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Luís Carlos Martins Alves Jr. CONSTITUIÇÃO, POLÍTICA & RETÓRICA

Constituição, Política e Retórica

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Luís Carlos Martins Alves Jr.

Constituição, PolítiCa & retóriCa

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LUÍS CARLOS MARTINS ALVES JR.

CONSTITUIÇÃO, POLÍTICA & RETÓRICA

BrasíliaUNICEUB

2014

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LUÍS CARLOS MARTINS ALVES JR.Bacharel em Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Piauí – UFPI

Doutor em Direito Constitucional, Universidade Federal de Minas Gerais – UFMGProfessor de Direito Constitucional, Centro Universitário de Brasília – CEUB

Procurador da Fazenda Nacional perante o Supremo Tribunal FederalAdvogado

ALVES JR, Luís Carlos Martins. Constituição, Politica & Retórica. Luís Carlos Martins Alves Jr. – Brasília, 2014. 146 p. ISBN 978-85-61990-39-8 1. Direito Constitucional. 2. Direito Político. 3. Poder Judiciário. 4. Funções Essenciais à Justiça. 5. Retórica.

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SUMÁRIO

PREFÁCIO .........................................................................................................................................................................5

APRESENTAÇÃO ...........................................................................................................................................................9

1.DIREITO & LITERATURA: A UTILIDADE DA PRÁTICA LITERÁRIA NA ATIVIDADE PROFISSIONAL DO ADVOGADO .........................................................................................................................10

3.O “CORONELISMO” E A DEMOCRACIA BRASILEIRA: UM BREVE ENSAIO REFLExIVO SOBRE A LEI DA “FIChA LIMPA” E SOBRE O FINANCIAMENTO DAS CAMPANhAS ELEITORAIS, SOB AS LUzES DO MAGISTéRIO DOUTRINÁRIO DE VICTOR NUNES LEAL. ..28

4.A ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO E OS DONOS DO PODER: UM BREVE ENSAIO SOBRE UMA INSTITUIÇÃO ESSENCIAL AO DIREITO E à JUSTIÇA BRASILEIRA, SOB AS LUzES DO MAGISTéRIO DOUTRINÁRIO DE RAyMUNDO FAORO. ........................................................................ 44

5.THE WEST WING E OS JUSTICES DA SUPREMA CORTE: UMA BREVíSSIMA ANÁLISE SOBRE COMO UM SERIADO DE TV ENxERGA A NOMEAÇÃO DOS JUízES AMERICANOS E UM PRETExTO PARA ANALISARMOS A MAGISTRATURA BRASILEIRA E AS FUNÇõES ESSENCIAIS à JUSTIÇA ............................................................................................................................................57

6. A ESCOLhA DE MINISTROS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ................................................83

7. ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO: NOTÁVEL SABER JURíDICO E REPUTAÇÃO ILIBADA ...89

8. A ADVOCACIA NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ............................................................................94

9. O DEVIDO PROCESSO LEGAL NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, à LUz DO REALISMO JURíDICO DE ALF ROSS. ...................................................................98

10. A PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DO DIREITO DO CONSUMIDOR NA DINÂMICA JURISPRUDENCIAL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. .................................................................. 120

11. “LEI DA FIChA LIMPA” – VITÓRIA DA REPÚBLICA, DERROTA DA DEMOCRACIA: UMA BREVE ANÁLISE SOBRE O MODELO POLíTICO-PARTIDÁRIO BRASILEIRO. ........................... 133

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PREFÁCIO

No dia 17 de julho de 2014 recebi um e-mail inesperado do dileto amigo Luís Carlos Martins Alves Júnior. Na missiva, o Professor Doutor Luís Carlos Martins Alves Júnior me convidava para prefaciar sua mais nova obra que o leitor tem agora em mãos: Constituição, Política & Retórica.

Para mim, foi motivo de muita alegria e, ao mesmo tempo, ao aceitar o convite, percebi a enorme responsabilidade que assumia em prefaciar mais essa obra do Professor Luís Carlos. Alegria, porque esse prefácio é o primeiro que faço a um livro de enorme qualidade e densidade jurídica, sociológica, histórica e filosófica, como o leitor perceberá; responsabilidade, porque a obra que tenho a honra de prefaciar, como já afirmado, apresenta qualidade e densidade ímpares, apesar de ser, mais uma vez, de natureza ensaística.

Mas, antes de apresentar alguns elementos que julgo fundamentais no presente trabalho que merecerá a leitura atenta de juristas, advogados, juízes e acadêmicos do Direito, gostaria de dar um testemunho bastante pessoal sobre o autor, embora possa parecer desnecessário para muitos.

Conheci o Professor Doutor Luís Carlos Martins Alves Júnior em Teresina – Piauí, nossa terra natal, no Colégio São Francisco de Sales, também conhecido como Diocesano. à época, Luís Carlos já era acadêmico de Direito enquanto eu cursava o então terceiro ano científico no Colégio Diocesano. Um certo dia, a convite da direção e coordenação da escola, um grupo de estudantes de Direito foi à nossa sala para falar da profissão, já que se avizinhava o vestibular e era uma forma que a escola encontrava de ajudar seus alunos na difícil escolha da profissão de seus alunos. Nesse dia, então, uns três ou quatro acadêmicos de Direito da Universidade Federal do Piauí – UFPI, foram apresentar sua visão do curso de Direito. Dentre eles, o então acadêmico Luís Carlos que, já àquela época, se distinguia na arte da oratória. é bem verdade que já o conhecia “de vista” quando ele era aluno do Diocesano, mas, por ser um pouco mais velho que eu, não éramos amigos.

Enfim, a partir daquele dia, resolvi fazer o curso de Direito. Sem saber, Luís Carlos já influenciava minha vida profissional. Por um acaso do destino, fiz o curso de Direito em Minas Gerais na prestigiosa e prestigiada Faculdade de Direito da UFMG, também conhecida como Casa de Afonso Pena. No primeiro ano e meio do curso, dividi apartamento em uma república com outro brilhante jurista do Piauí, Igor Mauler Santiago, que hoje reside em São Paulo. Seis meses após minha chegada a Belo horizonte e à república em que morava Igor, chegou Luís Carlos, recém aprovado no Doutorado em Direito Constitucional na UFMG. Detalhe: o então doutorando Luís Carlos fora aprovado sem nem ter feito Mestrado; saía da Graduação para lutar pelo título acadêmico mais alto em Direito, Doutorado, em uma das mais importantes Escolas de Direito do país: UFMG. E seria inicialmente orientado por um dos mais notáveis constitucionalistas do país, o Professor José Alfredo de Oliveira Baracho. O seu orientador final foi o Professor José Luiz Quadros de Magalhães.

Assim, passei a conviver diuturnamente com o hoje Professor Doutor Luís Carlos Martins Alves Júnior e presenciei sua luta permanente pela obtenção de título de Doutor que o fez com muita competência, defendendo, anos depois, sua Tese de Doutorado, logrando sua aprovação. Ao lado de sua competência profissional, algo que nunca perdeu, ao contrário, foi sendo ampliada, Luís Carlos alia um senso de humor ímpar, o que faz

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com que as pessoas ao seu redor gostem de estar com ele. O Professor Luís Carlos é capaz de defender pontos de vista no Direito com muita percuciência e profundidade aliando a isso seu humor cortante, o que torna, muitas vezes, seus argumentos difíceis de serem refutados. Ele consegue desconcertar seus ouvintes e adversários, como também, muitas vezes, seus amigos!

é justamente essa característica do Professor Luís Carlos que o leitor perceberá na obra que ora prefacio: Constituição, Política & Retórica.

é mais uma obra ensaísta do Professor Luís Carlos, já que formada, como o próprio autor afirma em sua apresentação, por textos escritos por eles em momentos diversos de sua carreira acadêmica e profissional. Mas, embora ensaísta, a obra apresenta uma linha argumentativa que une todos os capítulos que podem ser lidos separadamente, mas que devem necessariamente, para uma melhor compreensão das ideias do autor serem lidas em conjunto. E essa linha argumentativa que une todas as partes da presente obra é a ideia segundo a qual não é possível democracia sem constitucionalismo como também democracia sem república.

Não tenho a pretensão de aqui comentar todos os aspectos dessa bela obra que o Professor Doutor Luís Carlos Martins Alves Júnior presenteia o público brasileiro. Gostaria apenas de ressaltar alguns pontos principais que funcionariam como chave de leitura para todo o trabalho.

Pois bem. A primeira chave de leitura é justamente essa. Segundo o Professor Luís Carlos, é impossível hoje no Brasil e em qualquer democracia consolidada no mundo, dissociar democracia entendida como governo do povo do constitucionalismo compreendido como um conjunto de teorias e práticas jurídico-políticas que pretendem afirmar direitos às pessoas, até mesmo contra decisões tomadas pela unanimidade da população.

Se, em um primeiro momento, poderia parecer estranho e contraditório essas duas noções, Luís Carlos demonstra muito bem que democracia somente é digna desse nome se respeitar todos os indivíduos que vivem em uma comunidade e, para tanto, fundamental que esses indivíduos tenham assegurados direitos que permitam a eles viver como livres e iguais. Embora o Professor Luís Carlos não seja dworkiniano, vejo aqui claramente ecos do pensamento do autor norte-americano quando concebe a democracia como um regime de parceria de indivíduos livres e iguais.

Além disso, somente é possível uma democracia verdadeiramente genuína como uma parceria de indivíduos livres e iguais se fundarmos uma república digna desse nome, ou seja, se cobrarmos de nós mesmos e de nossos representantes seriedade e respeito no trato com a coisa pública. Daí porque bem assevera Luís Carlos Martins Alves Júnior que não é possível se falar em direito democrático e republicano se também não cumprirmos com nossos deveres. Democracia, constitucionalismo e república são arranjos institucionais que apenas serão bem sucedidos se as pessoas forem ciosas de suas obrigações e responsabilidades.

A segunda chave de leitura que proponho nesse breve prefácio consta no próprio título da obra: Constituição, Política & Retórica.

Ora, haveria alguma ligação entre esses três termos, a ponto de o autor denominar sua obra ligando-os?

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Mais uma vez, o Professor Doutor Luís Carlos Martins Alves Júnior é preciso na escolha.

O Professor José Joaquim Gomes Canotilho afirma que a Constituição é o fundamento jurídico do político, a revelar que o Direito apresenta um fundamento político, o que não significa dizer que o Direito seja tão somente e apenas Política. Dizer que o Direito apresenta um fundamento político significa afirmar que na interpretação, compreensão e aplicação das normas jurídicas deve-se buscar o propósito político do Direito, ou seja, não o que os autores originais buscavam fazer ou uma pretensa vontade objetiva da norma, mas sim como tal texto normativo se compatibiliza com o restante do Direito de modo a torná-lo o melhor que ele pode ser. Daí porque a interpretação do Direito se assemelhar à interpretação de uma obra literária. Mas, convém deixar claro: há uma semelhança e não uma identidade entre essas duas atividades. Direito não é Literatura. Tornar o melhor que uma obra literária pode ser significa dar a ela com a interpretação a maior qualidade artística possível. Já no Direito, torná-lo o melhor que ele pode ser significa possibilitar com o Direito que ele seja instrumento de afirmação e realização dos direitos dos indivíduos, fundamento político, portanto.

Portanto, Constituição e Política são indissociáveis, embora coisas distintas. E a Retórica?

Aqui é preciso esclarecer que da forma como utilizada pelo Professor Luís Carlos, Retórica assume um significado bastante especial. Retórica aqui não significa argumentação vazia que busca apenas convencer os ouvintes. Nada disso.

Quando o Professor Luís Carlos se utiliza da expressão Retórica, ele quer demonstrar que o Direito não é um conceito taxonômico, que se satisfaz com classificações, cujos problemas podem ser resolvidos ou com uma boa enciclopédia ou com um bom dicionário. Até como brilhante Procurador da Fazenda Nacional atuando junto ao Supremo Tribunal Federal, o Professor Luís Carlos sabe muito bem que o direito é um conceito eminentemente interpretativo. O trabalho jurídico é um trabalho argumentativo, a partir da construção de conceitos sólidos, baseados na história institucional da comunidade, nas decisões passadas das Instituições Públicas e em como essas decisões podem construir um futuro honrado para a comunidade.

Retórica aqui significa argumentação que visa a demonstrar o acerto das teses levantadas não com base em quaisquer argumentos, mas com base em estudo aprofundado, no conhecimento da história da própria comunidade, dos seus erros e acertos, exatamente para que hoje tais erros não sejam mais cometidos e os acertos sejam promovidos e aprofundados.

Daí porque muitos dos textos aqui presentes nessa bela obra que tenho a honra e o prazer de prefaciar cuidam de nossa história institucional como também da importância da literatura para o Direito.

Luís Carlos recupera personagens importantes de nossa história institucional que, muitas vezes, infelizmente, são relegados ao esquecimento nos bancos de nossas Faculdades de Direito. Nomes que contribuíram com seu trabalho e com seu pensamento para a construção dos ideais afirmados acima: república, democracia e constitucionalismo. Felizmente teremos, a partir de agora, essa bela obra de Luís Carlos Martins Alves Júnior

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para não nos esquecermos da importância de nomes como Rui Barbosa, Sobral Pinto, Victor Nunes Leal e Raymundo Faoro.

Já passa da hora do leitor tomar contato e aprender e se deliciar com o texto do Professor Doutor Luís Carlos Martins Alves Júnior.

Sem dúvida, a partir de agora, será referência e leitura obrigatórias para estudantes de Direito, professores, advogados, juízes e todos aqueles que se preocupam com os rumos da nossa sociedade.

Diamantina: julho de 2014.

José Emílio Medauar OmmatiBacharel, Mestre e Doutor em Direito, Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG

Professor de Teoria da Constituição, Direito Constitucional e hermenêutica e Argumentação Jurídica da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, campus do Serro/MG – PUC/SERRO

Advogado

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APRESENTAÇÃO

O presente livro condensa onze textos de minha lavra sobre alguns temas constitucionais que me são particularmente caros. Cinco desses textos nasceram a partir de palestras que proferi, daí o caráter retórico do livro, e outros cinco nasceram de provocações intelectuais, e, portanto, não menos retóricos. O caráter político do livro deriva das propostas nele contidas para os preceitos normativos da Constituição. O livro não é imparcial, do ponto de vista do rigor metodológico acadêmico, pois há pitadas de retórica política.

O leitor perceberá a defesa de dois alicerces normativos fundamentais para a sociedade brasileira: a democracia e a república.

Na compreensão que tenho da democracia constitucional, a soberania popular ocupa lugar de relevo, mas a democracia não se esgota na vontade majoritária do povo-eleitor. A democracia pressupõe o outro. O diferente. O dissenso. A convivência dos desiguais. Mas democracia não é “apenas” o regime dos direitos e das liberdades. é, antes de tudo, o regime dos deveres e das responsabilidades. Somente pessoas responsáveis podem ser livres. Somente quem cumpre com as suas obrigações e deveres pode exigir direitos. Democracia como respeito e consideração que todos merecem receber e dispensar. é via de “mão-dupla”. Viver em uma democracia requer tratar o outro e a coletividade com respeito e consideração. E exigir respeito e consideração. Em uma democracia ninguém é o d’ono da coletividade e dos espaços de convivência.

A minha compreensão de república constitucional está fincada no respeito à “legítima legalidade”. Todos devemos pautar as nossas condutas e comportamentos socais sem quebrar os padrões normativos socialmente aceitáveis e legalmente estabelecidos. República como “império” do Direito e da Justiça. República como equitativa aplicação das leis, de modo que estas não sejam fontes de inaceitáveis privilégios ou de abusivas prerrogativas. Na república a reta-razão convincente deve ser o farol a iluminar toda a ação estatal, bem como servir de parâmetro para as condutas dos agentes públicos e das pessoas e instituições privadas.

Neste livro falo das instituições republicanas (Poder Judiciário, mormente o Supremo Tribunal Federal, e das Funções Essenciais à Justiça), brandindo para que exerçam o seu múnus público. A democracia tem avançado bastante neste País. Mas a república ainda engatinha. Espero que este pequeno livro sirva de provocação para debates mais sérios e para estudos mais profundos sobre as instituições democráticas e republicanas.

Por fim, por uma questão de justiça e de verdade, agradeço à minha esposa Pollyanna, que tem sido o “freio republicano” aos meus excessos, e aos meus pequenos filhotes Luís Felipe e Carlos Augusto, que são as minhas “liberdades democráticas”. Ela a minha razão. Eles a minha paixão. Mas procuro dedicar a todos muito amor e carinho.

Boa leitura!

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1.DIREITO & LITERATURA: a utilidade da prática literária na atividade profissional do advogado1

La postulacion de los hechos se procesa a través de uma muy compleja polifonia narrativa de versiones-diversiones em pugna. No es solo que existan versiones contrapuestas; puede suceder también, y no es infrecuente, que alguna version abra una trama diversificada a partir de un detalle de la principal, o simplemente diversa como diferente de la sostenida por outra de las partes. ( José Calvo Gonzalez) 2

Na minha primeira semana de aula no Curso de Direito da Universidade Federal do Piauí, o professor Amaury Teixeira Nunes, regente da disciplina Introdução ao Estudo do Direito, falou para nós, seus alunos, a seguinte e marcante assertiva:

o advogado é o profissional da palavra; dominem a palavra que vocês dominarão o Direito.

Ainda estudante de Direito, no meu primeiro dia de estágio no escritório de advocacia do dr. Francisco de Sales e Silva Palha Dias, ele me entregou os “os meus primeiros autos de um processo”, disse-me para ler de “capa a capa”, entender o que estava ali dentro, descobrir quais eram os problemas e apontar as soluções em uma petição. Indaguei o que realmente significava uma petição. No que obtive a seguinte resposta:

Uma petição é uma historinha bem convincente e bem contada que o advogado escreve para o juiz.

De lá para cá, tenho percebido que o mundo jurídico é o mundo das palavras, das histórias e estórias, das narrativas convincentes, da literatura das normas. Pois bem, nesta breve intervenção pretendo destacar a utilidade da Literatura na prática do Direito, especialmente na do Advogado na confecção de peças processuais: petições, memoriais, pareceres, demais manifestações e postulações jurídicas.

Com efeito, nada obstante seja o Direito um tipo de Literatura, é preciso distinguir essas duas modalidades literárias. A Literatura “literária” deve ser voltada para a liberdade criativa, de caráter estético, sem compromissos que não sejam aqueles do próprio criador do texto literário. O texto literário nasce da criatividade e da necessidade do autor. O autor ou criador literário é livre para escrever do modo e do jeito (estilo) que melhor lhe aprouver ou segundo os seus próprios interesses e conveniências. O autor/criador literário é soberano.

Já o Direito é um tipo de Literatura voltado para a regulação das condutas e comportamentos humanos. é uma Literatura “normativa” ou “prescritiva”. Não visa o “belo” ou o “prazeroso” aos sentidos, mas o “lícito” ou o “ilícito”. A literatura normativa ou prescritiva tem como finalidade apontar quais condutas e comportamentos são “proibidos”, “obrigatórios” ou “facultativos”, atribuindo-lhes as consequências normativas de “validade” ou de “invalidade”. A “estética” jurídica consiste em criar preceitos normativos que serão obedecidos. Preferencialmente, que esses preceitos sejam considerados “justos” e “legítimos”.

1 Texto de intervenção no I Seminário de Direito e Literatura do UniCEUB, sob a organização do prof. dr. Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy. Evento realizado no Centro Universitário de Brasília - Campus da Asa Norte, em 28.10.2013.

2 La verdad de La verdad judicial: construcción y régimen narrativo. Texto extraído da página pessoal do autor: http://webpersonal.uma.es/~JCALVO/docs/verdadjudicial.pdf

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Quanto maior for a “justiça” e a “legitimidade” do Direito, mais belo e prazeroso ele terá condições de ser, e maior será o grau de livre adesão e de fiel obediência a ele.

Não irei cuidar das Palavras das Leis nem das Palavras das Sentenças, que são textos literários normativos prescritivos, que devem ser obedecidos, sob pena de uma sanção ou reprimenda (castigo). Nesta intervenção falarei das Palavras dos Advogados contidas nas suas “peças”, que também são textos literários, mas não de caráter normativo-prescritivo, mas de caráter persuasivo. Ou seja, o advogado escreve para persuadir e para convencer. Essa é uma arte que exige apurada técnica. A arte de convencer o outro a livremente concordar com os seus fundamentos normativos e argumentos jurídicos.

Se o “artista literário” domina a palavra para ser livre, o “artista da advocacia” deve dominar a palavra para sobreviver e para defender os interesses jurídicos dos seus constituintes. Se o texto “literário” é de soberana criação do seu autor, de acordo com as suas conveniências, caprichos, possibilidades e necessidades, o texto “advocatício” não é um “capricho” do autor, mas uma necessidade e que deve ter utilidade para o seu cliente/constituinte.

Esse é um dogma (ponto-de-partida) inquestionável: a peça advocatícia deve ser útil para os interesses que defende. O advogado não deve revelar erudição “balofa” nas suas peças, mas erudição “útil”. Isso porque, insista-se, o advogado escreve para e por outro. O literato pode escrever para e por si. O advogado não tem esse direito de escrever para e por si, mas para outro (o juiz) e por outro (o constituinte/cliente).

Mas a qual a diferença entre a literatura do advogado e a literatura do magistrado ou a do legislador? O texto legislativo não necessita de convencer às pessoas ou os seus destinatários. Ele deve ser obedecido. Da mesma maneira sucede com o texto judicial, em grau até mais forte que o próprio texto legislativo, pois a sentença é a concretização específica de um mandamento legal abstrato e hipotético. A sentença deve ser cumprida, sob pena de “castigos” ou “punições”. Diferentemente ocorre com o texto advocatício, que não tem força normativa, que não prescreve condutas nem comina sanções, mas que deve convencer, que deve obter a livre adesão e concordância de seu leitor, e não a sua obediência.

Nessa perspectiva, como a Literatura “literária” pode ajudar à Literatura “advocatícia”? Qual a utilidade da Literatura “literária” para o advogado na confecção de suas peças? A principal utilidade da Literatura “literária” consiste em desenvolver as habilidades da leitura, da compreensão e da interpretação dos textos e das circunstâncias. Quanto maior for a quantidade de textos literários lidos e melhor a qualidade desses textos, maior será a capacidade de leitura e melhor a qualidade das compreensões e interpretações que forçosamente ocorrerá. é uma consequência natural.

A outra habilidade indispensável para o sucesso profissional do advogado é a capacidade de bem escrever. Aprendi com o meu pai, desde as minhas primeiras letras e luzes, que somente escreve bem quem lê bem. Somente sabe escrever quem souber ler. Quanto melhor o leitor, melhor será o escritor. Dificilmente um bom escritor é um mau leitor. A rigor, todo bom escritor é um excelente leitor.

Evandro Lins e Silva3, que foi um grande magistrado e um excepcional advogado criminalista, defendia apaixonadamente a necessidade de o advogado ler de tudo, ler mais do que textos jurídicos, ler poesias, romances, contos, viajar na imaginação, para poder ir além do Direito e para poder encontrar soluções além daquelas facilmente percebidas.

3 A defesa tem a palavra. 1980, p. 20.

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Tenha-se que o advogado é um postulador, um suplicante, um profissional que deve utilizar de seu talento para convencer o outro. Independentemente de quem seja esse outro, ou de qual instância seja o juiz. Nem sempre ele consegue a adesão do ouvinte/leitor, mas o seu compromisso há de ser com os interesses que representa, com os direitos do seu cliente. Para alcançar esse objetivo, o advogado deve mirar no cérebro e no coração do leitor. Ele deve equilibrar a razão e a emoção na defesa de seu cliente.

O advogado deve ser um frio apaixonado. Para que ele tenha essa paradoxal habilidade, ele deverá possuir a ciência do conhecimento e da leitura; a experiência da vida e dos sacrifícios; a consciência da missão ética de suas atividades; e, quem sabe, a inconsciência de suas escolhas e visões.

Mas afinal, como a literatura pode ser útil para o advogado? Desenvolvendo o bom gosto, a criatividade, a capacidade de compreender a realidade, de ler os textos, de escrever as postulações e de convencer. Pois para convencer é preciso saber. E para saber é preciso estudar. E para estudar e conhecer é preciso ler, ler muito. Não há conhecimento útil nem sabedoria prática sem muito estudo, sem dedicação e sem esforço. Não há aprendizagem sem mérito.

Finalizo recordando a seguinte passagem de ouro da literatura advocatícia. Uma argumentação do insuperável advogado heráclito Fontoura Sobral Pinto4 na defesa de harry Berger, preso político durante os tenebrosos dias do “Estado Novo”. Naqueles tempos dramáticos, de situação ameaçadora, os presos políticos do regime autoritário varguista estavam sendo vítimas de maus-tratos físicos e psicológicos, estavam sendo vilipendiados, brutalizados, tratados sem respeito e sem consideração. Naqueles tempos sombrios e para aquelas pessoas, as leis não protegiam nem socorriam os homens.5 Eis o que postulou Sobral Pinto, um dos maiores advogados da história brasileira:

Tanto mais obrigatoriamente inadiável se torna a intervenção urgentíssima de V. Exa., Sr. Juiz, quanto somos um povo que não tolera a crueldade, nem mesmo para com os irracionais, como o demonstra o decreto n. 24.645, de 10 de julho de 1934, cujo artigo 1º dispõe: ‘Todos os animais existentes no paiz são tutelados do Estado’.

Para tornar efficiente tal tutela, esse mesmo decreto estatue: ‘Aquele que, em logar público ou privado, applicar ou fizer applicar maos tratos aos animaes, incorrerá em multa de 20$000 a 500$000 e na pena de prisão cellular de 2 a 10 dias, quer o delinquente seja ou não o respectivo proprietário, sem prejuízo da ação civil que possa caber” (art. 2º).

E, para que ninguém possa invocar o benefício da ignorância nesta matéria, o art. 3º do decreto supra mencionado define: ‘Consideram-se maus tratos: ...: II – manter animais em lugares anti-higienicos ou que lhes impeçam a respiração, o movimento ou o descanso, ou os privem de ar ou luz’.

4 Por que defendo os comunistas? Belo horizonte, Editora Comunicação: 1979. 5 Há uma excelente Dissertação de Mestrado sobre essa defesa de Sobral Pinto. Autor: Daniel Monteiro

Neves. Título: Como se defende um comunista: uma análise retórico-discursiva da defesa judicial de Harry Berger por Sobral Pinto. Universidade Federal de São João Del-Rei. Programa de Mestrado em Letras. São João Del-Rei/MG, 2013.

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Baseado nesta legislação um dos juízes de Curityba, Estado do Paraná, dr. Antonio Leopoldo dos Santos, condenou João Maneur Karen à pena de 17 dias de prisão cellular, e à multa de 20$000, por ter morto a pancada um cavalo de sua propriedade.

Ora, num país que se rege por tal legislação, que os Magistrados timbram em aplicar, para, deste modo, resguardarem os próprios animais irracionais dos maus tratos até dos seus donos, não é possível que harry Berger permaneça, como até agora, meses e meses a fio, com a anuência do Tribunal de Segurança Nacional, dentro de um socavão de escada, privado de ar, de luz, e de espaço, envolto, além do mais, em andrajos, que pela imundície, os próprios mendigos recusariam a vestir

....

Impõe-se, assim, que, sem mais a delonga de um minuto, V. Exa. ordene, com a sua autoridade de magistrado, que harry Berger seja transferido, imediatamente, para uma cela condigna, onde, a par de cama, roupa, vestuário, e objetos próprios para escrever, - de que está carecendo para a sua defesa -, se lhe permita fazer as leituras que bem lhe aprouver, tudo, porém dentro das normas da vigilância prudente, que a administração carcerária costuma, em face dos detentos políticos, por em prática, para evitar confabulações perigosas dos encarcerados com os seus partidários políticos ainda em liberdade.

Formulando o presente requerimento tem o Suplicante cumprido apenas o seu dever, oferecendo, entretanto, com isso, a V. Exa. a adequada oportunidade para que, sob os ditames imperiosos da sua consciência de homem e de Magistrado, possa V. Exa. cumprir o seu, com igual solicitude.’

O juiz restou convencido, acolheu a postulação do advogado e a vida e a integridade física do preso político foi salva. Outros eram aqueles tempos. Outros eram aqueles homens!

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2.RUI, SOBRAL E A CONSTITUIÇÃO DE 1988: uma breve análise acerca da construção da democracia e da república no Brasil, a partir da experiência de dois ícones da advocacia nacional.6

Não há motivo para me orgulhar. Não nos orgulhamos de ter cumprido um dever. Cumpri um dever de cidadão e de advogado. De cidadão porque era dever de todos protestar contra uma ditadura que se instalava. E de advogado porque era um perseguido que precisava de amparo e era meu dever dar esse amparo. Cumpri apenas um dever cívico e profissional e quem assim faz não se orgulha, somente fica tranquilo, porque a consciência aprova. Apenas isso. (Sobral Pinto) 7

Nesta breve intervenção pretendo homenagear os advogados e as advogadas do Piauí, no sagrado ministério de defender os direitos e os interesses de seus constituintes ou clientes. E qualquer homenagem que se presta aos profissionais da advocacia tem de forçosa e necessariamente passar pelas figuras dos dois maiores advogados da nossa história: Rui Barbosa de Oliveira8 e Heráclito Fontoura Sobral Pinto9.

Segundo Rubens Approbato Machado10, ex-presidente do Conselho Federal da OAB, o dia 5 de novembro é uma data mística, pois nesse dia e mês no ano de 1849 nascia Rui Barbosa, e no mesmo dia e mês mas no ano de 1893 nascia Sobral Pinto. Só e somente só por esse motivo, o dia do advogado, que tem sido comemorado no dia 11 de agosto, data da criação dos cursos de Direito no Brasil, ocorrida no ano de 1827, deveria ser modificado para o dia 5 de novembro, pois nesse místico dia nasceram os dois maiores ícones da advocacia brasileira.

O 11 de agosto continuaria a ser o dia do estudante ou do professor de direito, mas o verdadeiro dia do advogado, daquele que vive e sobrevive na e da defesa dos direitos e interesses alheios há de ser o mencionado dia 5 de novembro. Em nome das honradas memórias de Rui e de Sobral, postulo à Ordem dos Advogados do Brasil que envide esforços legislativos e estatutários para modificar o dia do advogado brasileiro para esse aludido dia 5 de novembro, pelas razões delineadas.

Continuo no dia 5 de novembro, mas do longínquo ano de 1849, dia do nascimento de Rui Barbosa. Naquela época, a população brasileira gravitava em redor dos 8 milhões de habitantes. hoje somos quase 200 milhões de pessoas. Naquele período no Brasil havia apenas 2 Faculdades de Direito (Pernambuco e São Paulo), hoje funcionam quase 1.300 cursos de Direito.

6 Texto de palestra proferida por ocasião do lançamento do primeiro número da Revista Científica da Ordem dos Advogados do Brasil, seccional do Piauí. Evento realizado na sede da OAB/PI, na cidade de Teresina, em 26.11.2013, sob a organização dos advogados e professores Leandro Cardoso Lages e Eduardo Albuquerque Rodrigues Diniz.

7 AThENIENSE, Aristóteles. Sobral Pinto, o advogado. Belo horizonte: Del Rey, 2002, p. 45. 8 Rui Barbosa de Oliveira (5.11.1849 – 1º.3.1923). Patrono da advocacia brasileira e uma das figuras mais

importantes de nossa história. há copiosa produção intelectual de Rui Barbosa e sobre Rui Barbosa. Basta acessar qualquer página de busca na internet ou em qualquer biblioteca ou livrarias nacionais.

9 heráclito Fontoura Sobral Pinto (5.11.1893 – 30.11.1991). Advogado brasileiro que defendeu presos políticos durante a “Ditadura Vargas (1937-1945)” e durante a “Ditadura Militar (1964-1984)”. Maiores informações podem ser extraídas de qualquer site de busca na internet ou dos principais livros de história do Brasil, ou nas principais bibliotecas nacionais. Neste ano de 2013 foi lançado um filme intitulado “Sobral Pinto – o homem que não tinha preço”.

10 AThENIENSE, Aristóteles. Sobral Pinto, o advogado. Belo horizonte: Del Rey, 2002, p. xI.

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Naquele ano de 1849, em 1º de janeiro, os pernambucanos no calor da “Revolução Praieira” publicaram o “Manifesto ao Mundo” contendo as seguintes reivindicações:

1º O voto livre e universal do povo brasileiro;

2º A plena e absoluta liberdade de comunicar o pensamento por meio da imprensa;

3º O trabalho como garantia de vida para o cidadão brasileiro;

4º O comércio a retalho só para os cidadãos brasileiros;

5º A inteira e efetiva independência dos poderes constituídos;

6º A extinção do Poder Moderador e do direito de agraciar;

7º O elemento federal na nova organização;

8º Completa reforma do Poder Judiciário, de modo a assegurar as garantias dos direitos individuais dos cidadãos;

9º Extinção da lei do juro convencional;

10º Extinção do atual sistema de recrutamento militar.

Essa “Revolução Praieira” se insere no quadro de “insurreições e revoltas” que marcaram o Império brasileiro. O Brasil, no ano do nascimento de Rui Barbosa, como todos sabemos, era governado pelo imperador D. Pedro II e regido pela Constituição de 182411.

Sobre essa Constituição, José Antônio de Pimenta Bueno (Marquês de São Vicente)12 publicou, no ano de 1857, o melhor livro de direito constitucional já escrito em língua portuguesa, nada obstante, reitera-se, versasse sobre o regime constitucional do Império.

No Preâmbulo13 dessa Constituição constava que Dom Pedro I, Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil, por obra e graça de Deus, e unânime aclamação dos Povos, em nome da Santíssima Trindade, jurava e mandava observar a Constituição do Império brasileiro, por ele outorgada em 25.3.1824. é de ver, portanto, que a grande figura política do Império brasileiro foi o Imperador. E sua força política decorria do fato de empalmar o Poder Moderador, instrumento que amesquinhava os demais Poderes.

Com efeito, o art. 98 da Constituição enunciava que o “Poder Moderador é a chave de toda a organização política, e é delegado privativamente ao Imperador, como chefe supremo da Nação, e seu primeiro representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio, e harmonia dos demais poderes políticos”. 11 O inteiro teor do texto constitucional de 1824 pode ser acessado diretamente nas páginas virtuais do

Senado da República ou da Câmara dos Deputados, ou colhido em sites de busca na internet. 12 SÃO VICENTE, Marques de (José Antônio Pimenta Bueno). Direito público brasileiro e análise da Constituição

do império. Brasília: Senado Federal, 1978. 13 Preâmbulo da Constituição Imperial de 1824: Manda observar a Constituição Política do Império, oferecida e jurada

por Sua Majestade o Imperador. DOM PEDRO PRIMEIRO, POR GRAÇA DE DEUS, e unânime aclamação dos povos, imperador constitucional e defensor perpétuo do Brasil: fazemos saber a todos os nossos súditos, que tendo-nos requerido os povos deste Império, juntos em Câmaras, que nós quanto antes jurássemos e fizéssemos jurar o Projeto de Constituição, que havíamos oferecido às suas observações para serem depois presentes à nova Assembleia Constituinte; mostrando o grande desejo, que tinham, de que ele se observasse já como Constituição do Império, por lhes merecer a mais plena aprovação, e dele esperarem a sua individual, e geral felicidade política: nós juramos o sobredito Projeto para o observarmos e fazermos observar, como Constituição, que d’ora em diante fica sendo deste Império; a qual tem o teor seguinte: EM NOME DA SANTÍSSIMA TRINDADE....

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A instituição desse Poder decorreu de uma importação “tupiniquim” das teses políticas do escritor suíço Benjamin Constant14. Segundo Constant, os três poderes político-constitucionais conhecidos (o executivo, o legislativo e o judiciário) devem cooperar entre si, mas pode haver entrechoques e bloqueios. Nessas situações de conflitos entre os Poderes surge a figura do poder neutro, típico das monarquias constitucionais, que pertenceria ao monarca, pois este não faria parte nem do executivo, nem do legislativo, nem do judiciário.

Por essa linha, o monarca estaria fora e acima de todos os demais poderes políticos, como um árbitro, um moderador dos eventuais conflitos que eventualmente surgissem. Constant mirava a experiência inglesa. A tese era boa, mas a sua prática mostrou-se equivocada no Brasil. O Imperador não agia com moderação e nem como árbitro das disputas políticas, mas como “parte” interessada. Em clássica obra escrita em 1862, Paulino José Soares de Souza (o Visconde de Uruguai)15, assinalou que a máxima “o Rei reina mas não governa” é completamente vazia de sentido para os brasileiros. Com efeito, segundo os preceitos da Constituição de 1824, o Imperador exerce as suas atribuições que não podem ser entendidas nem limitadas por uma máxima estrangeira, válida para os ingleses e algumas outras monarquias europeias.

Segundo a Constituição, a pessoa do Imperador era inviolável e sagrada, e ele não estaria sujeito a responsabilidade alguma. Se o Imperador era irresponsável, quem se responsabilizava pelos seus atos? Na excelente monografia escrita em 1860 sobre esse tema, zacharias de Góes e Vasconcelos16, que foi presidente da Província do Piauí, concluiu que a responsabilidade seria dos seus ministros e conselheiros.

No Império a religião continuava a ser a “católica apostólica romana”, garantindo-se, todavia, que os cultos domésticos ou particulares de outras religiões fossem permitidos, desde que não houvesse a forma exterior de um templo. O País tinha uma igreja oficial, mas não proibia a crença nem o culto de outras religiões. Para Afonso Arinos de Melo Franco17, o estabelecimento de uma religião oficial, naquele período, teve como razão evitar: a) os distúrbios internos ou eventuais guerras civis decorrentes das cizânias religiosas; e b) a submissão às potências estrangeiras protestantes, especialmente a Inglaterra. Por essa interpretação, mais do que o reconhecimento de uma tradição social e cultural, era uma atuação de caráter político a confirmação de uma igreja e religião oficial.

Segundo a Constituição, os representantes da Nação eram o Imperador e a Assembleia Geral (Poder Legislativo), sendo esta composta pela Câmara dos Deputados e pelos Senadores das Províncias. A Constituição assinalava que todos os poderes do império do Brasil eram delegações da Nação. O poder era da Nação que delegava o seu exercício. Mas somente o Imperador, os Deputados e os Senadores eram os seus representantes políticos. Os magistrados e os demais “funcionários públicos” exerciam um poder delegado pela Nação, mas não eram os seus representantes políticos.

Ao Poder Legislativo competia fazer as leis, interpretá-las, suspendê-las e revogá-las, bem como velar na guarda da Constituição e promover o bem geral da Nação. O Império

14 CONSTANT, Benjamin. Escritos políticos. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 15 URUGUAI, Visconde (Paulino José Soares de Souza). Ensaio sobre o direito administrativo. Brasília: Ministério

da Justiça, 1997. 16 VASCONCELOS, zacharias de Góes e. Da natureza e limites do poder moderador. Brasília: Senado Federal, 1978. 17 FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Ideias políticas do constitucionalismo imperial. In: O pensamento constitucional

brasileiro – ciclo de conferências realizado no período de 24 a 26 de outubro de 1977. Brasília: Câmara dos Deputados, 1978, pp. 31-35.

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brasileiro não conheceu o controle judicial de constitucionalidade das leis. Somente na República a solução definitiva acerca da validade normativa das leis contestadas em face da Constituição caberia ao Poder Judiciário. é a partir da República que ao Poder Judiciário, mormente ao Supremo Tribunal Federal, se atribui a guarda e a proteção do texto constitucional. 18

Outra característica do sistema político-constitucional do Império brasileiro consistia no caráter censitário do processo eleitoral. Nem todos os brasileiros poderiam participar das eleições, sejam como eleitores, sejam como candidatos. Estavam excluídos do regime eleitoral: as mulheres, os escravos, os libertos, os analfabetos, os pobres, os estrangeiros, os não-católicos, os solteiros menores de 25 anos, os casados menores de 21 anos, os religiosos de vida consagrada ao claustro, os criminosos... Ou seja, na “representação política imperial”, poucos podiam votar e raros podiam ser eleitos, ante esse modelo de exclusão política. 19

Mas a grande exclusão do Império, o profundo “colapso moral” 20 daquele Brasil foi a escravidão que aviltava as pessoas de cor negra, que os tornava “coisas” à mercê de seus senhores. Como todos sabemos, em nosso País, a escravidão somente foi abolida no ocaso do Império, em 13.5.1888, com a promulgação da “Lei Áurea”. O Império era oligárquico: alguns poucos com muitos privilégios e a imensa maioria com poucos direitos e oportunidades. Mesmo a República tem sido pouco democrática.

O Império brasileiro não conheceu o federalismo e a consequente autonomia política, legislativa, administrativa e financeira das Províncias e dos Municípios. Com efeito, nos termos da Constituição de 1824, os Presidentes de Província eram nomeados pelo Imperador e este poderia, ao seu talante e a qualquer momento, removê-los da função.

A Constituição assinalava a independência do Poder Judicial e a sua composição seria de juízes e de jurados, cabendo aos jurados a pronúncia sobre os fatos, e aos juízes a aplicação da lei, tanto em causas cíveis como nas criminais. Os juízes de direito seriam perpétuos, mas eles poderiam ser mudados de lugar, ou suspensos pelo Imperador por queixas graves, ouvido o Conselho de Estado, e os próprios magistrados. Os juízes só poderiam perder o cargo mediante sentença judicial, sendo-lhes imputada responsabilidade por abusos de poder ou prevaricações cometidas no exercício da magistratura.

A Constituição reconhecia a possibilidade de as partes elegerem árbitros, tanto nas questões cíveis quanto em algumas causas penais, para a solução da controvérsia. E que as sentenças arbitrais, se assim convencionassem as partes, poderiam ser executadas sem recursos. As instâncias judiciais eram basicamente três: os juízes e jurados de primeiro grau; os tribunais de Relação em cada Província, e o Supremo Tribunal de Justiça, com sede na capital do Império, que seria a instância definitiva e pacificadora das controvérsias.

A Constituição de 1824 consagrava a distinção entre preceitos constitucionais materiais e preceitos constitucionais formais. Nela estava disposto no art. 178 que “é só constitucional o que diz respeito aos limites, e atribuições respectivas dos poderes políticos, e aos direitos políticos, e individuais dos cidadãos; tudo que não é constitucional, pode ser alterado sem as formalidades referidas, pelas legislaturas ordinárias”. Daí a possibilidade de as leis ordinárias cuidarem de temas apenas formalmente constitucionais.

18 LÚCIO BITTENCOURT, Carlos Alberto. O controle jurisdicional da constitucionalidade das leis. Atualizado por José de Aguiar Dias. 2ª ed. Brasília: Ministério da Justiça, 1997.

19 FERREIRA, Manoel Rodrigues. A evolução do sistema eleitoral brasileiro. Brasília: Senado Federal, 2001. 20 Expressão extraída da obra “Eichmann em Jerusalém – ou sobre a banalidade do mal”, de Hannah Arendt.

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No art. 179 estava elencado o clássico rol de direitos fundamentais inspirados nas ideologias liberais, como se vê do caput desse aludido dispositivo: “A inviolabilidade dos direitos civis, e políticos dos cidadãos brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte”.

Seguia um catálogo de 35 incisos que são muito similares ao da atual Constituição de 1988 e que foram repetidos pelas outras Constituições brasileiras. À guisa de exemplo: “I – nenhum cidadão pode ser obrigado a fazer, ou deixar de fazer alguma cousa, senão em virtude da lei”; “II – nenhuma lei será estabelecida sem utilidade pública”; “III – A sua disposição não terá efeito retroativo”.

As promessas constitucionais estampadas nos incisos do art. 179 também cuidavam da dignidade da pessoa humana: “XIX – desde já ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as demais penas cruéis”; “XX - nenhuma pena passará da pessoa do delinquente...”; “XXI – as cadeias serão seguras, limpas, e bem arejadas, havendo diversas casas para separação dos réus, conforme suas circunstâncias, e natureza dos delitos”. No plano dos direitos fundamentais sociais estava enunciado que: “XXXI - a Constituição também garante os socorros públicos”; “XXX – a instrução primária é gratuita a todos os cidadãos”.

Como vimos, o quadro normativo da Constituição de 1824, pelo menos no plano formal, simbolizava um regime político aristocrático, com aparência de legitimidade representativa. Mas, como todos sabemos, a “democracia” imperial era para poucos, era oligárquica, e não popular, pois os negros, os índios, os pobres, as mulheres, os gays e as lésbicas, os não-católicos, as crianças, os idosos, os portadores de deficiência e todos os segmentos humanos historicamente menosprezados não encontravam leis nem práticas sociais ou estatais de proteção ou de emancipação. Para as pessoas nessas condições naturais ou sociais, a vida sempre foi muito difícil.

É nesse quadro social que Rui Barbosa surge e floresce. Ele entra para a Faculdade de Direito de Olinda em 1865. Transfere-se para a Faculdade de Direito de São Paulo e se forma em 1870. A partir da faculdade Rui se aproxima de Castro Alves, de Joaquim Nabuco (também nascido em 1849) e de outras grandes figuras brasileiras e abraça a causa da Abolição da Escravatura. Rui se destaca na imprensa e na advocacia, e, paralelamente às lutas pelo fim da escravidão, começa a trovejar a favor da República. Nada obstante a sua adesão ao republicanismo, Rui é convidado para compor o gabinete imperial, mas declina, pois já estava comprometido com a causa republicana, vista por ele como remédio apto a curar os males públicos do Brasil.

A República, por meio de uma intervenção militar, é proclamada em 15.11.188921. Rui Barbosa se insere como um dos líderes civis do movimento e assume a pasta do ministério da Fazenda e se torna o arquiteto jurídico da República. Praticamente todo o arcabouço normativo da República é fruto do trabalho e da inteligência de Rui Barbosa.22

é convocado e se reúne o “Congresso Constituinte” com a missão de promulgar uma nova Constituição. Essa nova Constituição, a primeira da República, é promulgada em 24.11.1891. Nessa Constituição o trabalho de Rui se destaca e surgem novidades institucionais: a República, a Federação, o Presidencialismo, a Separação dos Poderes, o fim do voto censitário e separação entre o Estado e a Igreja.23

21 O inteiro teor do texto constitucional de 1891 pode ser acessado diretamente nas páginas virtuais do Senado da República ou da Câmara dos Deputados, ou colhido em sites de busca na internet.

22 MANGABEIRA, João. Rui: o estadista da República. Brasília: Senado Federal, 1999. 23 CAVALCANTI, João Barbalho Uchôa. Constituição federal brasileira (1891) - comentada. Brasília: Senado

Federal, 2002.

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Quanto à separação dos Poderes, surgiu o “controle judicial de constitucionalidade das leis” e a impossibilidade de o chefe de Estado (Presidente da República) de fechar o Congresso Nacional e de suspender os juízes. Não havia o “Poder Moderador” presidencial. Formalmente o Brasil tinha uma Constituição republicana, que foi inspirada nos textos constitucionais estrangeiros, especialmente dos Estados Unidos. 24

Mas logo ficou patente que a importação do modelo normativo norteamericano, com as pitadas da experiência inglesa, não surtiram os efeitos desejados por Rui Barbosa nas práticas políticas, profundamente enraizada na cultura social brasileira. 25 As crises políticas, econômicas e sociais do alvorecer da República se acentuaram. Deodoro da Fonseca (eleito indiretamente pelo Congresso Constituinte como primeiro Presidente) renuncia. Assume o seu vice-Presidente o também marechal Floriano Peixoto. Com Floriano Peixoto tem início uma “ditadura constitucional” e Rui Barbosa, militante da causa republicana, passa a se tornar um corifeu das liberdades civis na defesa dos perseguidos políticos. Rui ousava desafiar a força da espada através das palavras de suas petições.

Segundo Edgar Costa26, que foi ministro do STF, o primeiro julgamento relevante do Supremo Tribunal Federal foi o Habeas Corpus n. 300 impetrado por Rui Barbosa em favor de presos políticos desterrados por ordem do marechal Floriano Peixoto. Relatam os cronistas que o Marechal Floriano havia feito o seguinte comentário acerca da impetração do hC: Não sei quem amanhã dará habeas corpus para os ministros do Supremo Tribunal Federal...

Naquelas circunstâncias políticas, o Tribunal não ousou anular os atos presidenciais, sob a justificativa de que se cuidavam de atos políticos, insindicáveis judicialmente. Nada obstante esse entendimento inicial, Rui Barbosa continuou com suas invectivas contra os atos que entendia ilegais e abusivos do governo brasileiro. Por essa razão foi, inclusive, constrangido a buscar exílio, inicialmente na Argentina e posteriormente na Inglaterra.

Encerrada a ditadura constitucional de Floriano toma posse o presidente eleito Prudente de Moraes, em 1894. Em 5.11.1897 (aniversário de Rui e de Sobral) houve um atentado à vida do presidente Prudente de Moraes, no qual restou vitimado o ministro da guerra Carlos Machado Bittencourt. Ante esse quadro, foi decretado o estado de sítio e novas perseguições políticas contra os adversários do governo foram exercidas.

Novamente Rui Barbosa ingressa com ordens de habeas Corpus perante o STF na defesa dos perseguidos políticos. Dessa vez o Tribunal concede a ordem para garantir o comparecimento em juízo dos pacientes. Já era uma vitória. Mas, no julgamento do mérito, o Tribunal manteve a orientação de que os atos praticados durante o estado de sítio são atos políticos e insindicáveis judicialmente, sendo competência do Congresso a sua apreciação.

Posteriormente o Tribunal evoluiu e passou a conceder as ordens de hC em face de presos políticos. Rui provocava o STF a tomar medidas que a mentalidade judicial brasileira não estava acostumada: a invalidar ou a cassar atos governamentais por inconstitucionalidade. Nessa fase da experiência republicana brasileira, o STF começava a entender o significado de ser o “guardião” da Constituição.24 FERREIRA, Waldemar Martins. História do direito constitucional brasileiro. Brasília: Senado Federal, 2003.25 hAMBLOCh, Ernest. Sua majestade o presidente do Brasil – um estudo do Brasil constitucional (1889 – 1934).

Tradução de Lêda Boechat. Brasília: Senado Federal, 2000. 26 COSTA, Edgar. Os grandes julgamentos do Supremo Tribunal Federal – Primeiro Volume (1892 -1925). Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 1964.

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A primeira República foi um período conturbado tanto nos aspectos políticos, quanto nos aspectos sociais e econômicos, e frágil era a democracia brasileira, pois as instituições republicanas ainda estavam dominadas por uma mentalidade caudilhesca e patrimonialista. A República ainda não tinha se firmado como o governo da Lei e do respeito às instituições. Lei que deveria punir o poderoso e proteger o fraco. Lei que deveria ser aplicada com justa equidade para todos. Instituições que deveriam aplicar milimetricamente os preceitos normativos.

Interessou-nos o Rui advogado, mas não podemos esquecer do Rui político, verdadeiro estadista. Rui foi 2 vezes candidato à Presidência da República. A candidatura mais marcante, mais empolgante foi o pleito que disputou contra hermes da Fonseca, em 1910. Essa candidatura foi chamada de “campanha civilista”, na qual Rui percorreu o Brasil, realizando comícios, discursos e empolgando a juventude e as classes profissionais urbanas. Mas naquele Brasil rural, de mentalidade provinciana e da “política dos governadores”, o governo situacionista abusava das fraudes eleitorais, da corrupção e do abuso de poder, de sorte que o candidato governista saiu vitorioso na eleição, mas as sementes das insatisfações já estavam lançadas e 2 décadas depois seriam colhidas, em outubro de 1930.

Rui falece em 1º.3.1923, sob o governo de Arthur Bernardes. à época da morte de Rui Barbosa, conquanto não houvesse escravidão negra, as condições sociais dos negros, dos pobres, dos analfabetos, das mulheres e todos os socialmente subalternizados não era muito diferente da época do Império. Com efeito, a República não era menos aristocrática que o Império. O abuso de poder e as ilegalidades cometidas pelos poderosos não eram menores do que as cometidas durante o Império. Na substância, pouca coisa tinha mudado na passagem do Império para a República, pois os vícios institucionais foram transplantados. O Brasil ainda não vivia uma “Democracia Republicana”, pois nem todos eram livremente iguais nem equitativamente responsáveis perante as leis. A aplicação da lei era seletiva.

Nesse ano de 1923, ano da morte de Rui Barbosa, Sobral Pinto, conquanto jovem, já era um respeitado advogado, mas ainda não militava na seara das liberdades civis. Sobral Pinto tinha 30 anos, pois nasceu no ano de 1893. Nesse ano também nasceu Alceu do Amoroso Lima (o Tristão de Ataíde) outra grande figura brasileira.

No ano do nascimento de Sobral, Antônio Conselheiro se estabelece no pequeno arraial de Canudos, no sertão baiano. Naquele ano, no Rio Grande do Sul, estoura a Revolução Federalista. Se no ano do nascimento de Rui tivemos a “Revolução Praieira”, de caráter republicano e federalista, no nascimento de Sobral tivemos a “Federalista”, de caráter federal e republicano também. Com efeito, pretendiam os “federalistas gaúchos” “libertar” o Rio Grande da tirania constitucional de Júlio de Castilhos, que ao lado de Pinheiro Machado e Borges de Medeiros, representavam a anti-republicana política dos governadores.

A ironia da história consiste no fato de que o agente que implodiria esse modelo da política dos governadores foi um discípulo dessa trinca: o também gaúcho Getúlio Vargas. Pois bem, Getúlio Vargas, candidato derrotado nas eleições presidenciais de março de 1930, assume o poder graças à Revolução de outubro de 1930, que depôs o presidente Washington Luís e não permitiu a posse do candidato eleito Júlio Prestes. Cuide-se que Getúlio Vargas foi ministro da Fazenda de Washington Luís, mas acabou sendo o candidato pelas oposições. Seria o mesmo que o atual ministro Guido Mantega fosse o candidato a presidente pelas oposições atacando as práticas políticas do governo petista. Paradoxos e paroxismos tipicamente brasileiros.

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Com a ascensão de Getúlio, estava sepultada a Primeira ou Velha República e a Constituição de 1891. Todavia, se com Getúlio morre a “política dos governadores”, remanescem algumas das velhas práticas “coronelistas”, como o mandonismo, o nepotismo e a ocupação de cargos públicos pelos aliados, a perseguição aos adversários e o abuso nas eleições. Em 1932 estoura a Revolução Constitucionalista em São Paulo, sufocada pelas tropas federais fieis a Getúlio. Em 1933 são convocadas eleições para a uma nova Assembleia Constituinte. As mulheres puderam votar nesse pleito.

Em 16.7.193427 é promulgada a 3ª Constituição do Brasil, a 2ª da República. A Constituição de 1934 inaugura o constitucionalismo social no Brasil, e a crença infantil nos poderes mágicos da Constituição. Tem início o “fetichismo constitucional” ou “idealismo romântico”. O “fetichismo constitucional” ou “feitiço da Constituição” consiste na crença de que a enunciação de promessas normativas no texto da Constituição seria suficiente e bastante para a sua concretização e para a transformação social e cultura do Brasil.

Na Constituição de 1934 foram enunciados vários preceitos que visam criar prestações positivas do Estado nas áreas sociais, como trabalho, saúde, previdência, família, educação, cultura etc. A Constituição deixa de ser um instrumento normativo de limitação jurídica do poder político do Governante para se tornar um instrumento de atuação social do Estado.

A ingenuidade normativista acredita que os textos jurídicos têm poderes mágicos. Que as palavras na Constituição são capazes de mudar as realidades. Que basta enunciar um direito para que as práticas culturais se modifiquem. O pensamento mágico normativista brasileiro tem trabalhado com esse mito. Ou por ingenuidade, ou por má-fé.

A Constituição de 1934 trouxe algumas novidades em relação à de 1891, como a cota de representação política para as profissões ou corporações: lavoura e pecuária; indústria, comércio e transportes; profissões liberais e funcionários públicos. A Constituição instituiu a aposentadoria compulsória para os magistrados que atingissem os 75 anos de idade. Também vedava ao Judiciário o conhecimento das questões exclusivamente políticas. Dispunha como uma das hipóteses de cabimento do recurso extraordinário para a Suprema Corte, nova denominação do STF, a “violação à literal disposição de tratado ou de lei federal”.

Essa Constituição tem duração efêmera, pois em 10.11.193728 Getúlio Vargas outorgava a 4ª Constituição do Brasil, “atendendo às legítimas aspirações do povo brasileiro”. Getúlio, exímio manipulador, maquiavelicamente utiliza os medos e os receios de parcela das classes dominantes brasileiras, especialmente quanto à instalação de uma ditadura do proletariado comunista ou de uma ditadura extremista fascista, e dá um golpe de Estado.

O Mundo vivia a ascensão política do “fascismo” e dos governos autoritários: Mussolini na Itália, Hitler na Alemanha, Pilsudski na Polônia, Franco na Espanha, Salazar em Portugal. No campo da esquerda comunista, a experiência da ditadura do proletariado comunista na União Soviética também era vista como um espectro a assombrar as pessoas daquele período. Getúlio Vargas flertava e tinha maior proximidade com o autoritarismo fascista. E a partir de 1937 impôs ao Brasil um regime autoritário de direita.

Esses governos autoritários tinham dois extremos: o de esquerda, simbolizado por Joseph Stálin na União Soviética; e o da direita, simbolizado por Adolf Hitler na

27 O inteiro teor do texto constitucional de 1934 pode ser acessado diretamente nas páginas virtuais do Senado da República ou da Câmara dos Deputados, ou colhido em sites de busca na internet.

28 O inteiro teor do texto constitucional de 1937 pode ser acessado diretamente nas páginas virtuais do Senado da República ou da Câmara dos Deputados, ou colhido em sites de busca na internet.

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Alemanha. Em comum: o fortalecimento do poder coletivista do Estado e o enfraquecimento das liberdades individuais. A principal diferença residia no fato de que na extrema direita havia a possibilidade de o grande capital se tornar parceiro do autoritarismo político. Mas tanto o “nazi-fascismo” quanto o “social-comunismo” eram governos antidemocráticos, antirrepublicanos e anti-inviduais. O indivíduo (pessoa) não passava de um objeto a serviço do Estado e do Poder. O indivíduo nada podia, nada valia.

Volto ao Brasil e à Constituição de 1937, de inspiração fascista (apelidada de “Polaca”). Dessa Constituição vale registrar dois preceitos: o art. 180 e o parágrafo único do art. 96. O 180 dispunha que “Enquanto não se reunir o Parlamento Nacional, o Presidente da República terá o poder de expedir decretos-leis sobre todas as matérias de competência legislativa da União”. Esse Parlamento Nacional nunca foi convocado nem reunido, e Getúlio governou soberanamente até sua deposição em 1945.

O aludido parágrafo único do art. 96 dispunha que “No caso de ser declarada a inconstitucionalidade de uma lei que, a juízo do Presidente da República seja necessária ao bem estar do povo, à promoção ou defesa de interesse nacional de alta monta, poderá o Presidente da República submetê-la novamente ao exame do Parlamento; se este a confirmar por dois terços de votos em cada uma das Câmaras, ficará sem efeito a decisão do Tribunal”. Como não havia Parlamento, Getúlio com esteio no art. 180 poderia anular as decisões do STF segundo a sua conveniência.

A Constituição, ao invés de ser um instrumento normativo de limitação dos eventuais abusos governamentais, se tornava um instrumento normativo de justificação desses abusos. Todos os abusos de Getúlio tinham respaldo na Constituição. Era um texto meramente semântico, na lição de Karl Loewenstein29. Era uma anti-Constituição.

