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CONQUISTA NORMANDA DA INGLATERRA POR GUILHERME, O CONQUISTADOR NA CRÔNICA DE GUILHERME DE MALMESBURY WEHMUTH, Letícia Ruoso. 1 As invasões nórdicas se tornaram cada vez mais frequentes e destrutivas, por conta disso, no século X o rei franco Carlos, o simples, concede à Rollo o ducado da Normandia, com o intuito de conter o avanço das forças. Os normandos carregam traços da cultura nórdica, se tornaram cristãos e adotaram a língua até então usada pelos francos. O ducado protagoniza diversas transformações políticas e sociais, como por exemplo, a conquista normanda da Inglaterra efetuada pelo duque Guilherme no século XI. Eduardo assume o trono anglo-saxão depois do final do domínio dinamarquês iniciado por Canuto, mas ele é visto como um estrangeiro e seu reinado fica marcado pela ineficiência, por conta disso Haroldo aparece como uma figura forte. O duque Guilherme utiliza seu parentesco longínquo com Eduardo e uma promessa para fazer uma reivindicação ao trono, já que o Rei não tinha herdeiros legítimos. Haroldo é coroado, e logo tem que lidar com as invasões. Os normandos comandados por Guilherme vencem a Batalha de Hastings em 1066, primeiro passo para sua legitimação no trono. Sessenta anos depois o monge beneditino Guilherme de Malmesbury escreve sua obra Chronicle of the Kings of England, na qual ele dedica parte a conquista normanda, seus antecedentes e quais foram seus impactos na sociedade, as mudanças políticas que se estabeleceram, assim como sua pretensão de manter uma ponte com a identidade anglo-saxã. O trabalho se propõe a partir dessa obra compreender os perfis traçados e os argumentos construídos por Guilherme de Malmesbury, e quais foram suas principais considerações sobre a conquista de Guilherme, o conquistador, levando em conta a força do discurso cronístico na medievalidade. Analisando o contexto de sua produção motivada agora pelo século XII, no qual uma séria crise dinástica tomou grandes proporções depois que Henrique I, filho de Guilherme, morreu sem deixar filhos legítimos, duas figuras disputam a posição, Matilde, filha de Henrique, e Estevão de Blois, seu sobrinho, que ganhou destaque por estar sempre ao lado do Rei. Essa questão acabou em uma guerra, situação que motiva a crônica de Guilherme de Malmesbury e seu discurso que busca no passado a força para manter o legado, que segundo o monge, foi duramente conquistado por Guilherme. Palavras chaves: Conquista normanda; Guilherme o conquistador; crônicas; Batalha de Hastings. No século XII muitas transformações aconteceram, no contexto inglês especificamente, ainda é possível perceber os impactos da conquista normanda, que naquele momento é um acontecimento recente, pois Guilherme, o Conquistador se estabelece no trono no mesmo ano que invade o reino, 1066. 1 Graduanda de História na Universidade Federal do Paraná. Financiada pela Fundação Araucária. E-mail: [email protected]

CONQUISTA NORMANDA DA INGLATERRA POR … · produção motivada agora pelo século XII, no qual uma séria crise dinástica tomou grandes proporções depois que Henrique I, filho

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CONQUISTA NORMANDA DA INGLATERRA POR GUILHERME, O CONQUISTADOR NA CRÔNICA DE GUILHERME DE MALMESBURY

WEHMUTH, Letícia Ruoso.1

As invasões nórdicas se tornaram cada vez mais frequentes e destrutivas, por

conta disso, no século X o rei franco Carlos, o simples, concede à Rollo o ducado da

Normandia, com o intuito de conter o avanço das forças. Os normandos carregam traços

da cultura nórdica, se tornaram cristãos e adotaram a língua até então usada pelos

francos. O ducado protagoniza diversas transformações políticas e sociais, como por

exemplo, a conquista normanda da Inglaterra efetuada pelo duque Guilherme no século

