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RESUMO TEÓRICO-METODOLÓGICO CONSTRUÇÃO NACIONAL E CIDADANIA, DE REINHARD BENDIX Pedro Leonardo Medeiros I. REINHARD BENDIX: TRAJETÓRIA SOCIAL E PRODUÇÃO INTELECTUAL Nasceu em Berlim, em 1916, numa família de “classe média alta” (REIS, 1996, p. 14), filho de um renomado jurista de origem judia, Ludwig Bendix. A mãe, Else Bendix, havia estudado teatro e passava aos filhos o gosto por essa arte, bem como pela ópera e piano. Reinhard teve contato bastante precoce, por meio de seu pai, com autores clássicos alemães como Lessing, Schiller, Goethe, Hölderlin e Kleist, assim como com autores das Ciências Sociais, como Marx e Mannheim (ibidem, p. 15). Esse ambiente da infância e adolescência de Reinhard é destruído pela ascensão do nazismo, com a decorrente prisão de seu pai e com a necessidade de deixar a Alemanha (ele é expulso do Gymnasium, em Berlim). Após um ano na Inglaterra e uma tentativa de se restabelecer na Alemanha (quando fez parte de organizações antinazistas, como Neu Beginnen e HaShomer HaZair), Bendix emigra, como tantos outros judeus alemães, para os Estados Unidos, em 1938. Uma vez no novo país, Reinhard inicia os estudos superiores no Departamento de Sociologia, da Universidade de Chicago, em meio à atmosfera intelectual da chamada “Segunda Escola de Chicago”, de professores como Blumer, Wirth, Everett Hughes, Lloyd Warner, Janowitz e Shils (BENDIX & COLLINS, 1998, p. 298). A opção pela Sociologia,

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RESUMO TEÓRICO-METODOLÓGICOCONSTRUÇÃO NACIONAL E CIDADANIA, DE

REINHARD BENDIXPedro Leonardo Medeiros

I. REINHARD BENDIX: TRAJETÓRIA SOCIAL E PRODUÇÃO INTELECTUAL

Nasceu em Berlim, em 1916, numa família de “classe média alta” (REIS, 1996, p. 14), filho de um renomado jurista de origem judia, Ludwig Bendix. A mãe, Else Bendix, havia estudado teatro e passava aos filhos o gosto por essa arte, bem como pela ópera e piano. Reinhard teve contato bastante precoce, por meio de seu pai, com autores clássicos alemães como Lessing, Schiller, Goethe, Hölderlin e Kleist, assim como com autores das Ciências Sociais, como Marx e Mannheim (ibidem, p. 15). Esse ambiente da infância e adolescência de Reinhard é destruído pela ascensão do nazismo, com a decorrente prisão de seu pai e com a necessidade de deixar a Alemanha (ele é expulso do Gymnasium, em Berlim). Após um ano na Inglaterra e uma tentativa de se restabelecer na Alemanha (quando fez parte de organizações antinazistas, como Neu Beginnen e HaShomer HaZair), Bendix emigra, como tantos outros judeus alemães, para os Estados Unidos, em 1938.

Uma vez no novo país, Reinhard inicia os estudos superiores no Departamento de Sociologia, da Universidade de Chicago, em meio à atmosfera intelectual da chamada “Segunda Escola de Chicago”, de professores como Blumer, Wirth, Everett Hughes, Lloyd Warner, Janowitz e Shils (BENDIX & COLLINS, 1998, p. 298). A opção pela Sociologia, segundo o próprio Bendix, foi uma “maneira de dar continuidade aos estudos humanistas que o atraíam desde o curso secundário em Berlim” (REIS, 1996, p. 16). Sua dissertação de Mestrado, em Chicago, tratou do pensamento social alemão; seu Doutorado, da alta burocracia americana, mas já apresentando uma preocupação comparatista, neste caso, com a Alemanha.

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Concluído o doutoramento em Chicago, e após um ano trabalhando na Universidade do Colorado, Bendix ingressa no Departamento de Sociologia da Universidade da Califórnia, em Berkeley, em que permaneceria até a morte. Nas palavras de seu aluno, Guenther Roth, “Bendix ajudou a institucionalizar áreas de especialização no pós-guerra, como sociologia industrial, estratificação, organizações formais (burocracia), teoria da modernização e, finalmente, uma forma comparativa de sociologia histórica” (Guenther Roth apud REIS, 1996, p. 16).

O impacto de Bendix não ocorreu apenas por meio de suas obras teóricas, mas, sobretudo, por conta de sua atuação na construção institucional da Sociologia americana e de seu papel marcante como professor: foi presidente da American Sociological Association, em 1969-70, e vice-presidente da International Sociological Association, de 1966 a 1970, além de atuar como diretor dos programas de intercâmbio cultural entre a Universidade de Berkeley e instituições alemães; formou gerações de sociólogos e cientistas políticos até o final de sua vida, falecendo exatamente após terminar um seminário para uma turma de graduação (REINHARD BENDIX, 75, A SOCIOLOGIST, IS DEAD, 1991).

Como um judeu alemão exilado nos Estados Unidos – e dividido, portanto, entre diferentes tradições culturais – Bendix esteve sempre inclinado, desde seus primeiros trabalhos acadêmicos, até os seus últimos, à empreitada comparatista: seu trabalho de doutoramento, como já dito, tratava do comportamento da alta burocracia norte-americana, contrastando-o com o da alemã; seu livro de memórias, From Berlin to Berkeley, German-Jewish Identities, uma de suas últimas publicações, de 1986, explora os embates étnicos e geracionais de sua família, espremida entre a cultura alemã clássica e o judaísmo, assim como, posteriormente, com a cultura norte-americana. O próprio Reinhard reconhecia seu interesse na comparação como um “subproduto natural de sua biografia” (Bendix apud BENDIX & COLLINS, 1998, p. 310).