Empalmando tanto poder, Getúlio inicia a perseguição aos seus inimigos e adversários políticos. A partir daí, entra em cena o advogado heráclito Fontoura Sobral Pinto. Sobral, que era um católico fervoroso, um cristão abnegado, é designado pela OAB para defender os comunistas Luís Carlos Prestes e harry Berger.30

E com a coragem dos justos e com a paixão dos santos, Sobral passa a defender esses presos comunistas. Se Rui era um vulcão erudito, Sobral era um terremoto intelectual, e assim como Rui usou de toda a sua criatividade para defender os presos políticos. O momento mais marcante e mais fantástico da epopeia de Sobral ocorre quando ele lê no jornal uma notícia acerca da condenação de um proprietário de cavalo por maus-tratos ao seu animal. Com essa informação, ele tem a ideia de requerer ao Tribunal a aplicação da lei de proteção aos animais, pois os seus constituintes estavam em condições subumanas, com tratamento pior que o destinado às bestas, bestializados pois. Ante essa situação real e diante da força dos argumentos de Sobral, o Tribunal de Segurança Nacional foi constrangido a decidir favoravelmente aos presos comunistas.31

Essas lutas de Sobral ocorrem até o fim da ditadura Vargas, em 1945, quanto se restaura a democracia. Em 18.9.194632 foi promulgada pela Assembleia Nacional Constituinte

29 LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la constitución. Barcelona: Ariel, 1976; Brazil under Vargas, New york: Macmillian Company, 1944.

30 SOBRAL PINTO, heráclito Fontoura. Por que defendo os comunistas? Belo horizonte, Editora Comunicação: 1979. 31 Há uma excelente Dissertação de Mestrado sobre essa defesa de Sobral Pinto. Autor: Daniel Monteiro

Neves. Título: Como se defende um comunista: uma análise retórico-discursiva da defesa judicial de Harry Berger por Sobral Pinto. Universidade Federal de São João Del-Rei. Programa de Mestrado em Letras. São João Del-Rei/MG, 2013.

32 O inteiro teor do texto constitucional de 1946 pode ser acessado diretamente nas páginas virtuais do

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a 5ª Constituição do Brasil. Esse texto, de inspiração liberal democrática, marca uma fase de transição na política e na economia brasileira. Momentos políticos dramáticos ocorrem nesse período, como o suicídio de Getúlio, a tentativa de golpe de Café Filho, e a tentativa de golpe contra a posse de Juscelino Kubitscheck (JK).

Sobral, que não era eleitor de JK, que não era do partido de JK, sai em defesa de Juscelino em nome da legalidade e do respeito à vontade democrática do eleitor que escolhera JK como Presidente, contra o candidato udenista Juarez Távora, apoiado por Sobral Pinto. Como reconhecimento e como gratidão, JK ofereceu a Sobral a possibilidade de lhe indicar para o STF. Sobral recusou, assim como Rui já havia recusado. Outros tempos. Outros homens. hoje muitos são capazes de qualquer coisa para terem assento nos Tribunais, especialmente no STF e nos Superiores. Pois Sobral e Rui recusaram o que lhes foi gratuitamente oferecido. hoje, sabemos todos, não são poucos os que se oferecem desavergonhadamente, sem qualquer pudor, para uma cadeira em um Tribunal. Fora dos estreitos lindes do concurso público, a escolha de alguns magistrados para os tribunais têm sido um esgoto ético. Triste realidade.

Após a estabilização política, ocorrida no governo JK, novas eleições sucedem, e finalmente um udenista, Jânio Quadros, se elege. Todavia, com 7 meses de governo, Jânio renuncia. A vaga deveria ser ocupada pelo Vice-presidente João Goulart ( Jango). Nova crise política se instala, pois parcela substantiva do estamento político não aceitava a posse de Jango. Como solução implanta-se o parlamentarismo, e que seria convocado um plebiscito popular para decidir qual o sistema de governo deveria viger no Brasil. 33

Em 1963 o plebiscito popular decidiu pelo presidencialismo. Jango volta a ter poder. Mas as forças contrárias armam um golpe. Em 1º.4.1964 Jango sofre um golpe militar. Esse golpe teve um forte apoio da sociedade civil, inclusive de Sobral Pinto, pois se imaginava que Jango tramava instalar uma república sindical no Brasil ou implantar um regime socialista similar ao de Cuba. 34

Sucede, todavia, que o golpe militar que tinha como objetivo aparente impedir a instalação de uma ditadura socialista se transformou em um regime autoritário, ilegítimo, usurpador do poder civil. Nesse momento, quando Sobral percebe a instalação de uma ditadura militar, ele imediatamente passa a denunciar essa ditadura e a exigir a devolução do poder aos civis e restauração democrática.35

Para dar uma aparência de legitimidade normativa, foi promulgada em 24.1.196736 a 6ª Constituição brasileira. Mas essa também teve vida efêmera, assim como a de 1934. Com efeito, em 13.12.1968 foi editado o Ato Institucional n. 5 (AI 5) que consagrava definitivamente a ditadura militar.37 Em 17.10.196938, a Junta Militar que usurpara o poder editou a Emenda Constitucional n. 1, que foi uma nova Constituição.

Senado da República ou da Câmara dos Deputados, ou colhido em sites de busca na internet. 33 DINES, Alberto e outros. Histórias do poder – 100 anos de política no Brasil (volumes 1, 2 e 3). São Paulo:

Editora 34, 2000.34 DINES, Alberto e outros. Idem.35 GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 36 O inteiro teor do texto constitucional de 1967 pode ser acessado diretamente nas páginas virtuais do

Senado da República ou da Câmara dos Deputados, ou colhido em sites de busca na internet. 37 GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 38 O inteiro teor do texto constitucional de 1969 pode ser acessado diretamente nas páginas virtuais do

Senado da República ou da Câmara dos Deputados, ou colhido em sites de busca na internet.

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E, assim como ocorrera durante o “Estado Novo getulista”, Sobral Pinto mais uma vez se vê na contingência de defender presos e perseguidos políticos, especialmente os “comunistas”. A repressão política foi feroz, mas Sobral, assim como fizera durante a ditadura Vargas, sai em defesa dos inimigos da ditadura Militar. Foram tempos difíceis. Sobral chegou a ser preso, e sofreu ameaças. Teve a sua vida e liberdade em perigo, mas a sua respeitabilidade, e o seu nome eram grandes demais, e os militares não ousaram lhe fazer mal. Sobral foi uma trincheira da restauração democrática e da defesa das liberdades civis. Nessa luta, Sobral não esteve solitário. Outras figuras e instituições estavam do mesmo lado: OAB, CNBB, ABI... 39

O Judiciário brasileiro, constrangido pela força arbitrária das armas, nem sempre ousava decidir contrariamente aos interesses dos governantes autoritários. Para intimidar os magistrados brasileiros, os militares aposentaram 3 ministros do STF. Mesmo assim, o Tribunal concedeu algumas ordens de hC para garantir a integridade física dos presos políticos.40 41

A partir dos governos Geisel e Figueiredo têm início o processo de redemocratização. O ponto culminante se deu com a campanha das “Diretas Já”, em 1984. Sobral, um senhor de 90 anos, um velho combatente das palavras e da razão, se engaja nessa luta do povo brasileiro por democracia. Nada obstante a derrota das “Diretas Já”, a redemocratização brasileira já era uma realidade, e com a eleição de Tancredo e de Sarney, derrotando os candidatos da situação Paulo Maluf e Flávio Marcílio (este piauiense de Picos), encerrava-se o ciclo militar no Brasil.

Em 5.10.198842, há 25 anos, promulgava-se a vigente e reinante Constituição brasileira. Espera-se que seja a última, pois uma nova Constituição significa que houve ruptura traumática da “legítima legalidade”.

Sobral faleceu no dia 30.11.1991, há 22 anos. De lá para cá muita coisa tem ocorrido no Brasil. Mas induvidosamente alcançamos a estabilidade política e os governos brasileiros desde 1988 têm sido legítimos, pois escolhidos pelo eleitorado popular, mediante o voto, principal instrumento de legitimidade do representante do povo.

é de se indagar: vivemos em uma “democracia republicana”? Como podemos compreender os termos “democracia” e “república” hoje, 25 anos depois de promulgada a Constituição? E qual o legado deixado por Rui e por Sobral para nós, advogados?

No longo processo de construção e de consolidação da “democracia” no Brasil, podemos entendê-la como a prática da liberdade e da tolerância, da aceitação do diferente, do respeito às maiorias, da proteção e da consideração às minorias. Democracia como o regime de governo no qual o adversário não é o inimigo que deva ser destruído, aniquilado, mas como reino da convivência na divergência. Na democracia não é legítimo nem lícito que o governante lance mão do discurso do ódio e da divisão, atribuindo aos adversários as culpas ou responsabilidades pelo insucesso ou êxito.

39 DINES, Alberto e outros. Obra citada.40 ALVES JR., Luís Carlos Martins. O Supremo Tribunal Federal nas constituições brasileiras. Belo horizonte:

Mandamentos, 2004.41 ALVES JR., Luís Carlos Martins. Memória jurisprudencial – ministro Evandro Lins. Brasília: Supremo Tribunal

Federal, 2009.42 O inteiro teor do texto constitucional de 1988 pode ser acessado diretamente nas páginas virtuais do

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Democracia é pluralidade de visões de mundo e reino das múltiplas oportunidades, de modo que todos e cada um possam realizar os seus projetos existenciais de vida e de felicidade. Democracia como liberdade porque todos somos igualmente dignos, merecedores de respeito e de consideração. Democracia com liberdade de expressão e de imprensa no limite da responsabilidade. Democracia como possibilidade real de a oposição vir a se tornar situação e de que esta – a situação – possa vir a ser oposição. Democracia como salutar e desejável alternância no poder. Mas Democracia é o exercício regular dos Direitos e dos Deveres. há Deveres democráticos, além (ou antes) dos Direitos.

E a República? República como regime da legalidade. Mas não a legalidade meramente formal, meramente aparente, mas a legalidade legítima. República como o governo de homens e mulheres que obedecem às leis e respeitam às instituições. República como a prática de não usar o poder para privilegiar ou favorecer os amigos e para perseguir ou prejudicar os inimigos ou adversários. República como governo que serve ao povo, em vez de servir-se dele. República como administração que se pauta pela eficiência e pela moralidade, com transparência e publicidade. República como uso do que é público apenas de modo justificado e legítimo, sem privilégios ou distinções inaceitáveis.

República que significa igualdade equitativa de todos perante a lei. As diferenciações ocorrem somente ou pela necessidade ou pelo merecimento. Crianças necessitam de um tratamento diferenciado. Professores merecem um tratamento diferenciado. República em que o poderoso é alcançado pela lei. Que o humilde é protegido pela lei. República que pune o culpado e absolve o inocente. República que significa segurança e certeza de que todos, sejam ricos ou pobres, brancos ou negros, homens ou mulheres, crentes ou ateus, hetero ou homossexuais, que todos deverão receber a igual proteção e igual submissão às leis.

E nós advogados o que queremos da República? Que os juízes e tribunais cumpram rigorosa e milimetricamente a Lei. República é Estado de Direito, é devido processo legal, com ampla defesa e contraditório. Na República o magistrado não é midiático nem se deixa intimidar ou seduzir pelos grandes veículos de comunicação. Na República o magistrado é servo da legalidade, e não o senhor da Lei. O magistrado há de ser um vassalo da Constituição, e não o seu suserano.

A nossa sociedade tem trilhado um longo caminho para construir um Estado que seja “democrático” e “republicano”, que seja legal e legítimo. é bem verdade que conquistamos a estabilidade política. Também conquistamos a estabilidade econômica. Falta conquistarmos a estabilidade social.

Como o Direito e os advogados podem contribuir para essa estabilidade? O Direito é uma tecnologia normativa serviço das ideologias políticas predominantes. O Direito há de ser legítimo ou ilegítimo. Nós os advogados somos os principais operadores dessa tecnologia. O nosso trabalho é utilizar essa tecnologia em favor dos nossos clientes.

Se o Direito for um instrumento normativo a serviço do crescimento econômico, do florescimento das potencialidades existenciais, do surgimento de oportunidades individuais, ele pode vir a ser um poderoso aliado no desenvolvimento social. Cabe a nós, advogados, os principais interessados no rigoroso e milimétrico cumprimento do da lei, postular pela aplicação desse direito legítimo. Insisto. A advocacia é a profissão da legalidade legítima. É a profissão da liberdade responsável. Só os livres são responsáveis. Só há responsabilidade na liberdade.

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Pois bem, nesse longo e sinuoso percurso, Rui e Sobral foram dois importantes guias, duas estrelas que iluminaram os nossos passos. O legado deles é atual. Eles foram homens que colocaram o seu talento e a sua capacidade a serviço da solução de problemas humanos. Essa é a principal herança deles. Nem Rui nem Sobral eram teóricos especulativos. Foram homens de ação e de palavras. Todo o cabedal de conhecimentos que possuíam, tanto jurídico, quanto filosófico, político, histórico, foi posto a serviço dos seus clientes e das causas que defenderam. Essa é mensagem para nós advogados.

Toda a nossa cultura e saber devem estar a serviço dos nossos clientes e das nossas causas. O advogado há de ser um pragmático realista, sem prejuízo da esperança moral. Reitero, o advogado deve ser um profissional apto a solucionar os problemas de seus clientes e constituintes. é isso que ele deve ser: um solucionador de problemas normativos dos clientes. O único compromisso do advogado deve ser com a versão da verdade do seu cliente, com o direito do seu cliente e com a justiça para o seu cliente.

O advogado não deve ter medo de criar inimizades.43 Nem de constranger os magistrados na defesa dos interesses de seus clientes. O advogado é um profissional que luta utilizando como arma a palavra e o argumento, em favor da justiça para o seu cliente. Para o advogado, a causa do cliente deve ser sagrada, deve ser inviolável, e ele deve brigar com todas as suas forças e com todo o seu talento em defesa dela.

E como as Faculdades de Direito podem auxiliar na formação desse profissional da Justiça? Os cursos de Direito devem preparar profissionais capazes de serem criativos na solução de problemas concretos da vida real das pessoas. As Faculdades devem preparar profissionais pragmáticos, em vez de acadêmicos especulativos. Toda boa filosofia ou toda boa teoria deve ter um sentido e uma função prática. Teoria que não serve na prática, não tem utilidade. Não deve nem ser considerada. é perda de tempo. Dizia Geraldo Ataliba: “não há nada mais útil do que uma boa teoria”.

Aqui, vale registrar a imperiosa advertência de Oliveira Viana44 (que era um crítico fervoroso de Rui Barbosa), feita no ano de 1921, mas de extrema atualidade, sobre os eruditos e intelectuais brasileiros, e sobre a formação universitária deles:

No Brasil cultura significa expatriação intelectual. O brasileiro, enquanto é analfabeto, raciocina corretamente e, mesmo inteligentemente, utilizando o material de observações e experiências feitas sobre as coisas que estão ao derredor dele e ao alcance dos seus sentidos, e sempre revela em tudo este inalterável fundo de sensatez, que lhe vem da raça superior originária. Dêem-lhe, porém, instrução; façam-no aprender o francês; levem-no a ler a História dos Girondinos, de Lamartine, no original – e então já não é o mesmo. Fica ‘homem de ideias adiantadas’, cai numa espécie de êxtase e passa a peregrinar – em imaginação – por ‘todos os grandes centros da civilização e do progresso’. Se, acordando-o da hipnose, damos-lhe um safanão e desfechamos-lhe, à queima-roupa, uma pergunta concreta e precisa sobre as possibilidades da ‘siderurgia no Brasil’ ou sobre o ‘valor seletivo do zebu na pecuária do Triângulo’, ele nos olha atônito, num estado de imbecilização sonambúlica; ou então entra a dizer coisas disparatadas sobre rebanhos ingleses e australianos; ou desenvolve, um pouco confusamente, os primeiros capítulos de um

43 BARBOSA, Rui. O dever do advogado. Rio de Janeiro: AIDE, 2002. 44 OLIVEIRA VIANA, Francisco José de. Instituições políticas brasileiras. Brasília: Senado Federal, 1999.

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filosofia das aplicações do ferro na economia contemporânea. Sobre o nosso problema pecuário, ele nada dirá, porque nada sabe, nem mesmo poderá saber, dado esse estado particular do seu espírito.

As Faculdades de Direito não devem formar advogados que especulam ou elucubram sobre os problemas normativos, mas advogados capazes de resolvê-los. Rui e Sobral, nada obstante fossem profundos conhecedores das boas teorias, sabiam apontar solução para os problemas de seus clientes e para as causas que defendiam. Ambos foram exemplos de profissionais dedicados e competentes. Foram homens honrados e realistas. Eles, como todos os bons advogados, acreditavam na força argumentativa das palavras como busca da verdade e da justiça para os seus clientes.

Nem Rui nem Sobral padeciam dos terríveis vícios que impedem o pleno desenvolvimento de qualquer profissional: a preguiça, a inveja e o ressentimento. 45 Nós advogados não devemos ter inveja do sucesso alheio nem nos felicitarmos com a infelicidade do outro. Nós advogados não devemos ser preguiçosos; devemos ser profissionais dedicados, estudiosos, incansáveis e intransigentes na defesa dos interesses de nossos clientes. A leitura é o nosso alimento. Ler de tudo, principalmente os textos normativos e as decisões judiciais. Ler para saber, pois sem leitura não há sabedoria. Não genialidade nem criatividade jurídica fora da leitura.

Nós advogados não devemos ser ressentidos e não devemos atribuir aos outros a culpa e a responsabilidade pelos nossos erros ou fracassos. Nem devemos imputar ao êxito alheio a causa de nossas derrotas. Essa mentalidade vencedora, positiva, contagia a todos e serve de conforto e de confiança para o cliente.

Chegará o dia – e esse dia haverá de chegar - em que somente o caráter da pessoa e a competência do profissional servirão de parâmetro de valor do indivíduo. Chegará o dia em que a cor da pele ou dos olhos ou do cabelo, a crença religiosa, a tendência sexual, a idade, o sobrenome, o parentesco ou as amizades não terão valor algum como critério de diferenciação.

Chegará o dia em que o sonho de Martin Luther King46 se concretizará, mas para isso é preciso estarmos todos acordados e vigilantes. As pessoas decentes e honradas não podem cochilar, pois os indecentes não vacilam nem perdoam. Mas é preciso ter uma esperança realista. E, nesse campo da esperança realista e da fé pragmática, Rui e Sobral foram ícones. Eles nunca perderam a fé nos homens. Nunca perderam a esperança na justiça. Nós advogados também não podemos perder a fé nem a esperança, especialmente em nós mesmos, em nossa dedicação, em nossa seriedade e nos compromissos éticos e profissionais.

Finalizo. Rui e Sobral não foram “super-heróis” ou “sobre-humanos”. Eles não possuíram poderosos exércitos, nem ricas fortunas, tampouco eram dotados de poderes mágicos ou excepcionais. Simplesmente, foram homens que no sagrado exercício da advocacia, eram defensores apaixonados das causas que patrocinavam, inimigos pessoais das injustiças praticadas contra as pessoas inocentes, movidos por um profundo sentimento de dever, de piedade, de honra e de decência. Na verdade, Rui e Sobral não passaram disso: “homens demasiadamente humanos”. Que nós, advogados, também saibamos ser “humanos, demasiadamente humanos”.

45 BARBOSA, Rui. Oração aos moços. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999. 46 KING JR., Martin Luther. Eu tenho um sonho (I have a dream). Discurso proferido em Washington em

28.8.1963. O inteiro teor pode ser acessado em qualquer site de busca na internet.

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3.O “CORONELISMO” E A DEMOCRACIA BRASILEIRA: um breve ensaio reflexivo sobre a Lei da “Ficha Limpa” e sobre o financiamento das campanhas eleitorais, sob as luzes do magistério doutrinário de Victor Nunes Leal. 47

Não podemos negar que o “coronelismo” corresponde a uma quadra da evolução política do nosso povo, que deixa muito a desejar. Tivéssemos maior dose de espírito público e as coisas certamente se passariam de outra forma. Por isso, todas as medidas de moralização da vida pública nacional são indiscutivelmente úteis e merecem o aplauso de quantos anseiam pela elevação do nível político do Brasil. Mas não tenhamos demasiadas ilusões. A pobreza do povo, especialmente da população rural, e, em conseqüência, o seu atraso cívico e intelectual constituirão sério obstáculo às intenções mais nobres.

(VICTOR NUNES LEAL, Coronelismo, enxada e voto – o município e o regime representativo no Brasil).48

Introdução

O presente texto (ensaio reflexivo) tem com objeto o processo e o julgamento, perante o Supremo Tribunal Federal - STF, acerca da validade jurídica da Lei da “Ficha Limpa” (Lei Complementar n. 135, 4.6.2010), que acrescentou preceitos normativos à Lei Complementar n. 64., de 18.5.1990, que estabeleceu condições mais rígidas para que o indivíduo possa participar, como candidato, do processo eleitoral. Também é objeto desta reflexão o processo que tramita no STF, nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.650, que analisa a validade constitucional do financiamento, pelas empresas privadas, das campanhas eleitorais.

A finalidade do texto consiste em refletir sobre a crença brasileira no poder mágico das leis e das decisões judiciais, especialmente em matéria constitucional eleitoral, segundo a qual modificações normativas seriam suficientes e bastantes para mudar a realidade, sem embargo da teimosia dos fatos. A justificativa desta reflexão descansa no aspecto simbólico tanto da legislação questionada quanto dos julgamentos do STF, reveladores da tensão entre os princípios da soberania popular, da democracia, da liberdade, da república e da moralidade, pois a depender das concepções adotadas haverá o sacrifício de interesses, tanto individuais quanto coletivos.

As hipóteses levantadas são basicamente duas. A Lei da “Ficha Limpa” não foi uma vitória da sociedade, mas a demonstração de que o povo-eleitor brasileiro não é da confiança do Estado (legislador, administrador, julgador e demais órgãos e instituições estatais) nem de setores organizados da sociedade civil (Igrejas, sindicatos, partidos políticos, entidades e corporações de classe, grande imprensa etc.).

A outra hipótese, no tocante ao financiamento privado de campanhas eleitorais, consiste na ideia de que excluir as empresas do processo político eleitoral é medida antidemocrática e que vai na “contramão” de uma democracia que deixou de ser atomizada 47 Texto publicado na obra coletiva O Direito das Futuras Gerações. Organizadores: Daury Cesar Fabriz e

outros. Vitória: CognoJus, 2013. 48 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. 7ª edição. São

Paulo: Companhia das Letras, 2012, pp. 239-240.

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no indivíduo isolado e se tornou uma complexa realidade que a todos interessa, tanto a indivíduos como às corporações, sejam públicas ou privadas.

Na construção deste ensaio, além da leitura dos textos normativos e das decisões judiciais, bem como das peças jurídicas contidas nos autos dos processos que serão examinados, também se utilizará das categorias lançadas por Victor Nunes Leal no citado livro “Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil”, que demonstrou que na experiência política nacional, a partir das eleições municipais, a causa dos males políticos reside basicamente na miséria econômica do indivíduo eleitor e na imoralidade de políticos que se beneficiam dessa situação social, aproveitando-se dessa estrutura nociva aos interesses do Brasil, apesar de todas as leis moralizadoras das práticas eleitorais.

“Coronelismo...” será o farol a iluminar nesse percurso, pois essa obra, que já nasceu clássica (perene e atual), segundo o autorizado magistério de José Murilo de Carvalho49, Alberto Venâncio Filho50 e Barbosa Lima Sobrinho51, foi publicada em 1949, fruto de sua Tese para a cátedra de Ciência Política na Faculdade Nacional de Filosofia, obtida em 1948, que é tido como o primeiro trabalho moderno de ciência política produzido no Brasil.

Segundo Victor Nunes Leal, a compreensão dos fenômenos políticos nacionais necessitava de uma análise além dos textos normativos e das promessas jurídicas neles estampadas, pois nem sempre as leis conseguem domesticar a rebeldia dos fatos. Victor Nunes Leal fez um trabalho de realismo político e jurídico.

Com efeito, o conjunto de preceitos normativos e de práticas sociais e estatais que regulam o acesso, o funcionamento, a estrutura e a dinâmica do Poder é o que se denomina de direito político. 52 No Brasil, em matéria eleitoral, têm-se os preceitos normativos contidos no texto da Constituição, nos textos das leis (ordinárias e complementares), nas resoluções e provimentos emanados dos tribunais eleitorais e nas decisões judiciais em matéria constitucional eleitoral, especialmente as produzidas pelos Tribunais Regionais Eleitorais – TREs, Tribunal Superior Eleitoral - TSE e Supremo Tribunal Federal - STF. Portanto, textos normativos eleitorais brotam às mancheias.

O modelo brasileiro, em sede de justiça eleitoral, é constituído pelo STF, TSE, TREs, juízes e juntas eleitorais. No Brasil, como é curial, a pletora normativa é gigantesca, e o direito, que deveria ser um instrumento (tecnologia) normativo redutor de complexidades, se torna um elemento amplificador dessas complexidades.

A vida é difícil e complexa. O direito deveria ser fácil e simples. No momento em que o sistema jurídico normativo se torna difícil e complexo, ele nega a sua essência e perde o seu sentido social. Em face dessa abundância normativa (textos legais, decisões judiciais, práticas sociais etc.) e perspectivando que a realidade político-eleitoral é demasiadamente complicada, é necessário discernir o que deve ser levado em consideração.

Portanto, não é minguado o “ordenamento jurídico normativo eleitoral”. Não faltam leis para resolver os problemas políticos eleitorais brasileiros. A rigor, há um número excessivo e abundante de preceitos normativos regulando o fenômeno político eleitoral, de modo que os partícipes do processo político eleitoral necessitam gastar muito tempo e

49 CARVALhO, José Murilo. Prefácio à sétima edição. Coronelismo..., 2012.50 VENÂNCIO FILhO, Alberto. Prefácio à terceira edição. Coronelismo..., 1997.51 LIMA SOBRINhO, Barbosa. Prefácio à segunda edição. Coronelismo..., 1975.52 COÊLhO, Marcus Vinícius Furtado. Direito eleitoral e processo eleitoral. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012.

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esforços com o sistema normativo, em vez de canalizarem energia com o processo político eleitoral em si. Situação tipicamente brasileira.53

é facilmente perceptível o caráter ingênuo desse conjunto normativo e legislativo. Essa ingenuidade (quase infantilidade) decorre de uma crença na força “mágica” ou “mística” das normas jurídicas. Com efeito, no Brasil é forte no imaginário social e coletivo que a positivação de desejos e interesses nos textos normativos será suficiente para lhes tornar realidade. Em vez de se atacar e enfrentar as raízes sociais, econômicas, culturais ou científicas dos problemas, criam-se leis e estatutos normativos. O direito seria a solução mágica para todos os dramas da vida, segundo essa visão ingênua e infantil.54

Essa visão fantasiosa dos poderes metafísicos do direito leva à frustração de expectativas, pois a realidade fática, supercomplexa e difícil, não se rende facilmente aos encantos das “leis de papel”, como sucede com a realidade política brasileira e a sua difícil relação com as leis eleitorais.

É sobre esse tema que passaremos a refletir.

O “coronelismo” político

No último parágrafo de sua obra-prima, Victor Nunes Leal, modestamente, revelou que não teve o propósito de apresentar soluções para o problema do “coronelismo”, esforçando-se, apenas, para compreender uma pequena parte dos males que afligem o Brasil e os brasileiros. Segundo ele, outros, mais capacitados, deveriam empreender a tarefa de indicar o remédio. Na posologia política nacional, vários remédios foram prescritos, quase sempre por pessoas bem menos capacitadas que Victor Nunes Leal, para curar as enfermidades políticas e eleitorais.

Mas o que era (é) o “coronelismo” para Victor Nunes Leal? A resposta do citado autor merece ser transcrita integralmente, nada obstante seja longa:

Como indicação introdutória, devemos notar, desde logo, que concebemos o ‘coronelismo’ como resultado da superposição de formas desenvolvidas do regime representativo a uma estrutura econômica e social inadequada. Não é, pois, mera sobrevivência do poder privado, cuja hipertrofia constituiu fenômeno típico de nossa história colonial. É antes uma forma peculiar de manifestação do poder privado, ou seja, uma adaptação em virtude da qual os resíduos do nosso antigo e exorbitante poder privado têm conseguido coexistir com um regime político de extensa base representativa.

Por isso mesmo, o ‘coronelismo’ é sobretudo um compromisso, uma troca de proveitos entre o poder público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência social dos chefes locais, notadamente dos senhores de terras. Não é possível, pois, compreender o fenômeno sem referência à nossa estrutura agrária, que fornece a base de sustentação das manifestações de poder privado ainda tão visíveis no interior do Brasil.

53 O Tribunal Superior Eleitoral tem uma publicação oficial intitulada “Código Eleitoral anotado e legislação complementar”, disponível na página virtual da Corte: www.tse.jus.br.

54 OLIVECRONA, Karl. Linguagem jurídica e realidade. São Paulo: Quartier Latin, 2005.

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Paradoxalmente, entretanto, esses remanescentes de privatismo são alimentados pelo poder público, e isso se explica justamente em função do regime representativo, com sufrágio amplo, pois o governo não pode prescindir do eleitorado rural, cuja situação de dependência ainda é incontestável.

Desse compromisso fundamental resultam as características secundárias do sistema ‘coronelista’, como sejam, entre outras, o mandonismo, o filhotismo, o falseamento do voto, a desorganização dos serviços públicos locais. (2012, pp. 43-44).

Uma das facetas do “coronelismo” consiste no voto de “cabresto”, decorrência da extrema pobreza das massas rurais dominada pela opulência econômica do chefe político, que faz daquele dependente desse (2012, p. 56). Logo, podemos inferir que a miséria econômica é a causa das misérias políticas.

Outro aspecto que ensejou o “coronelismo” foi o aumento das despesas eleitorais, com a ampliação substantiva do corpo eleitoral, constituído, em sua esmagadora maioria por eleitores necessitados (2012, p. 57). O “coronel” encarna e personifica as melhorias públicas, as prestações dos serviços e a feitura de obras, pois, não raras vezes, graças ao seu empenho e prestígio, é que essas melhorias alcançam a comunidade (2012, p. 58).

Mas essa atuação do “coronel” tem uma fatura. Vários preços são pagos: o “paternalismo”, o “filhotismo” e o “mandonismo”. Aos amigos e parentes, as benesses do poder e das leis. Aos adversários (inimigos) os rigores da lei e as perseguições abusivas do poder (2012, p. 60).

Essa relação de reciprocidade (aos aliados os favores, aos adversários os rigores) do chefe político municipal se repete nas relações com os chefes políticos estaduais e federais, pois o apoio do Estado, com o “cofre das graças e o poder da desgraça”, faz com que o “coronel” consiga manter a sua predominância política. Cuide-se que os compromissos têm uma ética especial, porquanto não são forjados na base de princípios políticos, mas em torno de coisas concretas, e prevalecem para uma ou para poucas eleições (2012, pp. 61-63).

Essa dependência em relação ao poder do Estado decorre da fraqueza financeira dos municípios. O município não tem autonomia alguma. O “coronel” é governista, é situacionista. Ele não se sente à vontade “nem tem o direito de impor aos amigos o sacrifício da oposição”. O “coronel” deve ter à sua disposição a caneta para beneficiar os aliados e o porrete para fustigar os inimigos. Daí porque o maior mal que pode acontecer a um chefe político municipal é ter o governo do Estado como adversário (2012, pp. 64-67).

Eis a denúncia de Victor Nunes Leal (2012, p. 68):

A essência, portanto, do compromisso ‘coronelista’ – salvo situações especiais que não constituem a regra – consiste no seguinte: da parte dos chefes locais, incondicional apoio aos candidatos do oficialismo nas eleições estaduais e federais; da parte da situação estadual, carta branca ao chefe local governista (de preferência o líder da facção local majoritária) em todos os assuntos relativos ao município, inclusive na nomeação de funcionários estaduais do lugar.

Victor Nunes Leal (2012, pp. 70-71) faz contundente ataque à “autêntica mistificação do regime representativo”, que segundo ele não representa a verdade social e

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política da Nação. Para ele, a “vista grossa” que os governos estaduais sempre fizeram sobre a administração municipal, especialmente em relação à corrupção, deixando de empregar sua influência política para moralizá-la, fazia parte do sistema de compromisso do “coronelismo”.

Essa omissão (ou incentivo) ao descalabro governamental, por parte das autoridades estaduais e federais, servia para livrar os pleitos municipais dos riscos de uma derrota e predispunha o eleitorado em favor dos candidatos governistas, graças ao poder de coesão do governo, especialmente junto ao eleitorado dos municípios rurais. (2012, p. 73).

Segundo Victor Nunes Leal (2012, p. 74) o “coronelismo” se assenta na fraqueza econômica do dono da terra, que se ilude com o prestígio do poder, obtido à custa da submissão política, e na fraqueza econômica dos eleitores rurais, que se encontram em situação quase sub-humana.

Certeira essa crítica de Victor Nunes Leal. Com efeito, se observarmos a realidade brasileira atual, mesmo com a diminuição da população rural e aumento dos centros urbanos, perceberemos que dois aspectos são relevantes para uma manutenção dessa dependência municipal em face dos governos federal e estadual: a quantidade absurda de municípios e o sistema eleitoral proporcional.55

Sem receios, podemos dizer que quase 90% dos municípios brasileiros sobrevivem graças às transferências de verbas federais e estaduais, sem qualquer autonomia econômica e financeira. Quanto ao modelo eleitoral, pode-se dizer que os candidatos, salvo honrosas exceções, à deputância estadual e federal não necessitam de sólidas bases político-eleitorais, bastando ter dinheiro suficiente para suas eleições.56

Mas, como dizia Victor Nunes Leal há quase 70 anos (2012, pp. 137-139), o município é a peça básica das campanhas eleitorais no Brasil, pois uma vez convocado o povo para as urnas, em uma estrutura agrária como a brasileira, o “coronelismo” ressurgirá das próprias cinzas.

Victor Nunes Leal (2012, pp. 189-204) denuncia o papel da Polícia, do Ministério Público e do Judiciário na consolidação e fortalecimento do “coronelismo”, especialmente com as nomeações discricionárias e com as promoções por merecimento que empolgam os carreiristas dessas instituições, “pois as garantias legais nem sempre podem suplantar as fraquezas humanas”.

Victor Nunes Leal (2012, pp. 213-229), após apresentar as várias modificações eleitorais que visavam corrigir e melhorar o modelo representativo brasileiro, revela que muitas delas foram baldas, pois não se atacou a raiz do problema: a corrupção eleitoral e as misérias sociais e econômicas dos eleitores. O papel das leis não era forte o suficiente para enfrentar as realidades e necessidades materiais da vida. Segundo o citado autor, apesar dos esforços dos bem intencionados, não se conseguiu erradicar a manipulação dos votos pelos chefes políticos locais, especialmente do eleitor miserável das “grotas”, das zonas rurais.

O autor faz uma crítica aos partidos políticos, que, segundo ele, não passam de legendas ou rótulos destinados a atender às exigências técnico-jurídicas do processo eleitoral, à vista

55 No Brasil há 5.570 Municípios. Logo são 5.570 Prefeitos e Vice-Prefeitos. 5.570 Câmaras de Vereadores, com no mínimo 9 Vereadores em cada uma delas. Informações obtidas junto ao IBGE: www.ibge.gov.br

56 Tomemos, à guisa de exemplo, o estado de Minas Gerais, com os seus 853 Municípios. Nas eleições de 2010 teve candidato eleito com 40.093 votos para deputado federal e com 31.180 votos para deputado estadual. Para se eleger deputado federal bastava obter 47 votos por município e para se eleger deputado estadual bastava obter 37 votos por cidade. Informações obtidas junto ao TSE: www.tse.jus.br

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das múltiplas alianças para as eleições estaduais e municipais, reveladoras da ausência de programas e princípios ideológicos e políticos, garantidoras de um perene “caciquismo” político, fundado na ignorância e no desamparo do trabalhador dependente dos favores dos poderosos (2012, p. 226).

Nas suas considerações finais (2012, pp. 230-240), o autor assenta que o “coronelismo” é um sistema que se alimenta na miséria social e econômica do eleitor, na necessidade de poder político do chefe local, também ele fraco economicamente, e no acordo entre os chefes políticos estaduais e federais com os “coronéis” na garantia dos votos de cabresto. A solução apontada por Victor Nunes Leal consiste na independência econômica, social, cultural e moral do eleitor. Para isso, seria necessária a mudança da estrutura social e econômica do Brasil, especialmente com a urbanização e industrialização.

Com absoluta razão Victor Nunes Leal. Indivíduos independentes e autônomos, com uma sociedade maior e mais forte que o Estado, inibiriam os políticos “coronelistas”. Logo, a melhor maneira de acabar com a pobreza dos eleitores consiste no aumento e na produção de riquezas para que todos possam se beneficiar. A pobreza econômica e a miséria moral são as principais causas dos problemas sociais e políticos brasileiros.

A Lei da “ficha limpa”

O STF enfrentou o tema da validade normativa da Lei da “Ficha Limpa” basicamente em quatro julgamentos. No Recurso Extraordinário n. 630.14757 (caso Joaquim Roriz), no Recurso Extraordinário n. 631.10258 (caso Jader Barbalho), no Recurso Extraordinário n. 633.70359 (caso Leonídio Bouças) e no julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade ns. 2960 e 3061 e da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.57862. Nos referidos recursos extraordinários a Corte enfrentou a questão da aplicabilidade da Lei da “Ficha Limpa” para as eleições ocorridas no ano de 2010, ano de edição da referida Lei. No julgamento das ações concentradas de constitucionalidade (ADCs ns. 29 e 30, e ADI 4.578), o Tribunal enfrentou a questão da validade integral da citada Lei da Ficha Limpa.

57 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 630.147. Redator Ministro Marco Aurélio. Recorrentes: Joaquim Domingos Roriz e outros. Recorridos: Antonio Carlos de Andrade e outros. Informações: www.stf.jus.br.

58 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 631.102. Relator Ministro Joaquim Barbosa. Recorrente: Jader Fontenele Barbalho. Recorrido: Ministério Público Eleitoral. Informações: www.stf.jus.br.

59 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 633.703. Relator Ministro Gilmar Mendes. Recorrente: Leonídio henrique Correa Bouças. Recorrido: Ministério Público Eleitoral. Informações: www.stf.jus.br.

60 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 29. Relator Ministro Luiz Fux. Requerente: Partido Popular Socialista. Requeridos: Presidente da República e Congresso Nacional. Informações: www.stf.jus.br.

61 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 30. Relator Ministro Luiz Fux. Requerente: Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Requeridos: Presidente da República e Congresso Nacional. Informações: www.stf.jus.br.

62 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.578. Relator Ministro Luiz Fux. Requerente: Confederação Nacional das Profissões Liberais. Requeridos: Presidente da República e Congresso Nacional. Informações: www.stf.jus.br.

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Na primeira ocasião, no julgamento do citado RE 630.14763, o Tribunal não chegou a um consenso, pois 5 ministros (Ayres Britto, Cármen Lúcia, Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski e Ellen Gracie) votaram no sentido da aplicabilidade imediata da Lei, enquanto outros 5 ministros (Dias Toffoli, Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Celso de Mello e Cezar Peluso) votaram no sentido de que a Lei não poderia ser aplicada no mesmo ano, em face do disposto no art. 16, CF, que preceitua que a lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até 1 (um) ano da data de sua vigência.

No segundo julgamento, RE 631.10264 (caso Jáder), ainda com sua composição incompleta, a Corte, em face da repetição do empate, resolvendo questão de ordem, decidiu aplicar analogicamente o seu Regimento Interno (art. 205, parágrafo único, II), e decidiu pela manutenção do ato normativo impugnado, no caso, a decisão recorrida emanada do Tribunal Superior Eleitoral que determinou a aplicação da Lei da “Ficha Limpa” em relação ao candidato Jader Barbalho, de modo que ele não poderia se candidatar e, uma vez candidato, não poderia tomar posse, pois os votos que lhe foram dirigidos deveriam ser anulados.

Na terceira oportunidade, nos autos do RE 633.70365 (caso Leonídio Bouças), o Tribunal, com sua composição plena, por 6 votos a 5, tendo em vista o voto de desempate

63 EMENTA DO ACÓRDÃO: ACÓRDÃO – REDAÇÃO – ÓPTICA VENCIDA –PROCLAMAÇÃO. Ante proclamação do redator na assentada de julgamento, fica em plano secundário o fato de o designado haver ficado vencido em determinadas matérias, no que se tornaram prejudicadas em face da perda de objeto do recurso. REPERCUSSÃO GERAL – CONFIGURAÇÃO – PROCESSO ELEITORAL – LEI – RETROAÇÃO. Surge a repercutir, além dos muros subjetivos do processo, controvérsia sobre aplicar-se lei que, de alguma forma, altere o processo eleitoral a certame realizado antes de decorrido um ano da respectiva edição, presente ainda eficácia retroativa impugnada na origem. Considerações. CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE – RECURSO – CONHECIMENTO E JULGAMENTO DE FUNDO. Na dicção da ilustrada maioria, descabe, mesmo que na apreciação de fundo do recurso, adentrar a análise da harmonia, ou não, da lei – da qual se argui certo vício – com a Constituição Federal. Considerações. REGISTRO – CANDIDATURA – LEI DE REGÊNCIA – CONTROVÉRSIA – RENÚNCIA – PREJUÍZO DO EXAME. Vindo o candidato a renunciar à candidatura, acaba prejudicado o exame do recurso voltado ao deferimento. Informações: www.stf.jus.br.

64 EMENTA DO ACÓRDÃO: EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. ART. 14, § 9º DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. MORALIDADE, PROBIDADE ADMINISTRATIVA E VIDA PREGRESSA. INELEGIBILIDADE. REGISTRO DE CANDIDATURA. LEI COMPLEMENTAR 135/2010. FICHA LIMPA. ALÍNEA K DO § 1º DO ART. 1º DA LEI COMPLEMENTAR 64/1990. RENÚNCIA AO MANDATO. EMPATE. MANUTENÇÃO DO ACÓRDÃO DO TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. RECURSO DESPROVIDO. O recurso extraordinário trata da aplicação, às eleições de 2010, da Lei Complementar 135/2010, que alterou a Lei Complementar 64/1990 e nela incluiu novas causas de inelegibilidade. Alega-se ofensa ao princípio da anterioridade ou da anualidade eleitoral, disposto no art. 16 da Constituição Federal. O recurso extraordinário objetiva, ainda, a declaração de inconstitucionalidade da alínea k do § 1º do art. 1º da LC 64/1990, incluída pela LC 135/2010, para que seja deferido o registro de candidatura do recorrente. Alega-se ofensa ao princípio da irretroatividade das leis, da segurança jurídica e da presunção de inocência, bem como contrariedade ao art. 14, § 9º da Constituição, em razão do alegado desrespeito aos pressupostos que autorizariam a criação de novas hipóteses de inelegibilidade. Verificado o empate no julgamento do recurso, a Corte decidiu aplicar, por analogia, o art. 205, parágrafo único, inciso II, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, para manter a decisão impugnada, proferida pelo Tribunal Superior Eleitoral. Recurso desprovido. Decisão por maioria. Informações: www.stf.jus.br.

65 EMENTA DO ACÓRDÃO: LEI COMPLEMENTAR 135/2010, DENOMINADA LEI DA FICHA LIMPA. INAPLICABILIDADE ÀS ELEIÇÕES GERAIS 2010. PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE ELEITORAL (ART. 16 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA). I. O PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE ELEITORAL COMO GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL ELEITORAL. O pleno exercício de direitos políticos por seus titulares (eleitores, candidatos e partidos) é assegurado pela Constituição por meio de um sistema de normas que conformam o que se poderia denominar de devido processo legal eleitoral. Na medida em que estabelecem as garantias fundamentais para a efetividade dos direitos políticos, essas regras também compõem o rol das normas denominadas cláusulas pétreas e, por isso, estão imunes a qualquer reforma que vise a

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do Ministro Luiz Fux, decidiu que a Lei da “Ficha Limpa” não se aplicaria nas eleições ocorridas no mesmo ano de sua edição (2010), em face do citado artigo 16, CF.

A corrente vencida, composta dos referidos 5 ministros, defendia o afastamento do referido artigo 16, CF, sob o argumento de que a lei não alterava o processo eleitoral, pois cuidava apenas de condições de elegibilidade e o fazia com apoio no § 9º, art. 14, CF, que preceitua que Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidades e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.

Ante esse quadro de instabilidade normativa e jurisprudencial, o Tribunal foi instado a se manifestar, definitivamente, acerca desse aludido diploma legislativo nos autos das citadas ações constitucionais concentradas e abstratas (ADI n. 4.578 e ADCs ns. 29 e 30) 66.

aboli-las. O art. 16 da Constituição, ao submeter a alteração legal do processo eleitoral à regra da anualidade, constitui uma garantia fundamental para o pleno exercício de direitos políticos. Precedente: ADI 3.685, Rel. Min. Ellen Gracie, julg. em 22.3.2006. A LC 135/2010 interferiu numa fase específica do processo eleitoral, qualificada na jurisprudência como a fase pré-eleitoral, que se inicia com a escolha e a apresentação das candidaturas pelos partidos políticos e vai até o registro das candidaturas na Justiça Eleitoral. Essa fase não pode ser delimitada temporalmente entre os dias 10 e 30 de junho, no qual ocorrem as convenções partidárias, pois o processo político de escolha de candidaturas é muito mais complexo e tem início com a própria filiação partidária do candidato, em outubro do ano anterior. A fase pré-eleitoral de que trata a jurisprudência desta Corte não coincide com as datas de realização das convenções partidárias. Ela começa muito antes, com a própria filiação partidária e a fixação de domicílio eleitoral dos candidatos, assim como o registro dos partidos no Tribunal Superior Eleitoral. A competição eleitoral se inicia exatamente um ano antes da data das eleições e, nesse interregno, o art. 16 da Constituição exige que qualquer modificação nas regras do jogo não terá eficácia imediata para o pleito em curso. II. O PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE ELEITORAL COMO GARANTIA CONSTITUCIONAL DA IGUALDADE DE CHANCES. Toda limitação legal ao direito de sufrágio passivo, isto é, qualquer restrição legal à elegibilidade do cidadão constitui uma limitação da igualdade de oportunidades na competição eleitoral. Não há como conceber causa de inelegibilidade que não restrinja a liberdade de acesso aos cargos públicos, por parte dos candidatos, assim como a liberdade para escolher e apresentar candidaturas por parte dos partidos políticos. E um dos fundamentos teleológicos do art. 16 da Constituição é impedir alterações no sistema eleitoral que venham a atingir a igualdade de participação no prélio eleitoral. III. O PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE ELEITORAL COMO GARANTIA CONSTITUCIONAL DAS MINORIAS E O PAPEL DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL NA DEMOCRACIA. O princípio da anterioridade eleitoral constitui uma garantia fundamental também destinada a assegurar o próprio exercício do direito de minoria parlamentar em situações nas quais, por razões de conveniência da maioria, o Poder Legislativo pretenda modificar, a qualquer tempo, as regras e critérios que regerão o processo eleitoral. A aplicação do princípio da anterioridade não depende de considerações sobre a moralidade da legislação. O art. 16 é uma barreira objetiva contra abusos e desvios da maioria, e dessa forma deve ser aplicado por esta Corte. A proteção das minorias parlamentares exige reflexão acerca do papel da Jurisdição Constitucional nessa tarefa. A Jurisdição Constitucional cumpre a sua função quando aplica rigorosamente, sem subterfúgios calcados em considerações subjetivas de moralidade, o princípio da anterioridade eleitoral previsto no art. 16 da Constituição, pois essa norma constitui uma garantia da minoria, portanto, uma barreira contra a atuação sempre ameaçadora da maioria. IV. RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO. Recurso extraordinário conhecido para: a) reconhecer a repercussão geral da questão constitucional atinente à aplicabilidade da LC 135/2010 às eleições de 2010, em face do princípio da anterioridade eleitoral (art. 16 da Constituição), de modo a permitir aos Tribunais e Turmas Recursais do país a adoção dos procedimentos relacionados ao exercício de retratação ou declaração de inadmissibilidade dos recursos repetitivos, sempre que as decisões recorridas contrariarem ou se pautarem pela orientação ora firmada. b) dar provimento ao recurso, fixando a não aplicabilidade da Lei Complementar n° 135/2010 às eleições gerais de 2010. Informações: www.stf.jus.br.

66 EMENTAS DOS ACÓRDÃOS: AÇÕES DECLARATÓRIAS DE CONSTITUCIONALIDADE E AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE EM JULGAMENTO CONJUNTO. LEI COMPLEMENTAR Nº 135/10. HIPÓTESES DE INELEGIBILIDADE. ART. 14, § 9º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. MORALIDADE PARA O EXERCÍCIO DE MANDATOS ELETIVOS. INEXISTÊNCIA DE AFRONTA À IRRETROATIVIDADE DAS LEIS: AGRAVAMENTO DO REGIME JURÍDICO ELEITORAL. ILEGITIMIDADE DA EXPECTATIVA DO INDIVÍDUO ENQUADRADO NAS HIPÓTESES LEGAIS DE INELEGIBILIDADE. PRESUNÇÃO DE

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INOCÊNCIA (ART. 5º, LVII, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL): EXEGESE ANÁLOGA À REDUÇÃO TELEOLÓGICA, PARA LIMITAR SUA APLICABILIDADE AOS EFEITOS DA CONDENAÇÃO PENAL. ATENDIMENTO DOS PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E DA PROPORCIONALIDADE. OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO: FIDELIDADE POLÍTICA AOS CIDADÃOS. VIDA PREGRESSA: CONCEITO JURÍDICO INDETERMINADO. PRESTÍGIO DA SOLUÇÃO LEGISLATIVA NO PREENCHIMENTO DO CONCEITO. CONSTITUCIONALIDADE DA LEI. AFASTAMENTO DE SUA INCIDÊNCIA PARA AS ELEIÇÕES JÁ OCORRIDAS EM 2010 E AS ANTERIORES, BEM COMO E PARA OS MANDATOS EM CURSO. 1. A elegibilidade é a adequação do indivíduo ao regime jurídico – constitucional e legal complementar – do processo eleitoral, razão pela qual a aplicação da Lei Complementar nº 135/10 com a consideração de fatos anteriores não pode ser capitulada na retroatividade vedada pelo art. 5º, XXXVI, da Constituição, mercê de incabível a invocação de direito adquirido ou de autoridade da coisa julgada (que opera sob o pálio da cláusula rebus sic stantibus) anteriormente ao pleito em oposição ao diploma legal retromencionado; subjaz a mera adequação ao sistema normativo pretérito (expectativa de direito). 2. A razoabilidade da expectativa de um indivíduo de concorrer a cargo público eletivo, à luz da exigência constitucional de moralidade para o exercício do mandato (art. 14, § 9º), resta afastada em face da condenação prolatada em segunda instância ou por um colegiado no exercício da competência de foro por prerrogativa de função, da rejeição de contas públicas, da perda de cargo público ou do impedimento do exercício de profissão por violação de dever ético-profissional. 3. A presunção de inocência consagrada no art. 5º, LVII, da Constituição Federal deve ser reconhecida como uma regra e interpretada com o recurso da metodologia análoga a uma redução teleológica, que reaproxime o enunciado normativo da sua própria literalidade, de modo a reconduzi-la aos efeitos próprios da condenação criminal (que podem incluir a perda ou a suspensão de direitos políticos, mas não a inelegibilidade), sob pena de frustrar o propósito moralizante do art. 14, § 9º, da Constituição Federal. 4. Não é violado pela Lei Complementar nº 135/10 o princípio constitucional da vedação de retrocesso, posto não vislumbrado o pressuposto de sua aplicabilidade concernente na existência de consenso básico, que tenha inserido na consciência jurídica geral a extensão da presunção de inocência para o âmbito eleitoral. 5. O direito político passivo (ius honorum) é possível de ser restringido pela lei, nas hipóteses que, in casu, não podem ser consideradas arbitrárias, porquanto se adequam à exigência constitucional da razoabilidade, revelando elevadíssima carga de reprovabilidade social, sob os enfoques da violação à moralidade ou denotativos de improbidade, de abuso de poder econômico ou de poder político. 6. O princípio da proporcionalidade resta prestigiado pela Lei Complementar nº 135/10, na medida em que: (i) atende aos fins moralizadores a que se destina; (ii) estabelece requisitos qualificados de inelegibilidade e (iii) impõe sacrifício à liberdade individual de candidatar-se a cargo público eletivo que não supera os benefícios socialmente desejados em termos de moralidade e probidade para o exercício de referido munus publico. 7. O exercício do ius honorum (direito de concorrer a cargos eletivos), em um juízo de ponderação no caso das inelegibilidades previstas na Lei Complementar nº 135/10, opõe-se à própria democracia, que pressupõe a fidelidade política da atuação dos representantes populares. 8. A Lei Complementar nº 135/10 também não fere o núcleo essencial dos direitos políticos, na medida em que estabelece restrições temporárias aos direitos políticos passivos, sem prejuízo das situações políticas ativas. 9. O cognominado desacordo moral razoável impõe o prestígio da manifestação legítima do legislador democraticamente eleito acerca do conceito jurídico indeterminado de vida pregressa, constante do art. 14, § 9.º, da Constituição Federal. 10. O abuso de direito à renúncia é gerador de inelegibilidade dos detentores de mandato eletivo que renunciarem aos seus cargos, posto hipótese em perfeita compatibilidade com a repressão, constante do ordenamento jurídico brasileiro (v.g., o art. 55, § 4º, da Constituição Federal e o art. 187 do Código Civil), ao exercício de direito em manifesta transposição dos limites da boa-fé. 11. A inelegibilidade tem as suas causas previstas nos §§ 4º a 9º do art. 14 da Carta Magna de 1988, que se traduzem em condições objetivas cuja verificação impede o indivíduo de concorrer a cargos eletivos ou, acaso eleito, de os exercer, e não se confunde com a suspensão ou perda dos direitos políticos, cujas hipóteses são previstas no art. 15 da Constituição da República, e que importa restrição não apenas ao direito de concorrer a cargos eletivos (ius honorum), mas também ao direito de voto (ius sufragii). Por essa razão, não há inconstitucionalidade na cumulação entre a inelegibilidade e a suspensão de direitos políticos. 12. A extensão da inelegibilidade por oito anos após o cumprimento da pena, admissível à luz da disciplina legal anterior, viola a proporcionalidade numa sistemática em que a interdição política se põe já antes do trânsito em julgado, cumprindo, mediante interpretação conforme a Constituição, deduzir do prazo posterior ao cumprimento da pena o período de inelegibilidade decorrido entre a condenação e o trânsito em julgado. 13. Ação direta de inconstitucionalidade cujo pedido se julga improcedente. Ações declaratórias de constitucionalidade cujos pedidos se julgam procedentes, mediante a declaração de constitucionalidade das hipóteses de inelegibilidade instituídas pelas alíneas “c”, “d”, “f”, “g”, “h”, “j”, “m”, “n”, “o”, “p” e “q” do art. 1º, inciso I, da Lei Complementar nº 64/90, introduzidas pela Lei Complementar nº 135/10, vencido o Relator em parte mínima, naquilo em que, em interpretação conforme a Constituição, admitia a subtração, do prazo de 8 (oito) anos de inelegibilidade posteriores ao cumprimento da pena, do prazo de inelegibilidade decorrido entre a condenação e o seu trânsito em julgado. 14. Inaplicabilidade das hipóteses de inelegibilidade às eleições de 2010 e anteriores, bem como para os mandatos em curso, à luz do disposto no art. 16 da Constituição. Precedente: RE 633.703, Rel. Min. GILMAR MENDES (repercussão geral). Informações: www.stf.jus.br.

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A Corte, por maioria, chancelou integralmente a validade da citada Lei da “Ficha Limpa”, excetuando-se, apenas, em sua aplicabilidade para as eleições de 2010, conforme o referido precedente do RE 633.703.

Todos esses julgamentos foram marcados por grande expectativa, pois a citada Lei da Ficha Limpa, conquanto tenha nascido formalmente de um projeto de lei de autoria do Poder Executivo (PLP n. 168/1993) 67, foi materialmente provocado por força de uma intensa campanha de mobilização popular, capitaneada pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral – MCCE, pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, pela Ordem dos Advogados do Brasil – OAB e várias outras entidades da sociedade civil organizada, que obtiveram a subscrição de quase 1.600.000 (um milhão e seiscentos mil) eleitores, como projeto de iniciativa popular. 68

Para muitos, inclusive para vários Ministros do STF, a quantidade de assinaturas é um elemento relevante. Mas esse número de assinaturas não é tão impressionante assim, pois no Brasil há quase 130 milhões de eleitores, de modo que apenas 1,23% dos eleitores brasileiros manifestaram, por escrito, sua adesão e preocupação com a “limpeza” do processo eleitoral. Assim, os grandes entusiastas desse “projeto de lei” eram as entidades organizadoras e a grande imprensa, pois a esmagadora maioria dos brasileiros (98,77%) não estavam interessados nesse pleito político-legislativo.

Nada obstante, essa mobilização popular impressionou a vários ministros da Corte, pois em alguns deles, em suas manifestações, mencionaram esse fato de que 1 milhão e 600 mil eleitores subscreveram iniciativa popular. Mas vejamos a curiosidade dos números.

O candidato ao senado Jader Barbalho, que foi inicialmente alcançado pela Lei da “Ficha Limpa”, obteve, segundo informações do TSE69, 1.799.762 votos, quase 200 mil “chancelas” superiores à citada Lei da “Ficha Limpa”. Evidentemente que os votos não anulam as leis, mas se o número de apoiadores de uma lei é relevante no julgamento, como sucedeu com a “Ficha Limpa”, o número de votos obtidos pelos alvos da citada Lei também deveria ser levado em consideração.

Fenômeno similar ocorreu com a candidatura de Joaquim Roriz para governador do Distrito Federal. O eleitor do Distrito Federal foi privado do direito de votar (ou de não votar) no candidato Joaquim Roriz. O povo/eleitor candango não pode, ele mesmo, escolher se queria Roriz ou outro candidato. A Justiça Eleitoral decidiu pelo povo. Nas democracias, ninguém tem o direito de decidir pelo povo/eleitor.

Cuide-se que a OAB, Ministério Público, Defensoria Pública, Advocacia Pública, Poder Judiciário, imprensa, igreja, não são representantes do povo/eleitor. Não obstante sejam importantes instituições sociais e estatais, essas instituições não são as porta-vozes da Nação. O povo fala pelo voto, como eleitor, ou se manifesta pelas ruas, como cidadão.

Em que pese esse caráter antidemocrático da Lei da “Ficha Limpa” e das decisões judiciais que excluem candidatos do processo eleitoral, há indubitável aspecto republicano nessas medidas. É que a República é o “filtro” da Democracia. A República, por meio das leis e decisões judiciais, condiciona o poder soberano do povo, de modo a torná-lo racional, refreando-se as paixões das massas. É um aparente paradoxo.

67 Informações: www.camara.gov.br. 68 MOVIMENTO DE COMBATE à CORRUPÇÃO ELEITORAL - MCCE. Informações: www.mcce.org.br. 69 BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Informações: www.tse.jus.br.

