Considerações Sobre Harmonia Modal - Fernando Lewis de Mattos.pdf

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

    INSTITUTO DE ARTES DEPARTAMENTO DE MSICA

    CONSIDERAES SOBRE

    HARMONIA MODAL

    PROF. FERNANDO LEWIS DE MATTOS

  • ***

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE ARTES

    DEPARTAMENTO DE MSICA

    CONSIDERAES SOBRE

    HARMONIA MODAL

    PROF. FERNANDO LEWIS DE MATTOS

    Porto Alegre, dezembro de 2006

  • ***

  • SUMRIO

    I. CONSIDERAES PRELIMINARES SOBRE OS MODOS.................................1 II. ESTRUTURAO DA MSICA MODAL ................................................................5 III. MTODOS DE HARMONIZAO DE MELODIAS MODAIS .........................7

    a) Harmonia esttica ..................................................................................................7 b) Repetio circular de acordes .........................................................................12 c) Sucesso de acordes ...........................................................................................15

    IV. ORGANIZAO CONTRAPONTSTICA .............................................................21 a) Espcies de contraponto....................................................................................22 b) Ampliao das espcies de contraponto .....................................................51 b) Contraponto Livre ................................................................................................61 c) Contraponto imitativo .........................................................................................64 d) Contraponto Invertido ........................................................................................76

  • ***

  • HARMONIZAO DE MELODIA MODAL

    I. CONSIDERAES PRELIMINARES SOBRE OS MODOS

    Modo a maneira como os intervalos de determinada escala se

    relacionam entre si, isto , como se sucedem os intervalos com

    relao nota inicial do modo ou com relao aos sons contguos.

    Qualquer escala com combinao de diferentes intervalos pode

    ser organizada em diferentes modos. Abaixo, esto os modos da

    escala natural diatnica. A ordenao a seguir est organizada desde

    o modo como maior quantidade de intervalos menores e/ou

    diminutos at o modo com maior quantidade de intervalos maiores

    e/ou aumentados com relao nota inicial de cada modo.

    Modo Intervalo

    Lcrio 2m 3m 4J 5d 6m 7m

    Frgio 2m 3m 4J 5J 6m 7m

    Elio 2M 3m 4J 5J 6m 7m

    Menores

    Drico 2M 3m 4J 5J 6M 7m

    Mixoldio 2M 3M 4J 5J 6M 7m

    Jnio 2M 3M 4J 5J 6M 7M

    Maiores

    Ldio 2M 3M 4A 5J 6M 7M

    Quadro n 1: modos da escala diatnica natural

    A classificao dos modos como sendo menores ou maiores diz

    respeito tera maior ou menor com relao nota inicial do modo.

    No apenas as escalas diatnicas podem ser organizadas em

    modos, como qualquer outro tipo de escala com intervalos diferentes.

    Visto que modo a distribuio dos intervalos no interior de

    determinado conjunto sonoro, escalas constitudas apenas por um

    tipo de intervalo, como a escala cromtica (formada somente por

    segundas menores) e a escala de tons inteiros (que tem apenas

    segundas maiores), no tm modos, mas transposies. Isso ocorre

  • 2

    porque as escalas citadas mantm sua constituio intervalar

    (seqncia de segundas menores, na escala cromtica; seqncia de

    segundas maiores, na escala de tons inteiros), mesmo quando se

    toma qualquer uma de suas notas como som inicial. Essa uma das

    razes pelas quais a escala hexatnica (tons inteiros) e a escala

    dodecafnica (cromtica) so consideradas como sendo atonais. A

    distribuio eqidistante dos intervalos desses conjuntos sonoros faz

    com que haja equilbrio total entre os sons que os constituem; isso

    significa que nenhuma nota especfica pode ser mais ou menos

    atrativa dos que as outras. No h, portanto, centro tonal.

    J a escala pentatnica, por exemplo, pode ser ordenada em

    cinco modos diferentes, pois cada nota dessa escala pode ser tomada

    como som inicial e ir produzir diferente distribuio dos intervalos.

    Abaixo, esto os modos da escala Kin chinesa:

    Exemplo n 1

    Cada uma das escalas citadas no ex. 1, acima, apresenta uma

    distribuio particular de intervalos, o que significa que se trata de

    cinco modos diferentes. Atualmente, costuma-se denominar a escala

    pentatnica que inicia em d como pentatnica maior, sendo a

    pentatnica que inicia em l chamada de pentatnica menor. Essas

    denominaes no so exatamente adequadas, pois so

    terminologias derivadas da msica europia. De qualquer forma, so

    freqentemente encontradas.

    Abaixo, est a distribuio dos intervalos de cada um dos

    modos da escala Kin, na ordem dos menores aos maiores intervalos

    com relao nota inicial de cada modo:

  • 3

    Nota

    Inicial

    Intervalo

    D 2 st. 4 st. 7 st. 9 st.

    Sol 2 st. 5 st. 7 st. 9 st.

    R 2 st. 5 st. 7 st. 10 st.

    L 3 st. 5 st. 7 st. 10 st.

    Mi 3 st. 5 st. 8 st. 10 st.

    Quadro n 2: modos da escala Kin chinesa.

    No quadro acima, os intervalos esto organizados de acordo

    com o nmero de semitons que os compem, pois a denominao

    tradicional (2M, 3m, etc.) no condiz com esse tipo de organizao

    sonora em que h somente cinco graus escalares. Os intervalos entre

    o I grau o II grau variam entre dois semitons (nas escalas de d, sol

    e r) e trs semitons (nas escalas de l e mi). Isso significa que, na

    escala Kin, 2st e 3st participam da mesma categoria intervalar,

    aquela existente entre o I e o II graus; os intervalos de 4st e 5st

    participam da categoria intervalar existente entre o I e o III graus; os

    intervalos de 7st e 8st fazem parte da categoria intervalar existente

    entre o I e o IV graus; os intervalos de 9st e 10st so aqueles

    presentes na categoria que h entre o I e o V graus da escala. Isso

    significa que as categorias intervalares da msica diatnica europia

    (2m, 2M, 3m, 3M, etc.) no so adequadas ao entendimento da

    escala chinesa.

    Assim, pode-se perceber que a escala com intervalos de menor

    distncia aquela iniciada em d, que seria, portanto, o menor de

    todos os modos da escala Kin; sendo que a escala que tem os

    intervalos com maior distncia aquela iniciada em mi, o modo maior

    da escala chinesa. Naturalmente, o ouvinte acostumado s categorias

    da msica tonal, percebe a escala de kin no modo d como sendo

    maior porque o intervalo de 4 semitons equivale tera maior

    ocidental, que define esse tipo de modo na msica ocidental. O

  • 4

    mesmo acontece com o modo de l, cujo primeiro intervalo equivale

    tera menor ocidental e, por isso, comumente chamado de escala

    pentatnica menor, quando um dos modos maiores da escala

    pentatnica, isto , com as maiores distncias entre a nota inicial e

    os outros graus.

    Note-se que a ordem crescente de distribuio de intervalos dos

    modos da escala pentatnica coincide com o crculo de quintas: d-

    sol-r-l-mi. Outro fator importante a ser considerado o fato de que

    a escala pentatnica plenamente estvel pelo fato de estar

    embasada nesse crculo de quintas, o que faz com que haja bastante

    equilbrio entre os sons que a compe. As notas do conjunto sonoro

    formado pela escala Kin chinesa (d, r, mi, sol e l) que tm maior

    capacidade para serem empregadas como centros tonais so o sol e o

    l, pois essas notas tm o maior nmero de intervalos polares e o

    menor nmero de intervalos apolares com relao s outras notas do

    conjunto.

    No quadro abaixo, esto representados todos os intervalos

    existentes na escala Kin chinesa e suas relaes de polaridade

    acstica1:

    D R Mi Sol L

    D P A N P N

    R A P A P P

    Mi N A P N P

    Sol P P N P A

    L N P P A P

    Quadro n 3 relaes de polaridade, nos modos da escala Kin

    1 Legenda: P: intervalo polar; A: intervalo apolar; N: intervalo neutro, do ponto de vista das relaes de atrao entre os sons (cf. COSTRE, 1962).

  • 5

    II. ESTRUTURAO DA MSICA MODAL

    Do ponto de vista da estrutura meldico-harmnica, a msica

    modal tem algumas caractersticas que a diferenciam de outras

    formas de organizao sonora.

    Em linhas gerais, podem-se distinguir trs grandes sistemas de

    organizao das alturas: modal, tonal e serial. Os processos de

    estruturao da msica atonal livre no so considerados aqui, pois

    no se trata de um sistema, mas de processos de organizao

    sonora.

    O quadro abaixo demonstra algumas das principais diferenas

    entre esses mtodos de estruturao sonora, na msica ocidental:

    MODAL TONAL SERIAL Centro Tonal Presena de

    centro tonal fixo Presena de centro tonal mvel

    Ausncia de centro tonal

    Elemento mais importante

    Melodia Harmonia Srie

    Mtodo de composio

    Contraponto Harmonia Formas seriais: original, retrgrado, inverso, retrgrado da inverso

    Carter harmnico

    Esttico ou Sucessivo

    Progressivo Multidirecional

    Discurso Circular: os sons circulam em torno da finalis

    Linear: os sons se propagam na direo da tnica

    Esfrico: sem direcionalidade predeterminada

    Escalas/Modos Diatonismo: 12 modos para 1 escala bsica

    Diatonismo: 2 modos, 12 escalas para cada modo

    Dodecafonismo: sem distribuio de modos

    Quadro n 4: comparao entre sistemas de organizao das alturas.

    O quadro n 4 apresenta algumas caractersticas que podem

    ser levadas em considerao, na harmonizao de linhas meldicas

    com carter modal.

    Em primeiro lugar, as culturas musicais de base modal so

    fortemente meldicas, sendo suas melodias elaboradas em torno de

  • 6

    um centro tonal fixo. Na msica europia tradicional, esse centro

    tonal chamado de finalis2 do modo.

    A melodia gregoriana abaixo, extrada do Kyrie da Missa n 22

    do Liber Usualis, est no modo frgio. Note-se como essa melodia

    circula em torno da nota mi, que a finalis do modo.

    Exemplo n 2

    Como o intervalo de 5J o mais estvel, do ponto de vista

    acstico, bastante comum que as melodias modais se organizem

    em torno desse intervalo, isto , iniciam na finalis do modo e se

    movimentam em torno do quinto grau, como acontece na tocata de

    abertura do Orfeu, de Monteverdi.

    Exemplo n 3

    Tambm na msica brasileira, as melodias modais podem ser

    elaboradas em torno dos intervalos estveis, como nesta cantiga de

    cego, coletada na Feira de Bonito, na Bahia. A melodia est no modo

    ldio em sol, sendo que seus graus principais so as notas do acorde

    de G.