XI. Eduardo assume o trono anglo-saxão depois do final do domínio dinamarquês

iniciado por Canuto, mas ele é visto como um estrangeiro e seu reinado fica marcado

pela ineficiência, por conta disso Haroldo aparece como uma figura forte. O duque

Guilherme utiliza seu parentesco longínquo com Eduardo e uma promessa para fazer

uma reivindicação ao trono, já que o Rei não tinha herdeiros legítimos. Haroldo é

coroado, e logo tem que lidar com as invasões. Os normandos comandados por

Guilherme vencem a Batalha de Hastings em 1066, primeiro passo para sua legitimação

no trono. Sessenta anos depois o monge beneditino Guilherme de Malmesbury escreve

sua obra Chronicle of the Kings of England, na qual ele dedica parte a conquista

normanda, seus antecedentes e quais foram seus impactos na sociedade, as mudanças

políticas que se estabeleceram, assim como sua pretensão de manter uma ponte com

a identidade anglo-saxã. O trabalho se propõe a partir dessa obra compreender os perfis

traçados e os argumentos construídos por Guilherme de Malmesbury, e quais foram

suas principais considerações sobre a conquista de Guilherme, o conquistador, levando

em conta a força do discurso cronístico na medievalidade. Analisando o contexto de sua

produção motivada agora pelo século XII, no qual uma séria crise dinástica tomou

grandes proporções depois que Henrique I, filho de Guilherme, morreu sem deixar filhos

legítimos, duas figuras disputam a posição, Matilde, filha de Henrique, e Estevão de

Blois, seu sobrinho, que ganhou destaque por estar sempre ao lado do Rei. Essa

questão acabou em uma guerra, situação que motiva a crônica de Guilherme de

Malmesbury e seu discurso que busca no passado a força para manter o legado, que

segundo o monge, foi duramente conquistado por Guilherme.

Palavras chaves: Conquista normanda; Guilherme o conquistador; crônicas; Batalha

de Hastings.

No século XII muitas transformações aconteceram, no contexto inglês

especificamente, ainda é possível perceber os impactos da conquista normanda,

que naquele momento é um acontecimento recente, pois Guilherme, o

Conquistador se estabelece no trono no mesmo ano que invade o reino, 1066.

1 Graduanda de História na Universidade Federal do Paraná. Financiada pela Fundação

Araucária. E-mail: [email protected]

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Os processos históricos iniciados com a conquista atravessarão a Idade Média,

mas o século XII nos interessa particularmente, pois é em 1128 que Guilherme

de Malmesbury educado na Abadia de Malmesbury, um monge benetidino que

escreveu várias obras, entre elas Chronicle of Kings of England. Para

compreendermos quais são as pretensões de Guilherme de Malmesbury

devemos retornar ao contexto normando. O ducado normando será criado no

século X, a partir do tratado de Saint Clair sur Epte, pois os reis francos, assim

como o que acordou o tratado, Carlos, o Simples, estavam cada vez mais

suscetíveis às invasões nórdicas, que se tornaram frequentes e destrutivas.

Junto a uma das principais lideranças nórdicas, Rollo, o rei afirma o tratado a fim

de conceder o território normando, para que Rollo não só o administrasse, mas

que empregasse um combate efetivo a qualquer invasão, considerando que a

região da Normandia é estratégica.

O tratado firmado em 911 cria uma situação extremamente interessante,

a aproximação de duas culturas essencialmente diferentes, que até então eram

inimigas. Rollo e seus acompanhantes trarão tradições e visões de mundo, que

encontraram diretamente a expectativa da administração franca, que

necessitava que o ducado fosse coerente em sua gestão, ao seguir seu próprio

modelo, e mais, que participasse e partilhasse de uma concepção de cultura e

mais diretamente de fé, o que quer dizer que os normandos logo se tornaram

cristãos e adotaram o francês. Ou seja, os normandos não são nem vikings, nem

francos, mas algo híbrido entre os dois. Mesmo que a Normandia seja um

ducado pertencente aos francos, não demora a aparecer decisões tomadas de

forma muito autônoma, e por isso a região será protagonista de inúmeras

transformações políticas e sociais nos próximos séculos. (FERRARESE. 2015:

10)

A Inglaterra e a Normandia se aproximarão a partir do começo do século

XI, quando a filha do duque Ricardo I, Emma, se casa com o Rei anglo-saxão

Etelredo II. A Inglaterra, nesse momento, já havia consolidado uma monarquia

que se iniciou com a centralização de Alfredo, o Grande, situação que demonstra

o poder das invasões nórdicas, foram tão agressivas que mobilizaram uma

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reação que resultou na unificação do poderio anglo-saxão. Um século depois, a

monarquia está sistematizada administrativamente, atrairá diversos olhares,

como por exemplo, dos dinamarqueses, que empreenderam uma série de

ataques, até que conseguem derrotar Etelredo II e seu filho Edmundo, mortos na

tentativa de defender seu reino. A expedição vitoriosa foi liderada por Canuto,

que a partir de então se torna rei da Dinamarca e da Inglaterra.(ABBOTT. 2009:

123). Sua afirmação no trono vem do seu casamento com a viúva de Etelredo II,

Emma, dessa união nasce Hardacanuto, que deveria suceder seu pai. Canuto

emprega várias modificações, inclusive uma perseguição à linhagem de Etelredo

II, que se refugiam na Normandia, nos interessa particularmente Eduardo, que

viveu na corte do duque Roberto I durante anos. Canuto planeja naturalmente

estabelecer uma dinastia no trono, Haroldo I, filho ilegítimo de Canuto, toma a

posição frente a Hardacanuto, que mobiliza uma ofensiva para reaver sua

herança, mas Haroldo I morre antes disso, deixando o trono ao filho legítimo.

(FERARRESE. 2015: 16). Em 1042 Hardacanuto também morre, sem deixar um

sucessor. O conselho anglo-saxão Witenagemot, que tem uma posição muito

importante nas decisões políticas do reino, logo reage, convocando Eduardo a

assumir o trono e assim restabelecer o controle anglo-saxão sobre o território.

Eduardo, que foi convidado em 1041 por Hardacanuto para retornar ao reino, é

coroado em 1043.

Eduardo, o Confessor, como ficará conhecido, não estabelece um

governo forte que faria jus ao fim do controle dinamarquês, pelo contrário, ele

será diversas vezes classificado como fraco e incompetente. Eduardo, em suma,

gera um desconforto aos anglo-saxões que o viam como um estrangeiro, que

tendia a se parecer e apreciar demais os normandos. Isso fica claro quando

Haroldo Godwinson começa a ganhar destaque no cenário político, vindo de uma

família anglo-saxã muito poderosa. Haroldo acusa o rei de ser um estrangeiro,

palavra empregada com um arcabouço de negatividade, acusação que não era

infundada, já que muitos normandos se tornaram parte da corte de Eduardo, e

as próprias atitudes do Rei provam que ele havia sido inserido na lógica

normanda de uma maneira geral.

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Não é por acaso que com o passar do tempo, considerando que Eduardo

mesmo casado nunca teve filhos, Guilherme duque da Normandia, vai se

aproximando do Rei, até porque eram parentes, Emma, mãe de Eduardo era

filha do avô de Guilherme. E cada vez mais ele demonstra um interesse no trono.