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Essas preocupações estiveram presentes nas ideias inspiradoras dos “Federalistas” ( James Madison, Alexander Hamilton e John Jay) 70 quando defenderam que as leis republicanas deveriam servir de proteção em face das paixões irracionais do povo, próprio das democracias. Era preciso encontrar um ponto ótimo de equilíbrio entre a “emoção” democrática e a “razão” republicana. Eis perene advertência dos “Federalistas” (Artigo 51):

A grande garantia contra uma concentração gradual dos vários poderes no mesmo braço, porém, consiste em dar aos que administram cada poder os meios constitucionais necessários e os motivos pessoais para resistir aos abusos dos outros. As medidas de defesa devem, neste caso como em todos os outros, ser proporcionais ao perigo de ataque. A ambição deve poder contra-atacar a ambição. O interesse do homem deve estar vinculado aos direitos constitucionais do cargo. Talvez não seja lisonjeiro para a natureza humana considera que tais estratagemas poderiam ser necessários para o controle dos abusos do governo. Mas o que é o próprio governo, senão a maior das críticas à natureza humana? Se os homens fossem anjos, não seria necessário governo algum. Se os homens fossem governados por anjos, o governo não precisaria de controles externos nem internos. Ao moldar um governo que deve ser exercido por homens sobre homens, a grande dificuldade reside nisto: é preciso primeiro capacitar o governo a controlar os governados; e em seguida obrigá-lo a se controlar a si próprio. A dependência para com o povo é, sem dúvida, o controle primordial sobre o governo, mas a experiência ensinou à humanidade que precauções auxiliares são necessárias. (1993, p. 350).

Tenha-se que o STF, no julgamento da Ficha Limpa, afastou jurisprudência confirmada no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 14471. Nesse julgamento, a Corte entendeu que somente decisão transitada em julgado teria

70 MADISON, James e outros. Os Artigos Federalistas. Tradução de Maria Luiza Borges. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

71 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 144. Relator Ministro Celso de Mello. Arguente: Associação dos Magistrados Brasileiros. Arguido: Tribunal Superior Eleitoral. EMENTA DO ACÓRDÃO: ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL - POSSIBILIDADE DE MINISTROS DO STF, COM ASSENTO NO TSE, PARTICIPAREM DO JULGAMENTO DA ADPF - INOCORRÊNCIA DE INCOMPATIBILIDADE PROCESSUAL, AINDA QUE O PRESIDENTE DO TSE HAJA PRESTADO INFORMAÇÕES NA CAUSA - RECONHECIMENTO DA LEGITIMIDADE ATIVA “AD CAUSAM” DA ASSOCIAÇÃO DOS MAGISTRADOS BRASILEIROS - EXISTÊNCIA, QUANTO A ELA, DO VÍNCULO DE PERTINÊNCIA TEMÁTICA - ADMISSIBILIDADE DO AJUIZAMENTO DE ADPF CONTRA INTERPRETAÇÃO JUDICIAL DE QUE POSSA RESULTAR LESÃO A PRECEITO FUNDAMENTAL - EXISTÊNCIA DE CONTROVÉRSIA RELEVANTE NA ESPÉCIE, AINDA QUE NECESSÁRIA SUA DEMONSTRAÇÃO APENAS NAS ARGÜIÇÕES DE DESCUMPRIMENTO DE CARÁTER INCIDENTAL - OBSERVÂNCIA, AINDA, NO CASO, DO POSTULADO DA SUBSIDIARIEDADE - MÉRITO: RELAÇÃO ENTRE PROCESSOS JUDICIAIS, SEM QUE NELES HAJA CONDENAÇÃO IRRECORRÍVEL, E O EXERCÍCIO, PELO CIDADÃO, DA CAPACIDADE ELEITORAL PASSIVA - REGISTRO DE CANDIDATO CONTRA QUEM FORAM INSTAURADOS PROCEDIMENTOS JUDICIAIS, NOTADAMENTE AQUELES DE NATUREZA CRIMINAL, EM CUJO ÂMBITO AINDA NÃO EXISTA SENTENÇA CONDENATÓRIA COM TRÂNSITO EM JULGADO - IMPOSSIBILIDADE CONSTITUCIONAL DE DEFINIR-SE, COMO CAUSA DE INELEGIBILIDADE, A MERA INSTAURAÇÃO, CONTRA O CANDIDATO, DE PROCEDIMENTOS JUDICIAIS, QUANDO INOCORRENTE CONDENAÇÃO CRIMINAL TRANSITADA EM JULGADO - PROBIDADE

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força para impedir o direito de pessoa condenada, mas sem o trânsito em julgado, tivesse o direito de postular cargo eletivo.

Com efeito, à luz das leis e das decisões judiciais, pode-se inferir que o Estado não confia no eleitor (povo). O Estado, via suas instituições, órgãos e agentes, e parcela da sociedade civil organizada (OAB, partidos políticos, igrejas, sindicatos, imprensa, organizações não-governamentais etc.) também não confia no discernimento do eleitor. O eleitor, para essas instituições e pessoas, não sabe votar. Vota mal. Escolhe os piores candidatos. É preciso vigiar o povo/eleitor. Ele não é de confiança. É preciso escolher antes

ADMINISTRATIVA, MORALIDADE PARA O EXERCÍCIO DO MANDATO ELETIVO, “VITA ANTEACTA” E PRESUNÇÃO CONSTITUCIONAL DE INOCÊNCIA - SUSPENSÃO DE DIREITOS POLÍTICOS E IMPRESCINDIBILIDADE, PARA ESSE EFEITO, DO TRÂNSITO EM JULGADO DA CONDENAÇÃO CRIMINAL (CF, ART. 15, III) - REAÇÃO, NO PONTO, DA CONSTITUIÇÃO DEMOCRÁTICA DE 1988 À ORDEM AUTORITÁRIA QUE PREVALECEU SOB O REGIME MILITAR - CARÁTER AUTOCRÁTICO DA CLÁUSULA DE INELEGIBILIDADE FUNDADA NA LEI COMPLEMENTAR Nº 5/70 (ART. 1º, I, “N”), QUE TORNAVA INELEGÍVEL QUALQUER RÉU CONTRA QUEM FOSSE RECEBIDA DENÚNCIA POR SUPOSTA PRÁTICA DE DETERMINADOS ILÍCITOS PENAIS - DERROGAÇÃO DESSA CLÁUSULA PELO PRÓPRIO REGIME MILITAR (LEI COMPLEMENTAR Nº 42/82), QUE PASSOU A EXIGIR, PARA FINS DE INELEGIBILIDADE DO CANDIDATO, A EXISTÊNCIA, CONTRA ELE, DE CONDENAÇÃO PENAL POR DETERMINADOS DELITOS - ENTENDIMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL SOBRE O ALCANCE DA LC Nº 42/82: NECESSIDADE DE QUE SE ACHASSE CONFIGURADO O TRÂNSITO EM JULGADO DA CONDENAÇÃO (RE 99.069/BA, REL. MIN. OSCAR CORRÊA) - PRESUNÇÃO CONSTITUCIONAL DE INOCÊNCIA: UM DIREITO FUNDAMENTAL QUE ASSISTE A QUALQUER PESSOA - EVOLUÇÃO HISTÓRICA E REGIME JURÍDICO DO PRINCÍPIO DO ESTADO DE INOCÊNCIA - O TRATAMENTO DISPENSADO À PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA PELAS DECLARAÇÕES INTERNACIONAIS DE DIREITOS E LIBERDADES FUNDAMENTAIS, TANTO AS DE CARÁTER REGIONAL QUANTO AS DE NATUREZA GLOBAL - O PROCESSO PENAL COMO DOMÍNIO MAIS EXPRESSIVO DE INCIDÊNCIA DA PRESUNÇÃO CONSTITUCIONAL DE INOCÊNCIA - EFICÁCIA IRRADIANTE DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA - POSSIBILIDADE DE EXTENSÃO DESSE PRINCÍPIO AO ÂMBITO DO PROCESSO ELEITORAL - HIPÓTESES DE INELEGIBILIDADE - ENUMERAÇÃO EM ÂMBITO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 14, §§ 4º A 8º) - RECONHECIMENTO, NO ENTANTO, DA FACULDADE DE O CONGRESSO NACIONAL, EM SEDE LEGAL, DEFINIR “OUTROS CASOS DE INELEGIBILIDADE” - NECESSÁRIA OBSERVÂNCIA, EM TAL SITUAÇÃO, DA RESERVA CONSTITUCIONAL DE LEI COMPLEMENTAR (CF, ART. 14, § 9º) - IMPOSSIBILIDADE, CONTUDO, DE A LEI COMPLEMENTAR, MESMO COM APOIO NO § 9º DO ART. 14 DA CONSTITUIÇÃO, TRANSGREDIR A PRESUNÇÃO CONSTITUCIONAL DE INOCÊNCIA, QUE SE QUALIFICA COMO VALOR FUNDAMENTAL, VERDADEIRO “CORNERSTONE” EM QUE SE ESTRUTURA O SISTEMA QUE A NOSSA CARTA POLÍTICA CONSAGRA EM RESPEITO AO REGIME DAS LIBERDADES E EM DEFESA DA PRÓPRIA PRESERVAÇÃO DA ORDEM DEMOCRÁTICA - PRIVAÇÃO DA CAPACIDADE ELEITORAL PASSIVA E PROCESSOS, DE NATUREZA CIVIL, POR IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA - NECESSIDADE, TAMBÉM EM TAL HIPÓTESE, DE CONDENAÇÃO IRRECORRÍVEL - COMPATIBILIDADE DA LEI Nº 8.429/92 (ART. 20, “CAPUT”) COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL (ART. 15, V, c/c O ART. 37, § 4º) - O SIGNIFICADO POLÍTICO E O VALOR JURÍDICO DA EXIGÊNCIA DA COISA JULGADA - RELEITURA, PELO TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL, DA SÚMULA 01/TSE, COM O OBJETIVO DE INIBIR O AFASTAMENTO INDISCRIMINADO DA CLÁUSULA DE INELEGIBILIDADE FUNDADA NA LC 64/90 (ART. 1º, I, “G”) - NOVA INTERPRETAÇÃO QUE REFORÇA A EXIGÊNCIA ÉTICO-JURÍDICA DE PROBIDADE ADMINISTRATIVA E DE MORALIDADE PARA O EXERCÍCIO DE MANDATO ELETIVO - ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL JULGADA IMPROCEDENTE, EM DECISÃO REVESTIDA DE EFEITO VINCULANTE. Informações: www.stf.jus.br.

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em quem o eleitor pode votar ou deixar de votar. Essas instituições se apresentam como “superego freudiano” da sociedade.

Todavia, democracia é uma experiência de tentativas, erros e acertos. A experiência de se substituir ao povo já foi exercida várias vezes, e nunca funcionou bem para o povo. Daí porque atribuir-se a Winston Churchill o dito segundo o qual a “democracia é pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas”.

Nessa perspectiva, a Lei da Ficha Limpa, chancelada pelo STF, e celebrada por muitos como uma vitória da sociedade e da democracia,72 pode ser vista, na verdade, como remédio de uma sintomática doença do eleitor que não sabe votar. Ela revela a desconfiança do Estado em relação ao discernimento do eleitor. Ao invés de uma vitória, foi uma derrota do povo, pois um eleitorado que necessita de uma lei para dizer que não deve votar em candidatos “sujos” é um eleitorado incapaz.

O financiamento das campanhas eleitorais

O STF, nos autos da ADI 4.65073, proposta pelo Conselho Federal da OAB, julgará a validade constitucional do financiamento privado, feito por empresas ou pessoas jurídicas de direito privado, às campanhas eleitorais. O tema é sensível e relevante, razão pela qual o relator Ministro Luiz Fux convocou audiências públicas para amplo debate da questão constitucional controvertida. 74

72 CAVALCANTE JUNIOR, Ophir e outro. Ficha Limpa: a vitória da sociedade – breves comentários à Lei Complementar n. 135/2010. Prefácio Senador Demóstenes Torres. Brasília: OAB, Conselho Federal, 2010.

73 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.650. Requerente: Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Requeridos: Presidente da República e Congresso Nacional. Relator: Ministro Luiz Fux. Informações: www.stf.jus.br.

74 DESPAChO DO MINISTRO RELATOR: FINANCIAMENTO DE CAMPANHAS ELEITORAIS. MODELO NORMATIVO VIGENTE. LEIS Nº 9.096/95 e Nº 9.504/97. DESIGNAÇÃO DE AUDIÊNCIA PÚBLICA NOS DIAS 17/06 E 24/06 DO ANO CORRENTE. DIVULGAÇÃO DE PRETENDENTES A FIGURAREM COMO EXPOSITORES. Despacho: Trata-se de Ação de Direta de Inconstitucionalidade, com pedido cautelar, ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, contra diversas disposições da Lei nº 9.504/97 (Lei das Eleições) e da Lei nº 9.096/95 (Lei Orgânica dos Partidos Políticos), que, ao possibilitarem doações financeiras por pessoas naturais e jurídicas a campanhas eleitorais e a partidos políticos, teriam contrariado os princípios da isonomia (CRFB/88, art. 5º, caput, e art. 14), democrático, republicano e da proporcionalidade, na sua dimensão de vedação à proteção insuficiente (“Untermassverbot”). Em linhas gerais, o Requerente alega que o arcabouço normativo impugnado maximiza os vícios da dinâmica do processo eleitoral que, na atual quadra histórica, se caracteriza por uma intolerável dependência da política em relação ao poder econômico. Para o Conselho Federal da OAB, um desenho institucional como o vigente subverte a lógica do processo eleitoral, gerando uma assimetria entre seus participantes, porquanto exclui ipso facto cidadãos que não disponham de recursos para disputar em igualdade de condições com aqueles que injetem em suas campanhas vultosas quantias financeiras, seja por conta própria, seja por captação de doadores. Por outro lado, a proeminência do aspecto econômico, como condicionante do (in)sucesso nas eleições, cria, segundo alega o Requerente, um ambiente vulnerável à formação de pactos pouco republicanos entre candidatos e financiadores de campanha, em especial durante o exercício dos mandatos eletivos, ocasião em que surgiriam atos de corrupção e favorecimentos aos doadores. Outro problema diagnosticado pelo Conselho Federal da OAB reside na débil capacidade dos limites ao financiamento privado de campanhas previsto na legislação pátria atual para impedir essa cooptação, que potencializa esse cenário já conspurcado.

Diante disso, postula o Requerente a modificação do marco normativo vigente, com o propósito de impedir que as desigualdades econômicas existentes na sociedade convertam-se, agora de forma institucionalizada, em desigualdade política. Contudo, ante a possibilidade de se criar uma “lacuna jurídica ameaçadora”, em caso de declaração da inconstitucionalidade dos critérios de doação vigentes, pugna pela modulação dos efeitos, exortando a atuação do Poder Legislativo para, no prazo máximo de 18 (dezoito) meses, elaborar o regramento constitucionalmente adequado acerca do financiamento privados das campanhas

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Nessa aludida ADI requer-se, em suma, que o STF declare inconstitucionais as leis e provimentos normativos que permitam a doação por pessoas jurídicas a campanhas eleitorais e aos partidos políticos, e que seja determinado aos Poderes competentes a edição de atos normativos reguladores das doações feitas por pessoas físicas. A premissa da OAB consiste na tese segundo a qual a participação das pessoas jurídicas, via financiamento econômico, no processo eleitoral é inadmissível e que as doações privadas viciam o processo eleitoral. Segundo a OAB, essa intervenção das pessoas jurídicas no pleito eleitoral viola os princípios constitucionais da igualdade, da democracia, da república, da moralidade e da vedação do abuso de poder econômico

A PGR opinou favoravelmente ao postulado pela OAB. O Presidente da República, o Congresso Nacional e a Advocacia-Geral da União se manifestaram em sentido contrário ao postulado pela OAB, sob o fundamento de que não há incompatibilidade entre as normas impugnadas e o texto constitucional. Há vários “amici curiae” no feito. Alguns defendem a reivindicação da OAB. Outros entendem que a ação deve ter o pedido julgado improcedente.

A postulação da OAB, sem embargo da respeitabilidade dos fundamentos e da sinceridade de propósitos, e conquanto tenha condições de ser acolhida pelo STF, não é juridicamente amparada nem é politicamente desejável. Não é juridicamente sustentável porque a Constituição Federal não veda que as empresas financiem campanhas privadas. O que a Constituição veda é o abuso de poder econômico. Não é politicamente desejável porque exclui da dinâmica eleitoral instituições que podem ter legítimos interesses nos destinos políticos da sociedade.

A democracia contemporânea não é exclusiva do indivíduo-eleitor atomizado. Ela é um regime supercomplexo de formação de decisões, em um ambiente de dissensos e

eleitorais, atribuindo-se ao Tribunal Superior Eleitoral a regulamentação provisória da matéria. Como visto, a temática versada nesta ação reclama análise que ultrapassa os limites do estritamente jurídico, vez que demanda para o seu deslinde abordagem interdisciplinar da matéria, atenta às nuances dos fatores econômicos na dinâmica do processo eleitoral e às repercussões práticas deste modelo normativo de financiamento das campanhas em vigor para o adequado funcionamento das instituições democráticas. Segundo levantamento feito na base de dados do sítio eletrônico do Tribunal Superior Eleitoral, candidatos a prefeitos e vereadores, comitês eleitorais e partidos políticos arrecadaram, apenas no primeiro turno, mais de R$ 3,5 bilhões com doações para suas campanhas das eleições em 2012. Tais números evidenciam que a discussão concernente ao financiamento das campanhas situa-se nos estreitos limites dos subsistemas econômico e político, impactando diretamente no funcionamento das instituições democráticas. Considera-se, assim, valiosa e necessária a realização de Audiência Pública acerca dos temas controvertidos nesta ação, de sorte que a Suprema Corte possa ser municiada de informações imprescindíveis para o melhor equacionamento do feito, e, especialmente, para que o futuro pronunciamento judicial se revista de maior legitimidade democrática. A oitiva de especialistas, cientistas políticos, juristas, membros da classe política e entidades da sociedade civil organizada não se destina a colher interpretações jurídicas dos textos constitucional ou legal, mas sim a trazer para a discussão alguns pontos relevantes dos pontos de vista econômico, político, social e cultural acerca do financiamento vigente, em especial por meio de estudos estatísticos e/ou empíricos. As audiências públicas serão realizadas nos dias 17 e 24 de junho de 2013, tendo cada expositor o tempo de quinze minutos, viabilizada a juntada de memoriais. Os interessados, pessoas jurídicas com ou sem fins lucrativos, mas de adequada representatividade, e pessoas físicas de notório conhecimento nas áreas envolvidas, poderão manifestar seu desejo de participar e de indicar expositores na futura Audiência Pública até às 20h do dia 10 de maio de 2013. Os requerimentos de participação deverão ser encaminhados EXCLUSIVAMENTE para o endereço de e-mail [email protected] até o referido prazo. Solicite-se, nos termos do art. 154, parágrafo único, inciso I, do Regimento Interno do STF, a divulgação, no sítio desta Corte, bem como através da assessoria de imprensa do tribunal, da abertura de prazo, até o dia 10 de maio de 2013, para o requerimento de participação nas Audiências Públicas a serem oportunamente realizadas. À Secretaria para que providencie a elaboração de Edital de Convocação para a presente Audiência Pública. Após, deem ciência do teor desta decisão ao Procurador-Geral da República e aos demais integrantes da Corte. Informações: www.stf.jus.br.

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múltiplos valores e interesses. Democracia é a convivência plural no dissenso. é a busca pelo consenso possível e desejável, mas admitindo-se o dissenso no seio da comunidade.

Ao excluir a participação das empresas privadas, com esteio no preconceituoso argumento da “safadeza” das doações, a OAB presta um desserviço à Nação, sem embargo da sinceridade de seus propósitos morais e da corretude ética dos instrumentos utilizados.

Malgrado esse desejo ético moralizante da OAB, os fundamentos normativos e os argumentos jurídicos esgrimidos pela Ordem exigirão dos ministros da Corte eventualmente simpáticos a essa tese um contorcionismo interpretativo, pois, insista-se, no texto constitucional não há vedação a essa prática. 75

Outro inconveniente da postulação da OAB. Tornar ilícitas as doações às campanhas induziria à clandestinidade. Nada mais nocivo à democracia e à limpidez das eleições. Assim, o remédio pode se tornar o veneno. Em vez de salvar o paciente (a democracia) pode matá-lo.

Imagine-se a seguinte situação hipotética. Dois candidatos a presidente da República estão em acirrada disputa no segundo turno do pleito. Um dos candidatos tem como plataforma de campanha aumentar o papel do Estado na economia, reduzindo o papel das empresas. Esse candidato promete que se for eleito irá desapropriar empresas e estatizar vários ou quase todos os setores da economia nacional. O outro candidato promete o oposto. Que irá reduzir o papel do Estado nas atividades econômicas e que irá incentivar o desenvolvimento nacional por meio de incentivos e estímulos à iniciativa privada, por meio de um ambiente seguro para os negócios. Indaga-se: as empresas não teriam interesse no resultado do pleito? Deveriam ser proibidas de financiarem o candidato que defendesse o seu interesse?

há mais. Na luta das oposições contra a situação se faz necessário o aporte de contribuições. A situação, dominante da máquina governamental, já tem o poder político. A oposição deve ter pelo menos a possibilidade de ter o apoio econômico. É bem verdade, todavia, que as empresas “preferem” doar para os candidatos situacionistas. Mas o principal beneficiário da impossibilidade de doações privadas seriam os candidatos situacionistas.

Eis porque fere a liberdade democrática a proibição de empresas de doarem para as campanhas políticas. A rigor as doações deveriam ser transparentes e lícitas, de modo que todos soubessem quem doa e quanto se doa de dinheiro para as campanhas eleitorais. A ilicitude não está na doação, mas na doação clandestina. Essa deve ser combatida. Por essa razão, acredita-se que o STF76 não dê razão à postulação da OAB e decida favoravelmente à liberdade democrática, ampla, geral e irrestrita.77

75 NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules – regras e princípios constitucionais. São Paulo: Martins Fontes, 2013. 76 O julgamento da ADI 4.650 já começou. Até o presente votaram pela procedência do pedido os seguintes

ministros: Luiz Fux, Roberto Barroso, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio. Votou pela improcedência o ministro Teori zavascki. O feito encontra-se com o julgamento suspenso em face do pedido de vistas do ministro Gilmar Mendes. Maiores informações: www.stf.jus.br.

77 A OAB deveria lutar pela redução dos municípios, pela unificação dos pleitos eleitorais, pela unificação dos mandatos políticos, pelo voto distrital puro para os cargos legislativos, pela redução do número de cadeiras nos Parlamentos, dentre outras medidas profiláticas de higiene político eleitoral.

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Considerações finais

O “coronelismo” é chaga que permanece na estrutura e na dinâmica político-eleitoral brasileira, pois assenta-se em situações ainda existentes: a miséria econômica de parcela substantiva do eleitor e na fragilidade moral dos envolvidos no processo político-eleitoral.

A Lei da “Ficha Limpa”, malgrado a nobreza de propósitos, representa a derrota do eleitor, pois em vez de ele decidir em quem votar ou deixar de votar, votará apenas naqueles que foram chancelados pelos órgãos da justiça eleitoral, pois o Estado não confia no discernimento do cidadão-eleitor.

A proibição de financiamento privado de campanhas eleitorais, postulada pela OAB perante o STF, se confirmada, induzirá à clandestinidade e excluirá ilegitimamente do processo democrático empresas e instituições que têm legítimos interesses no processo político.

A democracia é um regime político arriscado, complexo, mas dentre todas as alternativas imaginadas e já experimentadas, é a melhor, pois força o povo/eleitor a agir com responsabilidade, pois o povo não deve transferir para ninguém o seu destino, por melhores e mais nobres que sejam as intenções.

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4.A ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO E OS DONOS DO PODER: um breve ensaio sobre uma instituição essencial ao direito e à justiça brasileira, sob as luzes do magistério doutrinário de Raymundo Faoro.78

Ao jurista, representado em João das Regras, coube conciliar as facções, amalgamando-as, articulando-as e incorporando-as ao Estado. Sua primeira obra foi institucionalizar a dupla chefia do governo, com a prevalência do poder revolucionário. O aclamado Regedor e Defensor do Reino, por arte dos sofismas do chanceler-mor, o doutor João das Regras, reivindica o trono, com argumentos de legitimidade. Os fidalgos, relutantes em quebrar um princípio tradicionalmente assentado, envolvidos pela “subtileza e clareza de bem falar”, reconheceram no bastardo, o rei, depois que se lhes mostrou a nulidade dos casamentos de onde provinham os demais pretendentes. Triunfou o direito romano, com sua maneira retórica de raciocínio, consagrando as Cortes de Coimbra, verdade que ao lado da espada, o novo príncipe. A sociedade urbana e popular tinha um rei – feito da revolução burguesa, da espada improvisada e dos argumentos dos juristas.

(RAyMUNDO FAORO, Os donos do poder – formação do patronato político brasileiro).79

Introdução

O presente texto tem com objeto a AGU - Advocacia-Geral da União, função essencial à Justiça, a partir das categorias lançadas por Raymundo Faoro80 em seu clássico “Os Donos do Poder – formação do patronato político brasileiro”81. O tema descansa sua justificativa no fato incontestável que a AGU tem ocupado papel de relevo na orientação e na defesa jurídica do Estado brasileiro, viabilizando juridicamente as escolhas governamentais e as decisões administrativas, com o aconselhamento prévio ou com a defesa posterior.

A finalidade do texto é a de defender, a partir da Constituição, o papel sobranceiro da AGU como instituição subordinada ao Direito e à Justiça. A hipótese levantada é a de que os membros da AGU, como agentes do Estado na defesa de sua legalidade e legitimidade, devem receber o mesmo tratamento jurídico, no que pertinente, aos membros do MPU – Ministério Público da União e da DPU – Defensoria Pública da União, as outras instituições estatais essenciais e indispensáveis à Justiça e ao Direito.

78 Texto publicado na obra coletiva Advocacia Pública – novos tempos. Organizadores: Ingrid Caroline Cavalcante de Oliveira Deusdará, José Edmundo Barros de Lacerda, Marcelino Rodrigues Mendes Filho e Roberto Mota. Brasília: Consulex, 2013.

79 FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3ª edição. São Paulo: Globo, 2001, pp. 56-57.

80 Raymundo Faoro é tido como um dos mais geniais e originais intérpretes do Brasil, possuidor de uma densa e relevante obra acadêmica. Sobre Raymundo Faoro e suas produções intelectuais há vários livros, artigos, ensaios, teses, dissertações e monografias. Exemplos: “Raymundo Faoro e o Brasil” e “Raymundo Faoro”.

81 A obra “Os Donos do Poder – formação do patronato político brasileiro” é um dos maiores clássicos do pensamento político nacional, na qual o autor utilizando das categorias de Max Weber analisa, a partir da experiência portuguesa, a estrutura e o funcionamento do Estado brasileiro.

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Na construção deste texto, o caminho percorrido foi iluminado pela contribuição genial de Raymundo Faoro na citada obra “Os Donos do Poder”, na qual o eminente pensador demonstrou que herdeiros das virtudes e vícios dos portugueses, os brasileiros temos tido em nossa história um Estado que não tem servido à sociedade, mas se servido dela. Um Estado cujos “funcionários” se constituíram em um estamento diferenciado do povo, com privilégios e direitos que o povo suporta, mas que deles não se beneficia.

A pretensão do texto consiste em defender que uma AGU autônoma é indispensável para que o Estado Democrático de Direito, que é o Estado da Legalidade e da Legitimidade, possa se concretizar como um Estado voltado para a melhoria das condições de vida de todas as pessoas, de todo o povo.

Os Donos do Poder, segundo Raymundo Faoro

Logo na epígrafe82 de sua obra-prima, Raymundo Faoro adverte o perigo de ser herdeiro. No caso específico, o legado que o Brasil e os brasileiros recebemos de Portugal e dos portugueses. Segundo o autor, uma adequada compreensão do funcionamento e da estrutura do Estado brasileiro pressupõe analisar as origens e a dinâmica do Estado português, posto que da tradição lusitana herdamos os traços mais característicos do modo de ser e de agir das nossas instituições políticas e administrativas.

Segundo o citado autor, nas origens do reino de Portugal, forjado com luta, suor e sangue, a figura do rei, chefe político, econômico e militar, é predominante e imprime uma feição marcante no traço lusitano. Eis o rei, segundo Faoro:

O centro supremo das decisões, das ações temerárias, cujo êxito geraria um reino e cujo malogro lançaria à miséria um conde, impediu que, dispersando-se o poder real em domínios, se constituísse uma camada autônoma, formada de nobres proprietários. Entre o rei e os súditos não há intermediários: um comanda e todos obedecem. A recalcitrância contra a palavra suprema se chamará traição, rebeldia à vontade que toma as deliberações superiores. O chefe da heterogênea hoste combatente não admite aliados e sócios: acima dele, só a Santa Sé, o papa e não o clero, só há delegados sob suas ordens, súditos e subordinados.

Nessa trilha, continua Faoro, os cargos públicos ou reais eram dependentes do rei, de sua riqueza e de seus poderes, de sorte que a subordinação do exercente da função pública ao próprio rei era indiscutível. Para garantir essa subserviência era necessário ter a seu serviço o poder de julgar, pois do contrário o súdito ficar liberto da obediência. Assim, deter, vez mais, o predomínio do Direito e da Justiça, era uma necessidade para que o rei mantivesse o poder sobre os seus súditos, fossem eles aristocratas ou fossem “homens comuns”.

Tenha-se que o rei disputava com a aristocracia e com o clero o predomínio sobre os “homens e mulheres comuns”. Para se viabilizar politicamente e para submeter à nobreza ao seu predomínio sobre os demais súditos, se fez necessário fortalecer o patrimônio do rei, de modo que ocorreu uma confusão entre o que seria próprio da Coroa e o que seria particular e público. Eis, segundo o autor, o germe do caráter patrimonialista do Estado.

82 Nicht nur der Vernunft von Jahrtausenden – auch ihr Wahnsinn na uns aus. Gefährlich ist es, Erbe zu sein.

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Nada obstante fosse a monarquia portuguesa, na época inicial, uma “monarquia agrária” porquanto fosse da terra que se extraiam as principais fontes de riqueza, o rei percebeu a vitalidade econômica do comércio marítimo, de sorte que sobre essa atividade mercantil o rei passou a auferir receitas para o seu régio tesouro, como assinalou Raymundo Faoro.

O reino, adverte Faoro, com esteio na força militar, econômica e política, forjou uma estrutura jurídico-normativa formalista e supostamente racional que viabilizasse a obediência à Coroa. Nessa estrutura normativa, direito deveria ser um instrumento que obtivesse uma disciplina e uma obediência dos “servidores públicos” ao rei. A administração era personalista. A “pena” do jurista, simbolizada pelo afamado João das Regras – mais pesada que o montante do soldado - seria indispensável para esse fortalecimento da estrutura burocrática do reino português, conquanto, as instituições não gozassem de campo próprio de atuação, visto que estavam subordinadas a poder do príncipe, capaz de decidir da vida e da morte, reminiscência próxima do rei-general, competente para julgar todos os soldados, recorda Faoro.

Essas aludidas características serviram de fundamentos sociais e espirituais na formação do Estado patrimonialista. Eis o preciso magistério de Raymundo Faoro:

A realidade econômica, com o advento da economia monetária e a ascendência do mercado nas relações de troca, dará a expressão completa a este fenômeno. Já latente nas navegações comerciais da Idade Média. A moeda – padrão de todas as coisas, medida de todos os valores, poder sobre os poderes – torna este mundo novo aberto ao progresso do comércio, com a renovação das bases de estrutura social, política e econômica. A cidade toma o lugar do campo. A emancipação da moeda circulante, atravessando países e economias até então fechadas, prepara o caminho de uma nova ordem social, o capitalismo comercial e monárquico, com a presença de uma oligarquia governante de outro estilo, audaz, empreendedora, liberta de vínculos conservadores. Torna-se possível ao príncipe e ao seu estado-maior organizar o Estado como se fosse uma obra de arte, criação calculada e consciente. As colunas tradicionais, posto que não anuladas ou destruídas, graças aos ingressos monetários, ao exército livremente recrutado e aos letrados funcionários da Coroa, permitem a construção de formas mais flexíveis de ação política, sem rígidos impedimentos ou fronteiras estáveis. é o Estado moderno, precedendo ao capitalismo industrial, que se projeta sobre o ocidente.

Segundo Faoro as categorias que marcaram as feições de um estado tipicamente feudal não ocorreram em Portugal nem no Brasil, uma vez que não houve uma superposição de uma camada de população sobre outra dotada uma de cultura diversa. O chamado feudalismo português e brasileiro, explicita Faoro, não é, na verdade, outra coisa do que a valorização autônoma, truncada, de reminiscências históricas, colhidas, por falsa analogia, de nações de outra índole, sujeitas a outros acontecimentos, teatro de outras lutas e diferentes tradições. Patrimonialista e não feudal foi o Estado português com ecos na construção do Estado brasileiro, na qual uma ordem burocrática, com o soberano sobreposto ao cidadão na qualidade de chefe para funcionário.

Nessa toada, continua Faoro, o capitalismo, dirigido pelo Estado, impedindo a autonomia da empresa, ganhará substância, anulando a esfera das liberdades públicas,

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fundadas sobre as liberdades econômicas, de livre contrato, livre concorrência, livre profissão, opostas, todas, aos monopólios e concessões reais.

Esse capitalismo de Estado impedirá o florescimento do capitalismo industrial. A atividade industrial, segundo Faoro, quando emerge, decorre de estímulos, favores, privilégios. Na península ibérica e nos seus herdeiros, o capitalismo é dependente do Estado.

Nesse processo de consolidação suprema do reino português, o chefe de Estado desempenhava as funções de banqueiro da nação, sócio e animador das exportações. Um traço marcante do reino consiste no aspecto de que a burguesia mercantil lusitana se instala dentro do Estado, mas sobre ela havia uma cabeça coroada, recorda Faoro.

Segundo Raymundo Faoro, na elaboração da estrutura normativa do Estado sobressai o trabalho minucioso de João das Regras, tido como o grande arquiteto jurídico do reino português, pois o aparelhamento do Estado, de acordo com as contingências e necessidades, é pensado, escrito, racionalizado e sistematizado pelos juristas reinóis.

Nesse cenário, alude Faoro o surgimento de um estamento político ou governamental, que se constitui sempre uma comunidade, embora amorfa, conquanto os seus membros pensem e ajam conscientemente de pertence a um mesmo grupo, a um círculo elevado, qualificado para o exercício do poder. Continua Faoro que a situação estamental, a marca do indivíduo que aspira aos privilégios do grupo, se fixa no prestígio da camada, da honra social que ela infunde sobre toda a sociedade. Ensina Faoro que no estamento, ao contrário do que sucede na classe onde vinga a igualdade das pessoas, ocorre que um grupo de membros se eleva calcado na desigualdade social. O pertencente do estamento visa se diferenciar dos não pertencentes.

Adverte Faoro que o membro letrado do estamento, especialmente o novo aristocrata que é o jurista, se apropria da Fazenda, da Justiça e da Administração Superior. Constitui-se em uma comunidade de dependentes da Coroa que levará à degradação da burocracia estatal. Essa nova aristocracia de juristas forja complexas relações, pois o conglomerado de direitos e privilégios, enquistados no estamento, obriga o rei, depois de suscitá-lo e de nele amparar, a lhe sofrer o influxo, e a ação real se fará por meio de pactos, acordos, negociações, posto que no seu seio haverá a luta permanente na caça ao predomínio de uma facção sobre a outra. Continua Faoro que a teia jurídica que o envolve não tem o caráter moderno de impessoalidade e generalidade, pois a troca de benefícios é a base da atividade pública, dissociada em interesses reunidos numa única convergência: o poder e o tesouro do rei.

Registra Faoro que com a expansão marítima houve a expansão burocrática do Estado português. Essa aludida expansão ocorre no marco de um capitalismo politicamente orientado, estruturado sobre o estamento, que não haure energia íntima para se renovar, tornar-se flexível e ensejar a empresa livre. O estamento, assinala Raymundo Faoro, cada vez mais de caráter burocrático, filho legítimo do Estado patrimonial, ampara a atividade que lhe fornece os ingressos, com os quais alimenta sua nobreza e seu ócio de ostentação, auxilia os sócios de suas empresas, estabilizando a economia, em favor do direito de dirigi-la, de forma direta e íntima. São promíscuas as relações burocráticas estamentais.

Raymundo Faoro é mordaz quando revela a discrepância entre a prática e o pensamento, que infunde a suspeita de hipocrisia nas camadas dominantes encharcadas de ideais éticos e com os pés afundados na mercancia. O mercantilismo empírico português, herdado pelo Estado brasileiro, vaticina Faoro, fixou-se num ponto fundamental, inseparável

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de seu conteúdo doutrinário, disperso em corrente, facções e escolas acentua o papel diretor, interventor e participante do Estado na atividade econômica. O Estado, reverbera Faoro, organiza o comércio, incrementa a indústria, assegura a apropriação da terra, estabiliza preços, determina salários, tudo para o enriquecimento da nação e o proveito do grupo que a dirige. Aqui a nação não é o povo, mas o próprio Estado.

Nessa toada, com visão profética, registra Faoro que o funcionário está por toda parte, dirigindo a economia, controlando-a e limitando-a a sua própria determinação. Uma realidade política se entrelaça numa realidade social na qual o cargo confere fidalguia e riqueza, de modo que a venalidade acompanha o titular, preocupado em se perpetuar no exercício da parcela do poder que o acompanha, que tem a expressão completa desta triste comédia na revelação de uma arte, a arte de furtar.

Denuncia Faoro que nesse modelo se estrutura o patrimonialismo, organização básica, fechada sobre si mesma com o estamento, de caráter marcadamente burocrático, mas burocracia não no sentido moderno, como aparelhamento racional, mas da apropriação do cargo carregado de poder próprio, articulado com o príncipe, sem a anulação da esfera própria de competência, pois em vez de subordinado à lei, é dependente do rei. Nesse traço a valiosa passagem de Raymundo Faoro:

O rei é o bom príncipe, preocupado com o bem-estar dos súditos, que sobre eles vela, premiando serviços e assegurando-lhes participação nas rendas. Um passo mais, num reino onde todos são dependentes, evocará o pai do povo, orientado no socorro aos pobres. Ao longe, pendente sobre a cabeça do soberano, a auréola carismática encanta e seduz a nação. O sistema de educação obedece à estrutura, coerentemente: a escola produzirá os funcionários, letrados, militares e navegadores. Mas os funcionários ocupam o lugar da velha nobreza, contraindo sua ética e seu estilo de vida. O luxo, o gosto suntuário, a casa ostentatória são necessários à aristocracia. O consumo improdutivo lhes transmite prestígio, prestígio como instrumento de poder entre os pares e o príncipe sobre as massas, sugerindo-lhes grandeza, importância, força.

Esta realidade, impedindo a calculabilidade e a racionalidade, tem efeito estabilizador sobre a economia. Dela, com seu arbítrio e seu desperdício de consumo, não flui o capitalismo industrial, nem com este se compatibiliza. O capitalismo possível será o politicamente orientado – a empresa do príncipe para a alegria da corte e do estado-maior de domínio que a aprisiona. A indústria, a agricultora, a produção, a colonização será obra do soberano, por ele orientada, evocada, estimulada, do alto, em benefício nominal da nação. Onde há atividade econômica lá estará o delegado do rei, o funcionário, para compartilhar de suas rendas, lucros, e, mesmo, para incrementá-la. Tudo é tarefa do governo, tutelando os indivíduos, eternamente menores, incapazes ou provocadores de catástrofes, se entre a si mesmos. O Estado se confunde com o empresário, o empresário que especula, que manobra cordéis do crédito e do dinheiro, para favorecimento dos seus associados e para desespero de uma pequena faixa, empolgada com exemplo europeu.

Essa situação, conforme Raymundo Faoro, leva à decadência de Portugal, pois os netos dos conquistadores de dois mundos podem, sem desonra, consumir no ócio o tempo

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e a fortuna, ou mendigar pelas secretarias um emprego; o que não podem, sem indignidade, é trabalhar. O estamento, denuncia Faoro, configura o governo de uma minoria, que exerce o poder em nome próprio e que ora pela astúcia ora pela violência, com a mão suave ou com a mão severa, mantém a nação (povo) no limite do jugo tolerável.

Sobre a clivagem entre nação e estamento diz Faoro:

O estamento como categoria autônoma, superior à sociedade, emancipado do caudal triturador da história – este o problema não solvido. Quatro séculos de hesitações e de ação, de avanços e recuos, de grandeza e de vacilação serão a resposta de um passado teimosamente fixado na alma da nação. Estado e nação, governo e povo, dissociados e em velado antagonismo, marcham em trilhas próprias, num equívoco renovado todos os séculos, em contínua e ardente procura recíproca.

O Brasil, segundo Faoro, ao ser descoberto e criado pelos portugueses dá ensejo não só a um mundo novo, mas a um mundo diferente, que propiciaria a invenção de modelos de pensar e de agir. O povoamento, recorda Faoro, com a mistura das raças – só aceitável pela gente baixa, mais atenta à vida melhor do que a honra social – confundia-se com a democrática organização da cidade, com os cargos locais atribuídos à gente do povo, de sorte que as relações raciais se submetem a um quadro mais vasto, tecido pelas relações sociais.

O processo colonizatório, segundo Faoro, toma o aspecto de uma vasta empresa comercial, mais complexa que a antiga feitoria, mas sempre com o caráter que ela, destinada a explorar os recursos naturais de um território virgem em proveito do comércio europeu. Assinala Faoro que a realidade econômica e social se articulará num complexo político que governa as praias e atravessa os sertões, por meio do financiamento aos meios de produção, sobretudo do escravo, e dos vínculos aos compradores europeus. Na essência, arremata Faoro, um território a devorar, sob os dentes agudos e as garras flexíveis dos guerreiros, capitães e juristas, na qual a ordem política, administrativa e jurídica, representada nas armadas, nos homens de presa, nos burocratas, que precederia, orientaria, conduziria a conquista econômica.

Segundo Faoro, fazendo a distinção entre a colonização inglesa na parte setentrional do continente americano e a colonização portuguesa nos trópicos, o inglês fundou na América uma pátria, enquanto que o português fundou um prolongamento do Estado. Acentua Faoro que o inglês trouxe a sua mulher para a colônia, ao contrário do português, que a esqueceu, preocupado com a missão de guerra e de conquista, adequada ao homem solteiro. Assim, assinala Faoro, a mulher sem o cuidado do ócio, para a qual o escravo supria os trabalhos domésticos, ao trato com empregados. Os casais, recorda Faoro, recebiam das companhias colonizadoras o dobro das terras, sugerindo o trabalho duplo, no arado e no cuidado da choupana. Nessa perspectiva, arremata Faoro, a família não sofreu, com a ausência do ócio feminino, a marca patriarcal, a nobreza poligâmica, a complascência da miscigenação e, continua Faoro, as relações inter-raciais não se suavizaram, fechadas as oportunidades do priápico aproveitamento do indígena.

Nessas bases estão fundadas, segundo Raymundo Faoro, as raízes do Brasil, tanto de sua sociedade quanto de seu Estado. Esse modelo social e estatal tem a violência institucionalizada como uma de suas características. Faoro informa que no processo de colonização não houve nenhuma comunicação, nenhum contacto, nenhuma onda vitalizadora flui entre o governo e a população e que a ordem se traduz na obediência passiva e no silêncio. Daí, segundo Faoro, não admira que, duzentos anos depois, as liberdades públicas só existam para o divertimento de letrados, agarrados aos sonhos que o litoral traz de outros mundos.

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Informa Raymundo Faoro que a administração municipal local, a única parcialmente brasileira, será apenas autônoma para pequenas obras, uma ponte uma estrada vicinal, de sorte que a sociedade não se lusitanazirá no seu processo de tomada de consciência, nem apropriará, no seu conteúdo, o papel do governo como expressão das necessidades e anseios coletivos, numa dependência morta, passiva e estrangulada.

Esse colonial Estado português enraizado no Brasil é assim explicitado por Faoro:

O Estado não é sentido como protetor dos interesses da população, o defensor das atividades dos particulares. Ele será, unicamente, monstro sem alma, o titular da violência, o impiedoso cobrador de impostos, o recrutador de homens para empresas com as quais ninguém se sentirá solidário. Ninguém com ele colaborará – salvo os buscadores de benefícios escusos e de cargos públicos, infamados como adesistas a uma potência estrangeira. Os senhores territoriais, a plebe urbana cultiva, na insubmissão impotente, um oposicionamento difuso, calado, temeroso da reação draconiana. Cria-se, em toda parte, o sentimento de rebeldia informe, que se traduz em estranho conflito interior com a vontade animosa na propaganda e na palavra, débil na ação e arrependida na hora das consequências. O inconfidente é bem o protótipo do homem colonial: destemperado e afoito na conspiração, tímido diante das armas e, frente ao juiz, herege que renuncia ao pecado, saudoso da fé. Ao sul e ao norte, os centros de autoridade são sucursais obedientes de Lisboa: o Estado, imposto à colônia antes que ela tivesse povo, permanece íntegro, reforçado pela espada ultramarina, quando a sociedade americana ousa romper a casca do ovo que a aprisiona. A colônia prepara, para os séculos seguintes, uma pesada herança, que as leis, os decretos e os alvarás não lograrão dissolver.

Na esteira de Faoro, essa estrutura colonial de poder se completa na presença de quatro figuras que acentuam e reforçam a autoridade metropolitana e real: o juiz, o cobrador de tributos, o militar e o padre. Dominar os corpos, as almas e as propriedades. Sobre o fiscalismo e a exploração fecha-se o círculo, denuncia Faoro. O produto enche os bolsos da camada aristocrática e mercantil que suga o Estado, monopoliza o luxo e ostenta de cabedais sem raízes, de modo que tudo circula sobre si mesmo, incapaz o sistema de alimentar empreendimentos produtivos, de fixação na indústria ou na agricultura metropolinas. É um Estado de poucos privilegiados e de muitos abandonados.

Nesse cenário de poucos privilegiados, segundo Raymundo Faoro, ganha especial destaque o bacharel, especialmente o jurista. A educação, em vez de ser voltada para a produção de riquezas, privilegia o saber fútil, a retórica vazia e a instrução de veleidades, com os seus encantos poéticos. Esse tipo de Estado se avoca como entidade divina, que tudo sabe, administra e provê, que torna o súdito dependente e carente da boa vontade do poder, pois ele tem confiança de que nos momentos de agonia o Estado providencialmente lhe socorrerá. Nesse modelo, o povo não tem capacidade para os negócios da vida, é preciso um grupo de eleitos que saiba o que seja o melhor e o necessário para o povo. é necessário um Estado que saiba o que a sociedade quer e precisa. Raymundo Faoro demonstra, inclusive, que o empresário no Brasil quer o amparo e a proteção do Estado, pois enfrentar a livre competição e a livre concorrência, seja interna, seja internacional, poderia reduzir os seus ganhos e a sua sobrevivência. Cabe ao Estado proteger a empresa e o empresário nacional.

No capítulo final de seu clássico ensaio, Raymundo Faoro assinala com aguda precisão:

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O estamento burocrático desenvolve padrões típicos de conduta ante a mudança interna e no ajustamento à ordem internacional. Gravitando em órbita própria não atrai, para fundir-se, o elemento de baixo, vindo de todas as classes. Em lugar de integrar, comanda; não conduz, mas governa. Incorpora as gerações necessárias ao seu serviço, valorizando pedagógica e autoritariamente as reservas para seus quadros, cooptando-os, com a marca de seu cunho tradicional. O brasileiro que se distingue há de ter prestado sua colaboração ao aparelhamento estatal, não na empresa particular, no êxito dos negócios, nas contribuições à cultura, mas numa ética confuciana do bom servidor, com carreira administrativa e curriculum vitae aprovado de cima para baixo. A vitória no mundo social, fundada na ascética intramudana do esforço próprio, racional, passo a passo, traduz, no desdém geral, a mediocridade incapaz das ambições que visam à glória, no estilo que lhe conferiu Montesquieu.

Diante desse quadro descortinado por Raymundo Faoro, é de ver que na complexa e rica história social do poder institucionalizado no Brasil, herdeiro dos vícios e virtudes de Portugal, muitos têm sido os verdadeiros donos do poder e poucos têm sido os grandes beneficiários desse poder, de um poder que em vez de servir ao povo, serve-se dele, de um Estado que em vez servir à sociedade, serve-se dela.

é nesse dramático panorama que se insere a Constituição Federal de 1988, que visa romper essa tradição de o Estado maior que a sociedade e de um povo subalternizado pelo poder institucionalizado, que tem na Advocacia-Geral da União, uma instituição essencial ao direito e à justiça para a sociedade e para o Estado brasileiro, um órgão que deve velar pela legitimidade e pela licitude das escolhas políticas e das decisões administrativas do governo brasileiro, de modo que seja todo o povo brasileiro o verdadeiro e soberano dono do poder.

A AGU: submissão ao Direito e à Justiça

A Advocacia-Geral da União é uma criação formal da Constituição Federal de 1988, consubstanciada no seu art. 131, §§ 1º, 2º e 3º.83 Materialmente, a missão de defender o governo nacional e de aconselhar, orientar e assessorar o Poder Executivo sempre existiu, desde a consolidação de uma estrutura político-admnistrativa no Brasil. Com efeito, todo governante necessita dos préstimos de um jurista.

Recorda-se que nos termos da Lei 12.636/2012, o Dia Nacional da Advocacia Pública será comemorado no dia 7 de março. Nesse dia e mês, mas no longínquo ano de 1609, foi criado o cargo de Procurador dos Feitos da Coroa, da Fazenda e do Fisco. Podemos dizer que onde se ergue o poder do Estado estende-se a sombra do jurista governamental, em paráfrase a Aliomar Baleeiro.

83 Art. 131. A Advocacia-Geral da União é a instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo.

§ 1º. A Advocacia-Geral da União tem por chefe o Advogado-Geral da União, de livre nomeação pelo Presidente da República dentre cidadãos maiores de trinta e cinco anos, de notável saber jurídico e reputação ilibada.

§ 2º. O ingresso nas classes iniciais das carreiras da instituição de que trata este artigo far-se-á mediante concurso público de provas e títulos. § 3º. Na execução da dívida ativa de natureza tributária, a representação da União cabe à Procuradoria-Geral da Fazenda

Nacional, observado o disposto em lei.

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Tenha-se, conforme aludiu Raymundo Faoro, que o famoso João das Regras84 pode ser visto como o antecedente remoto das funções que hoje competem, no plano federal ou nacional, ao Advogado-Geral da União: aconselhar e defender juridicamente o Estado brasileiro.

Como é de sobejo conhecimento, a AGU está constitucionalmente regulada no capítulo das Funções Essenciais à Justiça (arts. 127 a 135, CF), ao lado e no mesmo plano de relevância política, social e normativa do Ministério Público e da Defensoria Pública, sem mencionar a própria advocacia, mas aqui não se insere por não se tratar de instituição estatal, diferentemente das outras duas assinaladas.

é sempre de bom alvitre frisar que no regime constitucional decaído a atribuição para representar e defender judicialmente a União Federal competia ao Ministério Público Federal. O aconselhamento e a orientação jurídica competiam à Consultoria-Geral da República. é de ver, portanto, e sem maiores esforços, que a AGU herdou do MPF a competência para defender judicialmente a União Federal e da CGR herdou a competência para orientar e assessorar o Poder Executivo. O Advogado-Geral da União nasceu de atribuições do Procurador-Geral da República e de atribuições do Consultor-Geral da República.

No Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988, art. 29, fica claro o vínculo umbilical entre MPF e AGU. Na Lei Complementar n. 73/1993, Lei Orgânica da AGU, consta a extinção do cargo de Consultor-Geral da República substituído que pelo Advogado-Geral da União nas suas atribuições de órgão mais elevado na orientação, no assessoramento e no aconselhamento do Presidente da República.

Nessa toada, naquilo que for possível e pertinente, como corolário lógico deve ser estendido aos membros da AGU o mesmo regime jurídico e o mesmo tratamento normativo dos membros do MPU. Isso porque similares são as atribuições dessas carreiras. Os membros do MPU defendem e representam os interesses da sociedade. Os membros da AGU defendem e representam os interesses do Estado/Governo. Aos membros da DPU também se aplica essa aludida extensão, pois eles defendem e representam os interesses dos mais carentes e necessitados. Na essência, essas três instituições estatais são funções essenciais e necessárias ao Direito e à Justiça. Não há grau de importância nem de relevância entre elas, segundo o texto constitucional. Daí porque, à luz do texto constitucional, a remuneração do Procurador-Geral da República deve ser praticamente igual à do Advogado-Geral da União e à do Defensor-Geral da União. E, em homenagem à simetria constitucional, a

84 Nascido em Lisboa entre 1340 e 1345, o Dr. João das Regras estudou Leis e Direito em Bolonha, em cuja universidade dominavam as doutrinas favoráveis à realeza e à burguesia e de oposição ao poder feudal. Esta corrente favorecia o acesso a cargos públicos aos letrados burgueses em contraposição à grande nobreza feudal. Nomeado reitor da Universidade de Lisboa, aquando da crise de 1383-1385 coloca-se ao lado do Mestre de Avis. Nas Cortes de Coimbra de 1385 vai ser o elemento fundamental da eleição do Mestre de Avis como rei de Portugal. Com a sua eloquência e bem elaborada argumentação, começa por declarar que o trono de Portugal está vago porque não havia herdeiros legítimos entre os candidatos. Em seguida apresentou os prós e os contras das várias candidaturas, concluindo que o Mestre de Avis era o único que merecia ser rei porque nele coincidiam todas as virtudes que um descendente real deveria ter. Muitos dos indecisos ficaram convencidos com tal argumentação e pronunciaram-se a favor de D. João I como rei de Portugal. Participou ainda na Batalha de Aljubarrota.Cumulativamente com o cargo de reitor vitalício da Universidade de Lisboa, João das Regras foi nomeado chanceler-mor até ao fim da sua vida. Dedicou-se à elaboração da nova legislação do reino, que visava o fortalecimento do poder real, estando na génese do que viria a ser a Lei Mental, publicada por D. Duarte.Veio a falecer em Lisboa, em 1404. João das Regras. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2013. [Consult. 2013-03-21]. Disponível na www: <URL: http://www.infopedia.pt/$joao-das-regras>.

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remuneração inicial dos membros da AGU, dos membros do MPU e dos membros da DPU também deve ser praticamente a mesma.

Cuide-se, todavia, que o reconhecimento dessa similitude constitucional implicará ônus e bônus. Com efeito, os membros do MPU, dentre outras vedações, não podem ter atividade político-partidária nem podem receber honorários advocatícios, pois são representantes típicos do Estado. Se aos membros da AGU forem estendidos similares direitos, deverão ser estendidos similares deveres e proibições. Quem quer similares bônus deve estar disposto a arcar com similares ônus.

E por que os membros da AGU deveriam ser tratados como exercentes de carreiras típicas de Estado? Para que possam atuar com submissão apenas ao Direito e à Justiça, como verdadeiros e confiáveis advogados, seja na defesa seja no aconselhamento jurídico. Para que possam agir com desassombro e sem receios na orientação e na defesa jurídica dos órgãos governamentais.

O Estado Democrático de Direito é o Estado da legalidade e da legitimidade. O advogado público desse Estado é o profissional que velará por essa legítima legalidade. Mas essa submissão ao Direito e à Justiça implica contrariar as escolhas políticas realizadas pelos governantes ou contrariar às decisões administrativas tomadas pelos gestores públicos? A resposta é negativa. Mas se essas escolhas ou decisões forem contrárias ao Direito e à Justiça, o advogado público deve negar a sua chancela jurídica, como se fosse uma objeção de consciência.

A rigor, antes de o governante fazer a escolha política ou de o gestor tomar a decisão administrativa, deverá consultar o competente advogado público, pois compete ao advogado público indicar os caminhos normativos e as soluções jurídicas para viabilizar tais escolhas políticas dos governantes ou as decisões administrativas dos gestores.

Deve-se, no entanto, partir do pressuposto de que no Estado Democrático de Direito os governantes e os gestores não façam escolhas nem tomem decisões que sejam manifesta e acintosamente contrárias ao Direito e à Justiça. Mas o que seria uma escolha política ou decisão administrativa flagrantemente violadora do Direito e da Justiça? Seria aquela que sem maiores esforços e disceptações fossem ilegais ou inconstitucionais, ou ilegítimas, ou alucinada e delirantemente contrárias aos sentimentos de decência das pessoas. Ou seja, inadequadas, incompatíveis, desnecessárias e inaceitáveis socialmente.

Exemplos desses despautérios políticos ou administrativos? A escravidão das pessoas. A subalternização da mulher ou de qualquer outro ser humano. A eliminação dos portadores de deficiências ou dos idosos em idade avançada ou de doentes incuráveis. A autorização de relações sexuais forçadas. A autorização da pedofilia. O abandono dos filhos menores ou dos pais velhos. Ou seja, um direito ou uma política de “nazistas”.

Isso implica dizer que se a escolha política do governante ou a decisão administrativa do gestor não for alucinadamente ilícita ou ilegítima, o advogado público não pode ser furtar a dar necessária justificativa normativa e a indispensável orientação e defesa jurídica. O Estado e o Governo devem receber orientação jurídica e devem ter direito a defesa e representação judicial. Tenha-se, por oportuno e necessário, que o advogado público deve ter autonomia para fazer a análise jurídico-normativa acerca da licitude e legitimidade dos atos estatais.

Se acaso o advogado público se demitir desse dever funcional, o Estado e o Governo deverão buscar fora dos quadros da advocacia pública o aconselhamento e a defesa jurídica. Por isso que, dentro das largas margens do Direito e da Justiça, compete ao advogado público assessorar ou defender juridicamente o Estado.

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Direito e Justiça devem ser as colunas de sustentação da AGU, devem ser as pautas de orientação dos seus membros. Direito entendido como a possibilidade de fazer a coisa conforme o ordenamento jurídico. Justiça entendida como o dever de fazer a coisa certa e de evitar a coisa errada. Somente pode agir conforme o Direito e à Justiça sem se vergar aos desmandos dos governantes ou dos gestores quem tem autonomia para essa tarefa. é prerrogativa funcional indeclinável dos membros da AGU a submissão ao Direito e à Justiça.

Na estrutura dos órgãos componentes da AGU, há um componente desestabilizador, que são os cargos de confiança85. Que tipo de confiança? Confiança de quem? Confiança técnica e profissional? Confiança ideológica? Confiança pessoal e afetiva? A rigor, em homenagem ao postulado republicano, e aos princípios da impessoalidade, da moralidade e da eficiência, a confiança há de ser técnica e profissional e, a depender da função, ideológica. Nunca deverá ser pessoal ou afetiva.

Com efeito, a existência de cargos de confiança no seio da AGU tem provocado distorções comportamentais em algumas pessoas que ocupam esses cargos, e não querem abrir mão deles de modo algum, ou em alguns que sonham em ser abençoados por esse “regalo”. é perceptível o comportamento subserviente e serviçal de não poucos entre aqueles que sonham com tão almejado “prêmio”. Isso tem tornado patológico e indecente a postura de muitos daqueles que já ocupam esses cargos. Ou dos que sonham vir ocupá-los.