O interesse pela história e historiografia, por sua vez, vem desde sua primeira formação intelectual, ainda na adolescência, quando, tutorado pelo pai, lia e meditava sobre autores clássicos alemães, como Dilthey, procurando, à sua maneira, responder às questões típicas do historicismo alemão. Sobre a diferenciação entre as ciências da natureza e as da cultura, por exemplo, o jovem Bendix, então aos 16 anos, comentava:

“Sendo que a pessoa pensante não consegue nunca se libertar de seu envolvimento social com uma realidade sócio-histórica sempre em mudança e desenvolvimento, o resultado natural é que tal envolvimento impeça de se adquirir uma ‘visão objetiva total’, permitindo apenas algumas visões

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pequenas e parciais [...] a solução [para tal problema] vai na mesma direção que Dilthey introduziu em primeira mão em nosso pensamento [...] na tarefa de pesquisar as formas reais, conteúdos e razões de todos os tipos de mentalidade e pensamento, para então descrevê-los; ou seja, a ‘solução’ reside numa ciência puramente descritiva de uma tipologia dos pontos de vista parciais” (ibidem, p. 304-5; tradução minha).

Pode-se ver como a posição de Bendix já possui conexões com a de Weber, autor com o qual ele só entraria de fato em contato nos Estados Unidos, ressaltando que, em vez de um weberiano, é mais preciso dizer que Reinhard era, assim como Weber, o produto de uma mesma tradição intelectual alemã, tradição esta responsável por uma série de “afinidades eletivas” entre eles, sem excluir, contudo, uma série de diferenças, entre elas o estatuto da “generalização” para cada um dos dois sociólogos (sendo Reinhard mais cético e comedido do que Weber quanto a esse ponto).

O interesse pela história e, seguindo o historicismo alemão e Dilthey, pela “experiência individual” tornavam Bendix bastante impaciente diante de conceitos por demais amplos e vagos:

“[Deve-se] pensar em termos de conceitos aplicáveis a algumas (em vez de a todas) sociedades. Essa estratégia de análise provém da crença de que os conceitos de universais – mesmo que úteis para certos fins orientadores – são tão vazios de conteúdo que requerem especificações a fim de poderem ser aplicados a um corpo de evidências, e essas especificações são conceitos de aplicabilidade mais limitada. Exemplos: agregação de interesses é um conceito universal, enquanto classe, Estado, partido político etc. são mais limitados; administração é universal, mas administração por discípulos ou por burocratas ou por servos patrimoniais são limitados; e assim vai” (ibidem, p. 309-10; tradução minha).

A história, nesse sentido, deve servir para especificar e circunscrever os fenômenos e conceitos: “os cientistas sociais não devem se satisfazer com a observação de qualquer fato particular sem dar atenção para as limitações de ordem cultural, cronológica ou outras desse mesmo fato” (ibidem, p. 305; tradução minha). Daí Bendix enxergar pouca utilidade numa dicotomia abstrata como “tradição e modernidade”, criticando-a e repensando-a em Construção nacional e cidadania. Mesmo com relação aos tipos ideais, Bendix procurava manter certa cautela – ainda que os considerasse essenciais à pesquisa comparativa –, preferindo tratá-los menos como generalizações do que como programas ou direções para a pesquisa.

Por fim, segundo sua visão, o principal papel da análise comparativa seria o de “afiar o nosso entendimento dos contextos em que inferências causais mais detalhadas podem ser traçadas. Sem um conhecimento desses contextos, a inferência causal pode pretender um nível de generalidade ao qual ela não está habilitada. Por outro lado, estudos comparativos não devem tentar substituir a análise causal, porque eles conseguem lidar apenas com alguns

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casos e não são capazes de isolar facilmente variáveis (como a análise causal deve fazer)” (ibidem, p. 309; tradução minha).

A sociologia histórico-comparada de Reinhard Bendix é representada principalmente por três principais obrais: Work and Authority in Industry, publicado em 1956; Nation-Building and Citizenship, de 1964; e Kings or People, este de 1978. Conforme têm salientado mais de um analista, esses três trabalhos podem ser analisados como um continuum, em que “a ênfase na singularidade das experiências históricas se acentua em detrimento de uma preocupação com as generalizações” (REIS, 1996, p. 18).

Em Work and Authority in Industry, o objeto de estudo são os discursos de legitimação da disciplina fabril, na Rússia, Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos. O objetivo de Bendix, nessa obra, é o de encarar as ideologias empresarias da industrialização como “respostas variáveis ao problema funcional da necessidade de disciplinar o trabalho” ou, de maneira mais ampla, “ao problema mais básico da legitimação da autoridade pública ou privada, da burocratização do trabalho e, no limite, do equacionamento do problema da liberdade” (ibidem, p. 18).

O geral ou universal, portanto, reside na gama de problemas e desafios comuns que diferentes sociedades (ou civilizações) têm de enfrentar (a divisão do trabalho ou dos recursos sociais, por exemplo), sendo as respostas a tais desafios sempre históricas e, por isso, mesmo, específicas e circunscritas (daí a utilidade limitada de conceitos muito amplos e com pretensão universalista, como “tradição” e “modernidade”).

Construção nacional e cidadania (Nation-Building and Citizenship), a segunda obra dessa “trilogia” de sociologia histórico-comparada, parte do mesmo princípio de Work and Authority: estabelecer uma questão universal (ou, pelo menos, uma questão que se impõe a diversas sociedades) para, daí, descobrir as respostas particulares que os diferentes agrupamentos humanos lhe deram (sempre em função, é claro, de suas especificidades culturais, de sua “tradição”). Confronta-se, para isso, pares de casos contrastantes: Europa ocidental e Rússia; Japão e Alemanha; além da Índia, como exemplo da singularidade e do peso das condições históricas na especificação de um processo geral ou universal.

O objetivo maior, nesse trabalho, é o de “apresentar uma alternativa mais satisfatória às versões francamente evolucionistas do processo de modernização”, salientando que “toda e qualquer sociedade combina de forma singular o tradicional e o moderno”, e forçando, assim, o conceito de “desenvolvimento” ou “modernização”

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a ser construído como um tipo ideal (ibidem, p. 20). Tratar-se-á mais desta obra a seguir.

Em Kings or People, os objetivos da comparação tornam-se ainda mais individualizadores: trata-se, seguindo o modelo weberiano nas análises sobre a singularidade ocidental, de saber “por que no Ocidente teve lugar originalmente a substituição da autoridade dinástica pela soberania popular” (ibidem, p. 21). A grande questão geral, como nos trabalhos anteriores, continua sendo a da legitimação da ordem social – neste caso, da autoridade pública –, enfocando a singularidade das sociedades ocidentais em relação às demais, no que diz respeito à resposta que deram àquela grande questão.

