Construção Da Imagem Em Sartre

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    Antnia Faro Agostinelli Peixoto Barbosa

    Engajamento e criao:

    Sobre o desvendamento da realidade em Sartre

    Dissertao apresentada ao programa dePs-Graduao em Filosofia doDepartamento de Filosofia da Faculdadede Filosofia, Letras e Cincias Humanasda Universidade de So Paulo, para

    obteno do ttulo de Mestre emFilosofia sob a orientao do Prof. Dr.Franklin Leopoldo e Silva.

    So Paulo

    2009

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    O artista teima ali onde o filsofo desistiu.

    (Sartre, Aminadab, ou o fantstico considerado

    Como uma linguagem, in Situaes I, p. 145)

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    AGRADECIMENTOS

    Ao professor Franklin por ter orientado este trabalho, pela compreenso, generosidade e

    exemplo de dedicao ao ensino de filosofia e defesa deste nosso ofcio.

    ***

    A Roberta, Srgio (in memoriam) e Serginho, pelo apoio e amor.

    Aos avs Lourdinha, Joj e Dirce.

    A Ericka e Marin, que leram, discutiram e enriqueceram este trabalho.

    A Luciana, pela ajuda no ingls.

    A Roberta, Homero e Cinthya.

    E a todos os citados pela grande amizade.

    ***

    Agradeo o apoio institucional do pessoal da secretaria do Departamento de Filosofia,

    Maria Helena, Marie, Vernica, Geni, Luciana e Roseli.

    Ao CNPq por ter financiado esta pesquisa.

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    Para a Priscila,

    companheira de cronopcias.

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    RESUMO

    BARBOSA, Antnia Faro Agostinelli Peixoto. Engajamento e criao: sobre odesvendamento da realidade em Sartre. 2009. 119 f. Dissertao (Mestrado) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas. Departamento de Filosofia,

    Universidade de So Paulo, So Paulo, 2009.

    Em nosso trabalho buscamos compreender a relao entre literatura e conhecimento do

    real em Jean-Paul Sartre e suas conseqncias para a ao moral, pois desta abordagem resulta o

    engajamento do leitor em face daquilo que foi desvendado por ele. Assim, devemos esclarecer

    direta ou indiretamente dois conceitos centrais da obra sartriana: o de ao por desvendamento e

    o de realismo, o que exige o deslocamento de conceitos tradicionais de seus locais originais,

    redefinindo uma nova constelao que operar um novo mtodo. A dissertao desenvolve-se,

    ento, em quatro partes. Na primeira, visamos o conceito de conhecimento como

    desvendamento, analisando passagens das obras O ser e o nada (tre et nant 1943) e,

    principalmente, Verit et existence (1948). A verdade passa, a partir da leitura destas obras, a ser

    considerada no como uma forma axiomtica, mas como experincia da contingncia. Da a

    mudana necessria no mtodo filosfico e o embate contra determinada tradio a das

    chamadas filosofias digestivas. Na segunda parte, com base principalmente nos ensaios Que

    a literatura? (Quest-ce que la littrature- 1947) e Lartiste et sa conscience, vemos como as

    outras artes ( exceo da prosa) no se constituem para Sartre como movimentos

    privilegiados da experimentao e verificao do conhecimento da realidade. Na terceira parte,

    abordamos propriamente o contedo ontolgico da linguagem que funciona como modo de

    visar o seratravs da ausnciae observamos como estas relaes conduzem questo moral,

    pois pelo olhar do outro que o dom (o que foi verificado e estabelecido por uma comunidade)

    readquire o sentido de novo desvendamento e, nesta perspectiva, a ao do leitor, que faz o

    papel do outro da linguagem, que terminar a obra literria tanto no sentido da criao como no

    da ao moral. Por fim, na parte quatro, propomos como exemplo do modo de visar o real do

    desvendamento e da prosa a interpretao de um conto de Franz Kafka, Tribulao de um pai

    de famlia (1919), baseada nos contedos abordados nas partes anteriores.

    Palavras-chave: Sartre - Existencialismo - Desvendamento Realismo indireto

    Linguagem - Kafka

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    ABSTRACT

    BARBOSA, Antnia Faro Agostinelli Peixoto. Engajement and creation: about therealitys devoilement in Sartre. 2009. 119 f. Master degree dissertation Faculdadede Filosofia, Letras e Cincias Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de

    So Paulo, So Paulo, 2009.

    In this work, we seek comprehension about the relationship between literature and

    reality knowledge in Jean-Paul Sartre, as well as the consequences for the moral action, because

    from this approach results the reader engagement in face of what has been unveiled by him or

    her. Therefore, we must clarify directly or indirectly two central concepts in the sartrian works:

    the concept of action through revealment and the concept of realism, which requires a

    displacement of traditional concepts from their original places, redefining a new constellationthat will produce a new method. The dissertation is developed in four parts. In the first one, we

    aim at the concept of knowledge as devoilement, analyzing passages of the works tre et

    nant (1943) and, foremost, Verit et existence (1948). After the study of these works, the truth

    turns to be considered not as an axiomatic form, but as an experience of contingence. Thence

    comes the necessary change on philosophical methods and the fight against a certain tradition

    the tradition of what it known as digestive philosophies. In the second part, based primary on

    the essays Quest-ce que la littrature? (1947) and Lartiste et sa conscience, we see how the

    other arts (with exception to the prose) do not constitute for Sartre as privileged movementsfor the experimentation and verification of the reality knowledge. In the third part, we approach

    properly the ontologic content of language that function as a way of aiming at the being through

    the absence and we observe how these relationships drive to the moral question, since it is

    through the others look that the gift (what was verified and established by a community)

    reacquires the sense of a new revealment. In this perspective, it is the action of the reader, which

    acts as the other opposed to the language, that will complete the literature work both in the

    sense of creation and in the sense of moral action. Finally, at the forth part of this work we

    propose an interpretation of a Franz Kafka short story, Worries of a family man (1919), as anexample of the way of aiming at the real of the devoilement and of the prose, based on the

    contents approached on the last sections.

    Key words: Sartre Existencialism Devoilement Indirect realism Language -Kafka

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    NDICE

    ABREVIATURAS.................................................................................9

    INTRODUO....................................................................................10

    CAPTULO 1

    CONHECIMENTO E DESVENDAMENTO...............................................14

    CAPTULO 2

    A IRREDUTIBILIDADE DO REAL E A ABORDAGEM INDIRETA.............43

    CAPTULO 3

    O DESVENDAMENTO DO LEITOR ALM DO DOM.................................68

    CAPTULO 4

    UM EXEMPLO DESLOCADO: SOBRE O MODO DE SER DE ODRADECK...89

    CONCLUSO.....................................................................................112

    BIBLIOGRAFIA ................................................................................116

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    ABREVIATURAS

    Quest-ce que la littrature?- Edio francesa (Gallimard Folio) QL

    Vrit et existence Edio francesa (Gallimard NRF essais) - VE

    O ser e o nada Edio brasileira (Vozes) - SN

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    INTRODUO

    Esta dissertao procura esclarecer a noo de engajamento para Sartre, conceitoque aparece no ensaio Quest-ce que la littrature? (1947) vinculado ao tica do

    prosador. Porm, iremos considerar ao longo de nosso trabalho o engajamento pelo vis

    de sua ao principal: a ao de desvendamento. Isto nos conduz tentativa de definir

    um novo conceito de conhecimento que julgamos encontrar em Sartre, o que tentaremos

    realizar ao confrontarmo-nos com o texto Vrit et existence, manuscrito inacabado de

    1948.

    Ao realizar este percurso inicial (engajamento ao de desvendamento conhecimento) acreditamos preparar o solo, no captulo 1, para uma espcie de

    metafsica1 do escritor comprometido. Tentaremos estabelecer a partir da como se

    transforma o olhar do escritor sobre a realidade, estabelecendo a princpio contra quem

    o filsofo est se confrontando e o prosador deve se defrontar. Sartre define o inimigo

    comum como os arautos das filosofias digestivas ou de sobrevo. Contra uma

    formulao esttica e seca do conceito, Sartre ope processos de totalizao sempre em-

    vias-de, imagens e metforas da totalizao destotalizada referida sempre a um ser semplenitude, que no pode tomar-se, nem ao mundo, como processos totalizados. Isto se

    reflete no conhecimento na noo de ao de desvendamento, que preserva a um tempo

    a irredutibilidade do real conscincia, a temporalizao como organizao complexa

    1Pensamos aqui na passagem do ensaio Sobre O som e a fria: a temporalidade em Faulkner sobre arelao entre tcnica e metafsica: Cada episdio, assim que o deparamos, se abre e deixa ver atrs de sioutros episdios, todos os outros episdios. Nada acontece, a histria no se desenrola: ns a descobrimossob cada palavra, como uma presena incmoda e obscena, mais ou menos condensada conforme o caso.

    Seria equivocado tomar essas anomalias por exerccios gratuitos de virtuosidade: uma tcnica romanescasempre remete metafsica do romancista. A tarefa do crtico evidenciar esta antes de apreciar aquela(SARTRE, Situaes I, p. 93).

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    dos processos da existncia e a livre criao do Para-si. Por outro lado, este conceito

    leva possibilidade de aproximao das diversas ordens da existncia, sendo o local

    privilegiado em que teoria do conhecimento, criao e tica encontram-se como atitudes

    igualmente resistentes: a primeira determinando certa maneira de conceber o

    conhecimento contra o conhecimento digestivo; a segunda certa concepo da criao

    contra a definio de arte pela arte, da arte como adorno, mas, principalmente, contra

    uma arte desencarnada, o que exige a reavaliao do termo realismo, que deve

    contrapor-se ao realismo ingnuo ou seus similares e aos supostos engajamentos que

    se apresentam, contudo, como atitudes externas realidade. Por fim, a terceira

    determinando uma atitude poltica especfica contra a passividade e a servido, Sartre

    formula os conceitos de resistncia (contra o presente alienador e violento) e de utopia

    (como horizonte de um ser concreto, consciente e crtico o universal concreto). Assim,

    nos dois textos mencionados, Sartre prope problemas concretos situao do escritor

    em 1947 em Quest-ce que la littrature?e moral do homem em 1948 em Vrit et

    existence.

    Assim, acreditamos que a noo de ao de desvendamento d conta destes

    confrontamentos da liberdade. Deste modo, sempre deve ser elaborada como referida a

    um ser encarnado, concreto, situado. Neste sentido, o engajamento no aparece somentecomo atitude de resistncia a certo presente, mas tambm como horizonte de realizao

    de uma certa moralidade e de certo conhecimento, ambos comprometidos com a

    verdade existencial e contingente, por mais difcil que se apresente.