Qual a posologia para essa doença decorrente da magia ou do fetiche do DAS ou do NES? Uma dose seria diminuir o atrativo remuneratório e as vantagens funcionais entre os seus beneficiários e os não beneficiários, pois isso evitaria um sentimento de pretensa e suposta superioridade dos que têm em relação aos que não têm. Na mesma via, mas em sentido oposto, evitar o sentimento de inferioridade que não poucos dos que não têm o DAS ou NES possuem. Não são poucos os que se comportam como sabugos subservientes em face dos que possuem um DAS ou NES.

Outra dose desse remédio consistiria no mandamento republicano temporal. Ninguém pode ocupar um cargo de confiança por mais do que 4 anos, no máximo, no máximo 8 anos, que seria equivalente a dois mandatos presidenciais. Isso quer dizer que todo aquele exerce o mesmo cargo de confiança há mais de 4 anos, e excepcionalmente há mais de 8 anos, está em flagrante violação do citado postulado republicano. Na República os cargos não são eternos nem permanentes, mas deverão ser exercidos dentro de certo prazo.

Pode-se objetar que o ocupante do cargo de confiança é insubstituível e indispensável e que não há ninguém na AGU capaz de exercer as mesmas funções. Na administração pública ninguém é indispensável e insubstituível. Cuide-se que não raras vezes para permanecer no cargo de confiança ou para vir a lhe ocupar o interessado é capaz de cometer atos contrários ao Direito e à Justiça, com uma postura indecente e incompatível com a dignidade da função de advogado publico. Raymundo Faoro já advertira sobre esse perfil de alguns burocratas que servem ao Estado.

A carreira de membro da AGU é relevante, por ser essencial ao Direito e à Justiça, e os seus cargos devem ser ocupados por pessoas decentes, tecnicamente qualificadas, que estejam imbuídas do espírito de servir à sociedade, exercendo com honra e denodo o seu múnus advocatício.

85 Os cargos de confiança atrativos são os N.E.S. - Cargo de Natureza Especial e os D.A.S. – Direção e Assessoramento Superior.

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Todos os membros da AGU devem ser pessoas honradas, insuspeitas e contaminadas pelo desejo de servir ao Estado, com submissão ao Direito e à Justiça. A chefia da AGU deve ser exercida por um advogado (ou advogada) de notável saber jurídico e reputação ilibada. A sua escolha é prerrogativa do Presidente da República, que deve colher no cenário jurídico um nome à altura dessa elevada função. O critério de escolha não pode ser apenas a confiança, docilidade e submissão do Advogado-Geral, mas há de ser a competência jurídica e a respeitabilidade moral. Não podem pairar dúvidas ou suspeitas sobre o caráter nem sobre a capacidade técnica do AGU. Também não pode o AGU ser um ingênuo facilmente ludibriado por seus assessores de confiança. A AGU não é lugar para ingênuos enganados pelos amigos.

Raymundo Faoro foi um advogado público. O Presidente da República poderia tomar isso como bússola. No momento de nomear o AGU que a escolha recaia sobre um nome que seja tão respeitado e tão brilhante como o de Raymundo Faoro. Isso já ocorreu.

Recorde-se que Evandro Lins foi Procurador-Geral da República. E que Victor Nunes Leal foi Consultor-Geral da República. Apenas para ficar com dois ídolos caídos. O AGU é o herdeiro dessa rica tradição. Tendo a AGU à sua frente um ministro-chefe com a força intelectual e moral de um “Raymundo Faoro” ou de um “Evandro Lins” ou de um “Victor Nunes Leal”, a instituição teria um líder à altura das graves responsabilidades do cargo e imensa respeitabilidade da função.

Com efeito, com um Advogado-Geral da União do porte desses mencionados gigantes do direito, e com membros da AGU combativos e intimoratos, aumentariam as chances de o povo vir a ser um dos “donos do poder” no Brasil.

Considerações finais

Na experiência política brasileira, parcialmente herdada dos portugueses, o Estado tem sido mais forte que a sociedade, servindo de poderoso aliado para alguns setores privilegiados em desfavor da imensa maioria do povo brasileiro, segundo Raymundo Faoro.

Os membros da AGU devem receber, no que for possível e pertinente, o mesmo tratamento normativo dispensado aos membros do MPU e da DPU, especialmente no tocante à remuneração, direitos e deveres, pois essas três instituições devem servir ao Direito e à Justiça, com desassombro e coragem.

O Advogado-Geral da União deve ser uma pessoa decente e respeitável, tanto no aspecto técnico quanto no aspecto ético. Com os membros da AGU subordinados apenas ao Direito e à Justiça aumentam as chances de o Estado brasileiro se concretizar como Democrático (legítimo) e de Direito (legal), de modo a servir à sociedade, em vez de servir-se dela, pois o verdadeiro e legítimo titular do poder é ele: o povo.

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5.THE WEST WING86 E OS JUSTICES DA SUPREMA CORTE87: uma brevíssima análise sobre como um seriado de TV enxerga a nomeação dos juízes americanos e um pretexto para analisarmos a magistratura brasileira e as funções essenciais à justiça88

Eu sou ShUTRUK NAhUNTE89, Rei de Ashand e Sussa, soberano de Sussa, soberano da terra de Elam. Eu destruí Sippar, tomei a estela de Niram-Sim, e a trouxe de volta a Elam, onde eu a ergui em oferenda ao meu Deus (ano de 1.158 a. C.)90

86 The West Wing foi um seriado da TV norte-americana exibido entre os anos de 1999 e 2006, em 156 episódios. Era um seriado ficcional (e idealista, com pitadas de realismo) que apresentava o cotidiano da “Ala Oeste” da Casa Branca, onde funciona a parte governamental da presidência dos Estados Unidos da América. Nessa série dramática, o Presidente dos Estados Unidos da América do Norte era Josiah (Jed) Bartlet, interpretado pelo ator Martin Sheen, e era apresentado como o “líder do Mundo livre”, um democrata, católico, prêmio Nobel de economia e homem moralmente íntegro e preocupado com os seus semelhantes americanos e com os semelhantes dos povos das outras Nações. (THE WEST WING. Criação de Aaron Sorkin. Estrelado por Martin Sheen e outros. Produção da Warner Bros. Television. Estados Unidos: 1999-2006).

87 A Suprema Corte dos Estados Unidos da América é o mais importante Tribunal judiciário do mundo. Suas decisões são usadas como linha de orientação por vários outros Tribunais. é comum nas decisões do Supremo Tribunal Federal brasileiro a utilização de precedentes da Corte americana.

88 Texto publicado no JusNavigandi (www.jus.com.br). Em homenagem à judoca piauiense Sarah Menezes, que com muito treino, esforço e dedicação conquistou medalha de ouro nas Olimpíadas de Londres, no ano de 2012.

89 No filme “O clube do imperador”, na sala de aula do professor de história da civilização ocidental William hundert (personagem interpretado pelo ator Kevin Kline), no pórtico consta uma placa na qual está inscrito o nome do citado Shutruk Nahunte, simbolizando que a aludida figura não entrou para a história, não constava nos livros, e é um ilustre desconhecido, pois não deixou nenhuma contribuição relevante para a sociedade, diferentemente de personalidades como Alexandre Magno, Júlio César e outras figuras que deixaram o seu nome timbrado na história ocidental. Ou seja, mais importante do que os “cargos” ocupados, o que vale realmente é o que foi feito de bom e de útil para a coletividade ou pelo menos a real intenção de fazer algo de bom e de útil para os seus semelhantes. (O CLUBE DO IMPERADOR. The Emperor’s Club. Direção de Michael hoffman. Produção de Marc Abraham e outros. Escrito por Ethan Canin e Neil Tolkin. Estrelado por Kevin Kline e outros. Distribuído por Universal Pictures. Estados Unidos, 2002).

90 A imprensa tem noticiado algumas posturas terríveis de alguns interessados desesperados nas nomeações para cargos públicos. Sempre que vejo ou tomo conhecimento dessas notícias, em relação à pessoa desesperada para ocupar cargo importante, como a de ministro ou desembargador de Tribunal, por exemplo, colocando em risco a sua autoestima, o seu bom nome, a sua honradez e sua futura biografia, recordo-me do nome de Shutruk Nahunte. Com efeito, essas pessoas desesperadas querem o cargo pelo cargo e dificilmente deixarão algo de bom ou farão algo de relevante e útil que mereça ser lembrado de modo positivo. Infelizmente, essas pessoas desesperadas pelos cargos estão dispostas a quase tudo e amam os cargos mais do que a si mesmas. é uma lástima. Cuide-se que nada obstante referir-me a cargos judiciais, o látego também fere os apaixonados por “DAS” e “NES” (Poder Executivo federal - inclusive nas instituições a que estou vinculado: Advocacia-Geral da União e Ministério da Fazenda), de modo que não são poucos os que se comportam como sabugos subservientes, inclusive alguns com ridícula exposição pública. Penso que o cargo deve ser oferecido até o eventual ocupante, e não o futuro ocupante oferecer-se para o cargo. Ou seja, o eventual interessado não deve beijar as mãos nem lamber os pés de ninguém, especialmente do governante ou ir rastejando até pessoa poderosa (ou não) que possa nomeá-lo (ou ajudar na sua nomeação) para o suposto cargo de magistrado de tribunal. Isso desonra a investidura e macula indelevelmente o “escolhido”. O correto é o nome do futuro ocupante vir a ser lembrado por figuras respeitáveis. Houve um tempo em que o magistrado era convidado. De uns tempos para cá, infelizmente, como tem noticiado a imprensa, muitos se oferecem, descem ao balcão da pouca vergonha e da safadeza. Alguns trocam favores e promessas indecentes para conseguirem a nomeação. é um vergonhoso festival de “beija-mão” e “lava-pé”. Dossiês falsos são usados. Tristes esses novos tempos, e continuam tristes esses nossos trópicos. Tempo de mudar essas práticas aviltantes e inapropriadas para a

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Introdução

O presente artigo (na verdade um panfleto) tem dois objetos. Um central e outro periférico. O central são dois episódios do seriado de TV americano intitulado The West Wing que cuidaram do processo de escolha de Justices (assim são chamados os magistrados da Suprema Corte dos Estados Unidos) pelo Presidente da República norte-americana. O periférico é o sistema constitucional brasileiro relativo ao Poder Judiciário e às Funções Essenciais à Justiça, tanto em seu aspecto estático quanto no dinâmico: o texto normativo e a realidade contextual.

A finalidade deste texto consiste basicamente em revelar a “idealidade” do processo americano, segundo as lentes generosas das câmeras de TV do citado seriado The West Wing, expondo o modelo judicial estadunidense em sua estrutura estática; e provocar reflexões sobre a situação normativa e sobre o alcance jurídico dos enunciados constitucionais que regulam tanto o Poder Judiciário brasileiro quanto às Funções Essenciais à Justiça.

Além de descrever o significado dos enunciados normativos contidos no texto constitucional, esta brevíssima análise objetiva prescrever um novo modelo de estrutura do nosso Poder Judiciário e das nossas Funções Essenciais à Justiça (Constituição Federal, Título IV, Capítulos III e IV, artigos 92 a 135).

A justificativa desta análise descansa nas seguintes circunstâncias. O modelo judicial brasileiro instalado desde a proclamação da República inspirou-se no modelo judicial norte-americano, como gizava o nosso “pai fundador” ( founding father) Rui Barbosa91.

Ademais é rotineiro o uso de casos da Suprema Corte (ou de outros Tribunais) ou de seus magistrados nas artes americanas, seja no cinema, ou na TV, bem como em livros (não necessariamente jurídicos ou acadêmicos) e até peças teatrais ou musicais. Ou seja, nos Estados Unidos, nada obstante a reverência e a respeitabilidade que se devota a sua Suprema Corte, ela não é vista como um santuário de deuses, um local sagrado que não pode ser profanado pelo “pó das sandálias”, mas um ambiente demasiadamente humano, e, justamente por isso, sujeito ao olhar das artes.92

Pois bem, assim como a Suprema Corte dos Estados Unidos não é um templo sagrado nem os seus Justices são figuras celestiais e divinas, como reiteradamente se vê tanto nas artes quanto nas obras acadêmicas ou não acadêmicas (seja de caráter jurídico, histórico, sociológico, político, econômico, jornalístico e quaisquer outros matizes)93, o mesmo sucede com o Supremo Tribunal Federal brasileiro e os seus ministros (assim são

dignidade do nosso sistema constitucional.91 BARBOSA, Rui. Atos inconstitucionais. Campinas: Russel, 2003, p. 19. Disse o insuperável mestre e exemplo

de advogado: “Nesta excursão pelas novidades de um regime inteiramente sem passado entre nós, através dos artifícios, com que as conveniências e os infortúnios de uma época anormal lhe vão solapando o solo, e cavando-lhe mina a mina o esboroamento, nossa lâmpada de segurança será o direito americano, suas antecedências, suas decisões, seus mestres. A Constituição brasileira é filha dele, e a própria lei nos pôs nas mãos esse foco luminoso, prescrevendo, nos artigos orgânicos da justiça federal, que os ‘estatutos dos povos cultos, especialmente os regem as relações jurídicas na República dos Estados Unidos da América do Norte, os casos de common law e equity serão subsidiários da jurisprudência e processo federal”.

92 A comprovar basta um singelo lançamento em qualquer site de busca da internet dos itens “Supreme Court” “Arts” “Films” “Movies” “TV” etc. Será copiosa a lista que surgirá.

93 A comprovar basta lançar em qualquer site de busca o termo “Supreme Court”.

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constitucionalmente rotulados os magistrados do STF e dos demais Tribunais superiores, em obtuso anacronismo reinol).94

O STF e os seus ministros (magistrados ou juízes) são sujeitos tanto a ovações quanto a apupos, se acaso fizerem por merecer, pois vivemos em uma sociedade aberta e democrática, na qual deve prevalecer, contra tudo e contra todos, a liberdade de expressão: seja para elogiar, seja para criticar. Ninguém nem nenhuma instituição escapa da sombra normativa que se projeta pela liberdade de expressão.95

Certo, a despeito da boa qualidade das decisões dos magistrados brasileiros, em particular dos acórdãos exarados pelos ministros do STF, penso que o atual modelo brasileiro necessita de profundas mudanças para que possa estar em plena sintonia com os tempos que vivemos, tanto nos aspectos políticos, sociais, culturais e econômicos quanto nos aspectos estritamente jurídico-normativos. Estamos a vivenciar novas experiências, novas realidades e necessitamos de nos adaptar para sobreviver, pois conforme revelou certeiramente Charles Darwin96, as espécies que não se adaptam ao seu meio não sobrevivem. Não se trata de sobrevivência do mais forte, mas sim do mais adaptado às contingências e às realidades.

Nessa perspectiva, o Poder Judiciário e as Funções Essenciais à Justiça devem se adaptar aos novos tempos democráticos e republicanos, onde todos devemos agir em conformidade com o Direito e com a Justiça decorrentes das Leis (aqui enquadrada a Constituição, os Tratados internacionais, as Leis da República etc.), e onde o Direito e a Justiça não estejam divorciados das reais necessidades das pessoas e da sociedade brasileira. Esse novo Direito e essa nova Justiça devem dialogar e devem estar em sintonia com as realidades e com as necessidades imperativas da Política, da Economia, da Religião, da Moral, das Ciências e das Tecnologias. Ou seja, o Direito e a Justiça devem conviver e coabitar com as outras realidades e com as demais categorias normativas sociais. Se as normas jurídicas não se adaptarem as reais necessidades econômicas e sociais, elas fenecerão. Os diques jurídicos não suportam a força avassaladora dos fenômenos históricos, políticos, sociais e econômicos.97 O cumprimento das leis e da Constituição não pode quebrar um País. Uma Constituição que se obedecida quebra o seu País não serve como norma jurídica fundamental desse povo. Ou alguém acha que a realidade social e econômica se rende às normas jurídicas?

Nessa nova sociedade brasileira, que vem sendo construída de há muito tempo com bastante esforço e dedicação, com alguns avanços e não poucos recuos, todos devemos procurar cumprir todas as Leis, especialmente aquelas que contrariam os nossos interesses e as nossas vontades, pois cumprir Leis que nos favoreçam é fácil. Difícil e civilizado é obedecer e cumprir Leis “antipáticas” ou que contrariem os nossos desejos e instintos.94 Sobre os rótulos constitucionais “ministro” e “desembargador” já tive oportunidade de me manifestar em

texto intitulado “O regime jurídico-constitucional dos Tribunais Superiores” in Processo nos Tribunais. Coordenação Marcelo de Andrade Feres e Paulo Gustavo M. Carvalho. São Paulo: Saraiva, 2006. O aludido texto também está disponível na rede mundial de computadores (internet).

95 Sobre a liberdade de expressão a passagem pedagógica de manifestação do ministro Celso de Mello, atual decano da Suprema Corte nos autos da ADPF 130: A liberdade de expressão representa, dentro desse contexto, uma projeção significativa do direito, que a todos assiste, de manifestar, sem qualquer possibilidade de intervenção estatal ‘a priori’, o seu pensamento e as suas convicções, expondo as suas ideias e fazendo veicular as suas mensagens doutrinárias. (MELLO, Celso de. Supremo Tribunal Federal. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 130. Relator ministro Ayres Britto. Plenário. Julgamento em 30.4.2009. Acórdão publicado em 6.11.2009).

96 DARWIN, Charles. A origem das espécies. Tradução de John Green. São Paulo: Martin Claret, 2006.97 Sugiro a leitura de Ferdinand Lassalle (A essência da Constituição) e de Konrad hesse (A força normativa da

Constituição) para que o leitor faça sua opção ideológica acerca do papel da Constituição na regulação da vida social.

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Eis um bom parâmetro para aquilatar o grau de civilidade de uma sociedade: o respeito e a obediência às leis aprovadas pelos legítimos, porque eleitos, representantes políticos do povo.98 Outro parâmetro de respeitabilidade coletiva consiste na crença de que no País os juízes e tribunais decidem as causas em conformidade com o ordenamento jurídico. Que os juízes e tribunais sejam órgãos incorruptíveis e que não tomem as suas decisões pautadas pelas pressões econômicas dos ricos, políticas dos poderosos, midiática da grande imprensa. Ou seja, que os juízes e tribunais não manipulem as os textos normativos jurídicos ao sabor de suas próprias conveniências ou para favorecer seus aliados, amigos, compadres ou donos. é disso que o Brasil precisa: de juízes e tribunais que honrem as suas togas e que julguem as causas em estrito cumprimento do ordenamento jurídico. Para isso, é preciso vigiar o ingresso na magistratura (e nos tribunais) daqueles que serão julgadores. é um pilar de sustentação de qualquer sociedade a honradez de seus magistrados.

Pois bem, na construção deste texto surpreendi dois episódios do aludido seriado de TV The West Wing apresentando as passagens que julguei mais relevantes. Também visitei o texto da Constituição dos Estados Unidos da América e da legislação pertinente ( Judiciary Act), assim como literatura de boa cepa sobre o funcionamento do sistema americano, desde as suas raízes até o estágio atual.99

No tópico sobre o sistema brasileiro me detive no texto da Constituição e no contexto social brasileiro. Para descrever os mandamentos normativos contidos no texto constitucional me socorri da boa literatura doutrinária brasileira, bem como para apontar outros caminhos e soluções, utilizando também de minha experiência e intuição.100

Também lanço um olhar para o futuro. Muitas das nomeações para o STF foram acertadas. Não se vai rediscutir o passado, mas perspectivar um novo modelo para as novas indicações para a Corte. O passado, felizmente, já passou. hora de olhar o presente e projetar o futuro. é o futuro que nos interessa.101 A expectativa deste panfleto é lançar algumas

98 Em defesa da força normativa do direito legislado fruto das atividades parlamentares veja-se: WALDRON, Jeremy. A dignidade da legislação. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

99 Sobre o sistema norte-americano visitei os seguintes textos: Constituição dos Estados Unidos da América (www.senate.gov); Os Artigos Federalistas, de James Madison, Alexander Hamilton e John Jay (editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1987); Princípios Gerais de Direito Constitucional nos Estados Unidos da América, de Thomas M. Cooley (editora Russel, Campinas, 2002); A Constituição Viva dos Estados Unidos, de Saul K. Padover (editora IBRASA, São Paulo, 1987); A Constituição norte-americana e seu significado atual, de Edward S. Corwin (editora Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1986); A Corte Suprema e o Direito Constitucional Americano, de Lêda Boechat Rodrigues (editora Forense, Rio de Janeiro, 1958); Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo, de René David (editora Martins Fontes, São Paulo, 1998); American Constitutional Law, de Laurence h. Tribe (editora Foundation Press, New Yorki, 2000); Introdução ao Sistema Jurídico Anglo-Americano, de Toni M. Fine (editora Martins Fontes, São Paulo, 2011); O direito da liberdade – a leitura moral da Constituição norte-americana, de Ronald Dworkin (editora Martins Fontes, São Paulo, 2006); Direito nos Estados Unidos, de Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy (editora Manole, São Paulo, 2004); e Outline of the U. S. Legal System, do Bureau of International Information Programs – U. S. Department of State (www.state.gov).

100 Para mim, os autores que fazem (e fizeram) a doutrina constitucional no Brasil, por meio de manuais, são os seguintes e atuais (já verdadeiros clássicos): José Afonso da Silva, Paulo Bonavides, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Luís Pinto Ferreira, Nelson Saldanha, José Horácio Meirelles Teixeira, José Alfredo Baracho, Raul Machado horta, Orlando Soares, Inocêncio Mártires Coêlho, Carlos Ayres Britto, Celso de Mello, Celso Ribeiro Bastos... há bons representantes da nova geração de constitucionalistas como Gilmar Ferreira Mendes, Paulo Gonet Branco, Luís Roberto Barroso, José Luiz Quadros de Magalhães, Márcio Augusto Vasconcelos Diniz, Marcelo Cattoni, José Alfredo Baracho Jr., Virgílio Afonso da Silva, Elival da Silva Ramos, Uadi Lamego Bulos, Alexandre de Moraes, André Tavares, Dirley da Cunha Jr., Juliano Taveira Bernardes dentre outros...

101 Não “fulanizo” nem jogo “carapuças”, mas enxergo algumas movimentações presentes e vejo,

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provocações sobre um tema tão complexo e relevante para o adequado funcionamento do sistema jurídico nacional. Como pretexto, utilizarei do pano de fundo da arte, especificamente da teledramaturgia.

A escolha dos justices da Suprema Corte dos EUA: vendo através das lentes de The West Wing

A escolha do Justice Roberto Mendoza

Na 1ª temporada, episódio 9 intitulado The Short List102, ocorre a primeira oportunidade de o Presidente da República, um democrata, indicar um Justice para a Suprema Corte, em decorrência da aposentadoria de outro Justice.

Na primeira cena desse episódio, há um assessor presidencial conversando com aquele que seria o candidato ideal da Casa Branca o Juiz ( Judge) Peyton Cabot harrison III, filho de um ex-Procurador-Geral na administração de Dwight Eisenhower, que estudou em Princeton e harvard, sendo que nesta última foi diretor de sua Revista, professor e seu reitor, e tendo boa relações com os republicanos e respeitado entre os democratas. Seria uma confirmação senatorial tranqüila.

Em outra cena, o Presidente conversa com o Justice que irá se aposentar, após 38 anos de judicatura na Suprema Corte. Esse Justice tinha afinidades políticas com os democratas e pergunta ao Presidente se já foi feita a escolha e se o gabinete já fez a “ligação/chamada” para o futuro indicado. O Justice indaga se o nome de um determinado juiz estava na lista. No caso, o nome do Juiz Roberto Mendoza e se foi considerado seriamente. O Presidente afirma que sim. Mas o Justice não se convence e afirma que o nome de Mendoza só estava na lista para que o Presidente desse uma satisfação à comunidade latina (ou hispânica). O Justice reitera que o Presidente deveria refletir melhor e considerar a possibilidade de nomear Mendoza, que segundo ele tinha todas as qualidades necessárias para ser um membro da Suprema Corte. Após ouvir palavras fortes do velho Justice, o Presidente convida o magistrado ele anuncie a sua aposentadoria do Tribunal.

Após essa conversa, o Presidente indaga ao seu “staff” o motivo de o nome de Mendoza não ter sido o escolhido, em vez do nome de harrison, no que obtém respostas evasivas e que o nome de harrison era o que tinha maior receptividade política, além de ser um jurista muito respeitado nos EUA. O gabinete presidencial tinha feito uma devassa no passado do candidato Juiz harrison. Sucede que posteriormente surge um artigo, até então desconhecido e repassado por fonte anônima, que ele escreveu durante a Faculdade, há mais de 30 anos, no qual defende que a Constituição dos EUA não protege explicitamente o direito

preocupado, os nomes de algumas figuras como lembrados para provável indicação para o Supremo Tribunal Federal. Conquanto não tenha qualquer objeção ao caráter de ninguém, alguns nomes que a imprensa tem suscitado não têm estofo jurídico para a cátedra do STF. Basta ver o currículo desses “supremáveis”. Não há nenhuma produção jurídica relevante. Não há nada, salvo a ocupação de cargos relevantes, em alguns casos. Mas a importância do cargo não torna o seu ocupante alguém importante. Às vezes, até apequena o próprio cargo. No Brasil há juristas (profissionais ou catedráticos) à altura do STF. Todos sabemos quem são esses juristas com qualidades para serem alçados ao Tribunal. Também sabemos quem são aqueles que não têm nenhuma condição de serem ministros da Corte, a despeito de eventual cargo importante que tenha ocupado ou que esteja ocupando. há cargos bem maiores que os seus ocupantes. Ou melhor, há ocupantes pequenos nos grandes cargos públicos.

102 Na versão brasileira “A Lista Tríplice” (www.warnerbrosvideo.com.br)

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à privacidade. Essa informação muda o sentimento do Presidente e de seus assessores quanto à indicação desse candidato, mas a entrevista entre esse aludido candidato e o Presidente já estava marcada.

Na reunião, o Presidente lê um trecho de autoria do Juiz harrison defendendo a possibilidade de o governo invadir a privacidade dos indivíduos, pois não haveria uma proibição específica em sentido contrário. O Presidente indaga ao Juiz Harrison se ele mantinha o mesmo entendimento, no que obteve resposta afirmativa. O Presidente convida dois assessores (Sam e Toby) para participarem de uma espécie de “sabatina”, especialmente no tocante aos direitos fundamentais da pessoa humana. Eis algumas partes do debate:

Juiz harrison: “Os juízes devem interpretar a Constituição limitando-se aos parâmetros do texto. A Constituição não prevê o direito à privacidade. O direito não existe”.

Assessor Sam: “há emendas que nos protegem contra a auto-acusação e buscas sem motivo. O direito não está embutido nisso?”

Juiz: “Mas se discriminaram esses casos específicos é porque não pretendiam transformá-lo em um direito...”

Assessor Sam: “As liberdades já estavam garantidas. A Constituição não limitou os direitos adquiridos”.

Juiz: “Esse é o meu trabalho”.

Assessor Sam: “é o meu também”.

Presidente: “Juiz Peyton, eu tenho o direito de pôr um terno e uma gravata ridícula e sair pela rua?”

Juiz: “Sim”.

Presidente: “E a Constituição prevê isso?”

Juiz: “Liberdade de expressão”.

Presidente: “E tomar café com creme se enquadra nesse caso?”.

Juiz: “Não”.

Presidente: “Então New hampshire poderia probir tomar café com creme?”

Juiz: “Eu seria contra, pois gosto de café com creme. Mas a Constituição não me daria base para combater isso”.

Presidente: “E eu perderia os votos de quem gosta de café”.

Assessor Sam: “Em 1787, muitos representantes eram contra a Constituição. Eis o que um representante da Geórgia: ‘se listarmos os direitos, alguns tolos podem achar que só temos esses direitos’.”

Juiz: “Está me chamando de tolo?”

Assessor Sam: “Eu não. O Estado da Geórgia chamou”.

Juiz: “Senhores, as leis devem provir da Constituição”.

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Assessor Toby: “Existem leis naturais”.

Juiz: “Eu sei que existem. Mas não os magistrados que as colocam em vigor”.

Assessor Toby: “Quem as coloca?”.

Juiz: “Isso não é comigo. E o teatrinho acabou, com todo o respeito Presidente. Este interrogatório é uma grosseria”.

Assessor Sam: “Então vai adorar o Senado americano”.

Juiz: “Não deixa de ser repulsivo. Eu preciso de vocês tanto quanto vocês precisam de mim. Sei que serei eleito em votação unânime. E agora um moleque vem me constranger”

Presidente: “O fato de Sam (o assessor) ser jovem incomoda mesmo, mas ele agiu assim a meu pedido”.

Juiz: “Sou um homem de ótimas referências. Não estou habituado a interrogatórios”.

Presidente: “Eu entendo. Pode nos dar licença”.

(sai o Juiz Harrison e ficam o Presidente com os seus assessores).

Assessor Sam: “Presidente, mande-o de volta.”

Assessor Toby: “Vamos dispensá-lo por causa de algo escrito há 30 anos, do qual só nós temos conhecimento?”

Presidente: “O sujeito que ligou para o Sam vai ligar para o Senado”.

Assessor Sam: “São os próximos 20 anos. Os direitos civis foram a pauta nos anos 50 e 60. Daqui para frente, será a privacidade. Incluindo internet, celulares, quem é gay e quem não é. E tem mais, no país das liberdades, nada é mais fundamental”.

(O Presidente decide então conversar com Mendoza).

Em outra sala, outros assessores discutem acerca dos nomes de Mendoza e harrison. A assessora contrária a Mendoza diz que ele apoiou o casamento gay. No que o outro assessor diz que essa decisão decorreu do fato de que para Mendoza o Estado não tem o direito de interferir e que ele interpreta da forma mais ampla a liberdade de expressão. A assessora diz que ele não é o magistrado americano ideal e faz uma comparação de currículos. harrison estudou em Princeton e harvard103 e foi assessor (Law clerk) de Justice da Suprema Corte, enquanto Mendoza estudou à noite na Faculdade do Brooklin e na Academia de Polícia, foi policial de Nova Iorque, levou um tiro, continuou trabalhando e estudando e se tornou procurador-geral do Estado. Para o defensor do nome de Mendoza ele é inteligente, decidido, corajoso e experiente. O assessor lança a seguinte ironia para a sua colega contrária à escolha de Mendoza: “é você quem não acredita nos americanos”.

No gabinete presidencial estão reunidos o Presidente, os seus aludidos assessores e o Juiz Mendoza.

103 Todos os atuais 9 Justices passaram ou por Harvard ou Princeton ou Yale. Todos eles. A filtragem acadêmica é uma faceta do modelo judicial norteamericano.

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Presidente: “Nenhum outro juiz teve tantos pareceres (votos) apoiados pelo Tribunal de Apelação como o senhor”.

Juiz Mendoza: “É que eu quase sempre estou certo” (risos irônicos).

(O Presidente é chamado para outra reunião e ficam o Juiz com os assessores sendo sabatinado... O Presidente retorna)

Juiz Mendoza: “Não é fácil mesmo ser nomeado para esse comitê de assuntos latinos.” (Esse foi o motivo que informaram ao juiz para ir à Casa Branca).

Assessor Toby: “Juiz, o que faria se alguém fosse demitido por se recusar a fazer um exame de sangue por ordem do Presidente?”.

Juiz Mendoza: “Sem mais detalhes?”

Assessor Toby: “Eu diria que a ordem é inconstitucional e determinaria que fosse readmitido”.

(O Presidente olha para todos os seus assessores presentes e obtém o assentimento)

Presidente: “Ficaria surpreso se soubesse que seu nome está na lista de candidatos para a bancada da Suprema Corte?”

Juiz Mendoza: “Sim, senhor Presidente”.

Presidente: “Então, agora vai cair para trás. Amanhã, às 17 h., vou nomeá-lo meu candidato para a bancada da Suprema Corte dos Estados Unidos. Não foi a primeira opção, mas é a decisiva e a correta. Vai aceitar a nomeação?”

Juiz Mendoza: “Será uma honra”.

Presidente: “Que bom”.

Assessor Toby: “Será uma batalha árdua, mas venceremos”.

Presidente anunciado a todos: “Justice Mendoza”.

(Fim do episódio).

A transcrição não consegue revelar a atuação, os olhares, os espantos, a emoção da cena, mas é um episódio exemplar, pois revela a idealidade do processo, com pitadas de realismo. Vale assistir esse mencionado episódio The Short List.

As escolhas da Chief Justice Evelyn Baker Lang e do Associate Justice Christopher Mulready

Na 5ª temporada, episódio 105 intitulado The Supremes104, surge a oportunidade de o Presidente da República nomear um Justice para a Suprema Corte, em decorrência da morte precoce de outro Justice. Esse episódio 105 deve ser compreendido em conjunto com o episódio 95 intitulado Separation of Powers105, no qual se ventila a aposentadoria do Chief Justice

104 Na versão brasileira “Os Supremos” (www.warnerbrosvideo.com.br). 105 Na versão brasileira “Separação dos Poderes” (www.warnebrosvideo.com.br)

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e se discute quem poderia sucedê-lo. Nesse citado episódio 95, o Chief Justice condiciona a sua aposentadoria à escolha, pelo Presidente, de um jurista de grande envergadura constitucional e de ideologia liberal.

Volto ao episódio 105. Tem-se a notícia do falecimento do Justice Owen Brady, o líder da corrente conservadora na Suprema Corte. Logo surgem manifestações públicas, inclusive populares, de apoio a alguns possíveis candidatos e de repulsa a outros. A sociedade e os grupos de pressão se movimentam em defesa de seus interesses e dos candidatos representativos deles.

O gabinete presidencial se reúne e estabelece o prazo de uma semana para apresentar uma lista de candidatos. há dezenas de currículos de juízes que deverão ser apreciados, sem contar as inúmeras interferências externas, ora em favor, ora em desfavor de candidatos. Está aberto mais um processo de escolha de um Justice. há de ser um nome capaz de obter o assentimento dos Senadores e da maioria republicana. Mas o gabinete necessita criar uma “cortina de fumaça” em redor do verdadeiro escolhido, trabalhando com “falsas possibilidades”.

Para essa finalidade, é usado o nome da juíza Evelyn Baker Lang. Ela é tida como uma juíza liberal, além de já ter praticado um aborto, o que enfureceria a direita cristã norteamericana. Ante esse fato, o Presidente indaga se a prática foi depois da decisão Roe v. Wade106, na qual a Suprema Corte permitiu o direito ao abortamento. A resposta foi afirmativa. O Presidente indaga se “extração de amídalas” ou outras práticas legais também descartariam candidatos. Informa o Presidente que ele teve 27 milhões de votos femininos, e que talvez isso tivesse alguma razão, como a de proteger esse direito das mulheres. A ideia do gabinete é agradar aos liberais e amedrontar os conservadores republicanos, de modo que eles venham a aceitar um juiz “democrata” menos assustador.

A Juíza Evelyn Lang é convidada para reuniões com dois importantes assessores do Presidente (Toby e Josh). Ela, de modo elegante, indaga se eles não poderiam apenas conversar, pois ela soube do interesse em relação ao Juiz hayder e que o nome dela nunca seria admitido pelo Senado de maioria conservadora. Ela impressiona os assessores revelando total conhecimento da dinâmica política americana, da atuação dos principais senadores, da linha de atuação dos conservadores, das necessidades governamentais da Casa Branca. Ela também tem manifestações judiciais e acadêmicas corajosas e bem fundamentadas. Mas ela mesma fala que não pode substituir o líder do conservadorismo judicial na Suprema Corte. A Casa Branca terá de achar um nome politicamente mais palatável. Ela seria o nome ideal, segundo os assessores, mas as dificuldades políticas aparentam ser intransponíveis. Os boatos surgem e as lideranças políticas antecipam o veto ao nome da Juíza Evelyn Lang.

Em outra sala, o Presidente está reunido com o Juiz Eric hayder e tenta iniciar um diálogo com ele. O Juiz hayder se recusa a fazer qualquer tipo de manifestação sobre qualquer assunto que eventualmente poderia ser objeto de sua apreciação, mesmo temas “batidos”, como ações afirmativas. O Presidente informa, abertamente, que gostaria de um candidato alinhado com o Chief Justice Ashland, no que o Juiz hayder se antecipa e diz que o Presidente quer alguém que acompanhe o Chief e que depois o substitua. No entanto diz o Juiz hayder: “Mas minha lealdade às excentricidades de um caso com certeza será maior que minha lealdade a qualquer posição que queira que eu ocupe”. O Presidente silencia.

106 Roe v. Wade é uma das principais decisões da história da Suprema Corte. Um lançamento em qualquer site de buscas confirmará a expressiva quantidade de material sobre esse julgamento.

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Os assessores estão em um impasse governamental. A vaga era ocupada por um Justice conservador, eles querem nomear um liberal, mas necessitam quebrar as resistências dos conservadores. Como solucionar a questão? A resposta decorreu de uma situação pitoresca narrada por uma funcionária da Casa Branca em relação ao casamento de seus pais. Segundo essa funcionária, após quase 40 anos de convivência, eles não tentam mais entrar em acordo sobre nada, como a cor do gato da família, e resolveram comprar 2 gatos de cores distintas, assim todos ficaram satisfeitos.

O assessor Josh Lyman ao ouvir essa história tem uma ideia: não adianta convencer os conservadores acerca de um juiz liberal, nem os liberais acerca de um conservador, é preciso dar a cada um o que é seu. A ideia consiste em oferecer a vaga do Justice conservador a um magistrado conservador e convencer o Chief Justice liberal a se aposentar em favor da indicação de uma magistrada liberal. O assessor convence o Presidente a agasalhar essa proposta e o Presidente o autoriza a conversar com o Chief Justice Ashland sobre essa “troca”. A tese é permitir o equilíbrio de forças na Corte: sai um liberal, entra um liberal; sai um conservador, entra um conservador. O Chief Justice aceita a proposta e avisa que pedirá aposentadoria em favor da Juíza Evelyn Lang, pois seria a primeira Chief Justice da história. Agora restava escolher o nome entre os magistrados conservadores.

As lideranças conservadoras indicam o nome do Juiz Christopher Mulready. Este nome é malvisto e malquisto no gabinete presidencial, pois é tido como o jurista mais conservador dos Estados Unidos, principal inimigo das teses políticas dos liberais democratas. O Presidente se manifesta contrariamente, mas o assessor Josh Lyman os convence a aceitarem o acordo sob o fundamento de que eles indicam o símbolo da ideologia liberal, também têm de admitir o símbolo da ideologia conservadora, em nome do equilíbrio político. Essa é uma das chaves do sucesso político americano: a busca do equilíbrio de forças.

Todavia, as lideranças liberais vetam terminantemente o nome do Juiz Christopher Mulready. Em uma sala de reuniões, o assessor Toby se encontra com o Juiz Mulready, e debatem sobre os direitos dos homossexuais e questão do casamento gay. No curso da conversa aparece a Juíza Evelyn Lang. Eis alguns trechos do diálogo:

Juíza: “é um dos encontros mais improváveis na história da gestão de Bartlet.”

Juiz: “Prazer em vê-la, Evie”.

Juíza: “Igualmente, Chris. Vim me despedir. Queria ter uma câmera.”

Juiz: “Ele queria me convencer que o Ato em Defesa do Casamento é inconstitucional”.

Juíza: “O Ato. Ele queria convencê-lo?”

Juiz: “Sim”.

Assessor: “O quê?”

Juíza: “Não precisa. Ele nunca apoiaria o Ato. Pode não gostar de casamento gay, mas detesta a intromissão do Congresso que não pode controlar o casamento. A questão não é privacidade”.

Juiz: “Ou proteção”.

Juíza: “Ele vai conseguir derrubar o Ato antes de mim.”

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Juiz: “Por falta de imaginação sua, se me permite”.

Assessor: “Estava me manipulando?”

Juiz: “Venho ver um presidente Democrata no meio da noite. Você me vem com bobagens?”

(O assessor sai da sala e os juízes ficam debatendo questões constitucionais, cada um procurando demonstrar para outro o acerto de suas teses e o erro das teses do outro. Os assessores assistem de fora da sala e ficam impressionados com ambos os magistrados.)

Os assessores vão conversar com o Presidente e com o representante político dos liberais. O Presidente indaga ao assessor Toby se ele gosta de Mulready, no que recebe a resposta de que o odeia, o detesta, mas reconhece que ele é brilhante, e que os dois juntos na Suprema Corte vão brigar feito “cão e gato”, mas que assim a coisa vai funcionar. O outro assessor convence o Senador líder dos liberais de que para ter uma Chief liberal, é preciso aceitar um Justice conservador. O Presidente aceita conversar com o Juiz Mulready. Eis o diálogo:

Presidente: “Obrigado por vir”

Juiz: “é uma honra, senhor”.

Presidente: “Soube que você e a Juíza Lang tiveram uma discussão?”

Juiz: “Ela quer privatizar a polícia. Eu achei cedo demais”.

Presidente: “Ela não faz o seu gênero”.

Juiz: “Pelo contrário. há meses não me divirto assim”.

Presidente: “Mesmo?”

Juiz: “Use-a, se puder. Não sei o porquê de tudo isso. Acho que algumas pessoas gostam de ver pessoas como eu ou ela nestes corredores. Estou aqui para isso. Se puder usá-la de alguma forma...”

Presidente: “é improvável”.

Juiz: “Quem está no topo da lista? Se eu vazasse, acreditariam em mim?”

Presidente: “Brad Shelton”.

Juiz: “Mesmo?”

Presidente: “Não gosta dele?”

Juiz: “Ele é um ótimo jurista. E se Carmine, Lafayette, hoyt, Clark e Brannaghan morrerem o centro ainda estará bem cuidado.”

Presidente: “Quer outro Brady?”

Juiz: “Claro. Como o senhor quer outro Ashland. O Tribunal era melhor quando eles estavam na luta”.

Presidente: “Muitas leis foram escritas pelas vozes da moderação”.

Juiz: “Quem escreve a dissidência? A voz da minoria, cuja hora ainda não chegou, mas 20 anos depois algum funcionário da justiça vai descobri-la

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às 3h. da manhã. Brennan contra a censura. A lamúria de harlan por Jim Crow.”

Presidente: “Talvez você, um dia”.

Juiz: “Não podem me nomear para o Supremo. Como você não pode por Evelyn Lang lá. Vai ser só os Sheltons daqui para frente.”

Presidente: “há 4 mil manifestantes lá fora querendo saber quem vai pegar essa vaga. Não podemos aliená-los.”

Juiz: “Todos têm o seu papel. O seu é nomear alguém que não aliene as pessoas.”

(O Presidente silencia e fica impressionado com o Juiz Mulready).

Na cena subseqüente, na sala de imprensa da Casa Branca surge o Chief Justice Ashland anunciando a sua aposentadoria. Na antessala, estão o Presidente, o seu staff e os novos Justices Evelyn Lang e Christopher Mulready, que serão anunciados como os novos magistrados da Suprema Corte. Fim do episódio.

Assim como no episódio 9, a presente descrição não revela a riqueza das cenas e a forte carga emotiva. Mas algo chama a atenção nesse episódio: a importância da convivência no dissenso e o equilíbrio de forças como alicerces do regime democrático e republicano dos Estados Unidos. Também chama a atenção o reconhecimento do desejável gigantismo intelectual dos futuros magistrados da Suprema Corte, independentemente da coloração ideológica. Essa é outra lição que deveríamos aprender. Os citados episódios 95 e 105, da 5ª Temporada, também merecem ser vistos.

O modelo judicial dos Estados Unidos da América

O texto originário da Constituição dos Estados Unidos da América é de 17.9.1787. Esse texto tem sido objeto de várias modificações constitucionais formais107 e das chamadas mutações constitucionais informais108. A vitalidade normativa dessa Constituição decorre daquilo que Karl Loewenstein109 denominou de “sentimento constitucional”, ou seja, a adesão e o respeito à Constituição tanto pelos governantes (poderosos) quanto pelos governados (povo), bem como da capacidade de ser adaptada às novas realidades que lha circundavam, sem rupturas institucionais ou golpes de Estado.

107 As primeiras 10 emendas à Constituição foram chamadas de “Bill of Rigths”, de 1791. Posteriormente foram ratificadas outras 27 emendas à Constituição, sendo a última (a 27ª) em 1992.

108 As mutações constitucionais ou modificações informais da Constituição consistem na mudança do sentido normativo dos enunciados constitucionais, sem que tenha havido mudança nas palavras textuais. Ou seja, o enunciado (a palavra) permanece inalterada, mas o sentido é que modifica. Essa mudança de sentido decorre da mudança de paradigmas ou de circunstâncias sociais, econômicas, culturais, históricas etc. que impliquem uma verdadeira nova conformação normativa. Exemplo sempre recordado é o do termo igualdade. Em seu nome se justificou a clivagem entre brancos livres e escravos negros. Posteriormente, em seu nome (a igualdade) se justificou o tratamento diferenciado e separado entre brancos e negros, com a cláusula “iguais, porém separados”. E em seu nome se tem justificado que tanto os brancos quanto os negros têm igual dignidade e são merecedores de igual respeito e consideração.

109 LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la Constitucion. Barcelona: Ariel, 1976, pp. 199-205

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No texto constitucional são poucas as referências ao Poder Judiciário e à Suprema Corte. Em uma delas estabelece-se que compete ao Congresso dos Estados Unidos criar tribunais inferiores à Suprema Corte (Artigo I, Seção VIII). Noutra consta que o Poder Judiciário dos Estados Unidos será exercido por uma Suprema Corte e pelos tribunais inferiores que o Congresso periodicamente criar e estabelecer, e que apreciarão todos os casos, de direito e de equidade, surgidos sob o pálio da Constituição e das Leis federais e dos tratados internacionais, dentre outras competências constitucionalmente estabelecidas (Artigo III).

A relevância política do Poder Judiciário, em particular da Suprema Corte americana, pode ser percebida a partir da leitura dos “Artigos Federalistas”, que enunciaram os magistrados (juízes) como os “fiéis guardiães da Constituição” e que deveriam ter a força jurídica e política para anularem as decisões tanto do Poder Executivo quanto do Poder Legislativo que violassem o texto constitucional.110

é possível, grosso modo, dizer que o sistema judiciário americano se reparte em Justiça Federal e Justiça Estadual. Esta - a Estadual – consiste em várias “justiças” (em torno de 50), com suas vicissitudes e peculiaridades. Já a Federal é dividida – ainda grosseiramente - em três instâncias: a primeira (District Courts), a segunda (Courts of Appeals) e a terceira (Supreme Court).111

Pois bem, no ponto que nos interessa. Os magistrados federais, de todas as instâncias, são indicados pelo Presidente da República. Nos Estados, alguns são indicados pelos Governadores e sabatinados pelos legislativos locais, outros são eleitos pelo povo.112

A Suprema Corte é composta de 9 magistrados ( Justices) indicados pelo Presidente da República, que também escolhe o Presidente do Tribunal (Chief Justice). Essa indicação ao Tribunal deve ser homologada pelo Senado Federal. O processo de chancela senatorial é complexo e requer uma aguda sensibilidade política do Presidente na hora de apresentar um nome para compor a bancada da Corte.

Por esse ângulo, The West Wing aproximou-se das dificuldades que encerram a escolha de um nome que seja politicamente palatável para integrar o Supremo Tribunal, pois além das argüições do Senado, há uma densa participação social e acadêmica no processo político de nomeação de um Justice.113 110 Os Artigos Federalistas ns. 78 a 83. Colho a seguinte passagem desses artigos fundadores: “Caso se diga que

os membros do corpo legislativo são eles mesmos os juízes constitucionais dos próprios poderes e que a interpretação que lhes conferem impõe-se conclusivamente aos outros setores, pode-se responder que esta não pode ser a presunção natural a menos que pudesse ser deduzida de cláusulas específicas da Constituição. De outro modo, não há por que supor que a Constituição poderia pretender capacitar os representantes do povo a substituir a vontade de seus eleitores pela sua própria. É muito mais sensato supor que os tribunais foram concebidos para ser um intermediário entre o povo e o legislativo, de modo a, entre outras coisas, manter este último dentro dos limites atribuídos a seu poder. A interpretação das leis é o domínio próprio e particular dos tribunais. A Constituição é de fato uma lei fundamental, e como tal deve ser vista pelos juízes. Cabe a eles, portanto, definir seus significados tanto quanto o significado de qualquer ato particular procedente do corpo legislativo. Caso ocorra uma divergência irreconciliável entre ambos, aquele que tem maior obrigatoriedade e validade deve, evidentemente, ser preferido. Em outras palavras, a Constituição deve ser preferida ao estatuto, a intenção do povo à intenção de seus agentes. Esta conclusão não supõe de modo algum uma superioridade do poder judiciário sobre o legislativo. Supõe apenas que o poder do povo é superior a ambos, e que, quando a vontade do legislativo, expressa em suas leis, entra em oposição com a do povo, expressa na Constituição, os juízes devem ser governados por esta última e não pelas primeiras. Devem regular suas decisões pelas leis fundamentais, não pelas que não são fundamentais”.

111 GODOy, Arnaldo Sampaio de Moraes. Obra citada, pp. 1-12. 112 FINE, Toni M. Obra citada, pp. 31-48.113 Valioso o magistério doutrinário de Ronald Dworkin (O direito da liberdade, Capítulo III Juízes, pp. 417-554)

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é de ver que o Presidente da República não ousaria indicar qualquer um, mas alguém que além de uma densa produção jurídica, de uma extraordinária e inquestionável capacidade técnica, também fosse politicamente objeto de consenso social e acadêmico. Ou seja, o Presidente da República não saca do “seu bolso” o nome do futuro Justice, mas colhe um nome que seja fruto de uma longa construção jurídica e política. Alguém que já tenha um passado consagrado, um presente respeitável e um futuro luminoso. O candidato deve ter serviços prestados à Nação, e não apenas ao grupo dominante do poder.

Convém, no entanto, apontar que a despeito da indiscutível e indisputável história de sucesso da magistratura americana, o seu modelo talvez só sirva para eles, como soe acontecer com os modelos jurídicos de qualquer sociedade,114 pois penso que em nosso País não fosse desejável que o Presidente da República escolhesse e nomeasse os magistrados federais, tampouco que os Governadores de Estados fizessem o mesmo procedimento em relação aos magistrados estaduais. Também não julgo apropriado submeter o critério de recrutamento dos magistrados a eleições populares, pois o magistrado deve buscar a verdade, independentemente das conveniências, enquanto que o político para sobreviver, não raras vezes, busca as conveniências, independentemente da verdade.

Nesse particular, julgo que o modelo brasileiro de recrutamento de magistrados, sobretudo no concernente aos de primeira instância, é melhor que o americano, pois aqui o interessado deve ser aprovado em dificílimo concurso público. Talvez não seja o melhor critério de recrutamento, mas ao meu sentir é mais adequado, para nossa realidade, do que o sistema americano de indicação do chefe do Poder Executivo ou de eleição popular.

Todavia, a sociedade brasileira deveria imitar a americana no tocante à participação na escolha de magistrado para os Tribunais, especialmente para o Supremo. Aqui, diferentemente do que ocorre lá, há uma indiferença exasperante e um silêncio ensurdecedor dos setores sociais (universidades, academia, associações científicas, de classe, imprensa, sindicatos, partidos políticos, igrejas, grupos de pressão, ONGs, bares, restaurantes, lanchonetes, clubes, festas...), como se a escolha de um magistrado para o Supremo Tribunal e para os demais Tribunais não fosse algo de nosso interesse e não que fosse afetar as nossas vidas. Sobre esse tema ainda tecerei considerações neste artigo.

Volto ao sistema judicial norte-americano. A Suprema Corte dos Estados Unidos, por meio do instituto processual do writ a certiorari, uma preliminar de conhecimento do feito que deve ser acolhida por pelo menos 4 Justices, para conhece da questão. A recusa do Tribunal não necessita de ser fundamentada. Mas se o feito é conhecido, abrem-se sessões para a apresentação dos argumentos e fundamentos factuais e normativos das partes. Depois das apresentações, os magistrados se reúnem em sessão privada e tomam a decisão. A redação da decisão colegiada é feita ou pelo Chief Justice ou pelo Justice que ele indicar e que faça parte da corrente majoritária.

Giram em redor de 100 os feitos conhecidos no ano judiciário da Suprema Corte. Como são poucos os casos julgados pelo Tribunal, se comparados aos julgados pelo STF brasileiro, as decisões das instâncias inferiores acabam prevalecendo. Eis aí a chave do sucesso do judiciário norte-americano: a relevância das decisões das instâncias inferiores. Lá, diferentemente do que ocorre aqui, sentença exarada é sentença cumprida.

sobre as indicações de Robert Bork e de Clarence Thomas, bem como pela não indicação daquele que na sua opinião foi o maior juiz da história americana: Learned hand.

114 Sobre o alcance e significado do direito comparado sugiro a leitura da obra de René David (Os grandes sistemas de direito contemporâneo...).

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Abro um parêntese para o Brasil. Em nosso País, percebemos um esvaziamento das instâncias ordinárias e um agigantamento das instâncias excepcionais (Tribunais superiores e STF), de modo que a sentença é vista tanto qualitativa quanto normativamente inferior ao acórdão. Eis, na minha avaliação, um equívoco. A sentença tende a ser qualitativamente melhor que o acórdão pela simples razão de que foi prolatada por quem apreciou as provas, ouviu as testemunhas, sentiu o processo. No acórdão, normalmente, aprecia-se apenas a interpretação, mas a compreensão do todo é feita pela sentença. Tenha-se, todavia, que esse agigantamento ensejou a crise de efetividade dos tribunais e reformas processuais têm sido encetadas para diminuir a quantidade de processos submetidos ao crivo dos Tribunais superiores e do STF, mas essas mudanças ainda são tímidas e os seus efeitos não lograram fortalecer as instâncias ordinárias.

Retorno aos EUA para finalizar esse tópico. O modelo judicial americano é um reflexo das experiências judiciais britânicas temperadas pelos modelos judiciais continentais europeus. Certamente não é perfeito, mas tem servido para manter o equilíbrio político e social daquela Nação. Provavelmente não deve ser imitado pelo Brasil, pois as nossas experiências culturais são distintas e as fórmulas jurídicas devem ser aplicadas de acordo com as reais necessidades e possibilidade de cada sociedade.115

Passarei a surpreender o nosso modelo judicial e as nossas funções essenciais à justiça.

A escolha dos ministros do Supremo Tribunal Federal: os mandamentos normativos da Constituição da República

O modelo judicial brasileiro

O modelo judicial brasileiro está desenhado no texto constitucional (arts. 92 a 126, CF atualizada até a EC 70/2012) e principia pelo escalonamento normativo dos órgãos componentes do Poder Judiciário: Supremo Tribunal Federal (STF); Conselho Nacional de Justiça (CNJ); Superior Tribunal de Justiça (STJ); Tribunais Regionais Federais (TRFs) e Juízes Federais; Tribunais e Juízes do Trabalho; Tribunais e Juízes Eleitorais; Tribunais e Juízes Militares; e Tribunais e Juízes dos Estados e do Distrito Federal e Territórios.

115 A aplicação direta de fórmulas jurídicas estrangeiras, sem a devida e necessária adaptação é equivocada. Seria o mesmo que vestir um “macaco de smoking” e querer que ele se comportasse como um “cidadão elegante” bebendo “champagne”. Ora, um macaco, mesmo vestindo um smoking, continua sendo um macaco, só que vestido de smoking. E esse macaco não vai dançar uma “valsa vienense”. Provavelmente, vestido de smoking irá comer bananas, subir nas árvores e se comportar como um macaco. Mas, certamente, aquele que o vestira com o smoking ficará espantado, pois se o “hábito faz o monge”, como é que um “smoking” não faça de um macaco um cidadão? O mesmo espanto sente o “jurista” que importa leis de outros povos e não entende como essas leis não funcionam do mesmo modo, como se a aplicação da lei fosse algo mecânico, de sponte propria. As leis são convenções lingüísticas que devem estar em sintonia com os acordos e com as práticas sociais. Lei tem braço e boca? Não. Quem tem pernas, braços e bocas são as pessoas humanas. Os textos normativos são como “partituras musicais”. Para uma boa execução se faz necessário uma boa orquestra (ou bons cidadãos, no caso do Direito). Em suma, o direito que serve para um povo, serve para esse povo. Talvez não sirva para outro povo. Daí porque o estudo do direito comparado não pode ser o estudo apenas dos textos normativos, mas deve ser o estudo das experiências, das realidades, dos valores e das circunstâncias de cada povo. Direito comparado não é apenas comparação de textos, insisto, é comparação de realidades e de experiências.

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No Brasil, em “imitação” aos EUA, o Poder Judiciário está dividido em Poder Judiciário da União e Poder Judiciário dos Estados. Mas lá a competência decorre sobretudo do parâmetro normativo. Ou seja, o direito estadual é julgado pela justiça estadual, enquanto que o direito federal é julgado pela justiça federal. Aqui o funcionamento é distinto. Não é pelo direito em si, mas ou pelas partes ou pela matéria, independentemente da origem do parâmetro normativo empolgado. No modelo brasileiro, a justiça estadual é residual. Ela julga as causas não apreciadas ou pela justiça federal ou pela justiça do trabalho ou pela justiça eleitoral ou pela justiça militar. O que não for dessas específicas justiças, é da justiça estadual. 116

O texto constitucional estabelece que o STF, CNJ e Tribunais Superiores têm sede em Brasília, capital federal. Também estabelece o texto que esses aludidos órgãos têm competência jurisdicional em todo o território nacional.

Dispõe a Constituição que lei complementar117 deve dispor sobre o Estatuto da Magistratura e enuncia princípios que devem ser observados na regulamentação da magistratura, como a necessidade de concurso público de provas e de provas e títulos para o ingresso no cargo inicial de juiz substituto, sendo necessário do candidato pelo menos 3 anos de atividade privativa de bacharel em Direito. O texto cuida das promoções e da evolução na carreira, das remunerações118, de aposentadoria, remoção e disponibilidade, do dever de publicidade e de fundamentação de todas as decisões, sejam as judiciais ou as administrativas, das prerrogativas da vitaliciedade, da inamovibilidade e da irredutibilidade de subsídios, bem como das vedações como a atividade político-partidária, do exercício de qualquer outro cargo ou profissão, exceto a do magistério, dentre outras.

Nesses referidos dispositivos constitucionais, a Constituição, de modo analítico, esmiúça o regramento normativo que regula a magistratura brasileira, deixando pouco espaço normativo para as leis e para os demais atos infraconstitucionais.

Mas, vamos direto ao ponto que nos interessa: os critérios de acesso aos cargos da magistratura. Enfatizo que a magistratura é uma coroa, é um prêmio. A magistratura do STF é a coroação maior na carreira de qualquer profissional do Direito. Começarei da primeira instância para a última (o STF).

Nos EUA, como assinalamos, os juízes federais são nomeados pelo Presidente da República. Os juízes estaduais são ou nomeados pelos Governadores dos Estados ou eleitos pelo povo. Aqui felizmente não é assim. No Brasil há concurso para os seguintes 116 No Brasil há quem confunda Poder Judiciário da União com Poder Judiciário Federal, ou Justiça da

União com a Justiça Federal. Toda justiça federal é justiça da União, mas nem toda justiça da União é federal. Os juízes do trabalho são membros da magistratura da União, mas não são juízes federais. O mesmo sucede com os juízes de direito do Distrito Federal e Territórios. Ou com os “juízes eleitorais”. Juiz federal é o magistrado competente para julgar as causas em que a União Federal seja parte ou as causas que lhes sejam constitucionalmente atribuídas. Eis porque soa equivocada a expressão “Juiz Federal do Trabalho” ou, para piorar, “Desembargador Federal do Trabalho”. Nessa toada, logo logo surgirão os “Desembargadores das Turmas Recursais dos Juizados Especiais” e os “Ministros da Turma de Uniformização Nacional dos Juizados Especiais”... Todos deveriam ser rotulados apenas de Juiz. Nada de Ministro ou de Desembargador. Apenas Juiz, indicando o seu Tribunal.