Após esse breve resumo da trajetória social e da produção intelectual de Reinhard Bendix (ao menos no que diz respeito aos trabalhos de sociologia histórico-comparada), passemos ao detalhamento da metodologia utilizada em Construção nacional e cidadania: estudos de nossa ordem social em mudança, livro que, como vimos, ocupa a posição intermediária no continuum das obras de Bendix dedicadas à comparação.

II. RESUMO METODOLÓGICO

II.1. Problema e hipótese

O livro parte do que podemos chamar uma preocupação prática: o esforço de construção de uma comunidade política nacional e de uma economia industrializada nos países que se tornaram independentes após a Segunda Guerra Mundial (tema bastante em voga nos anos 1960, quando Construção nacional foi publicado). Dessa preocupação prática, deriva-se um problema teórico: se tomamos como pressuposto que tais esforços de construção nacional dos países recém-independentes dos anos 1960 podem ser comparados com aqueles dos países ocidentais dos séculos XVIII e XIX, então podemos de fato analisar ambos os processos segundo os mesmos termos?

Segundo Bendix, até aquele momento, os cientistas tinham respondido a essa pergunta de forma afirmativa: “confiando no progresso da humanidade, eles aderiram à teoria da evolução social que postulava estágios pelos quais devem passar todas as sociedades” (p. 35). Contudo – e o processo de construção estatal dos países “subdesenvolvidos” colaborou para colocar essa questão na

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agenda teórica dos cientistas sociais –, tal crença na universalidade dos estágios evolutivos foi gradualmente abalada e substituída pela “compreensão de que o momentum dos eventos passados e a diversidade das estruturas sociais conduzem a diferentes caminhos de desenvolvimento, mesmo quando as mudanças de tecnologia são idênticas” (p. 35).

Essa ênfase na especificidade dos casos individuais fez com que as teorias etapistas cedessem terreno aos estudos comparativos sobre a modernização econômica e política. É nesta última corrente que se enquadra o trabalho de Bendix. A partir de uma crítica radical dos pressupostos das teorias evolucionistas e neo-evolucionistas do processo de modernização, embutidos na dicotomia tradição/modernidade, ele elabora uma abordagem em perspectiva (p. 371), que trata as rupturas do século XVIII como um fenômeno histórico, portanto espacial e temporalmente circunscrito, e não como um efeito de leis anistóricas, estejam elas ligadas ao “desenvolvimento das forças produtivas” ou ao “equilíbrio homeostático dos sistemas sociais”. Vejamos em que consistem as duas formas de abordar a modernização e como elas se opõe.

Um simples esboço de uma história das idéias do final do século XVIII e começo do XIX será suficiente para mostrar que, por debaixo das oposições ideológicas (entre conservadores e liberais; revolucionários e reformistas; restauradores e republicanos), havia um profundo consenso de que assistia-se, então, a uma nova era da civilização ocidental, em que as antigas relações sociais declinavam rapidamente, dando lugar a um futuro no mínimo inquietante, pois radicalmente diferente de todo o passado da civilização. No centro dessa perplexidade, estavam, evidentemente, a industrialização e suas conseqüências, em particular, a “questão social”, com a formação de uma imensa mão de obra livre e assalariada a viver em centros urbanos cada vez mais populosos.

Um tópico constante nas discussões intelectuais do período, mostra Bendix, era o da divisão do trabalho e seus supostos efeitos, negativos ou positivos, sobre a natureza do “homem”. Pinçando discursos do período – de eruditos franceses, alemães, ingleses e norte-americanos –, procura-se enfatizar o grau de penetração dessas idéias e preocupações por todo o mundo industrializado ou em contato com a efervescência cultural daí decorrente. Após esses exemplos, conclui Bendix:

“Os exemplos que citei sugerem que, a partir do final do século XVIII, os homens de letras tornaram-se profundamente preocupados com aquilo que consideravam a crise moral nas relações humanas, surgida pelo advento da indústria. [...] Möser e Goethe, ou De Bonald e Proudhon, estavam profundamente divididos em suas opiniões políticas mas, não obstante isso, baseavam sua oposição à sociedade industrial em fundamentos que são surpreendentemente muito semelhantes. A indústria depende da divisão do

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trabalho, e à medida que essa divisão progride os homens deixam de ser mestres das máquinas que usam, tornando-se em vez disso suas vítimas. À medida que o trabalho se torna mais monótono, os trabalhadores são cada vez mais privados da oportunidade de desenvolver e aplicar suas faculdades humanas. [...] O homem industrial aparece como a contra-imagem do homem da Renascença. [...] Ao mesmo tempo, a comercialização afrouxa os laços que prendem os homens uns aos outros. A liberdade em relação ao governo paterno e à hierarquia social é obtida para o indivíduo, mas apenas à custa da fraternidade. Os laços entre os homens perdem sua base no sentimento e no senso de obrigação moral e passam a depender do interesse econômico. Como iguais, os homens competem mais do que cooperam uns com os outros e, como empregadores e trabalhadores, eles estabelecem negócios apenas em termos de vantagem material” (p. 341).

Esses temas serviram de conteúdo para a reflexão dos intelectuais por quase dois séculos, tornando-se uma influência dominante no pensamento moderno especialmente por meio da obra de Karl Marx, a qual, sustenta Bendix, “combinava o senso da crise moral acima descrita com sua pretensão de que sua abordagem representava um estudo científico da sociedade” (p. 341). Para Marx, pela primeira vez em toda a história humana, a luta de classes apresentava-se de forma desnudada, na forma da oposição entre o proletariado e a burguesia. Isso daria àqueles tempos um caráter de ponto crítico decisivo, fazendo de toda a história anterior uma pré-história (cf. p. 345). A modernidade seria, assim, o momento de explicitação, resultado de um desenvolvimento sem precedentes das forças produtivas, de tudo o que permanecera velado na época “tradicional”. Esse processo, contudo, longe de ser aleatório, obedeceria, de acordo com Marx, a “leis da história”, tão férreas quanto as leis do mundo natural. A industrialização e o desenvolvimento do capitalismo, movidos de acordo com essas leis, não seriam, portanto, diferentes segundo o lugar ou o tempo:

“Intrinsicamente, esta não é uma questão do grau maior ou menos de desenvolvimento dos antagonismos sociais que resultam de leis naturais da produção capitalista. É uma questão dessas leis em si, dessas tendências que operam com necessidade férrea em direção a resultados inevitáveis. O país que é mais desenvolvido industrialmente apenas mostra, aos menos desenvolvidos, a imagem de seu próprio futuro” (Marx apud BENDIX, 1996, p. 347).