    2 Latim: nota final.

  • 7

    Exemplo n 4

    Na melodia acima, os principais pontos de chegada so as notas

    sol (c. 3-4 e 11) e a nota si (c. 6-7); alm disso, a nota sol, que o

    centro tonal do modo, o ponto de partida de todos os grupos

    meldicos (c. 1, 4 e 7), sendo que a nota r, que menos importante

    nessa melodia do que o sol ou o si, o ponto de apoio nos trechos

    em que h movimento ascendente (c. 5, 8 e 9); a nota r tambm

    reforada pelo fato de que alcanada a partir de arpejos

    ascendentes sobre o acorde de G (c. 5 e 8), momentos em que

    ocorre a bordadura r-mi-r.

    III. MTODOS DE HARMONIZAO DE MELODIAS MODAIS

    a) Harmonia esttica

    Por ser embasada em estruturas essencialmente meldicas, o

    mtodo de composio que mais se destaca, em grande parte da

    msica modal com diversas vozes, o contraponto. Isso ocorre

    porque as tcnicas de contraponto tendem a evidenciar a

    sobreposio de linhas meldicas independentes, isto , colocam a

    melodia em evidncia, mesmo em peas escritas em vrias partes.

    O mesmo exemplo da tocata de abertura do Orfeu de

    Monteverdi, citado anteriormente, demonstra claramente esse

    princpio. Neste exemplo, em modo R Jnio, em que est a tocata

    completa, o mesmo acorde de D permanece durante 16 compassos, o

    que produz uma harmonia completamente esttica. Assim, o que

    gera movimento a distribuio das diversas melodias em

    contraponto, com ritmos diferenciados, linhas independentes e

    defasagens na distribuio frasal das partes.

  • 8

    Exemplo n 5

    Esse mtodo empregado por Monteverdi um dos mais

    comumente utilizados na msica moderna, sendo encontrado em

    obras de Stravinsky, Milhaud, Bartk, Villa-Lobos e Ginastera, entre

    outros.

    Tambm na msica popular e no jazz so encontradas melodias

    modais harmonizadas com base em estrutura harmnica esttica.

    Isso pode ser realizado por meio de

  • 9

    Nota pedal ou intervalo fixo, que permanece esttico enquanto a melodia se movimenta no mbito de uma

    escala que tem esses sons como notas atrativas;

    Padro ostinato, que permanece ao longo de determinado perodo de tempo, enquanto a melodia ou o contraponto

    se movimenta com base nesse padro;

    Acorde fixo, que se mantm enquanto a melodia ou contraponto so elaborados com base neste acorde.

    No exemplo abaixo, da cano De Banda (2004), de Vitor

    Ramil, h trs notas que permanecem fixas, na parte de violo3 (r2,

    r3 e f#3), enquanto a parte superior desse instrumento realiza

    variaes cromticas sobre a quinta do acorde, o que faz alternar

    entre os acordes de D e D(b5). A melodia contm forte efeito modal,

    pois apresenta carter circular ao se manifestar como arabesco em

    torno das mesmas notas que fazem parte do acorde de D

    (respectivamente: l, f# e r).

    Exemplo n 6

    J em Lamentos do Morro, de Anbal Sardinha, conhecido como

    Garoto, o pedal de r serve de base para a realizao de uma

    3 Note-se que o violo soa oitava inferior do que est escrito.

  • 10

    seqncia harmnica variada, com acordes alterados e emprego de

    dissonncias extremas (7M e 4A). Apesar de o pedal permanecer

    esttico, esse processo configura direcionalidade ao segmento devido

    sonoridade de dominante presente em grande parte dos acordes.

    Alm disso, o ltimo acorde, que um G#, tem forte sentido

    modulatrio. Por isso, diferentemente do efeito modal da cano de

    Ramil, o trecho a seguir tem carter harmnico tonal.

    Exemplo n 7

    A cano That Old Black Magic, de John Mercer e Harold Arlen,

    introduzida por dez compassos embasados em um ostinato sobre o

    primeiro e o quinto graus de F Maior, conforme aparece no seguinte

    arranjo de Oscar Peterson:

    Exemplo n 8

  • 11

    A estaticidade da harmonia, que elaborada em torno das

    mesmas notas fundamental, 3, 7M e 13, do acorde de F7M(13)

    , e o baixo com padro ostinato configuram carter modal a essa

    introduo. Um processo semelhante ocorre na introduo da Milonga

    em R, de Astor Piazzolla:

    Exemplo n 9

    No exemplo acima, o ostinato realizado sobre o primeiro e o

    quinto graus do modo elio em r (notas: r e l), enquanto a

    melodia refora a tera desse modo (nota: f). Assim, o conjunto gira

    em torno da trade de Dm.

    A Milonga del Angel, tambm de Piazzolla, inicia com um acorde

    fixo de Bm. Enquanto todas as outras vozes mantm as notas desse

    acorde, ocorre um movimento cromtico descendente em uma das

    partes intermedirias. O processo produz uma seqncia de

    diferentes sonoridades com base na mesma harmonia: BmBm7

    Bm6Bm(b6)4. Simultaneamente, a melodia consolida o efeito

    4 Este acorde mais comumente cifrado como: G7M/B. A cifra empregada no texto tem a funo de demonstrar as variaes em torno da mesma harmonia.

  • 12

    esttico, com carter modal, ao se repetir em torno das mesmas

    notas.

    Exemplo n 10

    Em The Continental, de Con Conrad, o acorde fixo de G aparece

    de maneira intermitente, alternando com o movimento meldico. Este

    outro processo bastante eficiente para a organizao da parte de

    acompanhamento, visto que se produz um efeito semicontrapontstico

    devido interao rtmica, na relao entre a linha meldica e o

    acompanhamento.

    Exemplo n 11

    b) Repetio circular de acordes

    Um mtodo bastante freqente, amplamente empregado pelos

    msicos franceses da passagem do sculo XIX ao sculo XX, a

    repetio de alguns poucos acordes durante longos perodos de

    tempo.

    Um dos compositores que se destacou pelo emprego desse

    recurso foi Erik Satie (1866-1925). Entre suas sries mais

  • 13

    conhecidas, esto as Trois Gymnopdies (1888) e as Trois

    Gnossiennes (1890), cujos ttulos so referentes a danas da Grcia

    antiga. A primeira Gymnopdie organizada em torno da repetio

    incessante do encadeamento de apenas dois acordes: G7MD7M.

    Alguns pontos em que aparecem outros acordes tm apenas o

    sentido de enfatizar a circularidade harmnica obtida pela repetio

    desses dois acordes.

    Abaixo, esto os primeiros compassos da primeira Gymnopdie,

    de Satie:

    Exemplo n 12

    Note-se que, para criar um efeito modal, na pea de Satie, os

    acordes tm a stima maior, pois se o encadeamento fosse entre os

    acordes G-D7, por exemplo, se produziria um efeito tonal, devido ao

    carter de dominante que possui o acorde maior com stima menor.

    Isso indica que prefervel evitar acordes com sonoridade de

    dominante, tais como acordes maiores com stima menor, acordes de

    stima diminuta, acordes de quinta aumentada e todos os acordes

    que possuem trtonos quando a inteno produzir circularidade

    modal, na harmonia.

  • 14

    Uma estrutura harmnica com maior quantidade de acordes

    tambm pode ser empregada para gerar um efeito modal, conforme

    ocorre no exemplo abaixo, extrado de La Danza de la Moza Donosa,

    de Alberto Ginastera.

    Exemplo n 13

    No exemplo 13, acima, h combinao de diferentes modos, em

    torno da fundamental l. Os seguintes elementos conferem o carter

    pan-modal estrutura harmnica da pea de Ginastera:

    Acordes formados com base em intervalos de 5J Estrutura meldica que gira em torno de determinada

    nota, como a nota mi, at o c. 9

  • 15

    Estrutura harmnica circular, gerada pela alternncia dos mesmos acordes em diferentes ordenaes

    Alternncia equilibrada entre movimentos fracos e movimentos fortes entre fundamentais de acordes, o que

    confere ausncia de direcionalidade

    Alternncia meldica entre notas que caracterizam diferentes modos em torno de l: d natural: modo elio;

    d#: modo mixoldio; f#: modo drico; sol#: modo

    jnio; sib: modo frgio

    interessante notar como os movimentos cromticos presentes

    na voz intermediria, entre os compassos 13 e 19, no comprometem

    o efeito modal, apesar de produzirem certa direcionalidade meldica.

    c) Sucesso de acordes

    Outra maneira de obter efeito modal, com diversidade

    harmnica alcanada pelo emprego de vrios acordes distintos,

    podendo inclusive aproveitar a totalidade dos acordes de determinado

    modo ou escala, atravs de sucesses de acordes. Isso pode ser

    realizado pelo domnio dos movimentos entre fundamentais de

    acordes ou por meio da inverso do ciclo tonal.

    Para discutir esse processo, ser necessrio discutir alguns

    pontos determinantes do Sistema Tonal.

    Conforme da definio de J.-P. Rameau, em seu Tratado de

    Harmonia (1722), os movimentos entre fundamentais de acordes

    so:

    Movimentos Fortes: 5J descendente, 3M descendente ou 3m descendente;

    Movimentos Fracos: 5J ascendente, 3M ascendente ou 3m ascendente

  • 16

    Os movimentos obtidos por segundas maiores ou

    menores, ascendentes ou descendentes, podem ser

    considerados neutros, pois dependem do contexto em que

    ocorrem, isto , em progresses harmnicas tendem a ser

    fortes; em sucesses harmnicas ou em seqncias regressivas

    tendem a ser fracos5.

    Tomando-se, como ponto de referncia, a escala diatnica

    natural, com o centro tonal d, por exemplo, tem-se a

    possibilidade de produzir tanto o modo de D Jnio quanto a

    tonalidade de D Maior. O que os diferencia um modo de uma

    tonalidade a forma como a estrutura meldico-harmnica se

    manifesta.

    Se houver uma tendncia predominantemente

    progressiva, com direcionalidade fortemente conduzida at os

    pontos cadenciais, tem-se a tonalidade de D Maior.

    Se a estrutura se manifestar como uma sucesso de

    acordes, sem direo determinada, em que a harmonia parece

    flutuar livremente, sem conduzir a pontos estabelecidos, tem-se

    o modo de D Jnio.

    Assim, estas duas seqncias harmnicas tm carter

    fortemente tonal:

    5 Em seu tratado, Rameau definiu os movimentos entre fundamentais de acordes que ocorrem por segundas ascendentes ou descendentes como sendo fuper-fortes.

  • 17

    Exemplo n 14

    A seqncia presente no ex. 14(a) construda como um

    crculo de quintas, na tonalidade de D Maior, pois o movimento

    existente entre todas as fundamentais de acordes de quinta justa

    descendente. Esse o mais forte dentre os movimentos de

    fundamentais.