    Este movimento de interpretao coloca-nos diante da iniciativa sartriana de

    legitimao dos domnios da criao. O prprio conceito de desvendamento descrito

    em Vrit et existence pelo processo estabelecido pelas metforas da viso e da

    iluminao. Neste sentido, encontramos o respaldo de comentadores que vem nametfora um contraponto ao conceito. Se este determina pontualmente uma noo, a

    metfora acaba por iluminar o seu entorno, deslocando as noes vizinhas de seus locais

    originais. Ela no deve ser vislumbrada assim como um adorno que estabelece relao

    extrnseca com sua matria ou como mera exemplificao de um conceito tomado no

    sentido forte do termo, pois ela no a deteriorao de um conceito nem seu

    empalidecimento, mas sim o contrrio disto, podendo ser o ncleo rigoroso e vigoroso

    da filosofia, porque no reduz a verdade sua carcaa fantasmagrica, mas a preenchecom a prpria luz do seu sentido. Assim, podemos julgar a afirmao de Franois

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    Noudelman, igualmente esclarecedora no sentido de considerar um continuum do

    pensamento sartriano (ao contrrio de uma ruptura radical) na retomada das

    preocupaes encontradas na nascente de sua filosofia pelas obras da maturidade:

    Loin dtre rsolue, cette question inaugurale [da imagem] de la pensesartrienne est reformule de manire implicite, au travers des tudes consacres

    limaginaire des crivains. Lusage de l image nest donc pas gratuit, ni simple effet

    rhtorique. Il implique la fois un mode dapprhension du monde et une dmarche

    philosophique. (...) La dfinition et lemploi de limage impliquent une vision du

    monde. Ils engagent aussi une rflexion sur la pertinence du langage philosophique. Car

    limage ne se rduit pas lillustration des concepts, mais peut jouer un rle

    dterminant dans lapprhension du rel pour dire le propre des choses.2

    Se partirmos destas premissas, veremos que a literatura, mais do que um lugar de

    esclarecimento temtico da realidade, passa a ser mobilizada como um modelo

    (legtimo) para o conhecimento. Mas da surgem aparentes paradoxos. Como apostar

    que a criao de uma realidade fictcia, imaginria, se considerarmos a idia de que o

    fundamento da arte seria uma tcnica ilusionista, possa vir a ser processo de apreenso

    da experincia mais radical da verdade? Como obras extremamente cifradas,

    notadamente no associadas a nenhuma escola supostamente realista (como a de

    Kafka) poderiam tomar o lugar das experincias mais extremas de determinada

    condio existencial (da perspectiva metafsica ou histrica) do que aquelas que

    procuram espelhar ou documentar o que se toma porrealidade?

    Para dar conta destes paradoxos sem cairmos em um beco sem sada no qual a

    criao seria para sempre expulsa do domnio do conhecimento filosfico ou para

    sempre considerada como um mero auxiliar do pensamento, tentamos, no captulo 2,

    estabelecer a relao das artes com a realidade e os ditos realismos e considerar a

    formulao de um mtodo indireto de visar o real que d conta da diferenciao

    contnua do estatuto ontolgico do Ser. Em seguida, visamos estabelecer o domnio

    privilegiado do segundo movimento essencial do desvendamento: a sua comunicao.

    na prosa e atravs da ausncia proposta pelo signo como visado por ela, que o

    desvendamento pode operar o movimento contnuo de re-verificao e de criao

    atravs do ultrapassamento do dom (o que foi oferecido pelo escritor) pelo leitor.

    2NOUDELMAN, F. Sartre: lincarnation imaginaire, p. 10.

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    Assim, ao fim do processo, este ser concreto (o leitor) afigura-se como comprometido

    (porque agora j no pode alegar ignorncia sobre aquilo que desvendou pela ao

    secundria de desvendamento da leitura) e livre (porque por uma escolha livre que

    torna vivo o desvendamento pelo ato da leitura, por sua criao e pela atitude tica que

    disto resulta seja negando o presente que o aliena, seja ultrapassando-o em direo a

    uma construo futura, seja at mesmo fingindo ignorar ou esquecer o que se revelou, o

    que passa a constituir a escolha pelo projeto da ignorncia, ao tomar-se o partido da m-

    f).

    Por fim, no poderamos deixar de tentar realizar, via literatura, a interpretao

    de uma obra a partir dos recursos fornecidos por Sartre. Escolhemos para isto o conto

    Tribulao de um pai de famlia, de Kafka, que nos coloca face a face com umirredutvel e irremedavel: o desvendamento de odradeck.

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    CAPTULO 1

    CONHECIMENTO E DESVENDAMENTO

    Em entrevista de 19703, Sartre associa a redao de Crtica da razo dialtica e

    O idiota da famlia preocupao de formular um fundamento filosfico do realismo,

    preocupao esta que teria percorrido todos os seus empreendimentos. E nos d a chave

    da gnese da questo, opondo as duas tendncias da filosofia acadmica francesa de sua

    poca o idealismo e o materialismo grosseiro - pois se trataria de donner lhomme

    la fois son autonomie et sa ralit parmi les objets rels, en vitant lidalisme et sans

    tomber dans un matrialisme mcaniste4. No momento em que a questo surge para onosso autor, este no se aproximara ainda do materialismo dialtico. Mas justamente

    esta ignorncia primeira lhe permitir, por outro lado e mais tarde, associar certos

    limites a este mtodo5.

    Em texto inacabado de 1948, Vrit et existence (que vamos considerar em

    nosso trabalho como a formulao dos conceitos, a partir do conhecimento e da

    ontologia, mais prxima de Quest-ce que la littrature?, de 1947), Sartre sugere que

    a definio de realismo deve suprir a exigncia de ser alternativa ao que neste texto

    aparece como realismo ingnuo e idealismo. O primeiro aspecto destas tendncias a

    relao extrnseca que se estabelece entre meios e fins. No primeiro caso, a premissa

    fundamental a de que os meios ditam o fim, no segundo, o fim exerce um direito sobre

    3SARTRE. Sartre par Sartre, in Situation IX, pp. 99-134.4SARTRE. Sartre par Sartre, p. 104.5

    Limites que tratam de rejeitar une dialectique de la nature qui rduirait lhomme, comme toute chose, un simple produit des lois physiques (Sartre par Sartre, p. 105). A este respeito cf. Marxisme etexistencialisme controverse sur la dialectique, Paris, Plon.

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    os meios6, sendo ambas, cada qual a seu modo, deterministas. Em Vrit et existence, o

    problema central da oposio maniquesta entre aquelas tendncias (no entanto, to

    prximas no que se refere a manter o homem o mais longe possvel de sua situao

    inquietante em relao ao mundo) o desta relao que ser permanentemente, direta ou

    indiretamente, visada. Ela se encontra no cerne de uma viso reducionista da

    temporalidade, em que o futuro (vista como o fim) aparece como um objeto congelado,

    determinado, em que o presente (visto como meio) supervalorizado enquanto instante

    e o passado surge mais como trao de carter indelvel do que momento superado.

    O segundo aspecto destes extremos7negados por Sartre a passividade. No caso do

    realismo ingnuo, ela se apresenta como relao extrnseca estabelecida entre sujeito e

    objeto. Como nos informa Cristina Diniz Mendona, em sua tese O mito da resistncia,o ralisme nafcriticado emtre et Nant aquele que, nas palavras do Prprio Sartre,

    se dfinit comme une doctrine qui fait du sujet et de lobjet deux substances

    indpendentes o que pressupe des rapports externes unissant (...) le sujet lobjet

    (EN, p. 649).8 No caso do idealismo (encarnado na figura do acadmico francs

    Brunschvicg), trata-se de negar principalmente o seu carter assimilatrio:

    relembremos os termos da primeira elaborao sartriana de resistncia, em La

    transcendence de lEgo: si le idalisme cest la philosophie sans mal de Brunschvicg,si cest une philosophie o leffort dassimilation spirituelle ne rencontre jamais de

    rsistances extrieures, o la souffrance, la faim, la guerre se diluent dans un lent

    processus dunification des ides (...).9 Mendona ope a estas duas maneiras de

    compreender a passividade uma filosofia da ao e da resistncia.

    O terceiro aspecto que assume a crtica destes extremos significativo no sentido

    de travar luta aberta contra o primado do conhecimento e da epistemologia. Lemos em

    O mito da resistnciaque o primado da negao em tre et Nant, isto , a negaocomo ponto de partida da investigao filosfica, pressupe a desmontagem (possvel,

    por sua vez, com a modernidade filosfica) do primado do conhecimento, prprio da

    teoria epistemolgica tradicional por isso as primeiras pginas de EN dedicam-se

    6SARTRE. VE, p. 127.7 Por um lado, sempre o idealismo, por outro, o que ora aparece como realismo naf, ora comomaterialismo grosseiro. Apesar de serem conceitos distintos, no faremos aqui o aprofundamento destadiferenciao, considerando em nosso trabalho principalmente o carter extrnseco do que Sartre

    denominou realismo ingnuo.

    8MENDONA. O mito da resistncia, nota 20, p. 106.9MENDONA. O mito da resistncia, p. 80.

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    justamente a desfazer lilusion du primat de la connaissance.10Leremos em O ser e o

    nada, algo que poderia estender-se a Verit et existence: que a ao (como negao e

    resistncia em seu primeiro gesto) prevalece sobre o campo do conhecimento, e que

    assim, ao absoluto de conhecimento, Sartre contrape, como premissa ontolgica e

    metodolgica de sua filosofia, o absoluto da existncia. Caberia, como conseqncia,

    encontrar um mtodo adequado a esta filosofia.

    Neste ponto, a filosofia sartriana vislumbrada como resistncia filosofia cerceada

    pela academia e a um determinado modo de compreender esta matria como

    pensamento extrnsecoaos problemas do homem (inclusive aos cotidianos, s escolhas

    (choix) ticas que devem ser tomadas a cada flego renovado). A filosofia de sobrevo,

    como definida por Sartre, teria como mtodo a abstrao e a anlise, em detrimento deuma intuio primordial, e no se afasta do poder de determinada classe, a burguesia.

    Nas palavras do colega de Sartre, que na poca da cole Normale Suprieure assumira

    uma atitude mais radical do que a dele, Paul Nizan: impossvel para esses pensadores

    burgueses chegar ao fundo do problema do homem comum. S conseguem lidar com

    ele da maneira mais superficial. Seu conhecimento dele tristemente inadequado,

    porque s conseguem a respeito dele informaes de segunda mo. No sentem seu

    peso esmagador, nem a sensao de desespero, nem a terrvel ansiedade que eleengendra. No fazem nenhuma tentativa de examin-lo em profundidade. Simplesmente

    se acomodam, passivamente, ao fato de que o problema existe em algum lugar, bem

    distante.11

    Opor resistncia a este meio, aos pensadores da burguesia e a determinado modus

    operandida cultura francesa representava no apenas desmontar o aparato do que Sartre

    denominou as filosofias alimentares, mas tambm (como as filosofias digestivas

    dominavam no apenas as cadeiras acadmicas, mas igualmente as opinies decorredores) atingi-las na ao poltica, no labor cotidiano, por meio da paciente e

    incansvel crtica e autocrtica das condutas de sua classe e das idias introjetadas pela

    cultura e pela educao que ainda montavam guarda, mesmo que involuntariamente.