117 Lei Complementar n. 35, de 14.3.1979.118 Os enunciados constitucionais sobre as remunerações pagas pelos cofres públicos são “bizarros”.

Deveria constar apenas o seguinte: A remuneração dos agentes públicos será definida em Lei. A Lei que cuidar da remuneração dos agentes públicos observará os princípios constitucionais da isonomia, da moralidade, da eficiência, e das reais possibilidades financeiras dos cofres públicos.

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cargos iniciais (juiz substituto) da magistratura: juiz federal, juiz do trabalho, juiz militar e juiz de direito. Não há concurso para juiz eleitoral.

O postulante ao cargo de juiz substituto deve ter pelo menos 3 anos de atividade privativa de bacharel em Direito. Penso que essa exigência ainda não seja suficiente. Tenho que se deve exigir do candidato à magistratura pelo menos 30 anos de idade e pelo menos 10 anos de experiência em atividade jurídico-profissional privativa de bacharel em Direito. Direito é uma experiência. O exercício da magistratura também requer experiência. Não basta o conhecimento “científico” dos textos normativos. O juiz deve possuir experiência de vida e consciência moral para adequadamente julgar as condutas e os comportamentos de seus semelhantes. A magistratura requer sabedoria, e a sabedoria é fincada nesse tripé: ciência, consciência e experiência. Portanto, somente poderia iniciar a carreira de magistrado quem tivesse pelo menos 10 de experiência jurídica. Haveria a cobrança de sua ciência (conhecimento) via provas e títulos. E a consciência? Como aquilatar? Pelo passado desse candidato e pelo seu comportamento ao longo de sua vida.

E para os Tribunais? Como deveria ser o processo de recrutamento? Para os tribunais de segundo grau (TJs, TRFs, TRTs...) deveria ser proibida a promoção por merecimento. Deveria ser apenas por antiguidade. Justifico essa mudança tendo em vista que o merecimento força o candidato interessado a “bajular” os Desembargadores119, os políticos influentes, os amigos dos poderosos e ao “detentor” da caneta de sua nomeação. O candidato que não seguir o roteiro de busca de apoios não consegue ser nomeado. Candidato sem apoio é candidato “morto”. Ou seja, a justa e legítima expectativa de ascender na magistratura fica condicionada aos conchavos políticos. Isso é inaceitável. Isso lança uma jaça sobre o futuro magistrado do Tribunal. Isso deve ser combatido e até mesmo proibido. A quem interessa um magistrado devedor de favores? Um magistrado devedor de favores tem a indispensável imparcialidade para julgar as causas? Um magistrado devedor de favores age com desassombro e julga os poderosos do mesmo jeito que julga os não-poderosos? Não necessito de responder.

Nessa linha, para ascender ao Tribunal de “apelação” (segundo grau), o magistrado deve ter pelo menos 10 anos de experiência judicial. Logo, o futuro desembargador deve ter pelo menos 20 anos de experiência jurídica. Esta exigência deveria se aplicar ao quinto constitucional. Ou seja, o advogado ou promotor (procurador) que for nomeado magistrado de tribunal deveria ter pelo menos 20 anos de experiência jurídica e não apenas os 10 anos atualmente exigidos. Qualquer “menino” se forma com 21 ou 22 anos. Se for amigo das pessoas certas será desembargador por volta dos 30 anos de idade. Isso é um acinte. Um despautério um “desembargador” com menos de 40 anos. Cadê a experiência? Magistratura é experiência. É consciência. Tribunal é coroação de uma carreira. 120

119 “Desembargador” é expressão anacrônica e remonta ao passado reinol do Brasil. Sobre a terminologia dos magistrados já escrevi: 10 A vaidade nominal chegou ao paroxismo com os magistrados pertencentes aos tribunais regionais federais. Suas excelências alteraram os regimentos internos dos mencionados tribunais para receberem o rótulo de Desembargadores Federais. A justificativa, segundo eles, é o fato de que os magistrados que compõem os tribunais de justiça são rotulados como Desembargadores. É pura vaidade. O texto constitucional fala em Juiz do Tribunal Regional Federal, não em Desembargador. Segundo o texto constitucional, Desembargador (também anacronismo reinol) é o magistrado do tribunal de justiça. Talvez o STF dê um basta nessa fútil vaidade e declare inconstitucionais essas modificações nos regimentos desses tribunais regionais federais. A Emenda Constitucional nº 45/2004 poderia ter disposto que todos os magistrados, independentemente do tribunal, serão denominados de juízes. Mas aí a vaidade dos atuais desembargadores e ministros não permitiria tamanha igualdade nominal. Vaidade das vaidades, tudo é vaidade, já dizia o Eclesiastes. (ALVES JR., Luís Carlos Martins. O regime jurídico-constitucional dos tribunais superiores. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 788, 30 ago. 2005. Disponível em: HTTP://jus.com.br/revista/texto/7217. Acesso em: 26 jul. 2012.

120 Pessoalmente sou contrário ao quinto (ou terço) constitucional. Entendo que para ingressar na

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Nessa trilha chego nos Tribunais superiores. Para os futuros ministros121 há de se exigir pelo menos 20 anos de experiência judicial, se for magistrado de carreira, ou 30 anos de experiência jurídica se advier do terço/quinto constitucional reservado para a advocacia e ministério público. Insisto em uma espécie de gerontocracia na magistratura. Justifico na tese de que a sabedoria pressupõe ciência, experiência e consciência. Os ministros devem ser julgadores sábios.

Por fim, chego ao Supremo Tribunal Federal.122 Aqui o postulante, aquele que receberá a suprema coroa da magistratura e das carreiras jurídicas, deve ser uma pessoa sábia (ciência, experiência e consciência). Deve ser alguém admirável. Alguém cujo nome se pronuncia com reverência e que se ouve com respeito. O nome de um ministro do STF deve ser um verdadeiro “adjetivo”, como é o nome dos advogados “Rui Barbosa”, “Pontes de Miranda”, “Miguel Reale”, “Sobral Pinto”, ou dos ministros “Pedro Lessa”, “Aliomar Baleeiro”, “Victor Nunes Leal”, “Piza e Almeida”, “Nelson hungria”, “Evandro Lins” e tantos outros gigantes do Direito nacional. A magistratura do Supremo é para quem

magistratura o interessado deve ser aprovado no rigoroso e sacrificante concurso público. Tem de sentar e estudar muito. Fazer carreira na judicatura e ir ascendendo para o respectivo Tribunal de “apelação” e para o respectivo “Superior” (ou STJ ou TST ou STM). O quinto (ou terço) constitucional é uma forma lícita (porém inconveniente e injuta) de ingressar na magistratura. é o ingresso pela “janela”. A famosa “oxigenação” do “quinto” é uma falácia (ou verdadeira bobagem). Advogado ou Promotor “oxigena” peticionando, argumentando, provocando a Corte. Magistrado decide. Advogado e Promotor postulam, pedem. Ademais, com a criação do CNJ já há a participação da “sociedade” no Judiciário. Perdeu o sentido o quinto/terço constitucional. Abro, por enquanto, exceção apenas para o STF, pois a “Corte Constitucional” deve ser politicamente plural, e devem ter mandato de 8 anos os seus magistrados. Mas para os demais tribunais (segundo grau e superiores) as vagas devem ser somente para magistrados de carreira, dentre sempre os mais antigos, e que tenham longos serviços prestados à sociedade. Todavia, como há essa lícita possibilidade de ingresso na magistratura, que vem a ser o “ Quinto”, que a OAB e o Ministério Público procurem indicar bons nomes para a dignidade dessas instituições e que os Tribunais saibam escolher os seus futuros membros. Como disse, é lícito ingressar via quinto (ou terço) constitucional, mas é um “balde de água fria” para quem se submeteu ao rigoroso e sacrificante concurso público e que fez carreira na judicatura. é o que penso.

121 Ministro também é expressão anacrônica e reinol. O melhor seria que todos os magistrados fossem rotulados como juízes: juiz do STF; juiz do STJ etc. Mas será que a vaidade permitiria tamanha igualdade?

122 Sobre esse tema já tive oportunidade de me pronunciar em outro texto: “Qualquer brasileiro nato com mais de 35 anos pode ser ministro do STF? Não. Não é qualquer um que pode ser alçado às elevadas funções de ministro da Corte. Tem de ser possuidor de notável saber jurídico e de reputação ilibada. A razão de ser desses requisitos consiste na missão que se lhe destina: palavra definitiva do que seja a Constituição. É uma missão por demais honrosa e de grave impacto quanto nas relações sociais e institucionais dos brasileiros e do Brasil. Esse modelo parece-me não ser o mais indicado. O STF há de ser o coroamento de uma carreira dedicada ao Direito, e não o seu ponto de partida. Em vez de 35 anos de idade, deveriam ser 35 anos de experiência jurídica, seja como prático (magistrado, membro do Ministério Público ou da Advocacia Pública ou da Defensoria Pública, ou advogado) seja como “catedrático” (professor, consultor, pesquisador etc.). A comprovação do notável saber jurídico adviria justamente dessa longa experiência e dos trabalhos jurídicos (petições, pareceres, decisões) apresentados nesse período, e não apenas de eventuais cargos que tenham sido ocupados pelos postulantes. Ministro do STF tem de chegar pronto na Corte. O STF não é lugar de quem esteja aprendendo Direito, é lugar de quem já sabe Direito. Também entendo que em vez de ser vitalício, o cargo deveria ser temporário, com mandato de 8 anos. Também defendo que o quórum de aprovação deveria ser de 2/3 dos membros (senadores) do Senado da República, de sorte a exigir que seja indicado um nome respeitável e de consenso junto à classe política e junto à sociedade. A Ordem dos Advogados do Brasil, a Procuradoria-Geral da República e o Conselho da República deveriam opinar sobre o nome do indicado para essa alta função. Supremo é Supremo. É lugar de gente séria e respeitável, seja no aspecto moral, seja no aspecto jurídico-intelectual. Insisto e faço trocadilho: Supremo é a coroação suprema de uma carreira jurídica admirável. O mesmo se aplica para os outros Tribunais Superiores e, por que não, para os demais Tribunais brasileiros, pois o exercício da magistratura pressupõe seriedade moral, sensibilidade social e alto conhecimento jurídico.” (ALVES JR., Luís Carlos Martins. O devido processo legal na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, à luz do realismo jurídico de Alf Ross. Texto no prelo para futura publicação).

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realmente tenha feito por merecer e que seja respeitado pela comunidade jurídica e pela sociedade como um todo.

Um critério que ajudaria nessa salutar escolha estaria no processo de aprovação do nome pelo Senado Federal. Em vez de ser por maioria absoluta, o indicado deveria ser aprovado por 2/3 dos Senadores. Também deveriam ser colhidos pareceres do Conselho da República, do CNJ, do CNMP, da PGR e da OAB acerca da indicação do nome de magistrados para os Tribunais do Poder Judiciário da União (STF, STJ, TST, TSE, STM, TRFs, TRTs, TREs). Isso exigiria um nome de forte impacto e de grande respeitabilidade no cenário jurídico e político. A Presidência da República não indicaria alguém apenas de sua confiança político-partidária, mas alguém de confiança da sociedade. Alguém que tenha um passado grandioso, um presente respeitado e um futuro luminoso, como já assinalei.

Também defendo um mandato de 8 anos123, sem direito a nova recondução, para o ministro do STF. Creio que nesse período o magistrado terá condições de produzir boas decisões e de deixar o seu nome timbrado na história jurídica nacional, mas desde que o Tribunal se transforme em verdadeira “Corte Constitucional” e deixe de lado as atribuições “ordinárias”.124 é preciso acreditar mais na sentença do juiz do que na força do acórdão colegiado.125

Mas quem seria esse indicado? Alguém que apresente textos jurídicos de boa qualidade. Se for um prático (magistrado, advogado, promotor etc.), apresentará suas melhores peças jurídicas (votos, decisões, pareceres, petições, memoriais etc.). Se for um

123 A rigor, à luz do princípio republicano, mandamento constitucional fundante, nenhuma pessoa poderia ocupar cargos eletivos ou decorrentes de nomeações ou indicações por mais do que 8 anos. Ou seja, ninguém poderia ocupar a mesma “função comissionada” ou o mesmo “NES” ou “DAS” por mais do que dois mandatos presidenciais. Assim, toda pessoa que tem ocupado por mais de 8 anos um “cargo de livre nomeação ou exerce uma função comissionada” deveria abrir mão desse “cargo”. Será que não há outras pessoas capazes? Será que somente essa pessoa é talhada e qualificada para esse “cargo” ou “função”? Insisto: é anti-republicano ficar mais do que 8 anos em qualquer “cargo” ou “função”. Deveria haver um rodízio de ocupantes. Essa é a mensagem do princípio republicano. Os “cargos” e “funções” públicas não têm donos. São rotativos. Penso que o prazo de 8 anos seja mais do que suficiente. Logo, entendo, que todo aquele que ocupa “cargo” ou “função” há mais de 8 anos deveria ser substituído ou deveria pedir para sair. Certamente há outras pessoas qualificadas para o exercício dessas funções. É preciso viver sem os “DAS” e “NES”, sem as “pompas” e “circunstâncias” dos cargos. é preciso um pouco mais de igualdade republicana na administração brasileira.

124 A mudança de competência do STF se faz urgente. O tribunal deveria julgar apenas os recursos extraordinários e os habeas corpus em face dos acórdãos dos Tribunais Superiores. E deveria julgar apenas as ações diretas de inconstitucionalidade, as ações declaratórias de constitucionalidade e as arguições de descumprimento de preceito fundamental. E só. Todas as ações, exceto as citadas, deveriam começar na primeira instância, sem qualquer tipo de privilégio. Dever-se-ia reinstituir a “avocatória” para todos os Tribunais, de modo que em situações excepcionais o tribunal avocasse uma determinada questão. Deveria ser extinto o “foro privilegiado”. O “privilégio de função” é anti-republicano. O foro deveria ser apenas territorial para o ocupante de cargos públicos/políticos. Mas, lamentavelmente, neste País, nem todos querem ser tratados como iguais. Estamos longe da ideia de “igualdade complexa”, vivemos a era da “igualdade simples”. Traduzindo para nossa realidade. Na “igualdade simples” o “poderoso” (presidente, ministro, senador, empresário etc.) quer ser tratado como “poderoso” o tempo todo e em todo lugar, inclusive na fila da padaria ou no consultório médico. Ou seja, essa pessoa “poderosa” quer levar os seus “títulos” para qualquer “esfera da vida”. Em um jogo de futebol, por exemplo, ele não é apenas mais um jogador, mas é um “ministro” e quer jogar, mesmo sendo um “perna-de-pau” (WALzER, Michael, Esferas da Justiça, Martins Fontes, São Paulo, 2003).

125 É preciso confiar na primeira instância. Os receios contra os “abusos judiciários” em relação aos magistrados de primeiro grau são infundados. Pessoalmente, confio muito mais na sentença de um juiz aprovado em dificílimo concurso público do que na decisão de um magistrado nomeado graças aos seus contactos políticos. Quem merece maior credibilidade: alguém que estudou muito e foi aprovado em um certame sacrificante ou quem conseguiu sua nomeação graças à “magia dos encantos políticos”?

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catedrático (professor, pesquisador, consultor etc.), apresentará as suas melhores produções acadêmicas (teses, artigos, livros etc.). Mas deverá apresentar o que foi realmente escrito e produzido por si mesmo. Não vale o que foi escrito pelos assessores ou demais “ghost writers”. Ou seja, tem de ser produção de próprio “punho”. O trabalho de um magistrado consiste em produzir manifestações judiciais (jurídicas), logo é imperioso verificar o que ele já produziu, o seu entendimento pessoal.126

Tenho absoluta certeza de que há no cenário jurídico nacional homens e mulheres que preencham plenamente esses requisitos constitucionais, basta o gabinete presidencial buscar os nomes apropriados para essa alta função da República e que o Presidente tenha compromissos apenas com o bem do Brasil, e não use o STF para premiar a amigos ou para favorecer a aliados, mas, se for de escolher entre os seus amigos e aliados, que escolha quem preencha os aludidos requisitos do notável saber jurídico e da reputação ilibada.127 Isso já seria um bálsamo.

Entretanto, mais do que mudar o texto constitucional, é preciso respeitar o que já manda a Constituição: notável saber jurídico e reputação ilibada. Acima indiquei como isso pode ser aquilatado. Espera-se da pessoa ocupante da elevada função de Presidente da República que cumpra com o seu dever constitucional e escolha alguém à altura da suprema magistratura.128 Espera-se que o Senado Federal cumpra com a sua missão constitucional e sabatine o postulante. E que nós, povo e sociedade, participemos do processo com a nossa vigilância e cobrança, por meio das nossas instituições (OAB, associações, sindicatos, partidos políticos, igrejas etc.). Nós somos os verdadeiros guardiães e defensores da Constituição. Não devemos delegar isso para ninguém nem para qualquer instituição.

É indispensável que nas próximas nomeações, tanto para os tribunais de segundo grau, quanto para os superiores ou para o STF, os mandamentos constitucionais sejam levados a sério. A sociedade brasileira agradeceria penhoradamente. A rigor, o governante, se não for vigiado e constrangido, tende a abusar do poder que possui. é da natureza do poder o seu abuso. é preciso constituir estruturas que evitem esses abusos. Mas, insisto nessa cantilena, é necessário um povo vigilante.129

126 A despeito da existência de excelentes assessores, não são esses – os assessores – que serão sabatinados, nem são eles os verdadeiros magistrados. Magistrado é magistrado. Assessor é assessor.

127 Cuide-se, a bem da verdade, que nas duas nomeações que estiveram sob sua responsabilidade a Presidenta Dilma Roussef indicou dois respeitáveis magistrados com mais de 35 anos de carreira. Que Sua Excelência mantenha essa orientação: ilustrados juristas com mais de 35 anos de experiência profissional.

128 Segundo Lêda Boechat Rodrigues (História do Supremo Tribunal Federal, Rio de Janeiro, editora Civilização Brasileira, 1967, p. 110), o Presidente da República Afonso Penna teria constrangido a Pedro Lessa para que aceitasse o cargo de ministro do STF dizendo-lhe que a Constituição lhe determinava escolher o melhor jurista e que ele cumprira com o dever constitucional e que Pedro Lessa deveria cumprir com o dele: aceitar o cargo. Velhos tempos. Segundo noticia a imprensa há uma guerra suja de dossiês e de troca de apoios e favores para as nomeações para os cargos da magistratura.

129 Como pai de dois pequeninos filhotes (um de 6 anos e outro de 4) tenho assistido a inúmeros filmes infantis. Em um deles - Procurando Nemo (Finding Nemo, Direção de Andrew Stanton, Produção da Pixar/Disney, Estados Unidos, 2003), há as interessantes figuras dos “tubarões vegetarianos”. Um “tubarão vegetariano” contraria a sua natureza animal, a sua essência existencial. No entanto, assim que ele sente o “cheiro e o sabor do sangue”, ele volta a sua essência e natureza. Pois bem, o mesmo sucede com aquele que detém o poder. Ele pode até se controlar, mas na primeira oportunidade para abusar, ele tende a abusar. é da sua essência, é da natureza do poder o seu abuso. E isso se aplica para todos: Presidente da República, Ministros de Estado, Governadores, Prefeitos, Parlamentares, Magistrados, Policiais etc. Eis a razão de ser das leis e da Constituição: limitar o poder para que ele – o poder – não seja objeto de abusos. Mas só boas leis não bastam, precisamos de boas pessoas. As leis e os homens devem ser justos e decentes.

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Mas, para finalizar este tópico, creio que a principal causa da crise do Judiciário brasileiro não está na sua cúpula, mas na base. Digo melhor. Está na falta de executoriedade imediata das sentenças judiciais. Se, neste País, sentença exarada, em conformidade com os ditames do ordenamento jurídico, fosse sentença cumprida, a magistratura gozaria de enorme respeitabilidade e a cultura dos profissionais do Direito seria outra, pois em vez de aguardar o trânsito em julgado para cumprir a ordem judicial, as partes e principalmente os seus representantes processuais mudariam a sua atuação junto à primeira instância. E os juízes e tribunais de instância ordinária, que hoje servem apenas como “órgão de passagem”, seriam mais cuidadosos com as suas sentenças, pois o seu erro poderia causar um grande prejuízo. é um risco que se corre. Penso que esse preço deva ser pago.

As Funções Essenciais à Justiça

A Constituição estabelece como Funções Essenciais à Justiça o Ministério Público, a Advocacia Pública, a Defensoria Pública e a Advocacia (arts. 126 a 135, CF atualizada até a EC 70/2012). O Poder Judiciário é o realizador da Justiça. Essas mencionadas Funções não são a Justiça, mas essenciais à ela. Seriam as Funções Essenciais um 4º Poder? A resposta é negativa. Três são os Poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário). Nesse quadro, onde estariam enquadrados essas Funções Essenciais? A advocacia estaria enquadrada em algum dos Poderes? Não. A advocacia não é atividade que se exerce em nome do Estado, nem é praticada por agentes remunerados pelo Estado. É uma profissão livre.

E o Ministério Público seria um 4º Poder? Não. é órgão estatal pois age em nome do Estado e é financiada pelos cofres do Estado. Estaria no Poder Legislativo? Não, pois não legisla nem é órgão auxiliar do Parlamento. Estaria no Poder Judiciário? Não, pois não julga nem decide questão alguma e não é órgão auxiliar da Magistratura. Logo, estaria dentro da alçada do Poder Executivo, pois suas funções são eminentemente executivas, visto que age de ofício e age provocando os outros órgãos públicos e demais instituições sociais. Cuide-se que o Ministério Público tem autonomia financeira, administrativa e funcional.

E a Advocacia Pública? Assim como o Ministério Público é instituição que age em nome do Estado e é por ele financiada, não estando na órbita nem do Legislativo nem do Judiciário. Resta-lhe apenas o Executivo. O mesmo sucede com a Defensoria Pública.

Mas qual a diferença entre essas Funções Essenciais? Ontologicamente não há diferença entre essas Funções Essenciais, pois todas agem provocando o Judiciário. O Ministério Público provoca em defesa da sociedade. A Advocacia Pública provoca em defesa do Estado e do Governo. A Defensoria Pública provoca em defesa dos mais carentes e necessitados. A Advocacia tem atribuição residual: provoca em defesa de todos que não sejam alcançados pelo Ministério Público ou pela Advocacia Pública ou pela Defensoria Pública.

Não há diferença ontológica entre as instituições estatais componentes das Funções Essenciais à Justiça. Tanto o membro do Ministério Público quanto o membro da Advocacia Pública ou o membro da Defensoria Pública postulam (requerem ou opinam) perante membro do Poder Judiciário (magistrado ou tribunal). Portanto, quem postula está no mesmo plano de quem postula. Quem decide está no mesmo plano de quem decide. Agora quem postula não está no mesmo plano de quem decide. Postular é uma faculdade. Decidir é um poder. Uma postulação não cria direitos nem deveres vinculantes e obrigatórios. Uma decisão cria direitos e deveres vinculantes e obrigatórios. Não há crime de desobediência

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à postulação (ou petição) de promotor, de advogado ou de defensor, mas há crime de desobediência à decisão (ordem) judicial.

Daí porque, a despeito de o texto constitucional aproximar o regime jurídico dos membros do Ministério Público com o regime jurídico dos membros do Poder Judiciário, essa “similitude” não é a mais acertada. O regime jurídico dos membros do MP deve ser similar ao dos membros da Advocacia Pública e da Defensoria Pública.

Seguindo o traçado constitucional, o Ministério Público é dividido em duas espécies: o da União e o dos Estados. O da União é subdividido em Federal, do Trabalho, Militar e do Distrito Federal e Territórios. A Constituição de 1988 fortaleceu o papel social do Ministério Público. A sociedade brasileira espera dos membros dessa importante instituição o rigoroso cumprimento de suas obrigações normativas: a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. A Constituição deu aos membros do Parquet uma estrutura normativa que lhes permitir agir com desassombro e combatividade.

Falo sobre a Advocacia Pública, que é a instituição que defende o Estado e o Governo (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) e auxilia juridicamente o administrador público no exercício de suas atribuições. Há advocacia pública (melhor seria estatal) de âmbito federal, de âmbito estadual, de âmbito distrital e de âmbito municipal. No caso da advocacia pública federal esta nasceu de uma “costela” do Ministério Público Federal, acrescida da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e das procuradorias jurídicas das autarquias e fundações públicas federais. AGU e MPF são “irmãos siameses”. Por isso defendo que o regime jurídico dos membros das carreiras da AGU deve ser similar ao dos membros do Ministério Público.

Nos últimos 20 anos os membros da advocacia-geral da União têm conseguido granjear considerável avanço institucional, mas ainda é profundo o fosso que separa os advogados públicos federais dos membros do MPF. E esse fosso não é só de caráter remuneratório. é de autoestima e de respeito. Também carecem os advogados públicos federais de autonomia funcional, dentro de suas faculdades e atribuições, para que possam agir em obediência somente às Leis e à Constituição.130

130 Tramita no CNJ uma questão acerca da cessão de advogados públicos federais para a assessoria de magistrados. Sobre esse tema evolui de entendimento. Outrora não via problema algum. Via, inclusive, como algo salutar e que prestigiaria a carreira. hoje penso diferente. Creio que um advogado público federal não deva ser assessor de ninguém. Nem de magistrado, nem de membro do Ministério Público ou de membro da Defensoria Pública. Isso, ao meu sentir, é, como diriam os antigos romanos uma “diminuição de capacidade”. é colocar (e se colocar) em situação de subalternização. Advogado público federal não é subalterno de magistrado. é postulante perante esse magistrado. Defendo a proibição da cessão de advogado público federal para assessoria nos Tribunais, no MPF e na DPF. Para prestar assessoria, os magistrados dispõem de analistas aprovados em concurso público. Essa tarefa, de assessoria, é para analista, não é para advogado público federal. Um membro da advocacia pública federal deve prestar assessoria/consultoria a Ministro de Estado, ao Presidente de uma autarquia ou fundação pública, a um Parlamentar federal, pois este não tem conhecimentos jurídicos e a palavra do advogado público federal seria “lei” para ele. Mas nunca para um magistrado, seja de que tribunal for, inclusive do STF, STJ, TRFs etc. Sei que o principal atrativo, além da experiência de atuar em um gabinete judicial, é o de caráter econômico e que há um substantivo aumento na remuneração do advogado público federal. Mas esse problema remuneratório só revela o quanto nós, advogados públicos federais, estamos recebendo um tratamento remuneratório inadequado, se comparados aos membros do MPF. Alguém vislumbra um procurador da República assessor de magistrado? Ou um defensor público? Ouvi de um colega procurador de Estado (advogado público) que nenhum membro de sua PGE aceitaria ser assessor de qualquer magistrado, seja de que tribunal for, nem mesmo do STF ou do STJ. Está mais do que na hora de nós advogados públicos federais nos opormos a essa prática que nos subalterniza e que depõe contra a dignidade de nossa função. Mas o caminho encontra grandes obstáculos e inimigos dentro da

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Mas não devemos perder as esperanças nem baixar a guarda na luta pelas prerrogativas em defesa de uma instituição fundamental para consolidar o caráter legítimo e lícito do Estado brasileiro. Sem advocacia pública forte o administrador público é tentado ao cometimento de abusos governamentais. O advogado público é o primeiro “dique” de contenção contra os eventuais desvios do poder público.

Passo a falar da Defensoria Pública, que é o órgão estatal incumbido da assistência jurídica aos necessitados e carentes (hipossuficientes econômicos), que não podem contratar advogados nem são assistidos pelos membros do Ministério Público. é instituição reveladora da face humanística e da bondade constitucional. Os defensores públicos têm a difícil missão de, na seara criminal, defender os réus pobres. Normalmente esses réus, os pobres, que não podem contratar advogados particulares, ficam na dependência da intimorata atuação dos defensores. Sucede, todavia, que os investimentos públicos na Defensoria não têm sido suficientes para que esse órgão consiga alcançar e defender os miseráveis do Brasil, que ainda são vergonhosamente muitos. A Defensoria Pública é dividida em Federal e Estadual, assim como o Ministério Público.

Como dito, neste país as desigualdades sociais e econômicas são obscenas. Neste país, desgraçadamente, a pobreza é acintosa e pornográfica. É uma triste chaga que ainda possuímos. Apesar de todos os avanços econômicos e sociais obtidos nos últimos 20 anos, há um contingente de pessoas desumanizadas, que nada têm e possuem, e que são tratadas sem qualquer consideração e respeito. é um dos mandamentos normativos constitucionais: erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais (art. 3º, III, CF). Não é favor nem benesse governamental. é dever jurídico e moral. é tarefa não só do Estado, mas de toda a coletividade. é uma obrigação ética, daquele que pode ajudar, ajudar a quem precisa. Mas promessas jurídico-constitucionais não reduzem pobreza.131 Pobreza se acaba com desenvolvimento econômico e investimentos sociais. 132 E, reitero, uma das colunas de viabilização do desenvolvimento econômico está na seriedade dos magistrados. Magistrados sérios, Instituições respeitáveis, ordenamento jurídico confiável. Sem isso, o desenvolvimento econômico e as melhorias das condições sociais ficam frágeis.

Retomo a questão da paridade constitucional entre as Funções Essenciais à Justiça. Conquanto o texto constitucional tenha aproximado juridicamente o membro do Ministério Público com o membro da magistratura, entendo que essa não seja a melhor solução, pois são suas funções ontologicamente distintas, como assinalei. No entanto, reconheço que graças a esse regime jurídico-constitucional similar, os membros do Ministério Público conquistaram importantes prerrogativas e vitórias corporativistas.

própria instituição, que muitas vezes tem sido conduzida por pessoas mais preocupadas consigo próprias e com suas ambições pessoais ou profissionais do que com o desenvolvimento da corporação. Há, inclusive, quem compare a advocacia pública federal a um exército, sendo os advogados públicos federais verdadeiros soldados e o ministro-chefe da Instituição como um grande general. Terrível comparação. Mas se eu fosse usar dessa comparação militar, faria como o poeta alemão: “leões comandados por cordeiros”. Se a AGU é um exército, ela tem sido um exército de bravos leões comandados por mansos e obedientes cordeiros. é o que penso.

131 Sugiro a leitura de Manual do Perfeito Idiota Latinoamericano e A Volta do Idiota, livros de autoria de Plinio Apuleyo Mendoza, Carlos Alberto Montagner e Mario Vargas Llosa. Esses livros são um “soco no estômago” de quem acredita que as promessas/mentiras normativas melhoram a realidade social e econômica das pessoas, e que na América Latina o Estado é um dos grandes responsáveis pela situação de opressão que muitos vivenciam.

132 Sugiro a leitura de Saga brasileira – a longa luta de um povo por sua moeda, autoria de Miriam Leitão.

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Nessa toada, penso que o regime jurídico dos membros do Ministério Público deve ser estendido aos membros da Advocacia Pública e da Defensoria Pública, pelas razões já alinhavadas. Mas, é preciso ser coerente. Se os membros da advocacia pública querem direitos similares, também devem ter obrigações similares aos dos membros do Parquet. Esse é um tema que merece ser objeto de reflexão: quem quer os mesmos direitos deve ter os mesmos deveres e responsabilidades.

Por fim, resta a advocacia. Em verdade, no cenário jurídico ou se “pede” ou se “decide”. Todo aquele que pede/postula/opina/requer/suplica exerce a advocacia. Quem “decide” exerce a judicatura. Em suma, ou se é advogado ou se é magistrado. Assim, como aludimos, o promotor é um advogado (da sociedade). O defensor é um advogado (dos carentes). O advogado público é, por óbvio, um advogado, só que tem como “cliente” o Estado/Governo. Todos eles pedem, postulam, requerem, opinam, mas nenhum decide. Quem decide é juiz ou tribunal. Quem manda prender ou soltar é juiz ou tribunal. Promotor pede (ou opina) para prender ou soltar. Defensor, em rigor, pede para soltar. Advogado também. Mas quem decide, insisto, é o juiz/tribunal. Por isso, reitero que não há paridade ontológica entre os que “postulam” e os que “decidem”, mas há paridade ontológica entre todos aqueles que “postulam”.

A advocacia é atividade profissional que orienta ou defende os interesses e os direitos das pessoas (físicas ou jurídicas). O advogado tem compromisso sagrado com o seu cliente. Ao aceitar o patrocínio de uma causa, o advogado se torna escravo de suas promessas. A história da advocacia brasileira é das mais ricas e cheia de grandes profissionais que se destacaram na luta intimorata em defesa dos seus clientes, a despeito das pressões econômicas, sociais e políticas. Basta recordar os nomes dos gigantes Rui Barbosa e Sobral Pinto. Dois monstros sagrados da advocacia brasileira.

Nessa luta, especialmente nos momentos de castração das franquias políticas, surgia a força da instituição da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB. A OAB, além de ser uma entidade corporativa, é uma instituição social em defesa da democracia e da ordem jurídica. A OAB é mais do que uma entidade de classe. Ela é uma importante “coluna” social em defesa dos interesses públicos do povo brasileiro e tem sido fundamental na consolidação da democracia brasileira.

Apesar disso, a OAB tem uma jaça em sua estrutura. O Presidente do Conselho Federal da OAB é “biônico”. Ele não é eleito diretamente pelos advogados brasileiros, mas indiretamente por um colégio eleitoral composto pelos Conselheiros Federais. Essa ausência de eleição direta enfraquece politicamente o Presidente do Conselho Federal, pois ele carece do necessário coeficiente de legitimidade representativa. Os advogados brasileiros olham para o Presidente do Conselho Federal não enxergam o seu legítimo representante, pois não participaram do processo de escolha dele. Não votaram nele. é preciso mudar essa estrutura. A OAB deve ser aberta, republicana e democrática. Não são convincentes as razões expostas em sentido contrário. Creio que todo advogado que tenha pelo menos 25 anos de experiência advocatícia poderia postular a candidatura ao cargo de Presidente da OAB federal. Sou um gerontocrata. Para mim, experiência de vida é indispensável para quem deseja ocupar funções sociais relevantes.

Mas quem é o advogado? é aquele que não sendo defensor, promotor, procurador público, ou seja, alguém que não tenha vínculo algum com o Estado, orienta ou defende quem lhe contrate.

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Para finalizar este tópico. As Funções Essenciais à Justiça mereceram do constituinte um destaque normativo privilegiado. há um motivo para isso. é que sem essas funções a Justiça ficaria “capenga” e dificilmente seria realizada. Mas, insisto, por melhor que seja o “advogado” (promotor, defensor, procurador público, consultor...) de nada adiantarão os seus esforços se os magistrados não forem honrados e corajosos. Os membros das Funções Essenciais à Justiça têm o sagrado direito de influir com suas peças, mas quem efetivamente tem o poder da decisão são os membros do Poder Judiciário (juízes e tribunais).

Conclusões

Eis algumas das nossas principais conclusões.

The West Wing, apesar de sua liberdade artística, capturou adequadamente a essência do modelo americano de escolha dos magistrados ( Justices) da Suprema Corte. Revelou como os americanos gostariam que os seus magistrados fossem escolhidos e quais os critérios relevantes para as suas escolhas.

O modelo judicial americano não serve para a realidade brasileira. A nossa experiência cultural e as nossas necessidades não se conformariam com as nomeações de todos os magistrados do Poder Judiciário da União feitas diretamente pelo Presidente da República e que a dos magistrados do Poder Judiciário dos Estados feitas pelos Governadores ou eleitos pelo povo.

Com todos os seus “defeitos”, o concurso público é o melhor critério de escolha dos magistrados e de todos os “funcionários” que agem em nome do Estado ou que sejam pagos pelos cofres públicos.

Todavia, dos americanos devemos imitar a intensa participação social e pública no processo de escolha dos seus magistrados, especialmente dos que irão compor a bancada da Suprema Corte. O ocupante de cargo de magistrado do Supremo Tribunal é relevante demais para não ser vigiado, em todos os seus passos, e ter sua vida perscrutada em todas as esferas.

No Brasil a magistratura nos tribunais deve ser um prêmio de coroação a uma longa experiência e vida dedicada ao Direito. A indicação ao STF deve ser um reconhecimento a uma pessoa que seja justa e honrada, e que tenha um invejável currículo profissional, com sólida produção jurídica. Que sejam os indicados para os Tribunais pessoas admiráveis e respeitáveis. Notório saber jurídico e reputação ilibada não são “conceitos” vazios e indeterminados. São conceitos fechados. Todos sabemos quem os possui e quem não os possui.

As Funções Essenciais à Justiça são instituições relevantes para a adequada prestação jurisdicional e os seus membros devem ser tratados com respeito e consideração e devem ser livres e autônomos no exercício de suas atribuições, devendo obediência apenas ao Direito e à Justiça. Não há diferença ontológica entre os membros das Funções Essenciais à Justiça: todos postulam ou procuram influenciar os membros do Poder Judiciário. A diferença ontológica está entre os que “pedem” e os que “decidem”. Quem “pede” exerce um direito facultativo. O seu ato não causa prejuízos, nem pode ser desobedecido. Quem “decide” exerce um poder real. O seu ato decisório pode causar danos e prejuízos, pois altera

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a vida das pessoas. Seu ato (decisão) pode ser desobedecido. E se desobedecido, deve ser objeto de uma sanção institucionalizada.

Que nas próximas nomeações para os cargos judiciais (e para todos os demais cargos públicos) sejam mantidas as escolhas de pessoas honradas, que tenham um currículo apropriado para a respectiva função e que tenham compromissos reais com o Direito e com a Justiça.

E, para que não fique o sabor amargo de Shutruk Nahunte, evoco as sábias palavras de Winston Churchill, que foi, em minha opinião, o maior estadista do século xx e um homem que será recordado pelos próximos milênios. Eis suas palavras que tocam fundo nos corações das pessoas de bem:

O único guia para um homem é a sua consciência; o único escudo para a sua memória é a retidão e a sinceridade de suas ações (Winston Churchill, 1875-1964)133

133 Trecho de discurso de Winston Churchill em homenagem póstuma a Neville Chamberlain, morto em 10.11.1940 (LUKACS, John. Churchill e o discurso que mudou a história: sangue, trabalho, lágrimas e suor. Tradução de Maria Luiza Borges. Rio de Janeiro: Jorge zahar, 2009, p. 103).

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6. A ESCOLHA DE MINISTROS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL134

O único guia para um homem é a sua consciência; o único escudo para a sua memória é a retidão e a sinceridade de suas ações (Winston Churchill, 1875-1964)135

Retorno a um tema recorrente: a escolha de ministros para o Supremo Tribunal Federal.136 Este texto nasceu em face de recente reportagem do jornal Folha de São Paulo137 que versa sobre alguns aspectos dos bastidores da indicação do ministro Luiz Fux para o Supremo Tribunal Federal.138

Outra justificativa deste texto descansa no fato de que há uma vaga aberta no STF em decorrência da aposentadoria do ministro Ayres Britto. Logo, seja porque houve essa reportagem no aludido jornal, seja porque há uma vaga na Corte, essa discussão é sempre permanente e complexa, e merece a atenção de todos nós.

No artigo intitulado “The West Wing e os Justices da Suprema Corte dos Estados Unidos”, teci, em nota de rodapé, as seguintes considerações acerca de algumas movimentações para a ocupação da vaga de ministro do STF:

Não “fulanizo” nem jogo “carapuças”, mas enxergo algumas movimentações presentes e vejo, preocupado, os nomes de algumas figuras como lembrados para provável indicação para o Supremo Tribunal Federal. Conquanto não tenha qualquer objeção ao caráter de ninguém, alguns nomes que a imprensa tem suscitado não têm estofo jurídico para a cátedra do STF. Basta ver o currículo desses “supremáveis”. Não há nenhuma produção jurídica relevante. Não há nada, salvo a ocupação de cargos relevantes, em alguns casos. Mas a importância do cargo não torna o seu ocupante alguém importante. às vezes, até apequena o próprio cargo. No Brasil há juristas (profissionais ou catedráticos) à altura do STF. Todos sabemos quem são esses juristas com qualidades para serem alçados ao Tribunal. Também sabemos quem são aqueles que não têm nenhuma condição de serem ministros da Corte, a despeito de eventual cargo importante que tenha ocupado ou que esteja ocupando. há cargos bem maiores que os seus ocupantes. Ou melhor, há ocupantes pequenos nos grandes cargos públicos.

As minhas preocupações estão sendo confirmadas, infelizmente. Mas continuo com as mesmas ideias: o STF não é para qualquer pessoa. A rigor, a magistratura não é para qualquer um. O magistrado, seja de que grau for, deve ser alguém tecnicamente qualificado e moralmente respeitável. A qualificação técnica se afere mediante a sua produção intelectual. A sua moralidade pelo seu passado.

134 Texto publicado no JusNavigandi: www.jus.com.br.135 Trecho de discurso de Winston Churchill em homenagem póstuma a Neville Chamberlain, morto em

10.11.1940 (LUKACS, John. Churchill e o discurso que mudou a história: sangue, trabalho, lágrimas e suor. Tradução de Maria Luiza Borges. Rio de Janeiro: Jorge zahar, 2009, p. 103).

136 ALVES JR., Luís Carlos Martins. The West Wing e os Justices da Suprema Corte dos Estados Unidos. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3319, 2 ago. 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/22350>

137 FOLhA DE SÃO PAULO, domingo, 2 de dezembro de 2012. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/poder/1194617>

138 Título da reportagem: FUx LEVOU SEU CURRíCULO A DIRCEU POR VAGA NO STF.

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Sobre o ingresso na magistratura assim me manifestei:

Pessoalmente sou contrário ao quinto (ou terço) constitucional. Entendo que para ingressar na magistratura o interessado deve ser aprovado no rigoroso e sacrificante concurso público. Tem de sentar e estudar muito. Fazer carreira na judicatura e ir ascendendo para o respectivo Tribunal de “apelação” e para o respectivo “Superior” (ou STJ ou TST ou STM). O quinto (ou terço) constitucional é uma forma lícita (porém inconveniente) de ingressar na magistratura. é o ingresso pela “janela”. A famosa “oxigenação” do “quinto” é uma falácia (ou verdadeira bobagem). Advogado ou Promotor “oxigena” peticionando, argumentando, provocando a Corte. Magistrado decide. Advogado e Promotor postulam, pedem. Ademais, com a criação do CNJ já há participação da “sociedade” no Judiciário. Perdeu o sentido o quinto/terço constitucional. Abro exceção apenas para o STF, pois a “Corte Constitucional” deve ser politicamente plural, e devem ter mandato de 8 anos os seus magistrados. Mas para os demais tribunais (segundo grau e superiores) as vagas devem ser somente para magistrados de carreira, dentre sempre os mais antigos, e que tenham longos serviços prestados à sociedade. Todavia, como há essa lícita possibilidade de ingresso na magistratura, que a OAB e o Ministério Público procurem indicar bons nomes para a dignidade dessas instituições e que os Tribunais saibam escolher os seus futuros membros. Como disse, é lícito ingressar via quinto (ou terço) constitucional, mas é um “balde de água fria” para quem se submeteu ao rigoroso e sacrificante concurso público e que fez carreira na judicatura. é o que penso.

Com efeito, há apenas duas atividades no campo prático do direito: ou se postula ou se decide. O indivíduo pode ajudar à JUSTIÇA ou postulando ou decidindo. Mas, em hipótese alguma, o magistrado, aquele que vai decidir, pode dever qualquer tipo de favor. Magistrado não pode fazer campanha. Magistrado não deve entregar currículo para ninguém. Magistrado não deve se oferecer para ocupar nenhum cargo. Magistrado ou o futuro magistrado deve ser convidado, deve ser lembrado.

Mas quem pode (ou deve) ser magistrado neste País? Nesse aspecto escrevi:

Mas, vamos direto ao ponto que nos interessa: os critérios de acesso aos cargos da magistratura. Enfatizo que a magistratura é uma coroa, é um prêmio. A magistratura do STF é a coroação maior na carreira de qualquer profissional do Direito. Começarei da primeira instância para a última (o STF).

O postulante ao cargo de juiz substituto deve ter pelo menos 3 anos de atividade privativa de bacharel em Direito. Penso que essa exigência ainda não seja suficiente. Tenho que se deve exigir do candidato à magistratura pelo menos 10 anos de experiência em atividade jurídica. Direito é uma experiência. O exercício da magistratura também requer experiência. Não basta o conhecimento “científico” dos textos normativos. O juiz deve possuir experiência de vida e consciência moral para adequadamente julgar as condutas e os comportamentos de seus semelhantes. A magistratura requer sabedoria, e a sabedoria é fincada nesse tripé: ciência, consciência e experiência. Portanto, somente poderia iniciar a carreira de magistrado

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quem tivesse pelo menos 10 de experiência jurídica. Haveria a cobrança de sua ciência (conhecimento) via provas e títulos. E a consciência? Como aquilatar? Pelo passado desse candidato e pelo seu comportamento ao longo de sua vida.

E para os Tribunais? Como deveria ser o processo de recrutamento? Para os tribunais de segundo grau (TJs, TRFs, TRTs...) deveria ser proibida a promoção por merecimento. Deveria ser apenas por antiguidade. Justifico essa mudança tendo em vista que o merecimento força o candidato interessado a “bajular” os Desembargadores, os políticos influentes, os amigos dos poderosos e ao “detentor” da caneta de sua nomeação. O candidato que não seguir o roteiro de busca de apoios não consegue ser nomeado. Candidato sem apoio é candidato “morto”. Ou seja, a justa e legítima expectativa de ascender na magistratura fica condicionada aos conchavos políticos. Isso é inaceitável. Isso lança uma jaça sobre o futuro magistrado do Tribunal. Isso deve ser combatido e até mesmo proibido. há quem interessa um magistrado devedor de favores? Um magistrado devedor de favores tem a indispensável imparcialidade para julgar as causas? Um magistrado devedor de favores age com desassombro e julga os poderosos do mesmo jeito que julga os não-poderosos? Não necessito de responder.

Nessa linha, para ascender ao Tribunal de “apelação” (segundo grau), o magistrado deve ter pelo menos 10 anos de experiência judicial. Logo, o futuro desembargador deve ter pelo menos 20 anos de experiência jurídica. Esta exigência deveria se aplicar ao quinto constitucional. Ou seja, o advogado ou promotor (procurador) que for nomeado magistrado de tribunal deveria ter pelo menos 20 anos de experiência jurídica e não apenas os 10 anos atualmente exigidos. Qualquer “menino” se forma com 21 ou 22 anos. Se for amigo das pessoas certas será desembargador por volta dos 30 anos de idade. Isso é um acinte. Cadê a experiência? Magistratura é experiência. É consciência. Tribunal é coroação de uma carreira.

Nessa trilha chego nos Tribunais superiores. Para os futuros ministros há de se exigir pelo menos 20 anos de experiência judicial, se for magistrado de carreira, ou 30 anos de experiência jurídica se advier do terço/quinto constitucional reservado para a advocacia e ministério público. Insisto em uma espécie de gerontocracia na magistratura. Justifico na tese de que a sabedoria pressupõe ciência, experiência e consciência. Os ministros devem ser julgadores sábios.

Por fim, chego ao Supremo Tribunal Federal. Aqui o postulante, aquele que receberá a suprema coroa da magistratura e das carreiras jurídicas, deve ser uma pessoa sábia (ciência, experiência e consciência). Deve ser alguém admirável. Alguém cujo nome se pronuncia com reverência e que se ouve com respeito. O nome de um ministro do STF deve ser um verdadeiro “adjetivo”, como são os nomes dos advogados “Rui Barbosa”, “Pontes de Miranda”, “Miguel Reale”, “Sobral Pinto”, ou os nomes dos ministros “Pedro Lessa”, “Aliomar Baleeiro”, “Victor Nunes Leal”, “Piza e Almeida”, “Nelson hungria”, “Evandro Lins” e tantos outros gigantes

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do Direito nacional. A magistratura do Supremo é para quem realmente tenha feito por merecer e que seja respeitado pela comunidade jurídica e pela sociedade como um todo.

Um critério que ajudaria nessa salutar escolha estaria no processo de aprovação do nome pelo Senado Federal. Em vez de ser por maioria absoluta, o indicado deveria ser aprovado por 2/3 dos Senadores. Também deveriam ser colhidos pareceres do Conselho da República, CNJ, CNMP, da PGR e da OAB acerca da indicação do nome de magistrados para os Tribunais do Poder Judiciário da União (STF, STJ, TST, TSE, STM, TRFs, TRTs, TREs). Isso exigiria um nome de forte impacto e de grande respeitabilidade no cenário jurídico e político. A Presidência da República não indicaria alguém apenas de sua confiança, mas alguém de confiança da sociedade. Alguém que tenha um passado grandioso, um presente respeitado e um futuro luminoso, como já assinalei.

Também defendo um mandato de 8 anos, sem direito a nova recondução, para o ministro do STF. Creio que nesse período o magistrado terá condições de produzir boas decisões e de deixar o seu nome timbrado na história jurídica nacional, mas desde que o Tribunal se transforme em verdadeira “Corte Constitucional” e deixe de lado as atribuições “ordinárias”. é preciso acreditar mais na sentença do juiz do que na força do acórdão colegiado.

Mas quem seria esse indicado? Alguém que apresente textos jurídicos de boa qualidade. Se for um prático (magistrado, advogado, promotor etc.), apresentará suas melhores peças jurídicas (votos, decisões, pareceres, petições, memoriais etc.). Se for um catedrático (professor, pesquisador, consultor etc.), apresentará as suas melhores produções acadêmicas (teses, artigos, livros etc.). Mas deverá apresentar o que foi realmente escrito e produzido por si mesmo. Não vale o que foi escrito pelos assessores ou demais “ghost writers”. Ou seja, tem de ser produção de próprio “punho”. O trabalho de um magistrado consiste em produzir manifestações judiciais (jurídicas), logo é imperioso verificar o que ele já produziu, o seu entendimento pessoal.

Tenho absoluta certeza de que há no cenário jurídico nacional homens e mulheres que preencham plenamente esses requisitos constitucionais, basta o gabinete presidencial buscar os nomes apropriados para essa alta função da República e que o Presidente tenha compromissos apenas com o bem do Brasil, e não use o STF para premiar a amigos ou para favorecer a aliados, mas, se for de escolher entre os seus amigos e aliados, que escolha quem preencha os aludidos requisitos do notável saber jurídico e da reputação ilibada. Isso já seria um bálsamo.

Entretanto, mais do que mudar o texto constitucional, é preciso respeitar o que já manda a Constituição: notável saber jurídico e reputação ilibada. Acima indiquei como isso pode ser aquilatado. Espera-se da pessoa ocupante da elevada função de Presidente da República que cumpra com o seu dever constitucional e escolha alguém à altura da suprema magistratura. Espera-se que o Senado Federal cumpra com a sua missão constitucional e sabatine

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o postulante. E que nós, povo e sociedade, participemos do processo com a nossa vigilância e cobrança, por meio das nossas instituições (OAB, associações, sindicatos, partidos políticos, igrejas etc.). Nós somos os verdadeiros guardiães e defensores da Constituição. Não devemos delegar isso para ninguém nem para qualquer instituição.

É indispensável que nas próximas nomeações, tanto para os tribunais de segundo grau, quanto para os superiores ou para o STF, os mandamentos constitucionais sejam levados a sério. A sociedade brasileira agradeceria penhoradamente. A rigor, o governante, se não for vigiado e constrangido, tende a abusar do poder que possui. é da natureza do poder o seu abuso. é preciso constituir estruturas que evitem esses abusos. Mas, insisto nessa cantilena, é necessário um povo vigilante.

Mas, para finalizar este tópico, creio que a principal causa da crise do Judiciário brasileiro não está na sua cúpula, mas na base. Digo melhor. Está na falta de executoriedade imediata das sentenças judiciais. Se, neste País, sentença exarada, em conformidade com os ditames do ordenamento jurídico, fosse sentença cumprida, a magistratura gozaria de enorme respeitabilidade e a cultura dos profissionais do Direito seria outra, pois em vez de aguardar o trânsito em julgado para cumprir a ordem judicial, as partes e os seus representantes processuais, principalmente, mudariam a sua atuação junto à primeira instância. E os juízes e tribunais de instância ordinária, que hoje servem apenas como “órgão de passagem”, seriam mais cuidadosos com as suas sentenças, pois o seu erro poderia causar um grande prejuízo. é um risco que se corre. Penso que esse preço deva ser pago.

E para o Supremo Tribunal Federal? Escrevi:

Qualquer brasileiro nato com mais de 35 anos pode ser ministro do STF? Não. Não é qualquer um que pode ser alçado às elevadas funções de ministro da Corte. Tem de ser possuidor de notável saber jurídico e de reputação ilibada. A razão de ser desses requisitos consiste na missão que se lhe destina: palavra definitiva do que seja a Constituição. É uma missão por demais honrosa e de grave impacto quanto nas relações sociais e institucionais dos brasileiros e do Brasil. Esse modelo parece-me não ser o mais indicado. O STF há de ser o coroamento de uma carreira dedicada ao Direito, e não o seu ponto de partida. Em vez de 35 anos de idade, deveriam ser 35 anos de experiência jurídica, seja como prático (magistrado, membro do Ministério Público ou da Advocacia Pública ou da Defensoria Pública, ou advogado) seja como “catedrático” (professor, consultor, pesquisador etc.). A comprovação do notável saber jurídico adviria justamente dessa longa experiência e dos trabalhos jurídicos (petições, pareceres, decisões) apresentados nesse período, e não apenas de eventuais cargos que tenham sido ocupados pelos postulantes. Ministro do STF tem de chegar pronto na Corte. O STF não é lugar de quem esteja aprendendo Direito, é lugar de quem já sabe Direito. Também entendo que em vez de ser vitalício, o cargo deveria ser temporário, com mandato de 8 anos. Também defendo que o quórum de aprovação deveria ser de 2/3 dos membros (senadores) do Senado da República, de sorte a exigir que seja indicado um nome respeitável e de consenso junto à classe política

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e junto à sociedade. A Ordem dos Advogados do Brasil, a Procuradoria-Geral da República e o Conselho da República deveriam opinar sobre o nome do indicado para essa alta função. Supremo é Supremo. é lugar de gente séria e respeitável, seja no aspecto moral, seja no aspecto jurídico-intelectual. Insisto e faço trocadilho: Supremo é a coroação suprema de uma carreira jurídica admirável. O mesmo se aplica para os outros Tribunais Superiores e, por que não, para os demais Tribunais brasileiros, pois o exercício da magistratura pressupõe seriedade moral, sensibilidade social e alto conhecimento jurídico.

Vivemos a crise de confiabilidade no Poder Judiciário. Como solucionar uma crise de confiança? Confiando em quem efetivamente merece confiança. Escrevi:

É preciso confiar na primeira instância. Os receios contra os “abusos judiciários” em relação aos magistrados de primeiro grau são infundados. Pessoalmente, confio muito mais na sentença de um juiz aprovado em dificílimo concurso público do que na decisão de um magistrado nomeado graças aos seus contactos políticos. Quem merece maior credibilidade: alguém que estudou muito e foi aprovado em um certame sacrificante ou quem conseguiu sua nomeação graças à “magia dos encantos políticos”?”

Retorno ao STF. Deveria ser proibido que qualquer eventual merecedor do cargo de ministro da Corte faça campanha e busque apoio político. Magistrado não deve fazer política, nem deve se oferecer. Quem sabe teremos a oportunidade de que em todas as nomeações para os Tribunais (STF, STJ, TST, TSE, TRFs, TRTs, TJs...) ocorra o que sucedeu com o gigante Pedro Lessa. Escrevi:

Segundo Lêda Boechat Rodrigues (história do Supremo Tribunal Federal, Rio de Janeiro, editora Civilização Brasileira, 1967, p. 110), o Presidente da República Afonso Penna teria constrangido a Pedro Lessa para que aceitasse o cargo de ministro do STF dizendo-lhe que a Constituição lhe determinava escolher o melhor jurista e que ele cumprira com o seu dever constitucional e que Pedro Lessa deveria cumprir com o dele: aceitar o cargo. Velhos tempos. Segundo noticia a imprensa há uma guerra suja de dossiês e de troca de apoios e favores para as nomeações para os cargos da magistratura.

Devemos ter uma esperança realista. Devemos estar vigilantes. Supremo Tribunal Federal não é para quem quer. é para quem pode. E quem pode? Quem tenha notável saber jurídico e reputação ilibada. Todos sabemos quem possui esses requisitos. Também sabemos quem não os possui.

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7. ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO: NOTÁVEL SABER JURÍDICO E REPUTAÇÃO ILIBADA139

hierárquicas são as relações entre as pessoas e as categorias, hierarquia muitas vezes sutil que se insinua na etiqueta e nas cortesias. O rapapé e as mesuras, o salamaleque e as zumbaias traem o acatamento de uma faixa de sociedade à outra. Há, no exagero, misto de respeito e escárnio, humilhação submissa e ironia, que a melhor sedimentação iria substituir pela polidez e urbanidade. (RAyMUNDO FAORO, Machado de Assis: a pirâmide o trapézio)140.

O Advogado-Geral da União é o chefe da Advocacia-Geral da União, nos termos do § 1º do artigo 131 da Constituição Federal.141 Segundo o texto constitucional, são requisitos para o cargo a idade mínima de trinta e cinco anos, o notável saber jurídico e a reputação ilibada. Os mesmos requisitos de um ministro do Supremo Tribunal Federal. Logo, os cuidados que o Presidente da República deve ter na escolha do chefe da AGU devem ser os mesmos cuidados relativos à escolha de ministro do STF. Ou seja, para a Constituição, o ministro-chefe da AGU deve possuir os mesmos predicados de um ministro do STF: notável saber jurídico e reputação ilibada. E, claro, no mínimo trinta e cinco anos de idade. Nessa perspectiva, todo ministro-chefe da AGU é um potencial candidato a ministro do STF. E, por esse mesmo caminho, a chefia da AGU pode ser um cargo em potência de magistrados aposentados do STF ou de qualquer outra instância. A dignidade constitucional da AGU requer do seu chefe a posse (e propriedade) de notável saber jurídico e de reputação ilibada, conjuntamente.

Sobre a escolha de ministros do STF já tivemos oportunidade de nos manifestar em outras ocasiões.142 Para a chefia ministerial da AGU a nossa visão é similar. Não basta ser da confiança pessoal e política do Presidente da República, há de possuir notável saber jurídico e reputação ilibada. Não olharemos para o passado nem analisaremos o presente. A história do futuro é que nos interessa. Nada obstante, este breve texto descansa a sua justificativa nos recentes episódios policialescos envolvendo a Advocacia-Geral da União e o gabinete de seu ministro-chefe, decorrentes da intitulada “Operação Porto Seguro”.143

Sobre a Advocacia Pública, no mencionado artigo intitulado “The West Wing e os Justices da Suprema Corte dos EUA”144 tecemos as seguintes considerações:

139 Texto publicado no JusNavigandi: www.jus.com.br. 140 FAORO, Raymundo. Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio. 4ª edição. São Paulo: Globo, 2001, p. 23. 141 Art. 131. A Advocacia-Geral da União é a instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a

União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo.

§ 1º. A Advocacia-Geral da União tem por chefe o Advogado-Geral da União, de livre nomeação pelo Presidente da República dentre cidadãos maiores de trinta e cinco anos, de notável saber jurídico e reputação ilibada.