Interessante considerar a trajetória de Guilherme até que se torne duque. Seu

pai Roberto I em 1027, consegue subjugar as intenções de seus irmãos com a

ajuda de Henrique I, o rei franco. Aproximadamente em 1028 nasce Guilherme,

fruto da relação de Roberto I com Harlete, que não era sua esposa, o que faz de

Guilherme, um bastardo. Em seguida Roberto I decide fazer uma peregrinação

à Jerusalém, mas não chega a retornar, morrendo em 1035. Antes de sair da

Normandia, Roberto sabia das dificuldades de tornar Guilherme seu sucessor,

mas ele investiu nisso, tanto que Guilherme assume com apoio de Henrique I,

por exemplo, mas parte da elite local não o aceita. Em decorrência disso ele terá

que articular desde muito cedo, toda uma estratégia política e militar para manter

a posição legada por seu pai. A disputa pelo poder vai assolar a Normandia, um

dos episódios mais expressivos é a rebelião liderada por Guy da Borgonha, que

se tornou séria se desdobrando em um conflito militar ao qual Guilherme saiu

vitorioso. Aos poucos, Guilherme começa a consolidar sua posição, já que

demonstra sua capacidade para gerir o ducado assim como suas habilidades

militares, que o auxiliam com a aceitação dessa camada social que começa a

vê-lo como possível líder. Guilherme enfrentará ainda outras oposições, vindos

até mesmo de lugares inesperados como Henrique I, que antes o havia apoiado,

basicamente porque Guilherme começa a expandir o território do ducado,

através de alianças e conquistas, seu próprio casamento com Matilde de

Flandres demonstra que havia ascensão de sua posição, como a Normandia era

apenas um ducado, Henrique I teme perder completamente o controle da região,

pois esta tem um histórico de autonomia política que continuará. Ainda devemos

salientar que a larga experiência que Guilherme conquistou ao ter que lidar ainda

muito jovem com a manutenção de seu poder, vai auxiliá-lo como guerreiro e

ainda mais como governante. (COSTA, 2009: 13).

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O cenário político anglo-saxão vai se desenhando a partir da necessidade

de um sucessor à Eduardo, o Confessor. Haroldo Godwinson é a escolha óbvia

considerando toda sua atuação política antes e depois do reinado de Eduardo,

assim como Guilherme. Um episódio bastante emblemático, que envolve os dois

reivindicantes é quando Haroldo segue para a Normandia. Ao se perder em uma

tempestade se torna prisioneiro de um dos vassalos de Guilherme. O duque

mobiliza seus recursos para que ele seja libertado, depois que isso acontece,

Haroldo passa um tempo na corte de Guilherme, é nesse momento que o duque

expõe suas intenções. Guilherme queria garantir que Haroldo, ao invés de se

tornar um inimigo, pois seria a escolha direta dos anglo-saxões, o ajudasse em

suas pretensões (FERRARESE, REIS. 2012: 3). Segundo as fontes, Haroldo

teria consentido aos desejos de Guilherme e admitido que o ajudaria, em suma

não foi isso que aconteceu, quando Eduardo morre em 1066, Haroldo será eleito

pelo conselho, Witenagemot ou apenas Witan, é preciso enfatizar que a

monarquia anglo-saxã não está ligada diretamente à uma legitimidade

sanguínea hereditária, o que significa que a decisão do Witan tem muito mais

peso. Haroldo, que não era parente de Eduardo, é um caso que demonstra essa

tradição. (ALBUQUERQUE, 2014: 7). Além do sangue, a pessoa deveria ser

nomeada pelo Rei anterior e ainda demonstrar ser capaz de defender o reino.

Algumas fontes normandas afirmam que Eduardo teria prometido o trono à

Guilherme, considerando que eram próximos, mas essa promessa é bastante

nebulosa. Eduardo utilizava constantemente a falta de um sucessor em acordos

políticos, o que significa na prática que ele prometeu o trono mais de uma vez,

para mais de uma pessoa, ou seja, essa ação não seria suficiente para

preencher a reivindicação de Guilherme de legalidade. (DEACON, 2015: 1)