    O que deve ser percebido como central, que advm destes aspectos da polmica,

    que opor resistncia significava valer-se de um homem novo: um ser histrico e situado,

    10

    MENDONA. O mito da resistncia, p. 29.

    11NIZAN, Paul. The Watchdogs, pp. 58-59, 61 - Citado por: GERASSI, J.Jean-Paul Sartre conscinciaodiada de seu sculo, p. 94.

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    neste ensaio como uma espcie de antecipao da primeira virada do pensamento

    sartriano, seu primeiro movimento de aproximao explcita da realidade concreta,

    principalmente no que diz respeito radicalizao da ao na histria e da filosofia da

    histria (que emana dos conceitos de engajamento e resistncia). Nas palavras de

    Sartre, os anos da Segunda Guerra representaram o momento de uma aprendizagem

    prtica jai si radicalement chang de point de vue aprs la Seconde Guerre

    mondiale. Je pourrais dire, dune formule simple, que la vie ma appris la force des

    choses14. Se Nizan havia realizado o seu acerto de contas em 1932, em 1939 era

    Sartre que dava nome aos bois. No texto sobre Husserl, ele visava principalmente a

    contraposio entre o pai da fenomenologia e os arautos da filosofia digestiva:

    Brunschvicg, Lalande e Meyerson, o empiriocriticismo, o neokantismo e todos os

    psicologismos, ou seja, os representantes do Esprito-aranha, que atraa as coisas

    para sua teia, cobria-as com sua baba branca e lentamente as deglutia, reduzindo-as

    sua prpria substncia15.

    Denunciava agora com certo humor (que se ope seriedade rida daqueles

    acadmicos) a iluso comum ao idealismo e ao realismo, que consistiria na assimilao,

    unificao e identificao do real, das coisas e dos outros espritos pela conscincia. Em

    outras palavras, denunciava a dissoluo das coisas na conscincia, e conseqentementea anulao da diferena, pois aquelas coisas deglutidas transformavam-se ento em

    contedos de conscincia e, neste sentido, o conhecimento se confundiria com a posse,

    idia to cara ideologia burguesa. Contra esta concepo devoradora do real, Husserl

    oporia radicalmente, como naturezas distintas, dois conceitos que no se reduziriam um

    ao outro: de um lado, a conscincia, de outro, as coisas. Esta separao radical, a

    encontramos explorada em texto de Sartre de 1936 (ele havia descoberto Husserl em

    1932), A imaginao. No incio deste texto, nosso autor distingue dois tipos de

    existncias: a da coisa (inerte) e a da conscincia (intencionalidade). Lemos: esta

    forma inerte, que est aqum de todas as espontaneidades conscientes, que devemos

    observar, conhecer pouco a pouco, o que chamamos uma coisa. Em hiptese alguma

    minha conscincia seria capaz de ser uma coisa, porque seu modo de ser em si

    precisamente um ser para si. Existir, para ela, ter conscincia de sua existncia. Ela

    14SARTRE. Sartre par Sartre, in Situation IX, p. 99.15SARTRE. Uma idia fundamental..., p. 55.

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    aparece como uma pura espontaneidade em face do mundo das coisas que pura

    inrcia.16

    Sartre trata de sublinhar no texto sobre Husserl que esta distino (que acabaria de

    vez com a iluso idealista) tampouco poderia fundamentar o realismo bergsoniano, poisa conscincia e o mundo so dados de uma s vez: por essncia exterior conscincia,

    o mundo , por essncia, relativo a ela17. H relao entre conscincia e mundo,

    porm, esta consiste em um estar diantedo outro, isto , constitui-se como relao de

    transcendncia e coexistncia e no poderia sustentar a concepo de imanncia do

    modo como afirmada por Bergson. justamente contra estas duas tendncias do

    pensamento que Husserl prope: conhecer explodir em direo a, desvencilhar-se

    da mida intimidade gstrica para fugir, ao longe, para alm de si, em direo ao queno si mesmo, para perto da rvore e no entanto fora dela, pois ela me escapa e me

    rechaa e no posso me perder nela assim como ela no pode se diluir em mim: fora

    dela, fora de mim.18Isto faz aparecer um conceito central originado do despojamento

    dos contedos encarquilhados da conscincia, pois a conscincia livre de contedos

    descrita como translcida. Husserl, na leitura de Sartre, trataria assim de libertar a

    filosofia da iluso da imanncia, referida principalmente ao conceito de interioridade

    (to caro a Bergson e Proust)

    19

    . Por fim, a conscincia nada.

    H um verbo que Sartre emprega aqui (e que salta aos nossos olhos como uma pedra

    no sapato para aquele que desliza na leitura do texto com exagerado otimismo): o verbo

    rechaar (as coisas me rechaam). Isto sugere desde ento que a fuga incessante de si

    para o mundo no tarefa fcil, ela se contrape ao aconchego dos conceitos digeridos,

    expe este homem livre dos contedos da conscincia a determinado coeficiente de

    adversidade que doravante no poder ser ignorado. A relao da conscincia com o

    mundo constitui-se como o perptuo ir s coisas (da o famoso bordo daintencionalidade: toda conscincia conscincia de alguma coisa). Mas ento

    conhecimento, afetividade e as demais relaes com o mundo no significaro mais

    16SARTRE.A Imaginao, p. 5.17SARTRE. Uma idia fundamental...,p. 56.18SARTRE. Uma idia fundamental..., p. 56.19A recusa de substancializar a conscincia ser desenvolvida nas primeiras obras de Sartre (A

    transcendncia do ego,A imaginao), em que mesmo o Ego ser exteriorizado, e se constri junto comas coisas.

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    recolhimento. Passamos a viver numa total ausncia de querncia 20 inaugura-se

    uma filosofia da exterioridade, o que significa dizer: ser estar-no-mundo, como moto

    contnuo.

    A partir destas observaes, Sartre pode fundamentar todas as relaes deconhecimento na premissa o homem vive na verdade como o peixe na gua. No h

    relao extrnseca21entre o ser que conhece e o que conhecido (pois o ser que conhece

    tem sua identidade forjada a partir do que conhece, do fora). Entretanto, isto no quer

    dizer que esta relao seja confortvel. A mesma imagem reapresentada por Sartre

    neste trecho de Vrit et existence: ce qui fait croire que la vrit sidentifie ltre,

    cest quen effet tout ce qui est pour la ralit-humaine est sous la forme de vrit (ces

    arbres, ces tables, ces fentres, ces livres qui mentourent sont vrits) parce que tout cequi est pour lhomme dj surgi est sous la forme du il y a.Le monde est vrai. Je vis

    dans le vrai et le faux. Les tres qui se manifestent moi se donnent pour vrais, se

    rvlent parfois ensuite comme faux. Le Pour-soi vit dans la vrit comme le poisson

    dans leau.22

    Mas se no texto sobre Husserl Sartre iniciou a reflexo pela questo do

    conhecimento, isto ocorre porque naquele momento o que ele visava especificamente

    com maior violncia era a filosofia acadmica francesa que, nas palavras dele, quase s

    conhecia a epistemologia. No entanto, as relaes que minha conscincia mantm com o

    real no se limitam ao campo do conhecimento, o que sobressai do texto acima

    transcrito. Esta observao assume uma importncia central para nosso trabalho, pois

    Sartre, com este movimento, tenta ressignificar, como diz no texto sobre Husserl, essas

    famosas reaes subjetivas dio, amor, temor, simpatia que boiavam na

    malcheirosa salmoura do Esprito, observando que estas de repente se desvencilhiam

    dele e se reconfiguram no como empecilhos ao conhecimeto certo ou afetos que seopem ao conhecimento racional, mas como maneiras de descobrir o mundo. So as

    coisas que subitamente se desvendam para ns como odiveis, simpticas, horrveis,

    20Sartre em seu Dirio de uma guerra estranhadiz a respeito do homem tornado soldado: Em partealguma, existe para ele querencia, um lugar predileto em que ele possa isolar-se, nem que seja por uminstante (DGE, p. 28). Neste sentido a palavra deve ser aqui interpretada.21No podemos, no entanto, confundir: h dois transcendentes um para o outro, mas a relao entre

    estas transcendncias no exatamente extrnseca, o que veremos com mais detalhe no andamento dotrabalho.22SARTRE. VE, p. 16.

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    amveis23. Nesta passagem surge de maneira sutil o conceito de desvendamento. Ele

    permitir, mais do que qualquer outro, a associao da filosofia sartriana com o mundo

    dos artistas e dos profetas (assustador, hostil, perigoso, com portos seguros de ddiva

    e de amor24), com o mundo da criao, como veremos em momento oportuno.

    ***

    A descoberta dos filsofos alemes Hegel, Husserl e Heidegger permitiu a Sartre

    reconfigurar a tradio francesa. No entanto, soma-se a isto a experincia da Segunda

    Guerra Mundial e da Resistncia25. Contrapor-se quela triste realidade da filosofia

    significava empreender em conjunto a crtica ao mundo presente, mundo da catstrofe,

    do horror e da mudez, pois se desejava, nas palavras de Bento Prado Jr., recuperar o

    poder de verdade da literatura e devolver filosofia uma linguagem viva que ela

    perdeu na produo / reproduo intramuros nas instituies escolsticas26.

    Assim, entender a resistncia sartriana ao conhecimento digestivo compreender o

    conhecimento como negao do sistemtico, do esttico, do a-histrico, mas tambm

    vis-lo como desvendamento de um novo homem o concreto 27. A partir de agora, os

    conceitos aparecero, sob a perspectiva da construo, com sua carga trocada, ou, pelo

    menos, impregnados de movimentos contraditrios e escorregadios. A viscosidade

    conferida a eles admite uma relao mais sincera com a temporalidade, sua porosidade

    uma tal permeabilidade com a realidade humana que a aridez do Sistema jamais

    permitiria, porque, como lemos em Vrit et existence,o Sistema aparecia como uma

    verdade morta e consistia, apesar disso (ou justamente por isso?), para aqueles filsofos

    burgueses, o mundo real, em sua verdade e totalidade. contra um Ser que sobrevoa o

    mundo e que faz dele Sistema que Sartre prope o homem da rua, entre os homens e

    mergulhado na verdade, embora isto represente, no plano tico, o confrontamento com a

    vontade de certeza e com o desejo de imobilidade do homem, pois se lhomme sest

    longtemps articul lternel, il a prfr les vrits mortes aux vrits vivantes et il a

    fait une thorie de la Vrit qui est une thorie de la mort configurando-se a partir de

    agora a tarefa de resistir prpria resistncia que o homem concreto ope verdade.