    A seqncia harmnica presente no ex. 14(b) tambm

    fortemente tonal porque, alm de estar construda com base em

    movimentos fortes entre fundamentais atravs de progresses

    descendentes de 3m (d-l), 3M (l-f), 3m (f-r), 5J (r-sol) e

    5J (sol-d) , segue estritamente o ciclo tonal TSDT. Na tonalidade de D Maior, os acordes tm as seguintes

    funes:

    Tnica: C [T], Am [Tr], Em [Ta], Cm [t], Eb [tR], Ab [tA] Subdominante: F [S], Dm [Sr], Am [Sa], Fm [s], Ab [sR],

    Db [sA], D7 [DD 7] Ab7 [Al6], etc.

    Dominante: G [D], Em [Dr], Bm [Da], B [D9], B [D9>], Db7[Sub-V], etc.

    No quadro acima, esto incorporados os acordes alterados e

    aqueles obtidos por emprstimo modal. Qualquer dos acordes citados

    pode ser expandido por meio de acrscimo de 7, 9, 11 ou 13 ,

  • 18

    como tambm podem ser apresentados com sexta ou nona

    adicionadas.

    Assim, estes tambm so acordes com funo de tnica, em D

    Maior: C7M, C7M(9), C6, etc.; tambm so subdominantes, os

    acordes de F7M, F7M(9), F6, Dm7, Ab7(b5), etc.; tambm so

    dominantes: G7, G7(13), G7(b13), Db7(#11), etc.

    Note-se que os acordes de dominante da dominante D7 e

    as sextas aumentadas sexta alem: Ab7; sexta francesa: Ab7(b5)

    esto listados entre os acordes com funo de subdominante. Essa

    classificao se deve ao fato de que esses acordes afastam da tnica

    e conduzem dominante. Isso quer dizer que, em um nvel mais

    profundo da estrutura harmnica, todos os acordes que conduzem

    dominante tm a mesma funo harmnica que a subdominante.

    Assim, a dominante da dominante uma espcie de subdominante

    alterada.

    Aps essas consideraes sobre o carter harmnico tonal,

    pode-se esclarecer, por comparao, o efeito modal produzido

    atravs de sucesses de acordes, o que resulta em uma harmonia

    flutuante.

    A maneira mais simples para se obter um efeito modal com o

    emprego de vrios acordes que giram em torno de determinado

    centro tonal (seja uma nota, um intervalo ou um acorde), atravs

    do predomnio de movimentos fracos entre fundamentais de acordes.

    Isso pode ser obtido com intervalos de quinta ascendente ou tera

    ascendente entre as fundamentais.

    A cano Lamour, la mort et la vie, de Clment Janequin, pode

    ser tomada como um exemplo tpico dos processos modais da msica

    renascentista. A pea inicia com uma seqncia de acordes

    encadeados com base em movimento fraco entre suas fundamentais

    [cf. ex. 15(a)]: F C Bb Bb/F F. O carter modal , ainda,

    reforado pela harmonia esttica sobre o acorde de Bb, entre o incio

  • 19

    do c. 3 e o primeiro tempo do c. 5 [cf. ex. 15(b)]6. Entretanto, para

    finalizar a primeira frase da msica, h uma seqncia de

    movimentos fortes, para alcanar a semi-cadncia, com os acordes

    [cf. ex. 15(c)]: F G C. Este outro procedimento tpico da

    Renascena: emprego de curtos trechos com carter progressivo para

    preparar as cadncias.

    Exemplo n 15

    No trecho a seguir, extrado da mesma cano de Janequin (c.

    29-34), o efeito modal reforado pela cadncia plagal, produzida

    pelo movimento fraco, de 5J descendente, entre as fundamentais.

    Exemplo n 16

    6 Note-se que o acorde de Bb/F o resultado do emprego de uma suspenso (sib-l), no soprano, e de uma nota de passagem acentuada (mi-r-d), no contralto.

  • 20

    No exemplo acima, esto anotados todos os encadeamentos

    harmnicos com carter modal, seja devido ao tipo de movimento

    entre fundamentais de acordes, obtido pelo predomnio de

    movimentos fracos ou neutros, seja devido ao carter sucessivo

    obtido pela reverso do ciclo tonal.

    Os movimentos fracos entre fundamentais de acordes, no

    trecho citado de Janequin [cf. ex. 16], esto assinalados pela

    indicao dos intervalos de 5J ascendente, sendo que os

    movimentos neutros aparecem por meio de intervalos 2M ou 2m

    ascendentes. Note-se que, em um total de treze acordes encadeados,

    somente dois movimentos so fortes, ambos realizados pela

    progresso F Bb, isto , tnica-subdominante, presentes na

    passagem do primeiro ao segundo compasso e no incio do penltimo

    compasso.

    Os movimentos modais obtidos pela reverso do ciclo tonal

    esto indicados pelos colchetes dispostos abaixo das cifras das

    funes, sendo que os movimentos tonais esto indicados por meio

    de setas que indicam a progresso de uma funo outra. Note-se

    que h equilbrio entre o nmero de progresses e sucesses, pois

    cada uma delas ocorre seis vezes. Conforme j foi comentado quanto

    pea de Ginastera, esse equilbrio confere sentido modal ao trecho.

    Os pontos em que cada tipo de encadeamento ocorre tambm

    definem o carter modal do segmento, isto , o predomnio de

    sucesses modais presentes no incio e no final do trecho, inclusive

    na cadncia, reforam o efeito flutuante. Alm disso, um dos

    encadeamentos que segue o ciclo tonal, entre os acordes C Dm,

    que perfaz um movimento dominante-tnica no c. 32, ocorre como

    uma regresso harmnica devido ao fato de que o acorde de Dm

    (tnica relativa) soaria, em um contexto progressivo, como um

    movimento deceptivo, aps a escuta da dominante. Isso ocorre

    porque a tendncia mais forte da dominante conduzir para a tnica

  • 21

    e o encadeamento para a relativa provoca um desvio com relao

    quilo que esperado.

    Percebe-se, assim, como possvel produzir um carter

    flutuante com diversidade harmnica, atravs da forma como os

    acordes so encadeados. Note-se que, no trecho citado da cano de

    Janequin, so empregados todos os acordes do modo de F Jnio,

    com exceo do acorde construdo sobre o stimo grau, e, mesmo

    assim, produz-se um efeito modal atravs da sucesso harmnica.

    IV. ORGANIZAO CONTRAPONTSTICA

    Outra maneira de produzir um efeito modal atravs da

    primazia do contraponto sobre a harmonia. Geralmente, os

    musiclogos entendem que, na msica medieval e renascentista

    europia, a harmonia obtida a partir da polifonia, isto , o

    contraponto aparece em primeiro plano e a harmonia o resultado da

    combinao de diversas vozes que formam a textura polifnica. Diz-

    se, tambm, que, na msica modal ocorre uma harmonia de

    intervalos, ou seja, o processo de composio leva em considerao

    a combinao intervalar entre as partes para produzir a textura geral.

    Os acordes, assim, resultam da combinao de intervalos entre vozes

    individuais.

    Na msica tonal, ao contrrio do processo descrito acima, a

    harmonia planejada anteriormente elaborao das vozes

    individuais, que so, portanto, o resultado de uma concepo

    harmnica predeterminada.

    Com essas consideraes em mente, podem-se elaborar

    estruturas modais a partir da combinao intervalar entre as vozes,

    sem preocupao prvia com o resultado harmnico. Geralmente, as

    tcnicas mais comumente utilizadas para obter esse tipo de resultado

    so as seguintes:

    Contraponto por espcie

  • 22

    Contraponto livre Contraponto imitativo Contraponto invertido

    Abaixo, esto algumas consideraes gerais sobre as tcnicas

    contrapontsticas mais usuais.

    Os princpios do contraponto desenvolvidos por J. J. Fux (1660-

    1741) em sua obra Gradus ad Parnassum (1725) serviram de base

    para o estudo do contraponto, desde ento at os dias de hoje. Com

    base na anlise da polifonia vocal de compositores como Giovanni

    Palestrina e Orlando di Lassus (1532-1604), Fux organizou o estudo

    do contraponto em cinco espcies, visando desenvolver as

    habilidades no controle dos diferentes tipos de dissonncia (nota de

    passagem, bordadura, cambiata e suspenso). Esse sistema foi o

    principal mtodo estudado pelos msicos dos sculos XVIII e XIX, na

    aprendizagem das tcnicas de composio. No incio do sculo XX, o

    musiclogo dinamarqus Knud Jeppesen (1892-1974) aprimorou o

    sistema de Fux com base na anlise estilstica do sistema modal

    eclesistico do sculo XVI.

    Assim, o sistema didtico de Fux encontra seu correspondente

    musicolgico nos princpios estilsticos de Jeppesen.

    a) Espcies de contraponto

    As cinco espcies de contraponto, conforme concebidas por Fux

    e desenvolvidas por Jeppesen, so as seguintes:

    Primeira Espcie contraponto de nota contra nota. Consiste em uma linha meldica na qual realizada uma nota

    de contraponto para cada nota do cantus firmus. J que, no estudo

    tradicional das espcies, o cantus firmus escrito em semibreves, a

    voz de contraponto tambm se apresenta em semibreves.

  • 23

    No contraponto de primeira espcie, somente podem ocorrer

    consonncias7.

    Exemplo n 17 realizado por Jeppesen.

    Na prtica musical, porm, as melodias utilizadas como canti

    firmi, isto , a partir das quais so escritos arranjos ou novas

    composies, podem aparecer com base em qualquer tipo de

    ordenao rtmica. Desta forma, o que deve ser considerado para a

    elaborao do contraponto, a estrutura rtmica da melodia original.

    Esta melodia aparece na voz de soprano, no final da cano

    Mon coeur se recommande vous, de Lassus:

    Exemplo n 18

    Se essa melodia for tomada como cantus firmus, para a

    elaborao de uma textura a quatro vozes em contraponto de

    primeira espcie (nota-contra-nota), obtm-se o seguinte resultado:

    7 Todos os exemplos de contraponto renascentista apresentados a seguir foram retirados da obra Counterpoint the polyphonic style of the sixteenth Century, de Knud Jeppesen.

  • 24

    Exemplo n 19

    O segmento musical citado acima a estrutura completa

    presente na ltima estrofe da cano de Lassus, que est, portanto,

    organizada com base em contraponto de primeira espcie. Mesmo

    que apresente variedade rtmica, em todos os momentos do exemplo

    19 h contraponto nota-contra-nota.

    Esse exemplo esclarece que a primeira espcie de contraponto,

    assim como qualquer outra espcie, pode ser elaborada a partir de

    qualquer organizao rtmica. Essa compreenso bastante til para

    a elaborao de arranjos de canes brasileiras, em que a

    organizao mtrico-rtmica , geralmente, complexa.

    Segunda Espcie contraponto de duas notas contra uma Para cada nota do cantus firmus, na segunda espcie,

    combinam-se duas notas de contraponto. Assim, a voz do

    contraponto consiste em uma linha meldica em mnimas contra as

    semibreves do cantus firmus.

