Em relao aeles eu argumentava que no poderamos agir do mesmo modo que oGoverno. Nossas prticas tinham de ser diferentes. Nesse aspecto, eu tivemuita sorte de conviver em uma comunidade acadmica formada por colegasque tambm eram amigos. Havia diferenas entre ns, mas elas eramresolvidas por meio do dilogo. Ns podamos confiar uns nos outros, o queera muita coisa em um tempo no qual ns ramos vigiados e nossos telefonesmonitorados. Esse ttulo de doutor honoris causa, por tudo isso, muitoespecial para mim.

    Otavio Luiz Rodrigues Junior professor doutor de Direito Civil da Faculdadede Direito da Universidade de So Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP),com estgios ps-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institutfr auslndisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-oem sua pgina.

    Srgio Rodas reprter da revista Consultor Jurdico.

    Revista Consultor Jurdico, 1 de maro de 2015, 9h02

  • 3/3/2015 ConJur - Entrevista: Reinhard Zimmermann e Jan Peter Schmidt, juristas

    http://www.conjur.com.br/2015-mar-01/entrevista-reinhard-zimmermann-jan-peter-schmidt-juristas?imprimir=1 13/13