    23SARTRE, Uma idia fundamental...,p. 57.24SARTRE, Uma idia fundamental..., p. 57.25Cf. MENDONA, Cristina Diniz. O mito da resistncia.26

    PRADO JR. Sartre e o destino histrico do ensaio,p. 9.

    27Esta filosofia concreta vai dar no materialismo subjetivo (como nota MENDONA, em O mito daresistncia, p. 20).

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    A TEMPORALIZAO DOS CONCEITOS

    Veremos que o conceito de verdade, como formulado em Vrit et existence, no

    concebido de maneira extrnseca ao movimento do saber, o que levaria a adotar, como

    nas filosofias digestivas, este conceito como cristalizao dada de uma vez, em um

    instante de revelao, ou mesmo como o coroamento maior do conhecimento, ambio

    mxima do olhar que adota o ponto-de-vista anlogo ao de Deus. Para Sartre, a verdade

    um processo, denominado desvendamento, que exige a ressignificao de todos os

    conceitos antes congelados (como comumente passaram a ser adotados por aquelastradies). Neste sentido, todo o processo do conhecimento ser apresentado como um

    movimento, apenas adquirindo sentido se o pensarmos enquanto temporalizao e

    totalizao.

    a temporalizao dos conceitos que permite que estes operem seus movimentos e

    ocupem seus lugares, inclusive (e talvez principalmente) contraditrios. Dito de outro

    modo, ela abarca aparentes absurdos e aporias, como o significado do Ser do No-ser

    e, inversamente, do No-ser do Ser, ou o carter de necessidade do erro para o

    surgimento da verdade. Estas intrincadas relaes, Sartre as considera em Vrit et

    existencecomo o processo mesmo do conhecimento do real, denominado processo de

    verificao, o que quer dizer que a realidade nunca dada. A temporalizao, sob este

    aspecto, indica que o processo de desvendamento, longe de ser natural, fcil,

    desenvolvimento de um ser j dado e completo, , ao contrrio, difcil e desviante,

    que escapa aos atalhos da divindade, porque temporalizao que se d por intermdio

    de um ser que vive no meio da verdade.

    Portanto, atravs de um ser finito, existente, assaltado tanto por questes como

    por afetos, que todos os conceitos se agrupam de modo a definir um todo operatrio.

    Porm, este todo s faz sentido se temporalizado, uma vez que a verdade mesma

    daquele ser igualmente um processo processo originrio de todos os outros: o da

    existncia do Para-si. H, entretanto, uma segunda complicao, pois tentar elucidar a

    temporalizao dos conceitos no significa esgotar a abordagem da trade congelada

    passado-presente-futuro, mas esboar uma rede de relaes que permitir,

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    posteriormente, a concatenao de temas aparentemente dspares como criao e

    conhecimento, imaginao e realidade, presena e ausncia, resistncia e utopia. Para

    iniciar a compreenso desta rede de relaes, preciso elaborar minimamente a noo

    de projeto, o que s faz sentido se abordarmos sucintamente alguns pontos referentes ao

    Para-si.

    ***

    Como a verdade aparece como relao do Para-si com o Ser (como lemos em

    Vrit et existence) e como o projeto s pode ser incio do desvendamento para o ser

    que tem na temporalizao seu modo de ser, necessrio esclarecer que ser este que

    inaugura o campo do humano em meio ao inumano e existncia bruta do Em-si e que

    fratura esse solo rido quando projeta nele a sua questo.

    O Para-si, em primeiro lugar, o ser esvaziado de identidade, no h nele uma

    natureza originria. Sartre trata de retirar deste conceito, que irrompe como relao no

    mundo (como indica o para), qualquer possibilidade de substancializao. Ele ,

    portanto, pura intencionalidade, o ser cujo ser relao com o Ser, conscincia de

    alguma coisa. Como tal, surge como movimento para fora de si, o que implica, por um

    lado, a procura de sua identidade o ser comandado pelo futuro, em sua estrutura

    interna e, por outro, ruptura consigo, porquanto aparece de imediato como ausncia,

    falta, nada e, finalmente, fuga. No entanto, ausncia que se constitui, ao se

    temporalizar, em ao, nada que se transfigura em ser, falta que se lana em direo

    identidade. Seu princpio e necessidade , portanto, a liberdade e a negao do Ser (que

    aprece como resistncia ao seu movimento), pois conscincia translcida que se ope

    opacidade do Em-si. Mas o contato inicial com o Ser, se ainda no revelador de

    alguma maneira de ser (porque s o ser a partir de determinado projeto lanado), j o

    do Ser, porque o Para-si nasce na relao, e na relao com o Para-si que o Ser se

    ilumina. Por isso, se a temporalizao no um comportamento, , no entanto, o

    fundamento de todos os comportamentos no como suporte, mas como o desenrolar da

    relao entre o Ser e o Para-si.

    Deste modo, o Para-si constitui-se como pura relao e movimento que escapa

    de si em direo a si mesmo. Este movimento de superao e contradio revela um

    novo significado das relaes temporais da perspectiva do Para-si, como indica FranklinLeopoldo e Silva nesta passagem do ensaio Temporalidade e romance: o para-si

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    modo de frustrao de ser. O passado facticidade ultrapassada, transcendncia para

    trs at a obscuridade de mim mesmo; o futuro a falta, ou o ser captado como falta; o

    presente o processo de escape de si. O para-si sempre a disperso de seu ser, mas

    essa tambm a sua unidade. A temporalidade fora dissolvente e ato unificador. Essa

    identidade contraditria entre disperso e coeso chama-se dispora.28 E como

    dispora que o Para-si vive na verdade, no de maneira confortvel como o peixe na

    gua, mas mantendo com ela uma relao que, por um lado, de imanncia (que o

    prprio ser transcendente do Para-si permite), apesar de, por outro lado, o Ser aparecer

    como terrvel, adversidade e opacidade. O Para-si surge, portanto, nesta relao difcil e,

    embora uma de suas possibilidades seja a de configurar-se como ignorncia do Ser, o

    seu surgimento no mundo como relao o engaja de imediato ao menos como

    testemunha29 do Ser (porque ele no simplesmente presena frente ao Ser,

    coexistncia, mas traz no bojo da sua existncia a relao essencial com o Ser, porque

    falta e transcendncia que s se preenche com o que h fora, porque arrancada em

    direo s coisas, ao que no si). A verdade surge nesta relao como experincia

    temporal (sempre em direo ao futuro) e efetuao das possibilidades que antes

    apareciam como projetos, posto que le monde, comme corrlatif des possibilits que je

    suis, apparat ds mon surgissement, comme lesquisse norme de toute mes actions

    possibles.30

    Por isso, essa fuga do para-si (ser o que no ) significa no processo temporal

    que o para-si o que ser, no futuro. Como a faltaest estruturalmente no mago do

    para-si, a presena ao mesmo tempo uma fuga rumo ao seu ser, ou ao que lhe falta

    para ser.31Neste sentido, o Para-si foge em direo ao seu ser, situado na relaocom

    o Em-si.

    ***

    Em linhas gerais e de maneira bastante esquemtica, o que Sartre denomina

    projeto o movimento lanado pelo Para-si e que ao mesmo tempo o lana em direo

    ao futuro, justamente para enrolar novamente este novelo desenrolado. Este retorno, esta

    28SILVA, Franklin Leopoldo. Temporalidade e romance, in tica e literatura em Sartre ensaiosintrodutrios, p. 120.29Um dos sentidos de testemunhar ver, estar presente, presenciar e outro tornar evidente edemonstrar. Nesta escolha de palavras, alm da responsabilidade que o testemunho reserva quele que o

    experimentou (pois este deve enunciar aos outros o que viu), surge ao mesmo tempo a metfora do olhar.

    30SARTRE.tre et Nant, p. 370.31SILVA, Franklin Leopoldo. Temporalidade e romance , p. 116.

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    volta, to importante na operao do projeto quanto a ida. Ou seja, o projeto no se

    esgota no percurso imaginrio que se desenvolve do presente ao futuro, mas sim

    naquele que se re-envolve do futuro ao presente (antecipao), pois s assim o presente

    poder ser interrogado e esclarecido a partir deste que ainda No-ser - o futuro

    projetado. O projeto, assim, do ponto-de-vista da ontologia, opera um esquema de

    ausncia que, no entanto, modifica o ser presente e sua relao com o Em-si,

    porquanto o futuro imaginado que indica as questes que o Para-si lana ao mundo em

    estado bruto (que ainda aparece como Ser-a). Assim, a indicao de algo que me

    dado como ausncia esquemtica (operada pelo par projeto-antecipao) e como

    ausncia ontolgica No-ser (este se desdobrando em meu futuro e na prpria

    dimenso temporal do futuro) que esclarece a minha relao com o que se apresenta,

    com o Ser, e preenche a minha existncia presente com o significado desta relao.

    A mesma operao ocorre quando desejo estabelecer uma relao de

    conhecimento. Deste modo, s posso compreender o presente a partir daquilo que

    projeto, assim como o cientista s encontra respostas a partir daquilo que questiona ao

    projetar a hiptese esta antecipao imaginria da resposta que se verificar ou no.

    Da mesma maneira (embora o conhecimento seja para Sartre tambm ao) o mesmo

    esquema operando em todas as outras aes, das mais banais ao moral. Assim,projetar a minha ao esclarece o meu ser presente. O futuro ainda no , nem o ser que

    projeto nele. No entanto, este futuro de certa forma est presente, como ausncia e

    anncio, na ao ainda no realizada, mas imaginada. O presente, sob esta perspectiva,

    aparece como o No-ser do fim projetado e, como falta, anuncia uma modificao no

    que sou agora e esclarece a minha ao presente.