    No mtodo formulado por Fux, nesta espcie, as dissonncias

    podem ocorrer como notas de passagem.

    Exemplo n 20 realizado por Jeppesen.

  • 25

    Uma forma de ampliao da estrutura rtmica que pode ser

    obtida na elaborao da segunda espcie de contraponto, a

    adaptao dessa espcie diviso ternria, ou seja, ao compasso

    composto. Esse processo j era aplicado pelos compositores do

    passado, sempre que escreviam peas em compasso ternrio ou em

    compasso composto, como ocorre nas gigas barrocas, por exemplo.

    A seguir, est o incio da giga da Sute Inglesa n 2, de J. S.

    Bach:

    Exemplo n 21

    No exemplo acima, ocorre tratamento rigoroso das duas vozes

    em contraponto de segunda espcie: os saltos meldicos somente

    ocorrem com notas da harmonia e as dissonncias so tratadas como

    notas de passagem, indicadas pelo smbolo [np]; os trtonos so

    resolvidos como notas atrativas, isto , como sensveis (assinaladas

    com linhas que interligam as notas).

    Um fator interessante, ocorre na voz inferior, no ltimo

    compasso do exemplo 21. A nota f# do quinto tempo atacada

    simultaneamente ao mi da parte superior, o que poderia ser

    entendido como uma burla das normas do contraponto, pois se

    trataria de contraponto nota-contra-nota. Na verdade, o que ocorre

    o seguinte: a nota mi tomada como uma nota longa, sendo que o

    salto de oitava mi3-mi4, da voz superior, apenas uma mudana de

    registro da mesma nota.

  • 26

    Por isso, o segmento deve ser entendido como o modelo que

    aparece abaixo:

    Exemplo n 22

    Entendido dessa maneira, o f# uma nota de passagem, em

    contraponto de segunda espcie.

    Da mesma maneira que foi comentado com relao primeira

    espcie, no contraponto de segunda espcie podem ser combinados

    diferentes ritmos, desde que a relao entre as vozes esteja na

    proporo de duas contra uma ou trs contra uma.

    Assim, ampliam-se as possibilidades de distribuio rtmica

    desta espcie, sendo possveis, entre outras, as seguintes

    combinaes de duas ou trs notas contra uma:

    Exemplo n 23

    No I Ciclo Nordestino, de Marlos Nobre, ocorrem vrias formas

    de organizar as duas vozes em contraponto que podem ser

    entendidas com base na ampliao da segunda espcie de

    contraponto.

  • 27

    Abaixo, est o trecho inicial do primeiro movimento, intitulado

    Samba Matuto:

    Exemplo n 24

    Note-se que, no Samba Matuto, a primeira frase construda

    com base em contraponto imitativo tratado como segunda espcie.

    H, na relao entre as vozes, duas notas contra uma, nos

    compassos 2 e 5, por exemplo. No primeiro tempo do compasso 3, a

    segunda espcie elaborada com base na relao de trs notas

    contra uma, atravs do ritmo sincopado; o mesmo ocorre no c. 4.

    Naturalmente, como compositor da segunda metade do sculo XX,

    Nobre no se atm s regras estritas do contraponto tradicional, no

    que diz respeito ao controle das dissonncias.

    Nessa mesma pea de Nobre, percebe-se tambm outra

    possibilidade de ampliao das combinaes rtmicas atravs da

    interao entre as vozes pela alternncia das inter-relaes: no c. 2

    a voz inferior que est na relao 2x1; no c. 3, a relao se inverte e

    a voz inferior que produz a relao 2x1; no c. 4, a reao 2x1 est

    novamente na voz superior; esse processo alterna at o final do

    exemplo 24.

    No incio do segundo movimento do mesmo Ciclo Nordestino,

    intitulado Cantiga, ocorre um processo mais sofisticado de elaborao

    do contraponto de segunda espcie:

  • 28

    Exemplo n 25

    J no primeiro compasso do exemplo acima, as vozes se

    relacionam na proporo 2x1, porm com deslocamento rtmico

    produzido pela introduo da figura pontuada que produz alternncia

    rtmica na relao entre as vozes. No segundo compasso, o ponto

    adicionado colcheia produz um efeito semelhante de deslocamento

    e alternncia das vozes, porm em um nvel mais detalhado da

    diviso rtmica. Se no primeiro compasso, a figura pontuada ocorre

    no nvel do compasso (h = q . e), no segundo compasso, aparece no

    nvel do tempo (q = e. x).

    A seguir, est a demonstrao de como ocorre a alternncia de

    vozes e o deslocamento rtmico.

    Tendo-se a semnima como referncia, o contraponto de

    segunda espcie (2x1) ocorre da seguinte forma:

    q q

    e e e e

    A maneira mais simples de realizar a alternncia de vozes seria

    invertendo a colocao das semnimas e colcheias em relao s

    vozes, em um segundo compasso:

  • 29

    q q | e e e e

    e e e e | q q

    Esse processo ocorre em todos os compassos do ex. 24 e nos

    dois ltimos compassos do ex. 25, devido ao processo imitativo que

    ocorre nesses segmentos.

    Pode-se, tambm, operar a alternncia das vozes no interior do

    mesmo compasso:

    q e e

    e e q

    Esse o primeiro procedimento para gerar o que acontece no

    primeiro compasso do ex. 25. O prximo passo o deslocamento

    rtmico, que tem sua origem no contraponto sincopado (quarta

    espcie).

    Na figura apresentada acima, h um ritmo complementar em

    colcheias, isto , o resultado rtmico da interao entre as duas

    partes a colcheia. O ritmo resultante permanece o mesmo se

    apenas uma das vozes articular os pontos em que h ataques

    concomitantes. Note-se que, na figura acima, a parte principal de

    cada tempo atacada por ambas as vozes.

    Para eliminar o ataque da voz superior no segundo tempo,

    basta ligar a semnima do primeiro tempo colcheia que se encontra

    na parte principal do segundo tempo, isto , torn-la uma semnima

    pontuada:

    q . e

    e e q

  • 30

    Com isso, somente a voz inferior articula o segundo tempo. A

    maneira mais direta de fazer com que o primeiro tempo seja

    articulado somente pela primeira voz, substituir a primeira colcheia

    da voz inferior por uma pausa:

    q . e

    e q

    Se houvesse a inteno de repetir esse padro, a primeira

    colcheia do segundo compasso poderia ser substituda tanto por

    pausa quanto por ligadura, o que produziria uma sncope de um

    compasso a outro:

    q . e | q . e

    e q | e e q

    Com os procedimentos descritos acima, possvel realizar

    diversas combinaes entre as partes a partir do contraponto de

    segunda ou terceira espcie, atravs de alternncias entre as vozes e

    por meio de deslocamentos rtmicos. isso que ocorre em vrios

    trechos da pea de Marlos Nobre.

    Na Cantiga, h, ainda, outros processos de distribuio rtmica

    e interao entre as vozes: no c. 4, o contraponto de segunda

    espcie elaborado na proporo 3x1, por meio do emprego de

    tercinas. Nos compassos de nmero 5 e 6 ocorrem cruzamentos

    rtmicos na proporo de duas notas contra trs (2x3), no segundo

    tempo desses compassos.

    Todos esses processos de organizao rtmica so oriundos da

    msica popular brasileira, particularmente da msica nordestina,

    repertrio do qual Marlos Nobre aproveitou o material temtico para a

    elaborao da pea.

  • 31

    Terceira Espcie contraponto de quatro notas contra uma Na terceira espcie, so realizadas quatro notas de contraponto

    para cada nota do cantus firmus, ou seja, o contraponto escrito em

    semnimas contra as semibreves do c.f.

    Alm de notas de passagem, podem ocorrer dissonncias como

    bordadura e como cambiata.

    Exemplo n 26 realizado por Jeppesen.

    Nesta espcie, as relaes rtmicas entre as vozes tambm

    podem ser ampliadas atravs da aplicao dos mesmos princpios

    empregados para o contraponto de segunda espcie.

    Inicialmente, pode-se fazer a mesma relao de organizao

    rtmica, que na diviso binria ocorre como 4x1, atravs da aplicao

    da diviso ternria, onde obtm-se a relao 6x1. Se for tomado o

    compasso 6/8 como referncia, tem-se que para cada semnima

    pontuada so elaboradas seis semicolcheias em contraponto.

    Na fuga do Preldio e Fuga BWV 543, de J. S. Bach, para rgo,

    em compasso binrio composto, exatamente esse tipo de relao

    que ocorre no contraponto.

    O trecho a seguir demonstra esse processo:

  • 32

    Exemplo n 27

    No exemplo acima, uma das vozes intermedirias sempre se

    encontra em semicolcheias contra semnimas pontuadas da voz

    superior. A inteno de demonstrar esse tipo de contraponto atravs

    da grafia chega ao ponto de escrever as notas r e d, presentes nos

    dois ltimos compassos do exemplo 27, como semnimas pontuadas

    ligadas, quando poderiam ser escritas como mnimas pontuadas. O

    baixo do trecho citado, que executado na pedaleira do rgo, se

    relaciona como segunda espcie contra as outras vozes: 3x1 na

    relao entre baixo e soprano e 6x3 (ou 2x1) na relao entre baixo e

    tenor.

    O mesmo tipo de relao se encontra no trecho do terceiro

    movimento da Sonata Op. 120 (1825), de F. Schubert citado no ex.

    28(a). As vozes extremas se relacionam como contraponto de

    terceira espcie, na proporo 6x1, ao passo que a voz intermediria

    se relaciona como contraponto de segunda espcie com as outras

    duas vozes: 2x1, na relao com a voz superior; 3x1, na relao com

    o baixo.

    No exemplo 28(b), extrado do final do terceiro movimento da

    Sonata n 3 (1817), tambm de Schubert, as vozes inferiores

    realizam encadeamento de acordes em contraponto de terceira

    espcie (6x1) com relao parte superior. Note-se, neste exemplo,

    que os acordes so executados em colcheias; isso, porm, no

    modifica a relao entre as partes, pois em uma reduo harmnica

    do trecho, os sons repetidos passam a ser entendidos como notas

    longas.

  • 33

    Exemplo n 28

    Naturalmente, este processo de elaborao de seis notas contra

    uma pode ser realizado em qualquer tipo de mtrica ou diviso

    ternria, como, por exemplo: em compasso ternrio simples, como

    3/4, a relao do contraponto seria de seis colcheias contra uma

    mnima pontuada; em compasso ternrio composto, como 9/8,

    ocorreriam trs vezes seis semicolcheias contra cada semnima

    pontuada; em compasso quaternrio composto, como 12/8,

    ocorreriam quatro vezes seis semicolcheias contra cada semnima

    pontuada.

    Nos dois compassos do preldio da Sute Inglesa n 6, de J. S.

    Bach, em compasso 9/8, citados no ex. 29, seis semicolcheias da voz

    superior so contrapostas a cada semnima do baixo; isso ocorre trs

    vezes em cada compasso, por se tratar de um compasso ternrio

    composto.