O trecho acima sumariza bem, de acordo com Bendix, o fulcro do pensamento evolucionista ou etapista que dominou desde sempre o pensamento social sobre a modernização, e do qual a dicotomia entre tradição e modernidade é parte integrante. Esse pensamento, que incluiria também pensadores como Durkheim, Toennies e Parsons, concebe a “sociedade tradicional” e a “sociedade moderna” como dois sistemas de variáveis inter-relacionadas (p. 347), ou seja, como possuidoras de duas séries de atributos dicotômicos (urbano/rural; solidariedade mecânica/solidariedade orgânica; comunidade/sociedade; etc.). A passagem de uma a outra seria, assim, caracterizada por uma mistura de atributos de ambas, com

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uma tendência de declínio dos atributos da primeira e uma conseqüente preponderância dos da segunda. Implícito a isso, está a idéia de que uma vez iniciada a mudança num dos atributos da “sociedade tradicional”, todos os outros tenderiam a acompanhá-lo, justamente por possuírem uma interligação sistêmica. Em longo prazo, a mudança de uma “sociedade tradicional” para uma “moderna” (processo chamado de “modernização” ou “desenvolvimento”) seria a transformação total de uma lista de atributos “tradicionais” em seus contrários (rural urbano; comunidade sociedade; etc.).

Seguindo essa lógica, a modernização ocorreria sempre por uma mesma seqüência de etapas, de acordo com as “leis de desenvolvimento capitalistas”, que Marx extraiu em grande parte da história da industrialização inglesa, a qual serviu, desde então, como modelo e medida de todo e qualquer processo modernizante. Ainda de acordo com essa visão evolucionista (a um só tempo etapista e unilinear), a tendência geral seria a da convergência nas características de todos os países em processo de modernização: “Implícita nessa abordagem está a crença de que as sociedades se parecerão cada vez mais umas com as outras, à medida que se tornarem ‘plenamente industrializadas’. Analogamente, sociedades economicamente atrasadas se tornarão como os países economicamente adiantados” (p. 42).

Generalizando uma trajetória particular de modernização (a ocidental), constituída assim em “lei da história”, todas as demais sociedades passam a ser julgadas de acordo com a presença ou ausência dos atributos particulares daquele processo modelar: daí conceitos evidentemente teleológicos como “países em desenvolvimento” ou “sociedades de transição”. Implícito aí, está uma direção do devir histórico que levaria necessariamente a uma “sociedade moderna”, tal como definida pela experiência particular ocidental (basicamente, as invenções econômicas inglesas e as invenções políticas francesas).

Bendix resume, assim, da seguinte forma as tendências do pensamento evolucionista acerca da modernização (p. 347):

1. Tratar as sociedades como sistemas naturais;

2. Procurar “variáveis independentes” que – se inicialmente alteradas – causarão mudanças nas variáveis relacionadas mas dependentes no processo de transição de um tipo a outro;

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3. Conceber a transição como uma tradição em declínio e uma modernidade em ascensão e

4. Admitir que a mudança social consiste de um processo que é interno à sociedade em mudança.

A partir da crítica a cada uma dessa tendências, Bendix procurará reelaborar os conceitos de “tradição” e “modernidade” sob uma base não-evolucionista. Vejamos, então, primeiramente, quais são as críticas de Bendix e, em seguida, como, a partir delas, é construído um novo aparato teórico para o estudo dos processos de modernização.

Como já dito, Marx tratou a Inglaterra como um modelo para o prognóstico do desenvolvimento futuro de outras nações, presumindo que uma mesma organização da produção geraria transformações “superestruturais” semelhantes às inglesas. Em relação a isso, responde Bendix:

“Como proposição empírica, essa hipótese é ilusória porque trata as sociedades como se elas fossem estruturas inteiramente fechadas, cada uma evoluindo em termos de determinadas tendências internas. Realmente, uma vez iniciada a industrialização na Inglaterra, as inovações técnicas e as instituições do país economicamente avançado podiam ser usadas como um modelo para progredir mais rapidamente do que a Inglaterra o fez, embora minimizando ou até evitando os problemas encontrados pelo país pioneiro. [...] Tornando a mudança social a longo prazo inteiramente dependente da estrutura econômica, Marx evitou o reconhecimento da importância que a emulação internacional e a iniciativa governamental, o nacionalismo e a difusão de idéias tinham em países que seguiam na esteira da industrialização inglesa” (p. 348; sem grifos no original).

Ou seja: as diversas sociedades (ou casos) não são tratadas como unidades independentes: ao contrário, elas são incluídas no sistema histórico de relações internacionais da qual fazem parte. Ao fazê-lo, Bendix enfatiza em especial o papel das elites no esforço de modernização, mostrando como elas funcionaram como sucedâneo daquilo que uma análise evolucionista poderia ver como falta dos “requisitos necessários” para a modernização. Nesse sentido, a Inglaterra não é o padrão do processo de desenvolvimento, mas a sua exceção: juntamente com a França, ela é a única sociedade que levou a cabo a modernização somente com suas forças internas (embora ambas, França e Inglaterra, tenham se influenciado mutuamente), sem necessitar da “emulação internacional” ou da “difusão de idéias”. Não se pode, portanto, generalizar indevidamente essa experiência.