    Enquanto vivo e desenvolvo minhas aes dirias, estou mergulhado na minha

    existncia, vivendo um processo, desenvolvendo aes cuja concluso final no estpreviamente determinada. Se sinto sede, por exemplo, a saciedade no aparece ainda

    como o fim concreto do movimento que se iniciou com a sede, podendo surgir

    obstculos que desviem ou alterem as aes intermedirias. Por isso, apenas o fim do

    processo, neste caso a sede saciada, poderia transformar retroativamenteo significado

    da existncia da ao de beber gua em destino, se nos voltssemos para analisar os

    fatos j vividos. Como nossa existncia no est de antemo determinada, o fim das

    nossas aes pode e vai ser projetado de uma forma ou de outra, mas comopossibilidades, pois no h como ter a certeza da sua realizao. Temos apenas a certeza

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    do que j se realizou e se encontra encerrado no passado. Ou seja, do que se empedrou

    como fato. Como escreve Franklin Leopoldo e Silva, se diz que temos um passado,

    isto , o trazemos em ns, no como uma coisa que possumos, mas como uma relao

    interna com um presente sedimentado no processo pelo qual o para-si vai se

    cristalizando em em-si no processo temporal. Por isso, Malraux dizia que a morte

    transforma a vida em destino.32 No entanto, se do ponto-de-vista da morte 33 ao

    olharmos para trs (se pudssemos) veramos um destino, se este mesmo ponto-de-vista

    transformado em projeto presente, h uma modificao tanto na carga ontolgica do

    ser que o projeta quanto no julgamento de sua conduta moral. Pois este pode ser

    considerado um ser que deseja ser um ser menor, o que se apresenta com um dos

    aspectos da m-f. Por ora, digamos que a interpretao concreta da vida como destino

    uma imagem congelada do Projeto, o que fixa as aes como se pudessem ser

    determinadas. Esta conduta, no entanto, s pode ser vivida por aquele que de antemo

    colocou como projeto, que surge do fundo de suas aes, a ignorncia (da verdade da

    existncia). Lemos em Verit et existence: Cette relation dintriorit dans lextriorit

    et sans rciproque ou, si lon prfre, cette image renverse et fige du Projet, cest ce

    quon nomme le Destin. Lignorance est appel au Destin. (...) Lignorant vit sa mort et,

    en refusant sa libert, la projette sur le monde qui la lui renvoi sous forme de destin

    (Fatalit). Le monde de lignorance est celui de la Fatalit.34

    Assim, a interpretao da vida como destino s se apresenta como possibilidade

    justificada se for considerado o ponto-de-vista do ser cujo fim foi alcanado, o que nos

    faz lembrar do personagem de A Nusea, Antoine Roquentin, quando, em uma

    determinada noite, decide procurar viver uma aventura, mas esbarra na impossibilidade

    de viv-la enquanto processo temporal presente. Isto ocorre porque a aventura s pode

    ser qualificada como tal quando tornada vivncia encerrada no passado, ou seja, quando

    32SILVA, Franklin Leopoldo. Temporalidade e romance, p. 115.33A morte tem carter independente do projeto, como lemos em tre et Nant, p. 604-6 (como indicadopor MENDONA, em O mito da resistncia, pp. 85-6): La mort est un fait contingent qui ressorti lafacticit (). La mort nest aucunement structure ontologique de mon tre (...). Quest-elle donc? Riendautre quun certain aspect de la facticit et de ltre pour autrui, cest--dire rien dautre que du donn.(...) Ainsi, la mort nest pas ma possibilit (...); elle est situation-limite, comme envers choisi et fuyant demon choix. Elle nest pas mon possible, au sens o elle serait ma fin propre qui mannoncerai montre(). Jchappe moi-mme la mort dans mon projet mme. Etant ce qui est toujours au dl de masubjectivit ne saffirme pas contre elle, mais indpendamment delle (...) Nous ne saurions donc nipenser la mort, ni lattendre, ni nous armer contre elle; mais aussi nos projets sont-ils, en tant que projets

    non par suite de notre aveuglement, comme dit le chrtien, mais par principe indpendants delle.34SARTRE. VE, p. 77.

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    determinado conjunto de fatos adquiriu o significado de aventura para aquele que j os

    viveu, porquanto para o sujeito que os vivia no momento atual apareciam como

    movimentos deslocados, sem um sentido maior e unificador (pensado como sentido

    ltimo que organizaria o passado)35.

    Quando penso nos atos passados, o fim passa a iluminar e dar sentido aos meios,

    que aparecem ento, quando analisados retroativamente, como indicao (ndice) do

    fim. Porm, o paradoxo encontra-se no fato de que durante o processo o fim no est

    dado e, deste modo, passeio s cegas, imerso na contingncia, pois nenhum ato visado

    como necessrio at que se realize efetivamente e adquira um sentido a partir do fim.

    Esta anlise sobre o projeto e a antecipao nos conduz a uma noo central para o

    nosso trabalho: pois o projeto emprestade certa forma um ar de necessidade aos atos,um certo ser ao no-ser que, no entanto, no pode ser confundido com a substituio do

    projeto pelo ponto-de-vista da morte. O projeto escolha, mas se efetivamente

    responsabilizo-me por ele e me empenho na sua realizao, minhas aes adquirem

    certo ar de necessidade em relao a ele (embora no sejam ainda fatos). Este jogo

    possui certa carga positiva, pois o futuro projetado, quando o vivo no presente como

    antecipao, d densidade ao presente em si mesmo fugaz e efmero36, pois se refere

    a um ser que est sempre um passo adiante, porque fuga de si, intencionalidade eruptura constitutiva com o seu prprio presente. Fica, no entanto, mais uma questo:

    embora veremos adiante que tudo que surge por meio do Para-si aparece como dupla

    possibilidade e assim o ser de emprstimo (promovido pela antecipao) pode ser

    conduzido por uma conduta que o reduziria a um truque da m-f, por outro lado, este

    pode ser um esquema operatrio do desvendamento. Neste sentido, o ser de emprstimo

    pode tambm aparecer como esquema ontolgico do Para-si.

    O projeto assim constitutivo do Para-si, mas tambm insuficincia contidano fato de j ser o que terei de ser, podendo no s-lo o que denominada por Sartre

    como a liberdade enquanto limite de si mesmo.37 H um carter contingente da

    35Fica, entretanto, uma questo: o grau de acaso da aventura poderia qualific-la, como quer Roquentin,como a forma menos elaborada da antecipao do futuro, uma forma, digamos, que reduziria a sombra deresponsabilidade que o projeto joga no presente? Acreditamos que no, porque o sentido da aventurasurge depois de tudo organizado como vivido, est deriva de qualquer antecipao, alm de qualquerprojeto. Roquentin se equivocou, porque s se busca algo que j se espera, e a aventura justamente odesvio em direo ao inesperado, contingncia e ao acaso.

    36SILVA, Franklin Leopoldo. Temporalidade e romance, p. 117.37SILVA, Franklin Leopoldo. Temporalidade e romance, p. 117.

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    existncia, pois existe sempre a possibilidade de alguma fatalidade ou eventualidade

    desviar-me do sentido do projeto (seja extraordinria ou cotidiana: doena, cataclisma,

    preguia, morte...). Mas h tambm a possibilidade de alguma mudana ocorrer no que

    se refere escolha mesma do projeto, minha liberdade original38. No entanto,

    preciso considerar o fim imaginado da ao (vamos usar como exemplo o escritor que

    deseja escrever um livro e diz a si mesmo; eu vou escrever um livro). Embora o fim

    aparea como no necessrio (apenas saberei se o escreverei de fato depois de

    efetivamente t-lo escrito) ele esclarece necessariamentea ao presente, e confere-lhe

    um sentido conforme a escolha (sento-me escrivaninha e comeo a escrev-lo: uma

    possibilidade escolhida). Alcanado o fim concreto, o livro finalizado, este determina o

    sentido preciso dos meios e das aes, que aparecem, apenas sob esta perspectiva, como

    mediaes quando estive no parque, vi uma criana que deixou cair sua boneca,

    imagem recolhida que inspirou o episdio central do captulo III. No o sabia antes de ir

    ao parque, presenciar a cena, voltar para casa e escrever. Assim, retrospectivamente, a

    cena no parque aparece como causa (no necessria quando a vivo, mas necessria

    quando rememoro a gnese do livro) da escrita do captulo III. O fim imaginrio,

    projetado, por outro lado, no determina a escolha da ao, mas esclarece o sentido da

    minha ao presente, como frustrao do projeto ou tentativa de escolha dos meios que

    talvez faam com que me aproxime do fim desejado hoje farei uma pesquisa na

    biblioteca, pois devo recolher dados para serem usados no captulo II do meu livro, que

    se refere vida no circo.

    Assim, podemos dizer que o No-ser (projeo do eu futuro o escritor)

    esclarece o Ser (o eu de hoje). Mas o no-ser no aparece apenas em relao ao

    futuro, mas tambm ao presente, e no apenas em seu sentido ontolgico, mas tambm

    para o conhecimento - autrement dit, le Non-tre intervient directement comme

    structure de la vrit ou clairement de ltre39e assim la structure de la vrit est

    ncessairement que ce qui estest clair par ce qui nest pas. Le mouvement vri-fiant

    va de lavenir qui nest pas au prsent qui est.40 Sartre pode dizer, no sentido do

    conhecimento presente, que o Em-si esclarecido por uma antecipao. Esta, porm,

    livre, porque definida por um determinado projeto. Deste modo, o fundamento da

    antecipao a liberdade e algo que se configura como pura presena esclarecido por

    38

    Assim, h sempre um carter de risco ao se colocar para si a responsabilidade do projeto.39SARTRE. VE, p. 47.40SARTRE. VE,p. 44.

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    um esquema fundamentado na ausncia. Tambm o conhecimento iluminado a partir

    da considerao de um no-ser: ainsi, de toute vidence, le fondement de toute

    rvlation dtre est la libert, cest--dire le mode dtre dun tre qui est soi-mme

    son propre projet.41

    ***

    a compreenso do processo de temporalizao que permitir lanar as bases da

    crtica tanto ao realismo filosfico, como ao literrio (realismo tomado como a relao

    extrnseca com a verdade). Quando penso na existncia, penso em um processo se

    desenvolvendo, o do para-si. Este processo ser abordado pelo romance crtico, com

    toda a sua carga de escape. Dizer que tentaremos compreender um processo de

    totalizao, em meio a ele, dizer que teremos de viver seu contedo de adversidade,

    sua inapreensibilidade, justamente porque, como apontamos acima, no h como ser

    testemunha da totalizao da temporalizao, nem h como ser testemunha da prpria

    morte, nem como testemunhar o fim da Histria (como entidade extrnseca a ela) ou o

    fim absoluto do conhecimento. Isto ocorre porque dizer que algo se totalizou enterrar

    a totalizao. No entanto, do mesmo modo, quando dizemos que o para-si se

    temporaliza, dizemos tambm que sua totalidade inapreensvel. Logo, o tema da prosa

    romanesca essa totalidade inapreensvel. O romance faz dessa impossibilidade a

    prpria constituio de sua possibilidade. A esse romance, Sartre denomina crtico.42O

    romance crtico tem como fundamento a temporalidade no naquele sentido da trade

    congelada que fora rompida anteriormente (passado-presente-futuro) e que daria ao

    leitor o objeto do romance diretamente, mas sim a temporalizao pluridimensional,

    aquela em que a totalizao impossvel, mas pela qual se consegue uma revelao

    indireta que mais totalizadora do que o realismo unidimensional. Ou seja, o

    procedimento indireto mais fiel ao processo que faz do para-si uma totalidade nuncaacabada.43 Este procedimento indireto se fundamenta, acreditamos, na prpria

    estrutura da ao de desvendamento como descrita por Sartre em Vrit et existence. Por

    outro lado, a ao de desvendamento se constitui como resistncia poltica e conduz a

    uma atitude tica, contrria tanto ao conhecimento digestivo quanto ao velho romance,

    cuja estabilidade seria necessria conscincia burguesa, para simular temporalmente

    41

    SARTRE. VEp. 41.