  • 34

    Exemplo n 29

    Aplicando-se o mesmo raciocnio que foi explicado

    anteriormente para ampliar as possibilidades de diviso regular do

    pulso, podem-se conceber vrias possibilidades de inter-relaes

    rtmicas entre as vozes, na terceira espcie de contraponto. Podem

    ser empregadas, por exemplo, quilteras de cinco, seis ou sete sons;

    podem ser utilizados ritmos sincopados que englobem entre quatro e

    oito notas contra cada nota da melodia utilizada como cantus firmus.

    Esses processos de elaborao rtmica, apesar de terem sido

    sistematicamente incorporados somente na msica moderna, j eram

    praticados pelos msicos da Ars Antiqua, no sculo XIII. Nesta poca,

    os msicos europeus estavam descobrindo o princpio praticado at

    hoje da diviso proporcional dos valores rtmicos, o que os levou

    elaborao de intrincados contrapontos com divises que iam de duas

    a mais de dez notas contra uma.

    O compositor Petrus de Cruce foi um dos msicos desse perodo

    que mais se dedicou a pesquisar as possibilidades de diviso dos

    valores rtmicos. No incio do moteto Aucun ont trouv (c. 1300), de

    Cruce, o triplum (voz escrita no pentagrama superior) j inicia com

    valores rtmicos que se contrapem ao cantus firmus (voz de tenor,

    escrita no pentagrama inferior), na proporo de 8x1 e 9x1 [cf. ex.

    30]. Para alcanar esse resultado, necessrio o emprego de

    quilteras, sendo que so elaboradas inclusive quintinas, no segundo

    compasso do exemplo abaixo.

  • 35

    Exemplo n 30

    No primeiro compasso da introduo da cano Anoitece, Op.

    34 n 2, de Alberto Nepomuceno, se contrapem cinco notas da parte

    superior do piano contra cada nota do acompanhamento; no segundo

    compasso so 6x1. Isso obtido atravs do emprego de sncopes na

    segunda metade de cada compasso [cf. ex. 31].

    Exemplo n 31

    Nos primeiros compassos de Canto sem cho (1976), de Bruno

    Kiefer, para dois violinos, obtido um impressionante efeito

    contrapontstico entre os dois instrumentos, atravs do uso de

    quilteras e contratempos na parte do segundo violino, ao mesmo

    tempo em que o primeiro realiza notas longas [cf. ex. 32]. Este tipo

    de estrutura fragmentria caracterstica do compositor.

  • 36

    Exemplo n 32

    Em Terra Sofrida, tambm de Kiefer, para dois violes, ocorre

    outro tipo de combinao contrapontstica, em uma textura a trs

    vozes. A voz intermediria executa semnimas; ao mesmo tempo, a

    voz superior realiza quintinas e a voz inferior semicolcheias. O

    resultado um cruzamento rtmico contnuo (5x1x4), com carter

    inquieto e violento.

    Exemplo n 33

  • 37

    Nas peas de Kiefer, que tm forte carter atonal, o emprego

    dos intervalos meldicos e harmnicos no segue qualquer critrio

    preestabelecido tradicionalmente, mas so combinados de acordo

    com o resultado sonoro pretendido.

    Em Terra Sofrida, a combinao intervalar se desataca pelo

    emprego de dissonncias extremas: as notas do primeiro compasso

    so f, sol, d e f#, o que produz intervalos de 2M (f-sol), 9m

    (f/f#), 7M (sol/f#) e trtono (d/f#) na relao entre as partes.

    O restante do trecho citado organizado como diferentes

    transposies desse primeiro compasso.

    Outra caracterstica notvel, que ocorre nos primeiros

    compassos do ex. 33, o fato de que cada uma das partes se

    movimenta no mbito de uma escala diferente de tons inteiros

    violo I: d-r-mi-f#-sol#-l#; violo II: f-sol-l-si-d#-[r#]8.

    Isso produz um efeito peculiar, na relao entre as partes, pois ao

    ocorrer o movimento simultneo das duas escalas de tons inteiros, o

    resultado total da interao entre as partes uma escala cromtica

    completa. Note-se que essas so as duas escalas atonais, por serem

    construdas com base na justaposio do mesmo intervalo.

    Com esses procedimentos adotados por Kiefer, obtm-se aquilo

    a que Schoenberg denominava como emancipao das

    dissonncias, que passam a ser empregadas com a mesma

    regularidade e eficcia que as consonncias.

    Com o que foi discutido acima, percebe-se que so possveis

    todas as combinaes rtmicas e intervalares entre as partes, desde

    que haja uma estrutura de fundo que justifique as diferentes

    combinaes contrapontsticas.

    8 O r# (escrito como mib) aparece somente aps a interrupo do movimento de tons inteiros, por um semitom (d#-d natural), no c. 4, do ex. 33.

  • 38

    Quarta Espcie contraponto sincopado na quarta espcie que se estuda o controle mais rigoroso das

    dissonncias. A voz que se contrape ao cantus firmus, desenrola-se

    como uma seqncia de sncopes resolvidas como suspenses.

    Assim, cada uma das notas do contraponto atacada no tempo

    secundrio como consonncia, transformando-se em dissonncia no

    tempo principal seguinte, por meio do movimento da voz que conduz

    o cantus firmus. A dissonncia gerada deve ser resolvida por grau

    conjunto descendente em uma consonncia imperfeita no tempo

    secundrio seguinte.

    Quando ocorre consonncia no tempo principal, esta pode ser

    movimentada livremente. No tempo secundrio, somente pode haver

    consonncias.

    Exemplo n 34 realizado por Jeppesen.

    Conforme j foi discutido com relao s espcies anteriores,

    tambm na quarta espcie possvel ampliar os princpios do

    contraponto sincopado para qualquer tipo de organizao rtmica ou

    diviso mtrica. Nesta espcie, o que importa que as notas de cada

    uma das partes sejam atacadas separadamente, isto , como

    sncopes ou contratempos.

    Abaixo, esto algumas possibilidades de combinaes rtmicas

    entre duas vozes elaboradas como contraponto sincopado:

    Em compassos simples:

  • 39

    Em compassos compostos:

    Em compassos mistos:

    Exemplo n 35

    Naturalmente, todas as combinaes rtmicas so possveis

    para a formao de contraponto de quarta espcie, com emprego de

    contratempos, sncopes e, inclusive, quilteras.

    Um dos exemplos mais conhecidos de emprego de contraponto

    sincopado em seqncia, conhecido como cadeia de suspenses9,

    ocorre ao longo da Inveno n 6, de Bach.

    9 Considera-se que ocorre uma cadeia de suspenses quando h vrias suspenses em srie. O tipo mais comum aquele em que se emprega um nico tipo de suspenso em cadeia, com as vozes se movimentando na mesma direo, como, por exemplo, 43 43 43 43 ; ou 76 76 76 76.

  • 40

    Exemplo n 36

    No exemplo 36, acima, as duas vozes esto elaboradas como

    contraponto sincopado em movimento contrrio. Note-se que,

    diferentemente dos exemplos encontrados nos tratados de

    contraponto, essa pea est escrita em compasso ternrio simples.

    A figura colocada abaixo da msica indica o perfil meldico

    individual de cada uma das vozes e esclarece como estas se

    relacionam por movimento contrrio, isto , uma linha elaborada

    como espelho horizontal da outra.

    A anlise dos intervalos existentes entre as vozes tambm

    revela a maneira como o contraponto foi construdo. Inicialmente,

    comea com intervalo de 8J, o que tpico no estudo de

    contraponto. Em seguida, ocorre uma suspenso de stima que

    resolve por grau conjunto descendente em uma sexta (suspenso do

    tipo: 76), o que tambm est dentro das normas do contraponto.

    Entretanto, no terceiro tempo do primeiro compasso, um intervalo de

    5J conduz para uma 5d, o que incomum, pois este um intervalo

    dissonante em tempo secundrio. Outros dois movimentos so

    inusuais, segundo as normas do contraponto: na metade do segundo

    compasso, um intervalo de 9M resolve em uma oitava, o que

    significa que a dissonncia resolve em uma consonncia perfeita, o

    que imprprio segundo as regras ortodoxas do contraponto; no

    incio do terceiro compasso, um intervalo de trtono (5d) conduz

  • 41

    para uma 4J, o que significa que uma dissonncia resolve em outra

    dissonncia. Esta 4J finalmente resolve em uma 3M (suspenso do

    tipo: 43), concluindo adequadamente a cadeia de suspenses.

    Por que razo teria Bach conduzido duas dissonncias seguidas

    (5d4J), na passagem do primeiro ao segundo compasso e no incio

    do terceiro compasso? A resposta bastante simples: porque o que

    est em jogo aqui a criao de um contraponto sincopado em

    seqncia, sendo que uma ou outra inobservncia das normas do

    contraponto efetuada com o intuito de realizar a idia que deu

    origem pea: a cadeia de suspenses por movimento contrrio.

    O contraponto sincopado tambm pode se manifestar como

    contratempo, isto , em vez de haver sincopao por meio de

    alongamento das notas (ligaduras), ocorre atravs de notas curtas

    (pausas).

    Um dos casos mais interessantes, nesse sentido, o hoqueto

    da polifonia medieval. O termo hoquetus significa soluo, em latim,

    e indica que os ouvintes da poca percebiam as vozes cantadas em

    contratempo como algo semelhante ao soluo. A tcnica do hoqueto

    foi to empregada, nos sculos XIII e XIV que se chegou a criar um

    gnero musical denominado Hoqueto, que era composto base dessa

    tcnica.

    Abaixo, tem-se o exemplo de um hoqueto (tambm

    denominado moteto instrumental), de compositor annimo do sculo

    XIII, em que o tenor (voz que carrega o cantus firmus) est escrito

    no pentagrama inferior. Os contratempos que caracterizam o hoqueto

    esto indicados por linhas que interligam as duas vozes superiores.

  • 42

    Exemplo n 37

    Mesmo os compositores do Perodo Clssico, que em geral

    davam preferncia a estruturas rtmicas simtricas e regulares, se

    interessaram pela organizao rtmica com base em contratempos.

    Um dos exemplos mais caractersticos, nesse sentido, o tema do

    movimento final da Sonata n 19 (1767), de Joseph Haydn. Este

    tema construdo com base em uma textura transparente, obtida

    pela alternncia de duas vozes em contratempo [cf. ex. 38].

    Exemplo n 38

    Um efeito rtmico impressionante obtido na parte de

    acompanhamento, nos compassos 125-133 do Improviso n 1, de

    Franz Schubert. O simples deslocamento do baixo em contratempo

    produz um resultado quase heterofnico, na relao entre as trs

    partes que constituem a textura deste trecho.