Uma segunda crítica é em relação à chamada “falácia do determinismo retrospectivo”. Essa falácia pode ser resumida da seguinte forma: uma vez que possuímos o conhecimento do resultado histórico de um dado processo do passado, tendemos a considerá-lo

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como unívoco, indisputado. Ora, sabemos que o nosso futuro é incerto; devemos, portanto, diz Bendix, dar aos agentes do passado essa mesma sina:

“É [...] conveniente conceitualizar as tendências conflitantes inerentes a qualquer sociedade complexa. A ‘unidade’ das sociedades passadas é quase sempre uma ilusão derivada dos contrastes implícitos com a estrutura posterior da mesma sociedade. Mas, de fato, o feudalismo era compatível com reis fortes bem como com os fracos; a ordem jurídica é compatível com importantes mudanças de ênfase, digamos, entre os direitos do possuidor de propriedade individual e as exigências da conveniência e do bem-estar públicos; as instituições democráticas conservam características identificáveis, mesmo quando a natureza das instituições parlamentares ou partidos políticos tenha mudado consideravelmente. Em todos esses casos, a mesma estrutura é compatível com tal variação. Se abrangermos ambas, entenderemos a ordem e a mudança como características simultâneas da sociedade” (p. 47).

Entender que, quando se trata de fenômenos históricos, “mudança” e “ordem” (ou “permanência”) não são propriedades antagônicas, é essencial para superar a visão evolucionista da relação entre “tradição” e “modernidade”. Quanto a esse ponto, Bendix, apoiando-se em Schumpeter, sustenta:

“[...] as estruturas e atitudes sociais persistem muito tempo depois que as condições que as originaram desaparecem, e essa persistência pode ter conseqüências positivas ou negativas para o desenvolvimento econômico, como enfatiza Schumpeter. Conseqüentemente, nosso conceito de desenvolvimento deve englobar não apenas os produtos e subprodutos da industrialização, mas também os vários amálgamas de tradição e modernidade que tornam todos os desenvolvimentos ‘parciais’ (p. 43).

Não faz o menor sentido, portanto, falar-se numa “modernidade plena” ou numa “industrialização completa”; toda a mudança social, incluída aí a modernização dos séculos XVIII, XIX e XX, ocorre por meio dos “instrumentos” sociais legados pelo passado, ou seja, pela “tradição”. A modernidade, assim, não é a negação da tradição, mas uma síntese –sempre particular e específica –, em que mistura-se a ela, chegando a uma nova forma:

“Conseqüentemente, nosso entendimento da mudança social será seriamente deficiente, se for modelado pela idéia de uma relação inversa entre tradição e modernidade. A industrialização e seus correlatos não são simplesmente equivalentes ao surgimento da modernidade à custa da tradição, de modo que uma sociedade ‘inteiramente moderna’ é uma abstração sem sentido” (p. 43).

Há ainda uma outra crítica desenvolvida por Bendix em relação à abordagem evolucionista: esta não apenas trataria o processo de modernização como um padrão único, construído a partir da generalização indevida do caso particular da Europa ocidental, como faria do “desenvolvimento” uma força histórica inexorável que, a despeito dos desvios, obstáculos e demais dificuldades das fases de “transição”, levaria sempre, em longo prazo, a uma sociedade nos moldes daquelas que serviram de inspiração para os conceitos de “modernização” e “modernidade”: “É provável que muitas

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sociedades ‘em desenvolvimento’ não se ‘desenvolverão’ no sentido em que esse termo pode ser aplicado aos países industrializados do mundo moderno” (p. 44). Daí Bendix falar em “sociedades de desenvolvimento incerto”, termo desbastado de uma teleologia implícita.

Além de suas incongruências lógicas, a abordagem evolucionista, caracterizada por esses atributos acima descritos, não serve, defende Bendix, para compreendermos a diversidade e a complexidade dos processos de modernização que foram testemunhados a partir das experiências originais de França e Inglaterra no final do século XVIII, nem para compreender o amálgama de tradição e modernidade por aí produzido nos diversos países:

“Por mais importante que seja a industrialização como um fator promoção da mudança social, e por mais semelhantes que sejam muitos de seus correlatos, o fato é que as sociedades inglesa, francesa, alemã, russa ou japonesa são tão diferentes entre si atualmente quanto sempre foram” (p. 44).

Diante desse quadro de diversidade, continua o autor, não é possível manter uma concepção de modernização que seja a simples generalização da experiência particular da Europa ocidental (em particular, da história industrial inglesa). Para dar conta de tal complexidade, Bendix propõe a seguinte abordagem e hipóteses:

1. Em vez de considerar a tradição e a modernidade como momentos históricos (e conceitos) antagônicos, é preciso enfatizar que o processo de modernização é sempre uma mistura deles, mistura esta sempre específica de acordo com as características de cada tempo e lugar: “Mesmo as duas revoluções do século XVIII são entendidas mais corretamente como culminações de continuidades européias específicas” (p. 367);

2. Contra a concepção da modernização como um processo de mudança interna a cada sociedade, é preciso salientar a importância das relações internacionais, com a conseqüente difusão de idéias e o papel fundamental das elites e dos funcionários governamentais na transformação das estruturas sociais (especialmente no caso daquelas “atrasadas” em relação aos países pioneiros – Inglaterra e França): “As grandes lacunas das interpretações aqui opostas são seu fracasso em levar em conta a difusão de idéias

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e técnicas, o papel proeminente do governo, e a crescente onda de nacionalismo” (p. 368);

3. É também necessário romper definitivamente com o pressuposto marxista da organização da produção capitalista como variável independente na explicação das transformações das estruturas sociais e políticas. Se assim fosse, o processo de modernização seria sempre uniforme ou, ao menos, levaria, em longo prazo, a características bastante uniformes. O que se vê, contudo, é uma persistência da diversidade nos países ditos “modernos” e uma série de formas distintas de modernização. Sendo assim, é de fundamental importância considerar variáveis históricas como o timing e a seqüência das transformações, bem como as especificidades das “tradições” específicas que estão sendo alteradas e o esforço propriamente político para gerenciar tais mudanças: “Num certo sentido é verdadeiro dizer que, por causa do timing e da seqüência, a industrialização [e a modernização em geral] não pode ocorrer do mesmo modo duas vezes” (p. 370);

4. Contra a noção de que a modernização possui sempre os mesmos “pré-requisitos”, assim como resultados sempre iguais, é preciso reinserir a questão da incerteza: “A incerteza referente ao futuro existiu na história passada de todos os países [...], tal como existe atualmente nos assim chamados ‘países em desenvolvimento’” (p. 371). Expressões como “países de desenvolvimento incerto” são, portanto, preferíveis, já que evitam uma teleologia.