    42SILVA, Franklin Leopoldo. Temporalidade e romance, p. 121.43SILVA, Franklin Leopoldo. Temporalidade e romance, p. 121-22.

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    a universalidade de que se acredita revestida. A verso romanesca dessa ideologia do

    universal a totalizao narrativa. Nesse caso, convergem a iluso realista que simula o

    tempo e a narrativa do tempo da simulao: o resultado a abstrao da realidade sob o

    pretexto de sua mais estrita observao.

    Deste modo, o velho romance (realista ou no) usa o artifcio da observao

    direta para simular a abstrao da temporalidade (e da realidade). Contra este artifcio,

    Sartre define uma operao indireta: a ao de desvendamento, conceito central para sua

    definio do realismo e do romance crtico.

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    UM CONCEITO: O DESVENDAMENTO

    Um conceito central para o nosso trabalho, que proporciona a convergncia entre

    saber, criao e moral, o de desvendamento. Trata-se da operao-guia que,

    temporalizada pelo Para-si, , ao mesmo tempo, processo de temporalizao da verdade.

    Deste modo, opera como uma espcie de maiutica, parto indireto da verdade, pois para

    Sartre ela no um dado, mas sim, por um lado, determinado procedimentodo Para-si

    em relao ao Em-si e, por outro, processode verificao do real, que consistir num

    movimento contnuo de interrogaes em direo ao Ser.

    Antes de tudo, importante ressaltar que o desvendamento uma operao

    temporalizada. Ou seja, como dissemos anteriormente, no se trata de um instante de

    revelao em que, utilizando a metfora bblica, o vu da ignorncia rasgar-se-ia de

    cima a baixo, pela interveno de uma fora superior, vinda de fora, seja ela divina ou

    similar. Ao contrrio, dentro do Ser que comea a operao e no Ser que ela se

    resolve. A partir deste princpio, poderemos desenvolver a anlise da relao central

    deste procedimento, estabelecida entre o Para-si e o Em-si.

    Sartre utiliza duas metforas para dar conta desta relao: a da viso e a da

    iluminao. Lemos em Vrit et existence: tout libre comportemet, en effet, pose une

    fin. Mais le libre comportement est dpassement de ltre par un tre situ au milieu de

    ltre. La fin est venir ltre. Elle le dpasse et le conserve en elle, elle envelloppe

    donc une comprhension de ltre puisque cest dans ltre quelle doit venir ltre.

    En mme temps, titre de fin, elle groupe les tres prsents dans une unit de

    signification: ils deviennent des moyens. Et, comme je lai expliqu, la synthse de tous

    les moyens ne se distingue pas de la fin. Cela veut dire que la fin est organisation

    clairante des moyens. Ainsi, la structure de la vrit est ncessairement que ce qui est

    est clair par ce qui nest pas. Le mouvement vri-fiant va de lavenir qui nest pas au

    prsent qui est. Cest seulement par un tre qui nest pas encore ce quil est que la vrit

    peut venir ltre; ltre nest vrai que dans et par le dpassement. Mais cela implique

    ncessairement que la vrit se temporalise, cest--dire quelle apparaisse selon les

    catgories davant et daprs. En effet, puisque cest le projet qui claire ltre, ltre

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    est obscur avant le projet et, mesure que la fin venir se rapproche du prsent, ltre

    sclaire de plus en plus; la fin se modifie au fur et mesure quelle se ralise, car elle

    se complique toujours davantaje et claire des rgions dtre de plus en plus dtaills.

    Ainsi, ltre rvl est corrlatif de la fin projete: lorsque la fin est tout fait sommaire

    et indiffrencie, ltre rvl dans le projet est global et abstrait; mesure que je

    travaille la ralisation, la fin se dtaille par ltre et ragit en dtaillant ltre. A la fin

    ltre et la fin ralise ne font plus quun, le dvoilement est achev.44

    A metfora, na obra sartriana, como nos informa Noudelman em seu livro

    Sartre: lincarnation imaginaire, atua como smbolo, imagem que corporifica ou

    encarna um sentido que ultrapassa a determinao pontual do conceito. Deste, o sentido

    sartriano da metfora herda o peso e o rigor, mas no a rigidez e a perda da relaointrnseca com o real. a metfora, e no o conceito, que permite o trnsito ou a

    passagempelos nveis de realidade (ordem moral, esttica, poltica e ontolgica) de uma

    s totalidade (a existncia). Assim, le symbole possde ainsi une dynamique propre, du

    fait quil excde toujours lide quil incarne; sa particularit ne se rsout pas dans le

    concept. Il nous faudra aussi redfinir la mtaphore qui, si elle fonctionne bien comme

    telle dans la tropologie classique, est employe au titre du symbole dans le texte

    sartrien. Le transport de sens quelle gnre vise moins une dispersion par analogiequ une extension du sens; elle met en relation diffrents ralits en saisissant leur tre

    commun.45A dinmica da imagem, como diz em seguida o autor, conduz noo de

    expresso, que no abordaremos por ora. Mas, a partir destas afirmaes, podemos

    concluir que a viso e a iluminao no funcionam como comparaes extrnsecas, mas

    devem pesar como conceitos imanentes para uma filosofia que nega a sistematizao

    enrijecida do saber.

    Compreendamos os termos da relao entrevista na metfora da viso e dailuminao. H um desdobramento necessrio do Ser. Por um lado, h o Em-si (que

    nunca ser Em-si para si), por outro, o Para-si (sendo que este s se apresenta como Em-

    si para a conscincia de um outro): ainsi, en face de la nuit bouissante de ltre, la

    conscience, qui est comdie, qui est truqueuse, qui est rafistolage, accommodement

    soi, parce quelle a se faire tre ce quelle est, dcouvre un type dtre impitoyable,

    sans compromissions ni accommodements, labsolue et irrmediable ncessit dtre

    44SARTRE. VE, pp. 44-5.45NOUDELMANN, Franois. Sartre: lincarnation imaginaire, p. 12.

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    pour toujours et par-del tout changement ce quon est.46Da relao entre o Em-si e

    o Para-si advm o conhecimento que, como vimos, nunca ser dado de imediato e de

    uma vez, de maneira geral e completa, o que significa, simultaneamente, que o ser

    conhecido hbrido, porque dado em uma relao e no em si para si mesmo, e

    incompleto, porque s o movimento derradeiro e totalizador poderia tom-lo por

    completo. Isto ocorre porque h um processo ininterrupto de verificao do Ser pelo

    Para-si. Para dar conta destas afirmaes de Vrit et existence, relembremos o que vem

    a ser o Em-si e o Para-si tomado como conscincia.

    Em O ser e o nada a conscincia definida como um ser para o qual, em seu

    prprio ser, est em questo o seu ser enquanto este ser implica outro ser que no si

    mesmo47

    . Assim, o Para-si necessita da existncia de outro ser para se objetivar,porquanto sempre conscincia dealguma coisa. O Para-si se constitui como relao e

    por isso depende do que est alm de si o Em-si: dans son surgissement, le Pour-soi,

    sil ne fuit pas ltre, dcouvre que sans ltre, lui, Pour-soi, ne saurait tre puisquil

    nest que comme conscience (d) tre conscience de ltre. Mais il ny a pas rciprocit

    puisque ltre apparat comme tant-dj. Sans doute le Pour-soi confre une

    dimension dtre ltre, savoir ltre-rvl; mais cette dimension est sur fondement

    de lavoir-t-dj de ltre. Dailleurs, nous y reviendrons, ce nest pas rassurant pourautant puisque le Pour-soi a conscience de confirmer librement dans son tre un tre qui

    est la fois condition opaque et ngation en son coeur de ltre du Pour-soi. 48 Em

    contrapartida, o Em-si necessita do Para-si para se objetivar. Estamos jogando entre

    dois extremos: o Para-si translucidez e transcendncia, o Em-si, ao contrrio,

    opacidade, e no se pode dizer sequer que seja imanncia, como Sartre explica em O ser

    e o nada, pois o Ser inerncia a si, sem a menor distncia49. Vimos anteriormente

    que o Para-si distncia de si, ele fundamentado ontologicamente pela distncia que o

    para instaura. O Em-si, ao contrrio, si, ou seja, no sequer relao a si, sequer

    distncia mnima, ele no nenhuma relao. Deste no ser relao, Sartre conclui: de

    fato, o ser opaco a si mesmo exatamente porque est pleno de si. Melhor dito, o ser

    o que 50. esta plenitude que constitui, por outro lado, o princpio de identidade do

    Em-si sua verdade imanente, e este princpio estabelece que o Ser conhecvel. Mas

    46SARTRE. VE, p. 89.47SARTRE. SN, p. 35.48

    SARTRE. VE, p. 87.

    49SARTRE. SN, p. 38.50SARTRE. SN,p. 38.

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    lembremos agora que o Para-si vive na verdade (como o peixe na gua), porque vive

    no ser pleno de si. Porm, ao contrrio do Em-si, a identidade do Para-si se desenrola na

    relao e assim a verdade do Para-si no encontrada no princpio, mas ao trmino de

    um processo temporal.

    O princpio de identidade, quando formulado deste modo, no se esgota no

    domnio axiomtico, mas passa a ser considerado como princpio contingente do Em-

    si. Neste sentido, o princpio de identidade, princpio dos juzos analticos, tambm

    princpio regional sinttico do ser e designa a opacidade do ser-Em-si 51. Este ser

    escapa temporalidade, porque o ser est isolado em seu ser e no mantm relao

    alguma com o que no . Os trnsitos, os vir-a-ser, tudo que permite dizer que o ser no

    ainda o que ser e j o que no , tudo negado por princpio. Porque o ser ser dodevir e, por isso, acha-se para alm do devir. o que ; isso significa que, por si

    mesmo, sequer poderia no ser o que ; vimos, com efeito, que no implicava nenhuma

    negao. plena positividade. Desconhece, pois, a alteridade; no se coloca jamais

    como outro a no ser si mesmo; no pode manter relao alguma com o outro.

    indefinidamente si mesmo e se esgota em s-lo. Desse ponto de vista, veremos mais

    tarde que escapa temporalidade52. Disto resulta que o ser (princpio de

    existncia), o ser em si (princpio de plenitude e conseqente isolamento) e o ser o que (princpio de identidade e opacidade). Mas, justamente como conseqncia

    destas caractersticas, o ser necessita do Para-si para o visar, porquanto a viso do

    Para-si, seu olhar, que traz o ser luz e esta operao aqui compreendida por ns

    como a maiutica do Ser, pois surge como Verdade, Realidade e, quando visado pelo

    Para-si (e apenas por meio desta viso e relao), Temporalidade.