O conselho preferiu coroar Haroldo ao invés de um estrangeiro normando,

essa ação, depois ficará caracterizada em diversas crônicas que retratam a

conquista, como o grande pecado cometido por Haroldo, o falso testemunho,

pois ele havia jurado à Guilherme e depois descumpriu o acordo assumindo o

trono. Logo depois da coroação, as contestações começam a chegar, e não vem

apenas da Normandia, outros personagens aparecem, como por exemplo,

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Haroldo III da Noruega, que afirma que tem direito ao trono, a partir de um acordo

antigo entre Magno e Hardacanuto. Haroldo II, agora rei anglo-saxão, mobiliza

suas forças que combatem a invasão de Haroldo III, que expulsam todos

completamente depois da batalha de Stamford Brigde. Sem tempo para

desmobilizar as forças, Haroldo II descobre que Guilherme chega às fronteiras,

o que os obriga a ir combate-los do outro lado do reino. (ALBUQUERQUE. 2014:

10). Os soldados de Haroldo, cansados, considerando a dificuldade de

locomoção em tão pouco tempo, encontram uma forte oposição sistematizada,

que detinha uma cavalaria superior (FERRARESE, REIS. 2012: 4). Guilherme e

Haroldo II colocam suas forças à prova na Batalha de Hastings, a qual Guilherme

sairá vitorioso, efetivando a conquista normanda da Inglaterra em 1066, o que

marca o fim do período de gestão dos anglo-saxões. Entre Guilherme e Haroldo

III devemos considerar.

(...) Harold Hadrada, king of Norway, who had aspirations to

extend his rule, had no hereditary right. William, on the other hand,

was the great nephew of Queen Emma, sister of Duke Richard II

of Normandy, who had married successively King Aethelred and

King Cnut. It was a slender right, based on colateral descente, but

in sufficed to give show of legitimacy to William’s claim.2

Guilherme realmente invadiu a Inglaterra, principalmente se levarmos em

conta a maneira como a tradição anglo-saxã se comportava para escolher um

novo rei. Seu direito vem da conquista, da força, das armas (DEACON, 2015).

Sua presença no trono vai gerar uma série de descontentamentos e rebeliões,

porque assim que Guilherme chega ao centro do reino começa a destituir a

nobreza anglo-saxã, substituindo-os por normandos. Mesmo que Guilherme

tivesse governado a Normandia, essa nova conquista é determinante para

empregar um desenvolvimento das instituições, pois a ambição de manter a

Inglaterra assim como a Normandia gerará a centralização da monarquia.

Guilherme tomará medidas de reconhecimento e dominação como o Domesday

Book, que foi finalizado apenas em 1086, resultado de um levantamento de

2 CHIBNALL, Marjorie. Anglo-Norman England – 1066-1166. Published Wiley-Blackwell. 1991. P 55

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informações sobre tudo no reino, que auxiliará o novo rei a administrar o

território.

Essa centralização [de terras] foi possível graças ao

recenseamento das terras estabelecido por Guilherme, na forma

do Domesday Book, o Livro do Dia do Senhor, de 1086. Nessa

obra, a totalidade da Inglaterra é tratada como uma herança

passada de Eduardo, o Confessor, ao Conquistador, e não como

uma coleção de feudos, condados e terras livres e

incidentalmente associadas entre si por vários e históricos

tratados e relações diplomáticas anteriores para com os antigos

reis ingleses e seus sucessores.3

Como vimos, os normandos se estruturam conforme os moldes francos,

mesmo contando com as tradições nórdicas, essa nova cultura normanda, vai

transplantar a administração, costumes e até mesmo a língua.

O resultado principal da conquista normanda foi, (...), os

numerosos empréstimos lexicais do francês-normando ao inglês.

A influência francesa se tornou cada vez mais evidente nos

manuscritos ingleses do século XIII. Estima-se que cerca de

10.000 palavras francesas tenham penetrado no inglês nessa

época – muitas das quais tomadas de empréstimo a fontes mais

remotas.4

Vemos a partir da conquista, se inaugurar uma situação que se prolongará

durante séculos na Inglaterra que é a coexistência de pessoas que falam inglês

e francês. As duas línguas cada vez mais associadas ao lugar social ao qual

essa pessoa pertence. Exatamente porque a nobreza estará ligada à Guilherme,

e consequentemente a Normandia, ou seja, a alta aristocracia fala francês, e o

inglês vai ter um caráter mais popular.