142 ALVES JR., Luís Carlos Martins. The West Wing e os Justices da Suprema Corte dos Estados Unidos. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3319, 2 ago. 2012. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/22350; ALVES JR., Luís Carlos Martins. A escolha de ministros do Supremo Tribunal Federal. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3442, 3 dez. 2012. Disponível em http://jus.com.br/revista/texto/23150.

143 Basta lançar o seguinte argumento “operação porto seguro agu” em qualquer site de busca na internet que surgirá uma pletora de informações, reportagens, artigos sobre destacadas figuras da AGU supostamente envolvidas em atividades juridicamente ilícitas e moralmente inaceitáveis.

144 ALVES JR., Luís Carlos Martins. The West Wing e os Justices da Suprema Corte dos Estados Unidos. Jus Navigandi,

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E a Advocacia Pública? Assim como o Ministério Público é instituição que age em nome do Estado e é por ele financiada, não estando na órbita nem do Legislativo nem do Judiciário. Resta-lhe apenas o Executivo. O mesmo sucede com a Defensoria Pública.

Mas qual a diferença entre essas Funções Essenciais? Ontologicamente não há diferença entre essas Funções Essenciais, pois todas agem provocando o Judiciário. O Ministério Público provoca em defesa da sociedade. A Advocacia Pública provoca em defesa do Estado e do Governo. A Defensoria Pública provoca em defesa dos mais carentes e necessitados. A Advocacia tem atribuição residual: provoca em defesa de todos que não sejam alcançados pelo Ministério Público ou pela Advocacia Pública ou pela Defensoria Pública.

Não há diferença ontológica entre as instituições estatais componentes das Funções Essenciais à Justiça. Tanto o membro do Ministério Público quanto o membro da Advocacia Pública ou o membro da Defensoria Pública postulam (requerem ou opinam) perante membro do Poder Judiciário (magistrado ou tribunal). Portanto, quem postula está no mesmo plano de quem postula. Quem decide está no mesmo plano de quem decide. Agora quem postula não está no mesmo plano de quem decide. Postular é uma faculdade. Decidir é um poder. Uma postulação não cria direitos nem deveres vinculantes e obrigatórios. Uma decisão cria direitos e deveres vinculantes e obrigatórios. Não há crime de desobediência à postulação (ou petição) de promotor, de advogado ou de defensor, mas há crime de desobediência à decisão (ordem) judicial.

Daí porque, a despeito de o texto constitucional aproximar o regime jurídico dos membros do Ministério Público com o regime jurídico dos membros do Poder Judiciário, essa “similitude” não é a mais acertada. O regime jurídico dos membros do MP deve ser similar ao dos membros da Advocacia Pública e da Defensoria Pública.

Seguindo o traçado constitucional, o Ministério Público é dividido em duas espécies: o da União e o dos Estados. O da União é subdividido em Federal, do Trabalho, Militar e do Distrito Federal e Territórios. A Constituição de 1988 fortaleceu o papel social do Ministério Público. A sociedade brasileira espera dos membros dessa importante instituição o rigoroso cumprimento de suas obrigações normativas: a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. A Constituição deu aos membros do Parquet uma estrutura normativa que lhes permitir agir com desassombro e combatividade.

Falo sobre a Advocacia Pública, que é a instituição que defende o Estado e o Governo (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) e auxilia juridicamente o administrador público no exercício de suas atribuições. há advocacia pública (melhor seria estatal) de âmbito federal, de âmbito estadual, de âmbito distrital e de âmbito municipal. No caso da advocacia pública federal esta nasceu de uma “costela” do Ministério Público Federal, acrescida da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e das

Teresina, ano 17, n. 3319, 2 ago. 2012. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/22350.

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procuradorias jurídicas das autarquias e fundações públicas federais. AGU e MPF são “irmãos siameses”. Por isso defendo que o regime jurídico dos membros das carreiras da AGU deve ser similar ao dos membros do Ministério Público.

Nos últimos 20 anos os membros da advocacia-geral da União têm conseguido granjear considerável avanço institucional, mas ainda é profundo o fosso que separa os advogados públicos federais dos membros do MPF. E esse fosso não é só de caráter remuneratório. é de auto-estima e de auto-respeito. Também carecem os advogados públicos federais de autonomia funcional, dentro de suas faculdades e atribuições, para que possam agir em obediência somente às Leis e à Constituição.

Mas não devemos perder as esperanças nem baixar a guarda na luta pelas prerrogativas em defesa de uma instituição fundamental para consolidar o caráter legítimo e lícito do Estado brasileiro. Sem advocacia pública forte o administrador público é tentado ao cometimento de abusos governamentais. O advogado público é o primeiro “dique” de contenção contra os eventuais desvios do poder público.

Nesse citado artigo, em nota de rodapé, aludimos a questões menores sobre a dignidade constitucional do advogado público federal, mas que entendemos relevantes:

Tramita no CNJ uma questão acerca da cessão de advogados públicos federais para a assessoria de magistrados. Sobre esse tema evolui de entendimento. Outrora não via problema algum. Via, inclusive, como algo salutar e que prestigiaria a carreira. hoje penso diferente. Creio que um advogado público federal não deva ser assessor de ninguém. Nem de magistrado, nem de membro do Ministério Público ou de membro da Defensoria Pública. Isso, ao meu sentir, é, como diriam os antigos romanos, uma “diminuição de capacidade”. é colocar (e se colocar) em situação de subalternização. Advogado público federal não é subalterno de magistrado. é postulante perante esse magistrado. Defendo a proibição da cessão de advogado público federal para assessoria nos Tribunais, no MPF e na DPF. Para prestar assessoria, os magistrados dispõem de analistas aprovados em concurso público. Essa tarefa, de assessoria, é para analista, não é para advogado público federal. Um membro da advocacia pública federal deve prestar assessoria/consultoria a Ministro de Estado, ao Presidente de uma autarquia ou fundação pública, a um Parlamentar federal, pois este não tem conhecimentos jurídicos e a palavra do advogado público federal seria “lei” para ele. Mas nunca para um magistrado, seja de que tribunal for, inclusive do STF, STJ, TRFs etc. Sei que o principal atrativo, além da experiência de atuar em um gabinete judicial, é o de caráter econômico e que há um substantivo aumento na remuneração do advogado público federal. Mas esse problema remuneratório só revela o quanto nós, advogados públicos federais, estamos recebendo um tratamento remuneratório inadequado, se comparados aos membros do MPF. Alguém vislumbra um procurador da República assessor de magistrado? Ou um defensor público? Ouvi de um colega procurador de

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Estado (advogado público) que nenhum membro de sua PGE aceitaria ser assessor de qualquer magistrado, seja de que tribunal for, nem mesmo do STF ou do STJ. Está mais do que na hora de nós advogados públicos federais nos opormos a essa prática que nos subalterniza e que depõe contra a dignidade de nossa função. Mas o caminho encontra grandes obstáculos e inimigos dentro da própria instituição, que muitas vezes tem sido conduzida por pessoas mais preocupadas consigo próprias e com suas ambições pessoais ou profissionais do que com o desenvolvimento da corporação. há, inclusive, quem compare a advocacia pública federal a um exército, sendo os advogados públicos federais verdadeiros soldados e o ministro-chefe da Instituição como um grande general. Terrível comparação. Mas se eu fosse usar dessa comparação militar, faria como o poeta alemão: “leões comandados por cordeiros”. Se a AGU é um exército, ela tem sido um exército de bravos leões comandados por mansos e obedientes cordeiros. é o que penso.

Com efeito, se o predicado constitucional para se tornar ministro-chefe da AGU é o mesmo de um ministro do STF, que vem a ser o coroamento de uma carreira dedicada ao Direito e à Justiça, para ser membro da AGU, ou seja, advogado público federal, os requisitos devem ser similares aos da magistratura.

Por uma questão de coerência, assim como defendemos que não é qualquer pessoa que pode vir a ser alçada ao cargo de ministro do STF, defendemos que não é qualquer um que pode vir a ser premiado com o cargo de ministro-chefe da AGU. E também defendemos que o ministro-chefe da AGU deve ter pelo menos 35 anos de experiência profissional (e não de idade). Deve ter uma sólida e reconhecida carreira dedicada ao Direito e à Justiça. Deve ser alguém com robustez técnica e com sólida formação acadêmica, e inquestionável e incensurável respeitabilidade moral. Como aferir esses requisitos? Do mesmo modo que deveriam ser examinados os postulantes ao cargo de ministro do STF.

Ou seja, a qualificação técnica se analisa verificando a produção de “próprio punho” do futuro ministro. O que ele efetivamente produziu. Suas peças jurídicas (petições, pareceres, memoriais, notas etc.) e/ou suas peças acadêmicas (teses, livros, artigos etc.). Isso não é difícil. É simples. Um dos critérios é o do reconhecimento do meio jurídico (profissional e acadêmico) conquistado pelo eventual postulante. Se ele for um ilustre desconhecido, não serve para o cargo. há de ser alguém de conhecido pelo seu notável saber jurídico.

E a reputação ilibada? Essa se constrói com uma vida imaculada, sem jaças profissionais. Se o nome do candidato é pronunciado com reverência e se nunca se cogitou de condutas e atos ilícitos ou imorais, é porque o candidato é possuidor de uma indiscutível e ilibada reputação. Mas isso só o tempo revela. Daí porque não concordamos com o critério dos 35 anos de idade, mas defendemos que sejam 35 anos de experiência profissional, seja como prático, seja como catedrático. O ministro-chefe da Advocacia-Geral da União não pode ser um “júnior” no Direito e na Justiça, há ser um profissional “sênior”. A AGU é importante demais para não ser conduzida por mãos experientes. A AGU não pode ser “ponto-de-partida” nem “trampolim” para outros cargos, mormente o de ministro do STF. O AGU deve ser um jurista pronto.

Se o ministro-chefe da AGU há de ser tão qualificado quanto um ministro do STF, os advogados públicos federais deverão ser tão qualificados quanto os magistrados federais. Daí porque o sistema de ingresso há de ser exclusivamente via concurso público de

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provas e de títulos. Somente advogados públicos federais devem ocupar cargos na estrutura da Advocacia-Geral da União, com exceção do cargo de ministro-chefe da AGU, que pode ser advogado público federal ou não, mas que deve ter antes de tudo notável saber jurídico e reputação ilibada, bem como pelo menos 35 anos de experiência jurídica, insistimos nesse ponto. O ministro-chefe da AGU deve ser alguém, de notável saber jurídico e de reputação ilibada, que tenha a confiança política e técnica do Presidente da República. Será para o ministro-chefe da AGU que o Presidente da República indagará acerca da validade jurídica de seus atos governamentais e condutas políticas. O Presidente da República deve confiar no seu AGU. O gestor público deve confiar no seu advogado público. O advogado público deve ter conhecimento e experiência para apontar os caminhos da legalidade governamental ao gestor.

Nessa perspectiva, entendemos necessária uma mudança constitucional que exija pelo menos 5 anos de experiência privativa de advogado (o bacharel inscrito na OAB após aprovação no exame de ordem) para o futuro membro da advocacia pública federal. A atuação como membro da AGU não pode ser a primeira atividade advocatícia de um advogado público federal. Ele deve ter prévia experiência advocatícia. Não basta ser experiência privativa de bacharel em direito. Há de ser experiência privativa de advogado (o bacharel em direito inscrito na OAB após aprovação no exame de ordem).

A partir daí, esse advogado público federal (procurador da Fazenda Nacional ou advogado da União ou procurador Federal ou procurador do Banco Central) poderá construir uma carreira dentro da AGU, servindo ao Direito e à Justiça, na defesa da legalidade constitucional que deve pautar a atuação dos administradores públicos e dos agentes políticos.

Voltemos para o nosso tema. O futuro da AGU. Sobre essa instituição devemos cultivar uma esperança realista. Devemos nos movimentar para que a AGU seja sempre chefiada por pessoas de notável saber jurídico e reputação ilibada. Que os advogados públicos federais sejamos as sentinelas desse mandamento constitucional.

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8. A ADVOCACIA NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL145

Que quer dizer “grande advogado”? Quer dizer advogado útil aos juízes para ajudá-los a decidir de acordo com a justiça, útil ao cliente para ajudá-lo a fazer valer suas razões.

Útil é aquele advogado que fala o estritamente necessário, que escreve clara e concisamente, que não entulha a audiência com sua personalidade invasiva, não aborrece os juízes com sua prolixidade e não os deixa suspeitosos com sua sutileza – exatamente o contrário, pois, do que certo público entende por “grande advogado”.

(PIERO CALAMANDREI)

Pressupostos de compreensão

Toda decisão judicial é construída a partir ou da consciência ou dos interesses do magistrado. Mas qual consciência? Quais interesses? Consciência moral, religiosa ou jurídica? O certo ou o errado em que plano? Interesses legítimos e confessáveis ou ilegítimos e inconfessáveis? Como advogar perante magistrados que julgam as causas a partir de seus próprios interesses? é possível advogar nessas situações? Como advogar perante magistrado que julga a partir de sua consciência jurídica?

Por consciência jurídica entendo a ideia do que seja certo ou errado a partir do ordenamento jurídico, do estabelecido nos textos normativos e nos precedentes jurisprudenciais.

Em relação ao magistrado interesseiro o papel do advogado é o de informar ao seu cliente acerca do caráter do julgador ou chamar a atenção pública para o caso, de modo a criar constrangimentos para o juiz.

Quanto ao magistrado que age de acordo com a sua consciência, de acordo com o seu juízo sincero acerca do que seja o certo ou o errado à luz do ordenamento jurídico, o papel do advogado é o de procurar convencer ou de influenciar o julgador em sua decisão. Essa é a missão do advogado: influenciar o magistrado para que este decida de acordo com os seus interesses.

Tenha-se que se o magistrado age ou de acordo com a sua consciência ou de acordo com os seus interesses, o advogado sempre age de acordo com os interesses que representa. Com efeito, no momento em que o advogado assume o patrocínio de uma causa, ele deve defendê-la independentemente de sua consciência pessoal. Se o advogado não quiser agir contra a sua consciência ou contra os seus interesses, ele deve renunciar ao patrocínio da causa, pois, não raras vezes, mesmo o mais vil dos clientes, que cometeu o mais abjeto dos crimes, tem apenas o seu advogado.

O convencimento do magistrado

145 Texto de palestra ministrada em 22.10.2012 para os estudantes de Direito do 8º, 9º e 10º períodos, junto ao Núcleo de Prática Jurídica da Faculdade de Direito do Centro Universitário de Brasília.

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Como convencer o magistrado e o Supremo Tribunal Federal em particular de que a sua postulação deve ser acolhida? Toda causa ou controvérsia pressupõe uma adequada compreensão do fenômeno jurídico. Uma adequada compreensão do fenômeno objeto de uma demanda judicial requer o conhecimento dos textos normativos (Constituição, Tratados, Leis, Decretos e tantos quantos textos prescritivos existam), das circunstâncias fáticas, dos paradigmas coletivos (valores e verdades compartilhados pela comunidade) e dos prismas individuais (valores e verdades da própria pessoa).

é aquilo que o insuperável mestre Miguel Reale denominou de “Teoria Tridimensional do Direito”: as circunstâncias fáticas, os valores coletivamente compartilhados e os textos normativos. Eu acrescentaria os prismas individuais (a ciência, a consciência e a experiência de cada pessoa humana).

O advogado deve ter pleno domínio do Direito, em todas as suas dimensões, para tentar convencer o juiz. é preciso que o advogado tenha absoluta ciência de que do outro lado há um outro advogado procurando a mesma coisa, querendo o mesmo objetivo.

Em uma democracia com instituições e pessoas sérias, o direito é construído mediante o convencimento. E para convencer é preciso dominar a palavra. A advocacia é uma arte, a arte de convencer, de influenciar. Portanto, para convencer o magistrado o advogado deve ter pleno domínio da causa e deve estar tão bem preparado quanto o seu adversário e mais bem preparado que o próprio magistrado.

O magistrado não necessita de ter o mesmo conhecimento jurídico do advogado, o magistrado deve ter antes de tudo bom senso e deve agir com prudência e imparcialidade, ou seja, deve levar em consideração o esforço dos advogados. Juiz bom é juiz imparcial, no sentido de permitir-se convencer pela força dos argumentos jurídicos.

A compreensão judicial do fenômeno jurídico

Como o Supremo Tribunal Federal tem julgado as causas ou como deveria julgar as demandas sob sua responsabilidade?

Todos sabemos que os textos normativos (e o texto constitucional em particular) são “obras abertas”, são textos repletos de enunciados ou palavras com múltiplos significados, como soe acontecer com os termos “igualdade”, “dignidade”, “democracia” dentre outros.

Se os “enunciados” ou “termos” constitucionais não têm sentidos unívocos, mas plurívocos, como o Tribunal deve decidir ou atribuir força normativa a essas palavras? Qual a metodologia que o Tribunal tem utilizado ou deveria utilizar?

O primeiro passo é o de respeitar as palavras contidas no texto constitucional. O Tribunal não pode ignorar o que está escrito no texto. O Tribunal não pode dizer o que não estava escrito nem deixar de dizer o que estava escrito. O texto e o respeito ao texto é o ponto de partida para uma adequada solução da causa posta ao conhecimento do Tribunal.

A partir do texto, o Tribunal deve considerar as circunstâncias fáticas e os valores e verdades coletivamente compartilhados. O Tribunal não deve desprezar a sociedade e o mundo exterior, mas deve considerar essa sociedade e o restante do mundo. A Corte não deve se isolar para julgar.

O STF de 2010 pode julgar temas socialmente delicados que outrora seriam inimagináveis, como os temas do aborto, de cotas raciais, de pesquisas com células-tronco, de demarcação de terras indígenas, de união civil de homossexuais. E o STF de 2010 tem de

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julgar essas causas de acordo com a sociedade de 2010. Se estivéssemos em 1910 outro era o Tribunal e outra era a sociedade. Outras seriam as decisões.

Isso quer dizer que as palavras contidas no texto constitucional podem mudar de sentidos, pois as palavras são convenções lingüísticas coletivas e variam ao sabor das circunstâncias sociais.

Sempre cito os termos “igualdade e dignidade” na jurisprudência da Suprema Corte dos EUA no tocante à questão racial e à clivagem entre negros e brancos naquele País. Com efeito, a Suprema Corte daquele País já decidiu que a pessoa de cor negra não possui a mesma dignidade da pessoa de cor branca (caso Dred Scott, 1857). Posteriormente, meio século depois, a Suprema Corte evoluiu e reconheceu a igualdade entre os negros e brancos, mas desde que ficassem separados (caso Plessy v. Ferguson, 1896). Mais meio século, e finalmente decidiram que a pessoa de cor negra é tão digna quanto a pessoa de cor branca, merecendo, ambas, conviverem juntos (caso Brown, 1954).

Nessa perspectiva, a eventual imutabilidade das palavras contidas nos textos não implica a imutabilidade dos sentidos dos textos. O Direito é “organismo vivo”, é permanente experiência social e para sobreviver deve se adaptar. Quem não se adapta, quem não se movimenta, não sobrevive, morre.

O Tribunal deve se movimentar deve se adaptar aos novos tempos e a nova sociedade cada vez mais complexa, mais plural, mais posmoderna, onde as verdades e as certezas são fluídas e os valores estão menos sólidos.

Nessa linha, o advogado, para convencer o magistrado e o Tribunal, deve conhecer o texto normativo, deve conhecer os precedentes do Tribunal e conhecer as manifestações individuais do magistrado.

Para vencer uma causa, o advogado deve apelar para a coerência da Corte e para a coerência individual do magistrado. Essa é a principal garantia e o maior patrimônio de um Tribunal e de um juiz: a respeitabilidade e a coerência, inclusive nos “erros” e nas “injustiças”.

O Tribunal (ou o magistrado) pode evoluir? Pode mudar de entendimento? Sim, pode, mas deve convencer e justificar adequadamente as razões de sua mudança ou de sua evolução. A jurisprudência não pode ter a estabilidade das nuvens. O Tribunal deve ser coerente, deve passar uma mensagem de certeza, de previsibilidade e de segurança, pois deve permitir que as pessoas e as instituições “calculem” as conseqüências de suas escolhas normativas.

A atuação judicial do STF e o papel do advogado

Segundo Antonio Umberto de Souza Jr., o STF deve superar a “síndrome de gata borralheira para vivenciar o sonho de Cinderela”. Ou seja, para o Tribunal participar “do baile” das grandes causas, deverá agir como “gata borralheira” e julgar a imensa e azafamática pletora de habeas Corpus e Agravos.

Com efeito, no Informativo 591 do STF (www.stf.jus.br), o Tribunal apreciou uma decisão do STJ que apreciou um acórdão do TJ que apreciou uma decisão de Juiz Monocrático se um cigarro de maconha se caracteriza como uma falta média ou grave de um reeducando. Ou seja, quatro instâncias judiciais por algo irrelevante.

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Nada obstante o enxame de questões irrelevantes, o STF tem sido convidado a atuar em questões importantes. Essa atuação enseja um ativismo ou um arbítrio judicial? Se o Tribunal julgar de acordo com o ordenamento jurídico é ativismo. Se julgar fora do ordenamento jurídico é arbítrio. Caso de ativismo judicial: mudança de orientação no mandado de injunção (MMII 670 e 718). Caso de arbítrio: precatório judiciário de empresas públicas e sociedades de economia mista (RREE 220.906 e 599.628), a despeito do disposto nos artigos 100 e 173, § 2º, CF.

Como deve proceder o advogado para vencer uma demanda no STF? Deve fazer uma análise minuciosa de precedentes similares. Deve analisar com atenção as manifestações dos Ministros em temas ou questões similares. Bater, com firmeza, nas seguintes “teclas”: (a) da indispensável obediência ao texto normativo; (b) do indispensável respeito aos precedentes e à coerência da Corte (certeza, segurança e previsibilidade) e; (c) da homenagem ao uma metodologia constitucional adequada para a solução do caso concreto, tendo em perspectiva a sistematicidade constitucional

Deve o advogado argumentar, com vigor, levando em consideração: (a) as circunstâncias fáticas; (b) os valores sociais institucionalizados e protegidos no ordenamento jurídicos; e (c) os enunciados prescritos no texto constitucional e nos demais diplomas normativos, bem como nos precedentes jurisprudenciais. Deve o distribuir memoriais (breve, sintético, analítico etc.), pedir audiências com os Ministros e defesa oral na Tribuna da Corte. Também deve ter absoluto respeito e consideração pela parte adversária e pelos outros colegas advogados adversários na demanda.

Mensagem de esperança realista

Apesar de todas as dificuldades e de todos os eventuais dissabores, a advocacia requer paixão e entusiasmo, no sentido de absoluta dedicação à causa e devemos acreditar na força dos nossos argumentos e devemos ter fé em nosso trabalho. E ainda que o advogado saiba que os seus argumentos sejam infrutíferos, ele não pode abandonar o seu cliente nem a causa que abraçou e jurou defender.

Peço licença para finalizar recordando o que disse Evandro Lins acerca de Sobral Pinto (dois monstros da advocacia brasileira), nos períodos sombrios da ditadura Vargas em defesa dos presos políticos: “Nas horas agudas da repressão política, o arbítrio é ilimitado e é irracional a ação dos verdugos. O papel do advogado é muito importante e não apenas ilusório, nesses momentos, com a simples ação de sua presença. É conforto para o preso, esperança para a família e temor para o carrasco”.

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9. O DEVIDO PROCESSO LEGAL NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, À LUZ DO REALISMO JURÍDICO DE ALF ROSS.146

Em homenagem ao professor Marcelino Leal Barroso de Carvalho, mestre de muitas gerações do Piauí e padrão de conduta para todos quantos procuram levar o estudo Direito a sério.

Acredito que estudar filosofia deve encontrar em si mesmo sua recompensa, na medida em que satisfaz um inveterado anseio de clareza e nos permite saborear os puros prazeres do espírito. Se, além disto, esse estudo nos proporciona um entendimento mais completo do mecanismo e da lógica do direito e aumenta nossa capacidade para o cumprimento da tarefa, teórica e prática a que nos devotamos, tanto melhor. (ALF ROSS).

Introdução

O artigo tem como objeto o alcance normativo da expressão constitucional “devido processo legal”, explicitado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, à luz do realismo jurídico de Alf Ross, exposto em seu livro “Direito e Justiça”147.

A justificativa desse tema descansa no fato incontestável de que o direito fundamental e moral a uma prestação jurisdicional justa e imparcial pressupõe a concretização da aludida promessa constitucional, fiada na seriedade comportamental e na sinceridade de propósitos dos magistrados, em particular os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).

A finalidade desta análise consiste em apresentar, de modo crítico, o entendimento dominante do Tribunal acerca do referido termo constitucional, verificando a consistência argumentativa e a coerência normativa das manifestações e narrativas dos ministros do STF na aplicação dos citados vocábulos constitucionais na solução dos conflitos submetidos à apreciação da Corte.

O caminho a ser percorrido visitará o texto constitucional, textos normativos infraconstitucionais, textos normativos internacionais, textos doutrinários e, especialmente, decisões e manifestações dos ministros do STF. O principal prisma teórico será o realismo jurídico de Alf Ross.

Com efeito, o estudo sério acerca dos institutos normativos e das instituições jurídicas não pode ficar preso às palavras contidas nas “Leis” (aqui no sentido de texto normativo prescritivo), mas requer a análise de como efetiva e realmente se dá a aplicação normativa pelos Tribunais na solução dos casos concretos, como ensinado por Alf Ross e o seu realismo jurídico.

Daí porque o preciso magistério de Dimitri Dimoulis148 acerca do papel desempenhado pelos tribunais na realização normativa do Direito. Peço licença para

146 Texto construído a partir de palestra proferida no Centro Universitário de Anápolis - GO, em 3.5.2011, por ocasião da xI Semana do Curso de Direito.

147 Direito e Justiça. Tradução de Edson Bini. Bauru: EDIPRO, 2000.148 FULLER, Lon. O caso dos denunciantes invejosos – introdução prática às relações entre direito, moral e

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recordar longa, porém indispensável, passagem de profunda advertência pedagógica do “professor Wendelin”, personagem criada pelo citado Dimitri Dimoulis na obra “O caso dos denunciantes invejosos”, de Lon Fuller, que elucida a indispensabilidade do estudo dos precedentes judiciais:

Decidir sobre a “verdade” no direito é um exclusivo privilégio dos juízes. Os políticos que atuam como legisladores e nós, doutrinadores, não temos o poder de decidir sobre o que é o direito. Quem fala do direito sem ser juiz parece com aqueles debatedores das emissões esportivas de domingo que discutem por horas e horas sobre pênaltis e impedimentos, sem poder alterar em nada as decisões dos árbitros!

O positivismo jurídico ensinou que o direito depende da vontade do legislador, sendo aleatório e mutável. O realismo jurídico fez um passo a mais. Demonstrou que o direito realmente aplicado, o “direito em ação”, não depende das palavras do legislador nem dos livros dos doutrinadores. Depende da vontade do juiz que dá sentido às palavras dos legisladores e dos doutrinadores, podendo mesmo invertê-las por completo.

Por essa razão, as propostas formuladas nessa mesa, assim como as eventuais leis retroativas sobre os Denunciantes Invejosos, não passam de meros desejos. O poder de decisão pertence aos juízes que criam o direito. Eles dirão se aquele que fez uma denúncia para se livrar de um inimigo foi um cidadão respeitoso da lei ou um criminoso que merece castigo. Nenhuma lei e nenhuma reflexão teórica serão mais poderosas do que a decisão do magistrado mais humilde.

Se não existe nem verdade, nem justiça, nem certeza na aplicação do direito, se esses conceitos são propagandas enganosas dos juristas que querem enaltecer sua profissão, devemos concluir que é inútil estudar o direito? Penso que não.

Estudar os regulamentos do legislador e a jurisprudência permite prever as futuras decisões e explica como decidem os juízes, quais são os elementos sociais, políticos e psicológicos que os fazem tomar determinada decisão. Em outras palavras, o direito é uma questão da prática que depende das circunstâncias, dos interesses em jogo e da personalidade de quem decide. Quanto mais estudamos esses elementos, maiores são as chances de prever as decisões do Judiciário.

Além disso, me parece que os doutrinadores devem formular propostas sobre a correta aplicação do direito, já que eles possuem um valioso conhecimento técnico sobre os conceitos e os métodos de interpretação do direito que pode ajudar o Judiciário em suas decisões.

Quais são os critérios para formular essas propostas? Alguns doutrinadores opinam por defender os interesses de seus clientes; outros fazem propostas acreditando que falam em nome da verdade e da justiça; há também doutrinadores que defendem as interpretações socialmente úteis. Eu sigo essa última orientação, porque considero o direito como instrumento para melhorar a vida social.

justiça. Tradução de Dimitri Dimoulis. São Paulo: RT, 2003, pp. 51 e 52.

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Pois bem, o Supremo Tribunal Federal já foi instado a se manifestar em diversas oportunidades acerca do alcance normativo dos enunciados objetos da presente análise, estampados no inciso LIV da Constituição Federal:

ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

Nessa perspectiva, verificar a compatibilidade das decisões do STF com o ordenamento jurídico, a consistência argumentativa dos ministros e a coerência normativa de suas manifestações na aplicação dos aludidos dispositivos constitucionais, de modo crítico, é a missão acadêmica que se propõe realizar.

O direito constitucional e moral de um julgamento justo, imparcial e convincente

Somente há direito se houver amparo no (do) ordenamento jurídico. Não há direito fora do ordenamento jurídico. Todavia, há direitos tão fortes, tão consistentes, tão incorporados na consciência cívica da comunidade, que não são apenas “direitos jurídicos”, mas verdadeiros “direitos morais”, graças à alta carga valorativa que possuem. São direitos civilizatórios. No entanto, é importante assinalar que o ordenamento jurídico não se esgota na “Lei escrita”, como pontifica Alf Ross.149

Dentre esses cogitados “direitos morais” tem-se o direito fundamental a um julgamento justo (porque imparcial) e o direito constitucional da inafastabilidade da jurisdição nas hipóteses de ameaças ou lesões a direitos (art. 5, inciso xxxV, CF),150 bem como o direito a ser convencido publicamente pelo magistrado, conforme dispõe o inciso Ix do artigo 93 da Constituição Federal.151

Para realizar essa promessa de um julgamento justo, o ordenamento jurídico exige o “devido processo legal”. Com efeito, para absolver ou condenar (ou para julgar procedente ou improcedente um pedido judicial), o magistrado deve formar suas convicções apreciando com liberdade as provas lícitas, viabilizando o contraditório e a mais ampla defesa, de acordo com o devido processo legal.

Nesse específico tema da formação da convicção do julgador, o magistério de Lenio Luiz Streck152 traz uma importante reflexão sobre o ato judicial de interpretar e decidir:

a decisão jurídica não se apresenta como um processo de escolha do julgador das diversas possibilidades de solução as causas submetidas ao seu crivo. Ela se dá como um processo em que o julgador deve estruturar sua interpretação – como a melhor, a mais adequada – de acordo com o sentido do direito projetado pela comunidade política.

149 Obra citada, p. 128.150 A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.151 Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões,

sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação;

152 STRECK, Lênio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 98.

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No plano legal, essa prerrogativa (ou verdadeiro dever) - de livre apreciação das provas - do magistrado brasileiro pode ser vislumbrada, a título ilustrativo e prescritivo, nos artigos 155, do Código de Processo Penal, e 131, do Código de Processo Civil.153

Essa livre apreciação das provas - reitera-se - não significa arbítrio absoluto, mas relativa discricionariedade. Ou seja, deve o magistrado justificar razoável e racionalmente com apoio em evidências comprováveis e aceitáveis e fundamentando com base no ordenamento jurídico (Tratados, Constituição, Leis, Decretos, precedentes judiciais etc.), o porquê de sua decisão, seja a condenatória seja a absolutória, no plano penal, seja a da procedência ou improcedência do pedido, na seara cível.

Essas evidências deverão se consubstanciar em provas lícitas obtidas de modo legítimo, sendo, por conseqüência, válidas e idôneas para a formação da convicção do magistrado. Não são quaisquer provas que influenciarão o magistrado, mas apenas as que forem válidas e idôneas, porque obtidas de modo legítimo e com procedimentos lícitos. Do contrário, se a prova não for válida, poderá ser decretada a nulidade do processo tendo em vista o julgamento viciado do magistrado, por violação ao devido processo legal.

Eis uma das maiores garantias fundamentais da pessoa humana: o julgamento sem vícios, porque fundado em provas válidas e mediante um procedimento em conformidade com o ordenamento jurídico, e proferido por alguém imbuído do desejo de ser justo ao praticar a verdadeira justiça (ou a justiça possível para a humanidade). Indiscutivelmente essa aludida garantia é uma das maiores conquistas evolutivas da humanidade organizada em sociedade civil.

Nesse prisma, no plano penal, por exemplo, não deve o magistrado ser parceiro da Polícia ou do Ministério Público na busca da condenação. Tampouco deve ser condescendente ou leniente com a Advocacia ou com a Defensoria na tentativa da absolvição. O magistrado deve procurar ser justo e imparcial.

Deve - ainda no exemplo da seara penal - o magistrado buscar a realização da justiça, apreciando com rigor as circunstâncias fáticas e as provas colacionadas, examinando com atenção, consideração e respeito os testemunhos e as argumentações da acusação e da defesa, e estudando com dedicação e seriedade os fundamentos jurídico-normativos que justificarão sua decisão.

Essa deve ser a postura de um magistrado digno da toga que veste e que honra a confiança que nele depositam as pessoas e toda a sociedade. É um conforto tanto para o inocente quanto para o culpado ser destinatário de uma sentença que buscou concretizar a justiça. Essa tranquilidade serve para todos os conflitos judiciais ou controvérsias normativas, independentemente de sua natureza ou caráter.

Pois bem, para a concretização desse postulado civilizatório da humanidade que é o julgamento justo, o sistema jurídico brasileiro possui um cabedal significativo de instrumentos normativos: a Constituição Federal, a legislação processual nacional, os textos normativos internacionais e os precedentes jurisprudenciais.

153 Código de Processo Penal, Art. 155: O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas. Código de Processo Civil, Art. 131: O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento.

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Todo esse aparato normativo - reitere-se - simboliza a idéia de civilidade que deve permear a convivência humana em sociedade. é intuitivo que na sociedade contemporânea a justa punição - ou a correta absolvição - fundada racionalmente em provas válidas (porque lícitas e legítimas) é o que nos diferencia das sociedades bárbaras e incivilizadas.

Esse modo de proceder dá – inclusive - eventual superioridade moral que permita a difícil e dolorosa tarefa de segregar aqueles que ao agredirem outras pessoas - violando as normas de proteção do convívio social - cometeram crimes.

A moralidade objetiva da força do direito pressupõe a tentativa desesperada de um julgamento justo (porque imparcial e convincente), de acordo com o preceito do “devido processo legal”, e seus consectários do “contraditório e da ampla defesa” e da “proscrição das provas ilícitas”.

Não sem razão que Karl Olivecrona154 e Ronald Dworkin155 foram buscar na mitologia grega as representações do magistrado justo: Atlas para Olivecrona e Hércules para Dworkin.

Induvidosamente, a tarefa de concretização da justiça exige um esforço sobre-humano, quase divino. No entanto, em que pesem as dificuldades, o magistrado sinceramente comprometido com a busca da verdade racional, razoável, convincente e coletivamente aceitável, poderá facilitar a sua tarefa (e confortar a sua consciência moral) se respeitar e aplicar os referidos preceitos processuais constitucionais, mormente a garantia do “devido processo legal”.

Os enunciados normativos supranacionais

Não somente no plano nacional há diretivas em busca do julgamento justo e civilizado, especialmente no âmbito penal, conforme o disposto na Declaração Universal dos Direitos humanos, na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do homem e na Convenção Americana sobre Direitos humanos.156 Cuide-se que tanto a Declaração

154 OLIVECRONA, Karl. Linguagem jurídica e realidade, Quartier Latin, 2005, p. 32.155 DWORKIN, Ronald. O império do direito, Martins Fontes, 1999, p. 287.156 Declaração Universal de Direitos humanos (1948), Art. xI, item 1. Toda pessoa acusada de um ato delituoso

tem o direito de ser presumida inocente, até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.

Declaração Americana dos Direitos e Deveres do homem (1948), Art. xxV. Ninguém pode ser privado da sua liberdade, a não ser nos casos previstos pelas leis e segundo as praxes estabelecidas pelas leis já existentes. Art. XXVI. Parte-se do princípio de que todo acusado é inocente, até provar-se-lhe a culpabilidade. Toda pessoa acusada de um delito tem direito de ser ouvida em uma forma imparcial e pública, de ser julgada por tribunais já estabelecidos de acordo com leis preexistentes, e de que não se lhe inflijam penas cruéis, infamantes ou inusitadas.

Convenção Americana sobre Direitos humanos (1969), Art. 8º - Garantias judiciais. 1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. 2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: .... c) concessão ao acusado do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa; .... f) direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no Tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos; g) direito de não ser obrigada a depor contra si

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Universal quanto a Declaração e a Convenção Americanas reconhecem a importância dos deveres – e não só dos direitos – inerentes a cada pessoa.157

Continuo ainda na seara penal. Nada obstante o descumprimento, pelos culpados, dos seus deveres jurídicos, isso não lhes tolda os direitos inerentes à dignidade da pessoa humana, pois, repete-se à exaustão, a superioridade moral de nossa civilização decorre do respeito e consideração destinados mesmo àqueles que desrespeitaram e violaram as nossas leis.

Esse relevante aspecto simbólico foi bem capturado pelo ministro Eros Grau no julgamento do Habeas Corpus n. 94.408158, que confirmou o entendimento consagrado no Habeas Corpus n. 84.078159, no qual o Supremo Tribunal Federal decretou a inconstitucionalidade da “execução antecipada da pena”. O ministro Eros Grau relembrou o magistério de Evandro Lins, outrora ministro do STF, para quem:

Na realidade, quem está desejando punir demais, no fundo, no fundo, está querendo fazer o mal, se equipara um pouco ao próprio delinqüente.

E disse mais o citado ministro Eros Grau:

8. Nas democracias mesmo os criminosos são sujeitos de direitos. Não perdem essa qualidade, para se transformarem em objetos processuais. São pessoas, inseridas entre aquelas beneficiadas pela afirmação constitucional da sua dignidade (art. 1º, III, da Constituição do Brasil).

Ante esse quadro, segundo o Supremo Tribunal Federal, se nem mesmo o condenado pode ser privado das prerrogativas inerentes à dignidade da pessoa humana, com muito maior razão deverá ser protegido o que ainda se encontra apenas acusado ou processado, portanto, sequer condenado.

Esse é o cuidado que se deve ter com o investigado ou acusado penalmente, uma vez tratar-se de indivíduo dotado de igual dignidade humana, na esteira do magistério jurisprudencial do STF.

mesma, nem a confessar-se culpada; ...... 3. A confissão do acusado só é válida se feita sem coação de nenhuma natureza. 4. ... 5. O processo penal deve ser público, salvo no que for necessário para preservar os interesses da justiça.

157 Art. xxIx (Declaração Universal) 1. Toda pessoa tem deveres para com a comunidade, na qual o livre e pleno desenvolvimento de sua

personalidade é possível. Art. xxVIII (Declaração Americana) Os direitos do homem estão limitados pelos direitos do próximo, pela segurança de todos e pelas justas

exigências do bem estar geral e do desenvolvimento democrático. Art. xxIx (Declaração Americana) O indivíduo tem o dever de conviver com os demais, de maneira que todos e cada um possam formar e

desenvolver integralmente a sua personalidade. Art. 32 – Correlação entre deveres e direitos (Convenção Americana) 1. Toda pessoa tem deveres para com a família, a comunidade e a humanidade. 2. Os direitos de cada pessoa são limitados pelos direitos dos demais, pela segurança de todos e pelas

justas exigências do bem-comum, em uma sociedade democrática.158 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. hC 94.408. 2ª Turma. Julgado em 10.2.2009. Acórdão Publicado em

26.3.2009.159 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. hC 84.078. Pleno. Julgado em 5.2.2009. Acórdão Publicado em

25.2.2010.

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Nessa senda, recorda-se o que disse o ministro Gilmar Mendes no julgamento do Habeas Corpus n. 84.409160:

(...) não é difícil perceber os danos que a mera existência de uma ação penal impõe ao indivíduo, daí a necessidade de rigor e prudência daqueles que têm o poder de iniciativa nas ações penais e daqueles que podem decidir sobre o seu curso.

à toda evidência, no rastro da jurisprudência do STF, o indivíduo que está sob investigação policial ou que se encontra criminalmente processado deverá ter garantida as franquias processuais constitucionais, sobretudo o direito de ser julgado por magistrado convencido por meio de provas válidas, isto é, juridicamente lícitas e obtidas de modo legítimo, viabilizando-se o contraditório e a mais ampla defesa, dentro de um devido processo legal.

Tudo isso em obediência ao ordenamento jurídico (Constituição, Leis, Tratados, precedentes) e em homenagem à dignidade da pessoa humana, porque todos somos merecedores de mútuo respeito e consideração, porquanto somos todos iguais, inexistindo superioridade ou inferioridade valorativa entre os homens.

Nessa linha, após visitar textos normativos supranacionais, dispositivos da Constituição Federal e da legislação nacional, deve-se buscar o amparo normativo dessas mencionadas garantias na prática jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal.

Antes, contudo, será surpreendido o magistério doutrinário de Alf Ross, um dos principais expoentes do realismo jurídico, uma corrente teórica que atribui importância capital ao estudo e conhecimento das práticas judiciais na concretização e compreensão do Direito, no sentido de que o direito positivo não se esgota no texto normativo, mas deve ser observado na realidade e na dinâmica dos tribunais.

O realismo jurídico de Alf Ross e o livro “Direito e Justiça”

Na apresentação de Alaôr Caffé Alves à edição brasileira do referido livro “Direito e Justiça”, que foi originariamente publicado na Dinamarca, em 1953, com o título “Om Ret og Retfærdighed”, revela-se que o professor danês Alf Ross teve como método a análise do Direito como fenômeno jurídico experimental, tendo como principal objeto de estudo as práticas judiciais.161

No prefácio que escreveu, em 1958, à edição inglesa do aludido livro, cujo título naquele idioma é “On Law and Justice”, Alf Ross externou:

A principal idéia deste trabalho é levar no campo do direito os princípios do empirismo às suas conclusões últimas. Desta idéia emerge a exigência metodológica do estudo do direito seguir os padrões tradicionais de observação e verificação que animam toda a moderna ciência empirista, e a exigência analítica das noções jurídicas fundamentais serem interpretadas obrigatoriamente como concepções da realidade social, do comportamento do homem em sociedade e nada mais. Por esta razão e que rejeito a idéia de uma “validade” a priori específica que coloca o

160 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. hC 84.409. 2ª Turma. Julgado em 14.12.2004. Acórdão Publicado em 19.8.2005.

161 Obra citada, pp. 9-14.

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direito acima do mundo dos fatos e reinterpreto a validade em termos de fatos sociais; rejeito a idéia de um princípio a priori de justiça como guia para a legislação (política jurídica) e ventilo os problemas da política jurídica dentro de um espírito relativista, quer dizer, em relação a valores hipotéticos aceitos por grupos influentes na sociedade; e finalmente, rejeito a idéia segundo a qual o conhecimento jurídico constitui um conhecimento normativo específico, expresso em proposições de dever ser, e interpreto o pensamento jurídico formalmente em termos da mesma lógica que dá fundamento a outras ciências empíricas (proposições de ser).

(....)

Durante os mais trinta anos em que me ocupei dos estudos jusfilosóficos, tenho, é claro, recebido orientação e inspiração procedentes de muitos lugares. Sem elas teria sido impossível escrever este livro. Tais débitos são esquecidos facilmente, o que me torna incapaz de apresentar uma lista completa. Mas devo mencionar dois mestres que tiveram para mim uma maior significação do que quaisquer outros: Hans Kelsen, que me iniciou na filosofia do direito e me ensinou, acima de tudo, a importância da coerência, e Axel Hägerström, que me abriu os olhos para o vazio das especulações metafísicas no campo do direito e da moral. 162

Alf Ross se preocupa com as relações entre o que ele chama de “direito vivo” (o direito que realmente se desenvolve no seio da comunidade) e o “direito teórico ou dos livros”, e às forças que de fato motivam a aplicação do direito em contraposição aos fundamentos racionalizados presentes nas decisões judiciais.163

Para Alf Ross as leis são expressões lingüísticas. As expressões lingüísticas podem ser divisadas em três categorias: a) asserções; b) exclamações e c) diretivas.164

Segundo Alf Ross, as asserções são as expressões lingüísticas que indicam um certo estado de coisas, como sucede com a expressão “meu pai está morto”. As exclamações são as expressões lingüísticas que não têm significado representativo não exercem qualquer influência, como sucede com a expressão “ai!”. As diretivas são as expressões lingüísticas sem significado representativo, mas com intenção de exercer influência, como sucede com a expressão “feche a porta”.165

Nessa batida, segundo Alf Ross as regras jurídicas são obviamente “diretivas”, que visam exercer influência sobre as condutas humanas:

As leis não são promulgadas a fim de comunicar verdades teóricas, mas sim a fim de dirigir as pessoas – tanto juízes quanto cidadãos particulares – no sentido de agirem de uma certa maneira desejada. Um parlamento não é um escritório de informações, mas sim um órgão central de direção social.166

162 Obra citada, pp. 19-20.163 Obra citada, p. 26.164 Obra citada, p. 31.165 Obra citada, pp. 28-31.166 Obra citada, p. 31.

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Segundo Ross, a regra jurídica não é verdadeira nem falsa, é diretiva, pois a sua finalidade é prescrever comportamentos, de sorte que há uma distinção entre (a) o próprio direito enquanto regras jurídica e (b) o conhecimento acerca do direito enquanto proposições acerca das regras jurídicas.167

Alf Ross, em tópico sobre o “conceito de direito vigente”, faz uma interessante aproximação entre as regras jurídicas e as regras do xadrez, a revelar o aspecto de fenômeno social de ambos os sistemas normativos, tanto o direito quanto o xadrez. Para ele, as regras normativas são convencionais e estabelecem uma “conexão de significados” entre os participantes do “jogo” social. O conhecimento das regras do xadrez não implica que se ganhe o jogo. Assim como o conhecimento das normas jurídicas não implica a sua obediência nem a vitória nas demandas judiciais.168

Segundo Alf Ross, as regras se apresentam como “esquemas interpretativos”. Daí porque:

‘direito vigente’ significa o conjunto abstrato de idéias normativas que serve como um esquema interpretativo para os fenômenos do direito em ação, o que por sua vez significa que essas normas são efetivamente acatadas e que o são porque experimentadas e sentidas como socialmente obrigatórias.169

Discorrendo sobre o ordenamento jurídico, Alf Ross entende, resumidamente, que ele – o ordenamento jurídico – é o conjunto de regras para o estabelecimento e funcionamento do aparato de força do Estado.170

Quanto à “ciência jurídica”, Alf Ross defende que ela não pode ser separada da “política jurídica”, na medida em que a descrição científica está imbuída de prescrição política. Ou seja, o cientista ao descrever prescreve e, portanto, procura influenciar a compreensão e a concretização do direito.171

Segundo Alf Ross há uma relação entre “temor e respeito”, que são os dois motivos que caracterizam a experiência do direito. Isso significa que a obediência ou adesão ao Direito tem um fundamento ideológico e político. Daí porque, segundo ele, o poder político é competência jurídica, de modo que não existe poder político independente do direito.172

Dissertando sobre variados temas da teoria do direito, Alf Ross visita um que é especialmente caro para os nossos propósitos: o método jurídico ou interpretação. Na linha kelseniana, para ele a interpretação é política jurídica e não ciência do direito.173

Alf Ross aborda os aspectos sintáticos, lógicos, semânticos e pragmáticos dos problemas da interpretação do direito. Com isso pretende ele revelar o real alcance da administração da justiça praticada pelos magistrados, independentemente dos “critérios” interpretativos, e tendo em vista a “eterna” tensão entre a vontade subjetiva do legislador e a vontade objetiva da lei.174

167 Obra citada, p. 33.168 Obra citada, pp. 34-37.169 Obra citada, p. 41.170 Obra citada, p. 58.171 Obra citada, pp. 71-76.172 Obra citada, p. 84.173 Obra citada, p. 136.174 Obra citada, pp. 135-187.

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é contundente a insistência de Alf Ross no dever de conhecer a jurisprudência e a prática dos tribunais, de sorte que somente assim seria possível estabelecer um eventual critério seguro de como o direito realmente tem funcionado e como poderá vir a funcionar na solução de problemas futuros.

Alf Ross discorre sobre os postulados da “consciência jurídica” e nos convida a refletir sobre o papel social desempenhado pelo jurista na defesa dos interesses políticos refletidos no ordenamento jurídico e na prática dos tribunais, e acusa o jurista de estar à disposição de quem segura as rédeas do poder.175

Em sociedades democráticas, digo eu, onde deve reinar o primado da liberdade, da alteridade, da pluralidade, da aceitação do outro e da força do diálogo e do argumento convincente, o jurista deve estar a serviço do poder e do direito na defesa dos valores normatizados e protegidos pelo ordenamento jurídico.

No Estado Democrático de Direito que se tem vivenciado desde 1988, conhecer a Constituição e o alcance normativo de suas disposições significa conhecer a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e conhecer as argumentações esgrimidas pelos principais personagens do Tribunal: os seus ministros.

Nesse quadro, atual e relevante a advertência formulada por Lênio Luiz Streck contida no capítulo 6 de sua referida obra176:

UMA ADVERTÊNCIA: CONTROLAR AS DECISõES JUDICIAIS é UMA QUESTÃO DE DEMOCRACIA, O QUE NÃO IMPLICA “PROIBIÇÃO DE INTERPRETAR”...!

Com absoluta razão Lênio Luiz Streck. Com efeito, haja vista o indiscutível papel político desenvolvido pelo Poder Judiciário, especialmente o protagonizado pelo Supremo Tribunal Federal, conhecer a sua jurisprudência e controlar a consistência argumentativa e a coerência normativa de suas decisões e manifestações é fatalidade inescapável de todos que prezamos conviver em um Estado que se quer e que se diz Democrático e de Direito.

A relevância do STF e a importância de sua jurisprudência

Como aludido, é cediço que a adequada compreensão de todo e qualquer enunciado constitucional pressupõe o conhecimento e a análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, pois é a decisão do STF a norma definitiva sobre a controvérsia constitucional.

Nada obstante, convém lembrar que as prescrições normativas estão irmanadas e devem ser compreendidas em conjunto, pois, na linha do preconizado por Eros Grau177, não se interpreta o Direito em tiras, pois se interpreta todo o Direito como um todo, daí que deve o Tribunal, no momento da decisão, considerar, além das palavras contidas nos textos normativos, as circunstâncias fáticas e os valores socialmente institucionalizados.

175 Obra citada, pp. 421-430.176 Obra citada, p. 87.177 Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 44

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O Tribunal não pode esquecer o insuplantável magistério doutrinário de Miguel Reale178 com a sua “Teoria Tridimensional do Direito”: fato, valor e norma.

Tenho ousado dizer que além dos referidos três aspectos do fenômeno jurídico (fato, valor e norma) deve-se levar em consideração um quarto aspecto: as idiossincrasias do intérprete/julgador. Ou seja, os prismas individuais do magistrado: a sua ciência, a sua experiência e a sua consciência. Logo, para mim, o fenômeno jurídico é tetradimensional: as circunstâncias fáticas, os textos normativos, os valores sociais e as idiossincrasias subjetivas (ou prismas individuais). 179 Se assim não fosse, como justificar a multiplicidade de interpretações (e soluções) que se atribuem ao mesmo fenômeno (problema) normativo?

Nada obstante a diversidade de interpretações (e compreensões) se faz imperioso definir o alcance normativo e o sentido válido das prescrições constitucionais. Essa definição e alcance são estabelecidos pelo Supremo Tribunal Federal, na qualidade de “Guarda da Constituição”, cuja missão precípua é a de garantir a supremacia normativa da Constituição e defender os direitos fundamentais da pessoa humana.

Mas, quem são os guardiões da Constituição brasileira? No regime democrático, em situação de absoluta normalidade institucional, a guarda e a defesa do texto constitucional competem aos ministros do Supremo Tribunal Federal (art. 101, caput, CF).

Nos termos da Constituição, o ministro deve ser brasileiro nato, com mais de 35 anos de idade, de notável saber jurídico e de reputação ilibada. Ele é aposentado compulsoriamente aos 70 anos. Sua escolha é feita pelo Presidente da República. Sua nomeação depende de aprovação da maioria absoluta dos Senadores da República (art. 101, CF).

Qualquer brasileiro nato com mais de 35 anos pode ser ministro do STF? Não. Não é qualquer um que pode ser alçado às elevadas funções de ministro da Corte. Tem de ser possuidor de notável saber jurídico e de reputação ilibada. A razão de ser desses requisitos consiste na missão que se lhe destina: palavra definitiva do que seja a Constituição. é uma missão por demais honrosa e de grave impacto tanto nas relações sociais quanto nas institucionais dos brasileiros e do Brasil.180

178 Filosofia do direito, 19 ed.. São Paulo: Saraiva, 2002, Título X, pp. 497-617.179 ALVES JR., Luís Carlos Martins. Direitos Constitucionais Fundamentais. Belo horizonte: Mandamentos,

2010, pp. 93-94.180 O atual modelo de escolha de ministro do STF parece-me não ser o mais indicado, sem embargo da

história de sucesso da Corte. O STF há de ser o coroamento de uma carreira dedicada ao Direito, e não o seu ponto de partida. Em vez de 35 anos de idade, deveriam ser 35 anos de experiência jurídica, seja como “prático” (magistrado, promotor, procurador, defensor, advogado...) seja como “catedrático” (professor, consultor, pesquisador...). A comprovação do notável saber jurídico adviria justamente dessa longa experiência e dos trabalhos jurídicos (petições, pareceres, decisões, artigos, livros, teses...) apresentados nesse longo período, e não apenas de eventuais cargos que tenham sido ocupados pelos postulantes. Ministro do STF tem de chegar pronto na Corte. O STF não é lugar de quem esteja aprendendo Direito, é lugar de quem já sabe – e muito - Direito. Também entendo que em vez de ser vitalício, o cargo deveria ser temporário, com mandato de 8 anos. Também defendo que o quórum de aprovação deveria ser de 2/3 dos membros (senadores) do Senado da República, de sorte a exigir que seja indicado um nome respeitável e de consenso junto à classe política e junto à sociedade. A Ordem dos Advogados do Brasil, a Procuradoria-Geral da República e o Conselho da República deveriam opinar sobre o nome do indicado para essa alta função. Supremo é Supremo. é lugar de gente séria e respeitável, seja no aspecto moral, seja no aspecto jurídico-intelectual. Insisto e faço trocadilho: Supremo é a coroação suprema de uma carreira jurídica admirável. Ministro do STF tem de ser admirado pelo seu saber e pelo seu caráter. O mesmo se aplica para os outros Tribunais Superiores (STJ, TST, STM e TSE). E na mesma toada para os demais Tribunais brasileiros (TJs, TRFs, TRTs, TREs...). Assim, para ser ministro do STF o postulante deveria ter

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No pertinente à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal vale ressaltar que a sua importância não se dá apenas no aspecto normativo, enquanto decisão definitiva em matéria constitucional, mas tem caráter pedagógico e simbólico, pois a partir das decisões do STF, tanto o Poder Público quanto os indivíduos e as instituições podem criar justas expectativas comportamentais acerca do real sentido das normas constitucionais. é possível “calcular” com razoável grau de certeza e segurança as escolhas normativas que devem ser feitas.

Também tem caráter simbólico a jurisprudência da Corte para revelar os valores ideológicos que estão contidos nas decisões e que plasmam o ordenamento jurídico, a servir de vetor compreensivo de todos quantos vivenciam o Direito brasileiro. O STF ao julgar uma controvérsia não decide apenas um caso posto ao seu crivo, mas indica a direção normativa que devem seguir os indivíduos (e as autoridades) e as instituições (públicas ou particulares).

Mas como deve julgar o STF? Em rigorosa obediência ao texto constitucional. Os ministros devem se pautar pelo respeito à Constituição. O ministro está no Tribunal para fazer valer a força normativa da Constituição e não para impor as suas idiossincrasias ou ideologias particulares. O ministro é escravo da Constituição.

Como verificar se os ministros do STF estão cumprindo com a tarefa de guardar a Constituição? Acompanhando as suas decisões e as suas manifestações. Verificando a coerência narrativa e argumentativa. Estudando os precedentes individuais e coletivos da Corte. Descobrindo as razões implícitas e explícitas contidas nas manifestações e votos proferidos.

O único controle possível é o da coerência normativa. Cuide-se que o ato de criação do direito é eminentemente político. O ato de decisão também o é. O político não necessita de ser coerente, pois para sobreviver politicamente ele deve se adaptar às circunstâncias e oportunidades eleitorais. O magistrado não deve se curvar aos interesses circunstanciais da política. O magistrado deve se submeter ao ordenamento jurídico.

O político deve tomar suas decisões pautadas nos interesses de seus eleitores. O magistrado deve decidir sem receio de contrariar os eleitores ou grupos poderosos. O magistrado deve decidir em conformidade com o Direito e de acordo com a sua consciência jurídica, mesmo que venha a desagradar setores socialmente relevantes.

O político deve se comprometer com os interesses da maioria que o elegeu. A sobrevivência eleitoral do político pressupõe agradar, nem que seja na aparência, o seu eleitorado. O magistrado deve se comprometer com a busca da verdade. O político deve servir às maiorias. O magistrado deve ser o refúgio das minorias. Os regimes políticos democráticos há de ser o governo das maiorias, mas sem prejuízo ou menoscabo dos direitos das minorias, como preconizava hans Kelsen181.

Democracia constitucional é prevalência da maioria, mas de acordo com a “Lei”, sem aniquilamento das minorias. Só há Estado Democrático de Direito onde houver convivência entre grupos majoritários e grupos minoritários. Democracia é convivência no

pelo menos 35 anos de experiência jurídica. Para ser ministro de Tribunal Superior o postulante deveria ter pelo menos 30 anos de experiência jurídica. Para os Tribunais de segunda instância (TJs, TRFs, TRTs, TREs...) no mínimo 25 anos de experiência jurídica. E para ser magistrado de primeiro grau, cujo ingresso se dá mediante difícil e concorrido concurso público de provas e de títulos, o postulante deveria ter pelo menos 10 anos de experiência jurídica, pois o exercício da magistratura pressupõe seriedade moral, sensibilidade social e alto conhecimento jurídico. Ser magistrado não é para quem quer, é para quem pode. Magistratura, mais do que uma carreira, é uma vocação.

181 A democracia. Tradução de Ivone Castilho Benedetti e outros. São Paulo: Martins Fontes, 1993, pp. 67-78.

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dissenso. é consenso construído. Não é consenso imposto. é dissenso consensual, por mais paradoxal que isso possa ser.

Direito na democracia implica o respeito pelo outro, sobretudo se o outro for diferente quanto à condição econômica, étnica, racial, cor, sexo ou orientação sexual, credos e crenças religiosas. A democracia, para ser verdadeiramente democrática, tem de ser pluralista, como ensinava Norberto Bobbio182.