  • 43

    Exemplo n 39

    Os musiclogos atuais costumam denominar essa tcnica dos

    msicos romnticos como acompanhamento heterofnico. Tem-se,

    assim, uma combinao de duas texturas bastante diferentes, quase

    antagnicas: a heterofonia e a melodia acompanhada.

    Os processos de organizao rtmica com base em

    contratempos tm sido amplamente empregados pelos compositores

    do ltimo sculo, sendo usado em larga escala na msica popular

    com ascendncia africana.

    No jazz, por exemplo, h vrios tipos de contratempo que

    servem de fundamento para a organizao de estruturas harmnico-

    meldicas extremamente sofisticadas. Um efeito similar ao hoqueto

    medieval, porm com maior colorido harmnico e variedade rtmica,

    alcanado em Ninth, do guitarrista norte-americano Joe Pass.

  • 44

    Exemplo n 40

    A combinao de apenas duas partes, um baixo cantante e o

    acompanhamento harmnico, presente na parte superior, produz um

    efeito rtmico extremamente variado devido maneira como esta

    parte est composta.

    A parte superior no apenas organizada em contratempo com

    relao ao baixo, como tambm tem seu ritmo distribudo de forma

    irregular, sem ocorrer repetio do mesmo padro rtmico em

    nenhum dos dez compassos citados no ex. 40. Isso, por si s,

    conferiria excelncia musical ao trecho.

    Como se isso no bastasse, a harmonia se move por

    encadeamentos de acordes de stima, acordes de nona e acordes de

    dcima terceira. Alm disso, a parte superior conduzida por

    movimentos paralelos de 4J, entre o segundo e o quinto compasso

    do exemplo acima. Em contraponto a isso, o baixo se movimenta de

    forma mais regular, porm realiza sncopes ou quilteras quando a

    parte superior atacada em parte principal. Com isso se mantm

    uma estrutura rtmica irregular ao longo de todo o segmento citado

    no ex. 40.

    Na cano Sometime Ago, de Chick Corea, ocorrem alternncias

    entre contratempos, existentes entre o baixo e a parte intermediria

    do acompanhamento, e sncopes que projetam a linha vocal como

    dobramento de uma das partes da textura geral. Sobre essa cano,

    escreveu o autor, na partitura: I had a dream of this melody. I kept

  • 45

    singing it for days. Im sure its from a long time ago (Eu tive um

    sonho com esta melodia. Fiquei cantando ela por dias. Tenho certeza

    de que de muito tempo atrs).

    Exemplo n 41

    J em Round Midnight, de Thelonious Monk, o trecho da

    introduo que antecede a primeira estrofe construdo por meio de

    um contraponto rtmico em que a parte superior, que realiza os

    acordes, aparece em contratempos, enquanto o baixo, em quintas,

    est em sncopes. Em outras palavras: nesta pea de Monk, h

    contraponto entre sncopes e contratempos.

  • 46

    Exemplo n 42

    Outro caso interessante de contraponto em que h conjuno

    de processos simultneos, ocorre no Preldio n 7 (1959), de Cludio

    Santoro [cf. ex. 43]. No incio da pea, o baixo realizado por meio

    de sncopes internas, isto , as sncopes ocorrem dentro da unidade

    de tempo (semnima). No segundo compasso ocorre uma sncope de

    compasso, ou seja, que se d no interior da unidade de compasso,

    em 2/4 (mnima). O resultado a produo de uma sncope dentro

    da outra, em um acorde de Bm7.

    Em outras palavras: nesta pea de Santoro, h contraponto

    entre uma sncope de tempo (q = x e x) e uma sncope de compasso

    (h = e q e).

    Exemplo n 43

    Outros fatores que chamam a ateno, no preldio de Santoro,

    so: o emprego da sncope como padro de acompanhamento, o que

  • 47

    derivado da assimilao da clave10 africana na msica popular

    brasileira; o movimento cromtico descendente, no baixo; o uso de

    acordes estendidos em todos os segmentos da msica; a confluncia

    entre harmonia e contraponto pelo uso de uma linha construda com

    base em arpejos, na parte inferior. Com isto, possvel pensar que a

    textura geral construda por duas vozes em contraponto, porm a

    seqncia de arpejos explicita o encadeamento harmnico e

    acrescenta a percepo de uma melodia acompanhada.

    10 O termo clave, neste sentido, significa um padro rtmico que serve de base para a sobreposio de vrias camadas com ritmos variados. Geralmente, a clave um padro fixo tocado isoladamente, antes de iniciar a msica propriamente dita, podendo permanecer ou no durante toda a pea. Equivale, aproximadamente, ao pulso da msica europia, no sentido de orientar os msicos com relao s entradas e sadas, ao andamento e conjuno das diversas partes da textura.

  • 48

    Quinta Espcie contraponto florido O contraponto florido a combinao das outras espcies.

    Contrape-se ao cantus firmus uma linha meldica livremente

    construda com diversos valores rtmicos, conforme os princpios de

    cada espcie.

    Exemplo n 44 realizado por Jeppesen.

    No exemplo acima, em cada uma das espcies de contraponto

    empregada, so rigorosamente observados os princpios de

    construo dessa espcie.

    Os trs compassos iniciais so tratados como quarta espcie,

    devido s sncopes existentes entre o cantus firmus e a voz em

    contraponto. Note-se que nos tempos secundrios (segundo tempo

    de cada um desses compassos), ocorrem somente consonncias.

    Quando a nota atacada no tempo principal (primeiro tempo do

    compasso) consonante, movimenta-se livremente, por salto ou

    grau conjunto, para uma consonncia esse o caso do r atacado

    no incio do compasso 2, que salta oitava superior. Entretanto, no

    compasso 3, a nota r dissonante com relao ao mi da voz

    superior. Por essa razo, deve ser resolvida por grau conjunto

    descendente em uma consonncia imperfeita: o r se movimenta por

    grau conjunto descendente, para o d, que uma consonncia

    imperfeita com relao ao mi do c.f.

    Nos compassos 4 e 5, a relao entre as vozes de duas notas

    do cantus firmus contra uma do contraponto (segunda espcie). Por

    isso, as dissonncias somente podem aparecer no tempo secundrio

  • 49

    e devem ser resolvidas por grau conjunto ascendente ou

    descendente, como notas de passagem. Como no h dissonncias

    nesses dois compassos, as notas podem ser movimentadas

    livremente; mesmo assim, h predomnio de graus conjuntos na

    realizao do contraponto.

    O sexto compasso do exemplo n 44 apresenta uma

    combinao rtmica prpria da quinta espcie e que no costuma ser

    abordada nas espcies anteriores, nos tratados de contraponto.

    Trata-se do ritmo pontuado, que j foi discutido anteriormente, na

    abordagem sobre as ampliaes da segunda espcie de contraponto

    [cf. ex. 23]. Assim, esta figurao rtmica deve ser tratada com base

    nos mesmos princpios do contraponto de duas notas contra uma, isto

    , a nota que se encontra no tempo secundrio (a semnima do ex.

    n 44) deve ser tratada como nota de passagem, sendo isto que

    ocorre no referido exemplo: a nota sol uma dissonncia com

    relao ao f da voz superior e tratada como nota de passagem

    descendente.

    Nos compassos 6 e 7, ocorre contraponto de terceira espcie, o

    que significa que as dissonncias da voz inferior podem ser

    conduzidas como notas de passagem, bordaduras ou cambiatas.

    Neste caso, todas as dissonncias so resolvidas como notas de

    passagem (notas: sol, si e r). interessante notar a combinao da

    terceira com a quarta espcie, na passagem do compasso 8 ao

    compasso 9. Na primeira metade do compasso 8, o contraponto

    tratado com os princpios da terceira espcie, porm quando chega

    na metade do compasso, a voz do contraponto estaciona em uma

    consonncia (nota: mi), que permanece ligada ao compasso seguinte,

    gerando uma sncope, isto , produz-se a quarta espcie de

    contraponto.

    Ao movimentar o cantus firmus para a nota f, no incio do

    compasso 9, tem-se uma dissonncia de 2m que resolve por grau

    conjunto descendente em uma 3m (suspenso do tipo: 2-3). Note-

  • 50

    se que a nota r semnima, que aparece na segunda metade do

    primeiro tempo do compasso 9, apenas uma antecipao da nota

    de resoluo da suspenso. Com essa antecipao, obtm-se maior

    movimentao rtmica.

    No compasso 10 tem-se nova suspenso, que prepara a

    cadncia final com um movimento meldico tpico da msica

    renascentista, atravs da bordadura inferior sobre a sensvel do

    modo. O ltimo compasso tratado como contraponto de primeira

    espcie por ser realizado pela combinao nota-contra-nota.

    Alm das tcnicas convencionais, todas as ampliaes

    abordadas anteriormente para cada espcie podem ser incorporadas

    ao contraponto florido.

    No trecho a seguir, extrado de um arranjo de Osvaldo Leite,

    para coro misto a quatro vozes, da cano Samba em Preldio, de

    Baden Powell e Vincius de Moraes, a melodia original est colocada

    no soprano, como cantus firmus, enquanto as outras trs vozes so

    elaboradas como contraponto florido, com emprego de sncopes em

    vrios nveis da estrutura mtrica: sncope de compasso [cf. ex.

    45(a)], sncope de tempo [cf. ex. 45(b)] e sncope interna [cf. ex.

    45(c)]. Alm disso, cada uma das vozes elaborada individualmente,

    sendo que a voz inferior mantm um tpico padro de baixo da

    msica brasileira, com a dupla funo de servir de base para a

    harmonia e organizar a seo rtmica da pea.

    A liberdade de tratamento rtmico e meldico entre as partes

    possvel porque a combinao das vozes est embasada em uma

    seqncia harmnica ampliada (com acordes formados por expanso

    tridica e adio de notas s trades), que serve de apoio ao

    contraponto. Alm disso, na voz de tenor est colocada a melodia da

    segunda parte da cano como contraponto melodia da primeira

    parte. Esse processo de estruturao em que a primeira parte

    composta por uma linha meldica, a segunda parte apresenta outra

  • 51

    melodia e a terceira formada pela sobreposio de ambas, em

    contraponto, j est presente na forma original da cano, sendo

    uma de suas caractersticas mais impressionantes, visto que esta

    uma tcnica raramente empregada na elaborao de canes. Como

    pode ser observado no exemplo a seguir, o contraponto florido pode

    resultar em uma textura bastante rica e variada, com grande

    diversidade rtmica e independncia total entre as vozes.

    Exemplo n 45

    b) Ampliao das espcies de contraponto

    Outro fator que deve ser considerado, a partir deste ponto, o

    fato de que os conceitos tradicionais de consonncia e dissonncia

    no so necessariamente adequados para todo e qualquer tipo de

    composio ou arranjo. Como foi visto em alguns dos exemplos

    anteriores, mesmo na msica de Bach ou Schubert os critrios

    adotados por Fux para o estudo do contraponto foram ignorados

    quando sua observncia poderia significar limitao das possibilidades

    tcnicas ou expressivas para a elaborao das idias musicais.