Como Guilherme precisava de um discurso que funcionasse como

ferramenta de legitimação, as crônicas vão atuar nesse sentido, ao construir

perfis traçados, nos quais Guilherme ocupa a posição de sucessor, enquanto

3 FERRARESE. Lucio Carlos. Guerra e política: Guilherme, o Conquistador e a batalha de Hastings nas fontes anglo-normandas dos séculos XI e XII. Maringá, 123 p. 2015. Dissertação (de Mestrado em História). Universidade Estadual de Maringá, Maringá, 2015. P 101. 4 OLIVEIRA, João Bittencourt. Do francês ao inglês: um breve estudo da contribuição

francesa ao léxico inglês. P 03

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Haroldo é retratado como usurpador. O discurso a partir da conquista se dará no

sentido de consolidar a imagem de Guilherme, como O Conquistador, sempre

ocupando a posição de enviado por Deus. Essa é uma característica

importantíssima quando trabalhamos com história medieval e

consequentemente cristã.

En lo que se refiere a la Crónica, ésta participa, como el resto de

la historiografia Cristiana, de todos los aspectos señalados del

Providencialismo. La Providencia divina organiza y divide la

historia de la humanidad em grandes eras y elige a un pueblo

encargado de la direción de la Historia. Ambas circunstancias dan

lugar a un optimismo metafísico que confía firmemente em la

existencia de una orden universal al que se adecúan todos los

acontecimentos históricos. Por outro lado, la justicia divina

interviene directamente em la historia administrando acá y acullá

premios y castigos.5

Um traço comum às crônicas desse período é a ação de Deus sobre o

curso da História, ou seja, o providencialismo. No caso das que tratam a

conquista normanda, e incluindo a analisada neste trabalho, Chronicle of the

Kings of England de Guilherme de Malmesbury, afirmam que Guilherme, o

Conquistador foi incumbido por Deus para conquistar a Inglaterra, missão que

ele deveria desempenhar. A moral cristã considerada pouco integrada na

Inglaterra anglo-saxã deveria ser reformada e Guilherme levando a religião teria

o direito de invadir e conquistar. Podemos ver a conotação religiosa em seu

discurso.

The courageous leaders mutually prepared for battle, each

according to his national custom. The english, as we have heard,

passed the night withou sleep, in drinking and singing and in the

morning proceeded withou delay against the enemy. (...) On the

other hand, the Normans passed the whole night in confessing

their sins, and received the communion of the Lord’s body in the

morning.6

5 SANCHEZ, Pedro Juan Gálan. El gênero historiografico de la chronica – las crónicas hispanas de época visigoda. Cáceres. 1994.P 40. 6 MALMESBURY, William of. Chronicle of the Kings of England, from the earliest period to the reign of King Stephen. Por J. A. Giles. 1847. P 276

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Há também o fato de Haroldo ter prometido apoio à Guilherme, quando

esse lhe expõe suas pretensões. Haroldo finge aceitar a proposta, o que o

caracteriza como um pecador, o falso perjúrio de Haroldo, revela o quão errada

essa moral está, se tratando dos anglo-saxões. Ou seja, Haroldo pagou por seu

pecado, assim como todos os anglo-saxões que resistiram a conquista de

Guilherme e mais diretamente o julgamento divino.

Devemos enfatizar que Chronicle of the Kings of England foi escrita em

1128, ou seja, sessenta anos depois da Batalha de Hastings, quando o reinado

de Guilherme, o Conquistador não estava só consolidado, mas já havia acabado.

Mesmo assim, as preposições ainda são comuns às do século XI, no sentido de

garantir que Guilherme tinha o direito de fazer o que fez, além de garantir que o

desenvolvimento trazido pela conquista não acabasse com sua morte, mas fosse

prolongado por seus filhos, o que efetivamente aconteceu.