Na democracia, a força serve ao direito. O direito é de quem possui os melhores argumentos, de quem está com a razão e com a “verdade” possível e alcançável. No jogo verdadeiramente democrático, as “cartas” não devem estar previamente marcadas. Em síntese, na democracia constitucional o papel da “justiça constitucional” é o de garantir a idoneidade do jogo democrático, viabilizando o governo da maioria e permitindo o respeito às minorias. Essa missão da “corte constitucional” decorre do aspecto “dual” do regime democrático constitucional. De um lado a vontade vencedora da maioria política. Doutro lado os direitos dos grupos minoritários, como tem acentuado Bruce Ackerman183.

Na democracia constitucional, o STF deve defender a coletividade e o indivíduo protegendo a Constituição, mesmo que decida em contrariedade a setores influentes da sociedade e da opinião pública. Para garantir a democracia, o Tribunal tem de ter a coragem de ser contramajoritário, e isto não quer dizer antidemocrático.

A única preocupação do Tribunal deve ser a de cumprir a Constituição e garantir o seu respeito, sobretudo em face daqueles que são acostumados a ignorá-la, pois na experiência jurídica brasileira, infelizmente, a Lei não intimida os poderosos. Desgraçadamente, neste País, cumprir ou temer a Lei é coisa de “pobre”, de “preto”, de “prostituta” ou de “pateta” (ou “otário”). é uma lástima!99999

Nada obstante as dificuldades sociais, culturais, políticas e normativas para a concretização das promessas constituci9onais, a experiência do STF tem dado sinais de que seja possível vislumbrar uma mudança na mentalidade cultural e nas práticas sociais brasileiras, mesmo que ainda sejam tímidas.

é isso que se espera dos ministros do STF: que julguem as causas em conformidade com o ordenamento jurídico, obedecendo à Constituição, às “leis internacionais”, às leis nacionais e aos precedentes judiciais, em obséquio ao Estado Democrático de Direito e de acordo com o devido, porque razoável, processo legal.

O devido processo legal na jurisprudência do STF

A relevância normativa do princípio do “devido processo legal” faz dele, segundo Nelson Nery Júnior, a base sobre a qual todos os outros princípios se sustentam.184 Diz mais o ilustrado processualista:

Em nosso parecer, bastaria a norma constitucional haver adotado o princípio do due process of law para que daí decorressem todas as

182 O futuro da democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e Terra, 2000, pp. 72-76).183 Nós, o povo soberano – fundamentos do direito constitucional. Tradução de Mauro Raposo de Mello.

Belo horizonte: Del Rey, 2006, pp. 3-45. 184 Princípios do processo civil na Constituição Federal. 7a edição. São Paulo: RT, 2002, p. 32.

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conseqüências processuais que garantiriam aos litigantes o direito a um processo e a uma sentença justa. é, por assim dizer, o gênero do qual todos os demais princípios constitucionais do processo são espécies.

Em precioso livro sobre o princípio do “devido processo legal substantivo”, Ruitemberg Nunes Pereira185 quebra a tradição doutrinária brasileira para defender a tese de que as raízes do “devido processo legal” não se encontram na Magna Carta inglesa de 1215, mas nas “leis” germânicas no período da “Alta idade média”, especificamente o Decreto de 1037 expedido pelo imperador Conrado II, do Sacro Império Romano Germânico.

Segundo Ruitemberg Nunes Pereira186, nesse aludido Decreto de 1037, o imperador Conrado II determinava:

que nenhum homem seria privado de um feudo sob o domínio do Imperador ou de um senhor feudal (mesne lord), senão pelas leis do Império (laws of empire) e pelo julgamento de seus pares (judgment of his peers).

Com efeito, diante desse aludido texto, é forçoso convir que o enunciado estampado no capítulo 39 da Magna Carta de 1215 lhe guarda imensa similitude. Eis a tradução de Paulo Fernando Silveira187:

Nenhum homem livre será detido ou sujeito a prisão, ou privado dos seus direitos ou seus bens, ou declarado fora da lei, ou exilado, ou reduzido em seu status de qualquer outra forma, nem procederemos nem mandaremos proceder contra ele senão mediante um julgamento legal pelos seus pares ou pelo costume da terra.

Do medieval direito inglês, cuja fonte, na linha do citado magistério de Ruitemberg Nunes Pereira foi o medieval direito germânico, essa cláusula vicejou nos Estados Unidos da América onde se estampou no Bill of Rigths de 1791 (Emendas Constitucionais I a x da Constituição norte-americana de 1787). Colho do opúsculo de Saul K. Padover188 o seguinte sentido vernacular à Emenda V:

Nenhuma pessoa será obrigada a responder por um crime capital ou infamante, salvo por denúncia ou pronúncia de um grande júri, exceto em se tratando de casos que, em tempo de guerra ou de perigo público, ocorram nas forças terrestres ou navais, ou na milícia, quando em serviço ativo; nenhuma pessoa será, pelo mesmo crime, submetida duas vezes a julgamento que possa causar-lhe a perda da vida ou de algum membro; nem será obrigada a depor contra si própria em processo criminal ou ser privada da vida, da liberdade ou propriedade sem processo legal regular (due process of law); a propriedade não será desapropriada para uso público sem justa indenização.

A experiência jurídica norte-americana construiu uma sólida compreensão dessa cláusula constitucional que influenciou sobremaneira o direito constitucional brasileiro, especialmente no concernente ao intitulado “devido processo legal substantivo”, cuja

185 O princípio do devido processo legal substantivo. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 17.186 Obra citada, p. 20. 187 Devido processo legal. Belo horizonte: Del Rey, 2001, p. 19188 A constituição viva dos Estados Unidos. Tradução de A. Della Nina. São Paulo: IBRASA, 1987, p. 73.

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principal finalidade consistia no controle da proporcionalidade e da razoabilidade das leis, como pontificado por Carlos Roberto de Siqueira Castro189.

Nessa perspectiva, convém diferenciar o “devido processo legal processual” do “devido processo legal substantivo”, pois a dinâmica da jurisprudência do STF tem enfrentado essa questão de modo distinto.

Com efeito, na prática judicial do STF o tema do “devido processo legal processual” tem sido objeto de uma jurisprudência defensiva da Corte no sentido de não apreciar a questão sob o fundamento de que a eventual inconstitucionalidade seria indireta ou reflexa, pois demandaria a análise do conteúdo das normas infraconstitucionais, o que seria inviável nas estreitas vias do contencioso constitucional.190

189 O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova Constituição do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1988).190 A comprovar, tenha-se: ARE – Recurso Extraordinário com Agravo n. 636.925, Relator Ministro Ayres Britto, DJe n. 68, de 8.4.2011: DECISÃO: vistos, etc. O recurso não merece acolhida. É que a controvérsia sob exame não transborda os limites do âmbito

infraconstitucional. Logo, inviável o apelo extremo, conforme jurisprudência do Supremo Tribunal Federal . De mais a mais, a alegada ofensa às garantias do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa

apenas ocorreria de modo reflexo ou indireto. No mesmo sentido é a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, de que são exemplos os Ais 517.643-AgR, da relatoria do ministro Celso de Mello; e 273.604-AgR, da relatoria do ministro Moreira Alves.

AI - Agravo de Instrumento n. 754.281, Relatora Ministra Cármen Lúcia, DJe n. 76, de 26.4.2011: EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROCESSUAL CIVIL. ILEGITIMIDADE PASSIVA.

PRESCRIÇÃO. PRODUÇÃO DE PROVAS. ALEGADA CONTRARIEDADE AOS PRINCíPIOS DO DEVIDO PROCESSO LEGAL, DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. IMPOSSIBILIDADE DO REExAME DO CONJUNTO PROBATÓRIO E DA ANÁLISE DE LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL. INCIDÊNCIA DA SÚMULA N. 279 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. OFENSA CONSTITUCIONAL INDIRETA. ACÓRDÃO RECORRIDO FUNDAMENTADO. AGRAVO AO QUAL SE NEGA SEGUIMENTO.

(...) 7. Ressalte-se, ao final, que este Supremo Tribunal assentou que a alegação de contrariedade ao princípio

da legalidade e a verificação, no caso concreto, da ocorrência, ou não, de ofensa ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito, à coisa julgada ou, ainda, aos princípios do devido processo legal, da ampla defesa, do contraditório e da prestação jurisdicional, se dependentes de análise prévia da legislação infraconstitucional, configurariam apenas ofensa constitucional indireta.

Nesse sentido:(...) (AI 816.034-AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Primeira Turma, DJe 23.2.2011 – grifei).

AI – Agravo de Instrumento n. 812.345, Relator Ministro Celso de Mello, DJe n. 74, de 19.4.2011: DECISÃO: A decisão de que se recorre negou trânsito a apelo extremo, no qual a parte ora agravante

sustenta que o Tribunal “a quo” teria transgredido preceitos inscritos na Constituição da República. O exame da presente causa evidencia que o recurso extraordinário não se revela viável. É que o acórdão recorrido decidiu a controvérsia à luz dos fatos e das provas existentes nos autos, circunstância

esta que obsta o próprio conhecimento do apelo extremo, em face do que se contém na Súmula 279 do Supremo Tribunal Federal.

De outro lado, esta Suprema Corte tem reiteradamente enfatizado que, em princípio, as alegações de desrespeito aos postulados da legalidade, da motivação dos atos decisórios, do contraditório, do devido processo legal, dos limites da coisa julgada e da prestação jurisdicional podem configurar, quando muito, situações caracterizadoras de ofensa meramente reflexa ao texto da Constituição (RTJ 147/251 – RTJ 159/328 - RTJ 161/284 – RTJ 170/627-628 – AI 126.187-AgR/ES, Rel. Min. CELSO DE MELLO – AI 153.310-AgR/RS, Rel. Min. SyDNEy SANChES - AI 185.669-AgR/RJ, Rel. Min. SyDNEy SANChES – AI 192.995-AgR/PE, Rel. Min. CARLOS VELLOSO – AI 257.310-AgR/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO – RE 254.948/BA, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.)

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Essa é a “pedra de toque” da jurisprudência do STF acerca do alcance normativo do “devido processo legal processual”. A Corte tem uma jurisprudência defensiva e praticamente não conhece dos feitos que se fundamentam em violação ao devido processo legal, se acaso essa violação for de caráter procedimental ou formal. O argumento esgrimido pela Corte, ao meu sentir é frágil e esvazia o conteúdo normativo da proteção constitucional do “devido processo legal processual”.191

No julgamento do RE 560.477, que visitou o tema da exclusão de contribuintes do REFIS, o relator originário do feito, Ministro Marco Aurélio, entendeu que a exclusão do programa sem prévia notificação ou sem oportunizar contraditório e ampla defesa, violava o devido processo legal administrativo.

A dissidência foi inaugurada pelo Ministro Ricardo Lewandowski, que se tornou o redator do acórdão, no sentido de que a controvérsia tinha caráter infraconstitucional, por versar questão relativa à aplicação da Lei 9.964/2000.

O Ministro Menezes Direito acompanhou o voto do Ministro Marco Aurélio e assinalou importante – e certeira – manifestação:

Mas como disse, Senhor Presidente, Vossa Excelência, a meu sentir, pôs corretamente que o que se está examinando é apenas a violação do artigo 5º no que diz respeito ao devido processo legal, ou seja, o contraditório e a ampla defesa.

E aí pouco importa, pelo menos na minha compreensão, que o tema esteja numa legislação infraconstitucional, porque o princípio é constitucional. Então, se existe uma legislação infraconstitucional que atenta contra esse princípio, evidentemente que nós temos de examiná-la primeiro para saber se ele foi ou não foi violado. Se foi violado, é o caso, como Vossa Excelência pôs, a meu sentir, reitero, com a devida vênia dos que possam entender em sentido contrário, corretamente, porque existe, sim, viabilidade de conhecimento para que se apure se esse princípio foi ou não violado.

A Ministra Cármen Lúcia acompanhou a divergência inaugurada pelo Ministro Ricardo Lewandowski sob o fundamento de que houve o respeito ao devido processo legal da “Lei do REFIS”.

O Ministro Marco Aurélio chegou a questionar à Ministra Cármen Lúcia se ela não entendia que a notificação de exclusão, sem prévio contraditório e defesa, não violava

191 No entanto, essa orientação tem vingado no Tribunal. Tenha-se o julgamento do Recurso Extraordinário n. 560.477 (Redator Ministro Ricardo Lewandowski, 1ª Turma, J. 4.11.2008, DJe 71, de 23.4.2010), que visitou o tema da exclusão do programa tributário do “REFIS”. Eis a ementa de acórdão desse julgado:

EMENTA: TRIBUTÁRIO. REFIS. LEI 9.964/2000. FACULDADE DO CONTRIBUINTE. ExCLUSÃO DO PROGRAMA. ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO AO ART. 5º, LV, DA CONSTITUIÇÃO. MATéRIA INFRACONSTITUCIONAL. OFENSA INDIRETA. RECURSO NÃO CONhECIDO. I - Questão decidida com base na legislação infraconstitucional (Lei 9.964/2000). Eventual ofensa à Constituição, se ocorrente, seria indireta. II - A jurisprudência desta Corte é no sentido de que a alegada violação ao art. 5º, LV, da Constituição configura, em regra, situação de ofensa reflexa ao texto constitucional, por demandar a análise de legislação processual ordinária. III - Recurso não conhecido.

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o devido processo legal, no que ela respondeu que não porque o procedimento estabelecido na lei foi respeitado.

O último a votar foi o Ministro Ayres Britto, uma das vozes mais liberais da Corte. Todavia, em sua manifestação assinalou:

Estou entendendo também, Senhor Presidente, que neste caso – como em quase todos os casos – o tamanho do devido processo legal se mede com a trena da lei que o institua.

Vou repetir: tamanho do devido processo legal se mede com a trena da lei que o institua.

O Ministro Marco Aurélio apelou para o direito natural, alegando que o cidadão tem esse direito a ser ouvido para ter afastada uma situação jurídica formalizada. Nada obstante os apelos do Ministro Marco Aurélio e a adesão do Ministro Menezes Direito, a Turma entendeu que não houve violação direta ao princípio constitucional do devido processo legal e não conheceu do recurso do contribuinte.

No caso específico do “REFIS”, o Plenário do Tribunal rejeitou, em questão de ordem, o reconhecimento de repercussão geral da controvérsia sob o mesmo fundamento de cuidar-se de matéria infraconstitucional, nos autos do Recurso Extraordinário n. 611.230.192

Essa orientação da Corte frustrou as expectativas dos contribuintes que julgavam que seria aplicado o entendimento consagrado nas “razões de decidir” dos acórdãos que resultaram na edição da Súmula Vinculante n. 21 (É inconstitucional a exigência de depósito ou arrolamento prévios de dinheiro ou bens para admissibilidade de recurso administrativo).193

No julgamento do RE 388.359, que estabeleceu essa nova orientação da Corte, sumulada de modo vinculante, o único voto dissidente foi proferido pelo Ministro Sepúlveda Pertence, outra voz liberal do Tribunal, fiel às manifestações anteriores no sentido de que não há a garantia constitucional ao duplo grau de jurisdição, seja a administrativa, seja a judicial. Ou seja, segundo o Tribunal, nada obstante a previsibilidade legal da exigência de depósito prévio ou de arrolamento de bens, essa exigência se revelaria violadora do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.

192 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 611.230. Relatora Ministra Ellen Gracie, J. 13.8.2010, DJe. N. 159, de 27.8.2010. Eis a ementa do acórdão:

NOTIFICAÇÃO PESSOAL PARA EXCLUSÃO DO PROGRAMA DE RECUPERAÇÃO FISCAL – REFIS. POSSIBILIDADE DA INTIMAÇÃO POR MEIO DA IMPRENSA OFICIAL E DA INTERNET. APLICAÇÃO DOS EFEITOS DA AUSÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL TENDO EM VISTA TRATAR-SE DE DIVERGÊNCIA SOLUCIONÁVEL PELA APLICAÇÃO DA LEGISLAÇÃO FEDERAL. INEXISTÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL.

193 Com efeito, nos julgamentos do Recurso Extraordinário n. 388.359 (Relator Ministro Marco Aurélio, Plenário, J. 28.3.2007, DJ 22.6.2007) e do mérito da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.976 (Relator Ministro Joaquim Barbosa, Plenário, J. 28.3.2007, DJ 18.5.2007), o Tribunal superou a jurisprudência estabelecida na Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.049 (Relator Ministro Carlos Velloso, Plenário, J. 18.5.1995, DJ 25.8.1995), na Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.922 (Relator Ministro Moreira Alves, Plenário, J. 6.10.1999, DJ. 24.11.2000) e na Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.976 (Relator Ministro Moreira Alves, Plenário, J. 6.10.1999, DJ. 24.11.2000) e no Recurso Extraordinário n. 210.246 (Redator Ministro Nelson Jobim, Plenário, J. 12.11.1997, DJ. 17.3.2000), e entendeu como violador do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, a necessidade caução prévia para o exercício de defesa na esfera administrativa.

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Com esteio nesse aludido precedente, havia uma justa e razoável expectativa de que o Tribunal também julgaria inconstitucional a exclusão do REFIS sem o prévio contraditório e ampla defesa, por violação ao devido processo legal.

Pois bem, se no plano estritamente procedimental a jurisprudência da Corte é defensiva na aplicação da cláusula constitucional do “devido processo legal”, salvo em situações excepcionalíssimas como a que resultou na edição da SV 21, no âmbito da substância outro tem sido o caminho palmilhado pelo Tribunal, dando um robusto elastério à referida cláusula, com o reconhecimento do “devido processo legal substantivo”.

é com estribo nesse postulado do “devido processo legal substantivo” que o Tribunal tem apreciado a proporcionalidade e a razoabilidade de todos provimentos normativos submetidos ao seu crivo, sejam emendas constitucionais, tratados internacionais, leis (federais, estaduais ou municipais), medidas provisórias, atos administrativos, regulamentos privados ou decisões judiciais. Ou seja, toda e qualquer norma jurídica poderá ter sindicada a sua validade constitucional se acusada de violação aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade (ou do devido processo legal substantivo).

De efeito, se se ativer somente aos princípios e direitos fundamentais pode-se estabelecer um critério interpretativo, tanto em relação ao conceito do que sejam os direitos fundamentais quanto ao modo de compreendê-los.

Por direitos fundamentais entendo que seja o conjunto de enunciados normativos (regras, princípios e postulados) que devem regular a vida e a liberdade das pessoas, e que devem viabilizar com igualdade de condições e oportunidades, de acordo com as necessidades e possibilidades individuais e coletivas, a todos - e a cada um - dignidade na mútua convivência, com os devidos, decentes, necessários, recíprocos respeito e consideração.

Alicerçado nessa concepção de direitos fundamentais, entendo, por conseguinte, que todo e qualquer sacrifício (ou restrição) de direito fundamental deverá ser razoável e proporcional (compatível, aceitável, necessário e adequado), a revelar a prudência e o bom senso do intérprete (aplicador), segundo as circunstâncias fáticas, os enunciados prescritivos, os paradigmas coletivos e os prismas individuais, na solução do caso concreto.

Esse, ao meu sentir, é o fio-condutor para uma adequada compreensão (e aplicação) dos direitos fundamentais da pessoa humana.

Penso que para uma adequada verificação de eventual desrespeito ao “devido processo legal substantivo”, consubstanciado nos postulados da proporcionalidade e da razoabilidade, devem ser considerados os aludidos critérios.

No STF, um dos ministros mais entusiasmados com o princípio do “devido processo legal”, seja na vertente processual seja na material ou substantiva é o Ministro Celso de Mello, como se percebe em passagens de acórdãos ou decisões de sua relatoria.194 194 Ação Cível Originária n. 1.534 (Plenário, J. 17.3.2011, DJe n. 88, de 11.4.2011): (...) - A imposição de restrições de ordem jurídica, pelo Estado, quer se concretize na esfera judicial, quer se realize no âmbito

estritamente administrativo, supõe, para legitimar-se constitucionalmente, o efetivo respeito, pelo Poder Público, da garantia indisponível do “due process of law”, assegurada, pela Constituição da República (art. 5º, LIV), à generalidade das pessoas, inclusive às próprias pessoas jurídicas de direito público, eis que o Estado, em tema de limitação ou supressão de direitos, não pode exercer a sua autoridade de maneira abusiva e arbitrária. Doutrina. Precedentes.

(...) Com grifos no original. Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.407 (Plenário, J. 7.3.1996, DJ 24.11.2000): (...)

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Na mesma toada seguem os demais ministros da Corte, em sede de “devido processo legal substantivo” (ou substantive due process of law).195

VEDAÇÃO DE COLIGAÇÕES PARTIDÁRIAS APENAS NAS ELEIÇÕES PROPORCIONAIS - PROIBIÇÃO LEGAL QUE NÃO SE REVELA ARBITRÁRIA OU IRRAZOÁVEL - RESPEITO À CLÁUSULA DO SUBSTANTIVE DUE PROCESS OF LAW. - O Estado não pode legislar abusivamente. A atividade legislativa está necessariamente sujeita à rígida observância de diretriz fundamental, que, encontrando suporte teórico no princípio da proporcionalidade, veda os excessos normativos e as prescrições irrazoáveis do Poder Público. O princípio da proporcionalidade - que extrai a sua justificação dogmática de diversas cláusulas constitucionais, notadamente daquela que veicula a garantia do substantive due process of law - acha-se vocacionado a inibir e a neutralizar os abusos do Poder Público no exercício de suas funções, qualificando-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais. A norma estatal, que não veicula qualquer conteúdo de irrazoabilidade, presta obséquio ao postulado da proporcionalidade, ajustando-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do substantive due process of law (CF, art. 5º, LIV). Essa cláusula tutelar, ao inibir os efeitos prejudiciais decorrentes do abuso de poder legislativo, enfatiza a noção de que a prerrogativa de legislar outorgada ao Estado constitui atribuição jurídica essencialmente limitada, ainda que o momento de abstrata instauração normativa possa repousar em juízo meramente político ou discricionário do legislador.

Com grifos no original. Recurso Extraordinário n. 529.154 (DJ 16.8.2007): EMENTA: SANÇÕES POLÍTICAS NO DIREITO TRIBUTÁRIO. INADMISSIBILIDADE DA UTILIZAÇÃO, PELO PODER PÚBLICO, DE MEIOS GRAVOSOS

E INDIRETOS DE COERÇÃO ESTATAL DESTINADOS A COMPELIR O CONTRIBUINTE INADIMPLENTE A PAGAR O TRIBUTO (SÚMULAS 70, 323 E 547 DO STF). RESTRIÇÕES ESTATAIS, QUE, FUNDADAS EM EXIGÊNCIAS QUE TRANSGRIDEM OS POSTULADOS DA RAZOABILIDADE E DA PROPORCIONALIDADE EM SENTIDO ESTRITO, CULMINAM POR INVIABILIZAR, SEM JUSTO FUNDAMENTO, O EXERCÍCIO, PELO SUJEITO PASSIVO DA OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA, DE ATIVIDADE ECONÔMICA OU PROFISSIONAL LÍCITA. LIMITAÇÕES ARBITRÁRIAS QUE NÃO PODEM SER IMPOSTAS PELO ESTADO AO CONTRIBUINTE EM DÉBITO, SOB PENA DE OFENSA AO “SUBSTANTIVE DUE PROCESS OF LAW”. IMPOSSIBILIDADE CONSTITUCIONAL DE O ESTADO LEGISLAR DE MODO ABUSIVO OU IMODERADO (RTJ 160/140-141 - RTJ 173/807-808 - RTJ 178/22-24). O PODER DE TRIBUTAR - QUE ENCONTRA LIMITAÇÕES ESSENCIAIS NO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL, INSTITUÍDAS EM FAVOR DO CONTRIBUINTE - “NÃO PODE CHEGAR À DESMEDIDA DO PODER DE DESTRUIR” (MIN. OROSIMBO NONATO, RDA 34/132). A PRERROGATIVA ESTATAL DE TRIBUTAR TRADUZ PODER CUJO EXERCÍCIO NÃO PODE COMPROMETER A LIBERDADE DE TRABALHO, DE COMÉRCIO E DE INDÚSTRIA DO CONTRIBUINTE. A SIGNIFICAÇÃO TUTELAR, EM NOSSO SISTEMA JURÍDICO, DO “ESTATUTO CONSTITUCIONAL DO CONTRIBUINTE”. DOUTRINA. PRECEDENTES. RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO.

(...)195 Tenha-se parcela de ementa de acórdão nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 173 (Relator

Ministro Joaquim Barbosa, Plenário, J. 26.9.2008, DJ 20.3.2009): (...) 3. Esta Corte tem historicamente confirmado e garantido a proibição constitucional às sanções políticas, invocando, para

tanto, o direito ao exercício de atividades econômicas e profissionais lícitas (art. 170, par. ún., da Constituição), a violação do devido processo legal substantivo (falta de proporcionalidade e razoabilidade de medidas gravosas que se predispõem a substituir os mecanismos de cobrança de créditos tributários) e a violação do devido processo legal manifestado no direito de acesso aos órgãos do Executivo ou do Judiciário tanto para controle da validade dos créditos tributários, cuja inadimplência pretensamente justifica a nefasta penalidade, quanto para controle do próprio ato que culmina na restrição.

É inequívoco, contudo, que a orientação firmada pelo Supremo Tribunal Federal não serve de escusa ao deliberado e temerário desrespeito à legislação tributária. Não há que se falar em sanção política se as restrições à prática de atividade econômica objetivam combater estruturas empresariais que têm na inadimplência tributária sistemática e consciente sua maior vantagem concorrencial. Para ser tida como inconstitucional, a restrição ao exercício de atividade econômica deve ser desproporcional e não-razoável.

(...)

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O Tribunal tem afastado o uso de “sanções políticas” como instrumento de cobrança de tributos por entender violado o princípio do devido processo legal substantivo.196

Discussão semelhante está ocorrendo na Corte nos autos do Recurso Extraordinário n. 550.769 e na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.952, ambos sob a relatoria do Ministro Joaquim Barbosa. Nesses aludidos feitos questiona-se a validade constitucional do “regime especial de IPI das empresas tabagistas” regulado pelo Decreto-Lei n. 1.593/1977.197

As teses no sentido da invalidade do citado “regime especial” sustentam a violação dos princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa, da presunção de inocência, da vedação de sanções políticas, da livre iniciativa, da proporcionalidade e da razoabilidade.

Oficiando na qualidade de procurador da Fazenda Nacional apresentei parecer cuja ementa tem o subseqüente teor:

Constitucional. Tributário. IPI. Regime Especial. Decreto-Lei n. 1.593/1977.

Devido processo legal substantivo respeitado.

Indústria tabagista. Atividade econômica tolerada pelo Estado.

Razoabilidade e proporcionalidade das restrições legais inquinadas.

Ponderação de interesses. Saúde pública. Defesa do consumidor. Liberdade de concorrência.

A livre iniciativa tem por fim assegurar a todos existência digna.

Todas as normas e medidas jurídicas para controlar com rigor e austeridade a produção de cigarros são constitucionalmente válidas, politicamente legítimas, moralmente aceitáveis e socialmente desejáveis.198

O julgamento dos mencionados feitos já se iniciou. No referido RE 550.769, o relator Ministro Joaquim Barbosa votou pelo desprovimento do recurso, por entender que no caso concreto não se vislumbrava a alegada inconstitucionalidade. Após o seu voto, pediu vista do feito o Ministro Ricardo Lewandowski. No julgamento da ADIN 3952, o relator

196 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 413.782, Relator Ministro Marco Aurélio, Plenário, J. 17.3.2005, DJ 3.6.2005).

197 Eis o dispositivo atacado: Art. 2o O registro especial poderá ser cancelado, a qualquer tempo, pela autoridade concedente, se, após a sua concessão,

ocorrer um dos seguintes fatos: I - desatendimento dos requisitos que condicionaram a concessão do registro; II - não-cumprimento de obrigação tributária principal ou acessória, relativa a tributo ou contribuição administrado pela

Secretaria da Receita Federal; III - prática de conluio ou fraude, como definidos na Lei no 4.502, de 30 de novembro de 1964, ou de crime contra a ordem

tributária previsto na Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, ou de qualquer outra infração cuja tipificação decorra do descumprimento de normas reguladoras da produção, importação e comercialização de cigarros e outros derivados de tabaco, após decisão transitada em julgado.

................................................................ § 5o Do ato que cancelar o registro especial caberá recurso ao Secretário da Receita Federal, sem efeito

suspensivo, dentro de trinta dias, contados da data de sua publicação, sendo definitiva a decisão na esfera administrativa.

198 ALVES JR., Luís Carlos Martins. IPI – Regime Especial Relativos às Empresas Fabricantes de Cigarros. Parecer. Revista Dialética de Direito Tributário n. 169, pp. 169-180, São Paulo: Dialética, outubro de 2009, pp. 169-180.

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Ministro Joaquim Barbosa votou pela procedência parcial do pedido. Após o seu voto, pediu vista a Ministra Cármen Lúcia. 199

Se a Corte vier a decretar a inconstitucionalidade do aludido dispositivo estará assemelhando as situações às mesmas hipóteses dos precedentes relativos às “sanções políticas”. Se acaso o Tribunal julgar válido o conjunto normativo estará fazendo uma delicada e relevante distinção no sentido de que a finalidade precípua do regime especial não é a cobrança do tributo, mas a regularidade da atividade econômica.

Nada obstante tenha oficiado no sentido da validade constitucional das normas jurídicas impugnadas, parece-me aceitável eventual decisão em sentido contrário.

Nessa perspectiva, à luz do que foi exposto, é de ver que a jurisprudência da Corte, em sede de “devido processo legal processual” é defensiva e praticamente não conhece das controvérsias que lhe são submetidas sob o fundamento de cuidar-se de matéria infraconstitucional.

Já em sede de “devido processo legal substantivo”, o Tribunal avançar no conhecimento das causas e verifica se as normas jurídicas estão em conformidade com os postulados da razoabilidade e da proporcionalidade (compatibilidade, aceitabilidade, necessidade e adequação).

Finalizo este tópico recordando o já citado Nelson Nery Júnior200:

Resumindo o que foi dito sobre esse importante princípio, verifica-se que a cláusula procedural due process of law nada mais é do que a possibilidade efetiva de a parte ter acesso à justiça, deduzindo pretensão e defendendo-se do modo mais amplo possível, isto é, de ter his day in Court, na denominação genérica da Suprema Corte dos Estados Unidos.

Bastaria a Constituição Federal de 1988 ter enunciado o princípio do devido processo legal, e o caput e a maioria dos incisos do art. 5o seriam absolutamente despiciendos. De todo modo, a explicitação das garantias fundamentais derivadas do devido processo legal, como preceitos desdobrados nos incisos do art. 5o, CF, é uma forma de enfatizar a importância dessas garantias, norteando a administração pública, o Legislativo e o Judiciário para que possam aplicar a cláusula sem maiores indagações.

Como aludido no referido magistério doutrinário, os temas do “contraditório”, da “ampla defesa” e das “provas ilícitas”, indiscutíveis derivações do “devido processo legal”, também têm sido objeto de apreciação na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, pois a tradição autoritária do direito brasileiro pressupõe a explicitação de garantias fundamentais. Não são prescrições meramente expletivas, mas dispositivos prenhes de forte conteúdo normativo.

Considerações finais

Ao meu sentir, o STF, no tocante ao “devido processo legal processual”, tem se esquivado de julgar as controvérsias, sob a justificativa de cuidar-se de tema de índole infraconstitucional. Mas no que toca ao “devido processo legal substantivo”, o Tribunal tem procurado atuar estrita obediência à Constituição, inquinando de inválidas

199 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Informativo de Jurisprudência ns. 505 e 605.200 Obra citada, p. 42.

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as normas desproporcionais ou desarrazoadas, ou seja, incompatíveis, desnecessárias, inadequadas e inaceitáveis.

De efeito, nos regimes constitucionais democráticos, como o nosso pretende ser, devem os juízes (de quaisquer instâncias) julgar as causas segundo o ordenamento jurídico (Constituição, Leis nacionais, “Leis” internacionais, precedentes e costumes), de modo a garantir a correta punição dos culpados e a devida absolvição dos inocentes, pois a Justiça está no rigoroso e imparcial cumprimento da “Lei”, temperada, de acordo com as circunstâncias do caso, com a equidade (bom senso e prudência).

E, para finalizar, relembro clássica passagem de Pimenta Bueno201, nosso constitucionalista canônico, escrita no ano de 1857, mas de extrema atualidade para os dias que vivenciamos:

Por isso mesmo que a sociedade deve possuir e exigir uma administração da justiça protetora, fácil, pronta e imparcial; por isso mesmo que este poder exerce preponderante influência sobre a ordem pública e destinos sociais, influência que se estende sobre todas as classes, que se exerce diariamente sobre a honra, liberdade, fortuna e vida dos cidadãos; por isso mesmo, dizemos, é óbvio que nem a constituição nem as leis orgânicas deveriam jamais olvidar-se das condições essenciais para que ele ministre todas as garantias, para que possa desempenhar sua alta missão, e ao mesmo tempo não possa abusar sem recursos ou impunemente.

A constituição especial do poder judiciário é um objeto digno de toda a atenção nacional; e felizmente a nossa lei fundamental firmou e bem, as bases, as mais importantes.

201 Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império, Brasília: Senado Federal, 1978, p. 321.

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10. A PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DO DIREITO DO CONSUMIDOR NA DINÂMICA JURISPRUDENCIAL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.202

Em homenagem aos colegas professores hector Valverde Santana, Leonardo Roscoe Bessa e Roberto Freitas Filho, representantes da nova geração que tem levado o estudo do direito do consumidor a sério.

Introdução

Na Constituição brasileira o termo “consumidor” consta nos seguintes dispositivos:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: ...

XXXII: o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor;

Art. 170: A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:...

V – defesa do consumidor;

Art. 48, ADCT: O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor.

Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:...

VIII – responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico;

1.5. Art. 150, § 5º. A lei determinará medidas para que os consumidores sejam esclarecidos acerca dos impostos que incidam sobre mercadorias e serviços.

1.6 Art. 155, § 2º, VII, alíneas “a” e “b”. Em relação às operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final localizado em outro Estado, adotar-se-á: a) a alíquota interestadual, quando o destinatário for contribuinte do imposto; b) a alíquota interna, quando o destinatário não for contribuinte dele.

Naquilo que nos interessa imediatamente, indaga-se: Qual o alcance normativo desses enunciados constitucionais, na quadra paradigmática do Estado que se diz e que se quer Democrático e de Direito? Como esses dispositivos têm sido aplicados na dinâmica jurisprudencial do STF? Como conciliar a autonomia da vontade do consumidor, o seu

202 Texto construído a partir de palestra proferida na XIII Jornada Jurídica do Curso de Direito do Centro Universitário de Anápolis. Tema central: Questões atuais do Direito do Consumidor. Evento realizado no Fórum de Anápolis, entre os dias 30.5.2012 e 1º.6.2012.

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livre-arbítrio, a sua responsabilidade com as intervenções normativas estatais, em aparente detrimento da livre iniciativa e da livre concorrência? Como conciliar a soberania nacional com os compromissos internacionais, e as autonomias constitucionais dos Estados e Municípios?

As respostas a essas indagações pressupõem uma análise do sistema jurídico como um todo, pois, como tem ensinado Eros Roberto Grau203, não se interpreta o direito em tiras, mas em sua totalidade. Também visitaremos as principais decisões da Corte tendo com parâmetro normativo a defesa do consumidor.

O paradigma interpretativo da defesa do consumidor

Pois bem, como se vê, a defesa do consumidor foi alçada a norma constitucional e no dia 11 de setembro de 1990 foi promulgada a Lei n. 8.078, também conhecida como “Código de Defesa do Consumidor”.

Como sabemos, o Estado Democrático de Direito é síntese e superação do Estado Liberal omisso ante às questões sociais e do Estado Social interventor nas relações econômicas. é o paradigma que pretende conciliar o liberal individualismo com a justiça social igualitária.

Nesse domínio, as relações de consumo se apresentam como campos delicados de intervenção normativa estatal. Sucede, no entanto, que o texto constitucional enuncia a necessidade da defesa do consumidor, pois parte da premissa que no desequilíbrio das relações sociais o lado mais fraco é o do consumidor. Ou seja, nas relações de consumo, a Constituição fez uma opção normativa preferencial pelos consumidores.

Conseqüências práticas dessa opção normativa: uma jurisprudência que efetivamente tem sido favorável ao consumidor nas controvérsias judiciais. Mas essa proteção judicial deve ser vista com cautela, sob pena de adotarmos uma visão “maternalista” do direito, no sentido de tratarmos os consumidores como verdadeiros incapazes e irresponsáveis ante as conseqüências de seus atos e escolhas. Nessa aludida perspectiva “maternalista”, os consumidores teriam os seus atos e escolhas infelizes, mesmo que conscientes, eternamente justificados e perdoados por um sistema jurídico excessivamente protetivo.

A proteção constitucional, resguardada pela atuação judicial, deve ser para o consumidor que age de boa-fé em face do fornecedor ou prestador que age de má-fé. Ou seja, o Estado deve proteger a boa-fé ante a má-fé. De sorte que consumidor de má-fé não pode se beneficiar em face de fornecedor ou prestador que age de boa-fé. É velho, porém atual, o brocardo segundo o qual “ninguém pode se aproveitar de sua própria torpeza”.

Nessa linha, a parte complexa na solução das controvérsias consumeristas consiste em descobrir se alguma das partes agiu de má-fé. Ou se houve boa-fé por parte do consumidor. Chamarei de boa-fé a sinceridade de propósitos. Age de má-fé a ausência dessa sinceridade de propósitos, bem como a omissão de informações relevantes acerca de suas reais intenções. Uma relação de consumo deve ser uma relação de propósitos sinceros que não visam a prejudicar a outra parte.

No direito do consumidor não deve haver ganhadores e perdedores, mas apenas ganhadores, pois é a regulação de mútuos e recíprocos interesses. Alguém quer

203 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 44.

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vender um produto (ou serviço) ou fornecer um produto (ou serviço) para outrem que deseja esse produto (ou serviço) prestado. Cuide-se que há relações sinceras nas quais o objetivo é a vitória sobre o outro, como sucede nas relações esportivas. Por exemplo, uma partida de tênis.

Com efeito, o adversário sabe que o outro deseja ganhar, obter a vitória. Mas essa vitória deve ser obtida dentro das regras do jogo. De sorte que perder, dentro das regras do jogo, é um resultado justo. No jogo, dentro das suas regras, é possível induzir o adversário em erro, iludi-lo, enganá-lo, inclusive “driblá-lo”.

Já nas relações de consumo não é possível “iludir”, “enganar”, “driblar”, induzir em erro. As partes devem agir com boa-fé, com sinceridade de propósitos e devem informar, de modo recíproco, as suas verdadeiras intenções. A parte que faltar com a boa-fé ou que agir de má-fé não merece a proteção normativa do sistema jurídico.

Fincados esses alicerces, passo a analisar como o Supremo Tribunal Federal tem decidido as questões consumeristas que lhe são submetidas.

Os precedentes judiciais do STF

De início antecipo que o STF tem uma jurisprudência defensiva no conhecimento das questões de direito do consumidor. A espantosa maioria das decisões do Tribunal é no sentido que as controvérsias consumeristas têm caráter de conflito legal, sem alcançar violação constitucional direta. Essa orientação jurisprudencial é facilmente comprovada pelas decisões que apreciaram a preliminar de reconhecimento de repercussão geral sobre questões que tinham o direito do consumidor como parâmetro normativo: RE 667.958204, ARE 643.085205, ARE 640.713206, ARE

204 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 667.958. Repercussão Geral. Relator Ministro Gilmar Mendes. Plenário. J. 8.3.2012. DJ. 27.3.2012. Ementa: Recurso Extraordinário. 2. Análise da possibilidade de os entes federativos, empresas e entidades públicas ou privadas entregarem diretamente suas guias ou boletos de cobranças aos contribuintes ou consumidores 3. Recurso Extraordinário em que a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos sustenta violação ao artigo 21, x, da Constituição Federal, segundo o qual compete à União manter o serviço postal e o correio aéreo nacional. 4. Razões recursais que também sustentam ofensa aos arts. 170 e 175 da CF. 5. Tema que diz respeito à organização político-administrativa do Estado, alcançando, portanto, relevância econômica, política e jurídica, que ultrapassa os interesses subjetivos da causa. 6. Repercussão Geral reconhecida.

205 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo em Recurso Extraordinário n. 643.085. Plenário. Relator ministro Presidente. J. 5.8.2011. DJ. 5.9.2011. Ementa: RECURSO. Agravo convertido em Extraordinário. Inadmissibilidade deste. Exibição de documentos. Extratos bancários. Instituição financeira. Direito do consumidor. Tema infraconstitucional. Precedentes. Ausência de repercussão geral. Recurso extraordinário não conhecido. Não apresenta repercussão geral recurso extraordinário que, tendo por objeto dever de as instituições financeiras entregarem os extratos de conta poupança aos respectivos titulares, quando solicitados, versa sobre tema infraconstitucional.

206 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo em Recurso Extraordinário n. 640.713. Plenário. Relator ministro Presidente. J. 5.8.2011. DJ. 21.9.2011. EMENTA: RECURSO. Agravo convertido em Extraordinário. Inadmissibilidade deste. Cláusulas previstas em contrato. Abusividade. Código de Defesa do Consumidor. Tema infraconstitucional. Precedentes. Ausência de repercussão geral. Recurso extraordinário não conhecido. Não apresenta repercussão geral recurso extraordinário que, tendo por objeto declaração por decisão judicial da abusividade do percentual da taxa de administração previsto em cláusula de contrato de consórcio, versa sobre tema infraconstitucional.

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640.523207, ARE 638.484208, ARE 640.525209, AI 839.695210, AI 844.474211, AI 844.777212, RE 611.639213,

207 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo em Recurso Extraordinário n. 640.523. Plenário. Relator ministro Presidente. J. 23.6.2011. DJ. 30.8.2011. EMENTA: RECURSO. Agravo convertido em Extraordinário. Inadmissibilidade deste. Valor das astreintes. Destinação. Fundo estadual de defesa do consumidor. Tema infraconstitucional. Precedentes. Ausência de repercussão geral. Recurso extraordinário não conhecido. Não apresenta repercussão geral recurso extraordinário que, tendo por objeto a possibilidade de se destinar parte do valor das astreintes a fundo de defesa do consumidor, versa sobre tema infraconstitucional.

208 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo em Recurso Extraordinário n. 638.484. Plenário. Relator ministro Presidente. J. 9.6.2011. DJ. 30.8.2011. EMENTA: RECURSO. Agravo convertido em Extraordinário. Reserva de Lei Complementar. Repasse do PIS e da COFINS. Faturas telefônicas. Consumidor. Relevância do tema. Repercussão geral reconhecida. Apresenta repercussão geral recurso extraordinário que verse sobre necessidade de Lei Complementar para autorizar o repasse do PIS e da COFINS ao consumidor, em faturas telefônicas.

209 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo em Recurso Extraordinário n. 640.525. Plenário. Relator ministro Presidente. J. 9.6.2011. DJ. 30.8.2011. EMENTA: RECURSO. Agravo convertido em Extraordinário. Inadmissibilidade deste. Responsabilidade civil. Dano material. Relações contratuais e extracontratuais. Tema infraconstitucional. Precedentes. Ausência de repercussão geral. Recurso extraordinário não conhecido. Não apresenta repercussão geral recurso extraordinário que, tendo por objeto a responsabilidade de instituição financeira por dano material causado a consumidor, versa sobre tema infraconstitucional.

210 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo de Instrumento n. 839.695. Plenário. Relator ministro Presidente. J. 9.6.2011. DJ. 31.8.2011. EMENTA: RECURSO. Agravo de instrumento convertido em Extraordinário. Inadmissibilidade deste. Quantum indenizatório. Danos morais e materiais. Concessionária de serviço público. Consumidor. Tema infraconstitucional. Precedentes. Ausência de repercussão geral. Recurso extraordinário não conhecido. Não apresenta repercussão geral recurso extraordinário que, tendo por objeto o quantum indenizatório de condenação por danos morais e materiais decorrentes da relação entre concessionária de serviço público e consumidor, versa sobre tema infraconstitucional.

211 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo de Instrumento n. 844.474. Plenário. Relator ministro Presidente. J. 9.6.2011. DJ. 31.8.2011. EMENTA: RECURSO. Agravo de instrumento convertido em Extraordinário. Inadmissibilidade deste. Contratos bancários. Art. 1º da Lei de Usura. Aplicação. Taxa de juros. Limite de 12% ao ano. Tema infraconstitucional. Precedentes. Ausência de repercussão geral. Recurso extraordinário não conhecido. Não apresenta repercussão geral recurso extraordinário que, tendo por objeto a aplicação, aos contratos bancários, do art. 1º da Lei de Usura, que limita a taxa de juros a 12% ao ano, versa sobre tema infraconstitucional.

212 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo de Instrumento n. 844.777. Plenário. Relator ministro Presidente. J. 9.6.2011. DJ. 31.8.2011. EMENTA: RECURSO. Agravo de instrumento convertido em Extraordinário. Inadmissibilidade deste. Obrigações contratuais. Concessionária de serviço público. Área de risco. Integridade física dos funcionários. Tema infraconstitucional. Precedentes. Ausência de repercussão geral. Recurso extraordinário não conhecido. Não apresenta repercussão geral recurso extraordinário que, tendo por objeto o dever de cumprimento das obrigações contratuais, por concessionária de serviço público, em área de risco à integridade física de seus funcionários, versa sobre tema infraconstitucional.

213 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 611.639. Plenário. Relator ministro Marco Aurélio. J. 9.12.2010. DJ. 31.3.2011. EMENTA: VEíCULOS AUTOMOTORES - GRAVAME - OBRIGATORIEDADE DO REGISTRO EM CARTÓRIO DE TíTULOS E DOCUMENTOS - INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 1.361, § 1º, DO CÓDIGO CIVIL DECLARADA NA ORIGEM. Possui repercussão geral a controvérsia sobre a constitucionalidade do artigo 1.361, § 1º, do Código Civil no tocante à obrigatoriedade do registro, no cartório de títulos e documentos, do contrato de alienação fiduciária de veículos automotores, mesmo com a anotação no órgão de licenciamento.

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AI 804.209214, AI 751.521215, AI 765.567216, AI 754.745217, RE 591.797218, AI 762.184219, RE 579.073220, RE 576.189221, RE 565.138222 e RE 641.005223.

214 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo de Instrumento n. 804.209. Plenário. Relator ministro Gilmar Mendes. J. 16.9.2010. DJ. 14.10.2010. EMENTA: Juros. Limitação em 12% ao ano. Contratos celebrados após o advento da Emenda Constitucional n. 40/2003. Legislação Infraconstitucional. Inexistência de repercussão geral.

215 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo de Instrumento n. 751.521. Plenário. Relator ministro Gilmar Mendes. J. 13.8.2010. DJ. 23.9.2010. EMENTA: Direito do consumidor. Contratos bancários. Planos Econômicos. Correção monetária. Cadernetas de poupança. Índice de atualização. Direito adquirido. Expurgos inflacionários. Plano Collor I. Valores bloqueados. Repercussão Geral Reconhecida.

216 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo de Instrumento n. 765.567. Plenário. Relator ministro Gilmar Mendes. J. 13.8.2010. DJ. 30.9.2010. EMENTA: Direito do Consumidor. Responsabilidade do Fornecedor. Indenização por danos morais e materiais. Prestação de serviço. Ineficiência. Matéria infraconstitucional. Repercussão geral rejeitada.

217 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo de Instrumento n. 754.745. Plenário. Relator ministro Gilmar Mendes. J. 13.8.2010. DJ. 19.5.2011. EMENTA: Direito do consumidor. Contratos bancários. Planos Econômicos. Correção monetária. Cadernetas de poupança. Índice de atualização. Direito adquirido. Expurgos inflacionários. Plano Collor II. Repercussão Geral Reconhecida.

218 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 591.797. Plenário. Relator ministro Dias Toffoli. J. 15.4.2010. DJ. 29.4.2010. EMENTA: EMENTA DIREITO CONSTITUCIONAL. PRINCíPIOS DO DIREITO ADQUIRIDO E ATO JURíDICO PERFEITO. POUPANÇA. ExPURGOS INFLACIONÁRIOS. PLANO ECONÔMICO COLLOR I. VALORES NÃO BLOQUEADOS. ExISTÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL.

219 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo de Instrumento n. 762.184. Plenário. Relator ministro Cezar Peluso. J. 22.10.2009. DJ. 17.12.2009. EMENTA: RECURSO. Extraordinário. Extravio de bagagem. Limitação de danos materiais e morais. Convenção de Varsóvia. Código de Defesa do Consumidor. Princípio constitucional da indenizabilidade irrestrita. Norma prevalecente. Relevância da questão. Repercussão geral reconhecida. Apresenta repercussão geral o recurso extraordinário que verse sobre a possibilidade de limitação, com fundamento na Convenção de Varsóvia, das indenizações de danos morais e materiais, decorrentes de extravio de bagagem.

220 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 579.073. Plenário. Relator ministro Cezar Peluso. J. 17.9.2009. DJ. 12.11.2009. EMENTA: RECURSO. Extraordinário. Incognoscibilidade. Sistema financeiro da habitação. Contrato de mútuo. Saldo devedor. Critério de reajuste. Questão infraconstitucional. Precedentes. Ausência de repercussão geral. Recurso extraordinário não conhecido. Não apresenta repercussão geral o recurso extraordinário que, tendo por objeto questão relativa ao critério de reajuste de saldo devedor de contrato de mútuo firmado no âmbito do sistema financeiro da habitação, versa sobre matéria infraconstitucional.

221 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 576.189. Plenário. Relator ministro Ricardo Lewandowski. J. 20.3.2008. DJ. 10.4.2008. EMENTA: DA CONSTITUCIONALIDADE DOS ENCARGOS PREVISTOS NA LEI 10.438/2002. NATUREzA JURíDICA. TARIFA OU TRIBUTO. RELEVÂNCIA ECONÔMICA E JURíDICA. QUANTIDADE ExTRAORDINÁRIA DE RECURSOS. NÚMERO ELEVADO DE PROCESSOS JUDICIAIS. ExISTÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL.

222 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 565.138. Plenário. Relator ministro Menezes Direito. J. 5.12.2007. DJ. 6.12.2007. EMENTA: Código de Defesa do Consumidor. Danos materiais e morais. Recurso Extraordinário interposto pela Confederação Brasileira de Futebol - CBF. Ausência de repercussão geral.

223 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 641.005. Plenário. Relator ministro Luiz Fux. J. 24.5.2012. DJe. 22.6.2012. Ementa: DIREITO CONSTITUCIONAL E CONSUMERISTA. AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS EDUCACIONAIS POR INSTITUIÇÃO PRIVADA. RELAÇÃO DE CONSUMO. SUJEIÇÃO AO PRINCíPIO DA DEFESA DO CONSUMIDOR. PAGAMENTO DE VALOR A TíTULO DE SEMESTRALIDADE INDEPENDENTE DA CARGA hORÁRIA E DO NÚMERO DE DISCIPLINAS.

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Ou seja, a Corte na maioria das vezes não enfrenta as causas relativas ao direito do consumidor, pelo fundamento de se tratar de matéria infraconstitucional. Sucede que o direito do consumidor é direito fundamental, por essa expressa dicção constitucional. Se o STF é uma “Corte Judicial de Direitos Fundamentais”, como tem reverberado, em princípio, as questões de direito do consumidor deveriam receber outro tratamento judicial.

Mas não é o que acontece. A rigor, neste país, o grande tribunal das causas dos consumidores é o Superior Tribunal de Justiça. Nada obstante essa jurisprudência restritiva, o STF tem importantes decisões nessa matéria, que merecem nossa atenção. Passo ao exame delas.

Cuide-se que há duas Súmulas da Corte que tocam a matéria do consumidor: a Súmula n. 643 e a Súmula Vinculante n. 27.

A Súmula 643 tem o seguinte enunciado:

O Ministério Público tem legitimidade para promover ação civil pública cujo fundamento seja a ilegalidade de reajuste de mensalidades escolares.

SV 27 tem o seguinte teor normativo:

Compete à justiça estadual julgar causas entre consumidor e concessionária de serviço público de telefonia, quando a ANATEL não seja litisconsorte passiva necessária, assistente, nem opoente.

Tramita na Corte um feito relevante, tanto para o direito do consumidor quanto para o direito internacional. Trata-se do reconhecimento de repercussão geral, nos autos do AI 762.184224, relatoria ministro Cezar Peluso, que apreciará o tema do direito do consumidor e a Convenção de Varsóvia.

A questão discute sobre a possibilidade de limitação, com fundamento na Convenção de Varsóvia (uma convenção internacional subscrita pela República brasileira), das indenizações de danos morais e materiais, decorrentes de extravio de bagagem. O Tribunal tem jurisprudência vacilante sobre esse tema.

Com efeito, no julgamento do RE 297.901225, a 2ª Turma do Tribunal decidiu, com apoio no precedente estabelecido no RE 214.349226, da 1ª Turma, que no caso específico

224 BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Agravo de Instrumento n. 762.184 – Questão de Ordem, relator ministro Cezar Peluso. J. 22.10.2009, DJ. 17.12.2009. EMENTA: RECURSO. Extraordinário. Extravio de bagagem. Limitação de danos materiais e morais. Convenção de Varsóvia. Código de Defesa do Consumidor. Princípio constitucional da indenizabilidade irrestrita. Norma prevalecente. Relevância da questão. Repercussão geral reconhecida. Apresenta repercussão geral o recurso extraordinário que verse sobre a possibilidade de limitação, com fundamento na Convenção de Varsóvia, das indenizações de danos morais e materiais, decorrentes de extravio de bagagem.

225 BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Recurso Extraordinário n. 297.901, 2ª Turma, relatora ministra Ellen Gracie. J. 7.3.2006. DJ. 31.3.2006. EMENTA: PRAzO PRESCRICIONAL. CONVENÇÃO DE VARSÓVIA E CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. 1. O art. 5º, § 2º, da Constituição Federal se refere a tratados internacionais relativos a direitos e garantias fundamentais, matéria não objeto da Convenção de Varsóvia, que trata da limitação da responsabilidade civil do transportador aéreo internacional (RE 214.349, rel. Min. Moreira Alves, DJ 11.6.99). 2. Embora válida a norma do Código de Defesa do Consumidor quanto aos consumidores em geral, no caso específico de contrato de transporte internacional aéreo, com base no art. 178 da Constituição Federal de 1988, prevalece a Convenção de Varsóvia, que determina prazo prescricional de dois anos. 3. Recurso provido.

226 BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Recurso Extraordinário n. 214.349, 1ª Turma, relator ministro Moreira Alves. J. 13.4.1999. DJ. 11.6.1999. EMENTA: Recurso extraordinário. Responsabilidade civil. Transporte aéreo internacional. - As questões relativas aos artigos 5º, II, 93, Ix, e 178 da Constituição

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de transporte internacional aéreo, com espeque no art. 178, CF, prevalece a Convenção de Varsóvia. Todavia, no RE 351.750227, a 1ª Turma, revendo seu entendimento, decidiu que o princípio da defesa do consumidor se aplica a todo capítulo constitucional da atividade econômica e que as normas constantes do Código Brasileiro da Aeronáutica e da Convenção de Varsóvia devem ser afastadas quando implicarem retrocesso social ou vilipêndio aos direitos assegurados pelo Código de Defesa do Consumidor.

O voto-vencedor, capitaneado pelo ministro Ayres Britto228, atual presidente da Corte, se fiou na tese segundo a qual as normas constitucionais sobre o direito do consumidor densificam o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Nessa perspectiva, segundo o ministro Ayres Britto, as normas relativas ao direito do consumidor, por serem normas de direitos fundamentais, não poderiam sofrer retrocesso que lhes enfraquecessem.

Desse entendimento divergiu o ministro Eros Grau. Segundo o ministro Eros Grau229, no caso específico, de indenização de transporte aéreo internacional, deve prevalecer a norma específica constante nos acordos internacionais assumidos pela República brasileira.

Nada obstante a divergência do ministro Eros Grau, os demais ministros da Turma acompanharam o voto-vencedor do ministro Ayres Britto.

A empresa aérea recorrente (VARIG S/A) interpôs o recurso de embargos divergentes, de sorte que esse aludido feito ainda não transitou em julgado. Como assinalei, o tema teve sua repercussão geral reconhecida e será julgado definitivamente pelo soberano plenário da Corte. é uma questão delicada.

De um lado o direito fundamental do consumidor de receber uma justa e adequada indenização, se houver a aplicação do Código de Defesa do Consumidor. D’outro lado a incidência de norma internacional vigente, que estaria sendo afastada pelo STF brasileiro.

Eis o aspecto complicador: ou o Brasil, via STF, escolhe aplicar a legislação nacional, em homenagem ao direito fundamental do consumidor ou escolhe aplicar a legislação internacional, em homenagem à boa-fé e à segurança jurídica nas relações internacionais.

Federal não foram ventiladas na decisão recorrida, nem foram objeto de embargos de declaração, motivo por que lhes falta o indispensável prequestionamento (súmulas 282 e 356). Por outro lado, no tocante à alegação de ofensa ao artigo 5º, § 2º, da Constituição, ela não ocorre, porquanto esse dispositivo se refere a tratados internacionais relativos a direitos e garantias fundamentais, o que não é matéria objeto da Convenção de Varsóvia e do Protocolo de haia no tocante à limitação da responsabilidade civil do transportador aéreo internacional. Recurso extraordinário não conhecido.

227 BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Recurso Extraordinário n. 351.750, 1ª Turma, redator ministro Ayres Britto. J. 17.3.2009, DJ. 24.9.2009. EMENTA: RECURSO ExTRAORDINÁRIO. DANOS MORAIS DECORRENTES DE ATRASO OCORRIDO EM VOO INTERNACIONAL. APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. MATéRIA INFRACONSTITUCIONAL. NÃO CONhECIMENTO. 1. O princípio da defesa do consumidor se aplica a todo o capítulo constitucional da atividade econômica. 2. Afastam-se as normas especiais do Código Brasileiro da Aeronáutica e da Convenção de Varsóvia quando implicarem retrocesso social ou vilipêndio aos direitos assegurados pelo Código de Defesa do Consumidor. 3. Não cabe discutir, na instância extraordinária, sobre a correta aplicação do Código de Defesa do Consumidor ou sobre a incidência, no caso concreto, de específicas normas de consumo veiculadas em legislação especial sobre o transporte aéreo internacional. Ofensa indireta à Constituição de República. 4. Recurso não conhecido.

228 BRITTO, Ayres. Brasil. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 351.750, ano 2009, fls. 1112-1117.

229 GRAU, Eros. Brasil. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 351.750, ano 2009, fls. 1099-1106; 1118-1120.

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Pessoalmente, entendo que “tratado assinado é tratado cumprido”. Ou seja, não é lícito a nenhum Estado soberano, sob nenhum pretexto, deixar de cumprir as normas internacionais que soberanamente resolveu se submeter. Entendo que a soberania nacional está em assinar ou deixar de assinar um tratado ou acordo internacional. Está em denunciar esse tratado internacional, mas nunca em descumpri-lo.

Um Estado que deixa de honrar os seus compromissos internacionais não é um Estado digno nem decente, e não merece o crédito nem a confiança da comunidade internacional. Estados que invocam suas leis internas para descumprirem seus compromissos internacionais assumidos conscientemente são Estados “indecentes”, governados por “moleques”. Se o Estado não quer cumprir, que denuncie o tratado e assuma as conseqüências decorrentes desses atos.