  • 52

    Com isso, deduz-se que a observncia dos critrios empregados

    para o estudo das espcies de contraponto so teis no sentido de

    prover o estudante de domnio tcnico sobre os materiais sonoros

    com os quais ir trabalhar, porm em um nvel mais avanado da

    elaborao musical, esses critrios podem inclusive dificultar a

    criao de novas msicas.

    Outro princpio do contraponto por espcies que pode ser

    dispensado, quando j se tem domnio sobre seus efeitos, quanto

    ao tipo de dissonncia que pode ser empregado em cada espcie do

    contraponto. Fux elaborou seu mtodo com o sentido de orientar o

    estudante para a aquisio de controle sobre cada tipo de

    dissonncia. Para isso, adotou os seguintes critrios:

    Primeira espcie (1x1): somente consonncias, ou seja, no podem ser empregadas dissonncias;

    Segunda espcie (2x1): dissonncias so praticadas como notas de passagem;

    Terceira espcie (4x1): as dissonncias so exercitadas como notas de passagem, bordaduras e cambiatas;

    Quarta espcie (sincopado): as dissonncias so tratadas como suspenses ou retardos.

    Com as ampliaes rtmicas que foram propostas aqui, pode-se

    tambm liberar o emprego dos diferentes tipos de dissonncia para

    todas as espcies. Isto significa que podem ser empregadas notas de

    passagem, bordaduras, cambiatas, escapadas, antecipaes,

    apojaturas, suspenses ou retardos em qualquer espcie de

    contraponto. Cada caso depende da inteno que se tem em produzir

    efeitos de tenso ou repouso ou do propsito de gerar trechos

    musicais estveis ou instveis, independentemente de critrios

    tcnicos preestabelecidos.

    Em um sentido mais amplo, tambm no mais conveniente o

    emprego de terminologias como consonncia e dissonncia, termos

  • 53

    j carregados de valores, conceitos e preconceitos. Podem-se

    empregar expresses como notas de acorde e notas ornamentais.

    Em um acorde de C7M(9), por exemplo, as notas si e r

    (dissonantes com relao ao d, na conceituao convencional) so

    notas de acorde e, portanto, podem ser tratadas como as

    consonncias da msica tradicional. Assim, podem ser elaboradas

    livremente, tanto na melodia principal quanto nas vozes secundrias

    e no contraponto entre as partes.

    Se a inteno caracterizar a sonoridade desse acorde de

    C7M(9), a nota l, que uma consonncia com relao

    fundamental do acorde (nota: d), deve ser tratada como as

    dissonncias da msica tradicional, isto , como nota de passagem,

    bordadura, suspenso, etc. Assim, a nota l, que no pertence ao

    acorde, deve ser elaborada como nota ornamental, pois se for

    enfatizada, ser percebida como nota de acorde, o que produziria um

    erro na conduo de vozes e na definio da harmonia, pois, em vez

    de caracterizar um acorde de C7M(9), estar-se-ia definindo o acorde

    de C7M(193).

    Por essa razo, quando a inteno definir determinado tipo de

    harmonia, necessrio ater-se s suas notas como pontos de apoio

    meldico ou como pontos de referncia, na conduo de vozes. Isso

    pode ser obtido pelos seguintes procedimentos:

    estabelecer a posio mtrica das notas de acorde em tempo forte ou em parte forte de tempo;

    definir sua durao mais longa do que as notas ornamentais;

    enfatiz-las por sua repetio insistente, como foi visto em vrios exemplos acima;

    alcanar as notas de acorde por saltos meldicos, ao passo que as notas ornamentais seriam conduzidas por

    graus conjuntos;

  • 54

    utiliz-las como pontos de impulso e de chegada, em incios e finais de frase.

    No trecho abaixo, extrado da cano Luiza, de Antnio Carlos

    Jobim, as notas da melodia so elaboradas como ressonncia da

    progresso harmnica, que segue um ciclo tonal de quintas

    descendentes entre as fundamentais.

    Exemplo n 46

    A anlise do ex. 46 revela o que foi dito acima. No primeiro

    compasso, a tera do acorde (nota: sol) a nota mais longa, atacada

    no tempo forte e na parte principal do terceiro tempo; as notas

    ornamentais (notas: f# e lb) aparecem como bordaduras

    cromticas. A primeira nota do segundo compasso uma quarta

    suspensa, ou seja, resulta do contraponto sincopado do tipo 43

    notas: sol-f, no acorde de Dm7(b5); o ltimo som do mesmo

    compasso uma nota de passagem cromtica (notas: f-mi-mib),

    sendo que todas as outras so notas de acorde. No terceiro

    compasso, a primeira nota uma apojatura (notas: mib-r), ao passo

    que todas as outras so notas do acorde. No quarto compasso, em

    que est presente o acorde de C7M(9), a nona do acorde (nota: r)

    est posicionada no tempo forte e a nota mais longa, sendo que

    todas as notas deste compasso pertencem ao acorde.

    Na cano Reza, de Edu Lobo e Ruy Guerra, h um processo

    diferenciado, na relao entre harmonia e melodia. A harmonia se

    movimenta de forma autnoma com relao melodia, isto ,

  • 55

    enquanto o mesmo padro motvico repetido vrias vezes, com as

    mesmas notas, na parte vocal, a harmonia se movimenta livremente.

    Assim, as notas da harmonia nem sempre servem de ressonncia

    parte meldica.

    No ex. 47, abaixo, est um trecho desta cano. No primeiro

    compasso deste exemplo, todas as notas da melodia so apoiadas

    pelo acorde de Gm7. No segundo compasso, no entanto, a melodia

    realiza um arpejo sobre o acorde de Dm enquanto se escuta o acorde

    de C7(9). Isso produz um poliacorde, ou seja, o resultado da

    interao entre as partes a combinao simultnea de dois acordes

    distintos Dm e C7(9) , em que a nota r aparece como nota

    comum, que funciona como eixo de ligao entre ambos:

    fundamental de Dm e nona de C7(9). No terceiro compasso, a nota

    mais longa o sol, que atacado no tempo forte; a nfase sobre

    essa nota, que a nona de F, faz com que o resultado da interao

    entre a melodia e a harmonia seja um acorde de F96.

    Estes so processos de ampliao das relaes entre melodia e

    harmonia. Alm de servir apenas de apoio ressonncia meldica, a

    harmonia pode ser enriquecida pela melodia, como acontece no

    terceiro compasso do ex. 47. Tambm possvel que haja relao de

    oposio ou contraste entre melodia e harmonia, como ocorre no

    segundo compasso do mesmo exemplo.

    Exemplo n 47

  • 56

    Esses procedimentos, entre outros, podem auxiliar em

    harmonizaes, arranjos ou composies nas quais se busca o

    emprego de estruturas harmnicas ampliadas com relao msica

    tradicional europia. Com isso, possvel construir estruturas

    harmnicas ou meldicas embasadas em diversos tipos de escalas ou

    acordes e, mesmo assim, ter domnio sobre os resultados

    pretendidos. Em outras palavras: a intuio musical passa a ser

    apoiada por slido embasamento acstico, sobre o qual se pode criar

    livremente.

    Essas liberdades, que tm sido tomadas pelos msicos com

    relao s tcnicas apreendidas da tradio, no so apenas o fruto

    de especulaes dos msicos atuais. No exemplo n 27, o primeiro

    ataque simultneo das quatro vozes, na fuga de J. S. Bach, j

    apresenta uma combinao que seria entendida como incorreta, na

    tcnica rigorosa do contraponto. A nota f do contralto se relaciona

    como dissonncia com todas as outras vozes: nona menor, com o

    baixo (notas: mi/f); trtono com o tenor (notas: si/f); segunda

    aumentada com o soprano (notas: f/sol#).

    Note-se o extremo grau de tenso e instabilidade do seguinte

    trecho da Paixo Segundo So Joo [cf. ex. 48], ainda de Bach, em

    que o uso de dissonncias em grande quantidade est diretamente

    relacionado representao musical do texto.

    O arioso citado no ex. n 48 corresponde ao momento da morte

    de Cristo na cruz, em que o tenor canta:

    Meu corao e toda a criao, com o sofrimento de Jesus tambm padecem: o sol de luto se veste, o vu se rasga, a rocha se fende, a terra treme, sepulcros se abrem vendo o Criador falecer. O que queres tu fazer, por tua parte?.

    A cifra do baixo contnuo (escrita abaixo da parte mais grave,

    na partitura de Bach), indica que o rgo deve tocar a seguinte

  • 57

    seqncia de acordes, que por si s, escapa a qualquer princpio das

    tcnicas de contraponto da poca. Esta a seqncia harmnica do

    arioso completo, cuja armadura indica que est escrito na tonalidade

    de Sol Maior:

    || GG7(b9)Cm/GD/GG7A/GC#A7/CC#DmB/DC ||

    Note-se que, com exceo do primeiro e ltimo acordes, todas

    as cifras do contnuo indicam intervalos dissonantes com relao ao

    baixo: 2m, 2M, 7d, 7m, 4J, 4A e 9m. Segundo as regras do

    contraponto tradicional, o intervalo de 4J considerado dissonante

    quando ocorre em relao ao baixo.

  • 58

    Exemplo n 48

    Desde sempre, os msicos se desobrigaram de seguir os

    critrios preestabelecidos quando isso poderia ter maior significado

    artstico do que a observncia rgida de princpios ou normas.

    Na sua Fantasia X para vihuela11 [cf. ex. 49], Alonso Mudarra

    (1510-1580) chegou a escrever o seguinte texto, em um trecho da

    msica repleto de falsas relaes: desde aqu fasta acerca del final

    hay algunas falsas, teindose bien no parecen mal (daqui at

    prximo ao final h algumas falsas, tocando-se bem no parecem

    mal).

    O compositor parece anotar esse aviso por duas razes:

    primeiro, para esclarecer aos seus colegas que tinha plena

    conscincia do que estava fazendo, isto , conhecia as rigorosas

    tcnicas de contraponto da poca, mas resolveu no segui-las;

    segundo, colocou a soluo do problema nas mos do intrprete e

    seria este o responsvel se a msica no soasse bem. O que vale, no

    entanto, que essa fantasia , ainda hoje, uma das peas mais

    tocadas do repertrio renascentista para instrumento solo devido ao

    seu alto nvel de elaborao tcnica e expressiva.

    No exemplo 49, abaixo, as falsas relaes esto assinaladas por

    setas.

    11 A vihuela um instrumento de cordas dedilhadas tpico da msica quinhentista ibrica, sendo bastante semelhante ao violo.

  • 59

    Exemplo n 49

    Tambm W. A. Mozart realizou experincias em que as regras

    do contraponto, severamente estudadas com o padre Martini, foram

    desconsideradas. A introduo do Quarteto K 465, dedicado a Haydn,

    um dos exemplos mais impressionantes de toda a literatura

    musical, nesse sentido.