    Assim, o Em-si a princpio coexiste com o Para-si, aparecendo como evidncia

    ao Para-si e pura presena, ao passo que o Para-si irrompe como pura intencionalidade.Mas este contato original no mero estar diante, o encontro de dois blocos cegos,

    pois a direo que o Para-si toma vai alm da evidncia, pois j faz do contato ao,

    enquanto v o Ser de dentro do Ser. Esta ao se traduz no sentido do conhecimento, a

    princpio como testemunho do Para-si e interrogao nascida no bojo do Ser, que se

    desenvolve no sentido de fazer do Ser, para alm de mera presena bruta, presena

    revelada. E, mais do que isto, ce paralllisme fait de moi le complice de ltre, je suis

    51SARTRE. SN, p. 39.52SARTRE. SN, p. 39.

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    compromispar ltre. A mes anticipations, en outre, qui formallement sont subjectives,

    ltre prte, en tant quobjetives, son tre53.

    Neste sentido, Sartre pode dizer em Vrit et existenceque ltre, cest la nuit.

    tre clair, cest dej autre chose54. A revelao do Ser (sua iluminao pela visoque o desvenda) se d aos poucos: primeiro, ele a noite, opacidade; com o surgimento

    do Para-si, h coexistncia e testemunho, embora o Ser ainda seja presena no

    qualificada. Em seguida, o Para-si coloca para o Ser sua questo e seu projeto. O

    esclarecimento do Ser s se realiza pela operao da metfora do olhar, da visada do

    Para-si, e assim conhecer ser definido como a ao contnua de retirada do Ser da

    noite do Ser. Isto significa que o Ser ser esclarecido, mas nunca ao ponto de coincidir

    com a translucidez do Para-si, porquanto o Ser nunca conscincia de si mesmo (j queo fundamento da relao entre o Para-si e o Em-si a diferena entre estes extremos).

    Entretanto, passa a receber, a partir desta relao, uma nova caracterstica - a

    luminosidade. Assim o conhecimento pode ser definido em Vrit et existence como

    tirer ltre de la nuit de ltre sans pouvoir lamener la translucidit du Pour-soi.

    Connatre, cest malgr tout confrer une dimension dtre ltre: la luminosit. La

    vrit est donc une certaine dimension qui vient ltre par la conscience.55

    Podemos ento concluir que a verdade passa agora a ser definida para alm do

    domnio axiomtico - cette appartenance au monde de la Vrit, ou Ralit, peut

    encore se dfinir comme le fait que la vrit est prouve ou vcue. En un sens, toute

    vrit est vcue comme danger, effort, risque (mme une vrit scientifique) et,

    rciproquement, tout ce qui est vcu (dans la rage, la peur, la honte, lamour, la fuite, la

    bonne et la mauvaise volont) manifeste la Vrit56, e ainda: la ralit, cest donc que

    ltre qui manifeste la vrit est dans le monde, est du monde et en danger dans le

    monde57 - afastando-se das filosofias digestivas, pois o Ser foi deslocado do planomeramente axiomtico para o contingente. Alm disso, a verdade ainda definida em

    Vrit et existence (cujas bases ontolgicas em parte coincidem com as de O ser e o

    nada) como uma certa dimenso que vem ao Ser pela conscincia, deste modo, sua

    essncia estar relacionada ao plano da existncia, significado maior de dizer que sua

    53SARTRE.VE, p 61.54SARTRE. VE, p. 19.55

    SARTRE. VE, p. 19.

    56SARTRE. VE, p. 27.57SARTRE. VE, p. 27.

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    essncia o h da frmula h um ser. Localizamos ainda mais um deslocamento do

    sentido da verdade, pois ela , ao mesmo tempo, este ser na relao que confere uma

    nova dimenso a ele, ou seja, o ser na medida da interrogao do Para-si. E agora o

    Ser, que se aparecesse sozinho na realidade no apareceria (pois seria o domnio do

    inumano e por isso um ser sem histria) pela interrogao do Para-si reveste-se de um

    segundo sentido: o de humano, isto , temporal. Assim, compreendemos o sentido

    maior da afirmao sobre o Ser: Tout dabord il apparat comme non dductible,

    absurde, opaque, de trop, contingent. La ralit-humaine vrifiante, en dcouvrant

    ltre, dcouvre son dlaissement au sein de linhumain. Car le monde est la fois

    humaine et inhumain. Il est humain au sens o ce qui est surgit dans un monde qui nat

    par le surgissement de lhomme. Mais cela na jamais voulu dire quil tait adapt

    lhomme. Cest la libert qui est perptuel projet de sadapter au monde.

    ***

    Aqum da interrogao, h o Ser do mundo que se desdobra, por um lado, em

    plenitude de Ser e, por outro, como matire infiniment riche et indiffrencie de

    linfinit de mes projets possibles58. Assim, o Ser que aparece ao lado do Para-si surge

    no apenas como opacidade, mas tambm como possibilidade (pois se houvesse como

    no haver relao entre eles, apareceria somente como indiferena): sans doute le

    Pour-soi confre une dimension dtre ltre, savoir ltre-rvl, mais cette

    dimension est sur fondement de lavoir-t-dj de ltre59.

    No entanto, no momento imediato de contato, que vimos que logo se d como

    testemunho (uma vez que o Para-si pura intencionalidade e ao, o que equivale a

    dizer que no se define realmente um momento, digamos, de contemplao ou

    passividade), o Ser visado como adversidade, momento em que aparece como mais

    velado: cette connaissance immdiate est au contraire la plus voile. La manire dtre

    de tre apparat souvent comme plus manifeste que ltre lui-mme 60. Neste sentido,

    lemos que dans cette vidence mme est donn lobscurit soi ou limpntrabilit

    absolue, cest--dire le mystre en plein lumire. Ltre se livre totalement au Pour-soi

    comme soi, ce qui veut dire que lclairement, au lieu de dissiper son obscurit, lclaire

    comme obscurit.(...) Ltre est indigeste. Du mme coup, la conscience prend

    58

    SARTRE. VE, p. 45.

    59SARTRE. VE, p. 87.60SARTRE. VE, p. 37.

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    interrogao metafsica que nossa interrogao. E Sartre continua: ainda o no-

    ser que vai circunscrever a resposta: aquilo que o ser ser vai se recortar

    necessariamente sobre o fundo daquilo que no . Qualquer que seja a resposta, pode

    ser formulada assim: o ser isso, e, fora disso, nada65. Isto explica parcialmente a

    afirmao de que o ser vem ao mundopelo Para-si, pela realidade humana e sua ao.

    Mas esta citao tambm indica que o Para-si s passar a possuir peso ontolgico, no

    sentido de uma identidade, a partir da resposta e da resistncia do ser. Alm disso, a

    ausncia, a no-verdade, a ignorncia, embora sejam conceitos distintos, surgem nesta

    relao sobre o fundo da presena plena do Ser. Por este caminho, comeamos a

    entrever o significado maior destes termos em cada passo do desvendamento, pois

    podemos dizer agora que h, simultaneamente revelao de uma verdade, uma

    negatividade (que aparece como nada, ausncia, no-verificao, falta, ignorncia...),

    como lemos neste trecho de Vrit et existence:

    Le Nant intervient trois moments dans la vrit:

    1. Du ct de lEn-soi comme puissance deffondrement de ltre qui nest pas

    pour-soi, cest la Nuit de ltre.

    2. Du ct du Pour-soi, comme lclairement de ltre par le Non-tre, ce qui

    implique que ltre parat toujours en suspens au sein de ce qui nest pas. Caractre

    provisoirede toute vrit, ce qui implique aussi la ncessit de la temporalisation et, par

    consquent, que lclairement apparat ncessairement sur fond dignorance, puisque

    chacun de mes projets apparat sur le fond indiffrenci des possibles que je ne

    possibilise pas.

    3. Du ct du rapport du Pour-soi et de lEn-soi. Car un foss de nant empche

    lEn-soi de devenir Pour-soi et le Pour-soi de rsorber en lui et de rcuprer lEn-soi66

    .

    O projeto lanado pela interrogao inicial incio da verificao da verdade que,

    veremos, est cercada destas zonas de negatividade e opera no em detrimento delas,

    mas tornada possvel por elas. Assim, o objeto interrogado, o Ser, responde

    (resistindo) s questes postas por determinado projeto verificante, que se complica

    medida em que se multiplicam, nas palavras de Sartre, as vises e intuies. O que

    constitui a verdade, a positividade da relao entre o Para-si e o Ser o ensemble des

    65SARTRE. SN, p. 45-6.66SARTRE. VE, p. 47.

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    responses vrifies de lobjet, verdade para o Para-si e o Em-si, que surge como

    iluminao do Em-si em relao ao projeto do Para-si. Por isso esta verdade

    possibilitada apenas luz deste projeto, porque evidente que o no-ser surge sempre

    nos limites de uma espera humana67, assim como o Ser. Portanto, a resposta ou a no

    resposta do objeto definem a identidade do Para-si, de alguma maneira: Il va de soi que

    lobjet rpond aux demandes (sil ny rpond pas, sa non-rponse est une rponse: elle

    marque lindtermination provisoire, cest que lobjet nest pas dans le champ actuel de

    notre action mais ne rpond quaux demandes.68Assim, este ensemble des rponses

    vrifies de lobjet constitui sa vrit: naturellement, sa vrit la lumire de ce

    projet.69 Ou seja, se o ser se define a partir da minha visada, ele o faz,

    conseqentemente, a partir do que eu coloco como fim cependant janticipe sur lEn-

    soi qui minvesti, je le dpasse vers une fin qui est mafin.70

    A partir do que vimos at agora, possvel compreender a citao de Vrit et

    Existence: la rvlation de lEn-soi comme vnement pur, arrivant lEn-soi, comme

    nouvelle dimension virtuelle dtre de lEn-soi, cest labsolu-sujet. Ainsi la vrit est

    un vnement absolu dont lapparition concide avec le surgissement de la ralit-

    humaine et de lHistoire. La vrit commence comme une histoire de ltre et elle est

    une histoire de ltre, puisquelle est dvoilement progressif de ltre. La vritdisparat avec lhomme. Ltre retombe alors dans la nuit sans date. Ainsi la vrit est

    temporalisation de ltre tel quil est en tant que labsolut-sujet lui confre un

    dvoilement progressif comme nouvelle dimension dtre71. Aqui evidencia-se a

    relao entre verdade, temporalidade, realidade e histria. A verdade , assim, como

    definida em Vrit et existence e em Quest-ce que la littrature?, histrica, humana e

    temporalizada pela ao. Por isso, a ao de desvendamento opera a verificao da

    verdade, que s faz sentido, como vimos, enquanto processo sempre em curso

    porquanto nunca totalizado, o que indica que o Em-si est entourn danticipations non

    encore vrifies72, recusando toute vrit qui vient du dehors, qui ne surgisse pas du

    sein mme de la vrification73, pois isto implicaria desprezar a relao que se

    temporaliza, tornando-se humana e histrica. atravs da conscincia que o Ser se

    67SARTRE. SN, p. 47.68SARTRE. VE, p. 51.69SARTRE. VE, p. 51.70SARTRE. VE, p. 48.71

    SARTRE. VE, p.19-21.