A abordagem caracterizada acima é chamada por Bendix de “em perspectiva” (p. 371), pois recoloca a contingência e a incerteza no centro da explicação: “Essa segunda abordagem [‘em perspectiva’] pode ainda empregar os modelos de ‘antes-e-depois’ disponíveis, mas sua ênfase recairá na diversidade das sociedades modernas na busca de chaves para o processo de transformação” (p. 371). Longe de ser um produto de “leis da história” ou fruto do “desenvolvimento das forças produtivas sob o capitalismo”, a modernização, segundo a caracterização de Bendix, é um evento histórico que se originou na Revolução Industrial da Inglaterra e na Revolução Francesa, irradiando-se, a partir daí, por meio da difusão de idéias e técnicas e da atuação de elites e governos das sociedades

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“atrasadas”, e tornando-se, assim, um processo com aparências de universalidade determinista.

Por meio de uma série de estudos comparativos de diferentes processos de modernização (Inglaterra e França; Rússia; Japão; Alemanha; Índia) Bendix procurará operacionalizar essa abordagem e as hipóteses que ela gera. Vejamos a seguir de que maneira isso é realizado.

II.2. O método comparativo

Como dito anteriormente, Construção nacional e cidadania parte de uma preocupação prática: as dificuldades dos países independentes após a Segunda Guerra Mundial em levarem a cabo as transformações associadas ao processo de modernização, tal como este foi definido historicamente pela experiência da Europa ocidental a partir do século XVIII; ou seja: as dificuldades desses países tanto com relação às políticas de modernização econômica (industrialização, diversificação do mercado de trabalho etc.) quanto política (a centralização da autoridade pública e o estabelecimento de uma cidadania nacional).

A partir dessa preocupação prática, Bendix deriva um problema teórico e uma questão de pesquisa empírica: o problema teórico é o da redefinição do aparato conceitual relativo ao processo de modernização, a fim de retirá-lo de seu enquadramento evolucionista (cujas características já vimos) e torná-lo operacional para o entendimento dos esforços recentes e das dificuldades dos países “em desenvolvimento” (ou, seguindo a orientação de Bendix: “de desenvolvimento incerto”); ligado a esse propósito de (re)construção conceitual, está o problema empírico do mapeamento das variáveis explicativas, não apenas do sucesso ou fracasso dos esforços de modernização, mas principalmente da forma específica que esse processo toma em cada estrutura social e em cada meio cultural.

Justamente por recusar que exista um único “caminho” para a “modernidade”, não interessa a Bendix comparar um grupo de países “modernos” (os casos positivos) com um de países “tradicionais” (os casos negativos), a fim de isolar, por meio do método da diferença, as variáveis causais do fenômeno a ser explicado (aqui, o sucesso da modernização). Para Bendix, no limite, todo processo modernizante é único, interessando, portanto, investigar quais suas características singulares, muito embora não se possa abrir mão de uma estrutura teórica geral, que servirá de guia para o pesquisador:

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“Como os conceitos de outras disciplinas, os conceitos sociológicos podem ser aplicados universalmente. O conceito de divisão do trabalho, por exemplo, refere-se ao fato de que o trabalho realizado numa coletividade é especializado; o conceito é universal porque não conhecemos nenhuma coletividade sem essa especialização. [...] Uma série completa de conceitos mutuamente relacionados pode ser elaborada dedutivamente num esforço para construir uma estrutura de conceitos aplicável a todas as sociedades. Mas, em tais tentativas, o ganho em generalidade é obtido muitas vezes em detrimento da utilidade analítica. Esforços na ‘teoria pura’ devem ser submetidos a avaliações periódicas para garantir que esses conceitos e a evidência empírica possam estar relacionados entre si. Conceitos universais como a divisão do trabalho requerem especificações que irão estabelecer uma ponte entre conceito e evidência empírica, mas tais especificações têm uma aplicabilidade limitada. Muitos outros conceitos de configurações sócio-históricas – burocracia, governos, classe social – são igualmente limitados. É mais esclarecedor aprender de que maneiras a divisão do trabalho em uma estrutura social difere da de outra do que reiterar que ambas as estruturas têm divisão do trabalho” (p. 39; sem grifos no original).

A frase em itálico resume bem o programa de pesquisa de Construção nacional e cidadania, programa este que Bendix deriva do objetivo teórico de formular um aparato conceitual não-evolucionista para pensar a modernização e a relação entre “tradição” e “modernidade”. Ora, mais do que reiterar as características comuns dos países modernos e dos seus processos de modernização, construindo assim tipologias extremamente abstratas, importa analisar como eles diferenciam-se entre si. Daí o recurso à comparação entre pares de casos contrastes1, sendo que em apenas um deles temos um país “não-moderno” – a Índia (são comparados os processos de modernização de Europa ocidental e Rússia; Alemanha e Japão; Europa ocidental e Índia)2.

Resumindo: o esforço comparativo, em Bendix, é claramente diferenciador, e não generalizante; e isso por conta de suas hipóteses teóricas acerca do peso de variáveis propriamente históricas (como o timing e a seqüência) sobre o caráter dos processos de modernização – no limite, eles seriam todos únicos. Evidentemente, insistir na singularidade absoluta de cada caso particular de modernização seria abrir mão de fazer sociologia (se a definimos, como Durkheim, Weber e tantos outros, como um empreendimento comparativo e generalizante), restando apenas a descrição exaustiva desses casos, tomados sempre isoladamente.

Embora insista em diversos pontos na singularidade de cada processo de modernização, o simples fato de Bendix engajar-se num estudo comparativo pressupõe um esforço mínimo de generalização, que é a própria condição da comparabilidade: dizendo de outro

1 Charles Tilly classificava Kings or People, última obra da “trilogia” de sociologia histórico-comparada de Bendix, como um esforço de “comparação individualizante”, que, embora enuncie um exame de variações entre casos particulares, acaba por fim diferenciando experiências singulares (cf. REIS, 1996, p. 21). Parece-me que Construção nacional e cidadania pode ser caracterizado da mesma forma. 2 Fica bastante claro aqui como tanto a escolha da amostra quanto a construção lógica do modelo de comparação estão inteiramente submetidos às hipóteses e pressupostos teóricos da pesquisa.