    Exemplo n 50

    O quarteto est na tonalidade de D Maior. O violoncelo inicia

    realizando um pedal de d, porm a primeira nota da viola, sobre

    esse pedal, um lb, seguido pelo mib do segundo violino. Com isso,

    se estabelece um acorde de Ab/C para iniciar uma pea em D Maior.

    Como se isso no bastasse, o primeiro violino comea com um l

    natural, que produz forte dissonncia com relao ao mib (trtono) do

    segundo violino e falsa relao com o lb da viola.

  • 60

    No terceiro tempo do segundo compasso, aparece um acorde

    de D/C, com a funo de dominante da dominante. Este acorde

    resolve corretamente o trtono, nos instrumentos graves. Entretanto,

    os violinos produzem novas dissonncias: o primeiro violino mantm

    o l como suspenso, resolvida de acordo com as normas do

    contraponto (por grau conjunto descendente, em consonncia

    imperfeita com relao ao baixo); o segundo violino, que teria o caso

    mais simples de conduo de vozes, pois executa a nota comum

    entre os acordes de D e G (nota: r) e bastaria mant-la ligada, toca

    um d# que forma trtono com relao fundamental do acorde.

    Esse tipo de tratamento incomum, na conduo de vozes, permanece

    ao longo de toda a introduo.

    H outras caractersticas notveis no incio do quarteto de

    Mozart: o baixo se desloca por movimento cromtico descendente

    (notas: d-si-sib-l, etc.); o emprego de acordes extremamente

    distantes da tonalidade do D Maior, como, por exemplo, o acorde

    formado sobre o quinto compasso, que um Gb (que seria,

    posteriormente, chamado por Schumann de antitnica); o uso de

    extenses de acordes incomuns para a poca, como o acorde de Cm6

    que aparece no segundo tempo do segundo compasso; o emprego de

    inmeras sensveis inferiores e superiores, que dominam o trecho

    citado (quase todas as notas resolvem como sensveis, inclusive a

    tnica, na passagem do c. 2 ao c. 3); todo o processo realizado nos

    quatro primeiros compassos retomado no compasso 5 e transposto

    segunda maior inferior, o que no produz qualquer tipo de

    interao tonal entre os dois segmentos, pois a relao entre D

    Maior e Sib Maior de tonalidades afastadas; o mesmo processo se

    repete a partir do compasso 9, em Lb Maior. No c. 12, chega-se

    finalmente a D Menor, tom relativamente prximo da tonalidade

    principal, pois o homnimo de D Maior.

    Naturalmente, todos os acordes que se podem deduzir da

    introduo do Quarteto K 465, de Mozart, resultam da combinao

  • 61

    contrapontstica entre as vozes e no de uma estrutura harmnica

    predeterminada. O que pode ter sido pr-definido, antes de iniciar a

    composio das vozes individuais, o baixo cromtico; porm,

    mesmo a maneira de resolver o cromatismo bastante peculiar.

    b) Contraponto Livre

    O contraponto livre a combinao de linhas meldicas

    compostas livremente, ou seja, sem a utilizao de cantus firmus. As

    diretrizes de cada espcie devem ser seguidas na relao entre as

    vozes, da mesma maneira como ocorre no contraponto florido. Assim,

    semibreves devem ser conduzidas somente como consonncias;

    mnimas podem ser tratadas como notas de passagem; semnimas

    podem ser tratadas como notas de passagem, cambiatas ou

    bordaduras; e sncopes dissonantes devem ser resolvidas como

    suspenses12.

    Exemplo n 51 realizado por Jeppesen.

    Todas as ampliaes rtmicas, meldicas e harmnicas

    abordadas com relao s espcies de contraponto tambm podem

    ser utilizadas para a construo de contraponto livre.

    Do ponto de vista das tcnicas de construo musical, o

    contraponto livre se diferencia das espcies pela criao simultnea

    das diversas partes da polifonia. No contraponto por espcies, a

    criao do cantus firmus deve ser anterior elaborao do 12 Em alguns exemplos que seguem, o compasso 2/2 est realizado como se fosse 2/1, pois essa era uma prtica comum na msica renascentista. Ainda hoje, muitos editores publicam a msica desse perodo dessa forma.

  • 62

    contraponto, sendo o c.f. geralmente tomado de uma linha meldica

    preexistente, seja um cantocho ou uma melodia de cano popular.

    No contraponto livre, que prescinde de cantus firmus, as vozes vo

    sendo construdas conjuntamente atravs da interao rtmica e

    meldica entre as partes. Nos arranjos de canes populares, esta

    a tcnica de construo das sees de introduo, transio entre

    estrofes e concluso instrumental, pois a que a melodia da cano

    no est necessariamente presente.

    Devido ao fato de que as vozes so construdas conjuntamente,

    como contraponto livre, grande parte dessas sees mencionadas

    acima possuem textura homofnica, com predomnio de contraponto

    nota-contra-nota. O exemplo abaixo, retirado da introduo da Sute

    dos Pescadores, de Dorival Caymmi, com arranjo de Damiano

    Cozzella, demonstra essa caracterstica.

    Exemplo n 52

    Naturalmente, o contraponto livre pode ser construdo com

    base em qualquer processo de estruturao rtmica, meldica ou

    harmnica, sendo comumente empregado um tratamento

    independente para a elaborao das diferentes partes. No seguinte

    trecho do segundo dos Trs Cnticos de Amor (1978), de Almeida

    Prado, para coro misto a cappella, cada uma das vozes elaborada

    individualmente, sendo que o uso de quilteras e sncopes produz um

    efeito polirrtmico de carter fantstico.

  • 63

    Exemplo n 53

    No incio do exemplo n 53, acima, as duas vozes superiores

    (soprano e contralto) esto finalizando a seo anterior [processo

    indicado pelas linhas pontilhadas], ao mesmo tempo em que as duas

    vozes masculinas (tenor e baixo) do incio prxima seo. Esta

    tcnica de entrelaamento entre as sees, em que algumas vozes

    iniciam um novo segmento, enquanto outras vozes ainda esto

    finalizando o trecho anterior, um mtodo bastante comum de

    transio entre as sees na msica polifnica em geral, sendo uma

    das caractersticas mais importantes da msica vocal renascentista.

    Na pea de Almeida Prado, esta tradicional tcnica europia de

    entrelaamento entre as sees combinada polirritmia e aos

    cruzamentos rtmicos tpicos da msica brasileira contempornea,

    para produzir uma textura heterofnica embasada nos princpios do

    contraponto livre.

  • 64

    c) Contraponto imitativo

    O contraponto imitativo consiste em reproduzir, em uma voz,

    trechos meldicos apresentados em outras vozes. Na imitao,

    necessrio respeitar as diretrizes de cada espcie nas relaes entre

    as partes.

    Os procedimentos para realizar um trecho em contraponto

    imitativo so os seguintes:

    1. Compor a proposta (sujeito) em uma das vozes

    2. Imitar a proposta em outra voz (resposta)

    3. Compor um trecho em contraponto resposta (continuao

    da proposta)

    O tipo mais comum de continuao aps a imitao seguir

    com contraponto livre at o final da seo. Essa a forma tpica na

    msica renascentista, em que, aps um incio de seo com imitao

    localizada, cada voz segue realizando contraponto livre at a

    cadncia.

    Exemplo n 54 realizado por Jeppesen.

    Outra maneira de dar continuidade seguir com contraponto

    imitativo at o final da seo. Se a pea inteira composta com esse

    mtodo, tem-se um cnone.

    Os procedimentos para a composio de um cnone so os

    seguintes:

    1. Compor a proposta (sujeito) em uma das vozes

    2. Imitar a proposta em outra voz (resposta)

  • 65

    3. Compor um trecho em contraponto resposta (continuao

    da proposta)

    4. Imitar a continuao da proposta (segmento realizado no

    item 3)

    Os procedimentos n. 3 e n. 4 devem seguir at o final ou at

    a preparao da cadncia. Geralmente, as cadncias so preparadas

    com um pequeno trecho em contraponto livre, para que todas as

    vozes terminem ao mesmo tempo.

    Exemplo n 55 realizado por Jeppesen.

    A imitao pode ser realizada com base em qualquer intervalo,

    a partir da primeira nota da proposta original. Nas Variaes

    Goldberg, de J. S. Bach, por exemplo, h uma seqncia de cnones,

    em que o intervalo de entrada da parte imitativa vai crescendo,

    conforme a obra avana. Assim, o primeiro cnone, que ocorre na

    variao n 3, tem sua imitao ao unssono, sendo que a cada trs

    variaes h um novo cnone com um intervalo maior que o anterior

    da seguinte forma:

    Variao n 3: cnone ao unssono; Variao n 6: cnone segunda; Variao n 9: cnone tera; Variao n 12: cnone quarta; Variao n 15: cnone invertido quinta; Variao n 18: cnone sexta; Variao n 21: cnone stima; Variao n 24: cnone oitava;

  • 66

    Variao n 27: cnone nona;

    Nos prximos exemplos, esto citados os compassos iniciais de

    algumas dessas variaes, com a indicao da imitao e o intervalo

    sobre o qual ocorre o processo imitativo.

    Exemplo n 56

    No exemplo n 56, acima, as duas vozes superiores esto

    compostas com base em imitao cannica, enquanto o baixo se

    movimenta livremente, com arpejos que indicam a harmonia sobre a

    qual o cnone est organizado. Note-se que a voz superior apresenta

    a proposta, no primeiro compasso, ao passo que a voz intermediria

    imita ao unssono, a partir do segundo compasso; a primeira nota da

    resposta configura um cruzamento de vozes, pois a nota si da

    segunda voz mais aguda do que o sol da primeira voz. No

    compasso 3, tambm h vrios cruzamentos de vozes, o que

    bastante comum em cnones ao unssono. A anlise das partes revela

    que a linha meldica presente em cada compasso da segunda voz

    exatamente a mesma que aquela encontrada no compasso anterior,

    na primeira voz.

  • 67

    Na variao n 15, citada no exemplo 57, abaixo, o cnone

    tambm realizado nas duas vozes superiores, enquanto o baixo se

    movimenta livremente com base na harmonia do tema da srie das

    Variaes Goldberg. Entre as diferenas com relao terceira

    variao (primeiro cnone, citado no ex. 56), est o fato de que,

    agora, a segunda voz que apresenta o material que ser imitado

    pela primeira voz. Neste caso, a melodia imitada transposta

    quinta justa superior e realizada em inverso; da o subttulo Canone

    alla quinta (in moto contrario). Note-se que a imitao, que inicia no

    segundo compasso, principia na nota r, que a quinta susta

    superior da nota sol que inicia a proposta, no primeiro compasso

    desta variao. Alm disso, a melodia presente no primeiro compasso

    da voz intermediria composta por um movimento de graus

    conjuntos descendentes, perfazendo os seguintes intervalos: 2M

    2M2m. A voz superior imita este movimento intervalar, porm em

    sentido as