The reigns of William I’s sons were of immense importance in

administrative anf financial development, as well as being the time

when the Normans became fully integrated in English society

without weakening their cross Chanel ties.7

Sobre o século XII é importante salientar que uma crise dinástica está

prestes a se tornar uma guerra na Inglaterra, pois depois que Guilherme, o

Conquistador morreu, sua herança foi dividida. Guilherme, o Ruivo foi designado

à administrar a Inglaterra e seu irmão mais velho Roberto, a Normandia, que

acabou como duque depois de se desentender com o pai inúmeras vezes e até

conspirar sua morte. (ABBOTT. 2009: 242). Guilherme, o Ruivo governa por

pouco tempo, Roberto faz uma tentativa de reaver os dois territórios, mas seu

outro irmão, Henrique, age com rapidez e consegue afastá-lo e controlá-lo. Até

que, forçando o irmão a abdicar, Henrique I recupera a totalidade da herança de

seu pai.

Henrique I utiliza todas as articulações políticas para tornar seu governo

forte, o que realmente consegue fazer. O rei teve inúmeros filhos bastardos,

7 CHIBNALL, Marjorie. Anglo-Norman England – 1066-1166. Published Wiley-Blackwell. 1991.P 4

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entre eles Roberto de Gloucester, mas apenas um com Edite da Escócia, sua

esposa, Guilherme Adelino, que deveria sucedê-lo, mas este morre durante um

naufrágio. Ou seja, morre antes do pai, Henrique I faz um imenso esforço até

decidir apoiar sua filha Matilde como candidata ao trono, uma decisão bastante

ousada e incomum, levando em conta a posição das mulheres no século XII.

(CHIBNALL. 1991: 78)

Um personagem ganha destaque nesse contexto político, Estevão de

Blois, sobrinho de Henrique I que sempre esteve presente em seu reinado, e

logo vai se colocar como reivindicante do trono (CHIBNALL.1991: 77) Quando

Henrique I, morre em 1135, sem um sucessor legítimo, Matilde e Estevão vão se

enfrentar. Matilde é apoiada militarmente por seu meio irmão Roberto de

Gloucester que vai empregando investidas contínuas ao território inglês, mesmo

assim Estevão se firma no trono, organiza contra-ataques e tendo força similar,

nenhum deles faz grandes avanços nos primeiros anos. Matilde era viúva de

Henrique V, imperador do Sacro Império Romano Germânico, como eles não

tiveram filhos, ela retorna e casa-se com Godofredo V de Anjou, o próprio

condado de Anjou vai desempenhar um papel ativo na guerra, enquanto Matilde

empenha-se em invadir a Inglaterra, Godofredo age sobre a Normandia. A guerra

avança inconclusivamente, até que Henrique Plantageneta, filho de Matilde e

Godofredo toma a dianteira dos combates, aproveitando da impopularidade do

governo de Estevão, que virou um caos graças ao esforço contínuo de guerra,

reivindica a sucessão. Estevão tentará legitimar seu filho, e fracassa, através do

Tratado de Wallingford em 1153, Estevão reconhece Henrique como seu

herdeiro. (CHIBNALL. 1991:100). Acordo que se concretiza, fazendo de

Henrique II o primeiro Plantageneta no trono inglês.

Todo o contexto explanado é motivador da crônica de Guilherme de

Malmesbury, pois em 1128 já era possível notar que a situação só se agravaria.

A crônica trabalhada é particularmente extensa, pois inicia com a retomada da

história anglo-saxã, pela qual Guilherme de Malmesbury nutre uma imensa

admiração, até o reinado de Estevão. Isso é representativo, pois o autor

demonstra com o projeto de sua crônica que é muito importante que a conquista

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de Guilherme em 1066, não seja interpretada como ruptura, pelo contrário, a

continuidade da história é fundamental, tanto que ele se preocupa em sintetizar

os dois períodos. Nossa análise parte do Livro III, no qual Guilherme de

Malmesbury retrata a conquista normanda, reafirmando a proposta pedagógica

tão clara que também aparece em outras obras, que são fontes muito ricas para

o trabalho historiográfico.