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modo, as diferenças e variações individuais exigem necessariamente um quadro de referências comum para que possam ser comparadas; sem tal quadro, não há como comparar, pois nem mesmo se pode definir as variáveis (elas variariam em relação a quê?). Abordando esse problema, diz Bendix:

“Conceitos e teorias são difíceis de ser relacionadas com descobertas empíricas, enquanto muitas pesquisas empíricas são destituídas de significado teórico. [...] Os estudos que se seguem tentam percorrer um caminho entre Cila e Caríbdis confiando em conceitos familiares como uma linha básica a partir da qual possa progredir. Uma vez que esses conceitos têm uma derivação ocidental, é necessário repensá-los em termos da extensão e dos limites da aplicabilidade. Mas, pelo fato de serem selecionados de maneira a incluir as principais transformações da sociedade, eles podem servir também como uma estrutura dentro da qual um número considerável de bons e mais detalhados estudos adquirem maior significado. Esse uso crítico de conceitos familiares é aqui adotado na crença de que a mudança de ordem social das sociedades ocidentais pode fornecer fundamentos para estudos de mudança social fora da órbita ocidental – na medida em que generalizações prematuras de uma experiência limitada sejam evitadas” (p. 39).

Penso que a tensão entre tipologias abstratas (“difíceis de ser relacionadas com descobertas empíricas”) e as descrições idiográficas (“destituídas de significado teórico”) passa necessariamente pelo problema da definição do fenômeno a ser explicado por meio da comparação. A depender de como se defina, por exemplo, o processo de modernização, as classificações daí derivadas poderão ir do extremo mais geral e vazio (aquele que reúne casos por demais distintos, tornando-se, assim, incapaz de entender tais diferenças; o exemplo aqui são as teorias evolucionistas) ao mais particular e circunscrito (que, no limite, implica a impossibilidade da comparação e a inviabilidade de rotular diferentes processos históricos segundo uma mesma rubrica: a de “modernização”).

Ao tentar comparar diferentes processos de passagem do “tradicional” ao “moderno” parte-se do pressuposto, portanto, de que eles possuem uma “linha básica”, mas a particularidade da abordagem de Bendix consiste em tentar construir essa “linha básica” de tal forma que ela admita especificações sem, contudo, perder a unidade. Vejamos a seguir como isso ocorre.

II.2.1. A determinação do fenômeno

Como já foi dito, Bendix rompe com o paradigma evolucionista de um único modelo de modernização, tratado então como uma “lei da história”. Para ele, a modernização é uma invenção histórica inglesa e francesa, que se propaga para as demais sociedades por meio principalmente do esforço de suas elites sociais e burocracias em emular os atributos “modernos” dos países precursores. Isso

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confere uma variabilidade enorme aos resultados obtidos em cada caso particular, pois variáveis propriamente históricas como o timing (da adoção de políticas modernizantes) e a seqüência (entre essas políticas), assim como as características peculiares de cada estrutura social e tradição cultural, fazem com que não haja sentido em falar numa sociedade “plenamente moderna” (e, portanto, sem tradição ou sem passado), mas apenas em sínteses ou “desenvolvimentos parciais”.

O fenômeno que Bendix procura explicar, portanto, não é a presença ou não de atributos da modernidade nas diversas estruturas sociais analisadas, mas sim o esforço de modernização de cada uma delas, e como esse esforço é afetado por aqueles fatores já listados: timing, seqüência, tradição cultural e relações de poder e legitimidade. Implícito a isso, está a noção de que há varias formas de ser “moderno”, e que todas elas devem ser contempladas numa análise não evolucionista do processo modernizante. Bendix não chega, contudo, a estabelecer, no lugar de um caminho único, vários caminhos ou modelos de modernização, como parece ser o caso, por exemplo, de Barrington Moore, Jr., em Origens sociais da ditadura e da democracia, que caracteriza três formas de passagem da sociedade agrária para a industrial – revolução burguesa, revolução conservadora e revolução comunista –, redundando cada uma num tipo específico de modernidade. O propósito de Bendix, como visto, é mais individualizante, embora abra caminho para tipologias mais específicas como as de Moore, Jr.

O que garante a comparabilidade, assim, em Construção nacional e cidadania, é o fato de termos ali um conjunto de casos particulares afetados, todos eles, por um esforço de modernização, ainda que resultando em sínteses bastante diversas entre as tradições e as idéias e técnicas importadas. Vejamos como a amostra de casos é estabelecida a partir disso.

II.2.2. A escolha da amostra e os objetivos da comparação

Bendix compara o processo original de modernização (aquele de Inglaterra e França) primeiramente com a Rússia e, por último, com a Índia; o Japão, por sua vez, é contrastado com a Alemanha. O livro é composto, portanto, de três estudos comparativos distintos. Penso que essa estrutura é produto da intenção teórica de utilizar a comparação como um meio de ressaltar especificidades. Cada estudo possui, dirá o próprio Bendix, um objetivo particular: em cada um, procurar-se-á ressaltar um aspecto específico que afeta o esforço de modernização.

A escolha da amostra, cujos critérios, infelizmente, não são tornados explícitos pelo autor, parece guiar-se, assim, por conta

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desse critério: o de quão ilustrativo o caso particular pode ser em relação a determinada variável. Diz Bendix:

“Considerarei a modernização de cada país em termos de uma comparação separada com a experiência da Europa ocidental. Cada uma dessas comparações terá um propósito distinto. A comparação entre a Rússia e a Europa ocidental delineia o nítido desenvolvimento russo da autoridade privada e pública como base para definir a estrutura organizacional do regime totalitário. Em seguida, as precondições do desenvolvimento no Japão serão comparadas, não com a Europa ocidental de uma maneira geral, mas especificamente com as da Prússia. Aqui o propósito é analisar a importância crítica de um grupo dirigente – suas características sociais e decisões políticas – na mistura de tradição e modernidade que é alcançada no desenvolvimento de um país. Finalmente, dar-se-á consideração ao movimento de desenvolvimento da comunidade da Índia como uma chave para a estrutura de sua emergente comunidade política. Aqui o propósito é analisar as relações entre a autoridade central, governamental e a comunidade local. A comparação com a Europa ocidental mostra que essas relações são problemáticas em toda parte; elas são especialmente agudas, porém, na Índia, onde o processo de construção da nação está apenas começando” (p. 180).