    72SARTRE. VE, p. 53.73SARTRE. VE, p. 67.

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    presentifica. Esta presentificao se constitui em ato, no contemplao. Mais do que

    isto, ela funo do Para-si (Lamour de la vrit cest lamour de ltre et lamour de

    la fonction de prsentification de ltre74), e, por fim, sua responsabilidade - et la

    ralit-humaine libre doit ncessairement assumer ses responsabilits vis--vis de la

    vrit75.

    ***

    A verdade definida por Sartre como ao. Em Quest-ce que la littrature? o

    desvendamento no surge como uma palavra ou conceito isolado, mas constitui a

    atitude do escritor engajado. Como a ao do escritor a prosa, esta atividade particular

    da escrita denominada neste ensaio como ao de desvendamento. Assim, esta ao

    aparece com sendo a espinha dorsal tanto do conceito de conhecimento76, quanto do de

    engajamento. Importante observao, porque Sartre, como vimos, usa as metforas para

    dar conta da elasticidade dos conceitos e a viso, desta forma, no deve ser confundida

    com a passividade da atitude contemplativa, mas opera como um esquema diretor. Esta

    operao corre em paralelo questo da antecipao e, neste sentido, o que veremos

    posteriormente, provocar a irrupo no seio do desvendamento do conceito de criao.

    Por sua vez, este conceito central no sentido de preencher o ato da responsabilidade do

    agente. Segundo Cristina Diniz Mendona, desde O ser e o nadaSartre nunca deixar

    de abordar um ativismo que passar a caracterizar o Existencialismo e esta mesma

    teoria da ao norteia Quest-ce que la littrature?. A autora cita uma passagem que

    indica o sentido moral da ao de desvendamento (e que pressupe a relao imanente e

    real entre conhecimento, criao e moral): le monde rel ne se rvle qu laction, (...)

    on ne peut sy sentir quen le dpassant pour le changer77. Em seguida, ela recorre a

    um comentrio de Jameson, que relaciona o nada encontrado no bojo do Ser com a

    lacuna (que vimos ser condio do Para-si): a origem mesma da ao (como o nadanum domnio do ser puro, isto , dos objetos) foi encontrada na estrutura do ser humano

    como lacuna, como privao ontolgica, que tenta se satisfazer a si mesma, se realizar e,

    74SARTRE. VE, p. 19.75SARTRE. VE, p. 41.76No caso do escritor, Sartre denomina a ao de desvendamento de ao secundria. Acreditamos queisto no caracteriza uma hierarquia das aes (em que o conhecimento apareceria como o domnio demxima importncia, como ao primria e a criao como uma ao menor e, neste sentido,secundria), mas sim que no campo da literatura a ao se constitui de maneira dupla - como atitude

    cognitiva e moral - carecendo de dois seres, o escritor (Para-si) e o leitor (o Outro) para os quais a aomoral se impe como responsabilidade.77Citado em MENDONA, O mito da resistncia, nota 24, p. 107-8: SARTRE, Situation II, p. 109.

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    desse modo, atingir algum estado ontolgico definitivo.78 Neste sentido, o primeiro

    movimento da ao a resistncia (enquanto negao do dado) seguido do de

    ultrapassagem do dado em direo ao futuro projetado: Cest dans la mesure o la

    realit-humaine a une autre dimension que le prsent, cest dans la mesure o elle est

    soi-mme venir comme projet, que ltre se dvoile elle. En un mot, la connaissance

    est sur fond danticipation. Toute projet dvoile, tout dvoilement rsulte dun projet.

    Mais il ne sagit pas ici dune pure succession dinstants dont chacun apporterait un

    donnqui ne serait que prsence indifferencie dtre. Cest un tre qui se jette vers

    lavenir et qui dcide de sa manire dtre que lEn-soi se rvle; en un mot, la vrit se

    rvle laction. Toute action est connaissance (encore quil sagisse dans la plupart des

    cas dun dvoilement non intellectuel) et toute connaissance, mme intellectuel, est

    action79.

    A conscincia pura imediata junto ao Ser surge como reveladora do Ser, embora

    ainda no de alguma maneira de ser. Isto ser possvel quando definido o projeto. Neste

    momento define-se a relao entre a conscincia e o Ser (este como ser concreto do Em-

    si) em sua imediaticidade, sendo a conscincia negao interna do Ser, o que indica um

    movimento contnuo de ultrapassagem do dado, como processo ininterrupto de

    verificao.

    ***

    A partir do que vimos, podemos dizer que o conceito de saber foi deslocado de

    sua concepo original, que aparecia carregada de relaes extrnsecas. O saber ter seu

    lugar no processo de desvendamento, mas no privilgios como outrora, pois no a

    estrutura principal do conhecimento. Ele est relacionado apenas com o conhecimento

    de determinado tipo de ser o ser de emprstimo. A operao mais prxima ao

    conhecimento do Ser puro, no entanto, ser o que Sartre denominou viso. O saber

    ainda um tipo de intuio vazia il vise un tre venir ou pass, de tout faon un

    tre demprunt80. A viso, ao contrrio, constitui uma verdadeira intuio la vision

    est remplissement du savoir par ltre. Assim, do ponto-de-vista digamos

    metodolgico, a viso um tipo de intuio, que se inicia com a interrogao, lugar de

    78Citado em MENDONA, O mito da resistncia, nota 24, p. 107-8: JAMESON,Marxismo e Forma, p.

    80.

    79SARTRE. VE, pp. 48-9.80SARTRE. VE, p. 103.

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    onde se lana o projeto da verificao da questo (revelador da riqueza da ao, que por

    sua vez medida pela multiplicidade dos seus projetos. Estes, por outro lado, medem a

    quantidade de ser que dado a revelar).

    A viso surge, assim, no como contemplao passiva, mas operao que correem paralelo questo da antecipao e provocar a necessiddade da criao (eu crio

    isto que 81). Mas, se a forma que surge na operao da viso se enderea contra mim,

    indestrutvel, a operao de apreender uma qualquer coisa a um tempo criao e

    passividade, posto que no posso desfazer o que a mim se revelou, mas posso operar

    indefinidamente a gnese do Ser. Isto prcisment lapparition de la vrit ou ltre

    apparaissant dans lacte. Du point de vue subjectif, la connaissance ne diffre pas de la

    cration et, rciproquement, la cration est une connaissance; on a un moment deconnaissance.82

    81SARTRE. VE, p. 49.82SARTRE. VE, p. 49.

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    CAPTULO 2

    A IRREDUTIBILIDADE DO REAL E A ABORDAGEM INDIRETA

    AS ARTES E O PROBLEMA DO REALISMO

    Em Quest-ce que la littrature? Sartre inicia sua argumentao distinguindo a

    prosa das demais artes, com a inteno de restringir o engajamento imanente ao do

    prosador. No se trata de afirmar, como uma interpretao simplista indicaria, que o

    engajamento no possa estar associado s artes plsticas, poesia e msica, mas de

    estabelecer que na prosa, e somente nela, o engajamento no constitui uma escolha de

    segunda categoria (escolho ser msico e me comprometo a criar uma msica engajada),

    mas uma deciso de primeira ordem (ao escolher ser escritor, implcita e imediatamente

    estou engajado neste caso, o engajamento no se resumiria adio de mais um

    significado ao, mas se manifestaria essencialmente).

    Este modo de conceber a prosa suscita conseqncias polmicas, devendo-se

    levar em conta se as considerarmos a data de publicao do ensaio: 1947, momento em

    que a palavra engajamento encontrava-se relacionada principalmente a determinados

    modos de manifestao poltica, dois anos aps o fim da Segunda Guerra Mundial.

    Naquele contexto, Quest-ce que la litterature? poderia sugerir que o conceito de

    engajamento na arte estivesse relacionado a um realismo do tipo realismo socialista,

    arte-denncia ou panfletria. Entretanto, veremos que o engajamento definido por

    Sartre de maneira mais complexa e o seu modo operatrio resulta numa mudana

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    radical do leitor, no que diz respeito maneira de conhecer a realidade e no sentido da

    ao poltica e tica. Mais uma vez, relacionamos a esta interpretao a

    complementaridade dos escritos Quest-ce que la littrature? e Vrit et existence. Para

    entender o significado maior do engajamento, preciso, portanto, compreender a

    relao das artes com o que Sartre toma por realidade. Assim, antes de esboarmos uma

    anlise sobre a peculiaridade da prosa, h de se colocar a questo: por que as outras

    artes no corresponderiam igualmente a locais privilegiados do engajamento e da

    conseqente (e imanente a este) comunicao do desvendamento? Ao contrrio do que

    se poderia pensar, o engajamento no uma regra geral das artes, pois Sartre rejeita o

    paralelismo entre elas. Deste modo, se o engajamento na prosa definido como

    implcito isto no ocorre nas outras artes, sendo que cada uma delas deve ser analisada

    parte. Tentaremos agora compreender a separao entre as artes e a prosa, cujo

    cerne se encontra na diferenciao entre sentido e significao.

    ***

    Em Quest-ce que la littrature?, Sartre considera que nas outras artes (que

    no a prosa) e na poesia o que conta no a significao, mas o sentido. Elas definiriam

    um sentido em si mesmas, e possuiriam um carter de coisa. Se em certos momentos

    valeriam como signos, isto ocorre por uma conveno (vermelho significa amor,

    amarelo, medo, por exemplo). Porm, se considero a pintura desta forma, Sartre pode

    dizer que no me comportei como artista, porque o artista (aquele que trabalha com a

    matria sonora ou plstica) manipula as coisas em seu grau mximo, ou seja, cria a

    partir da impermeabilidade, da extenso, da permanncia cega e da

    exterioridade prpria das coisas. E como toda coisa (como todo em-si) aquilo que o

    artista cria possui um sentido obscuro. Assim, no caso do pintor, cest cette couleur-

    objet quil va transporter sur la toile et la seule modification quil lui fera subir ce