Guilherme de Malmesbury no século XII demonstra a partir de sua crônica

muito de suas expectativas, como por exemplo, os encaminhamentos que

tomaria o reinado de Estevão. Reconhecendo que a crise já estava estabelecida,

seu discurso é carregado de legitimidade em relação à conquista, já que o autor

se esforça muito ao propor uma identidade única, para que normandos e anglo-

saxões se sentissem pertencentes a uma união, a sensação de pertencimento

que será central considerando o contexto. Devemos levar em conta que

Guilherme de Malmesbury se interessa e respeita a história anglo-saxã,

considerava Bede uma figura excepcional, e muito desse posicionamento tem

relação com seu nascimento, já que sua mãe era anglo-saxã e o pai normando,

isso lhe permite pensar as duas perspectivas (WOOLEY, 2013: 2). Dessa

maneira podemos compreender porque seu discurso aparenta ambiguidade.

I would not, howerver, had these bad propensities ascribed to the

English universally; I know that many of the clergly at that day trod

the path of sanctity by a blameless life; I know that many of the

laity, of all ranks and conditions. In this nation well pleasing to God.

Be injustice far from this account; the accusation does not envolve

the whole, indiscriminately; but as in Peace the mercy of God often

cherishes the bad and the good together, so equally, does his

severity sometimes include them both in capitivity.8

Ele não deixa de colocar Haroldo como um usurpador, que

inevitavelmente mereceu o que aconteceu, mas mesmo assim ele é apresentado

como uma pessoa de imensas qualidades, como exímio guerreiro, por exemplo.

O autor tenta medir seus argumentos e ser justo com o povo e a tradição anglo-

8 MALMESBURY, William of. Chronicle of the Kings of England, from the earliest period to the reign of King Stephen. Por J. A. Giles. 1847. P 279

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saxã, mesmo que esta precisasse da intervenção divina, solidificada na

conquista de Guilherme.

The valour of both leaders was here eminently conspicuous.

Harold, not merely contente with the duty of a general in exhorting

others, diligently entered into every soldier-like office; often would

he strike the enemy when coming to close quarters, so that none

could approach him with impunity : for immediately the same blow

levelled both horse and rider.9

Assim como Guilherme de Malmesbury não deixa de criticar Guilherme,

o Conquistador, mesmo que se empenhe em afirmar sua posição.

É também parte da proposta da crônica relembrar a conquista de

Guilherme, e mesmo que seu reinado já tenha acabado, ainda é essencial

reafirmar a legalidade deste, assim como a conquista como grande

acontecimento e todo valor que lhe cabe, demonstrando que o esforço

empregado em 1066 deve ser prezado e não jogado fora com disputas que

enfraqueceriam o trono. A crônica de Guilherme de Malmesbury demonstra a

riqueza desse tipo de fonte, capaz de nos revelar um projeto de sociedade, pois

mesmo que Guilherme de Malmesbury se preocupe em propor uma identidade,

na prática os dois povos misturados vão demorar muito para se reconhecerem

como único. A conquista normanda será determinante para as transformações

políticas, mas os aspectos culturais não podem ser esquecidos. A visão de

Guilherme de Malmesbury no século XII sobre a conquista do XI, demonstra que

vários aspectos ainda precisam ser reforçados, assim como novos aparecem, a

necessidade de estipular uma identidade. Garantir que Guilherme fosse

lembrado como, o Conquistador e não como o Bastardo é parte de seu projeto

político, que ecoou entre tantas outras vozes que consolidaram essa construção

histórica.

Referências:

Fonte:

MALMESBURY, William of. Chronicle of the Kings of England, from the earliest period to

the reign of King Stephen. Por J. A. Giles. 1847.

9 Ibidem. P 277.

Page 13: CONQUISTA NORMANDA DA INGLATERRA POR … · produção motivada agora pelo século XII, no qual uma séria crise dinástica tomou grandes proporções depois que Henrique I, filho

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