Em outras palavras: no primeiro estudo comparativo, interessa descobrir, pelo contraste com a Europa ocidental, quais as variáveis distintivas da estrutura social e da tradição cultural russas e que podem servir como base explicativa para a singularidade de sua modernização por meio de um regime autoritário3.

No segundo estudo, o de Japão e Prússia, fica clara a intenção individualizante da comparação: embora trate-se de dois casos que poderiam ser classificados sob um mesmo rótulo, o de “modernização conservadora”, por compartilharem tanto um mesmo timing (as mudanças políticas e econômicas aceleram-se a partir da década de 1870) quanto um governo burocrático controlado por uma oligarquia dirigente (além da preferência por instituições monárquicas), Bendix opta por contrastá-las, a fim de acentuar a influência dos antecedentes históricos no comportamento dos grupos dirigentes, junkers e samurais, diante das mudanças econômicas e políticas do final do século XIX.

O terceiro e último estudo, o da comparação entre Europa ocidental e Índia, explora a influência da configuração das comunidades locais no sucesso ou fracasso das políticas de modernização: “a qualidade da resposta do público, a submissão às leis ou às diretivas administrativas, e a má vontade do povo em colaborar com empreendimentos que o ajudarão e contribuirão com o esforço nacional – estes são mais evidentes no nível local” (p. 245).

II.3. Conclusão

3 Aqui, a preocupação teórica e a questão de pesquisa parecem próximas às de Barrington Moore, Jr. em Origens sociais. Bendix não chega, contudo, a criar um modelo de “modernização autoritária”.

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Bendix não isola uma “causa adequada” para a especificidade dos processos de modernização de cada caso; procede, apenas, à identificação do complexo causal responsável pela especificidade desses processos. Por exemplo: a trajetória histórica russa, que culmina numa modernização levada a cabo por um governo totalitário, quando contrastada em relação à trajetória da Europa ocidental (que culmina nas democracias liberais), ressalta uma série de traços distintivos, que funcionam, assim, como o complexo causal hipoteticamente explicativo do fenômeno “totalitarismo soviético”:

Na Rússia, não há equivalente para a gradual difusão da confiança mútua que teve origem [...] nas comunidades urbanas autônomas e nas seitas protestantes mas que, finalmente, abarcou muitos indivíduos previamente considerados alienígenas ou forasteiros. Os governantes czaristas destruíram a autonomia da comunidade urbana [...] e suprimiram grupos sectários, mesmo que não o tenham erradicado. Durante séculos, a aristocracia era dividida em grupos sangüíneos rivais. A competição por uma distinção social alojada na corte e através do cargo governamental prejudicava a emergência de um grupo com status coeso de notáveis proprietários de terras. Na ausência da autonomia de grupo, as instituições representativas e um Estado de direito efetivo não se desenvolveram (p. 197).

Evidentemente, uma forma de refinar esse complexo causal seria por meio do Método Indireto da Diferença: primeiramente, o caso russo poderia ser comparado com outros casos de totalitarismo, a fim de isolar um número menor de variáveis comuns (Método da Concordância). A partir delas, aplicar-se-ia o Método da Diferença, comparando, agora sim, com casos negativos (sem totalitarismo), com o objetivo de comprovar as relações causais. O propósito teórico de Bendix, contudo, permanece no nível da singularidade de cada caso, sem arriscar generalizações além das estritamente necessárias para a comparação.

III. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir de Construção nacional e cidadania, podemos retirar algumas dicas metodológicas para a nossa pesquisa acerca da industrialização na América do Sul. Ressalto aqui duas:

1. Tanto a escolha da amostra quanto a construção do modelo de comparação têm de estar submetidos às hipóteses e pressupostos teóricos, bem como às particularidades históricas envolvidas no fenômeno em análise: se o interesse for generalizante, parece ser mais útil proceder por meio de uma definição única, ainda que bastante abstrata, de

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industrialização, reunindo então um grupo de casos positivos e um grupo de casos negativos e procedendo ao método indireto da diferença; se o interesse for, como em Bendix, individualizante, pode ser útil o contraste entre pares de casos, a fim de aclarar a cada vez aspectos e variáveis diferentes do processo de industrialização. Imagino que apenas o estudo histórico irá determinar qual a abordagem mais rentável aqui;

2. A fim de evitar a “falácia do determinismo retrospectivo”, que concebe os resultados históricos passados como unívocos e indisputados, é preciso reconstruir as lutas e os modelos alternativos de industrialização que foram vencidos; a solução adotada pode ter sido fortemente influenciada pelo debate e pela disputa com as demais. A idéia aqui é que um resultado histórico é sempre uma solução parcial entre tendências antagônicas. Cabe à pesquisa ressaltar que tendências eram essas e qual o peso delas sobre a solução efetivamente adotada.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENDIX, R. 1996. Construção nacional e cidadania. Estudos de nossa ordem social em mudança. São Paulo: USP.

BENDIX, J. & COLLINS, R. 1998. Comparison in the Work of Reinhard Bendix. Sociological Theory, v. 16, n. 3, p. 298-312, Nov.

Reinhard Bendix, 75, a Sociologist, is Dead. 1991. The New York Times, 2.mar.

REIS, E. 1996. Reinhard Bendix, uma introdução. In: BENDIX, R. Construção nacional e cidadania. Estudos de nossa ordem social em mudança. São Paulo: USP.

LISTA DE LINKS SOBRE BENDIX, SUA TRAJETÓRIA E OBRA

http://en.wikipedia.org/wiki/Reinhard_Bendix

http://globetrotter.berkeley.edu/faculty/Bendixbio.html

http://library.albany.edu/speccoll/findaids/ger021.htm

http://www2.asanet.org/governance/bendix.html

http://www.nytimes.com/1991/03/02/obituaries/reinhard-bendix-75-a-sociologist-is-dead.html

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