Se fosse fazer um exercício de prognose judicial, diria que o Tribunal decidirá pela aplicação da legislação nacional em desfavor da legislação internacional. A bem da verdade, recorde-se que o Tribunal tem palmilhado um entendimento no sentido da supralegalidade normativa dos tratados internacionais.230

Mas, ainda assim, entendo que o STF optará em favor da lei nacional. Provavelmente o Tribunal justificará esse entendimento sob o argumento de que as normas jurídicas internacionais não podem reduzir a potência normativa das normas jurídicas de direitos fundamentais, instalando o direito do consumidor como “cláusula pétrea”.

Tenha-se que a proteção constitucional do consumidor se revela muito mais um direito social coletivo do que um direito liberal individual. Em sendo um direito social coletivo, em vez de um direito liberal individual, não estaria o direito do consumidor albergado pela super-proteção das “cláusulas pétreas”, que se refere unicamente aos direitos e garantias fundamentais individuais, mas não a todo e qualquer direito fundamental, como soe acontecer com os direitos fundamentais coletivos e direitos fundamentais sociais.231

230 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. INFORMATIVO n. 531: Em conclusão de julgamento, o Tribunal concedeu habeas corpus em que se questionava a legitimidade da ordem de prisão, por 60 dias, decretada em desfavor do paciente que, intimado a entregar o bem do qual depositário, não adimplira a obrigação contratual — v. Informativos 471, 477 e 498. Entendeu-se que a circunstância de o Brasil haver subscrito o Pacto de São José da Costa Rica, que restringe a prisão civil por dívida ao descumprimento inescusável de prestação alimentícia (art. 7º, 7), conduz à inexistência de balizas visando à eficácia do que previsto no art. 5º, LxVII, da CF (“não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel;”). Concluiu-se, assim, que, com a introdução do aludido Pacto no ordenamento jurídico nacional, restaram derrogadas as normas estritamente legais definidoras da custódia do depositário infiel. Prevaleceu, no julgamento, por fim, a tese do status de supralegalidade da referida Convenção, inicialmente defendida pelo Min. Gilmar Mendes no julgamento do RE 466343/SP, abaixo relatado. Vencidos, no ponto, os Ministros Celso de Mello, Cezar Peluso, Ellen Gracie e Eros Grau, que a ela davam a qualificação constitucional, perfilhando o entendimento expendido pelo primeiro no voto que proferira nesse recurso. O Min. Marco Aurélio, relativamente a essa questão, se absteve de pronunciamento. hC 87585/TO, rel. Min. Marco Aurélio, 3.12.2008. (hC-87585).

231 Em outra oportunidade escrevi: “A partir da própria Constituição, podemos classificar os direitos fundamentais nas seguintes categorias: direitos individuais, direitos coletivos, direitos liberais, direitos sociais e direitos democráticos. Os direitos individuais são aqueles que a pessoa pode exercer autonomamente, independentemente do concurso de outras pessoas, é um direito seu (singelo exemplo: liberdade de crença ou descrença). Os direitos coletivos são aqueles que somente podem ser exercidos por pelo menos mais de uma pessoa, por um grupo coletivo, é indispensável o concurso de outra pessoa (singelo exemplo: liberdade associativa). Os direitos liberais são aqueles que reduzem ou excluem a

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Mas, como já disse, creio que o Tribunal optará pela legislação nacional em desfavor da legislação internacional. Aguardemos. 232

Passo ao exame de outro tema apreciado pelo STF. O Tribunal na ADIN 2.591 decidiu que o CDC aplica-se às instituições financeiras e companhias seguradoras.233

Nesse aludido julgamento a Corte enfrentou a forte pressão das instituições financeiras que postulavam uma interpretação conforme da Constituição no sentido de que os clientes das instituições financeiras e das companhias seguradoras não poderiam

intervenção do Poder Público na vida das pessoas, é um direito de negação à intrusão do Estado na vida dos indivíduos (singelo exemplo: intimidade). Direitos sociais são aqueles que dependem da atuação do Poder Público ou que exigem prestações positivas do Estado para a efetivação e exercício desses direitos (singelo exemplo: educação pública).” (ALVES JR., Luís Carlos Martins. Direitos constitucionais fundamentais. Belo horizonte: Mandamentos, 2010, p. 59).

232 233 BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2.591.

Plenário. Redator ministro Eros Grau, J. 7.6.2006, DJ. 29.9.2006. EMENTA: CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. ART. 5o, xxxII, DA CB/88. ART. 170, V, DA CB/88. INSTITUIÇõES FINANCEIRAS. SUJEIÇÃO DELAS AO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR, ExCLUíDAS DE SUA ABRANGÊNCIA A DEFINIÇÃO DO CUSTO DAS OPERAÇõES ATIVAS E A REMUNERAÇÃO DAS OPERAÇõES PASSIVAS PRATICADAS NA ExPLORAÇÃO DA INTERMEDIAÇÃO DE DINhEIRO NA ECONOMIA [ART. 3º, § 2º, DO CDC]. MOEDA E TAxA DE JUROS. DEVER-PODER DO BANCO CENTRAL DO BRASIL. SUJEIÇÃO AO CÓDIGO CIVIL. 1. As instituições financeiras estão, todas elas, alcançadas pela incidência das normas veiculadas pelo Código de Defesa do Consumidor. 2. “Consumidor”, para os efeitos do Código de Defesa do Consumidor, é toda pessoa física ou jurídica que utiliza, como destinatário final, atividade bancária, financeira e de crédito. 3. O preceito veiculado pelo art. 3º, § 2º, do Código de Defesa do Consumidor deve ser interpretado em coerência com a Constituição, o que importa em que o custo das operações ativas e a remuneração das operações passivas praticadas por instituições financeiras na exploração da intermediação de dinheiro na economia estejam excluídas da sua abrangência. 4. Ao Conselho Monetário Nacional incumbe a fixação, desde a perspectiva macroeconômica, da taxa base de juros praticável no mercado financeiro. 5. O Banco Central do Brasil está vinculado pelo dever-poder de fiscalizar as instituições financeiras, em especial na estipulação contratual das taxas de juros por elas praticadas no desempenho da intermediação de dinheiro na economia. 6. Ação direta julgada improcedente, afastando-se a exegese que submete às normas do Código de Defesa do Consumidor [Lei n. 8.078/90] a definição do custo das operações ativas e da remuneração das operações passivas praticadas por instituições financeiras no desempenho da intermediação de dinheiro na economia, sem prejuízo do controle, pelo Banco Central do Brasil, e do controle e revisão, pelo Poder Judiciário, nos termos do disposto no Código Civil, em cada caso, de eventual abusividade, onerosidade excessiva ou outras distorções na composição contratual da taxa de juros. ART. 192, DA CB/88. NORMA-OBJETIVO. EXIGÊNCIA DE LEI COMPLEMENTAR ExCLUSIVAMENTE PARA A REGULAMENTAÇÃO DO SISTEMA FINANCEIRO. 7. O preceito veiculado pelo art. 192 da Constituição do Brasil consubstancia norma-objetivo que estabelece os fins a serem perseguidos pelo sistema financeiro nacional, a promoção do desenvolvimento equilibrado do País e a realização dos interesses da coletividade. 8. A exigência de lei complementar veiculada pelo art. 192 da Constituição abrange exclusivamente a regulamentação da estrutura do sistema financeiro. CONSELHO MONETÁRIO NACIONAL. ART. 4º, VIII, DA LEI N. 4.595/64. CAPACIDADE NORMATIVA ATINENTE à CONSTITUIÇÃO, FUNCIONAMENTO E FISCALIzAÇÃO DAS INSTITUIÇõES FINANCEIRAS. ILEGALIDADE DE RESOLUÇõES QUE ExCEDEM ESSA MATéRIA. 9. O Conselho Monetário Nacional é titular de capacidade normativa --- a chamada capacidade normativa de conjuntura --- no exercício da qual lhe incumbe regular, além da constituição e fiscalização, o funcionamento das instituições financeiras, isto é, o desempenho de suas atividades no plano do sistema financeiro. 10. Tudo o quanto exceda esse desempenho não pode ser objeto de regulação por ato normativo produzido pelo Conselho Monetário Nacional. 11. A produção de atos normativos pelo Conselho Monetário Nacional, quando não respeitem ao funcionamento das instituições financeiras, é abusiva, consubstanciando afronta à legalidade.

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ser confundidos com os consumidores de outras empresas, pois haveria peculiaridades das relações financeiras que a distinguiam das outras relações econômicas.

Sem embargo da forte pressão exercida pelas instituições financeiras, o Tribunal, na linha do voto preconizado pelo ministro Eros Grau, decidiu que o CDC aplica-se integralmente às relações financeiras e securitárias, estando o § 2º do art. 3º do Código de Defesa do Consumidor indene de vícios.

Outro julgamento interessante ocorreu nos autos da ADC 9234, no qual o Tribunal reconheceu a validade constitucional das medidas governamentais à época do racionamento de energia elétrica, especificamente as sobretarifas para os consumidores que excederem os limites de consumo. A Corte, em homenagem à solidariedade social, admitiu o afastamento das normas consumeristas, em favor da continuidade da prestação do serviço de fornecimento de energia elétrica para todos, restringindo, via racionamento, a utilização de medidas sancionatórias contra os consumidores recalcitrantes.

Nos julgamentos das ADINs 1.980235 e 2.832236, o STF decidiu favoravelmente às legislações paranaenses que asseguram ao consumidor o direito de obter informações sobre a 234 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 9.

Plenário. Redatora ministra Ellen Gracie. Plenário. J. 13.12.2001. DJ. 23.4.2004. Ementa: AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA PROVISÓRIA nº 2.152-2, DE 1º DE JUNhO DE 2001, E POSTERIORES REEDIÇõES. ARTIGOS 14 A 18. GESTÃO DA CRISE DE ENERGIA ELéTRICA. FIxAÇÃO DE METAS DE CONSUMO E DE UM REGIME ESPECIAL DE TARIFAÇÃO. 1. O valor arrecadado como tarifa especial ou sobretarifa imposta ao consumo de energia elétrica acima das metas estabelecidas pela Medida Provisória em exame será utilizado para custear despesas adicionais, decorrentes da implementação do próprio plano de racionamento, além de beneficiar os consumidores mais poupadores, que serão merecedores de bônus. Este acréscimo não descaracteriza a tarifa como tal, tratando-se de um mecanismo que permite a continuidade da prestação do serviço, com a captação de recursos que têm como destinatários os fornecedores/concessionários do serviço. Implementação, em momento de escassez da oferta de serviço, de política tarifária, por meio de regras com força de lei, conforme previsto no artigo 175, III da Constituição Federal. 2. Atendimento aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, tendo em vista a preocupação com os direitos dos consumidores em geral, na adoção de medidas que permitam que todos continuem a utilizar-se, moderadamente, de uma energia que se apresenta incontestavelmente escassa. 3. Reconhecimento da necessidade de imposição de medidas como a suspensão do fornecimento de energia elétrica aos consumidores que se mostrarem insensíveis à necessidade do exercício da solidariedade social mínima, assegurada a notificação prévia (art. 14, § 4º, II) e a apreciação de casos excepcionais (art. 15, § 5º). 4. Ação declaratória de constitucionalidade cujo pedido se julga procedente.

235 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.980. Plenário. Relator ministro Cezar Peluso. J. 16.4.2009. DJ. 6.8.2009. EMENTA: INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Lei nº 12.420/99, do Estado do Paraná. Consumo. Comercialização de combustíveis no Estado. Consumidor. Direito de obter informações sobre a natureza, procedência e qualidade dos produtos. Proibição de revenda em postos com marca e identificação visual de outra distribuidora. Prevenção de publicidade enganosa. Sanções administrativas. Admissibilidade. Inexistência de ofensa aos arts. 22, incs. I, IV e xII, 170, incs. IV, 177, §§ 1º e 2º, e 238, todos da CF. Ação julgada improcedente. Aplicação dos arts. 24, incs. V e VIII, cc. § 2º, e 170, inc. V, da CF. é constitucional a Lei nº 12.420, de 13 de janeiro de 1999, do Estado do Paraná, que assegura ao consumidor o direito de obter informações sobre a natureza, procedência e qualidade de produtos combustíveis comercializados nos postos revendedores do Estado.

236 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2.832. Plenário. Relator ministro Ricardo Lewandowski. J. 7.5.2008. DJ. 19.6.2008. EMENTA: DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. ADI CONTRA LEI PARANAENSE 13.519, DE 8 DE ABRIL DE 2002, QUE ESTABELECE OBRIGATORIEDADE DE INFORMAÇÃO, CONFORME ESPECIFICA, NOS RÓTULOS DE EMBALAGENS DE CAFé COMERCIALIzADO NO PARANÁ. ALEGAÇÃO DE OFENSA AOS ARTS. 22, I e VIII, 170, CAPUT, IV, E PARÁGRAFO ÚNICO, E 174 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR. OFENSA INDIRETA. AÇÃO JULGADA PARCIALMENTE PROCEDENTE. I - Não há usurpação de competência da União para legislar sobre direito comercial e comércio interestadual porque o ato normativo impugnado buscou, tão-somente, assegurar a proteção ao consumidor. II - Precedente deste Tribunal (ADI 1.980, Rel. Min.

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natureza, procedência e qualidade dos produtos comercializados no Estado do Paraná, e que essas legislações não usurpavam a competência normativa da União Federal, haja vista a competência concorrente sobre direito do consumidor. No entanto, no julgamento da ADIN 855237, o STF declarou inconstitucional a lei paranaense que obrigava os estabelecimentos que comercializassem GLP (gás liquefeito de petróleo) a pesarem, à vista do consumidor, os botijões ou cilindros entregues ou recebidos para substituição, com abatimento proporcional do preço do produto.

Nesse aludido julgamento, o Tribunal entendeu que houve violação à competência privativa da União Federal para legislar sobre energia e petróleo, bem como violação dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, por conter exigência demasiadamente onerosa para a atividade empresarial.

Pois bem, no julgamento da ADIN 2.359238, o Tribunal julgou improcedente a ação e manteve a vigência da legislação capixaba impugnada que cuidava da requalificação dos botijões de GLP. Entendeu o Tribunal que a lei capixaba não usurpou a competência normativa da União Federal, pois o tema versado é de competência concorrente entre os Estados e a União, bem como a citada lei dava concreção ao disposto no art. 170, V, CF, no que promovia a defesa do consumidor.

Sydney Sanches) no sentido de que não invade esfera de competência da União, para legislar sobre normas gerais, lei paranaense que assegura ao consumidor o direito de obter informações sobre produtos combustíveis. III - Afronta ao texto constitucional indireta na medida em que se mostra indispensável o exame de conteúdo de outras normas infraconstitucionais, no caso, o Código do Consumidor. IV - Inocorre delegação de poder de fiscalização a particulares quando se verifica que a norma impugnada estabelece que os selos de qualidade serão emitidos por entidades vinculadas à Administração Pública estadual. V - Ação julgada parcialmente procedente apenas no ponto em que a lei impugnada estende os seus efeitos a outras unidades da Federação.

237 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 855. Plenário. Relator ministro Octávio Gallotti. J. 6.3.2008. DJ. 27.3.2009. EMENTA: Ação direta de inconstitucionalidade. 2. Lei 10.248/93, do Estado do Paraná, que obriga os estabelecimentos que comercializem Gás Liquefeito de Petróleo - GLP a pesarem, à vista do consumidor, os botijões ou cilindros entregues ou recebidos para substituição, com abatimento proporcional do preço do produto ante a eventual verificação de diferença a menor entre o conteúdo e a quantidade líquida especificada no recipiente. 3. Inconstitucionalidade formal, por ofensa à competência privativa da União para legislar sobre o tema (CF/88, arts. 22, IV, 238). 4. Violação ao princípio da proporcionalidade e razoabilidade das leis restritivas de direitos. 5. Ação julgada procedente.

238 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2.359. Plenário. Relator ministro Eros Grau. J. 27.9.2006. DJ. 7.12.2006. EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N. 5.652, DO ESTADO DO ESPíRITO SANTO. COMERCIALIzAÇÃO DE PRODUTOS POR MEIO DE VASILhAMES, RECIPIENTES OU EMBALAGENS REUTILIzÁVEIS. GÁS LIQUEFEITO DE PETRÓLEO ENGARRAFADO [GLP]. DIRETRIzES RELATIVAS à REQUALIFICAÇÃO DOS BOTIJõES. ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO DO DISPOSTO NOS ARTIGOS 5º, INCISO xxIx, E 22, INCISO I, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. INOCORRÊNCIA. O ESTADO-MEMBRO DETéM COMPETÊNCIA LEGISLATIVA PARA DISPOR A RESPEITO DAS MATéRIAS DE PRODUÇÃO E CONSUMO [ARTIGO 24, INCISO V, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL]. DEFESA DO CONSUMIDOR [ARTIGO 170, V, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL]. 1. Não procede a alegação de violação à proteção às marcas e criações industriais. A lei impugnada não dispõe a respeito dessa matéria. 2. O texto normativo questionado contém diretrizes relativamente ao consumo de produtos acondicionados em recipientes reutilizáveis --- matéria em relação à qual o Estado-membro detém competência legislativa [artigo 24, inciso V, da Constituição do Brasil]. 3. Quanto ao gás liquefeito de petróleo [GLP], a lei impugnada determina que o titular da marca estampada em vasilhame, embalagem ou recipiente reutilizável não obstrua a livre circulação do continente [artigo 1º, caput]. Estabelece que a empresa que reutilizar o vasilhame efetue sua devida identificação através de marca, logotipo, caractere ou símbolo, de forma a esclarecer o consumidor [artigo 2º]. 4. A compra de gás da distribuidora ou de seu revendedor é operada concomitantemente à realização de uma troca, operada entre o consumidor e o vendedor de gás. Trocam-se botijões, independentemente de qual seja a marca neles forjada. Dinamismo do mercado do abastecimento de gás liquefeito de petróleo. 5. A lei hostilizada limita-se a promover a defesa do consumidor, dando concreção ao disposto no artigo 170, V, da Constituição do Brasil. O texto normativo estadual dispõe sobre matéria da competência concorrente entre a União, os Estados-membros e o Distrito Federal. 6. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada improcedente.

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há vários outros precedentes nos quais os direitos dos consumidores serviram como parâmetro normativo da decisão do STF: ADIN 3.322239, ADIN 3.645240, RE 432.789241, RE 201.630242, ADIN 2.435 - MC243 e RE 189.170244.

239 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.322. Plenário. Relator ministro Gilmar Mendes. J. 2.12.2010. DJ. 3.3.2011. EMENTA: Ação direta de inconstitucionalidade. 2. Lei Distrital n. 3.426/2004. 3. Serviço público de Telecomunicações. 4. Telefonia fixa. 5. Obrigação de discriminar informações na fatura. 6. Definição de ligação local. 7. Disposições sobre ônus da prova, termo de adequação e multa. 8. Invasão da competência legislativa da União. 9. Violação dos artigos 22, incisos I, IV, e 175, da CF. Precedentes. 10. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente.

240 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.645. Plenário. Relatora ministra Ellen Gracie. J. 31.5.2006. DJ. 1º.9.2006. EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 14.861/05, DO ESTADO DO PARANÁ. INFORMAÇÃO QUANTO à PRESENÇA DE ORGANISMOS GENETICAMENTE MODIFICADOS EM ALIMENTOS E INGREDIENTES ALIMENTARES DESTINADOS AO CONSUMO hUMANO E ANIMAL. LEI FEDERAL 11.105/05 E DECRETOS 4.680/03 E 5.591/05. COMPETÊNCIA LEGISLATIVA CONCORRENTE PARA DISPOR SOBRE PRODUÇÃO, CONSUMO E PROTEÇÃO E DEFESA DA SAÚDE. ART. 24, V E xII, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. ESTABELECIMENTO DE NORMAS GERAIS PELA UNIÃO E COMPETÊNCIA SUPLEMENTAR DOS ESTADOS. 1. Preliminar de ofensa reflexa afastada, uma vez que a despeito da constatação, pelo Tribunal, da existência de normas federais tratando da mesma temática, está o exame na ação adstrito à eventual e direta ofensa, pela lei atacada, das regras constitucionais de repartição da competência legislativa. Precedente: ADI 2.535-MC, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 21.11.03. 2. Seja dispondo sobre consumo (CF, art. 24, V), seja sobre proteção e defesa da saúde (CF, art. 24, XII), busca o Diploma estadual impugnado inaugurar regulamentação paralela e explicitamente contraposta à legislação federal vigente. 3. Ocorrência de substituição - e não suplementação - das regras que cuidam das exigências, procedimentos e penalidades relativos à rotulagem informativa de produtos transgênicos por norma estadual que dispôs sobre o tema de maneira igualmente abrangente. Extrapolação, pelo legislador estadual, da autorização constitucional voltada para o preenchimento de lacunas acaso verificadas na legislação federal. Precedente: ADI 3.035, rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 14.10.05. 4. Declaração de inconstitucionalidade conseqüencial ou por arrastamento de decreto regulamentar superveniente em razão da relação de dependência entre sua validade e a legitimidade constitucional da lei objeto da ação. Precedentes: ADI 437-QO, rel. Min. Celso de Mello, DJ 19.02.93 e ADI 173-MC, rel. Min. Moreira Alves, DJ 27.04.90. 5. Ação direta cujo pedido formulado se julga procedente.

241 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 432.789. 1ª Turma. Relator ministro Eros Grau. J. 14.6.2005. DJ. 7.10.2005. EMENTA: RECURSO ExTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. CONSUMIDOR. INSTITUIÇÃO BANCÁRIA. ATENDIMENTO AO PÚBLICO. FILA. TEMPO DE ESPERA. LEI MUNICIPAL. NORMA DE INTERESSE LOCAL. LEGITIMIDADE. Lei Municipal n. 4.188/01. Banco. Atendimento ao público e tempo máximo de espera na fila. Matéria que não se confunde com a atinente às atividades-fim das instituições bancárias. Matéria de interesse local e de proteção ao consumidor. Competência legislativa do Município. Recurso extraordinário conhecido e provido.

242 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 201.630. 1ª Turma. Relatora ministra Ellen Gracie. J. 11.6.2002. DJ. 2.8.2002. EMENTA: Serviço de fornecimento de água. Adicional de tarifa. Legitimidade. Mostra-se coerente com a jurisprudência do Supremo Tribunal o despacho agravado, ao apontar que o ajuste de carga de natureza sazonal, aplicável aos fornecimentos de àgua pela CAESB, criado para fins de redução de consumo, tem caráter de contraprestação de serviço e não de tributo. Precedentes: ERE 54.491, RE 85.268, RE 77.77.162 e ADC 09. Agravo regimental desprovido.

243 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2.435 – Medida Cautelar. Plenário. Relatora ministra Ellen Gracie. J. 13.3.2002. DJ. 31.10.2003. EMENTA: Ação direta de inconstitucionalidade. Lei n° 3.542/01, do Estado do Rio de Janeiro, que obrigou farmácias e drogarias a conceder descontos a idosos na compra de medicamentos. Ausência do periculum in mora, tendo em vista que a irreparabilidade dos danos decorrentes da suspensão ou não dos efeitos da lei se dá, de forma irremediável, em prejuízo dos idosos, da sua saúde e da sua própria vida. Periculum in mora inverso. Relevância, ademais, do disposto no art. 230, caput da CF, que atribui à família, à sociedade e ao Estado o dever de amparar as pessoas idosas, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida. Precedentes: ADI n° 2.163/RJ e ADI nº 107-8/AM. Ausência de plausibilidade jurídica na alegação de ofensa ao § 7º do art. 150 da Constituição Federal, tendo em vista que esse dispositivo estabelece mecanismo de restituição do tributo eventualmente pago a maior, em decorrência da concessão do desconto ao consumidor final. Precedente: ADI nº 1.851/AL. Matéria relativa à intervenção de Estado-membro no domínio econômico relegada ao exame do mérito da ação. Medida liminar indeferida.

244 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 189.170. 2ª Turma. Redator ministro

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Considerações finais

Ante tudo quanto foi exposto, podemos chegar a algumas conclusões acerca da aplicação judicial encetada pelo STF na solução das questões que lhe são submetidas que têm o direito consumidor como parâmetro normativo. Com efeito, o Tribunal tende não conhecer de questões relativas aos direitos do consumidor, sob a justificativa de se tratarem de matéria de caráter infraconstitucional. Superado o óbice do conhecimento, o Tribunal, na maioria dos casos submetidos ao seu crivo, tem uma jurisprudência favorável aos direitos dos consumidores.

Nas questões relativas à competência constitucional, o STF tende a decidir favoravelmente à intervenção normativa dos Estados e dos Municípios nas matérias relativas aos direitos de proteção dos consumidores.

A resposta a principal indagação que todos gostaríamos de ouvir: os consumidores podem confiar na proteção judicial fornecida pelo STF? À luz de sua jurisprudência, pelo que vimos, ouso dizer que lamentavelmente a Corte não é a principal guardiã dos direitos constitucionais fundamentais dos consumidores, pois refuga a esmagadora maioria dos feitos, sob a alegação de cuidar-se de matéria infraconstitucional. Mas, como assinalei, se superado o óbice do conhecimento, os consumidores podem confiar na proteção constitucional do STF.

Maurício Corrêa. J. 1º.2.2001. DJ. 8.8.2003. EMENTA: RECURSO ExTRAORDINÁRIO. FARMÁCIA. FIxAÇÃO DE hORÁRIO DE FUNCIONAMENTO. ASSUNTO DE INTERESSE LOCAL. A fixação de horário de funcionamento para o comércio dentro da área municipal pode ser feita por lei local, visando o interesse do consumidor e evitando a dominação do mercado por oligopólio. Precedentes. Recurso extraordinário não conhecido.

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11. “LEI DA FICHA LIMPA” – VITÓRIA DA REPÚBLICA, DERROTA DA DEMOCRACIA: uma breve análise sobre o modelo político-partidário brasileiro.245

Ele é um homem igual a mim; somos iguais, de onde provém seu direito a me dominar?

Hans Kelsen246

Senhoras e senhores,

No dia 4 de junho de 2010 foi promulgada a Lei Complementar n. 135, a famosa “Lei da Ficha Limpa”, que fez alterações na Lei Complementar n. 64, de 18 de maio de 1990, que cuida das hipóteses de inelegibilidade, além daquelas já estabelecidas pelo texto da Constituição.

A inelegibilidade consiste na proibição constitucional ou legal de alguém se candidatar a um determinado cargo político. é a impossibilidade de alguém participar, como candidato, de um processo eleitoral e de vir a ser escolhido, por meio do voto, para um cargo eletivo.

Com efeito, prescreve a Constituição, nos §§ 4º e 7º, do artigo 14, que são inelegíveis os inalistáveis e os analfabetos; e que também

são inelegíveis, no território de jurisdição do titular, o cônjuge e os parentes consanguíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, do Presidente da República, de Governador de Estado ou Território, do Distrito Federal, de Prefeito ou de quem os haja substituído dentro dos seis meses anteriores ao pleito, salvo se já titular de mandato eletivo e candidato à reeleição.

O fundamento constitucional para a edição de lei complementar regulando outras inelegibilidades é o disposto no § 9º do referido artigo 14, que tem o seguinte teor:

Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.

Com estribo nesse § 9º foi editada em 1990 a mencionada Lei Complementar n. 64 que estabeleceu o rol de inelegibilidades legais.

Decorridos 20 anos da edição da citada Lei Complementar n. 64, em 2010 foi editada a aludida Lei Complementar n. 135, a famosa “Lei da Ficha Limpa”, que fez algumas importantes modificações nas hipóteses legais de inelegibilidade. Dentre as modificações mais relevantes, segundo nossa perspectiva, temos aquela que dispensa o trânsito em julgado de decisão judicial condenatória para se reconhecer a inelegibilidade, bastando que tenha havido a condenação por órgão colegiado, e a que torna inelegível aquele que tenha renunciado a cargo eletivo com o objetivo de evitar a perda de mandato político.

245 Texto de palestra proferida por ocasião da Jornada Acadêmica da Faculdade Processus. Evento ocorrido em Brasília – DF, em 27.10.2014.

246 KELSEN, Hans. A democracia. Tradução de Ivone Castilho Benedetti e outros. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

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Essa “Lei da Ficha Limpa” foi objeto de apreciação pelo Supremo Tribunal Federal nos históricos julgamentos dos RREE ns. 630.147 (Caso Joaquim Roriz), 631.102 (Caso Jáder Barbalho) e 633.703 (Caso Leonídio Bouças), bem como no julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade ns. 29 e 30, e na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.578.

Para o Supremo Tribunal Federal, a “Lei da Ficha Limpa” é compatível com a Constituição Federal. A “Ficha Limpa” é uma Lei válida. Portanto, não iremos analisar a licitude normativa da “Lei da Ficha Limpa”, nem mesmo a sua legitimidade constitucional. Iremos analisar a sua conveniência política e verificar se essa Lei pode ser entendida como uma “vitória da República” e, paradoxalmente, como uma “derrota da Democracia”.

Eis a nossa tese central. A “Lei da Ficha Limpa” foi e tem sido uma importante e inquestionável vitória dos ideais republicanos, que tem nas “virtudes cívicas” os seus principais alicerces. Todavia, essa Lei foi e tem sido uma demonstração de fraqueza de nossa democracia, pois os eleitores foram privados de não escolher os maus candidatos. Com a “Lei da Ficha Limpa” o mau candidato não foi derrotado e rechaçado pelo povo nas urnas, mas pelos juízes nos tribunais.

Para realizar essa análise, iremos visitar alguns preceitos normativos da Constituição e dialogaremos acerca dessas relevantes questões para o Direito e para a Política: República e Democracia.

Começaremos com os sentidos e possibilidades da Democracia à luz da experiência político-constitucional brasileira. Logo no Preâmbulo do texto da Constituição promulgada em 5 de outubro de 1988, está enunciado que os representantes do povo brasileiro estavam reunidos, sob a proteção de Deus, para instituir um Estado Democrático.

Esse Estado Democrático está destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias.

No caput do artigo 1º da Constituição está prescrito que o Brasil se constitui em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos democráticos o que se segue: a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. No parágrafo único do citado artigo 1º está enunciado um dos mais importantes preceitos da Constituição: todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos, ou diretamente nos termos desta Constituição.

O povo é a fonte e a razão de ser do poder estatal. Esse mandamento constitucional se revela mais nítido no caput do artigo 14, que dispõe que a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos. Esse princípio da soberania popular é preceito tão forte, tanto no aspecto político quanto normativo, que nos termos do art. 60, § 4º, inciso II, sequer pode ser objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir o voto direto, secreto, universal e periódico. A soberania popular é cláusula pétrea da Constituição.

Mas a soberania popular é uma das facetas da Democracia. A Democracia tem sua inquestionável legitimidade na soberania popular. No poder incontrastável que detém o povo, via corpo eleitoral, de escolher os seus legítimos representantes políticos. A soberania popular é o ponto de partida da experiência democrática. O ponto de chegada é a plena realização dos projetos existenciais de cada um dos indivíduos que vive no Brasil.

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Para alcançar essa plena realização dos projetos existenciais de cada um dos indivíduos que vive no Brasil se faz necessário um conjunto de instituições, procedimentos e práticas normativas e culturais capaz de tornar essa ambição em algo concreto e palpável.

Tenha-se que além do direito ao voto e à iniciativa popular, a Democracia também se realiza por meio das liberdades civis e políticas fundamentais, especialmente do direito de livre expressão do pensamento livre e de reunião pacífica (art. 5º, incisos IV, IX e XVI). Além da urna, a Democracia pode e deve ser exercitada nas ruas, mas de modo pacífico. A violência é antidemocrática. A Democracia é o reino do diálogo e do convencimento por meio da verdade e da razão. A mentira, o medo e a violência são instrumentos antidemocráticos.

São antidemocráticas as práticas de destruição das reputações dos adversários por meio de mentiras ou da grosseira distorção dos fatos e das ideias. Na Democracia aquele que diverge de mim, que tem visões de mundo diametralmente opostas às minhas, é tão cidadão e tão livre quanto eu sou. Só há Democracia onde houver a livre divergência. Nas Democracias os adversários não são inimigos que devem ser destruídos a qualquer custo. São adversários. São pessoas que merecem respeito e consideração.

Na Democracia é legítimo e lícito ter ideias e ideais contrários ou diferentes. é ilegítimo e ilícito, em uma Democracia, a intolerância com o adversário político ou ideológico. As divergências políticas e ideológicas, que devem ser livremente expostas, defendidas sem medos e receios, se concretizam de modo inquestionável no voto.

O voto é a manifestação incontestável da vontade do povo, via corpo eleitoral, acerca das suas opções políticas e ideológicas. Nada substitui o voto em uma Democracia. Evidentemente que esse voto há de ser livre e, consequentemente, responsável. O eleitor deve agir com absoluta liberdade na hora de escolher em quem votar ou no que votar. O eleitor deve agir com absoluta responsabilidade, consciente das consequências de suas escolhas políticas e ideológicas. Nas Democracias o eleitor é corresponsável pelos destinos políticos da sociedade. O eleitor, livre e responsável, não é vítima, mas coautor. Se as escolhas forem boas e adequadas, méritos para o eleitor. Se as escolhas forem ruins e inadequadas, o eleitor é corresponsável também.

Esse é o ponto de partida da minha hipótese: a responsabilidade do eleitor livre e consciente. E aqui começam alguns problemas de nosso modelo democrático. O eleitor não é livre para votar ou não votar. Ele é constrangido a votar, ainda que possa votar nulo ou em branco. E somente se pode exigir responsabilidade de quem é livre. Somente se pode exigir consciência das consequências e repercussões de seus atos de quem não age tutelado ou constrangido.

Logo a obrigação constitucional de votar, que todo brasileiro maior de 18 e menor de 70 anos possui, enfraquece os sentimentos de liberdade, de responsabilidade e de consciência desse ato de votar. Nessa perspectiva, o direito de votar não deveria ser uma obrigação jurídica, um dever cívico, mas uma faculdade política. O eleitor deveria ser livre para votar ou deixar de votar, sem qualquer tipo de constrangimento. O ato de ir votar deveria ser um ato absolutamente livre, consciente e responsável. E não, como tem sido em nossa experiência política, uma obrigação, um dever, sob pena de sanções e castigos.

Daí que o primeiro passo para tornar a nossa Democracia mais democrática consiste em tornar o voto em uma faculdade, em um direito, e não em uma obrigação ou dever. Insistimos. Se somos constrangidos a votar não temos compromissos éticos com essa obrigação. Já que somos obrigados a votar, votaremos de qualquer jeito e em qualquer um.

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Não exijam do povo-eleitor um respeito e consideração pelo voto e pelo ato de votar, se ao povo-eleitor não se trata com respeito e consideração. Se o povo eleitor não é plenamente livre, ele também não é plenamente responsável pelas consequências de seus votos.

Todavia, nada obstante essa inconveniência da Constituição, no caso a obrigatoriedade do alistamento eleitoral e do voto, é preciso agir de modo responsável, em que pese esse vício de raiz. Ou seja, em que pese o fato de o voto ser obrigatório, temos de nos esforçar para fazer o melhor possível. Esse esforço deve ser tanto do povo-eleitor quanto dos partidos políticos e dos respectivos candidatos.

Com efeito, a Constituição brasileira, no rastro de quase todas as Constituições e práticas políticas do restante do Mundo, fez uma opção preferencial por uma Democracia representativa e partidária. No Brasil, em face de seu gigantesco território, de sua grande e espalhada população, e de sua hipercomplexidade social, a Constituição optou por uma Democracia representativa e partidária.

A Democracia representativa e partidária consiste em um filtro normativo e político do princípio da soberania popular e da atuação direta do povo nas escolhas políticas da comunidade. Relembremos o contido no Preâmbulo da Constituição: nós, representantes do povo. Agora relembremos o contido no parágrafo único do artigo: todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes, ou diretamente nos termos desta Constituição.

O poder estatal não é diretamente exercido pelo povo, mas por seus legítimos e lícitos representantes. Esses legítimos e lícitos representantes são eleitos para o exercício de determinadas funções. E para serem eleitos devem estar primeiramente filiados em um partido político. Segundo a Constituição, a filiação partidária é um requisito obrigatório para a elegibilidade (art. 14, § 3º, III).

Também aqui o formalismo constitucional induz a um desprestígio dos partidos políticos. Com efeito, como o eventual postulante é obrigado a se filiar a um partido político, ele acaba se filiando em qualquer um, nas famosas “legendas de aluguel”. Como o candidato não é livre para não se filiar a um partido político, ele se filia apenas formalmente, mas não adere ao projeto ideológico da agremiação partidária. Ele só precisa de uma sigla para se candidatar.

Como fortalecer os partidos políticos? Como fazer com que eles deixem de ser meras “legendas de aluguel” e se tornem agremiações ideológicas com um projeto político? A liberdade e a responsabilidade são os alicerces que sustentam qualquer edifício político sólido. É de se indagar: assim como o voto deveria ser facultativo, a filiação partidária também deveria ser facultativa? Será que ninguém deveria ser constrangido a ingressar em uma agremiação partidária como requisito para a disputa de um cargo eletivo? Ou seja, deveria ser permitida a possibilidade de candidaturas avulsas?

Em relação à filiação partidária, à luz da nossa experiência e da opção preferencial pela democracia representativa e partidária, parece-nos que os partidos políticos deveriam servir de filtros republicanos à liberdade democrática de se candidatar. O partido político funciona como primeiro filtro às candidaturas. E aqui adiantamos uma prévia compreensão de que vem a ser a República: filtro à Democracia.

Mas continuemos com os partidos políticos. Como fortalecê-los substantivamente, e não apenas formalmente? Paradoxalmente, para evitar essa explosão de partidos políticos (atualmente, segundo informações do TSE, há 32 partidos políticos registrados), deveriam

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cessar as fontes públicas de financiamento. Deveria ser extinto o fundo partidário, o acesso gratuito ao rádio e à televisão, o horário eleitoral obrigatório e “gratuito” e a propaganda partidária, bem como a imunidade tributária dos partidos políticos. O dinheiro do contribuinte é sagrado. O dinheiro do contribuinte é fruto de seu trabalho, de seus esforços, de seus sacrifícios.

Portanto, o sagrado dinheiro do contribuinte somente deve ser utilizado em benefício da coletividade de contribuintes, e não para financiar projetos de poder. Quem quiser ingressar nas disputas político-partidárias que o faça, mas às suas próprias expensas. Sem as fontes estatais de financiamento, e sem os favores estatais, que custam muito caro, os partidos forçosamente se reduzirão e terão de buscar fontes alternativas de financiamento. Isso aparentemente enfraquece o partido político. Mas só aparentemente. Na prática os partidos terão de ser mais fortes e organizados, e deixarão de existir as “legendas de aluguel”, que sobrevivem apenas dos recursos do fundo partidário e da “venda” dos minutos de rádio e TV nas eleições.

De uns tempos para cá, fundar um partido político não é um projeto ideológico de poder. Não passa de um projeto pragmático de mercancia. Um negócio econômico. Neste ano de 2014, o fundo partidário deverá distribuir algo em torno de R$ 300 milhões. A renúncia fiscal decorrente da suposta “gratuidade” da propaganda eleitoral deverá chegar à cifra de quase R$ 900 milhões. Ou seja, quase R$ 1,2 bilhão de reais. é muito dinheiro. A coletividade dos contribuintes brasileiros tem outras prioridades. Essa fortuna deveria ser canalizada para outras áreas, como, por exemplo, bolsas de estudos para alunos manifestamente carentes.

Essa moralizante medida imporia uma drástica redução no número de agremiações partidárias. Das atuais 32, restariam no máximo umas 5. Mas seriam 5 fortes partidos políticos. Sólidos e robustos. E como iriam sobreviver? Das contribuições de seus filiados e simpatizantes, sejam pessoas físicas ou jurídicas. E todos os recursos e ingressos devem ser contabilizados, de modo transparente e mediante recibos ou comprovantes. Perderia o registro o partido que recebesse doações ou favores “não contabilizados”. O famoso “caixa 2”. A raiz da corrupção política não está no financiamento privado dos partidos políticos e campanhas eleitorais.

De modo romântico ou ingênuo, defendem a OAB, o PGR, vários juristas e acadêmicos, intelectuais, padres, pastores e bispos, bem como alguns ministros do STF, por ocasião do julgamento da ADI 4.650, que pretende proibir o financiamento privado das campanhas político-partidárias, que o problema da corrupção está nas doações privadas.

Não. Um dos problemas está nas doações clandestinas. Na falta de transparência. No segredo. Na dívida inconfessável. No favor subalterno. O que deve ser combatido é o financiamento clandestino. E a melhor forma de acabar com a clandestinidade, é com a transparência. Todos devemos saber quem doa e quanto se doa para os partidos e campanhas. E na hora de votar, o eleitor deve saber quem está financiando aquele partido ou candidato.

Reiteramos: acabar com a dependência financeira dos partidos políticos em relação ao dinheiro do contribuinte, com a extinção do fundo partidário e da “gratuidade” nos programas de rádio e de TV seria um passo importante para o fortalecimento deles. O Brasil gasta muito mal o sagrado dinheiro da coletividade dos contribuintes destinando-o para o financiamento de partidos e campanhas eleitorais. No atual modelo, a imensa maioria dos atuais 32 partidos políticos não passa de agremiações vocacionadas não para a conquista do poder, mas para a negociação econômica.

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Evidentemente que se faz necessário reformar o modelo eleitoral, especialmente para as disputas dos cargos de deputados, sejam federais ou estaduais ou distritais, e de vereadores municipais. O atual modelo para essas disputas, que é o voto proporcional, está falido. Com o voto proporcional há uma diluição de responsabilidades e não são poucos os candidatos eleitos com baixa densidade eleitoral e representatividade política.

Nesta eleição de 2014, por exemplo, o deputado federal mais votado no Estado de Minas Gerais teve 310.226 votos. O eleito com menos votos teve 49.391. Em MG há 853 Municípios. Fazendo uma média grosseira, pode-se dizer que o mais votado teve uma média de 364 votos por Município. Enquanto que o eleito com menos votos teve uma média de 58 votos por Município. Ou seja, uma baixa representatividade territorial. Um candidato com uma boa estrutura financeira ou representante de uma categoria ou corporação bem distribuída pode se eleger sem representar de modo consistente uma determinada região.

Como melhorar a representatividade política? Como criar uma concorrência e competitividade entre os candidatos aos cargos de Deputados? Tornando a eleição, em vez de proporcional, em majoritária. Será eleito o que tiver mais votos. E a questão da concorrência e competitividade? Nesse caso, criando distritos eleitorais, de modo que em cada distrito eleitoral somente fosse eleito um só candidato, justamente o mais votado.

Isso criaria uma identidade entre o eleitor e o seu representante. Isso baratearia o custo das campanhas, pois em vez de ter de pedir votos em todo um Estado, o candidato pediria votos em seu distrito eleitoral. Isso criaria uma oposição ao parlamentar eleito, o que não ocorre no atual modelo. E sem oposição forte e consistente não há avanços na democracia.

E os partidos lançariam apenas um candidato por distrito eleitoral. E procurariam lançar os melhores para aquele distrito. Assim, a eleição proporcional, que é uma balbúrdia, se tornaria em uma eleição racional, pois haveria debates entre os candidatos dentro dos respectivos distritos eleitorais. A adoção do sistema distrital iria aumentar a densidade de representação e qualificar as candidaturas, pois haveria a concorrência direta entre os candidatos. E haveria a diminuição dos custos de campanha.

E o deputado eleito, em vez de representar algumas poucas categorias ou corporações ou segmentos sociais, representaria uma comunidade territorialmente localizada. Representaria toda a comunidade, e não algumas porções dessa comunidade ou coletividade. E ainda, para melhorar, os candidatos derrotados nos respectivos distritos, assim como os próprios eleitores fiscalizariam a atuação parlamentar de seu representante. Durante o mandato todos os seus passos seriam vigiados, especialmente pela respectiva oposição parlamentar.

No atual modelo não há fiscalização do mandato do parlamentar, justamente por essa diluição e fragmentação da representação política. E sem vigilância aumenta-se exponencialmente a possibilidade de abusos ou de omissões. A nossa hipótese consiste no fato de que a má representação e atuação do parlamentar decorre do modelo eleitoral proporcional.

Além do sistema distrital para os cargos parlamentares, outra medida que iria baratear as eleições, seja para os partidos, seja para os contribuintes, consiste na unificação dos pleitos. As eleições deveriam ocorrer no mesmo período. De Presidente da República a Prefeito Municipal. De Senador da República a Vereador. Todos no mesmo período. No Brasil temos eleições de 2 em 2 anos. Cada eleição custa em média quase R$ 2 bilhões para a coletividade dos contribuintes. é muito dinheiro. De 2 em 2 anos o sagrado dinheiro

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do contribuinte é canalizado para o jogo político-partidário. É um luxo. Ou melhor, um desperdício de recursos públicos.

As eleições deveriam ser unificadas e os mandatos políticos, todos eles, deveriam ser de 6 anos. E não de 4 ou 8 (no caso de Senador). Assim teríamos eleições de 6 em 6 anos. Seria uma brutal economia de recursos públicos. Segundo Raymundo Faoro, no clássico os Donos do Poder, o mandato de 4 anos, na prática, se reduz a 2. é que o 1º ano consiste no conhecimento da máquina administrativa e na gradual ocupação dos espaços e do planejamento dos projetos políticos e governamentais. No 2º e 3º anos a execução dos projetos. No 4º ano já começam os preparativos para a sucessão (ou reeleição atualmente) e o governo, em vez de governar, entra em campanha eleitoral. Assim, segundo o mencionado autor, os 4 se reduzem a 2. Com essa nossa proposta, à luz do magistério de Raymundo Faoro, os 6 seriam 4.

Mas, no caso dos cargos executivos (Presidente, Governador e Prefeito) deveria ser proibida nova candidatura. Proibir não apenas a reeleição imediata, mas proibir uma nova candidatura para o mesmo cargo já ocupado. E para os cargos legislativos (Senador, Deputados e Vereador) deveria ser permitida uma única recondução para o mesmo cargo. Essas medidas são antidemocráticas, mas são republicanas. Pois na República o exercício dos cargos públicos e eletivos é temporário. Ninguém é dono de cargo público. E, diferentemente das monarquias, nas repúblicas a ocupação do poder é temporária.

Essa proibição de nova candidatura para o mesmo cargo para quem já o tenha ocupado é antidemocrática, pois tira do eleitor o direito de manter quem está bom ou de não renovar o mandato de quem esteja ruim. Mas é republicana. E está em conformidade com a nossa tradição cultural e política. Infelizmente em nossa experiência, inclusive na recentíssima eleição finalizada ontem, todos vimos o uso abusivo e despudorado da máquina política. Criar empecilhos para o abuso ou o mau uso do poder é uma das funções dos instrumentos republicanos. Insistimos: República é freio e limite à Democracia e ao Poder.

Com isso nos aproximamos do tema específico desta intervenção: a “Lei da Ficha Limpa”. Indiscutivelmente ela nasceu em decorrência da má representação política. E essa má representação tem suas causas no atual modelo partidário e eleitoral. A “Lei da Ficha Limpa” atende aos postulados republicanos das “virtudes cívicas”? Sim. A República é o filtro racional da Democracia.

Voltemos ao Preâmbulo da Constituição brasileira de 1988. Na parte final do Preâmbulo promulga-se a Constituição da REPÚBLICA Federativa do Brasil. O caput do artigo 1º inicia com a seguinte asserção: A República Federativa do Brasil.... Ou seja, o Brasil pretende ser uma democracia republicana.

E qual o alcance da República? Respeito às leis e às instituições. Na República as leis e as instituições são levadas a sério. Todo aquele que exerce o poder em nome do povo, deve exercê-lo em conformidade com as leis e com as instituições. Nenhum Presidente, Governador, Prefeito, Senador, Deputado ou Vereador, nada obstante a fonte legítima e democrática de seu poder, pode exercer esse poder acima das leis e das instituições.

No caput do artigo 37 da Constituição estão prescritos os princípios que devem nortear a atuação de todos aqueles que exercem o poder em nome do povo. E quais são esses princípios? Legalidade, Impessoalidade, Moralidade, Publicidade e Eficiência. Se o legítimo, porque eleito, representante do povo vier a falhar no rigoroso e milimétrico cumprimento desses princípios ele deve sofrer as sanções constitucionais, inclusive a perda do cargo.

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A “Lei da Ficha Limpa” é até mais draconiana. Pior do que perder o cargo político-eletivo, é não poder disputar esse cargo. E nesse particular julgo essa proibição de não disputar o cargo como antidemocrática. é republicana, indiscutivelmente, mas fere a democracia, a pretexto de salvá-la. É que cabe ao povo-eleitor, no exercício de suas responsabilidades soberanas, decidir quem vai ocupar ou deixar de ocupar os cargos político-eletivos. Isso não é tarefa dos juízes e tribunais.

Mas e se o povo votar mal ou erradamente? Ou o político perde o seu mandato pela violação daqueles mencionados princípios republicanos ou na próxima eleição o povo-eleitor deixa de votar nele. Mas e se o povo-eleitor insistir em votar mal? Bom, nesse caso o povo-eleitor arcará com as consequências de suas más escolhas. O povo não deve ser tutelado. Os juízes não são “as babás” do povo. O que os juízes e tribunais devem velar é pelo rigoroso e milimétrico cumprimento das leis e da Constituição.

Se o político estiver descumprindo as leis, os juízes e tribunais, se provocados, deverão condená-los, inclusive, se for o caso, com a perda do mandato. Mas nunca proibir um pretenso candidato de vir a se candidatar. Quem deve dizer SIM ou NÃO para os maus políticos não são os juízes e tribunais, mas o povo-eleitor. Não queremos uma “democracia pretoriana”. O povo há de ser o principal “guardião” da Democracia. O cidadão deve ser responsável pelos seus atos políticos e eleitorais. Se fez boa escolha, méritos. Se fez má escolha deverá arcar com as consequências de seus atos.

Mas, dirão muitos, o povo-eleitor não sabe votar. Bom isso é um risco que se corre nas democracias gigantescas como a nossa. Qual a alternativa? As piores alternativas já foram experimentadas: ou reduzir o tamanho do corpo eleitoral, permitindo que apenas alguns poucos iluminados pudessem votar, ou proibindo o povo de votar, deixando os destinos da sociedade nas mãos de seres intelectualmente superiores. A outra alternativa – soberania popular - é a mais apropriada. A democracia é um processo de amadurecimento e de aprendizagem. Um dia o povo aprende. Democracia é uma pedagogia cívica. Um dia o povo aprende a não votar em quem não merece ser votado. Mas isso pressupõe liberdade e responsabilidade.

Evidentemente que a atual estrutura política, partidária e eleitoral do Brasil favorece a maus candidatos, a pessoas desqualificadas, a pessoas que não possuem as indispensáveis “virtudes cívicas” para uma boa e adequada representação política. Por isso julgamos que sem reformar o atual modelo, de nada adiantam os esforços da “Lei da Ficha Limpa”. E outra. Não só o candidato deve ser limpo e honrado. O eleitor também deve ser limpo e honrado. Só há maus candidatos porque há maus eleitores. O eleitor não é uma pobre vítima indefesa e vulnerável ante o diabólico e inescrupuloso candidato. Não raras vezes o candidato nada mais é do que o reflexo do eleitor. Não raras vezes o candidato é um representante perfeito do seu eleitorado.

Nessa linha, enquanto não houver uma mudança cultural, de comportamento político dos eleitores, acompanhada de uma mudança de estruturas e procedimentos, os candidatos continuarão a ser do jeito que são. E a “Lei da Ficha Limpa”, com as suas românticas boas intenções republicanas, não passará de uma “folha de papel” com pouca força normativa.

há interesse em mudar? Por enquanto não. Essa situação e modelo somente irão se modificar se as forças políticas perceberem que a não mudança poderá gerar a sua extinção. E o mundo político tem faro de sobrevivência. A imensa maioria dos políticos possui habilidades de adaptação. São darwinianos. São verdadeiros “ornitorrincos”. Assim

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como o “ornitorrinco” teve de passar por incríveis adaptações para sobreviver, o “político” também saberá se adaptar para sobreviver. Todo “político” tem um pouco de “ornitorrinco” dentro de si. Adaptar-se para sobreviver.

Essas indispensáveis modificações no sistema político-partidário-eleitoral somente ocorrerão se os políticos perceberem que estão próximos à extinção, se não se adaptarem aos novos tempos que vivemos. A sociedade brasileira quer – merece e necessita - um Estado republicano e democrático. A sociedade tem o direito a ter um Estado eficiente, competente e honesto. Mas para isso o povo-eleitor tem de fazer a sua parte: eleger bons representantes. E depois de eleitos, exigir o rigoroso cumprimento de suas promessas e compromissos políticos e eleitorais. O povo deve estar vigilante. O povo não deve delegar a sua soberania para nenhuma outra instituição.

Mas qual o sentido de um Estado democrático e republicano? A realização em ponto ótimo das promessas civilizatórias relativas às pessoas humanas. Como realizar essas promessas civilizatórias? E quais são essas promessas? No texto constitucional são muitas, mas sobretudo são os direitos fundamentais. Concretizar o máximo possível todos os direitos fundamentais catalogados no texto da Constituição deve ser a finalidade de um Estado que se quer e que se diz republicano e democrático.

Tenha-se que na Constituição há um preceito cheio de boa-vontade, mas revelador de uma característica das delicadas relações entre o Estado, a sociedade e os indivíduos. Trata-se do caput e inciso I do artigo 3º, que dispõe caber à República Federativa do Brasil construir uma sociedade livre, justa e solidária.

A rigor deveria ser o contrário. Não é a República, o Estado, que deve construir uma sociedade livre, justa e solidária, mas uma sociedade que se quer livre, justa e solidária quem vai construir um Estado republicano e democrático. No Brasil é o Estado quem se propõe a construir a sociedade. Deveria ser a sociedade a construir um Estado. A sociedade deve ser maior, mais forte e mais importante que o Estado. E não o contrário.

Mas como fazer para transformar em realidade todas as promessas normativas contidas no texto da Constituição? A solução não é simples. Mas também não é de todo impossível. Porém a solução não está no mundo jurídico-normativo. A solução tem um forte ingrediente cultural. é preciso investir em uma mudança cultural, de mentalidade e de atitude. De que o Brasil precisa para se tornar um Estado democrático, republicano e capaz de concretizar os princípios e os direitos fundamentais de todos que habitam neste solo sagrado?

De indivíduos, de pessoas, que tenham um espírito cooperativo. Que queiram fazer o melhor de si. Que sejam estimulados a fazer o melhor de si. Que sejam premiados se fizerem o melhor de si. E que tipo de indivíduo faz o melhor de si:

o que tem iniciativa, e não é preguiçoso;

o que tem ambição, mas não é invejoso;

o que tem gana, mas não é ressentido;

o que tem coragem para agir e fazer, logo não é um covarde;

o que tem a humildade de reconhecer os acertos e méritos alheios, em vez de ser presunçoso dono da verdade e das virtudes;

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e por fim, o que é sincero no agir, no pensar, no falar e no viver, e não tem a hipocrisia típica dos cínicos.

é desse homem ou dessa mulher que o Brasil precisa. E quantos mais forem, melhor para todos. O Brasil tem de ter projetos ambiciosos. O Brasil devemos ter como meta alcançar o índice de Desenvolvimento humano (IDh) acima de 0,9. Esse é o nível dos países civilizados. O que fará de nós uma grande Nação que nos orgulhará não é um conjunto de leis e de instituições, mas homens e mulheres virtuosos, que cooperem entre si, que deem o melhor de si em tudo que façam. Cada um de nós devemos fazer a nossa parte da melhor maneira possível. Se assim agirmos, diminuiremos as dificuldades naturais ou incontroláveis da vida. Mas devemos fazer a nossa parte.

Insistimos. Se cada um de nós agirmos de modo correto, a “Lei da Ficha Limpa” se tornará uma “Lei Caduca”, sem sentido, pois os eleitores escolherão os melhores candidatos. E os maus candidatos sequer ousarão postular cargos eletivos, pois saberão que não serão escolhidos pelos bons eleitores. Eleitor “ficha limpa” não vota em Candidato “ficha suja”.

Voltamos à Democracia e à República. Democracia é liberdade. República é igualdade. Democracia é paixão. República é razão. Nas Democracias, normalmente, as decisões tendem a ser emocionais. Mas a República exige decisões pautadas nas leis e nos procedimentos. Nas Democracias, o voto do povo-eleitor tende a ser irracional, porque não precisa de motivação ou justificação racional baseado na realidade objetiva dos fatos. Mas o freio da República exige que as decisões sejam racionais e pautadas em provas e justificadas com base nos fatos e na verdade. Uma votação eleitoral é um julgamento popular e esse julgamento popular, essa votação, pode cometer erros grosseiros e manifestas injustiças. Um julgamento de um tribunal não pode ser feito com base nas emoções, mas com base na razão convincente e nas provas verdadeiras. Eis porque a República há de ser o freio da Democracia. O papel das leis e das instituições republicanas é jogar razão e verdade sobre as paixões irracionais das decisões democráticas.

E para finalizar de vez, pede-se licença para recordar a seguinte passagem de hans Kelsen sobre Jesus e a Democracia:

No capítulo 18 do Evangelho de São João, descreve-se o julgamento de Jesus. Essa história simples, em seu estilo singelo, é uma das peças mais sublimes da literatura mundial e, sem que o pretenda, transforma-se em um trágico símbolo do antagonismo entre absolutismo e relativismo.

Foi por ocasião da Páscoa dos judeus que Jesus, acusado de se fazer passar pelo filho de Deus e rei dos judeus, foi levado diante do Pilatos, o procurador romano. E Pilatos ironicamente perguntou a Jesus, que aos olhos do romano não passava de um pobre coitado: “Então és o rei dos judeus?”. Mas Jesus tomou muito seriamente a pergunta, e, dominado pelo fervor religioso de sua missão divina, respondeu: “Tu dizes que sou rei. Para isso nasci e para isso vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade ouve a minha voz”. E então Pilatos perguntou: “Que é a verdade?”. E porque ele, o cético relativista, não sabia o que era a verdade, a verdade absoluta na qual acreditava esse homem, optou – de modo muito coerente – por um procedimento democrático, submetendo a decisão do caso ao voto popular. Conta-nos o Evangelho que ele se voltou novamente para os judeus e lhes disse: “Não vejo nele crime algum. Mas é costume entre vós que eu liberte um dos

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vossos por ocasião da Páscoa. Quereis pois, que eu vos liberte o rei dos judeus?” Então gritaram todos, novamente: “Não este, mas Barrabás!”. E o Evangelho acrescenta: “Ora, Barrabás era um ladrão”.

Para os que acreditam no filho de Deus e rei dos judeus como testemunha da verdade absoluta, esse plebiscito é sem dúvida um poderoso argumento contra a democracia. E nós, cientistas políticos, devemos aceitar esse argumento, mas apenas sob uma condição: a de que estejamos tão convencidos de nossa verdade política a ponto de impô-la, se necessário, com sangue e lágrimas – que estejamos tão convencidos de nossa verdade quanto estava, de sua verdade, o filho de Deus.

Senhoras e senhoras, lhes disse que Democracia é liberdade. Mas não só. Democracia é a ausência de medo. Se temos medo do poder, se temos medo do Governo, então não vivemos em uma Democracia plena.

E recordo a frase que o santo padre João Paulo II pronunciou assim que foi escolhido Papa, no ano de 1978, ao dirigir às suas primeiras palavras à humanidade: NÃO TENhAM MEDO!

Muito obrigado pela generosa atenção!